Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
1
Tópicos de Filosofia Política (2008)
humano, ele não é algo vago e confuso. É claro que existem situações-limite em que
é difícil dizer se algo é devido a alguém ou não, mas fora esses casos, existem
inúmeras situações em que as coisas são muito claras. Nós vemos que da parte A
não houve nenhuma provocação, e a parte B foi lá e fez alguma coisa. Havia um
primeiro sujeito, que não estava fazendo nada, e então foi um segundo sujeito lá e
roubou carteira dele. O sentimento de justiça e injustiça aí é muito claro.
Aluno: Esta percepção do “justo”, este sentimento de justiça teria uma relação
direta com a sindérese?
Prof: É isso que é importante notar: que esses sentimentos são anteriores ao
conceito de justiça ou injustiça. Antes de ter pensado, criado uma noção abstrata de
justiça ou injustiça, você já se sente diferente se é você corrigido por algo que você
não fez ou por algo que você fez – esta diferença é inerente ao estado humano. Esta
diferença é perceptível até mesmo em crianças que são deficientes mentais. Se não
for uma deficiência mental grave, que impede a associação temporal dos
acontecimentos, até mesmo uma criança deficiente mental se sente diferente se ela é
corrigida por algo que ela fez ou por algo que ela não fez.
2
Tópicos de Filosofia Política (2008)
O que você faz nesta situação? Ora, o sentimento ou a tensão quase que
espontânea no adulto é tomar o brinquedo da segunda criança e dizer: “Pegue outro
brinquedo, porque ele já estava brincando com esse aqui. Deixe ele continuar
brincando com este, e quando ele largar, você o pega!”. Ou você tenta trocar com
ele, tenta mostrar que o outro brinquedo é mais interessante. Ou seja, você corrige a
segunda criança e não corrige a primeira. Isto é uma atitude mais ou menos natural.
No momento em que a segunda criança toma o brinquedo da primeira, se explicita
ou surge na sua mente uma norma, algo que até então não existia como norma, que
é: numa circunstância tal, em que os brinquedos não têm dono, o brinquedo é da
primeira criança que pegar, até ela largá-lo. Está claro que essa norma de
propriedade só surge quando foi infringida? Ela não preexistia ao cenário.
3
Tópicos de Filosofia Política (2008)
proporcional à situação.
4
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Para o ser humano, a mesma coisa: a primeira criança, quando chegou lá, fez
uma análise da sua situação: “Brinquedos, oba!”, e foi brincar. Quando a segunda
criança chegou, ela também fez uma análise da situação, mas ela não analisou a
situação completa, pois ela fez abstração da outra criança. Ela só olhou os
brinquedos e não olhou toda a situação. Talvez ela até tenha olhado a criança,
porque as crianças têm um instinto perverso de tomar o brinquedo que está na mão
da outra. É um pensamento humano: “Se o sujeito tem isto, deve ser bom. Senão por
que ele teria?” – “Se o sujeito tem aquele carro, deve ser porque o carro é bom,
senão por que ele teria comprado? Então, deixa eu ir lá pegá-lo!”
Prof: É o desejo mimético mesmo. O fato é que ela não captou a situação
plenamente, e ela não correspondeu à situação, mas apenas a um desejo íntimo: “Eu
quero aquele brinquedo!”. E justamente é quando nós vemos a segunda criança
pegar o brinquedo da primeira que percebemos ela romper o equilíbrio que estava
presente no início. É esta percepção da ruptura de um equilíbrio que gera um
sentimento de injustiça no ser humano – é sempre a percepção da ruptura de um
equilíbrio. A noção, o conceito mesmo de justiça surge quando alguém testemunha a
ruptura de um equilíbrio. Esta ruptura faz surgir na mente do sujeito uma norma: “O
brinquedo é da primeira criança que pegá-lo”.
Aluno: O jusnaturalismo?
Prof: Não, o jusnaturalismo é um passo além desta mesma ideia. Ocorre que,
num sentido estrito, isto que os medievais chamavam de lei natural, por falta de um
termo melhor, não é exatamente uma lei. É uma correspondência apenas. Essa
correspondência não constitui por si uma lei, uma norma. Então, chamar isso de
“lei” é um equívoco – na verdade, eles chamavam de lei por analogia à lei
proclamada, à lei positiva.
Aluno: Daí a ideia de que as normas não podem gerar a justiça, elas podem, no
máximo, minimizar a injustiça.
5
Tópicos de Filosofia Política (2008)
cometer aquele novo crime. A única coisa que esse exercício causará é um novo
crime!
Aluno: E quando impele, é a fazer algo que põe em risco a sua própria vida,
não é?
6
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Para um leão também: o leão decide caçar esta gazela e não caçar aquela, caçar
este búfalo e não aquele, simplesmente porque a correspondência entre ele e a
situação se apresentou para a mente dele. Ele olhou um búfalo e avaliou: “Este é
maior do que eu posso pegar; e aquele dá para pegar!”, ou seja, ele mediu a situação
e ele mesmo – isso é a lei natural. Agora, isso não é uma “lei”, porque não comanda.
O equilíbrio universal se torna lei quando ele se torna lei positiva, lei proclamada
por um legislador. Isto é, quando a segunda criança vem e pega o brinquedo da
primeira criança, aí você cria a norma: “Não pode pegar o brinquedo da primeira
criança” – a partir deste ato legislador é que se corrige aquela ação.
Se as leis fossem estabelecidas por mera conveniência, elas não poderiam ser
impositivas sobre todos. Tudo o que é conveniente não é obrigatório. Só é
obrigatório aquilo que é de necessidade, aquilo que é assim: “Sem isto não podemos
viver!”. Se você se afasta do equilíbrio original, você morre. Se você se afasta do
equilíbrio original, você deixa de ser um ser humano; e se deixar de ser um ser
humano você morre, porque você não pode se tornar outra coisa.
