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Tópicos de Filosofia Política (2008)

Tópicos de Filosofia Política (23/04/2008)


Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho

Transcrição não revisada ou corrigida pelo professor.

[Considerações aos assuntos abordados em aula anteriores]

O primeiro ponto consiste em saber qual é a diferença entre “vida política” e


“vida gregária”. As abelhas, as formigas e os leões possuem vida gregária, mas não
possuem vida política. O que diferencia fundamentalmente a vida política, isto é, a
vida nas associações e sociedades humanas, das diversas associações animais? A
principal diferença, a raiz dessa diferença está em dois fatores. O primeiro é a
linguagem articulada: a capacidade de comunicação humana é incalculavelmente
maior do que a de qualquer animal. Segundo fator: a presença, no ser humano, de
algo que parece não estar presente nos animais, ou, se estiver presente neles, está
apenas de modo muito rudimentar e a dificuldade de comunicação os impede de
desenvolver isto: os sentimentos de justiça e injustiça.

Qualquer ser humano quando agredido ou ofendido tem sentimentos diferentes,


se ele é agredido por algo que ele fez ou por algo que ele não fez. Quando bem
pequeno, o seu pai chega e fala: “Por que você quebrou o vaso, menino? Agora você
ficará de castigo!”, você tem um sentimento se você quebrou o vaso e outro
completamente diferente se você não o quebrou. As duas coisas não agradam, mas a
sensação é diferente. Se você não quebrou o vaso, você sente que houve uma
injustiça, que aquela atitude não lhe é devida, e você pode comunicar esses
sentimentos. É para isso que cunhamos as palavras “justiça” e “injustiça”.

No entanto, a palavra “justiça” significa apenas uma abstração que nunca é


experimentada diretamente. O que você experimenta é o seu sentimento de justiça
ou injustiça. Você sente que foi injustiçado ou justiçado. Quer dizer, você sente o
efeito de um ato de justiça ou de injustiça, mas não capta exatamente a própria
justiça ou injustiça como um objeto. Ela é algo que está presente nos atos, e que
você só sente: “Isto me foi devido. Aquilo não foi”, e assim constrói um conceito de
justiça: “Quando me fazem o que me é devido, isso é justo. Quando me fazem o que
não me é devido, isso é injusto!”. Mas a própria noção de justiça não corresponde a
um objeto real.

Embora a noção de justiça não corresponda a um objeto real e concreto, os


sentimentos de justiça e injustiça são muito fortes e claros nos seres humanos. É
muito difícil alguém nos fazer alguma coisa e não termos a menor ideia de que
aquilo é justo ou injusto. É muito raro isso. Pode acontecer, por exemplo, de algo
que você faz ter um efeito indireto sobre alguma pessoa, um efeito acidental que
você desconhece, e ela chega com você e você não sabe que houve um efeito da sua
ação sobre ela. Mas quando descobre, você fala: “Puxa vida, eu não sabia. Eu não
queria que isso tivesse acontecido isso com você”.

Resumindo, o sentimento de justiça e injustiça é muito nítido para o ser

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humano, ele não é algo vago e confuso. É claro que existem situações-limite em que
é difícil dizer se algo é devido a alguém ou não, mas fora esses casos, existem
inúmeras situações em que as coisas são muito claras. Nós vemos que da parte A
não houve nenhuma provocação, e a parte B foi lá e fez alguma coisa. Havia um
primeiro sujeito, que não estava fazendo nada, e então foi um segundo sujeito lá e
roubou carteira dele. O sentimento de justiça e injustiça aí é muito claro.

Se a noção de justiça é uma abstração construída a partir de uma experiência


subjetiva: “Sinto isto!”, “Sinto aquilo!”, “Sinto que isto não é me devido...”, “Sinto
que me é devido...”, é evidente que os sentimentos não têm a sua origem no próprio
conceito abstrato de justiça. Uma coisa não pode originar a outra e a outra originar a
uma. Os sentimentos de justiça podem originar o conceito de justiça. Mas o próprio
conceito, uma vez que foi originado pelos sentimentos, não pode ele mesmo originar
os primeiros sentimentos, embora possa originar novos sentimentos de justiça ou
injustiça.

Se você tem um sentimento de justiça ou injustiça, e começa a refletir: “O que


é justo? O que é injusto?”, você constrói um conceito de justiça, o qual, é claro, pode
lhe revelar algumas dimensões inusitadas da ideia de justiça que antes você não
antecipava, e, com isso, modificar os seus sentimentos originais e gerar novos
sentimentos de justiça e injustiça. É evidente que um novo conceito de justiça
modulará os nossos sentimentos e criar novos sentimentos de justiça e injustiça. Mas
ele não pode, em princípio, originar os primeiros sentimentos. E é evidente que nós
sentimos sentimentos de justiça e injustiça muito antes de possuirmos os conceitos
de justiça e injustiça. Logo na infância, começamos a notar isto: lá no “prézinho”,
quando víamos um menino tirar o lanche de uma menina, e ela não tinha feito nada,
os sentimentos já são claros, muito antes de termos desenvolvido os conceitos de
justiça e injustiça.

Aluno: Isso não é incutido pelos pais?

Prof: Não, o conceito é determinado em parte pelos pais. Quando o sujeito


começa a se perguntar sobre justiça e injustiça, uma vez que ele constata um novo
sentimento, surge um vácuo mental: “Surgiu esse novo sentimento e eu não sei qual
é o nome disso, não sei classificar isso!”. Aí os pais dele falam: “Meu filho, aquilo é
injusto, é errado, por causa disso, disso e disso...”, e, com isso, eles simplesmente
vão dando a ele meios para desenvolver um conceito de justiça. E nesse sentido, os
conceitos de justiça podem variar um pouco, de um sujeito para outro.

Aluno: Esta percepção do “justo”, este sentimento de justiça teria uma relação
direta com a sindérese?

Prof: É isso que é importante notar: que esses sentimentos são anteriores ao
conceito de justiça ou injustiça. Antes de ter pensado, criado uma noção abstrata de
justiça ou injustiça, você já se sente diferente se é você corrigido por algo que você
não fez ou por algo que você fez – esta diferença é inerente ao estado humano. Esta
diferença é perceptível até mesmo em crianças que são deficientes mentais. Se não
for uma deficiência mental grave, que impede a associação temporal dos
acontecimentos, até mesmo uma criança deficiente mental se sente diferente se ela é
corrigida por algo que ela fez ou por algo que ela não fez.

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Aluno: A assimilação neles, no caso do conhecimento, de erros e acertos...?

Prof: Então, se os sentimentos de justiça e injustiça são anteriores ao conceito,


qual é a experiência que causa esses sentimentos? De onde vem esse sentimento?
Esse sentimento não surge se nada acontecer. É preciso que aconteça alguma coisa, e
daí você sente que aquilo foi justo ou que foi injusto.

Aluno: Qual é a relação disso com a “lei natural”?

Prof: Já vamos chegar exatamente lá. Vamos dar um exemplo em que as


noções de justo e injusto se aplicam com muita facilidade, em que é fácil constatar o
que é justo ou injusto. Suponha que você está nesta sala e há uns brinquedos jogados
aqui no chão, e chega uma criança, e ela pega um dos brinquedos e começa a
brincar. Você olha a criança com o brinquedo e pensa: “O brinquedo é inofensivo,
então ela pode brincar!”. Então aparece uma segunda criança. E ela olha os
brinquedos no chão, e pega aquele que está na mão da primeira criança, o que
evidentemente faz a criança começar a chorar. Veja bem, o sentimento que você tem
quando a primeira criança pega o brinquedo é diferente do sentimento que você tem
quando a segunda pega o brinquedo. Aqueles brinquedos não pertencem
propriamente à primeira e nem à segunda criança – é importante que sejam crianças
neste caso, porque é importante que sejam sujeitos que não tenham ainda
desenvolvido claramente e plenamente a noção de propriedade; embora
evidentemente elas já tenham o senso de propriedade, porque, novamente:
“propriedade” é outro conceito que surge posteriormente a um sentimento.

O que você faz nesta situação? Ora, o sentimento ou a tensão quase que
espontânea no adulto é tomar o brinquedo da segunda criança e dizer: “Pegue outro
brinquedo, porque ele já estava brincando com esse aqui. Deixe ele continuar
brincando com este, e quando ele largar, você o pega!”. Ou você tenta trocar com
ele, tenta mostrar que o outro brinquedo é mais interessante. Ou seja, você corrige a
segunda criança e não corrige a primeira. Isto é uma atitude mais ou menos natural.
No momento em que a segunda criança toma o brinquedo da primeira, se explicita
ou surge na sua mente uma norma, algo que até então não existia como norma, que
é: numa circunstância tal, em que os brinquedos não têm dono, o brinquedo é da
primeira criança que pegar, até ela largá-lo. Está claro que essa norma de
propriedade só surge quando foi infringida? Ela não preexistia ao cenário.

Aluno: Seria uma formalização daquele senso de realidade que se tinha


previamente a essa ruptura...

Prof: Exatamente. Ela simplesmente surge como uma formalização ou uma


explicitação formal da seguinte ideia: é proporcional que, tendo brinquedos jogados
no chão e aparecendo uma criança, ela brinque com os brinquedos. É perfeitamente
natural que se há brinquedos jogados no chão, e surgir uma criança e ela veja os
brinquedos, ela vá pegá-los para brincar. O que você percebia, o pano de fundo da
sua percepção da cena, é que a atitude da primeira criança era diretamente
proporcional à situação. É impossível estar uma criança num lugar em que há
brinquedos espalhados no chão, e ela pensar: “Estes brinquedos não me pertencem,
não sei de quem são...” [e não vai brincar com eles] – isso não acontece. Mas se ela
viu os brinquedos ali, ela vai começar a brincar. Logo, essa atitude dela é

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proporcional à situação.

Note que a ideia aqui é de “proporcionalidade”. A atitude da segunda criança já


não é proporcional à nova situação. Essa situação oferece ao sujeito uma dupla
percepção. Ao observar a primeira criança pegando o brinquedo, o sujeito não só
percebe uma circunstância concreta, como ele está percebendo, na circunstância
concreta, simultaneamente um certo equilíbrio entre o agente e o objeto da sua ação.
O que ele percebe é que existe uma correspondência entre a criança e a situação:
observando aqueles brinquedos ali no chão, a primeira criança corresponde às
possibilidades oferecidas pelos brinquedos no chão.

A palavra “correspondência” é muito precisa aqui, porque “corresponder” vem


de co e espondere – que significava derramar uma libação em homenagem aos
deuses: derramava-se um pouco de vinho ou qualquer outra bebida, e depois bebiam
um pouco. “Corresponder” significava originariamente duas pessoas derramarem
juntas uma libação. Isso significa que a situação, isto é, os brinquedos à disposição,
oferece algo para aquele ente que é a criança, e a criança oferece algo à situação,
aproveitando justamente aquelas possibilidades. A primeira criança corresponde à
situação. Há nessa correspondência um equilíbrio entre as possibilidades oferecidas
pela situação e as possibilidades oferecidas pela natureza da criança: a situação não
fere a criança e a criança não fere a sua própria natureza.

