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os historiadores enfrenraram,
vomo Jtia de Queirós Matioso. o de
safio de U cr hbrória regional no Brasil,
de forma abrangente, partindo de (otn.es
nrimárias e buscando dàdos quantitati
vos coerentes, capazes de montai series
históricas. Nascida naG récià, baiana por
idoção, Katia Mattoso se dedicou a este
trabalho durante mais de 20 anos, ajuda
da por gerações de alunos. Junto$/ eles
examinaram cerca de 40 m il documen
te;- para esrabelecer séries de preços e sa
lários; leram c resumiram quase 3.500
testamentos e mais de mil inventários;
transcreveram e analisaram mais de 16
inií cartas de alforria. Atas das câmaras
m urd-.pjis, recenseamentos, documen
tos contábeis, crônicas, arquivos dc con
ventos, registros portuários, discursos de
autoridades da época — além, é claro, de
uma exaustiva consulta à bibliografia já
disponível — permitiram a rpóntagem
deste minucioso painel sobrê a Bahia.no
século XXX, pioneiro na hiltorio^rafia
brasileira. i í
O esforço foi duplamente recom-
p>ensado. Vários centros universitários
do Brasil seguiram as perspectivas aber
tas por Katia Mattoso a partir da uti
lização sistemática de inventários post
mortem da Bahia, inclusive de escravos e
forros. No exterior, o trabalho da autora
também foi reconhecido. Apresentado
na França como tese dc Doutorado de
Estado e entusiasticamente aprovado, es
te texto propiciou a criação da cátedra de
História do Brasil na Universidade de
Paris IV - Sorbonne, cabendo a Katia
Mattoso ocupar sua primeira regência
como titular. " '1
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Partindo dos “dadoí Éseiveis da geo
grafia”, a autor^apresenta a capital c sua
região, analisando ivpapel dosVíos e das
vias de comunicação, cenário magnífico
e inóspito, conquistado, ocupado e repo
voado por recém-chegados que, passo a
^ passo, construíram uma sociedade. De-
Q ot tensa* da pesquisa se abrem em
-...íim***. a demografu c a família, as reli-
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K atia M. de Queirós Mattoso
B ah ia , S éculo X IX
Ü ma P r o v ín c ia no I m pério
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EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
© 1992, by Katia M. de Queirós Mattoso
Tradução
Yedda de Macedo Soares
Edição de texto
César Benjamin
ISBN 85-209-0397-0
Em
ü " " « P— ' - *■ H » o ™ , lm m la m Q i
Para m eus n etos brasileiros — M ariana, M arcos Filho, Tomás,
Tiago e P edro — e m eus netos greco -b ra sileiro s — M ichalis e Alexandros —,
p a ra q u e co n h eça m e a m em um a B ahia q u e é deles.
S u m á r io
P re fác io .....................................................................................................................
A p re s e n ta ç ã o .........................................................................................................
In tro d u ç ã o ..............................................................................................................
A história do Brasil que me foi co n tad a...........................................
Como escrever uma história da B a h ia ?..............................................
L iv r o I - O s D o ns e as A r m a d il h a s d a N atureza
C a p ítu lo 1 - A B a h ia ......................................................................................
A cid ad e...........................................................................................................
A p ro vín cia..................................... *..............................................................
C a p ítu lo 2 - S a lv a d o r....................................................................................
M orfologia do sítio .....................................................................................
Solos e águas...........................................................................................
A baía e o p o rto ..........................................................................................
C a p ítu lo 3 - 0 R e c ô n c a v o ........................................................................
Esboço de definição.............................................................................**•■■■
Dados estáveis da geografia........................ -..........................................
Ventos, chuvas c solos.................................................................... *........
U m a metrópole co lo n ial?...................................................................................................................
78
Salvador, metrópole do Novo M u n d o ......................................... *.................*............................
C a p ítu lo 6 — P opulações d a P ro v ín cia d a B a h ia ..................................................................... 82
Panorama geral (1780—1 8 9 0 ).............................*..................................................................... *...... ^
Um século de avaliações imprecisas: 1 7 8 0 -1 8 7 2 .................. *................................................ 82
Os recenseamentos de 1872 e 1890 .............................. 87
Faixas etárias e distribuição por sexo na população b a ia n a ................................................. 94
Matizes raciais e origens da população b a ian a ..............................................*............ 97
L iv r o IV - O E s t a d o : O r g a n iz a ç ã o e E x e r c íc io d o s P o d e r e s 221
L i v r o V - A I g r e j a .................................................................................................................... 293
L iv r o V I — O C o i id i a n o d o s H o m e n s que P r o d u z ia m
e T r o c a v a m ..........................................................
433
C ap ítu lo 24 —Salvador: a cidade no século X IX ....................... ^
A cidade à beira-m ar.................................... . y
A ddade a lta ................................................................... ................................................................
.................................. *...................... 439
S u m a r io xí
N o tas...........................................................
B ibliografia................................................ .
P r e f á c io
1
B a h ia , S é c u lo XIX
1860 n t i a P,o°í
1B(>U nossa ’ foi
Província à 'l° lcn'am' ntc' c scm «Piores choques, a *partir dos anos
r dcsaoremlrn/lr, .
posta, pelo mundo que a cercava " S c g u u d o V r '7 econômicas ,m-
na sua maneira própria dc preservar n es, * ^ rciaçõeS SOC‘aiS’
herdado da escravidão, maquinar ‘° dc d o m in a çã o ,
jugos e das submissões seculares. ' evivencia e de escam oteaçao dos
Tenho certeza dc que o leitor encontrará ne,r-, I, l, , ■ , . . .
e muitos outros temas dc reflexão e de et 1 ■ história social da Bahia esses
a complexidade do presente com o qi^rnos^deF 11116" 110 m tclectu al- p erceberã melhor
o conhecimento apressado de um a histór' 1 ^ rontanios e> a**ida, o quanto é ilusório
‘a qUC se P°ssa au to -in ritu lar definitiva. Ao
P refá cio 5
7
In t r o d u ç ã o
D eixem -m e confessar: este trab alh o resulta de trin ta anos de am or por um a cidade,
Salvador, e por u m a região, a B ahia. U m am or im previsível, decorrente de um itinerário
im previsível; provo can te, nascido de u m encontro provocante entre um povo que veio
de todas as partes e u m a m u lh er grega, com fortes raízes européias e helênicas.
Q ue feiticeiro m alicio so teria feito um a jovem vo lio ta — de Volos, pequeno e
im po rtan te porto o rien tal d a G récia — com p letar n a séria Lausanne seus estudos
secundários, perturbados por nove longos anos de guerra, seguidos de um a guerra
civil igu alm en te cruel? A boa cid ad e su íça oferecia então sólidas escolas universitárias
a um a p eq u en a elite em q u e os estrangeiros — sobretudo, as estrangeiras — eram
pouco num erosos. P ela p rim eira vez exp erim en tei o choque, a adaptação e o enrique
cim ento in terio r, facilitad o s, é verdade, por u m a in fân cia e um a adolescência nas
quais a in flu ên cia francesa fora m arcan te. T ive a sorte de pertencer a um a fam ília
aberta e interessada nos outros. A lém disso, apesar de ter passado longos meses sem
escola por causa das atribulaçÕ es d a gu erra, m estres excelentes, com o Sim one M arxer,
H éíène C h alivop ou lou e C o n stan tin L adoyannis ajudaram -m e a despertar para a vida,
deixando com o h eran ça u m sen tim en to de gratid ão que até hoje anim a e alegra mi
nha vontade de ‘fazer h istó ria’.
Em 1956, com 25 anos de id ad e, aco stum ada às populações homogêneas da
G récia e da Su íça, tive em São Paulo m eu prim eiro contatq com o Brasil. T udo parecia
febril, dinâm ico, em expansão, até m esm o arrogante, nessa cidade de aparência européia,
habitada porém por pessoas de nacion alidades e cores as mais diferentes. M as só no
ano seguinte descobri, em Salvador, o Brasil que pouco a pouco se tornaria meu.
A B ahia me foi im posta por acaso: descobrira-se petróleo na região do Recôncavo,
h interlãndia da capital, e para lá seguiu meu m arido, geólogo, encarregado de fundar
a prim eira escola brasileira especializada no assunto. Salvador tinha então meio milhão
dc habitantes, mas — cm contraste com a São Paulo de 3,5 milhões era uma bela
adorm ecida’, aparentem ente estagnada no tempo. Sua população parecia dez vezes
menor que a real, escondida em pequenos vales que separavam colinas furta-cores,
cercadas pelo m at c por praias acolhedoras. Os baianos rezavam em igrejas e conventos
9
10 B a h ia , S é c u l o XIX
ricam ente adornados com ouro e com deliciosas estátuas barrocas, mas m oravam em
casebres ou mansões deterioradas, testem unhas de um esplendor decadente. Desde
quando a opulenta capital do Brasil colonial se tornara um a cidade em que riqueza e
glória eram coisa do passado?
São Paulo enriquecia com orgulho. Salvador gritava sua decadência. Faltavam , à
cidade, prédios m odernos e im ponentes; os bondes circulavam por ruas e avenidas
estreitas, onde poucos autom óveis se viam ; os ricos e rem ediados haviam em igrado
para bairros m ais arejados. O Brasil de São Paulo era o m esm o da Bahia? H averia
vários Brasis? Até a p red o m in ân cia européia, que pude sentir no prim eiro contato
com o país, dava lu gar agora à m arcante in flu ên cia africana, in fin itam en te variada
pelas m estiçagens. Os rostos de ricos e pobres tinh am traços negróides, para m im
nítidos e im pressionantes, porém pouco perceptíveis — pude constatar — para os
habitantes do lugar.
A vida cotidiana m e fez ‘aprender a B ah ia’. A lugam os um apartam ento num
prédio de três andares de um bairro considerado excelente; m as a lad eira, recém-
construída, virava lam açal a cada pancada de chuva. N a v izin h an ça, casas de taip a com
chão de terra b atid a abrigavam sob folhas de b an an eira u m a população m uito pobre.
Todas as noites, duran te horas, vin h am d a li estranhos ritm os e cantos religiosos, cujo
m istério não se desfazia a cada m anhã.
A daptar-m e significava renascer. Era preciso ap ren der —- com a in telig ên cia e o
coração — os pressupostos de um m undo novo. Isso dem an dava tem po. O português
que eu falava era correto, mas in su ficien te para a relação d iária com a população.
A inda teria que m e acostum ar à fala doce e ao sotaque baianos e, sobretudo, às mil e
um a sutilezas im plícitas nas palavras, de sentido quase sem pre itin eran te, variando
conforme quem fala e a quem se dirige. Os baianos têm sensib ilidade à flor da pele.