7
Tópicos de Filosofia Política (2008)
maldade. Porém, muito antes disso você morreu, porque o seu corpo não aguentou
até lá. Mas, um sujeito que se afasta demais da moral perde a sua identidade
humana, é muito evidente. Chega um ponto em que é impossível relacionar-se com
ele como você se relaciona com um ser humano, você só pode se relacionar com ele
como você se relaciona com uma fera.
Isso significa que aquele sujeito perdeu mesmo o seu lugar no mundo.
Percebem como estas coisas são naturais antes de serem normas? Quer dizer, você
age normalmente com as pessoas, de repente percebe: “Não importa o que eu faça,
este sujeito vem, me bate e pega as minhas coisas. E se eu tento conversar com ele,
ele faz a mesma coisa de novo! Então com esse sujeito não dá mais para se
relacionar como um indivíduo humano. Com ele não há conversa: ou eu bato
primeiro, ou ele bate primeiro!”. Ele agora se reduziu de fato à condição de fera,
então devemos agir com ele como se ele fosse uma fera – porque ele é uma fera.
Mesmo que ele possa mudar depois, eu posso agir com ele depois, eu tenho de agir
com ele agora, pois a minha interação é agora, não é no futuro. Ainda que eu possa
corrigi-lo depois, eu preciso do meu salário agora. O meu salário, que ele está
tentando roubar agora, eu preciso dele agora! Este é o erro de que quem pensa: “O
sistema penal tem que ser apenas para corrigir...” Não, meu filho, o negócio é o
seguinte: eu preciso do meu dinheiro now! As minhas contas vão vencer amanhã!
Não dá tempo de reeducar o sujeito para que ele me devolva o dinheiro.
O que queremos dizer aqui é: a lei natural não é bem uma lei, é um princípio –
é o princípio essencial da justiça das leis humanas. O que faz com que uma lei seja
justa? O fato de aquela lei de fato restabelecer um equilíbrio. Se, ao restabelecer o
equilíbrio, uma lei gera um desequilíbrio que é menor do que aquele que ela
8
Tópicos de Filosofia Política (2008)
É por isso que os códigos morais dos povos são incrivelmente semelhantes nos
princípios fundamentais e fantasticamente diversos nas aplicações. Em todos os
povos se afirma: “Não pode matar” – e há alguma norma que limita a possibilidade
matar. Isto, em todos os povos – e os que não tinham, morreram todos! (risos) Isso
significa que esta norma como que explicita, como que formaliza um elemento
permanente do equilíbrio. Quando pode matar? Depende, pois há uma autoridade
pública firmemente constituída, com poder policial e de justiça, que funciona etc.
Então, nunca, porque você tem de chamar a polícia. E quando não é bem assim, e a
polícia é mais ou menos etc.? Aí você pode!
Percebam que tudo isso deriva da natureza das coisas. Então, quando se fala no
Brasil: “Em qualquer situação, chame a polícia”, isso é evidentemente injusto.
Porque nós sabemos que a polícia é mal preparada, mal equipada, chega tarde
demais, isso quando não é corrupta. Ou seja, não temos polícia na maior parte das
situações. Logo, a norma que diz: “Deve-se chamar a polícia ao invés de reagir ao
agressor” é simplesmente injusta. Ela não está restabelecendo o equilíbrio original,
na maioria dos casos ela simplesmente colabora com a ruptura do equilíbrio. Então,
saibam: esta é uma lei contra a qual nós temos de lutar. Deve-se incentivar a defesa
pessoal no Brasil. É evidente, porque aqui nós estamos quase no faroeste.
[INTERVALO]
[Alguém diria:] “Eu acredito que existe direito natural, que existem leis que
são independentes do pensamento humano”. Outro diz: “Não existem essas leis. A
justiça é só uma convenção a partir dos sentimentos. A justiça é meramente
subjetiva e, portanto, convencionada”. Se há discussão, é porque as diversas
posições percebem aspectos diferentes do mesmo objeto. Um objeto pode ser
complexo ao ponto de não ser de captação imediata para o ser humano. O equilíbrio
universal é um objeto deste tipo. A correspondência que existe entre um ente e o
mundo não é algo que se capta com facilidade, porque nem o ente, nem o mundo no
9
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Isso significa que para o sujeito com pouco preparo metafísico a ideia de
“equilíbrio universal” parecerá uma hipótese ou uma conjetura, que não pode ser
provada. Se você disser: “O equilíbrio universal é a correspondência entre um ente e
o mundo no qual ele existe, e essa correspondência é necessária – e acabou, não tem
discussão”, isso não parece evidente, pois não parece evidente que o mundo e o ente
se correspondem mutuamente. Na verdade, isso subentende um longo treinamento
em metafísica. Mas é esta correspondência que, no caso específico do ser humano, é
a matriz dos sentimentos morais e do direito. Veja bem, o conceito de justiça é um
conceito vazio ou nulo na ausência de um equilíbrio que é percebido pelo ser
humano. Se você disser que não existe equilíbrio universal, então o conceito de
justiça é um conceito vazio.
A ideia de que é a livre convenção, a livre negociação dos termos que faz com
que um contrato seja justo é uma mentira. Não é assim. O que faz com que uma
coisa seja justa é o fato de ela, de fato, restabelecer um equilíbrio, e que este
equilíbrio só pode ser captado na medida em que a mente do sujeito é serena em
relação à situação. Quer dizer, por que percebemos tão facilmente que devemos
corrigir a segunda criança? É simples: porque eu estou quase que completamente
fora da situação. Eu sou um juiz que transcende o interesse das duas crianças, eu não
sou uma terceira criança competindo pelos mesmos brinquedos. Se eu fosse uma
terceira criança competindo pelos mesmos brinquedos, seria tremendamente difícil
julgar a situação. É isso que faz com que seja difícil estabelecer o justo para os seres
humanos: porque na maior parte dos casos nós estamos na mesma situação, pois nós
julgamos sobre coisas pelas quais nós também competimos. Então, a justiça só pode
ser conhecida na mesma medida em que o indivíduo pode se manter sereno diante da
situação.