Na segunda situação, quando surge a segunda criança e ela toma o brinquedo


da primeira, ao invés dos brinquedos que estão no chão, ela como que não
corresponde à situação. Está claro que ação dela [segunda criança] não é uma
resposta à situação, mas apenas a efetivação de uma tendência interna? “Eu desejo
este brinquedo. Logo, eu pego! Mas o brinquedo está na mão do outro...” O impulso
desta segunda ação não encontra um correspondente na situação. A situação não está
oferecendo aquele brinquedo para ela. Não há correspondência.

Esta correspondência geral entre uma situação e a natureza de um ente


qualquer é chamada “equilíbrio universal”. O que o ser humano percebe, e na
verdade todos os outros seres percebem, nas situações é que, para cada possibilidade
oferecida por qualquer situação existe um correspondente na natureza do ente para o
qual aquela situação é oferecida. Por exemplo, um leão na savana vê uma manada de
guinús: cada guinú ali corresponde a uma possibilidade. Para cada guinú existe uma
possibilidade correspondente no leão. Então, ele olha cada guinú e pensa: “Este é
mais forte que eu, este corresponde a fugir; aquele é mais fraquinho, aquele
corresponde a comer!”. Na medida em que ele avalia a correspondência entre a
situação e a sua natureza de maneira correta, ele obtém sucesso. Se ele avaliar
errado, e pensa que a presa é fraca, mas na verdade é forte, ou ainda, ele consegue
pegá-la sozinho, mas vem um outro guinú para ajudá-la, então ele fracassa.

Quando um ente avalia corretamente a correspondência entre o cenário e as


suas possibilidades íntimas, e, portanto, age em função da sua natureza, ele se
desenvolve, ele é mais ele mesmo. Quando o leão olha os guinús e percebe: “Este
pode e deve ser caçado!”, e ele vai lá, caça e come, ele continua sendo leão: ele fica
um pouquinho mais forte, ele dura mais alguns dias. Quando ele erra, ele se priva de
algo.

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Para o ser humano, a mesma coisa: a primeira criança, quando chegou lá, fez
uma análise da sua situação: “Brinquedos, oba!”, e foi brincar. Quando a segunda
criança chegou, ela também fez uma análise da situação, mas ela não analisou a
situação completa, pois ela fez abstração da outra criança. Ela só olhou os
brinquedos e não olhou toda a situação. Talvez ela até tenha olhado a criança,
porque as crianças têm um instinto perverso de tomar o brinquedo que está na mão
da outra. É um pensamento humano: “Se o sujeito tem isto, deve ser bom. Senão por
que ele teria?” – “Se o sujeito tem aquele carro, deve ser porque o carro é bom,
senão por que ele teria comprado? Então, deixa eu ir lá pegá-lo!”

Aluno: Isso é desejo mimético...

Prof: É o desejo mimético mesmo. O fato é que ela não captou a situação
plenamente, e ela não correspondeu à situação, mas apenas a um desejo íntimo: “Eu
quero aquele brinquedo!”. E justamente é quando nós vemos a segunda criança
pegar o brinquedo da primeira que percebemos ela romper o equilíbrio que estava
presente no início. É esta percepção da ruptura de um equilíbrio que gera um
sentimento de injustiça no ser humano – é sempre a percepção da ruptura de um
equilíbrio. A noção, o conceito mesmo de justiça surge quando alguém testemunha a
ruptura de um equilíbrio. Esta ruptura faz surgir na mente do sujeito uma norma: “O
brinquedo é da primeira criança que pegá-lo”.

A norma surge como um instrumento de restabelecimento de um equilíbrio


prévio. Não foi a norma que instaurou o equilíbrio. É extremamente importante
perceber isto: o equilíbrio preexistia à norma. Esse equilíbrio que preexiste à norma
é mais ou menos o que os medievais chamavam de “lei natural”.

Aluno: O jusnaturalismo?

Prof: Não, o jusnaturalismo é um passo além desta mesma ideia. Ocorre que,
num sentido estrito, isto que os medievais chamavam de lei natural, por falta de um
termo melhor, não é exatamente uma lei. É uma correspondência apenas. Essa
correspondência não constitui por si uma lei, uma norma. Então, chamar isso de
“lei” é um equívoco – na verdade, eles chamavam de lei por analogia à lei
proclamada, à lei positiva.

Aluno: Daí a ideia de que as normas não podem gerar a justiça, elas podem, no
máximo, minimizar a injustiça.

Prof: Exatamente. Porque a norma só surge em função da injustiça, em função


da ruptura do equilíbrio. É evidente que você não cria uma norma para uma criança
enquanto ela não viola um equilíbrio, ou enquanto você não vê a possibilidade
iminente de ela fazê-lo. Por incrível que pareça, a maior parte dos seres humanos,
com exceção talvez dos burocratas, que já são apenas “meio humanos”, não tem um
instinto de criar normas para os outros e para si mesmos. A maior parte dos seres
humanos jamais pensou em criar uma norma antes de testemunhar um desequilíbrio
de fato, pois nós só criamos a norma a posteriori. (...) “Vamos agora inventar
sentenças para tipos de crimes que ainda foram cometidos. Vamos conceber novos
crimes, e já começar a criar as normas referentes a eles!”. É evidente que esse
exercício não levará a lugar nenhum, exceto, talvez, a dar a ideia para alguém

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cometer aquele novo crime. A única coisa que esse exercício causará é um novo
crime!

Então, os escolásticos perceberam claramente a existência desse equilíbrio


universal que é anterior a qualquer normatização, e na falta de um termo melhor,
cunharam o termo lei natural: “Antes que se proclame qualquer lei, já existem certos
parâmetros para a ação humana e esses parâmetros são análogos a um conjunto de
normas, mas não são exatamente normas”. Eles não são normas, porque eles são
uma tensão interna. Basta observar que, quando você vai fazer uma coisa, muitas
vezes a sua consciência como que te move em contrário a fazer aquilo, mas ela não
diz: “É proibido fazer isto. Você não deve fazer isto!”.

Ou seja, a voz da consciência geralmente não é uma voz, é uma corda ou um


elástico que lhe puxa para trás, é uma tensão sentido contrário a fazer algo, ou talvez
um peso – ela pode ser comparada a uma força física, mas não exatamente a uma
norma jurídica. Tanto que, se você pensar: “Mas por quê [não fazer isto]? Eu não
sei. Acho que é errado. Será que é errado?”. Ou seja, você pode enganar a sua
própria consciência com o seu pensamento. Por quê? Porque a consciência não
argumenta com o indivíduo, porque a consciência não possui normas formalmente
delimitadas. A nossa consciência não diz: “É proibido fazer isto que você quer
fazer” – Proibido por quem? Por que lei? Por qual legislador? Então, mesmo que o
sujeito sinta um dever de consciência, esse dever não é sentido como uma norma,
mas como uma tensão interna, como uma força que o empurra na direção de uma
ação, ou que o segura em relação à uma ação.

Essa força simplesmente como que tende para o equilíbrio universal. Na


medida em que nos afastamos dele, ela nos puxa interiormente na direção contrária.
Tanto que a consciência se manifesta muito mais de modo negativo do que de modo
positivo: ela muito mais nos impele a não fazer determinadas coisas do que a fazer
outras. Geralmente, a consciência que nos impele a fazer outras coisas já é derivada
de normas morais ou jurídicas formalmente conhecidas. É assim: para o católico
existe a norma de que ele tem de ir à missa no domingo. Esta é uma norma formal
para ele, não é uma tensão da consciência. Essa norma formal gera uma tensão da
sua consciência para ele fazer algo. Mas normalmente, na ausência de normas
formais, a consciência só impele o sujeito a não fazer certas coisas.

Aluno: E quando impele, é a fazer algo que põe em risco a sua própria vida,
não é?

Prof: Muitas vezes, geralmente é isso. Mas, normalmente, a consciência pura,


numa forma anterior a toda e qualquer norma, impele o sujeito simplesmente a não
fazer determinadas coisas.

É importante entender que quando os escolásticos falam de lei natural, é


diferente de quando um jurista hoje fala de lei natural. Um jurista hoje entende a lei
natural escolástica como um corpo jurídico, como um corpo de normas que você tem
de apenas explicitar mentalmente. Mas a lei natural, no sentido que era entendida
pelos escolásticos, e no sentido pelo qual eu a entendo, não é exatamente um corpo
de normas, um corpo jurídico, pois o que eles estavam chamando de “lei natural” é
simplesmente o equilíbrio universal, ou seja, a correspondência entre as situações e

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o ente para o qual aquela situação é uma situação. Essa correspondência é


pressentida por todo e qualquer ente dotado de consciência mental. Mesmo que seja
uma ameba: até uma ameba percebe a proporção entre ela e a situação. Para a
ameba, essa proporção não aparece de forma moral, mas aparece.

Para um leão também: o leão decide caçar esta gazela e não caçar aquela, caçar
este búfalo e não aquele, simplesmente porque a correspondência entre ele e a
situação se apresentou para a mente dele. Ele olhou um búfalo e avaliou: “Este é
maior do que eu posso pegar; e aquele dá para pegar!”, ou seja, ele mediu a situação
e ele mesmo – isso é a lei natural. Agora, isso não é uma “lei”, porque não comanda.
O equilíbrio universal se torna lei quando ele se torna lei positiva, lei proclamada
por um legislador. Isto é, quando a segunda criança vem e pega o brinquedo da
primeira criança, aí você cria a norma: “Não pode pegar o brinquedo da primeira
criança” – a partir deste ato legislador é que se corrige aquela ação.

Mais ainda – e isto é importantíssimo –, esta norma é justa na medida em que


ela, de fato, restabelece o equilíbrio original. A justiça de uma norma não é dada
pela própria norma, mas pela relação entre essa norma e o equilíbrio universal que
ela visa restabelecer. E é por isso que as normas positivas das leis humanas mudam
de acordo com o tempo e o espaço: porque a mesma norma não pode o mesmo
equilíbrio sempre, porque as situações mudam. O equilíbrio original, a
correspondência entre as situações e o ser humano, é sempre a mesma – e este é o
fundo permanente que a lei humana tem de visar. Se esse fundo permanente for
esquecido, então nós podemos inventar qualquer lei, e todas elas serão justas, porque
elas são simplesmente a nossa convenção. Mas isto significa esquecer que formamos
leis porque percebemos que certo equilíbrio foi rompido – e é por perceber isso, e
não por qualquer outro motivo. Nós não formamos leis por conveniência, mas por
necessidade.