Um gesto inábil cria abism os entre as pessoas. T ratar, por exem plo, um branco de nego
— ou de m eu nego — é sinal de afeição; mas, se o interlo cuto r é negro ou m ulato, isso
pode indicar desprezo, ou ser entendido assim .
O vocabulário local contém expressões típicas da opinião dos baianos sobre o
m undo. ‘Se Deus quiser’ indica, ao mesmo tem po, resignação e fé, com conoração
supersticiosa. Em Salvador, essa prudente assertiva acom panha a expressão de qual
quer desejo ou esperança, mesmo banais, como retornar no dia seguinte ao mesmo
lugar, Mas há um a compensação para tal insegurança: o ‘jeito ’, vigente — é verdade —
em todo o Brasil, mas especialm ente na Bahia, terra das coisas feitas com arte e astúcia.
A existência do jeito antecede o próprio problem a específico a ser enfrentado: o tra
balhador dá um jeito dc efetuar um conserto impossível; o m arinheiro faz o mesmo
para enfrentar ventos, barras e escolhos; o jovem, ‘com jeito ’, encontra o emprego ne
cessário. Com a ajuda de Deus e do ‘jeito ’, com plem entares entre si, o senhor de
engenho e o pequeno lavrador esperam, a cada ano, um a colheita melhor.
Tive também que aprender o português erudito dos baianos cultos, que não
usavam o palavreado e a sintaxe popular sim plificados. Falavam quase uma outra
I n t r ü d i ç Ao 11
lín g u a, igu alm en te indispensável para com preender um m undo em que a faia era m ais
im po rtan te do q u e a escrita, em que as tradições eram transm itidas pela fam ília (sem
intervenção da escola) e por lin guagen s, usos e costum es bem codificados. Esses códi
gos variavam segundo os grupos sociais, tornando-se m uito diversificados em um a
sociedade em que não apenas a cor, mas tam bém as tradições religiosas e culturais
eram m iscigenadas. Os grupos haviam levantado barreiras que os tornavam pouco
acolhedores d ian te de ‘estran geiro s’ , in clu in d o -se nestes os brasileiros oriundos de
ourros estados. P ernam bucanos, sergipanos, paulistas, cariocas ou m ineiros, todos
eram im ed iatam en te reconhecidos c colocados em seu lu gar: fora!
M eu m arido e eu tín h am o s poderosos trunfos: form ávam os um casal de raça
branca, com sobrenom e con hecido c in stru ção u n iv ersitária. A ssim , integrávam os, de
saída, o grupo d o m in an te, a elite in telectu al. H avia um a an tig a tradição universitária
e era grande o p restígio social dos senhores de engenho, que em outras épocas tinham
feito da p ro vín cia b aian a um sím bolo da riqueza açu careira. U m Q ueirós M attoso
podia ser ‘estran g eiro ’ , m as, p ara certa casta, era um estrangeiro fraterno, descendente
de um a nobre fam ília de senhores de engenh o do Rio de Jan eiro , detentora de títulos
outorgados no século XIX em reco n h ecim en to aos serviços prestados ao im perador.
Além disso, os b aian os letrados n u triam um culto sincero à Europa e ao acervo da
civilização grega. A ssim , por causa d a nossa origem ou pelo trad icio n al nom e da nossa
fam ília, portas se ab riram .
Fom os reconhecidos social e p ro fissio n alm en te. M ais do que isso: fomos rapida
m ente acolhidos, protegido s, am ados, pela figu ra q ue v iria a ser — é até hoje —
m inha o rien tad o ra em m atéria de m en talid ad es baianas: A dalgisa M oniz de Aragão,
filha e neta de senhores de engenh o, descendente de um a fam ília que se instalara na
Bahia nos idos do século X V I. Ela nos ensino u as regras de conduta que regem as
relações entre os diversos grupos sociais de Salvador. O rgulhosa herdeira de riquezas
perdidas (até d ilap id ad as), don a-de-casa de coração aberto, com pletam ente baiana,
A dalgisa m c fez com preender as hierarq uias sociais da região, im pregnadas dc desi
gualdades, que tornavam q u alq u er branco um hom em rico e qualqu er prero, ou qua
se preto, um pobre. A brancura era m ais im po rtan te (e m ais durável) que a riqueza,
que podia desaparecer. Era o verdadeiro sinal de herança nobre, testem unho de um
passado a ser preservado.
M inh a am iga me fez ver que decadência algum a d im in u ía o prestígio dos senhores
de engenho. A lem brança dc grandezas passadas era hclm cntc conservada por meio de
um a tradição oral que rem em orava — naturalm ente, cmbelczando-os com estórias
novas — os faustos de outrora, tornados assim quase palpáveis. Essa antiga elite
formava um grupo fechado, cujos membros com partilhavam um orgulho, um a sober
ba, que podia tornar-se arrogância. Os ‘novos ricos’, brasileiros ou estrangeiros, eram
considerados com um desdém que mal dissim ulava cerro ciúme. Por outro lado, as
alianças m atrim oniais com fam ílias tradicionais — mesmo empobrecidas, às vezes
m uito — perm aneciam um sonho para qualquer ‘enriquecido’. A uns, tais alianças
. . ,, . a nutros in gressar nesse m eio fechado,
perm itiam dourar novam ente seus brasões , a >
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suprem o sinal de êxito. . , ,
Fonte de poder e de relativo segurança, o serviço público era com tderado por essas
fam ílias tradicio n ais com o a ú n ica ativ id ad e co m p atív el com sua co n d ição e seu desejo
de m ando. D epois dc estudar en g en h aria, d ireito ou m e d ic in a , a b n a -se n atu ralm en te,
aos filhos dessa elite, um a carreira q u alq u er de fu n cio n ário . O s ‘co n cu rso s’ selecio na
vam regularm ente os in tegran tes de fam ílias co n h ecid as. F eita a n o m eação , o jogo se
perpetuava: o descendente de antigo s p ro p rietário s (de terras, a çú car ou gado) ou de
grandes negociantes co n tin u av a favorecendo seus pares nas pro m o çõ es.
Isso não im p ed ia, no en tan to , que se p erp etuasse a v elh a p ra tic a de p restar favores
a am igos m ais m odestos, form ando assim u m a c lie n te la fie l, c u ja ex istên cia era um
im prescindível sin al da posição social do fu n cio n ário . A fin a l, fo rtu n as d im in u íam e
até desapareciam , m as o p restígio das fam ílias precisava ser ren o vad o , reavivado e
fortalecido por m eio desse sem -n ú m ero de afilh ad o s. A lém de ser u m a h o n ra e uma
fonte de rem uneração segu ra, servir ao E stado trazia p restíg io , g a ra n tia o desem penho
do papel de protetor e renovava a in flu ên cia, real ou su p o sta, d e q u em geria um a
parcela do poder.
A pesar do em po brecim en to e até m esm o d e falên cias estro n do sas, essas fam ílias
geralm ente conservavam vestígios d a riq ueza d e a n tan h o : p ra ta ria esp lên d id a, jóias
raras, bibelôs antigo s, tapetes im p o rtad o s, oratório s com estatu etas po licrom ad as e
m óveis im p o n en tes, fabricados com m ad eiras p recio sas. O s em p reg ad o s tinh am
obrigações específicas: h avia a babá, a go vern an ta, a co z in h eira, a c riad a de quarto,
a lavadeira, a passadeira e assim por d ian te, sem pre em n ú m ero in v ersam en te pro
porcional às rendas ou à q u an tid ad e de pessoas a serem aten d id as. N ão eram rem u
nerados, pois servir a essas fam ílias era u m a h o n ra. A lém disso, q u an d o crianças,
haviam brincado com a don a-de-casa, ou eram afilh ado s de sua filh a, ou descen
diam de antigos escravos, de am igos ou de parentes pobres, aco lh id o s no passado e
m antidos pela fam ília. Sua dedicação garan tia-lh es casa, co m id a e roupas e renovava
esperanças de ascensão social. G lórias e ho nrarias, recom endações e perm utas, no
vos apadrinham entos, proxim idade com o p riv ilégio — tudo isso v alia m ais que
dinheiro.
Estabelecidos na cidade, os antigos proprietários viviam num vaivém que lhes
perm itia cultivar relações com os que habitavam suas terras. F orm alidades ad m in istra
tivas, consultas m édicas ou sim ples vontade de rever parentes e am igos traziam a
Salvador para temporadas mais ou menos longas, grande núm ero de fam iliares, em
busca talvez da velha tutela exercida pelos senhores de engenho. Essa necessidade de
segurança era ainda mais profunda nos agregados que com partilhavam a in tim id ad e da
fam ília. Q uando meus amigos reconheciam num criado qualidades de gente d ireita’,
subentendia-se que d c passara a scr um a pessoa sem defeitos, liberada da tara social de
não ser m nguém , separada finalm ente da massa anônim a que vivia à mercê de uma
vida sem rumo c sem referências.
In t r o d u ç ã o
13
se tom a e se dá, num a situação de certa igualdade. A restrição: m esm o rom pendo o
acordo (pela não-realização de um desejo do servidor, por exem plo) o patrao nao
podia ser considerado ‘in grato ’ , pois essa categoria só cab ia a quem rejeitava um
passado em que recebera proteção. Só o servidor podia com eter um ato de m grattdao,
aliás imperdoável, pois todo o que se h avia tornado na vida, cudo o que obtivera,
decorria do apoio recebido, e não de suas q ualid ad es pessoais.
Nesse jogo, favores, recom endações ou benefícios eram cu id ad o sam en te d iv u lg a
dos e evocados. Todos se situavam em função das suas relações. N in g u ém podia
ignorar ou desprezar constrangim entos sociais enraizados, p reten d en d o coiocar-se in
dividualm en te em evidência. Seria hipocrisia? Até hoje, não sei, A so ciedade baiana,
alegre e expansiva, de aparência aberta e am ável, parecia d esco n fiar p ro fu n d am en te de
tudo o que pudesse v ir a alterar esses sutis in tercâm b io s. A u to ritá ria m as flexível, ela
se esm erava em apertar as tram as vertical e h o rizo n tal de u m tecid o social no qual a
riqueza, em bora im p o rtan te, não desem penhava o papel p rin cip a l.
Eu não era nem atora, nem autora, desse verdadeiro esp etácu lo . As relações sociais
m e in trigaram , mas logo aprendi a conhecer o d u p lo co m p o rtam en to , característico
do m eio onde estava. Pude assim ocupar um lu g ar no seio de u m a fa m ília trad icio n al,
fazendo-m e com preender pelos outros m em bros desse grup o e por todos os baianos.