10
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Essa insistência de todos os povos neste ponto não é uma coincidência. Não é
que para ter a consciência de que não se deve matar, é preciso que um “deus” a
revele. É evidente que você pode sentir isso antes de um “deus” lhe revelar. Mas a
consciência disto como um princípio inflexível, que não tem exceções, que é
absoluto sobre você como indivíduo, essa consciência não pode proceder de um
indivíduo humano. Ou seja, a consciência dos princípios fundamentais como tais
não pode vir da condição humana, porque nós estamos sempre competindo pelas
mesmas coisas, pois para cada motivo que eu possa ter para não matar uma pessoa,
eu também posso encontrar um outro motivo para matá-la. Então, eu posso dizer: “É
preferível não matar” – quase todas as consciências humanas dizem isso. É preciso
que o sujeito tenha uma doença moral para que a consciência dele não diga isso: “É
indiferente matar ou não matar” ou “Em geral, é melhor matar”. Normalmente, a
consciência humana diz que é preferível não matar. Agora, a consciência dizer:
“Matar é o último recurso; só em tais circunstâncias extremas, etc...”, ou seja, que
isso seja um princípio orientador, isso não tem origem humana. A consciência
humana não diz isso.
Quando estamos diante de uma situação, para cada situação existe uma diretriz
para o ser humano, mas essa diretriz está subentendida, ela não está clara para você.
Vamos fazer a seguinte comparação: é como se as diretrizes oferecidas por uma
situação fossem justamente a parte do cenário que você não está vendo. Você está
diante da situação, e as diretrizes ou o equilíbrio – a correspondência entre essa
situação e você – está atrás de você, e você não a vê. Na medida em que a sua
consciência estiver serena e você conseguir observar essa situação como se estivesse
de fora dela, o que acontece? O equilíbrio, que está atrás de você, se reflete na sua
percepção da situação, se reflete na sua consciência. Isso significa que a sua
consciência, a sua mente é um espelho no qual o equilíbrio universal pode aparecer
ou não, dependendo da nossa serenidade em relação à situação.
Então, os limites finais da condição humana, que são indicados pelos princípios
fundamentais da moral e do direito, não podem ter, eles mesmos, origem na própria
consciência individual. Porque a consciência individual capta a moral e o direito por
trás da situação indiretamente, por reflexão e imagem. Para que esse equilíbrio que
está por trás de todas as coisas apareça à nossa mente como princípios, é necessária
uma revelação. É necessário que Moisés fale: “Não pode matar, porque Deus
mandou”, ou que a deusa solar apareça e fale: “Este é o imperador, e o que ele
determina é a palavra de deus”, e assim por diante. Todos os povos na história dirão
que esses princípios têm uma origem supra-humana, nenhum deles atribuiu a si
mesmo a origem dos princípios fundamentais.
11
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Aluno: E isso não quer dizer que seja tudo uma questão de legitimidade (...)
Prof: Exatamente, não é [apenas] para que esses princípios fossem legítimos.
Porque, veja bem, esses princípios simplesmente consumam uma tensão que está na
consciência normal. A consciência humana normal média diz: “É preferível não
matar do que matar”. Basta sair na rua e perguntar de pessoa em pessoa, no mundo
inteiro. Quando um sujeito fala: “É preferível matar!”, você verá que ele está numa
situação emergencial, em que está cheio de gente em torno que quer matá-lo.
Prof: Aí eles falaram: “Judeu pode matar, porque judeu não é gente!”. (...)
Primeiro se cria uma imagem do judeu como não-humano. Depois é só falar: “Agora
pode matar! Porque judeu não é gente mesmo, judeu é rato, e rato nós podemos
matar!”.
Prof: Exatamente. Para conseguir convencer uma população a fazer uma coisa
assim, é preciso distorcer muito a imaginação deles.
Aluno: Diziam que não era para exterminar, era para “libertar”...
Prof: Não tinha nada, porque o alemão era um povo de bárbaros, selvagens,
brutos. Alemão só fazia linguiça; não eram gente; eles mal saíram do estado de
macaco – e era assim que o europeu se sentia em relação ao alemão. Agora, imagine
um povo que é assim – bem, não é que eles eram gente má, mas eles não eram gente
culta – e então, convivendo com eles, há pessoas que têm cinco mil anos de história,
e que têm consciência dessa história. O que acontece? Quando a sociedade, a
civilização oferece um problema, o sujeito que acabou de sair da situação tribal para
a situação civilizada não sabe resolver o problema – igual ao brasileiro: tem um
problema no Brasil, e o brasileiro: “O que faremos? Bate em alguém! Bate no
governo, bate nos empresários, bate em alguém! Porque não aguento mais isso!”. O
alemão era assim, ele estava nesta situação. O judeu, quando tinha um problema na
12
Tópicos de Filosofia Política (2008)
sociedade, reagia assim: “Qual é a estrutura jurídica aqui? O quê que está
funcionando? Como é o governo? Como é a sociedade?”, isto é, ele captava as
oportunidades que aquela situação oferecia. O judeu já sabia lidar com a civilização.
Então, o judeu se dava bem e o alemão se dava mal. Era assim: o alemão abria uma
sapataria; e o judeu abria uma sapataria ao lado, e o judeu se dava bem e o alemão se
dava mal, sistematicamente!