Se as leis fossem estabelecidas por mera conveniência, elas não poderiam ser
impositivas sobre todos. Tudo o que é conveniente não é obrigatório. Só é
obrigatório aquilo que é de necessidade, aquilo que é assim: “Sem isto não podemos
viver!”. Se você se afasta do equilíbrio original, você morre. Se você se afasta do
equilíbrio original, você deixa de ser um ser humano; e se deixar de ser um ser
humano você morre, porque você não pode se tornar outra coisa.

[Repetição do exemplo da interação entre as crianças] Você percebe que entre


a ação da primeira criança e a situação existia uma correspondência, um equilíbrio.
Entre a ação da segunda criança e a situação, não havia uma mesma correspondência
ou equilíbrio. Este equilíbrio ou correspondência entre o ser o mundo é o princípio, a
causa mesma da continuidade da existência deste ser no seu mundo. Enquanto puder
manter esse equilíbrio, ele pode existir naquele mundo. Se ele romper demais esse
equilíbrio, ele morre – ele perde a sua própria condição naquele mundo.

É um princípio muito conhecido pelos filósofos morais, que se um ser humano


fosse imoral demais e tivesse [mais] tempo, ele morreria simplesmente por causa
disso. Ocorre que o nosso corpo é mais frágil do que a nossa mente, então nosso
corpo é destruído muito antes de atingir um estágio moral que causaria a sua própria
destruição. Se você atingir o estágio que causasse o desequilíbrio total da sua
existência e a sua extinção, demoraria centenas de anos – são centenas de anos de

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maldade. Porém, muito antes disso você morreu, porque o seu corpo não aguentou
até lá. Mas, um sujeito que se afasta demais da moral perde a sua identidade
humana, é muito evidente. Chega um ponto em que é impossível relacionar-se com
ele como você se relaciona com um ser humano, você só pode se relacionar com ele
como você se relaciona com uma fera.

Isso significa que aquele sujeito perdeu mesmo o seu lugar no mundo.
Percebem como estas coisas são naturais antes de serem normas? Quer dizer, você
age normalmente com as pessoas, de repente percebe: “Não importa o que eu faça,
este sujeito vem, me bate e pega as minhas coisas. E se eu tento conversar com ele,
ele faz a mesma coisa de novo! Então com esse sujeito não dá mais para se
relacionar como um indivíduo humano. Com ele não há conversa: ou eu bato
primeiro, ou ele bate primeiro!”. Ele agora se reduziu de fato à condição de fera,
então devemos agir com ele como se ele fosse uma fera – porque ele é uma fera.
Mesmo que ele possa mudar depois, eu posso agir com ele depois, eu tenho de agir
com ele agora, pois a minha interação é agora, não é no futuro. Ainda que eu possa
corrigi-lo depois, eu preciso do meu salário agora. O meu salário, que ele está
tentando roubar agora, eu preciso dele agora! Este é o erro de que quem pensa: “O
sistema penal tem que ser apenas para corrigir...” Não, meu filho, o negócio é o
seguinte: eu preciso do meu dinheiro now! As minhas contas vão vencer amanhã!
Não dá tempo de reeducar o sujeito para que ele me devolva o dinheiro.

Aluno: Recentemente saiu uma matéria comentando essa questão do


simplesmente “corrigir”, fazendo a comparação do quanto se gasta com o sistema
penal e quanto se gasta com educação superior. (...)

Prof: Isso, exatamente, ainda sai barato. (...)

Então, o jusnaturalista interpreta esse equilíbrio original como se ele já fosse


um conjunto de normas formais simplesmente não explicitadas, não proclamadas.
Na verdade, o equilíbrio original não é um conjunto de normas: ele é uma matriz das
normas, mas ele não é um código, não existe um código de lei natural. Se existisse
um código de lei natural e bastasse explicitá-lo, jamais alguém teria criado uma lei:
as maiores mentes humanas teriam se dedicado apenas a explicitar esse código – e o
consenso sobre o mesmo seria tão grande que ele seria indiscutível.

O jusnaturalista, o sujeito que acredita que “temos de simplesmente elaborar e


explicitar a lei natural”, tem sempre uma proposta que é interessante até certo ponto.
Quando chega num certo ponto da proposta, que é “como e onde acharemos esta lei
natural? Para formalizá-la e, a partir daí, nós só precisamos segui-la”, aí ele
responde: “Não sei. Vamos juntar as pessoas, pequenas comunidades...”, pois na
prática, ao invés de pegar a lei natural, dirá: “Existe o direito consuetudinário!”, isto
é, juntam-se um grupo de pessoas numa pequena comunidade, e eles sabem quais
são as leis que têm de regê-los. Mas isto é direito positivo, é lei positiva, não é lei
natural.

O que queremos dizer aqui é: a lei natural não é bem uma lei, é um princípio –
é o princípio essencial da justiça das leis humanas. O que faz com que uma lei seja
justa? O fato de aquela lei de fato restabelecer um equilíbrio. Se, ao restabelecer o
equilíbrio, uma lei gera um desequilíbrio que é menor do que aquele que ela

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restaurou, ela é justa. Sempre é assim. Por exemplo, quando se estabelece: “A


segunda criança não pode tomar o brinquedo da primeira”, essa norma é justa? É,
porque ela restabelece aquele equilíbrio anterior. Enquanto ela restabelecer o
equilíbrio anterior, ela vai valer. Mas pode surgir uma circunstância em que a
situação mudou muito: por exemplo, quando as crianças crescem e então passam a
saber: “Este brinquedo é do Fulano e aquele é do Beltrano”. A situação mudou, elas
já não são mais crianças, são quase adolescentes, e já é muito claro para elas o que é
de quem. Então aquela lei já não é mais justa. Note bem, o equilíbrio continua o
mesmo, a correspondência universal entre o indivíduo e a situação continua a
mesma. Mas a lei mudou. Para se obter o mesmo equilíbrio é preciso uma lei
diferente.

É por isso que os códigos morais dos povos são incrivelmente semelhantes nos
princípios fundamentais e fantasticamente diversos nas aplicações. Em todos os
povos se afirma: “Não pode matar” – e há alguma norma que limita a possibilidade
matar. Isto, em todos os povos – e os que não tinham, morreram todos! (risos) Isso
significa que esta norma como que explicita, como que formaliza um elemento
permanente do equilíbrio. Quando pode matar? Depende, pois há uma autoridade
pública firmemente constituída, com poder policial e de justiça, que funciona etc.
Então, nunca, porque você tem de chamar a polícia. E quando não é bem assim, e a
polícia é mais ou menos etc.? Aí você pode!

Percebam que tudo isso deriva da natureza das coisas. Então, quando se fala no
Brasil: “Em qualquer situação, chame a polícia”, isso é evidentemente injusto.
Porque nós sabemos que a polícia é mal preparada, mal equipada, chega tarde
demais, isso quando não é corrupta. Ou seja, não temos polícia na maior parte das
situações. Logo, a norma que diz: “Deve-se chamar a polícia ao invés de reagir ao
agressor” é simplesmente injusta. Ela não está restabelecendo o equilíbrio original,
na maioria dos casos ela simplesmente colabora com a ruptura do equilíbrio. Então,
saibam: esta é uma lei contra a qual nós temos de lutar. Deve-se incentivar a defesa
pessoal no Brasil. É evidente, porque aqui nós estamos quase no faroeste.

Aluno: Só que desarmados! [risos]

Prof: Desarmados! Só os pistoleiros que vêm de fora estão armados. Os


cidadãos estão totalmente desarmados.

Aluno: Aqui é só no tijolo (...)

Prof: Exatamente, aqui é assim: desarmados e inofensivos.

[INTERVALO]

[Alguém diria:] “Eu acredito que existe direito natural, que existem leis que
são independentes do pensamento humano”. Outro diz: “Não existem essas leis. A
justiça é só uma convenção a partir dos sentimentos. A justiça é meramente
subjetiva e, portanto, convencionada”. Se há discussão, é porque as diversas
posições percebem aspectos diferentes do mesmo objeto. Um objeto pode ser
complexo ao ponto de não ser de captação imediata para o ser humano. O equilíbrio
universal é um objeto deste tipo. A correspondência que existe entre um ente e o
mundo não é algo que se capta com facilidade, porque nem o ente, nem o mundo no

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qual ele existe são conhecidos exaustivamente pelo ser humano.

Isso significa que para o sujeito com pouco preparo metafísico a ideia de
“equilíbrio universal” parecerá uma hipótese ou uma conjetura, que não pode ser
provada. Se você disser: “O equilíbrio universal é a correspondência entre um ente e
o mundo no qual ele existe, e essa correspondência é necessária – e acabou, não tem
discussão”, isso não parece evidente, pois não parece evidente que o mundo e o ente
se correspondem mutuamente. Na verdade, isso subentende um longo treinamento
em metafísica. Mas é esta correspondência que, no caso específico do ser humano, é
a matriz dos sentimentos morais e do direito. Veja bem, o conceito de justiça é um
conceito vazio ou nulo na ausência de um equilíbrio que é percebido pelo ser
humano. Se você disser que não existe equilíbrio universal, então o conceito de
justiça é um conceito vazio.

Se o conceito de justiça é um conceito vazio, devemos de novo nos perguntar:


“A que correspondem os sentimentos de justiça e injustiça?”. Qualquer relativista
cultural dirá: “Os sentimentos de justiça e injustiça são posteriores às noções de
justiça e injustiça” – isto é, são os seus pais que inventaram, ou a sociedade que
inventou etc. Mas isso é mentira! Antes de me ensinarem o que é justiça e injustiça
eu já sentia justiça e injustiça. E podemos observar isso em qualquer criança. São
raríssimas as crianças que não têm esses sentimentos. Claro que pode haver um
sujeito insensível, do mesmo jeito que existem pessoas cegas para cor. Ou seja,
qualquer defeito é possível, mas ele não é a norma.

A verdade é que os sentimentos de justiça e injustiça são anteriores às normas


estabelecidas pela sociedade, o que significa que o princípio da justiça e injustiça é
também anterior às normas e não se identifica com o conjunto de normas. Se o
princípio de justiça e injustiça é anterior às normas, estas se justificam em função
desse princípio e não de qualquer outra coisa. Então, a mera convenção humana não
pode estabelecer o justo ou o injusto. “Vamos agora postular que podemos matar as
pessoas que têm mais de dois metros de altura, porque não gostamos dessas pessoas
altas. Na nossa sociedade, ninguém pode ter mais de dois metros, senão cortaremos
o pescoço deles, para que eles fiquem mais baixos”. O fato de convencionarmos
livremente esta norma não a torna justa. Isso é evidente.