N as inúm eras reuniões sociais, entre as m ulheres p rev aleciam conversas cheias de
lugares-com uns sobre os m aridos, as crianças c os criado s, assun tos ob rigatório s em
aniversários, casam entos e até enterros. As cerim ôn ias religio sas eram transform adas
em reuniões m undanas. O prim eiro aniversário de um filho, as bodas de prata de um
casal, tudo era m otivo para docinhos e presentes. D a m esm a form a, o lan çam en to de
um livro, mesmo m odesto, era pretexto para discursos e enco ntro s.
Conheci na B ahia alguns europeus e um gran de grupo de n o rte-am erican o s com
quem passei a d iscu tir o que se podia e o que não se podia fazer, com p arando expe
riências, corrigindo com portam entos e desenvolvendo pontos de referência indispen
sáveis a um a adaptação bem -sucedida. No entanto , o contato com os m ais hum ildes
foi a dura escola que me ensinou o sa voir-fa ire indispensável para viver na Bahia, onde
a pechincha reina sobre todos os preços. U m sotaque estrangeiro, por m enor que
seja, deixa qualquer um cm desvantagem diante de vendedores dc bens ou prestadores
dc serviços. Q uantas vc/,cs inventei, para m otoristas de táxis, um a suposta origem
gaúcha, na esperança dç que os ‘estrangeiros1 do Brasil fossem m enos roubados do
que os da Europa!
Os contatos com artesãos, pequenos funcionários, camclfls e comerciantes modes
tos que formam as camada» intermediária* da sociedade — tamhdin sã.) refridos por
um cerimonial especifico, fi eomplera lalla de dirigi,-se » cies .im p lem en te pelo
nome sem u.d.aar senhor ou 'senhora-. Analogamente, o» q„e p„ss„em , ftulos uni
versitários devem
. scr
. tratados dc .'doutor’. São uLinonstrações
d e m o n s tr a v a do respeiro
, ■ •indispensá
j- ^
,
vel para quec o .interlocutor, nao cata
. - no anonim ato de U
um sim o l^ prenom e, insuficien
JT1 snnpics ■ c ■
te para conferir o prestígio social esperado.
In t r o d u ç ã o n
Todos os indivíduos idosos ou socialm ente superiores devem ser tratados na ter
ceira pessoa. Nas conversas com os m ais hum ildes, depois de transcorrido o devido
tempo de conhecim ento m útuo, é preciso saber qual o m om ento mais adequado para
que o tratam ento cerim onioso ceda a vez ao ‘você’ , que perm anecerá unilateral. Só os
criados são cham ados pelo prenom e. t conveniente tam bém tratá-los dc você’ e não
utilizar as expressões ‘por favor’ ou ob rigado’, talvez para que não se de impressão de
fraqueza. Nos com andos, é preciso em pregar um tom seco ao qual nunca me adaptei.
T am bém nas refeições não fui capaz de seguir a tradição, que m anda dar aos
empregados apenas feijão, carne-de-so l, arroz e farinh a de m andioca. Ao oferecer-lhes
pratos com plem entares, sab ia que não abririam mão desses ingredientes, considerados
indispensáveis. A lém disso, aceitei o desafio de arcar com enorm e desperdício, pois os
hábitos alim entares na cozinh a faziam com que m u ita com ida fosse lançada no lixo.
Para m inhas am igas, era um absurdo que o café da m anhã das em pregadas incluísse
m anteiga, q ueijo, frutas ou geléias, e era sim plesm ente espantoso que elas controlas
sem a ad m inistração da despensa e das reservas da casa, situação que favorecia a
ocorrência de roubos, Era esta, no entanto, m in h a m aneira — européia, com certeza
— de evitar que as em pregadas fossem obrigadas a pedir ajuda para suas famílias
num erosas. Logo ap ren d i que essa atitu d e exigia um com plem ento: a demonstração de
que eu sabia por que os sacos de açúcar e de arroz se esvaziavam com rapidez. A relação
com as em pregadas me m ostrou a im po rtân cia do papel desem penhado pelas famílias
junto às classes populares na B ahia. N ão obstante existirem algum as nuances, repro
duziam -se os esquem as observados ju n to aos descendentes dos senhores de engenho.
Nos m eios populares as uniões consensuais tinham duração m uito variável; algu
mas podiam valer para a v id a in teira, mas a m aioria não passava de alguns meses ou,
no m áxim o, poucos anos. As m ulheres tem iam ter dois ou três filhos, pois eram elas
que assum iam todas as responsabilidades quando os homens se retiravam . Era fre
qüente a existência de vários irm ãos apenas por parte de mãe, que reconheciam o
esforço desta e não dem onstravam nenhum a rivalidade entre si. No máximo, notava-
se um a ponta de decepção com a eventual m á sorte de ter irmãos mais escuros. Isso
não quer dizer que a organização fam iliar fosse do tipo m atriarcal, pois essas caracte
rísticas decorriam da pura e sim ples fuga dos homens, que mesmo assim permaneciam
como um a reíerência im portante. Seu papel reprodutor causava admiração e sorrisos.
M as os laços afetivos com a fam ília m aterna eram mais fortes, até porque as avós
paternas se recusavam a educar crianças cujas avós maternas fossem conhecidas. As
mães, chamadas pelo nome, cabia trabalhar fora para trazer a comida, e às avós mater
nas, chamadas ‘m am ãe’, cabia cuidar das crianças,
Embora vivessem no lim ite da indigência, eram famílias abertas, que acolhiam
sem hesitar os sobrinhos e as pessoas idosas, desempregadas ou órfãs. Esse espimo
solidário constituía a base de uma ética peculiar, que se estendia para mais além.
Padrinhos escolhidos fora do círculo familiar ajudavam a manter e educar as crianças,
assumindo obrigações mais materiais que espirituais. Tornavam-se responsáveis não
16 B a h ia , S é c u l o XIX
apenas pelo afilhado, mas por toda a fam ília deste, repassando aos próprios o ts
obrigações que assum iam . _
A sexualidade era encarada como um a necessidade n atu ral, e o Pe^a ° era n °Çao
difusa e longínqua. Apesar de freqüente, o aborto era censurado com ênfase, já que a
criança representava um a dádiva do C éu: o hom em fazia o m al e, fatalm en te, vín ha
um filho que Deus aju d aria a criar. O con cub inato era outra fatalid ad e, situ ad a acim a
de qualqu er crítica: os pobres — pensava-se — não tin h am condições de casar legal
m ente e subir na escala social. Entre as pessoas m ais h u m ild es, a união com alguem de
pele m ais clara era m ais bem -vista, por causa d a exp ectativa de b ran q u eam en to da
descendência.
Em com pensação, em grupos que já p erten ciam a um nível social m ais elevado —
como artesãos, pequenos funcio nários ou feirantes — a u n ião consensual dc u m a filha,
mesmo quando tolerada, era tida com o regressão, a m enos q ue o parceiro pertencesse
a um a categoria m uito superior e pudesse vir a ser um p ro teto r d a fam ília. N esse caso,
se o casam ento fosse im possível, na m aior p arte das vezes o filho n a tu ra l te ria educação
garantida, podendo até ser m im ado .
M ulheres vítim as e responsáveis, hom ens v iris e irresponsáveis, carid ad e e co n fian
ça na P rovidência revelavam tam bém com p ortam ento s religiosos q ue m e deixavam
perplexa. N a B ahía, o catolicism o estava presente em toda parte: nas fam ílias reunidas
para orações, nos freqüentes sin ais-da-cru z, em esperançosos pedido s dc bênçãos, em
novenas e trezenas, em festas, missas e procissões. M as, nas igrejas, h avia p o uca reza e
m uita conversa; as coletas de d in h eiro quase n ad a o b tin h am ; e os hom ens ficavam
todos do lado de fora, no adro. As celebrações do N atal, d a Páscoa, de N ossa Senhora
d a C onceição, do Senhor do B onfim , do D ivin o, de San to A n tô n io e de São João
congregavam — é verdade — m u ita gente, m as eram as únicas com essa característica,
e as pessoas com pareciam m ais por curiosidade que por fé.
A Igreja C ató lica exercera o m onopólio da catequese po r séculos a fio. Q ue dizia
diante de tanta fé dispersa e tão pouco fervor? T eria ela sabido realm en te cristianizar
o povo? Ela se m ostrava in fin itam en te tolerante d ian te de certos com portam entos,
como as uniões livres, atribuídas, não sem razão, à extrem a pobreza e à falta de
instrução. A própria Igreja só instruía, nos colégios e m esm o nas fam ílias, aqueles que
podiam pagar. Eram escassas as bolsas de estudo e quase inexistente a instrução reli
giosa das crianças m atriculadas.
Apesar de freqüentados por pessoas batizadas, os cultos anim istas pareciam ser
ignorados pela Igreja C atólica, que aparentem ente falhara na sua pregação aos pobres,
junto aos quais as correntes protestantes davam a im pressão de ter obtido sucesso.
M as, sc isso era verdade, sc a Igreja não cum prira sua missão espiritual e não fora capaz
de dissem inar sua doutrina moral, como se podia explicar seu indiscutível prestígio e
seu am bíguo papel na coesão das famílias e da sociedade? Seriam eles decorrentes de
um consenso sempre renovado ou, como no caso dos senhores de engenho, de um
hábil culto ao passado? ’
In t r o d u ç ã o í?
conservasse o porte altivo. O s num erosos bairros residen ciais h ab itad o s por p o p u la
ção abastada — V itó ria, C an ela, G raça ou B atta — não p o d iam co m p arar-se as
m agníficas casas da A venida P aulista ou do Ja rd im E uropa, q ue eu esco rira c
São" Paulo. A qui, quase nada era novo ou realm en te m oderno. P or q ue a fo rtun a
aban don ara essa cid ad e tão orgulhosa?
evidenciava o papel econôm ico e político de certas províncias, como Bahia, Pernam
buco, M inas Gerais, Rio dc Jan eiro , São Paulo e Rio G rande do Sul, cujos represen
tantes — e só clcs —- ocuparam a direção dos negócios de Estado. D urante os períodos
colonial e im perial, as outras províncias só ganhavam expressão própria quando
sediavam acontecim entos m uito precisos (a conquista da A m azônia pelas expedições
paulistas no princípio do século XVII, o estatuto particular das capitanias do Maranhão
e do Grão-Pará nos séculos XVII e XVIII, o papel desem penhado por Goiás na
descoberta e exploração do ouro no século XVIII, os movimentos insurrecionais como,
por exemplo, a C abanada no G rão-Pará e a B alaiada no M aranhão). De resto, tudo
se passava como se a história fosse, nesses locais esquecidos, apenas um pálido reflexo
do que acontecia nas províncias m ais im portantes. É o caso, por exemplo, da Revolu
ção de Pernam buco, que, em 1824, exerceu influência na Paraíba, Rio Grande do
Norte, C eará c Alagoas. Estas províncias só reaparecem quando perturbam a ordem
pública e am eaçam a u n id ad e n acion al, centrada no Rio de Janeiro. São voluntaria
m ente apagadas as especificidades regionais, que, de fato, propiciaram a real unidade
nacional, construída na diversidade.