Isso era meio estranho para o alemão: “Mas o que está acontecendo? O que
esses caras estão fazendo? Esses caras estão fazendo alguma coisa errada. Não é
possível isso acontecer. Não é possível eles sempre darem certo e a gente sempre dar
errado!”. É como o brasileiro falando do americano. O brasileiro olha os EUA e fala:
“Não é possível eles darem certo, não é possível as coisas melhorarem lá. Eles têm
de estar fazendo alguma coisa errada!”. Mas não era isso – o judeu simplesmente
sabia lidar com a civilização. O judeu sabe: quando você faz um negócio, quanto
tempo leva para dar dinheiro? Quanto se precisa investir? Quando há um problema
com a lei, como se resolve? Quando é que se suborna? Quando é que se cumpre a
lei? Quando é que se faz lobby para mudar a lei? O judeu sabia tudo isso e o alemão
não sabia nada.
Daí chega um cara e fala o seguinte: “O judeu está nos enganando! Ele está nos
roubando, ele é o mal!”. Pronto, acabou!
Aluno: [inaudível]
13
Tópicos de Filosofia Política (2008)
devemos fazer é trabalhar como burroa? Certo, vamos fazer!” – mas é só isso. A
coisa em si não entrou ainda, pois isso demora centenas de anos para isso entrar [na
cultura de] um povo. É assim: quando houve a conquista romana, vocês acham que
todo mundo ali virou romano de um dia para o outro? Vocês sabiam, por exemplo,
que o direito na França só se tornou mais próximo do direito romano depois da
Revolução? Até a época da Revolução Francesa, nunca se conseguiu impor o direito
romano lá.
Aluno: Napoleão falava que ele trocaria todas as batalhas que ele venceu só
pelo código civil. Foi ele quem criou o código civil francês, acabando com os
códigos locais, pois até então a França não tinha um código único.
Os poucos que sabem o que é isso se dão bem, e todos os outros se dão mal. E
estes pensarão que aqueles poucos estão roubando eles. E, num certo sentido, num
pequeno sentido, eles estão, porque eles têm uma vantagem civilizacional muito
grande. Ou seja, não era totalmente injustificado o antissemitismo alemão. Veja
bem, não é que estamos defendendo o antissemitismo. Mas é que os judeus tinham,
de fato, uma vantagem muito grande sobre o alemão naquele momento. Isso é o
mesmo que pegarmos uma tribo de índios, jogá-los numa grande cidade e falarmos a
eles: “É o seguinte: toda e qualquer reivindicação aqui tem de ser feita por escrito” –
passados dez anos, estarão todos na miséria! Todo mundo vai enganá-los, fraudá-los,
e eles não poderão reclamar, porque só se pode reclamar por escrito. Se sobreviver
algum deles, talvez, na próxima geração, um deles consiga aprender a ler e escrever.
Era mais ou menos essa a vantagem que o judeu tinha naquele momento. Não é uma
coisa simples explicar isso àquele povo inteiro, que pensava: “Esses caras vieram
para a nossa terra, e agora eles estão se dando bem e a gente se dá mal?!”. Então,
não é [um sentimento] totalmente injustificado. Mas também, é claro que não é
assim: “Agora vamos matá-los porque eles se deram bem! Vamos matar todo mundo
por inveja!”.
Isso aconteceu durante toda a Idade Média. Este problema que os alemães
enfrentaram no século XX, durante toda a Idade Média aconteceu na Europa inteira:
os judeus foram expulsos de nação em nação. Simplesmente ocorre que naquele
tempo, em que o pessoal era civilizado, cristão, eles não diziam: “Vamos matar
todos eles!”, mas diziam: “Vamos mandá-los todos embora, porque não dá...!”
Aluno: [inaudível]
Prof: Não! No começo, eles falavam: “Podem ficar, e nós conversamos – para
ver se vocês se convertem, porque queremos o bem de vocês!”. Uma hora eles
perceberam: “Não quero saber se você vai se converter, eu só quero que você vá
14
Tópicos de Filosofia Política (2008)
embora!”. Por quê? Porque eles se davam bem! Estude a Idade Média. Os judeus
foram expulsos de nação em nação na Europa.
Aluno: [inaudível]
Prof: Isso evidentemente favorece que eles se dêem bem num ambiente
civilizado. Num ambiente onde há normas, eles vão se dar bem. A não ser que a
norma seja “Matem os judeus”; esse é o único ambiente em que eles não vão se dar
bem. A raiva dos alemães, portanto, era justificada simplesmente porque os povos
anteriores na Europa podiam fazer o seguinte: “Agora vá embora daqui!”. Mas antes
se podia fazer isso porque não havia nações, no sentido moderno, ou seja, as
fronteiras não eram tão rígidas. Se você mandava um judeu embora do seu país, ele
não precisava apresentar um passaporte para entrar no país vizinho. Bastava você
chutá-lo para fora da fronteira e pronto, ele está em outro país; agora eles são
problema do outro país.
No século XX, os alemães já não podiam fazer isso – “Vá para a França, não te
queremos aqui!”, não era tão simples. Isso não justifica matar milhões de pessoas,
mas explica como se convenceu aquelas pessoas a matar aqueles milhões. Imaginem
o seguinte: se, no Brasil atual, os americanos não fossem os membros de outra
nação, mas um determinado grupo dentro da nossa nação. Suponha que aos EUA
foram destruídos, e 5% de nossa população agora é de norte-americanos. Não
passaria muito tempo para convencer as pessoas a matá-los.