A ideia de que é a livre convenção, a livre negociação dos termos que faz com
que um contrato seja justo é uma mentira. Não é assim. O que faz com que uma
coisa seja justa é o fato de ela, de fato, restabelecer um equilíbrio, e que este
equilíbrio só pode ser captado na medida em que a mente do sujeito é serena em
relação à situação. Quer dizer, por que percebemos tão facilmente que devemos
corrigir a segunda criança? É simples: porque eu estou quase que completamente
fora da situação. Eu sou um juiz que transcende o interesse das duas crianças, eu não
sou uma terceira criança competindo pelos mesmos brinquedos. Se eu fosse uma
terceira criança competindo pelos mesmos brinquedos, seria tremendamente difícil
julgar a situação. É isso que faz com que seja difícil estabelecer o justo para os seres
humanos: porque na maior parte dos casos nós estamos na mesma situação, pois nós
julgamos sobre coisas pelas quais nós também competimos. Então, a justiça só pode
ser conhecida na mesma medida em que o indivíduo pode se manter sereno diante da
situação.

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

Isso significa dizer que os princípios fundamentais da justiça – e essa é outra


conclusão amarga para as pessoas hoje em dia –, para que sejam conhecidos pelo ser
humano, têm de ter origem supra-humana. Eles têm de proceder de sujeitos que
estão fora da condição humana, porque os sujeitos na própria condição humana não
podem estabelecer esses princípios. Quem primeiro estabeleceu, por exemplo, que o
ser humano não deve matar o outro, ou não deve roubar, ou não deve enganar, ou
não deve fraudar? Se observarmos a história de todos os povos, todos dirão que isto
veio do deus solar; ou veio de Moisés, que falou com Deus; ou veio de Tupã, etc.,
todos dirão que os princípios fundamentais tanto da moral quanto do direito têm
uma origem supra-humana.

Essa insistência de todos os povos neste ponto não é uma coincidência. Não é
que para ter a consciência de que não se deve matar, é preciso que um “deus” a
revele. É evidente que você pode sentir isso antes de um “deus” lhe revelar. Mas a
consciência disto como um princípio inflexível, que não tem exceções, que é
absoluto sobre você como indivíduo, essa consciência não pode proceder de um
indivíduo humano. Ou seja, a consciência dos princípios fundamentais como tais
não pode vir da condição humana, porque nós estamos sempre competindo pelas
mesmas coisas, pois para cada motivo que eu possa ter para não matar uma pessoa,
eu também posso encontrar um outro motivo para matá-la. Então, eu posso dizer: “É
preferível não matar” – quase todas as consciências humanas dizem isso. É preciso
que o sujeito tenha uma doença moral para que a consciência dele não diga isso: “É
indiferente matar ou não matar” ou “Em geral, é melhor matar”. Normalmente, a
consciência humana diz que é preferível não matar. Agora, a consciência dizer:
“Matar é o último recurso; só em tais circunstâncias extremas, etc...”, ou seja, que
isso seja um princípio orientador, isso não tem origem humana. A consciência
humana não diz isso.

Quando estamos diante de uma situação, para cada situação existe uma diretriz
para o ser humano, mas essa diretriz está subentendida, ela não está clara para você.
Vamos fazer a seguinte comparação: é como se as diretrizes oferecidas por uma
situação fossem justamente a parte do cenário que você não está vendo. Você está
diante da situação, e as diretrizes ou o equilíbrio – a correspondência entre essa
situação e você – está atrás de você, e você não a vê. Na medida em que a sua
consciência estiver serena e você conseguir observar essa situação como se estivesse
de fora dela, o que acontece? O equilíbrio, que está atrás de você, se reflete na sua
percepção da situação, se reflete na sua consciência. Isso significa que a sua
consciência, a sua mente é um espelho no qual o equilíbrio universal pode aparecer
ou não, dependendo da nossa serenidade em relação à situação.

Então, os limites finais da condição humana, que são indicados pelos princípios
fundamentais da moral e do direito, não podem ter, eles mesmos, origem na própria
consciência individual. Porque a consciência individual capta a moral e o direito por
trás da situação indiretamente, por reflexão e imagem. Para que esse equilíbrio que
está por trás de todas as coisas apareça à nossa mente como princípios, é necessária
uma revelação. É necessário que Moisés fale: “Não pode matar, porque Deus
mandou”, ou que a deusa solar apareça e fale: “Este é o imperador, e o que ele
determina é a palavra de deus”, e assim por diante. Todos os povos na história dirão
que esses princípios têm uma origem supra-humana, nenhum deles atribuiu a si
mesmo a origem dos princípios fundamentais.

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

Aluno: E isso não quer dizer que seja tudo uma questão de legitimidade (...)

Prof: Exatamente, não é [apenas] para que esses princípios fossem legítimos.
Porque, veja bem, esses princípios simplesmente consumam uma tensão que está na
consciência normal. A consciência humana normal média diz: “É preferível não
matar do que matar”. Basta sair na rua e perguntar de pessoa em pessoa, no mundo
inteiro. Quando um sujeito fala: “É preferível matar!”, você verá que ele está numa
situação emergencial, em que está cheio de gente em torno que quer matá-lo.

Aluno: Por exemplo, no nazismo, em que incutiam no povo alemão um medo


em relação aos judeus...

Prof: Aí eles falaram: “Judeu pode matar, porque judeu não é gente!”. (...)
Primeiro se cria uma imagem do judeu como não-humano. Depois é só falar: “Agora
pode matar! Porque judeu não é gente mesmo, judeu é rato, e rato nós podemos
matar!”.

Aluno: Até os próprios discursos eram assim...

Prof: Exatamente. Para conseguir convencer uma população a fazer uma coisa
assim, é preciso distorcer muito a imaginação deles.

Aluno: Diziam que não era para exterminar, era para “libertar”...

Prof: E outra coisa: como já dissemos, você só consegue convencer um sujeito


de uma coisa destas quando ele está há muito tempo numa situação emergencial – e
era como o alemão estava.

Aluno: E os astecas, com os sacríficos que eles tinham de fazer (...)

Prof: É a mesma coisa, também estavam numa situação emergencial. É só


nessas situações que você consegue convencer as pessoas. Temos de entender o
seguinte: o judeu era um povo que já tinha quase cinco mil anos de história, de
cultura e de pensamento. Era um povo que sabia quem ele era na humanidade. O
alemão tinha 100 a 150 anos de cultura e de história. Se olharmos a história duzentos
anos antes, os grandes pensadores alemães estavam escrevendo em francês ou latim,
pois eles não escreviam em alemão.

Aluno: Não tinha literatura...

Prof: Não tinha nada, porque o alemão era um povo de bárbaros, selvagens,
brutos. Alemão só fazia linguiça; não eram gente; eles mal saíram do estado de
macaco – e era assim que o europeu se sentia em relação ao alemão. Agora, imagine
um povo que é assim – bem, não é que eles eram gente má, mas eles não eram gente
culta – e então, convivendo com eles, há pessoas que têm cinco mil anos de história,
e que têm consciência dessa história. O que acontece? Quando a sociedade, a
civilização oferece um problema, o sujeito que acabou de sair da situação tribal para
a situação civilizada não sabe resolver o problema – igual ao brasileiro: tem um
problema no Brasil, e o brasileiro: “O que faremos? Bate em alguém! Bate no
governo, bate nos empresários, bate em alguém! Porque não aguento mais isso!”. O
alemão era assim, ele estava nesta situação. O judeu, quando tinha um problema na

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

sociedade, reagia assim: “Qual é a estrutura jurídica aqui? O quê que está
funcionando? Como é o governo? Como é a sociedade?”, isto é, ele captava as
oportunidades que aquela situação oferecia. O judeu já sabia lidar com a civilização.
Então, o judeu se dava bem e o alemão se dava mal. Era assim: o alemão abria uma
sapataria; e o judeu abria uma sapataria ao lado, e o judeu se dava bem e o alemão se
dava mal, sistematicamente!

Isso era meio estranho para o alemão: “Mas o que está acontecendo? O que
esses caras estão fazendo? Esses caras estão fazendo alguma coisa errada. Não é
possível isso acontecer. Não é possível eles sempre darem certo e a gente sempre dar
errado!”. É como o brasileiro falando do americano. O brasileiro olha os EUA e fala:
“Não é possível eles darem certo, não é possível as coisas melhorarem lá. Eles têm
de estar fazendo alguma coisa errada!”. Mas não era isso – o judeu simplesmente
sabia lidar com a civilização. O judeu sabe: quando você faz um negócio, quanto
tempo leva para dar dinheiro? Quanto se precisa investir? Quando há um problema
com a lei, como se resolve? Quando é que se suborna? Quando é que se cumpre a
lei? Quando é que se faz lobby para mudar a lei? O judeu sabia tudo isso e o alemão
não sabia nada.

Então, na Alemanha, décadas antes do nazismo, sistematicamente o judeu se


dava bem e o alemão se dava mal. Mas o alemão era um povo que prezava a
coragem, a força. E ele via que o judeu não tinha nada disso: os judeus eram todos
fraquinhos, todos mirradinhos, eram do “vamos fazer tudo na paz”. Então, isto gerou
um mau sentimento do alemão contra o judeu, porque o judeu só se dava bem, e o
alemão só se dava mal, porque ele não sabia lidar com a sociedade civilizada, com
as instituições da civilização. É aquele negócio: você não sabe como o outro dá
certo. O outro sempre dá certo e você sempre dá errado; o seu primo dá errado; o seu
tio dá errado; todo mundo da sua família dá errado. E você descobre que os seus
vizinhos, que não são seus parentes, também todo mundo na família deles dá errado.
“Os judeus estão fazendo alguma coisa contra os alemães!” – essa era a sensação
que o povo tinha. Que o judeu tinha algum jeito desonesto de se dar bem, que ele
estava enganando ou fraudando o alemão.

Daí chega um cara e fala o seguinte: “O judeu está nos enganando! Ele está nos
roubando, ele é o mal!”. Pronto, acabou!

Aluno: [inaudível]

Prof: Exatamente. É como o político brasileiro que fala [dos problemas do


país]: “São os EUA, o imperialismo, a globalização!”, e aí convence a todos.

Aluno: Só muda o bode...

Prof: Só mudou o bode, exatamente. O alemão, antes do nazismo, então estava


numa situação de emergência. Qual era a situação de emergência? É simples: agora
é mundo civilizado, meu filho. As coisas funcionam assim; a lei é assim, o governo
é assim, a educação é assim. “Mas eu só quero caçar! Eu só quero sobreviver!” –
isso é uma situação de emergência. Isso é assim e fica assim por duzentos, trezentos,
quinhentos anos. Saibam: o povo alemão ainda não saiu completamente dessa
situação. Vocês pensam que saiu? Ainda não. O que houve foi o seguinte: “O que

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

devemos fazer é trabalhar como burroa? Certo, vamos fazer!” – mas é só isso. A
coisa em si não entrou ainda, pois isso demora centenas de anos para isso entrar [na
cultura de] um povo. É assim: quando houve a conquista romana, vocês acham que
todo mundo ali virou romano de um dia para o outro? Vocês sabiam, por exemplo,
que o direito na França só se tornou mais próximo do direito romano depois da
Revolução? Até a época da Revolução Francesa, nunca se conseguiu impor o direito
romano lá.