Cronologias, listas de acontecim entos, nom es de personagens importantes —- eis
m inha prim eira colheita, num in ício de aprendizado que se esforçava por ultrapassar,
tão rápido quanto possível, a condição am adora. Novas perspectivas se abriram quan
do descobri a F orm ação do B rasil con tem p orâ n eo, do pau lista Caio Prado Júnior, publi
cada em 1942. U m m isto de satisfação e curiosidade nasceu da leitura do austero
prefácio da obra. Não havía ali um a proposta de explicação do presente pelo passado?
Este últim o fincava raízes no século XVIII. M esm o afirm ando que a Independência
tinha sido um m om ento decisivo na evolução social, política e econômica do Brasil,
Caio Prado considerava que a prim eira fase do século XIX só tinha sido importante na
medida em que representara um balanço final da obra realizada por três séculos de
colonização, esta sim apresentada como um a “chave preciosa e insubstituível para se
acompanhar e interpretar o processo histórico posterior e a resultante dele que é o
Brasíl de hoje”. 1 Ao subestim ar deliberadam ente as contribuições da M onarquia
(1822—1889), que criara as bases da unidade e do Estado nacionais, o autor contraria
va a orientação da m aioria dos historiadores brasileiros da prim eira metade do nosso
século. A época colonial aparecia como o ponto de partida de um processo histórico
cheio de vaivéns. Assim, o Brasil contem porâneo resuhava do “passado colonial, que
se balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam
no correr do ccnrênio posterior a esse e no atu al”.2
Uma contradição nic intrigou: para ele, as profundas transformações iniciadas
com a Independência não estavam terminadas, mas continuavam até nossos dias.
Afirmava reiteradamente que estávamos diante de um processo inacabado, marcado
por uma dependência econômica dc tipo colonial em relação ao exterior. Era um
desafio, lançado no âmbito da teoria marxista. Que novidades traria para a com
preensão do Brasil?
* o tornara-se m oda. C ô m o d a m oda: permitia
Lendo teses, descobri que o m ar*^™°as £ at{i d e n tis ta s p o lítico s escapassem de
que historiadores, sociologos, ccon°^? ^ sim ples rein terp retação de dados btbliográ-
aborrecidas pesquisas em arquivos, pois ^ o rig in a l, com características de
ficos já conhecidos perm itia criar urna • accjtação m ais ou m enos garantida
seriedade, solide,, modem,dade e obrettrfo de fa[c>, quase Serapre,
* «■ *
escravocrata se tornava o insrri.m ' r P,°S'ÇJ° illo só flca teó rica, a estruturi
leira. Aparecia então uma espécie dcTa ^ dc cxPÜeação da sociedade brasi-
sociedade que lamenta J ^ " T " ^
longa, porém necessária, citação- "A e o m r lT ' C mU' ata mi c *lc Bat*a - Desculpem a
formação brasileira é, além daquela e n e r ^ '' UIÇa? d° cscravtl prero ou índio para a
concorrer, e muito, para a no.ssa ‘eulrur^’ 3 cluasc nula. N ão que deixasse de
emprega a expressão; mas é antes uma contr l^ am plo em que a antropologia
da presença dele e da considerável difusão V " '1*™ Passiva- resultante do simples fato
u sangue, que unia intervenção ativa
In trodução 21
foi bastante satisfatório. A contecim entos e personagens foram colocados em seus jus
tos lugares, seguindo um a cronologia bem clara. A pareceu tam bém o contexto inter
nacional, com destaque para as relações do Brasil com seus p rin cipais parceiros com er
ciais (P ortugal, Inglaterra, A lem anha, Estados U nidos e França).
A coletânea evidenciava a diversidade do B rasíí, conferindo a cada província um a
especificidade, um a existência própria, pelo menos no período situado entre a chegada
da C orte portuguesa (1 8 0 8 ) e a década de 1850. D epois, prevalecia o esquem a, sólido
e tenaz, do Brasil u n itário . O próprio títu lo do volum e — ‘D ispersão e u n id ad e’ —
sugeria que o estudo in d ivid ualizad o das províncias só fazia sentido duran te o agitado
período de consolidação d a u n id ad e e de organização do Estado nacionais.
Nos países da A m érica espanhola, os processos de in d ep en d ên cia foram incom pa
ravelm ente m ais dolorosos do que o ocorrido no B rasil, iVIesmo assim , era necessário
evocar aqu i as tentativas às vezes sangrentas de in d ep en d ên cia de certas províncias,
como a Bahia (onde sc travaram batalhas em 1822 e 1 82 3), as revoluções separatistas
do N ordeste (que ocorreram n a época da abdicação de dom Pedro I) e as numerosas
agitações sociais e revoltas de escravos (d u ran te a R egên cia e o in ício do reinado de
dom Pedro II). Ao descrever as am eaças ao Im pério entre 1820 e 1850, os autores
ressaltavam reiteradam ente que o N orte, o N ordeste e o S u l tin h am n ítid a consciência
de sua diferença em relação ao resto do país.
T udo se norm alizou em 1850, mas a u n id ad e nacion al não apagou as diversidades
e particularidades. A in d a hoje, o reconhecim ento m ú tu o entre dois brasileiros ainda
passa por um a pergunta-chave: “de onde você é?” O estado de origem do interlo
cutor sinaliza, em prin cípio , algum as qualidades e defeitos que se podem esperar dele.
O Brasil é efetivam ente um a federação, e a id en tid ad e de cada um está relacionada
mais a seu estado de origem do que à nação com o um todo.
Os autores da coletânea organizada por Sérgio B uarque de H olanda tiveram o
im enso m érito de não repetir cam inhos am plam ente percorridos, mas seus trabalhos
não provocaram efeitos explosivos e duráveis, sem elhantes aos das teses de C aio Prado
Jú n io r’ c outros autores m arxistas/ O utro grande livro de rese tinha aparecido em
1933: C asa-grande e senzala-, em que G ilberto Freyrefi abordou o sistema patriarcal
brasileiro oriundo das plantações de cana-de-açúcar do Nordeste, fornecendo uma
imagem idílica das relações sociais nele im perantes, particularm ente daquelas que se
estabeleceram entre senhores e escravos. Essa posição suscitou, naturalm ente, polêmi
cas, interrogações c pesquisas.
Esses temas interessaram a muitos acadêm icos, como os antropólogos Charles
W aglcy (da Universidade dc C olum bia), M elvilte J. Herskovits (da Universidade de
Northwestern) e Rogçr Bastidc, radicado cm São Paulo/ Mestres e discípulos pesqui
savam o Nordeste, bascando-sc na História econ ôm ica do Brasil, de Roberto Simonsen,
a prim eira síntese sobre a economia colonial. Como Gilberto Freyre e Caio Prado, este
autor também criaria um a escola, graças aos excelentes trabalhos de Alice Canabrava,
Celso Furtado c M ircea Bucscu. 10 Assim, graças à influência de três pesquisadores
lN T R O nU Ç Á O l i
C omo E sc r e v e r uma H is t ó r ia d a B a h ia ?
m esm a elite, q u e se com praziam em críticas m ordazes, freq ü en tem en te in ju stas, recu
sando q u alq u er pro xim id ad e com in stitu içõ es nas q u ais — era claro — ingressariam
m ais tarde. O sonho de todo in telectu al b aian o , honesto ou nâo, co n fo rm ista ou não,
é tornar-se, ele m esm o, u m a in stitu ição . H á um tem po para irreverên cias, m as elas são
erros da ju ven tu d e, necessários e perdoáveis.
A proveitando o clim a estim u lan te criad o p ela ‘F ed eral’ , su rg iu em 1 9 5 6 a U n iv er
sidade C ató lica da B ahia. O arcebispo local, p rim az do B rasil, passo u a ser o grande
chanceler dessa in stitu ição , cab endo a p rim e ira reito ria ao m o n sen h o r E ugênio de
A ndrade V eiga, dou tor em d ireito can ô n ico pela U n iv ersid ad e G rego rian a de R om a.
Escola privada, m an tid a por ordens e congregações religio sas e por leigos (em grande
parte integrados ao corpo d o cen te), passou a fu n cio n ar à n o ite, p ara propo rcion ar
op ortunidade de educação sup erio r e prom oção social a pessoas já in tegrad as no
m ercado de trabalho. C o b rava an u id ad es m ó d icas, m as, m esm o assim , pesadas p ara os
orçam entos dos m ais pobres.
Estávamos d ian te de u m p aradoxo: ativ id ad es c u ltu ra is florescentes em um a ci
dade aparentem ente adorm ecida, S eria o p ren u n cio de u m a renovação geral e d u rá
vel? Em que m edida os historiadores seriam b en eficiad o s em seu ofício específico?
Esta não era p ergun ta sem fu n d am en to : gran d es co n tad o res de estó rias sobre si
mesmos e os dem ais, os baianos têm alm a de h isto riad o res, em b o ra quase n u n ca o
percebam . Esse traço se m ostra, no en tan to , em conversas co tid ian as e em d ocu
mentos com uns de arquivo, escritos em prosa en can tad o ra e p ro lixa. Nos alvarás de
libertação de escravos, por exem plo, os senhores co n tam a p ró p ria vida, inclusive
fam iliar, com profusão de detalhes in discreto s, in ú teis do po nto de vista legal. T es
tam entos e Inventários são verdadeiras estórias de vida, ad m irav elm en te resum idas,
que desfiam problem as e am ores de fam ílias in teiras. T u d o se passa com o se a re
dação — própria ou, na m aio ria dos casos, feita por terceiros — de um docum ento
legal desse vazão a um desejo de perp etuar a m em ó ria fam iliar e coletiva, conquis
tando na sociedade, depois da m orte, um lu g ar freq ü en tem en te inacessível em vida.
O u então como sc os testam entos cum prissem o papel de confissões, ajudando o
testador a com preender e ser com preendido, ligando presente e passado, forjando
um a ascendência m ítica, fosse ela portuguesa (para os que faziam questão da raça
branca) ou africana dc sangue real (para os alforriados que reivindicavam origens
nobres). Assim, o ato dc contar para si a própria estória rornava-se ato criador dessa
mesma estória, agora escrita c, portanto, certa.
Às vezes ingênuos, escritos para a fam ília c os am igos, destinados em princípio à
poeira dos tabeliães, esses docum entos legais são verdadeiras peças literárias que ex
pressam sentimentos profundos. Com pensam parcialm ente a falta de um a literatura
autobiográfica, pois, entre os sóculos XVI c XIX, os que teriam sido capazes de escrever
suas memórias não o fizeram.