Prof: Exatamente! Por quê? “Tem de haver alguma coisa errada com eles, não
é possível!”. Você olha para eles e fala: “Mas você é um ser humano como eu. Não é
possível que eu seja tão inferior a você! Que todos vocês dêem certo e todos nós
demos errado!”. De fato, não é uma inferioridade intrínseca, é uma inferioridade
15
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Então, sempre que as pessoas recorrem à ação violenta, é porque elas de algum
modo sentem que o equilíbrio foi rompido. Quando o antissemitismo se difundiu
entre os alemães, foi porque eles sentiam que os judeus tinham rompido o equilíbrio.
Acontece que não foram os judeus que romperam com o equilíbrio, mas o equilíbrio
tinha sido rompido previamente aos judeus e simplesmente a favor deles. Isto é, não
foram os judeus que transformaram a Alemanha numa nação moderna, eles
simplesmente se beneficiaram deste fato – não foram eles que criaram a situação.
16
Tópicos de Filosofia Política (2008)
faziam um voto de obediência para uma mulher. Tentem fazer isso hoje – não vai
acontecer.
Prof: Foi uma congregação beneditina. É fácil falar hoje: “Foi o cristianismo
que perseguiu a mulher...”, jogar nas costas de um outro – de quem você quer se
livrar – a culpa por um desequilíbrio que foi gerado. Assim como os nazistas
falaram: “Povo alemão, vocês estão se dando mal porque o judeu está nos
trapaceando!”, ao invés de falar: “Foi a história moderna, a história dos últimos
séculos que nos trapaceou; foram as mudanças civilizacionais dos últimos duzentos
anos...”. Não dá para bater nas mudanças históricas, mas dá para bater nos judeus.
Ninguém quer bater nos revolucionários que criaram a civilização moderna, mas
todo mundo quer bater nos padres e no Papa – “Então vamos botar a culpa neles!”.
Mas, não pense que você faz isso com a autoridade da história, pois a história
te desautoriza completamente. A história mostra que foi o contrário: na maior parte
do território europeu as mulheres tinham direitos políticos idênticos aos dos homens.
Fora, é claro, na Europa meridional, na esfera de influência imediata do império
romano, do direito romano, porque no direito romano a mulher de fato não tinha
nenhum direito. Mas isso se deu no direito romano, que é anterior à existência do
cristianismo. No ambiente grego, era a mesma coisa: “Mulher, shut up!”, com
exceção de algumas cidades.
17
Tópicos de Filosofia Política (2008)
povo inteiro a eliminar um outro povo. A maior parte das pessoas não é indiferente a
matar – e isso é válido para qualquer povo em qualquer tempo. Você pode, ou a
história pode, em algumas circunstâncias, criar uma situação em que existe um
desequilíbrio, e, portanto, uma situação em que um determinado povo não aguenta
mais um certo desequilíbrio, e não sabe o que está causando aquilo. Neste caso você
pode enganar aquele povo dizendo: “A causa deste desequilíbrio é tal coisa!” – e
assim você move um povo inteiro a uma tremenda injustiça.
Na consciência do povo alemão, eles não tinham sido movidos a uma tremenda
injustiça, e sim a uma restauração da justiça. Ninguém explicou a eles: “Nós
inventamos de criar uma nação moderna, para funcionar de tal forma, e nessa, os
alemães se deram mal e os judeus se deram bem. Mas isso não foi os judeus que
fizeram, fomos nós mesmos”. Isso ninguém ia falar. Vocês acham que os políticos e
os pensadores alemães, a elite acadêmica alemã, os que tinham pensado aquela
nação, falariam ao povo: “A culpa é nossa. Inventamos um jogo no qual o judeu
necessariamente se dá bem e nós necessariamente nos damos mal. Mas não se
preocupem, porque daqui a quinhentos anos isso vai mudar” – acham que eles iam
falar isso para o povo?
Prof: E ele sabia brincar com o brinquedo! O outro não sabia. É assim: coloque
dez judeus no Brasil. Ao fazer um negócio, eles dirão: “Como funciona aqui? Como
são as leis?” – “Ah, as leis são muito confusas.” – “Elas são muito confusas? Então
há desonestidade. Então, para quem nós temos de pagar e quanto temos de pagar?”.
Ele não precisa pensar muito para entender que as coisas são assim, isso é natural
para ele. Ele sabe quais são os elementos permanentes de qualquer associação
humana. O judeu sabe: “Se as regras não são claras, elas não existem, elas não
valem nada. Então, na verdade, existe outro sistema de instituições por trás destas,
que está obscuro. Qual é esse sistema?” – “É o fulano e tem que pagar tanto para
ele.” – “Certo, vamos lá pagar a ele...”, ele percebe essas coisas. Ele não tem de lutar
contra as situações.
Veja bem, ele passou milhares de anos sendo minoria em ambiente hostil; eles
foram para o Egito e viraram escravos; foram para a Babilônia e viraram escravos,
etc. Então, eles já aprenderam a operar em ambiente humano hostil. Se jogarem os
judeus na selva, eles todos morrerão, mas se jogarem eles em qualquer sociedade
humana, eles vão se dar bem. Porque eles aprenderam as permanentes da sociedade
humana.
Prof: E vai para o topo. Porque ele sabe como funciona. Agora, vamos pegar
dez alemães e dez judeus, lá nos anos 1930, e jogá-los numa ilha deserta, e vejamos
quem se dá bem. (...) Dali a dois meses, os judeus estão todos mortos! E os alemães
fizeram uma sociedade feudal, uma tribo, e vão se dar perfeitamente bem e serão
felizes. É isso que ia acontecer. Agora, explicar [tudo isso] ao alemão naquela
situação, não era possível, pois o povo alemão já se sentia mal com os judeus.