Aluno: Napoleão falava que ele trocaria todas as batalhas que ele venceu só
pelo código civil. Foi ele quem criou o código civil francês, acabando com os
códigos locais, pois até então a França não tinha um código único.

Prof: Exatamente. Então, é uma situação assim: “Agora aqui é o império


romano!” – “Tá bom, faz de conta.” Na Alemanha aconteceu isso: “Agora esta é
uma nação moderna!” – “Ah, faz de conta. Faz de conta que agora o que vale é o
debate público, são as instituições...” – isto não se faz de um momento para o outro.
É como quando falam: “No Brasil o que vale é a democracia, a discussão pública” –
“Ah, faz de conta. As pessoas não têm a menor ideia do que está acontecendo. Elas
não têm a menor ideia dos meios de ação reais numa nação moderna!”. Então, não é
isso que está valendo.

Os poucos que sabem o que é isso se dão bem, e todos os outros se dão mal. E
estes pensarão que aqueles poucos estão roubando eles. E, num certo sentido, num
pequeno sentido, eles estão, porque eles têm uma vantagem civilizacional muito
grande. Ou seja, não era totalmente injustificado o antissemitismo alemão. Veja
bem, não é que estamos defendendo o antissemitismo. Mas é que os judeus tinham,
de fato, uma vantagem muito grande sobre o alemão naquele momento. Isso é o
mesmo que pegarmos uma tribo de índios, jogá-los numa grande cidade e falarmos a
eles: “É o seguinte: toda e qualquer reivindicação aqui tem de ser feita por escrito” –
passados dez anos, estarão todos na miséria! Todo mundo vai enganá-los, fraudá-los,
e eles não poderão reclamar, porque só se pode reclamar por escrito. Se sobreviver
algum deles, talvez, na próxima geração, um deles consiga aprender a ler e escrever.
Era mais ou menos essa a vantagem que o judeu tinha naquele momento. Não é uma
coisa simples explicar isso àquele povo inteiro, que pensava: “Esses caras vieram
para a nossa terra, e agora eles estão se dando bem e a gente se dá mal?!”. Então,
não é [um sentimento] totalmente injustificado. Mas também, é claro que não é
assim: “Agora vamos matá-los porque eles se deram bem! Vamos matar todo mundo
por inveja!”.

Isso aconteceu durante toda a Idade Média. Este problema que os alemães
enfrentaram no século XX, durante toda a Idade Média aconteceu na Europa inteira:
os judeus foram expulsos de nação em nação. Simplesmente ocorre que naquele
tempo, em que o pessoal era civilizado, cristão, eles não diziam: “Vamos matar
todos eles!”, mas diziam: “Vamos mandá-los todos embora, porque não dá...!”

Aluno: [inaudível]

Prof: Não! No começo, eles falavam: “Podem ficar, e nós conversamos – para
ver se vocês se convertem, porque queremos o bem de vocês!”. Uma hora eles
perceberam: “Não quero saber se você vai se converter, eu só quero que você vá

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

embora!”. Por quê? Porque eles se davam bem! Estude a Idade Média. Os judeus
foram expulsos de nação em nação na Europa.

Aluno: [inaudível]

Prof: Não, é basicamente enriquecer. Mas o judeu se dá bem porque ele


assimila perfeitamente as instituições e percebe quais são as oportunidades de ação:
ele percebe qual a estrutura jurídica por trás das coisas, de quem as coisas dependem
de fato, enfim, como é que funciona – é assim que ele se dá bem. Porque eles têm
muita história. Eles pensam: “Lembra isto? É análogo a quando estávamos vivendo
em tal lugar”.

Aluno: “Já vimos esse filme”

Prof: “Nós já vimos esse filme antes”, exatamente.

Aluno: Isso é herança cultural?

Prof: Sim, é herança cultural.

Aluno: Poucos povos têm isso.

Prof: Pouquíssimos povos têm isso!

Aluno: Isso vem de uma família para a outra.

Prof: Isso evidentemente favorece que eles se dêem bem num ambiente
civilizado. Num ambiente onde há normas, eles vão se dar bem. A não ser que a
norma seja “Matem os judeus”; esse é o único ambiente em que eles não vão se dar
bem. A raiva dos alemães, portanto, era justificada simplesmente porque os povos
anteriores na Europa podiam fazer o seguinte: “Agora vá embora daqui!”. Mas antes
se podia fazer isso porque não havia nações, no sentido moderno, ou seja, as
fronteiras não eram tão rígidas. Se você mandava um judeu embora do seu país, ele
não precisava apresentar um passaporte para entrar no país vizinho. Bastava você
chutá-lo para fora da fronteira e pronto, ele está em outro país; agora eles são
problema do outro país.

No século XX, os alemães já não podiam fazer isso – “Vá para a França, não te
queremos aqui!”, não era tão simples. Isso não justifica matar milhões de pessoas,
mas explica como se convenceu aquelas pessoas a matar aqueles milhões. Imaginem
o seguinte: se, no Brasil atual, os americanos não fossem os membros de outra
nação, mas um determinado grupo dentro da nossa nação. Suponha que aos EUA
foram destruídos, e 5% de nossa população agora é de norte-americanos. Não
passaria muito tempo para convencer as pessoas a matá-los.

Aluno: Eles nem estão aqui e [os anti-americanos] já querem matar...

Prof: Exatamente! Por quê? “Tem de haver alguma coisa errada com eles, não
é possível!”. Você olha para eles e fala: “Mas você é um ser humano como eu. Não é
possível que eu seja tão inferior a você! Que todos vocês dêem certo e todos nós
demos errado!”. De fato, não é uma inferioridade intrínseca, é uma inferioridade

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

circunstancial, derivada de determinadas circunstâncias e que não desqualifica o


sujeito, mas faz com que a vida dele dê errado. Esta é, portanto, uma queixa
legítima. É como a queixa dos índios nos EUA: “Vocês nós dominaram só para
virarmos um sub-ser da sua civilização!”. Quer dizer, não há como dar ao sujeito a
opção: “Daqui a quinhentos anos, vocês estarão assimilados e terão a plenitude desta
civilização” – não é possível para dar esses quinhentos anos antes. Assim, no
momento, só se tirou alguma coisa, em vista de uma promessa que talvez se cumpra
daqui a quinhentos ou mil anos.

Então, sempre que as pessoas recorrem à ação violenta, é porque elas de algum
modo sentem que o equilíbrio foi rompido. Quando o antissemitismo se difundiu
entre os alemães, foi porque eles sentiam que os judeus tinham rompido o equilíbrio.
Acontece que não foram os judeus que romperam com o equilíbrio, mas o equilíbrio
tinha sido rompido previamente aos judeus e simplesmente a favor deles. Isto é, não
foram os judeus que transformaram a Alemanha numa nação moderna, eles
simplesmente se beneficiaram deste fato – não foram eles que criaram a situação.

Querem ver outra circunstância? A história da condição da mulher na Europa.


Dizem que o cristianismo, em toda a sua história, sempre foi contra a mulher. Mas
se estudarmos a história da Europa, veremos o seguinte: que a mulher só começou a
perder os seus direitos políticos na Europa a partir do momento em que direito
romano começou a se difundir, ou seja, só a partir da Revolução Francesa. Até o
período da Revolução Francesa, na Europa meridional as mulheres de fato não
tinham muitos direitos políticos. Por quê? Porque o direito romano não dava
nenhum direito político à mulher. Porém, mais ao norte da Europa, na medida em
que se entrava na esfera gaulesa, germana, bretã, celta, a situação era completamente
diferente.

Num ambiente político céltico-germânico, a mulher tinha direitos como o


homem. Durante toda a Idade Média, na imensa maior parte da Europa, havia reis e
rainhas, abades e abadessas. Os detentores dos poderes políticos eram homens ou
mulheres indiferentemente. Quando a Revolução Francesa trouxe o direito romano é
que as mulheres na França perderam todos os direitos políticos. Daí, duzentos anos
depois, dizem: “A mulher é perseguida desde sempre!”. Mas não é desde sempre,
faz só duzentos anos – estudem a história. Se observarmos como era em Roma,
certo, a mulher não é perseguida só agora. Em Roma a mulher não tinha nem nome
próprio. Todas as mulheres romanas eram chamadas pelo nome da família: se o
sujeito tem duas filhas e ele é Juliano, da família Julius, então elas serão Julia I e
Julia II. As mulheres viviam recebendo o nome da família, seguido de I, II, III, IV,
V, etc.

Aluno: Era quase coisa...

Prof: A mulher era coisa – mulher e criança eram coisa, propriedade, em


Roma. Mas num ambiente céltico, gaulês, germânico, não era nada assim, era o
contrário. Estudando a história medieval, nós vemos mulheres com poderes
políticos, com autoridade política temporal e espiritual, como os homens. Para vocês
terem uma ideia de como era a liberdade da mulher na Idade Média, durante toda a
Idade Média só fizeram um único mosteiro misto, com homens e mulheres, e o chefe
desse mosteiro era uma mulher. Ou seja, os homens e as mulheres daquele mosteiro

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

faziam um voto de obediência para uma mulher. Tentem fazer isso hoje – não vai
acontecer.

Aluno: Como se deu isso?

Prof: Foi uma congregação beneditina. É fácil falar hoje: “Foi o cristianismo
que perseguiu a mulher...”, jogar nas costas de um outro – de quem você quer se
livrar – a culpa por um desequilíbrio que foi gerado. Assim como os nazistas
falaram: “Povo alemão, vocês estão se dando mal porque o judeu está nos
trapaceando!”, ao invés de falar: “Foi a história moderna, a história dos últimos
séculos que nos trapaceou; foram as mudanças civilizacionais dos últimos duzentos
anos...”. Não dá para bater nas mudanças históricas, mas dá para bater nos judeus.
Ninguém quer bater nos revolucionários que criaram a civilização moderna, mas
todo mundo quer bater nos padres e no Papa – “Então vamos botar a culpa neles!”.

Mas, não pense que você faz isso com a autoridade da história, pois a história
te desautoriza completamente. A história mostra que foi o contrário: na maior parte
do território europeu as mulheres tinham direitos políticos idênticos aos dos homens.
Fora, é claro, na Europa meridional, na esfera de influência imediata do império
romano, do direito romano, porque no direito romano a mulher de fato não tinha
nenhum direito. Mas isso se deu no direito romano, que é anterior à existência do
cristianismo. No ambiente grego, era a mesma coisa: “Mulher, shut up!”, com
exceção de algumas cidades.