I or que faltaram à Bahia escritores desejosos de contar suas vidas? Seriam tama*
n as sua importância, sua evidência, sua fama, que tal iniciativa lhes parecesse indtilí
In t r o d u ç ã o 25
Era uma história m uito ‘colonial’, em que o principal papel cabia ao século XVI.
Mas era solidamente alicerçada em um real esforço de síntese. Às m onografias susci
tadas pelas comemorações acrescentavam-se numerosas teses, artigos e obras sobre a
história factual do século XVII. O período menos conhecido era entre 1600 e 1750,
ano a partir do qual os arquivos se tornaram mais ricos e os acontecim entos, mais
estim ulantes. Houve publicações sobre a Revolução dos A lfaiates, m ovim ento revolu
cionário ocorrido em 1798; sobre as guerras de 1822 e 1823, cham adas Guerras de
Independência da Bahia; sobre a Revolta dos M alês, insurreição negra de 1 835; e sobre
a Sabinada, movimento federalista e descentralizador que contestou o governo im pe
rial em 1837. Obras e artigos eram m uito descritivos e^ em geral, não correspondiam
às promessas contidas nos respectivos títulos. Estavam neste caso, por exemplo,
A p rim eira revolução social brasileira, livro de Afonso R uy de Souza consagrado à
Revolução de 1798, e M alês, a insu rreição da senzala, de Pedro C alm on.
Mesmo quando os historiadores baianos revelavam um a ideologia análoga à das
elites pensantes locais, faltava em seus trabalhos um aparato teórico. Isso m e trazia
vantagens, pois alargava a possibilidade de escolha do m eu próprio cam inho. Nessas
‘histórias dos acontecim entos’, tin h a diante de m im fontes ricas em dados brutos,
aprisionados no entanto por estilos grandiloqüentes ou panegíricos. Talvez aquelas
realidades pudessem ser interpretadas de outra m aneira, mas ísso não tirava o mérito
das narrativas já feitas, excelentes pontos de partida. Era interessante comentá-las
com seus autores, inclusive para garantir o acesso às fontes e ao m aterial histórico,
praticamente vedado a quem não fosse reconhecido como integrante do ‘meio aca
dêmico’ da Bahia.
M eu encontro com Thales de Azevedo, em 1961, foi decisivo. Professor da Facul
dade de Letras da Universidade Federal da Bahia, o ‘doutor T hales’ era a figura de proa
das ciências sociais em Salvador, M édico de formação, começou como pesquisador em
antropologia física e sociocultural e colaborou intim am ente com sociólogos da U ni
versidade de Colum bia (EUA) e com Roger Bastide. Em 1949, publicou Povoam ento
da cidade do Salvador, ensaio que colocou problemas novos, fora dos esquemas factuais,
procurando interpretar a evolução da cidade durante um período bastante longo, entre
os séculos XVI e XIX. Foí dele o prim eiro convite que recebi para fazer uma série de
conferências no Instituto de Ciências Sociais, que ele dirigia, versando sobre... os
regimes totalitários europeus do século XX! Em seguida, foi ele que me recomendou
para um lugar de docente na rccém-críada Faculdade dc Letras da Universidade Ca
tólica. I oi ele, enfim, que orientou meus primeiros passos e encorajou minhas primei
ras opções. Nossa amizade, hoje antiga, inuito mc enriqueceu.
A partir de 1963, lecionei história geral conremporânea. Por sorte, ingressei no
magistério superior num momento propício, em que se iniciava uma mudança de
trajetória, decorrente da fundação das duas universidades, que se estimulavam mu
tuamente, c da democratização do ensino, que crescia junto com o próprio con
tingente estudantil. Novas escolas aumentavam a necessidade de formar professores.
In t r o d u ç ã o
Salvador. M as, para m inha decepção, isso ocorre de modo esporádico e, mesmo assim,
apenas nas listas eleitorais. Só na Q tialificação d e votantes encontrei restos do recen-
seamenro de 1855, concernente à capital.
Também consultei outros acervos, mas sua enum eração seria entediante. Fica o
leitor convidado a consultar as referências que se encontram no final deste livro.
Apenas duas séries apresentaram as condições necessárias para servir de base à quan
tificação estatística: os inventários p o st m ortem (1 8 0 0 -1 8 9 9 ), que perm itiram um
estudo sobre as fortunas, e as cartas de alforria (1 7 4 9 -1 8 8 8 ), que possibilitaram le
vantar a que preço, no sentido próprio e no figurado, os escravos conquistavam a
liberdade. No âm bito dessa pesquisa, no entanto, não valorizei apenas os dados que
podiam ser quantificados. A leitura de centenas dc inventários p o st m ortem , milhares
de testamentos e outras tantas cartas de alforria me esclareceu comportam entos de
term inantes das relações sociais, acim a das divisões devidas às diferenças de raça,
cor e fortuna. Apareceram os principais traços da m entalidade dos baianos. Justa
mente porque não pôde ser quantificada, essa parte da história — que não deixa de
ser um a história dos acontecim entos — enriqueceu singularm ente m inha compre
ensão do passado.
É cruel a ausência de guias e catálogos nos A rquivos M unicipais de Salvador e no
Arquivo do Estado da Bahia, cujos acervos são m uito ricos mas, com exceção dos
volumes encadernados, não estão catalogados. Até 1969, a m unicipalidade de Salva
dor publicou numerosos docum entos, referentes apenas ao período colonial, agrupa
dos sob o título geral de D ocum entos históricos do A rquivo M unicipal. A série mais
importante é a das Atas da C âm ara, m inutas das reuniões do Conselho M unicipal,
publicadas em sete volumes que saíram entre 1941 e 1969, cobrindo um período que
vai até 1710. Faltou verba para prosseguir o trabalho. Embora a coleção manuscrita
dessas atas esteja com pleta, não a utilizei,
Toda a documentação referente à vida econôm ica e social da cidade — que, como
pude constatar, cobre o período de fins do século XVIII a fins do século XIX — estava
amontoada no chão de um depósito que visitei em 1979. Não sei dizer se já recebeu
destino melhor. Na ocasião, desisti de utilizá-la, pois qualquer tentativa nesse sentido
demandaria esforço insano; um a prim eira classificação exigiria vários anos de trabalho.
Mas reservei a série Escrituras de escravos (1847—1887), organizada em forma de vo
lumes e formada por documentos relativos à locação de serviços da mão-de-obra
escrava. Além disso, alguns aspectos da vida com unitária de Salvador ficaram mais
claros depois da consulta a um volume manuscrito — o único que pude localizar —*
da coleção intitulada Livro d e posturas m unicipais (1829—1859).
Os arquivos da Santa Casa da M isericórdia, bem conservados, apresentavam dois
acervos principais: documentos referentes à administração geral dessa instituição e
documentos contábeis. Estes últimos me interessavam muito, pois essa confraria leiga
possuía um hospital desde a época de sua fundação (1550), cuidara por muito tempo
de crianças abandonadas e, no início do século XVIII, criara um asilo para mulheres.
Introdução
Pegue, im ediatam enre os L.vros d e receita e despesa, cuja série começa no fim do século
m“ . l0gO ':er; rKl UCÍ su“ informações eram muiro gerais, limitando-se às
somas totais recebidas c gastas pela instituição. Referências constantes a maços' insi
nuavam que essas contas sc baseavam em documentos que não constavam do resumido
catalogo manuscrito que eu consultara, nem tampouco estavam na sala dos arquivos.
Só os encontrei no sótão dc um belo casarão do século XVII. Eram milhares de
páginas, com prim idas um as às outras e am arradas com barbantes. Para retirá-las dc iá,
tive que u tilizar um a escada de pintor e, para consultá-los, foi preciso lim par uma
poeira, literalm en te, de séculos. V aleu a pena. Excetuando-se a década de 1830, cujos
dados não pude encontrar, esses docum entos forneceram regularm ente, para um pe
ríodo de duzentos anos (1 7 5 0 a 1950), os preços mensais dos gêneros consumidos no
hospital e no asilo e as diárias cobradas pelos diversos artesãos encarregados da manu
tenção ou de obras. A ssim , pude finalm ente estabelecer séries de preços (que cobrem
180 anos) e de salários (até 1829).
Para co n tro lar esses dados, recorri em seguida ao arquivo do Colégio dos Órfãos
de São Jo aq u im , fundado em 1826. Sua docum entação só se tom a realm ente sistemá
tica a partir de 1840, form ando um a série m enor que a anterior. Mesmo assim, pude
perceber que os preços dos produtos alim entícios tinham , nos dois casos, a mesma
ordem de grandeza. Para o período posterior a 1840 tom ei como base os dados obtidos
com o estudo dos salários de algum as categorias de artesãos.
M inh as pesquisas nos arquivos baianos se encerraram aqui. Aliás, só puderam ser
realizadas graças à cu m p licid ad e dos diretores dessas instituições, aos esforços de diver
sas categorias de funcionários e, sobretudo, a dezenas de estudantes voluntários, que
me ajudaram a lim p ar a poeira, classificar e copiar textos, chorando junto comigo a
destruição in vo lu n tária de alguns. Parcialm ente devorados por insetos, danificados
por tintas m uito ácidas, feitos com papel concentrador de um idade, vários documen
tos se tornavam inutilizáveis depois da prim eira m anipulação.
Exam inam os cerca de quarenta m il docum entos para estabelecer nossas séries de
preços e salários; temos e resumimos 3.468 testamentos e 1.115 inventários j>ost mortem*
transcrevemos m ais dc dezesseis m il cartas de alforria. Não é preciso mencionar todos
os outros docum entos consultados sem resultados. Foram incalculáveis as horas gastas
nos arquivos citados e em outros, como os dos conventos do Desterro, do Carmo, de
São Francisco e de São Bento, que nada acrescentaram à nossa pesquisa.
Agora, com distanciam ento, que balanço posso fazer desse trabalho que, entre
1965 e 1980, consumiu milhares de horas em bibliotecas e arquivos? Consegui atingir
minhas metas? São perguntas que exigem uma avaliação de conjunto. Não tra ei
sozinha. Colegas meus, historiadores, concentraram-se em períodos diferentes e utili
zaram outros acervos. Geógrafos, sociólogos c economistas conjugaram esforços, que
resultaram em certo número de teses c estudos, disponíveis desde fins da década de
1970, O que foi possível descobrir sobre as condições demográficas, econômicas e
sociais de Salvador e do Recôncavo?