Quando uma pessoa se sente mal com outra – todo mundo sabe disso –, é
18
Tópicos de Filosofia Política (2008)
assim: você não gosta do fulano, e eu já sei que você não gosta dele, e eu lhe digo:
“Fulano é ruim, por causa disso, disso e disso...”, pronto, conquistei a sua amizade.
Se eu já sei que você não gosta de uma pessoa e eu chego e te dou mais um motivo
para não gostar daquela pessoa, você vai achar que eu estou errado? Não, você vai
achar que eu estou certo! Você não vai pensar: “Não, eu vou verificar essas suas
informações primeiro, para ver se está certo!”. Não vai fazer isso.
Prof: Exatamente. “Está aqui a sua carteirinha!” – foi isso que os nazistas
fizeram: deram uma justificativa ao sentimento do alemão geral em relação ao judeu.
Além disso, como já dissemos, os alemães deram azar. Nos séculos anteriores, havia
sempre o recurso de mandá-los para fora, pois era o que todo mundo já tinha feito,
não só na Europa, mas desde sempre! Essa é a história permanente dos judeus.
Prof: Agora, parece nós estamos justificando a atitude nazista. Não, nós
estamos justificando o sentimento do povo alemão [da época].
Prof: É como hoje em dia. Nós podemos justificar o sentimento das mulheres
em relação à perseguição dos direitos políticos. Isso nós justificamos plenamente. A
atitude anticatólica ou anticristã das feministas, eu não justifico de modo algum! Isto
é uma mentira que elas estão usando para manipular as mulheres, com base em
sentimentos justificáveis. O movimento feminista, quando fala contra o cristianismo
ou outras religiões tradicionais, está fazendo a mesma coisa que os nazistas fizeram
com os alemães. Elas estão fazendo com as mulheres exatamente a mesma coisa:
“Você tem um sentimento justificável, por isso vou lhe enganar, para você fazer o
que eu quero e não o que você quer!”.
Aluno: [inaudível]
19
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Aluno: Não é à toa que em todas as ideologias totalitárias, a primeira coisa que
elas fazem é buscar anular a consciência individual.
Aluno: [inaudível]
Prof: Exatamente. Faz uma diferença crucial se você simplesmente não gosta
de algo ou se você sente que aquele algo te prejudicou, te injustiçou – se você sente
que foi injustiçado, é muito fácil alguém lhe manipular. E pode apostar que a
situação dos astecas tem uma explicação histórica. Houve algum certo desequilíbrio,
e alguém falou: “Isto está acontecendo porque poucas pessoas são sacrificadas ao
Sol!”. Mas alguma coisa tinha de estar acontecendo. Não é assim, que um dia deu na
telha de alguém: “Nós temos de sacrificar milhares de pessoas ao deus Sol!”, e todo
mundo: “Legal, vamos lá!” – isso não aconteceu. Havia algum desequilíbrio
anterior. Talvez uma longa série de catástrofes naturais. E então, algum dia chegou
um imbecil (sujeito carismático, provavelmente) e falou a eles que culpa de tudo era
não sei o quê.
20
Tópicos de Filosofia Política (2008)
cultura anti-cristã que existe hoje no ocidente: em que se pinta o mundo pré-
colombiano como se fosse uma imagem do Éden, como se aqui todo mundo vivesse
em paz. Mas não apontam a complexidade política que havia. O império asteca era
uma imagem de um “império romano” nas Américas. Todos os povos vizinhos, os
olmecas, os zapotecas, etc., eram subjugados pelo império asteca. O interessante ali,
com a vinda dos espanhóis, é que, primeiro, já havia um ódio desenfreado de todos
os outros povos (...). Antes de ocorrer a dominação, houve uma tentativa de
construir um novo império aqui na América, junção da coroa espanhola com a coroa
asteca. Só que os existiam interesses políticos dos povos dominados, e os interesses
políticos internos do império; (...) Havia toda uma tensão política em toda a
mesoamérica (...). E um “banana” no poder, Montezuma, que foi o “Julio Cesar” dos
astecas: assassinado pelo próprio irmão. Porém, já era tarde. Já convenceram todos
os povos da mesoamérica: “Vamos matar todo mundo. Vamos fazer a justiça
agora!”.
Prof: Com Júlio Cesar houve a mesma coisa. Simplesmente a natureza impôs
um desequilíbrio que deixou vários sujeitos ofendidos. Júlio Cesar era absurdamente
mais capaz do que os sujeitos em torno, para realizar aquilo que eles queriam. E
quando ele começou a fazer aquilo, ele percebeu: “Eu sou absurdamente mais capaz
para isso do que vocês. Eu estou numa condição natural diferente da de vocês. Eu
sou diferente de vocês, e vocês deveriam aceitar isso...” – aí eles ficaram com inveja.
Júlio Cesar foi morto por inveja, porque era mais capaz, porque era de fato superior
aos outros em torno.
Aluno: [inaudível]
Prof: A mesma coisa, no caso dos judeus e dos alemães. Houve uma injustiça
contra os alemães, mas não foi cometida pelos judeus, ela foi cometida por outras
pessoas, não-judeus, gerações antes. Os culpados não eram contemporâneos às
vítimas. Então, não dá para bater em ninguém. Outros desequilíbrios podem ser
gerados por causas naturais, e estas não são nem justas, nem injustas, porque as
calamidades naturais não escolhem as vítimas.
21
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Prof: Sim. Todo mundo tende, percebe numa certa medida esse equilíbrio, e a
ruptura desse equilíbrio, e apetece ou deseja o restabelecimento do mesmo. Por isso,
é difícil convencer as pessoas a fazer o mal.
Aluno: Só se elas acreditam que fazendo esse mal, vão obter um bem.