Isto é para mostrar o seguinte: existem determinadas circunstâncias históricas


que geram certos desequilíbrios que estão difundidos numa sociedade. Quando esses
desequilíbrios são difundidos, é possível usar a consciência desse desequilíbrio para
causar uma injustiça maior. Fala-se hoje: “Valores são relativos. No nazismo era
certo matar judeus”. Não, não é que era certo matar judeu; era fácil convencer
pessoas a matar judeus, porque havia um determinado desequilíbrio histórico
anterior. “Legítimo” é diferente de “fácil”.

Assim como hoje é fácil acusar o cristianismo de ter prejudicado a mulher


durante toda a história – é fácil fazer isso. Mas não significa que é legítimo, porque a
história não justifica isso. Assim como a história não justificava matar os judeus.
Eles não tinham feito nada de errado. Assim como a Igreja Católica não fez nada de
errado em relação às mulheres, no sentido dos direitos políticos. Porque a Igreja
Católica simplesmente aceitava as instituições políticas locais: em Roma quem
manda é o imperador romano e na Bretanha, mandam os bretões. Veja bem, sempre
que falarem: “O justo e o injusto são relativos. Veja este caso, onde as pessoas
mataram todo mundo; ou este, onde o que você diz que é justo era ilegal”, temos de
fazer assim: vamos pegar aquela circunstância e observar a história dela.

Se observarmos a história da circunstância, veremos que as consciências


daquelas pessoas foram postas em situação de tensão e, em algum momento alguém
falou: “Para nos livrarmos desta tensão, o único jeito é fazer isto” – e muitas vezes,
o sujeito que falou isso falou uma mentira. Na Alemanha foi assim. Quem resolveu a
tensão “alemão inculto x judeu culto”, “alemão que se dá mal x judeu que se dá
bem”? Os nazistas. Eles resolveram de forma justa? Não, resolveram de forma
injusta. Mas se não existisse essa tensão anterior, seria impossível convencer um

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

povo inteiro a eliminar um outro povo. A maior parte das pessoas não é indiferente a
matar – e isso é válido para qualquer povo em qualquer tempo. Você pode, ou a
história pode, em algumas circunstâncias, criar uma situação em que existe um
desequilíbrio, e, portanto, uma situação em que um determinado povo não aguenta
mais um certo desequilíbrio, e não sabe o que está causando aquilo. Neste caso você
pode enganar aquele povo dizendo: “A causa deste desequilíbrio é tal coisa!” – e
assim você move um povo inteiro a uma tremenda injustiça.

Na consciência do povo alemão, eles não tinham sido movidos a uma tremenda
injustiça, e sim a uma restauração da justiça. Ninguém explicou a eles: “Nós
inventamos de criar uma nação moderna, para funcionar de tal forma, e nessa, os
alemães se deram mal e os judeus se deram bem. Mas isso não foi os judeus que
fizeram, fomos nós mesmos”. Isso ninguém ia falar. Vocês acham que os políticos e
os pensadores alemães, a elite acadêmica alemã, os que tinham pensado aquela
nação, falariam ao povo: “A culpa é nossa. Inventamos um jogo no qual o judeu
necessariamente se dá bem e nós necessariamente nos damos mal. Mas não se
preocupem, porque daqui a quinhentos anos isso vai mudar” – acham que eles iam
falar isso para o povo?

Aluno: O judeu viu o brinquedo primeiro...

Prof: E ele sabia brincar com o brinquedo! O outro não sabia. É assim: coloque
dez judeus no Brasil. Ao fazer um negócio, eles dirão: “Como funciona aqui? Como
são as leis?” – “Ah, as leis são muito confusas.” – “Elas são muito confusas? Então
há desonestidade. Então, para quem nós temos de pagar e quanto temos de pagar?”.
Ele não precisa pensar muito para entender que as coisas são assim, isso é natural
para ele. Ele sabe quais são os elementos permanentes de qualquer associação
humana. O judeu sabe: “Se as regras não são claras, elas não existem, elas não
valem nada. Então, na verdade, existe outro sistema de instituições por trás destas,
que está obscuro. Qual é esse sistema?” – “É o fulano e tem que pagar tanto para
ele.” – “Certo, vamos lá pagar a ele...”, ele percebe essas coisas. Ele não tem de lutar
contra as situações.

Veja bem, ele passou milhares de anos sendo minoria em ambiente hostil; eles
foram para o Egito e viraram escravos; foram para a Babilônia e viraram escravos,
etc. Então, eles já aprenderam a operar em ambiente humano hostil. Se jogarem os
judeus na selva, eles todos morrerão, mas se jogarem eles em qualquer sociedade
humana, eles vão se dar bem. Porque eles aprenderam as permanentes da sociedade
humana.

Aluno: Ele sai do chão...

Prof: E vai para o topo. Porque ele sabe como funciona. Agora, vamos pegar
dez alemães e dez judeus, lá nos anos 1930, e jogá-los numa ilha deserta, e vejamos
quem se dá bem. (...) Dali a dois meses, os judeus estão todos mortos! E os alemães
fizeram uma sociedade feudal, uma tribo, e vão se dar perfeitamente bem e serão
felizes. É isso que ia acontecer. Agora, explicar [tudo isso] ao alemão naquela
situação, não era possível, pois o povo alemão já se sentia mal com os judeus.

Quando uma pessoa se sente mal com outra – todo mundo sabe disso –, é

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

assim: você não gosta do fulano, e eu já sei que você não gosta dele, e eu lhe digo:
“Fulano é ruim, por causa disso, disso e disso...”, pronto, conquistei a sua amizade.
Se eu já sei que você não gosta de uma pessoa e eu chego e te dou mais um motivo
para não gostar daquela pessoa, você vai achar que eu estou errado? Não, você vai
achar que eu estou certo! Você não vai pensar: “Não, eu vou verificar essas suas
informações primeiro, para ver se está certo!”. Não vai fazer isso.

Aluno: “Bem vindo ao time!”

Prof: Exatamente. “Está aqui a sua carteirinha!” – foi isso que os nazistas
fizeram: deram uma justificativa ao sentimento do alemão geral em relação ao judeu.
Além disso, como já dissemos, os alemães deram azar. Nos séculos anteriores, havia
sempre o recurso de mandá-los para fora, pois era o que todo mundo já tinha feito,
não só na Europa, mas desde sempre! Essa é a história permanente dos judeus.

Aluno: Antes do Hitler aplicar a “solução final”, havia na Alemanha os


problemas da extradição. Na Europa inteira, existia esse sentimento antissemita.
Para cada problema de extradição, era preciso obter concordância tanto da Franca
como da Inglaterra. (...) Enquanto não começou o projeto de expansão alemão, era
tranquilo fazer a extradição, porque eles eram poucos. Anexaram a Áustria, e assim
aumentou a quantidade, aí tinham que achar outros locais para extraditá-los. (...)
Quando invadiram a Polônia, lascou tudo! Acabaram tendo que matá-los, porque
não tinha outra solução.

Prof: Agora, parece nós estamos justificando a atitude nazista. Não, nós
estamos justificando o sentimento do povo alemão [da época].

Aluno: Eles não souberam lidar...

Prof: É como hoje em dia. Nós podemos justificar o sentimento das mulheres
em relação à perseguição dos direitos políticos. Isso nós justificamos plenamente. A
atitude anticatólica ou anticristã das feministas, eu não justifico de modo algum! Isto
é uma mentira que elas estão usando para manipular as mulheres, com base em
sentimentos justificáveis. O movimento feminista, quando fala contra o cristianismo
ou outras religiões tradicionais, está fazendo a mesma coisa que os nazistas fizeram
com os alemães. Elas estão fazendo com as mulheres exatamente a mesma coisa:
“Você tem um sentimento justificável, por isso vou lhe enganar, para você fazer o
que eu quero e não o que você quer!”.

Aluno: [inaudível]

Prof: É sempre assim. Você só consegue convencer um povo a cometer uma


grande injustiça quando ele, de algum modo, já sofreu alguma grande injustiça,
quando ele já está numa situação de desequilíbrio. O que ocorre é que o
desequilíbrio pode ter causas históricas, quando, por exemplo, os culpados da
situação dos alemães naquele momento já tinham morrido, os culpados tinham
existido muitas gerações antes. Então, não podiam mais bater neles e puni-los,
porque eles já estavam todos mortos. Às vezes, o culpado pode ser uma catástrofe
natural: ela pode gerar um desequilíbrio que em algum momento exige uma
compensação. Uma catástrofe natural, por exemplo, pode fazer com que um povo

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

adquira império sobre o outro.

Se uma catástrofe natural acabar com as fontes de alimentação de um povo, e


restar somente um grupo com fontes de alimentação, este grupo adquire eminência
sobre outros. Se esta situação se prolongar, não é difícil para um político, para um
governante, convencer o povo que foi vítima a saquear a comida do outro povo.
Porém, se não tivesse um desequilíbrio anterior, não era fácil assim. Não é fácil
convencer as pessoas a cometer uma injustiça. Tente! – tente convencer uma pessoa
a roubar um banco, tente convencer uma pessoa a se juntar a você para bater num
terceiro – não é fácil. As pessoas não são assim tão facilmente movidas ao mal.

Aluno: Não é à toa que em todas as ideologias totalitárias, a primeira coisa que
elas fazem é buscar anular a consciência individual.

Prof: Exatamente! E todas elas se baseiam e se erguem ao poder com base em


desequilíbrios anteriores. Às vezes, desequilíbrios causados pelos seus antecessores.
Mas sempre desequilíbrios que são inescapáveis, num determinado momento
histórico. É como hoje em dia: não há como explicar hoje ao brasileiro porque
outros países se dão bem materialmente e o Brasil não. Por que a vida é melhor, por
exemplo, nos EUA do que no Brasil? Apenas dizem: “É porque eles nos roubam...
Acabou!”. Nós só temos de tomar cuidado com isso, porque, como já dissemos, esse
era o sentimento do alemão em relação ao judeu. Esse sentimento não leva senão à
potencial manipulação política; no caso do Brasil, já não é mais potencial. Nós
sempre temos de tomar cuidado, porque é muito fácil os outros nos manipularem
com base em sentimentos justificados. Não é fácil fazê-lo com base em sentimentos
injustificados – aí nós mesmos nos manipulamos. Quando eu só não gosto de
alguém e vem um sujeito e me fala: “Aquele sujeito é ruim!”, sou eu que me
manipulo, não é ele. Mas eu quando sinto que o sujeito me prejudicou, e vem um
terceiro e fala comigo, este consegue me manipular.