B ahia , S éculo X IX
34
A pesquisa em dem ografia h istó rica resultou n u m a tese de terceiro ciclo , defen di
da por Jo h ild o Lopes de A thayde em Paris. Ele analisou as onze p aróquias existentes
em Salvador no século XIX (1 8 0 0 -1 8 8 9 ), p artin d o de registros — tam bém inco m ple
to s guardados nos arquivos da C ú ria M etro p o litan a. Pôde eviden ciar as três variáveis
já clássicas — nascim entos, casam entos e m ortes — segundo a m etodo logia proposta
por Louis H enry. A pesar de seu caráter um pouco geral, esse estudo con tém algum as
análises interessantes, centradas na p aróquia da Sé, a p rin cip al da cidade. As informações
disponíveis p erm itiram que o auto r analisasse o celib ato , a fecu n d id ad e e os problem as
ligados aos filhos ilegítim o s e às num erosas ep id em ias q u e assolaram a cidade em
m eados do século. É um trabalh o de gran d e m érito. M as não com p orta nenhum a
distinção no que diz respeito às condições legais (hom ens livres e escravos), à cor
(brancos, negros, m ulatos, índio s, caboclos), ao sexo ou à id ad e das pessoas. L am en
tavelm ente, outros jovens historiadores n lo co n tin u aram essas pesquisas,21 A ssim , apesar
da nova visão que essa obra forneceu sobre certos aspectos demográficos da cidade de
Salvador, ain d a tivem os que usar an tigas avaliações sobre a p o pulação b aian a (até
1870 ) e esm iuçar os recenseam entos oficiais realizados a p artir de 1872.
Já é quase certo que a falta de fontes p rim árias im p o ssib ilitará grandes estudos
m acroeconôm icos e pesquisas m icroeco nô m icas precisas sobre a B ah ia do século XIX.
Os proprietários agrícolas — senhores de engenho ou sim p lesm en te fazendeiros — ,
as casas com erciais, as in dú strias e os bancos não conservaram seus papéis. N ão exis
tem mais os livros de razão, as contas e a correspo ndên cia datados de antes de 1870.
Os posteriores, se escaparam às destruiçoes (sistem áticas ou inconscientes), perm anecem
cuidadosa e volun tariam ente escondidos.
Da m esm a form a, parece que será im possível m o n tar novas séries im portantes,
relativas à produção total, aos intercâm bios com erciais (realizados dentro da Província
ou com outras províncias), aos custos da produção, aos preços de bens de consum o
e de serviços, às emissões e à circulação m onetárias, aos m ovim entos de capital etc.
A reduzida docum entação estatística — que p erm itiu m o n tar séries incom pletas e com
poucas variáveis — foi pacientem ente reu n id a e p u b licad a pelo C entro de Pesquisas da
Secretaria de Planejam ento do Estado da B ah ia.22 A parte m ais antiga dessa docu
mentação data da decada de 1850. Para os períodos anteriores, precisam os nos conten
tar com dados m uito restritos, relacionados ao com ércio e à navegação. Nesse âm bito,
a tese da historiadora norte-am ericana C atherin e Lugar dá um a boa contribuição do
ponto de vista estatístico.25
Consegui enriquecer as séries referentes às variáveis econôm icas, agregando a elas
cinco outras séries: a dos preços de alguns gêneros alim entícios no m ercado de Salva
dor ao longo de quase dois séculos ( 1750—1930); a dos preços da m ão-de-obra escrava
(1819-1888); a dos salários de algum as categorias de artesãos (1 8 0 0 -1 8 8 9 ); e a das
fortunas dos habitantes de Salvador (1 8 0 0 -1 8 8 9 ).24 Pobre diversidade de dados no
campo econômico, que só perm ite demonstrações lim itadas a ordens de grandeza e
aseadas em fontes freqüentemente restritas; e que induz o historiador a trocar a
In t r o d u ç ã o
hisrória econôm ica em sentido estriro por uma história mais social que econôm ica. Foi
este o meu caso, sem elhante ao de numerosos colegas que trabalham com a Bahia.
Se a escassez, de fontes justihea um certo desinteresse pela história econôm ica, não
se pode dizer o mesmo no que diz respeito á dem ografia histórica, tema fundam ental
em m atéria de hisrória social. 1 cria sido necessário fazer um esforço para estudar, pelo
menos, uma paróquia, registrando as curvas de nascim entos, casamentos e mortes,
analisando o celibato e a íecundidadc, aprendendo, cm sum a, métodos e técnicas que,
por hdta de um a formação correta, não chegaram a inreressar aos jovens historiadores
batanos. Esres preferiram tem as que pudessem ser pesquisados cm documentação
menos árida e mais acessível e que apresentassem resultados mais sugestivos, mais
im ediatos e m ais espetacu lares. O desenvolvim ento de um a história social não
demográfica tam bém correspondia a necessidades im ediatas. U m a curiosidade im pelia
os pesquisadores a tentar com preender m elhor a organização social de Salvador, seus
conflitos e acom odações, dentro de um a problem ática que, m uitas vezes, desembocava
em hipóteses de trabalho cujos pressupostos teóricos — como, por exemplo, a luta de
classes, mesmo sem con sciên cia de classe — podem trazer um a preciosa contribuição
à historiografia.
D istanciados das grandes preocupações teóricas, concentrados sobretudo no pe
ríodo colonial, os historiadores ingleses e norte-am ericanos continuavam suas pes
quisas, m etodologicam ente sólidas e extensam ente docum entadas, que tinham como
eixo a história social de Salvador e do Recôncavo. M in h a história social do século
XIX encontrava, assim , suas bases no tem po. N a verdade, várias vertentes enrique
ceram m eu conhecim ento: a indispensável historiografia tradicional, a nova produ
ção histórica baiana, a con tribuição norte-am ericana e inglesa e os numerosos estu
dos consagrados à B ahia pelos franceses Roger Bastide e Pierre Verger. Mas meu
trabalho não é a som a destes. De um lado, dediquei-m e a um a problem ática resul
tante de m inhas próprias perplexidades e de trin ta anos consagrados a observar Sal
vador, que passou rapidam ente, dian te de meus olhos, de sciscentos md a dois m i
lhões de habitantes e do im obilism o à m odernidade; de outro, fiz pesquisas próprias.
A abordagem que apresento aqui é, inclusive, diferente da que aparece cm minhas
publicações precedentes.25
M inha pergunta básica há alguns anos se resumia em algo bastante simples: por
que e como a orgulhosa capital da opulenta Bahia do fim do século XVIII, dominada
pelos ricos senhores dc engenho do Recôncavo, conhecidos até na longínqua Europa,
transformou-se lentam ente, até se tornar, ccm anos depois, numa simples cidade de
negociantes? Note-se que a transferência da capital do Brasil, em 1763, de Salvador
para o Rio dc Janeiro, nao correspondeu a um a tomada de consciência do progresso
do Sul ou dc uma decadência qualquer do Nordeste. Tal medida foi imposta unica
mente por necessidades im ediatas: aproximar o centro de comando e os exércitos que
lutavam no Sul conrra os espanhóis e vigiar melhor o porto do Rio, por onde passavam
as exportações de ouro dc M inas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
36 B a h ia , S é c u l o XIX
Os D ons e as A r m a d il h a s
da N atureza
CAPÍ TULO 1
A B a h ia
41
42 B a h ia , SC c u l o X I X
A C idade
A P ro víncia ,
Desde a fundação de Salvador, em 1549, até os nossos dias, a Bahia teve três denom i
nações diferentes. C om o C ap itan ia Geral da Bahia de Todos os Santos, foi sede do
governo colonial português até a transferência deste para o Rio de Janeiro em 1763.
£m 1815, com a transform ação do Brasil em Reino U nido a Portugal e Algarves,
passou, como todas as dez capitanias gerais antes existentes (e sem que houvesse
_ qualquer legislação específica a respeito), a ser cham ada, indiferentem ente, decap ita-
nia ou província. Em 1824, com a prom ulgação da prim eira Constituição brasileira,
?r-? . tornou-se oficialm ente P rovíncia da B ahia, um a das dezenove províncias do Império.
' ^ [Vi," Em 1889, com a Proclam ação da R epública, foi o JEstado da Bahia^um dos vinte
■ ç estados federados dos Estados U nidos do B rasil,2
Sob essas denom inações encobrem -se realidades diferentes, herdadas de uma
história que é relativam en te sim ples. N a origem estão cinco capitanias hereditárias,
concedidas pelos reis de Portugal entre 1534 e 1566: dom João III concedeu a
. Francisco Pereira C o u tin h o , em 5 de abril de 1534, a .Capitania da Bahia, depois
, ú cedida à C oroa e transform ada em sede do governo geral a partir de 1549; a Pero
1do Cam po T o u rin h o , concedeu a C ap itan ia de Porto Seguroy em 27 de maio de
1 1534; a Jorge de Figueiredo C orreia, a ,Cap_kama de Ilhé_us jem 26 de julho de 1534;
^ e a A ntônio de A taíde, C onde de C astanheiras, a,C apÍtania das Ilhas de Itaparica e
I T am arandiva em 15 de m arço de 1556. Dom Sebastião concedeu a Ç apitania do
| Paraguaçu, ou do Recôncavo, a Álvaro da Costa em 29 de março de 1566.^ As duas
' últim as eram antigas sesm arias da C ap itan ia da Bahia.
Na segunda m etade do século XVIII, as capitanias de Paraguaçu, Itaparica, Porto
i Seguro e Ilhéus foram incorporadas à C apitania Geral da Bahia que, no início do
,/r, século XIX, estava dividida em seis comarcas: .a da capital .(que compreendia a cidade
j de Salvador e seu Recôncavo), . g d e l jhéus(va de Porto Seguro,' a de Jacobina,(que
I cobria a m aior parte do Sertão),m de Sergipe dei R ei,eva do Espírito Santo (as duas
últim as eram capitanias subalternas). Cada comarca (divisão administrativa de caráter
C. judiciário, colocada sob a jurisdição de um ouvidor, substituído depois da Indepen
dêncla por juizes dc direito) podia abranger vários municípios.
/ Na terceira década tio século XIX, houve alguns remanejainentos administrativos:
f i cm 8 de julho dc 1820, a pequena comarca dc Sergipe, com seus 21.994 km , tornou
| j se capitania autônoma. São Cristóvão, sua antiga e indolente capital colonial, fundada
: | em 1590, mostrou-se incapaz dc vencer uma letargia secular e foi substituída pelo
\ porto de Aracaju, de características mais dinâmicas. Depois, em 1822, durante a
44 B ah ia , S éculo X IX
M o r f o l o g ia d o S ít io
A história geológica m arca profundam ente o sítio em que está Salvador. Todo um
sistema de falhas num h orst (com partim ento de solos duros, elevados entre falhas)
cristalino fez com que os trajetos dos rios apresentassem cotovelos em ângulo reto.
0 fundo da baía é form ado, em sua totalidade, por rochas sedím entárias. Só se encon
tram rochas cristalinas no con tinen te e no m ar aberto.