Um ladrão, se perguntado, diria: “Não é justo que as pessoas tenham tudo isso
e eu não tenha nada!”. O pensamento justificador é que alguém lhe tomou aquilo –
perguntem a ele. Agora, quando o sujeito não pensa mais assim, mas só pensa: “Eu
tomo porque eu quero!”, ele já é um sociopata, um psicopata, não é mais só um
ladrão. Nós temos de cavar um buraco, jogá-lo lá dentro e tapar o buraco! O ladrão,
não: você bate nele, prende ele, tira os direitos políticos dele, etc., mas o sujeito que
já perdeu essa noção, que diz: “Eu faço isso só porque sou mau, só porque eu quero,
e daí?”, esse aí esse aí nós temos de jogar fora, pois não há mais recuperação, não há
diálogo com ele.
Com o ladrão ainda há o que fazer: bata nele, dificulte para ele fazer aquilo, e
uma hora ele para de fazer; se não parar, pelo menos nós nos sentimos bem, porque
as coisas foram mais ou menos reequilibradas. Mas, o sujeito que já não age em
22
Tópicos de Filosofia Política (2008)
função de um equilíbrio, ainda que tortuoso e subjetivo, com esse não há mais
conversa ou diálogo, pois há uma diferença imensa entre o criminoso e o psicopata.
O criminoso tem um discurso de justificação interno.
Aluno: Que aquela ação que ele faz é criminosa só nos meios...
Prof: “É criminosa porque vocês estão falando que é criminosa. Mas eu acho
que não é, porque vocês é que me roubaram primeiro!”.
Prof: Exatamente! Ele tem este discurso interno. É evidente que existe
hipocrisia nesse discurso interno. Não é que esse discurso interno não é sincero, ou
que esse discurso interno realmente justifica a ação do sujeito. Não, não justifica a
ação do sujeito, não torna justo roubar, mas torna humano.
Prof: Não, ele pode até ter esse discurso para si mesmo com a intenção de se
enganar. Ele pode não acreditar intimamente nesse discurso. Como já dissemos, nós
podemos seduzir a nossa consciência com o nosso próprio discurso, e isso a coisa
mais fácil do mundo. (...) Como também já dissemos, a nossa consciência não
discursa: ela gera tensões. Por isso é fácil nós mesmos, com o nosso discurso,
enganarmos nossa consciência – e o ladrão pode fazer a mesma coisa. Então, pouco
importa se isto justificou, mas tornou humano. Na ação humana, você só prejudica
um outro quando isso é uma compensação por um prejuízo anterior. Isso faz com
que a ação do ladrão, ainda que errada ou injusta, seja humana. Já quando ele pensa:
“Ninguém me fez nada, mas eu faço isso só porque quero lhe prejudicar”, esta ação
já não é mais humana. Esse sujeito saiu da escala humana.
Prof: Exatamente, a situação é bestial. É assim: Você não pode puni-lo, você
tem de excluí-lo. A única coisa justa a ser feita é o seguinte: tenho de ser justo para
com os outros, então eu enterro esse sujeito, tapo o buraco e o esqueço. Na Idade
Média, esse sujeito seria jogado numa oubliette, quer era cela da masmorra onde se
esquecia as pessoas. Esse sujeito você tem de jogar ali e esquecer, porque ele não
tem jeito. Há situações em que não tem jeito.
Enquanto a ação ainda é humana, isto é, enquanto a ação encontra de fato uma
tentativa de auto-justificação, você pune o sujeito. Quando ele já saiu do estado
humano, você não pune mais. Um psicopata é assim, ele não tenta justificar o que
ele faz: “Eu não preciso de justificativa”. Então, como já dissemos, para a maior
parte das pessoas, porque elas precisam de uma justificativa interna – porque elas
têm esse desejo ou apetite pelo equilíbrio –, é tremendamente difícil convencê-las a
fazer uma coisa ruim. Primeiro, é preciso passar um tempão tentando convencê-la:
“Aquele sujeito já lhe prejudicou; já lhe roubou; já roubou a sua filha; já estuprou a
sua mãe; já fez tanta coisa contra você, que isto que você fará contra ele é nada!” –
só então você consegue convencer.
23
Tópicos de Filosofia Política (2008)
tremendas injustiças, não significa que justo e injusto são relativos. Uma coisa não
prova a outra, pois nós temos de observar cada cenário histórico. E você notará isto:
para você convencer todos ou uma grande massa de um povo a cometer uma
injustiça, é preciso primeiro que eles estejam sofrendo e que você os convença que
alguém é culpado por daquele sofrimento – é preciso enganar aquelas pessoas para
elas fazerem aquilo. É mentira dizer que a maior parte das pessoas é má, pois, a
maior parte das pessoas são boas. Ou então dizem: “Mas quando elas estão
envolvidas na situação, elas têm dificuldade de julgar”, mas isso é óbvio, é evidente!
Aluno: Quando normalmente a pessoa diz que as pessoas são más, ela se julga
boa.
Prof: Exatamente. “As pessoas – essas pessoas aí.”. Quer dizer, parece que eu,
pelo simples fato de constatar que elas são más, já sou bom!
Prof: Ele luta contra “isso que está aí”. “Aqueles caras se dão bem.. – como?
Só pode ser roubando!”. Porém, há uma disparidade de meios de ação entre você e o
outro sujeito, e essa disparidade pode até ser causada por uma injustiça, de fato. Por
exemplo, quando dizem: “Não pode haver um conjunto de leis de defesa do
consumidor, porque os contratos são livremente negociados”. Eu digo: enquanto os
contratos são livremente negociados mesmo, não existe lei que se sobreponha a um
contrato. Mas quando um contrato já não é mais livremente negociado, isto é,
quando o único meio de se obter algo é por meio de um contrato que é estabelecido
de modo completamente unilateral, o contrato é só um fantasma de contrato.