Aluno: [inaudível]

Prof: Exatamente. Faz uma diferença crucial se você simplesmente não gosta
de algo ou se você sente que aquele algo te prejudicou, te injustiçou – se você sente
que foi injustiçado, é muito fácil alguém lhe manipular. E pode apostar que a
situação dos astecas tem uma explicação histórica. Houve algum certo desequilíbrio,
e alguém falou: “Isto está acontecendo porque poucas pessoas são sacrificadas ao
Sol!”. Mas alguma coisa tinha de estar acontecendo. Não é assim, que um dia deu na
telha de alguém: “Nós temos de sacrificar milhares de pessoas ao deus Sol!”, e todo
mundo: “Legal, vamos lá!” – isso não aconteceu. Havia algum desequilíbrio
anterior. Talvez uma longa série de catástrofes naturais. E então, algum dia chegou
um imbecil (sujeito carismático, provavelmente) e falou a eles que culpa de tudo era
não sei o quê.

Você só consegue mover um povo à injustiça em situações de desequilíbrio.


Em situações de equilíbrio, não consegue, é impossível. Você não consegue mover
um sujeito contente com a sua vida a cometer um crime. É impossível, pois ele vai
falar: “Isto é loucura, isto é insensatez. A minha vida está tão boa”.

Aluno: Esse caso dos astecas é interessante, e até relacionando à questão da

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

cultura anti-cristã que existe hoje no ocidente: em que se pinta o mundo pré-
colombiano como se fosse uma imagem do Éden, como se aqui todo mundo vivesse
em paz. Mas não apontam a complexidade política que havia. O império asteca era
uma imagem de um “império romano” nas Américas. Todos os povos vizinhos, os
olmecas, os zapotecas, etc., eram subjugados pelo império asteca. O interessante ali,
com a vinda dos espanhóis, é que, primeiro, já havia um ódio desenfreado de todos
os outros povos (...). Antes de ocorrer a dominação, houve uma tentativa de
construir um novo império aqui na América, junção da coroa espanhola com a coroa
asteca. Só que os existiam interesses políticos dos povos dominados, e os interesses
políticos internos do império; (...) Havia toda uma tensão política em toda a
mesoamérica (...). E um “banana” no poder, Montezuma, que foi o “Julio Cesar” dos
astecas: assassinado pelo próprio irmão. Porém, já era tarde. Já convenceram todos
os povos da mesoamérica: “Vamos matar todo mundo. Vamos fazer a justiça
agora!”.

Prof: Com Júlio Cesar houve a mesma coisa. Simplesmente a natureza impôs
um desequilíbrio que deixou vários sujeitos ofendidos. Júlio Cesar era absurdamente
mais capaz do que os sujeitos em torno, para realizar aquilo que eles queriam. E
quando ele começou a fazer aquilo, ele percebeu: “Eu sou absurdamente mais capaz
para isso do que vocês. Eu estou numa condição natural diferente da de vocês. Eu
sou diferente de vocês, e vocês deveriam aceitar isso...” – aí eles ficaram com inveja.
Júlio Cesar foi morto por inveja, porque era mais capaz, porque era de fato superior
aos outros em torno.

Então, é sempre assim: você só move um grupo quando existe já um


desequilíbrio. Ocorre que o desequilíbrio, como já dissemos, pode ser justo, injusto
ou indiferente. Às vezes, o desequilíbrio é simplesmente a disparidade entre as
normas anteriores e uma nova situação real. Note bem, o pensamento
antimonárquico dos romanos se justificava até a existência de um Júlio Cesar.
Quando nasce um Júlio Cesar, o pensamento antimonárquico não faz sentido, pois a
monarquia é o melhor sistema quando existe um sujeito especialmente capaz,
quando existe um sujeito único, a monarquia é a melhor situação.

Aluno: Um cara bom.

Prof: Exatamente, quando existe um sujeito excepcionalmente qualificado,


senão é uma tirania. Mas quando existe um sujeito excepcionalmente qualificado e
ele não é o monarca, existe uma tirania da maioria contra ele, e que é ruim para a
maioria! Então, houve uma injustiça, uma injustiça contra Júlio Cesar.

Aluno: [inaudível]

Prof: A mesma coisa, no caso dos judeus e dos alemães. Houve uma injustiça
contra os alemães, mas não foi cometida pelos judeus, ela foi cometida por outras
pessoas, não-judeus, gerações antes. Os culpados não eram contemporâneos às
vítimas. Então, não dá para bater em ninguém. Outros desequilíbrios podem ser
gerados por causas naturais, e estas não são nem justas, nem injustas, porque as
calamidades naturais não escolhem as vítimas.

É justamente essa proporção entre a ação humana e o cenário que é a matriz da

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

justiça. As normas podem, numa determinada circunstância, facilitar o


restabelecimento de um equilíbrio, mas, se as normas permanecem, elas podem
dificultar, pois normas que num determinado momento facilitavam o
restabelecimento do equilíbrio podem, num momento seguinte, simplesmente
facilitar o aumento do desequilíbrio.

Um exemplo disso é a situação da mulher no direito romano: enquanto Roma


era uma vila, talvez essa norma tenha restabelecido o equilíbrio: talvez as mulheres
naquela vila fossem uma peste, uma praga, e não pudessem ter direito político
nenhum. (...) Para começar, as mulheres eram estrangeiras e tinham sido todas
raptadas. É óbvio então que elas não iam colaborar muito com a estabilidade política
do local. Logo, aquelas mulheres podiam, naquela situação, não ter direito político
algum. Passadas duas gerações, mudou a situação, mas as normas continuaram as
mesmas. Vocês entenderam como funciona justiça e injustiça? Ou seja, é evidente
que no momento em que você sequestra as mulheres do povo estrangeiro, porque
você não tem mulheres, se você quer que a coisa continue, elas não podem mandar
em nada, porque elas foram todas sequestradas, elas estão lá na base da força.
Agora, passadas duas gerações, as suas netas já não estão na mesma situação: as
suas netas não foram sequestradas por você, foram cuidadas por você – mas as
normas continuaram.

Aluno: É uma coisa enraizada, também.

Prof: Uma coisa enraizada, exatamente.

Aluno: Então, a tendência natural do ser humano é ao equilíbrio...

Prof: Sim. Todo mundo tende, percebe numa certa medida esse equilíbrio, e a
ruptura desse equilíbrio, e apetece ou deseja o restabelecimento do mesmo. Por isso,
é difícil convencer as pessoas a fazer o mal.

Aluno: Só se elas acreditam que fazendo esse mal, vão obter um bem.

Prof: Exatamente. Só se elas acreditam: “Não é que estou tirando um bem.


Alguém me fez um mal primeiro!”. Você só consegue convencer as pessoas a fazer
um mal quando elas pensam que estão compensando algo que já foi feito contra elas.
É uma retribuição – que não é tão mal assim, porque é justo.

Um ladrão, se perguntado, diria: “Não é justo que as pessoas tenham tudo isso
e eu não tenha nada!”. O pensamento justificador é que alguém lhe tomou aquilo –
perguntem a ele. Agora, quando o sujeito não pensa mais assim, mas só pensa: “Eu
tomo porque eu quero!”, ele já é um sociopata, um psicopata, não é mais só um
ladrão. Nós temos de cavar um buraco, jogá-lo lá dentro e tapar o buraco! O ladrão,
não: você bate nele, prende ele, tira os direitos políticos dele, etc., mas o sujeito que
já perdeu essa noção, que diz: “Eu faço isso só porque sou mau, só porque eu quero,
e daí?”, esse aí esse aí nós temos de jogar fora, pois não há mais recuperação, não há
diálogo com ele.

Com o ladrão ainda há o que fazer: bata nele, dificulte para ele fazer aquilo, e
uma hora ele para de fazer; se não parar, pelo menos nós nos sentimos bem, porque
as coisas foram mais ou menos reequilibradas. Mas, o sujeito que já não age em

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

função de um equilíbrio, ainda que tortuoso e subjetivo, com esse não há mais
conversa ou diálogo, pois há uma diferença imensa entre o criminoso e o psicopata.
O criminoso tem um discurso de justificação interno.

Aluno: Que aquela ação que ele faz é criminosa só nos meios...

Prof: “É criminosa porque vocês estão falando que é criminosa. Mas eu acho
que não é, porque vocês é que me roubaram primeiro!”.

Aluno: No fundo, todo ladrão é um Robin Hood...

Prof: Exatamente! Ele tem este discurso interno. É evidente que existe
hipocrisia nesse discurso interno. Não é que esse discurso interno não é sincero, ou
que esse discurso interno realmente justifica a ação do sujeito. Não, não justifica a
ação do sujeito, não torna justo roubar, mas torna humano.

Aluno: Justifica para ele, para a consciência dele mesmo.

Prof: Não, ele pode até ter esse discurso para si mesmo com a intenção de se
enganar. Ele pode não acreditar intimamente nesse discurso. Como já dissemos, nós
podemos seduzir a nossa consciência com o nosso próprio discurso, e isso a coisa
mais fácil do mundo. (...) Como também já dissemos, a nossa consciência não
discursa: ela gera tensões. Por isso é fácil nós mesmos, com o nosso discurso,
enganarmos nossa consciência – e o ladrão pode fazer a mesma coisa. Então, pouco
importa se isto justificou, mas tornou humano. Na ação humana, você só prejudica
um outro quando isso é uma compensação por um prejuízo anterior. Isso faz com
que a ação do ladrão, ainda que errada ou injusta, seja humana. Já quando ele pensa:
“Ninguém me fez nada, mas eu faço isso só porque quero lhe prejudicar”, esta ação
já não é mais humana. Esse sujeito saiu da escala humana.

Aluno: Tornou-se uma besta.

Prof: Exatamente, a situação é bestial. É assim: Você não pode puni-lo, você
tem de excluí-lo. A única coisa justa a ser feita é o seguinte: tenho de ser justo para
com os outros, então eu enterro esse sujeito, tapo o buraco e o esqueço. Na Idade
Média, esse sujeito seria jogado numa oubliette, quer era cela da masmorra onde se
esquecia as pessoas. Esse sujeito você tem de jogar ali e esquecer, porque ele não
tem jeito. Há situações em que não tem jeito.

Enquanto a ação ainda é humana, isto é, enquanto a ação encontra de fato uma
tentativa de auto-justificação, você pune o sujeito. Quando ele já saiu do estado
humano, você não pune mais. Um psicopata é assim, ele não tenta justificar o que
ele faz: “Eu não preciso de justificativa”. Então, como já dissemos, para a maior
parte das pessoas, porque elas precisam de uma justificativa interna – porque elas
têm esse desejo ou apetite pelo equilíbrio –, é tremendamente difícil convencê-las a
fazer uma coisa ruim. Primeiro, é preciso passar um tempão tentando convencê-la:
“Aquele sujeito já lhe prejudicou; já lhe roubou; já roubou a sua filha; já estuprou a
sua mãe; já fez tanta coisa contra você, que isto que você fará contra ele é nada!” –
só então você consegue convencer.