( A ponta sul da pen ínsula em que se ergue a cidade tem a forma de um losango,
l cuja orla oeste corre, exatam ente, ao longo de um a falha im ensa que se chama fa lh a
' d e Salvador. Seguindo a direção sudoeste-nordeste, ela separa o cristalino antigo e a
í bacia sedim entária jurássico-cretácea. É um horst cujo gra b en (fosso tectônico) é a baía.
. O outro lábio dessa im ensa falha deve sex ^procurado no lado oposto d_a baía, no lim ite
sudoeste do Recôncavo. ^ K-
O abrupto prom ontório em que‘ se ancorou a C idade A lta corresponde aos 60 a
1.10 metros superiores, ain d a visíveis, dos rebordos desse enorme escarpamento da
falha, ao longo do qual o m ar, por seus avanços e recuos, abandonou uma enseada
J submersa, u m au iíi, Com o a parte fronteira da falha de Salvador costeia a orla, restou
à Cidade Baixa apenas um a praia estreita, que vai da Conceição da Praia ató São
^Joaquim. Só mais adiante, com Itapajípe, Plataform a, Peripcri e Paripe, subindo no-
■vamente para Aratu c o norte da baía, ó que os terrenos sedim entários emersos formam
1 pequenas planícies costeiras ao pá do escarpamento da falha principal.
Em seu conjunto, o horst cristalino apresenta uma mesma inclinação geral, com
suave declive na direção do sudoeste, rumo ao Atlântico. Para o mar aberto correm
seus rios, mesmo nos casos em que as nascentes destes se encontram a pouca distância
do mar interior. Os rios das terras scdqhentárias do noroeste, por sua vez, são curtos
e correm para a baía. Por conseguinte,/a rede hidrográfica e a topografia são comple
xas. A inclinação do horst para o Atlân :iico é ocultada por um relevo cheio de detalhes
46 B a h ia , S é c u l o X I X
acidentados, com vales, várzeas e curvas de nível que variam entre trinta e sessenta
metros, com pontos máximos de 90 ou 110 metros e declives de até 45 .
De superfície desarticulada e acidentada, o horst term ina, ao aproximar-se do
( Atlântico, cm um cinturão de dunas recentes, formadas por areias originadas da de
' composição de seus-quartzos. Brancas colinas, deslum brantes à luz do sol, com vinte
1 a trinta metros da altura, essas dunas, por causa da variação dos ventos dc alto-mar,
: não têm qualquer orientação preferencial e costeiam toda a orla oceânica até o norte
do rio Joanes, m uito além dos lim ites m unicipais. M al encobertas por uma vegetação
rasa e pobre, lembram uma paisagem de neve, bastante inesperada para o viajante cujo
avião vai aterrissar no aeroporto vizinho: de um lado, palm eiras ondulam com a brisa
do mar; de outro, um a brancura de neve. bogo ao chegar, tem-se assim um a boa idéia
dos contrastes dessa terra rude e forte.
S olos e Á guas
Pode um sítio desse tipo oferecer boa acolhida a um a cidade de colinas e várzeas? Um
porto protegido por enorme baía, situação privilegiada deste lado do Atlântico, é
importante trunfo para o desenvolvimento de um a capital. Mas qual será o valor dos
solos dessa cidade-jardim que, até o século XIX, produzia, ela mesma, um a parte das
frutas e das leguminosas que consumia?
Á Abaixo de oitenta metros de altitude, os solos do horst surgiram da alteração
das rochas cristalinas: são, sobretudo, argilosos (caulinizados), mas firmes, Se horí-
$ ""j zontais, têm um a certa estabilidade, mas, nos declives m ais inclinados, ocorrem fre
J
qüentes deslizamentos de terreno após chuvas fortes. A inda hoje, algum as ruas sao
i:conhecidas pela instabilidade. Acima de oitenta metros encontra-se uma camada quase
Xv horizontal de sedimentos idênticos àqueles da região baixa, também qurássico-cretácea,
que vai do fundo da baía ao noroeste da cidade. Essas argilas margosas, escorrega-
.,-4 dias, são ruins para os alicerces das casas, mas excelentes para as culturas, A rocha
^ matriz do horst possui todos os elementos nutritivos necessários às plantas, inciu-
J sivc o cálcio, mas os solos de decomposição antiga são lavados pela erosão, cabendo
■às raízes profundas distribuir internam ente a alim entação necessária ao vegetal,
p As chuvas c o vento marinho trazem o iodo e o potássio. Sol e chuva nunca faltam.
_0 subsolo é um verdadeiro reservatório de água para uma vegetação tropical úmida
epuxuriantci
Assim e esta é uma das armadilhas da natureza — as terras onde foi edificada
a cidade de Salvador são boas para hortas e pomares, mas não são recomendáveis para
construção. Até o declive mais íngreme, o do reverso da falha, desce em pequenos
egraus para a praia ou dirigc-sc para o norte, alcançando os terrenos sedimentários e
o erecendo, aos bananais c às culturas dc árvores frutíferas, uma exposição magnífica
ao sol nascente.
Ln- R o I - Q s D o n s e as A r m a d il h a s d a N atureza
A B a Ia e o P orto .
« 6 0 u -( em 1871, ano de crise econôm ica, o núm ero caiu para 461 navios.5 Reabastecer navios
* ' b ] e tripulações tornou-se, por conseguinte, um a das funções de Salvador. Nos séculos
CJt' XVII e XVIII, os navios perm aneciam freqüentem ente três meses no porto para repa-
/ ros, para reabastecim ento, para esperar pela partida de um a frota ou por ventos favo
ráveis. No século XIX, os navios já não aportavam m ais de duas ou três sem anas.6
A água doce, excelente e de fácil acesso, brota, com o vim os, em toda parte, de
> [(v/ modo que quase todas as casas têm seu poço. O com andante M ouchez, um francês a
~vlí? t. ^ q Uem devemos uma descrição m inuciosa do porto de Salvado r,7 explicou como era
° CÇvV) feito o reabastecim ento nas fontes da G am boa ou na de Á gua de M eninos, ao norte do
■*' / Arsenal, mas se queixou da falta de carne de v itela e de carneiro, bem como da má
qualidade da carne de boi e de frango. Em con trap artida, peixes, legum es e frutas —
. ; mangas, bananas, laranjas, abacaxis — eram excelentes. O utro viajante, Avé-Lallement,
rC° ^chegando do Rio de Janeiro em 1859 a bordo do navio P araná , descreveu assim o
■ m
,C m. . #
porto de Salvador, cham ando a atenção para a existência do banco de Santo Antônio:
^ BA entrada [da baía] é fácil e segura. A ajuda de um piloto ou de balizas não é ne
cessária para indicar o trajeto a ser seguido. E ntretanto, logo ao sul da entrada, no
meio de um vasto espaço de águ a navegável, ergue-se um banco de areia [trata-se do
banco de Santo A ntônio] com apenas quinze pés de profundidade nas partes mais
elevadas, que as em barcações de grande calado devem ev itar.”8
Se os navios a vapor do século XIX entravam facilm ente na baía sem a ajuda de
^ pilotos locais, o mesmo não acontecia com os veleiros, de reações m ais lentas e muito
j mais dependentes dos ventos. Por essa razão, desde os prim eiros tempos da coíoníza-
^ Ção, navegadores exím ios eram enviados ao m orro de São Paulo, na ilha de Tinharé —
pequena colina que, em bora distante, dom ina a ‘barra falsa1, ao sul da entrada da baía
c\ y ' com o objetivo de vigiar o m ar e aguardar as frotas vindas do O riente para orientá-
■ na direção nordeste, rum o à verdadeira entrada da baía, que se podia atravessar com
^ relativa facilidade, indicada pelo farol de Santo A ntônio da B arra.9 Uma vez passada
a barra, a baía em si já parece um porto, o m aior do m undo. Os viajantes estrangeiros
chegavam a afirm ar que ele poderia conter todos os navios da T erra. 10
Na verdade, a baía é só um prim eiro abrigo. Ela não é o porto propriamente dito.
Este sc reduz a uma pequena enseada situada ao pé do horst onde se ergue a cidade.
\\ /^ a^or^agtm desse conjunto baía-porto não é tão fácil quanto parece. Antes e depois
Passa&cm da barra que guarda a baía, encalhes ou naufrágios podem ameaçar os
* í nav’í,s de grande calado que não tomarem cuidado com recifes e bancos de areia. Não
descreverei aqui, como o faz pormenorizadamente Mouchez, a maneira de evitar os
recifes dc Paraparingas, o banco dc areia de Santo Antônio, a pedra da Gamboa, o
banco da Panela, o recife c os bancos da Penha ou a carcaça do France, que se
incendiou e afundou cm 26 dc setembro dc 1856 e jaz a oito metros de profun
didade. 11 Os testemunhos dos viajantes e navegadores do século XIX insistem na
generosidade da baía de Salvador, que oferece aos veleiros ou aos vapores a varie a
amistosa de seus ventos c a proteção de suas ilhas. .
L ^ 0* ^ D o v s £ Aí A r n l a d íl h a í PA N*ATVK.EZ.\
O R ecôncavo
CT,}.'■*■
( CP Ac
A 'v , \ "
E sb o ç o de D e f in iç ã c t C - C ' : J’
51
52 B a h ia , S é c u l o XIX
esqueciam suas irmãs do interior, e a população hum ana permanecia densa até dezenas
de quilômetros longe do mar. É impossível compreender a Cidade da Bahia sem
compreender seu Recôncavo.
Surgem logo quesrões: além das condições econômicas do cultivo, as condições
climáticas e pedológicas também são necessárias ao estudo da produção agrícola dirigida
ao consumo ou à exportação nos séculos XVIII e XIX? Estudar os solos do século XX
eqüivale a estudar os do século XIX? Não foram esses solos transformados e gastos?
É verdade que o agricultor brasileiro, colono de outrora, produtor rural de hoje, nunca
teve, em relação à terra, um a m entalidade de usufrutuário zeloso: nunca foi o laboureur
do francês La Fontaine.2 Como se, apesar de seu apego ao solo da nova pátria, o
espírito de aventura dos primeiros colonizadores, vindos para ‘explorar o Novo M un
do, nunca se houvesse transformado; como se o sentido de propriedade se tivesse
dissociado do empenho em cuidar da terra, conservando-a. Prevaleceram o desejo e a
necessidade de uma exploração im ediata, com uso e abuso das riquezas disponíveis,
como que ofertadas. Inconsciência, decerto; urgência, m uitas vezes; e também com
fiança, dada a imensidão das terras,por explorar. M as as dádivas da natureza foram
desperdiçadas.