Aluno: [inaudível]
Prof: Exatamente. Então, essa parte prejudicada tem de ser defendida de algum
outro modo. Algo tem de compensar essa unilateralidade – como? Através do
“Direito do Consumidor”. Se os contratos são de fato livremente negociados, o
direito do consumidor é uma injustiça: ele que é criou uma unilateralidade.
24
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Prof: Não, veja bem, enquanto existe paridade entre as partes, os contratos são
livremente negociados. Ou seja, nos primórdios de uma sociedade capitalista, todos
os contratos são livremente negociados. Já numa sociedade industrial, não é assim,
pois eles não são necessariamente livremente negociados, porque a disparidade
econômica entre as partes é muito grande.
Aluno: Muitas vezes você não tem a escolha de contratar ou não, você precisa
daquilo...
Prof: Não, ainda que você tenha a escolha de contratar ou não. Ainda que seja
uma coisa que não é necessária. Porque a sua escolha está em aceitar ou não, mas a
do outro não está apenas nisso.
Aluno: Um “sem-trato”!
Aluno: Um “mal-trato”...
Prof: É um mal-trato! [risos] Para compensar isso, é preciso ter alguma coisa
do outro lado. Um contrato é intrinsecamente inviolável, desde que seja, de fato, um
contrato. Se a gente combina: “Maurício, eu preciso do seu serviço para fazer isto”,
e aí você diz: “Para fazer isso, eu preciso de tais condições, etc.”, e a gente continua
discutindo: “Estabelecemos as condições para eu fazer o que você quer e você fazer
o que eu quero”, isso é inviolável. Mas, veja bem, isso estabelece que eu farei o que
você quer, e você fará o que eu quero, necessariamente.
Prof: Exatamente.
Prof: Claro.
Aluno: [inaudível]
25
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Aluno: [inaudível]
Prof: Isso é assim por quê? Porque as condições foram livremente negociadas.
Não é assim: você me diz: “É só com este contrato aqui. Eu só faço isso se for desse
jeito”. Bom, então isso tem uma validade relativa. Isso é válido enquanto eu aceitar
que é válido. (...)
Aluno: [inaudível]
Prof: Exatamente. Mas o contrato no todo e nas partes tem de ser estabelecido
pelos dois. É igual a contrato de aluguel. Contrato de aluguel não vale nada! E eu
consigo fazer não valer, não importa qual seja a lei, eu consigo. Por que não vale
nada? Porque os elementos do contrato, as cláusulas, não são determinadas
livremente. É assim: a imobiliária lhe dá um contrato pronto. Se você fala: “Mas eu
quero mudar...” – “Não, nós não mudamos!”. Então, [a imobiliária] me impôs uma
coisa. Enquanto eu aceitar, está valendo. A hora que eu não aceitar mais, vamos ver!
Prof: Uma hora você terá de fazer ele voltar. Não há outro jeito. Porque as
coisas não funcionam de modo desequilibrado.
Aluno: [inaudível]
Prof: Há casos em que é o seguinte: não podemos arriscar esse cara fazer isso
de novo: “Dentro de você, meu filho, eu não sei como é, mas eu não posso arriscar
você fazer isso de novo! Se você estupra, mata e come uma criança de cinco anos,
eu não posso deixar você fazer isso de novo! Eu não quero saber, pois se eu cheguei
a uma conclusão razoável de que foi você mesmo quem fez isso, adeus!”
Prof: Exatamente. Esse aí você joga num buraco, tampa o buraco, e pronto:
“Oba, o mundo continua bom!”.
Prof: Exatamente. Agora, é claro que não podemos fazer isso exatamente
assim.
26
Tópicos de Filosofia Política (2008)
Prof: Pergunte aos pais da criança o que fazer com aquele sujeito! (...)
Aluno: (...) Esses casos na nossa sociedade, por exemplo, o Champinha: ele
não é o assassino, ele é a vítima da sociedade!
Aluno: Sabe como ele está hoje? Ele mora numa sozinho numa casa com dois
quartos, e fica o dia inteiro sentado no sofá, vendo televisão. Todo mundo vendo o
Champinha falou: “Meu sonho é estuprar uma guria durante a semana, matar um
guri etc. Porque, depois eu ficarei no que seria um reformatório, e por ser muito
notória a minha situação, eu ficarei num local bem específico, sem fazer nada o dia
inteiro”. Então ele está confortável... Hoje em dia, o bandido, não é que ele tenha
medo de ir para a cadeia. Ele só quer saber para qual ele vai, para saber se vai ficar
com os amigos ou não. Mas o cara vai ter teto, comida o dia inteiro etc. (...) O nosso
“equilíbrio” está muito mais doente do que se diz.
Prof: Aqui a coisa está muito mais grave do que parece. O mal é muito mais
profundo.
Aluno: Aqui só parece que está ruim, mas, na verdade, está muito pior.
Prof: Sim, na verdade, está muito pior... Na verdade, nós já estamos num
estado de uma doença irreversível. Nós já estamos num estado irreversível de
doença política e moral.
Prof: Rezar e lembrar, a nós mesmos e às pessoas em torno, qual é o senso das
coisas. Quer dizer: tudo isso [na sociedade] está errado, mas não faz a menor
diferença. Eu vou viver a minha vida direito – quando só há sacanagem. (...)
27
Tópicos de Filosofia Política (2008)
normas legítimas; que as normas só são legítimas em função dele, e que este é o
sentido medieval escolástico de “lei natural”. O que é “lei natural”? É simples:
existe uma proporção entre o cenário e o agente, e você tem de corresponder à essa
proporção. Na medida em que você corresponde a essa proporção, você favorece a si
mesmo. Se você não corresponde a ela, você prejudica a si mesmo.
28