O fato de que os povos cometem tremendas injustiças, de que a história tem

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

tremendas injustiças, não significa que justo e injusto são relativos. Uma coisa não
prova a outra, pois nós temos de observar cada cenário histórico. E você notará isto:
para você convencer todos ou uma grande massa de um povo a cometer uma
injustiça, é preciso primeiro que eles estejam sofrendo e que você os convença que
alguém é culpado por daquele sofrimento – é preciso enganar aquelas pessoas para
elas fazerem aquilo. É mentira dizer que a maior parte das pessoas é má, pois, a
maior parte das pessoas são boas. Ou então dizem: “Mas quando elas estão
envolvidas na situação, elas têm dificuldade de julgar”, mas isso é óbvio, é evidente!

Aluno: Quando normalmente a pessoa diz que as pessoas são más, ela se julga
boa.

Prof: Exatamente. “As pessoas – essas pessoas aí.”. Quer dizer, parece que eu,
pelo simples fato de constatar que elas são más, já sou bom!

Aluno: O Hugo Chávez (...) luta contra as injustiças, contra o imperialismo.

Prof: Exatamente, contra as injustiças, contra o imperialismo.

Aluno: Aliás, ele se julga acima do bem e do mal.

Prof: Ele luta contra “isso que está aí”. “Aqueles caras se dão bem.. – como?
Só pode ser roubando!”. Porém, há uma disparidade de meios de ação entre você e o
outro sujeito, e essa disparidade pode até ser causada por uma injustiça, de fato. Por
exemplo, quando dizem: “Não pode haver um conjunto de leis de defesa do
consumidor, porque os contratos são livremente negociados”. Eu digo: enquanto os
contratos são livremente negociados mesmo, não existe lei que se sobreponha a um
contrato. Mas quando um contrato já não é mais livremente negociado, isto é,
quando o único meio de se obter algo é por meio de um contrato que é estabelecido
de modo completamente unilateral, o contrato é só um fantasma de contrato.

Aluno: [inaudível]

Prof: Totalmente. Se só uma das partes determina absolutamente todo o


contrato, ele não é um contrato!

Aluno: Não é um contrato, é uma adesão unilateral onde o sujeito só assina


embaixo...

Prof: Exatamente, não é um contrato, é uma adesão. Aí já não há negociação.


Se não há negociação, não existe um contrato livre.

Aluno: Não é justo para uma das partes.

Prof: Exatamente. Então, essa parte prejudicada tem de ser defendida de algum
outro modo. Algo tem de compensar essa unilateralidade – como? Através do
“Direito do Consumidor”. Se os contratos são de fato livremente negociados, o
direito do consumidor é uma injustiça: ele que é criou uma unilateralidade.

Aluno: Talvez, bem no começo, os contratos pudessem ser [bilaterais] (...)

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Prof: Não, veja bem, enquanto existe paridade entre as partes, os contratos são
livremente negociados. Ou seja, nos primórdios de uma sociedade capitalista, todos
os contratos são livremente negociados. Já numa sociedade industrial, não é assim,
pois eles não são necessariamente livremente negociados, porque a disparidade
econômica entre as partes é muito grande.

Aluno: Muitas vezes você não tem a escolha de contratar ou não, você precisa
daquilo...

Prof: Não, ainda que você tenha a escolha de contratar ou não. Ainda que seja
uma coisa que não é necessária. Porque a sua escolha está em aceitar ou não, mas a
do outro não está apenas nisso.

Aluno: A Brasil Telecom...

Prof: É o caso da Brasil Telecom. O contrato é assim: “Você não pode


negociar este contrato. Este contrato diz que faremos o que nós queremos e você tem
de fazer o que nós queremos. Se você fizer tudo isso, talvez você tenha a sua linha
telefônica” – “Se nós quisermos, você terá a sua linha telefônica!”.

Aluno: Ele se sobrepõe à sua vontade.

Prof: Exatamente. Quer dizer, esse contrato aí não é um contrato.

Aluno: Um “sem-trato”!

Prof: É um “sem-trato”, exatamente. [risos] Não tem trato!

Aluno: Um “mal-trato”...

Prof: É um mal-trato! [risos] Para compensar isso, é preciso ter alguma coisa
do outro lado. Um contrato é intrinsecamente inviolável, desde que seja, de fato, um
contrato. Se a gente combina: “Maurício, eu preciso do seu serviço para fazer isto”,
e aí você diz: “Para fazer isso, eu preciso de tais condições, etc.”, e a gente continua
discutindo: “Estabelecemos as condições para eu fazer o que você quer e você fazer
o que eu quero”, isso é inviolável. Mas, veja bem, isso estabelece que eu farei o que
você quer, e você fará o que eu quero, necessariamente.

Aluno: Tanto Chesterton quanto Peyrefitte colocam também o aspecto da


confiança...

Prof: Exatamente.

Aluno: O que antecede até o próprio contrato.

Prof: Claro.

Aluno: [inaudível]

Prof: É assim: se eu contrato um sujeito para cometer um assassinato e negocio


um pagamento, eu devo pagar. Se o sujeito matou mesmo, eu devo pagar, eu tenho o
dever moral de pagar. É evidente.

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Aluno: [inaudível]

Prof: Isso é assim por quê? Porque as condições foram livremente negociadas.
Não é assim: você me diz: “É só com este contrato aqui. Eu só faço isso se for desse
jeito”. Bom, então isso tem uma validade relativa. Isso é válido enquanto eu aceitar
que é válido. (...)

Aluno: [inaudível]

Prof: Exatamente. Mas o contrato no todo e nas partes tem de ser estabelecido
pelos dois. É igual a contrato de aluguel. Contrato de aluguel não vale nada! E eu
consigo fazer não valer, não importa qual seja a lei, eu consigo. Por que não vale
nada? Porque os elementos do contrato, as cláusulas, não são determinadas
livremente. É assim: a imobiliária lhe dá um contrato pronto. Se você fala: “Mas eu
quero mudar...” – “Não, nós não mudamos!”. Então, [a imobiliária] me impôs uma
coisa. Enquanto eu aceitar, está valendo. A hora que eu não aceitar mais, vamos ver!

Aluno: (...) o Código de Defesa do Consumidor é insuficiente, na verdade...

Prof: Sim. Porque as coisas não funcionam se forem assim. A sociedade


humana não funciona desse jeito.

Aluno: Custa-se sempre um equilíbrio. Você o quebrou...

Prof: Uma hora você terá de fazer ele voltar. Não há outro jeito. Porque as
coisas não funcionam de modo desequilibrado.

Aluno: [inaudível]

Prof: Exatamente. Uma sensação de que diminuiu o desequilíbrio. (...) Há


casos que não tem conserto.

Aluno: (...) com 16 ou 17 anos de idade, não tem conserto mais!

Prof: Há casos em que é o seguinte: não podemos arriscar esse cara fazer isso
de novo: “Dentro de você, meu filho, eu não sei como é, mas eu não posso arriscar
você fazer isso de novo! Se você estupra, mata e come uma criança de cinco anos,
eu não posso deixar você fazer isso de novo! Eu não quero saber, pois se eu cheguei
a uma conclusão razoável de que foi você mesmo quem fez isso, adeus!”

Aluno: Ou seria jogado na masmorra...

Prof: Exatamente. Esse aí você joga num buraco, tampa o buraco, e pronto:
“Oba, o mundo continua bom!”.

Aluno: Menos um...

Prof: Exatamente. Agora, é claro que não podemos fazer isso exatamente
assim.

Aluno: Há todo um sistema hoje.

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

Prof: Exatamente. Você vive numa sociedade grande, onde existem


instituições, existem formas de ação. Mas, em princípio, isso não é injustificável.
Por quê? Simplesmente porque existem coisas que são intoleráveis.

Aluno: Nesses casos, basta perguntar sempre à vítima.

Prof: Pergunte aos pais da criança o que fazer com aquele sujeito! (...)

Aluno: (...) Esses casos na nossa sociedade, por exemplo, o Champinha: ele
não é o assassino, ele é a vítima da sociedade!

Aluno: Sabe como ele está hoje? Ele mora numa sozinho numa casa com dois
quartos, e fica o dia inteiro sentado no sofá, vendo televisão. Todo mundo vendo o
Champinha falou: “Meu sonho é estuprar uma guria durante a semana, matar um
guri etc. Porque, depois eu ficarei no que seria um reformatório, e por ser muito
notória a minha situação, eu ficarei num local bem específico, sem fazer nada o dia
inteiro”. Então ele está confortável... Hoje em dia, o bandido, não é que ele tenha
medo de ir para a cadeia. Ele só quer saber para qual ele vai, para saber se vai ficar
com os amigos ou não. Mas o cara vai ter teto, comida o dia inteiro etc. (...) O nosso
“equilíbrio” está muito mais doente do que se diz.

Prof: Aqui a coisa está muito mais grave do que parece. O mal é muito mais
profundo.

Aluno: Aqui só parece que está ruim, mas, na verdade, está muito pior.

Prof: Sim, na verdade, está muito pior... Na verdade, nós já estamos num
estado de uma doença irreversível. Nós já estamos num estado irreversível de
doença política e moral.

Aluno: Haverá uma quebra disso?

Prof: Aqui será só a calamidade: vai chegar a calamidade, e teremos de esperar


a calamidade passar, etc. É assim: se der sorte, haverá um monte de vulcões, uma
série de catástrofes naturais, e a nação deixará de existir e começaremos tudo de
novo. Se der sorte! Até um tempo atrás, eu ainda pensava: “Se der sorte, nós
seremos dominados por potências estrangeiras benevolentes”. O pessoal fala: “Se os
EUA vierem nos invadir...” e eu pensando: “Puxa vida, seria tão bom! Vamos rezar
por isso!”. Mas agora já é tarde demais, nem isso adianta mais, isso não vai mais
funcionar. Só terremotos, maremotos, tornados, vulcões... A situação está ficando
cada vez mais difícil.

Aluno: O que cabe a nós fazer agora?

Prof: Rezar e lembrar, a nós mesmos e às pessoas em torno, qual é o senso das
coisas. Quer dizer: tudo isso [na sociedade] está errado, mas não faz a menor
diferença. Eu vou viver a minha vida direito – quando só há sacanagem. (...)

Então, o importante é perceber que todo sentimento de justiça e injustiça no ser


humano, de fato, deriva da percepção do equilíbrio e da sua ruptura, e que esse
equilíbrio não é ele mesmo um conjunto de normas, mas é a matriz de todas as

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Tópicos de Filosofia Política (2008)

normas legítimas; que as normas só são legítimas em função dele, e que este é o
sentido medieval escolástico de “lei natural”. O que é “lei natural”? É simples:
existe uma proporção entre o cenário e o agente, e você tem de corresponder à essa
proporção. Na medida em que você corresponde a essa proporção, você favorece a si
mesmo. Se você não corresponde a ela, você prejudica a si mesmo.

Aluno: A sua extinção...

Prof: Exatamente, você favorece a sua extinção, a sua destruição.

Transcrição: Carlos Augusto G. do Nascimento

Revisão: Abner Schmuller

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