É preciso que se fale aqui da ‘exploração m ineradora’ dos solos. Os solos do
Recôncavo foram — e ainda o são com freqüência — ‘m inas’ de cana-de-açúcar, de
fumo, de mandioca ou de batata-doce. Um a vez a m ina explorada, o solo fica quase
inutilizável, apenas capaz de produzir um a floresta pobre ou magras colheitas. Até
recentemente, o agricultor do Recôncavo recebia m al os vendedores de adubos que lhe
vinham dar conselhos. E, diante da transformação do solo pelo empobrecimento
, resultante de práticas culturais inconseqüentes, sempre preferiu desistir da luta. De-
7 correm daí as dificuldades encontradas pelo historiador, obrigado a im aginar para a
Bahia um meio geográfico que não é exatamente o de hoje, quando trata dos solos e
de suas possibilidades agrícolas. ^
~ Ora, quem pensa na Bahia dos séculos XVIII c XIX pensa imediatamente na
Bahia capital do açúcar, na opulenta cidade dos senhores de engenho e de seus escra
vos, na cidade dos ricos negociantes. M aurice Le Lannou qualifica os plantadores de
cana do litoral nordeste de “sedentários em panturrados”.3 Ele assinala que o desgaste
i do solo nunca foi compensado, mas sua afirmação traz à baila um duplo problema:
por que o agricultor brasileiro tem essa mentalidade de ‘proprietário de m ina’? Não
. basta constatá-lo; é preciso compreender por que o massapê — essa rica rerra argilosa
| do Recôncavo, que cola nos sapatos de todos os baianos e é seu orgulho e sua riqueza
■ * Por que esse generoso massapê sc revelou tantas vezes terra cheia de armadilhas,
mal amada e mal explorada?
Poderíamos talvez encontrar respostas cm um cadastranicnto dos solos da região,
organizado pelo órgão de desenvolvimento agrícola do Recôncavo na década de 1970.3
Foram classificados mais dc sctcccntos mil hectares de rerras abertas sobre a imensa
baía de Todos os Santos. Os pedólogos dc hoje, ao explicarem as riquezas eas limitações
L rv R o I - O s D o n s e a s A r m a d il h a s d a N a t u r e z a 53
■■- 7 r -r -C ^O*£
D a d o s E st á v e is da G e o g r a fia
coronata ) é fibrosa, c sua altura não ultrapassa a das outras árvores da m ata o rig in al
, Não é mais im ponente do que a vulgar bananeira (M usa paradisíaca).
^ j\ No interior da baía de Todos os Santos, inúm eras ilhas c ilhotas protegem três
baías menores: a prim eira entre a costa oeste de Itaparica e o continente, a segunda
" abrigada entre a península de Saubara-Iguapc e o arquipélago form ado pelas ilhas
L Bimbarras, das Fontes, de M aria G uarda, de M adre de Deus, das Vacas, de Bom Jesus
^ dos Passos, de Santo A ntônio e dos Frades, c a terceira, a m aior delas, entre essas ilhas,
Itaparica e Salvador. Esse m ar interio r de todas as ilhas, de todas as praias, é um
verdadeiro mundo colorido e variado. Suas fúrias são menos violentas que as do
oceano, mas são as de um im previsível m ar, cheio dc recifes. São relativam ente pouco
numerosos os abrigos efetivam ente capazes dc proteger as pequenas embarcações sur-
f preendidas pelos fortes ventos nordeste ou sudoeste a grande d istância dos ancoradou-
^ ros ou perto dem ais das em bocaduras dos rios. C om esses ventos, as praias são facil-
' ■ ( m ente invadidas pelas vagas tem pestuosas das grandes m arés.
No Recôncavo, até os rios estão sujeitos às marés: o m ajestoso Paraguaçu, navega-
7 do por embarcações leves até C achoeira, mas que não é bastante profundo para navios
^ u i ^ d e grande calado; o A çu (ou Açupe) e o Sergi do C onde, de m enor volum e d ’água; o
-^ ú j^ / jagu arip e, ao sul, que já não é considerado um rio da baía, assim com o, ao norte, o
* 1 -rrPojuca, o rio mais im portante da região, cuja bacia tem 3 .0 0 0 k m 2; e ainda os grandes
' . fornecedores de água para o abastecim ento de Salvador, o Joanes, que desemboca em
t Ch *
f! vV^hiar aberto ao norte da capital, e seu afluente, o Ipitanga, O Recôncavo é, assim, antes
^ de tudo, um a terra oceânica: suas áreas agrícolas encontram -se em estreita dependên
cia das águas salgadas e dos rios m arinhos.
M as, da mesma forma que na cidade de Salvador, há água doce por toda parte,
em lençóis freáticos extrem am ente abundantes. As reservas ficam a m aior ou me
nor distância da superfície: aprofundas, enriquecem o solo com seus sais minerais,
como no nordeste do Recôncavo; ysuperficiais, como na região de Dias d ’ÁviIa e de
C am açari, são filtradas por um solo argilo-arenoso que as empobrece. Às vezes,
fluando as areias funcionam como filtros naturais excessivamente eficazes, a água
^ doce é tão pobre em sais m inerais que não perm ite um a vegetação luxuriante; ou
tras vezes, essa água se m istura de tal modo a águas salgadas que dá origem a
manguezais.
j! ^ paisagem do Recôncavo é sempre verde e m uito suave. V ariada, também. Terras
t f relativamente baixas junto às costas, onde elevações amenas se confundem com as do
| litoral, no qual os sedimentos do quaternário deixam aflorar algumas rochas mais
^antigas caulínizadas, produzindo solos vermelhos dominados pcia brancura de neve de
dunas que podem atingir até cinqüenta metros de altura. Terras mais altas, onde os
tabuleiros e as colinas ondulam suavemente numa altitude média de duzentos metros
com vales abruptos. Os rios, sempre muito ativos, cavaram suas margens, formando
terraços como ocorre, por exemplo, com o Paraguaçu e seus afluentes. As vilas, atuais
cidades, deCachcwira e dc São Félix^foram edificadas sobre altos terraços desse tipo.
L i\ n o 1- O s D o n s e a> A r m a d i l h a s d a N a t u r e z a 55
V en to s , C h u vas e S o lo s
TABELA 1
C huvas e T em peraturas M é d ia s n o R e c ô n c a v o B a ia n o , 1 9 4 5 -1 9 7 0
M édias M eses M eses M u s F.S M CHUVA
eses de T f.mpf.r a tu r a s
MFNSArS SECOS CHUVOSOS MUITO CHUVOSOS TORRENCIAI. m édias
84 Outubro
25*0
156 Novembro 25*9
117 Dezembro 26*4
85 Janeiro 26°7
185 Fevereiro
D om inam , p o rtan to , ventos de sudeste: os bem -vindos alísios dos meses de julho
e agosto, enfrentados com m aio r ou m enor sucesso, em novem bro e dezem bro, pelos
ventos do nordeste. A estação fria, de ju n h o a setem bro, é a ünica na quaJ alguns
períodos de calm aria podem im p ed ir os veleiros de transportar sua carga das ilhas para
a baía, de porto a porto. M as ju n h o é tam bém o mès das m aiores tem pestades, aquelas
em que os ventos em lu ta zom bam dos veleiros im prudentes que ousam desafiar barras
e recifes. O c lim a no R ecôncavo é, p o rtan to , freqüentem ente im previsível.
D eixar-se-á a terra d o m esticar e explorar m ais facilm ente que as aguas pouco
confiáveis da baía? Para estudar os solos do Recôncavo e suas antigas culturas, temos
que partir do p rin cíp io de q ue o clim a de outrora era m ais ou menos idêntico, na
sua própria in stab ilid ad e, ao do século XX.8 Lem brem os tam bém a regra de ouro
dos agrônom os, segundo a qual todo solo contém certos elem entos mais importantes,
cujo lim iar de necessidade, u m a vez atin gid o , define o lim ite a partir do qual os
dem ais elem entos não reagem m ais.9 E ngenheiros-agrônom os que trabalharam na
Á frica habituaram -se a d istin g u ir três etapas de desgaste de solos semelhantes aos
dos tabuleiros h aian o t cujas substâncias nutritivas são devoradas por plantas exigentes
e pela falta de aAtthn** a p artir do segundo ano de uso, o rendim ento de um a terra
recém -plantada ifím in u i em 50% ; o patam ar seguinte situa-se no décim o segundo
ano, c o solo m o sn *-sc defin itivam ente em pobrecido depois de 3 0 a 3 2 anos de
cultivo.
58 B a h ia , S é c u l o X I X
V ias d e C o m u n ic a ç ã o
C a m in h o s F l u v ia is: o R e c ô n c a v o e o L it o r a l
59
B a h ia , S é c u l o X I X
60
do m om ento em que o local não em mais acessível por via fluvial e se fazia necessário
andar m uito para atin gi-lo , o hom em do Recôncavo sentia-se hom em do Sertão: o
Recôncavo era, antes de m ais nada, terra de navegação, onde cada um tinha seu barco
e onde nunca se estava a m ais de um dia de m archa de algum a via navegável ou da orla
m arítim a.
Ao sul do rio U na. a vila da Barra do Rio de C ontas deveu sua fundação ao rio que
tem o mesmo nom e. M as, com o esse longo rio só é navegável por dois quilôm etros e
em barcos de pequeno porte, B arra do Rio de C ontas não se tornou um a cidade
im portante. A inda m ais ao sul. Ilhéus existe graças ao rio C achoeira, que tem cinqüen
ta quilôm etros navegáveis, mas só por em barcações leves. T am bém deveriam ser pe
quenas as em barcações q ue desejassem subir ou descer o rio Pardo: de C anavieiras,
pode-se sub ir 112 de seus 6 6 0 q uilôm etro s na direção de M inas G erais; pelo canal de
Poassu, é possível passar do Pardo ao Jeq u itin h o n h a, na em bocadura do qual se
encontra a cid ad e de B elm onte. C o m 1 .0 8 2 quilôm etros, o Jeq u itin h o n h a era um a
boa via de co m u n icação en tre a B ah ia e M in as G erais, pois seus 135 quilôm etros
navegáveis atin g iam as duas provín cias. A d ian te, um a série de cursos d ’água, sempre
orientados no sentido oeste-leste, acolheram em suas em bocaduras alguns núcleos de
povoam ento: o B uranh ém , Porto Seguro; o Ju cu ru çu , Prado; o Itanhcntinga, Alcobaça;
o C aravelas, o porto do m esm o nom e; o Peruípe, V içosa; e, finalm ente, o M ucuri,
navegável por 99 q uilô m etro s a p artir do litoral, deu origem à V ila de São José de
Porto A legre.
A p artir de Salvado r, segu in d o a costa na direção sul, à procura dos principais
ancoradouros das em barcações de cabotagem , nasciam cidades e povoados sempre que
um rio navegável to rn ava possível transportes do e para o interio r e oferecia o abrigo
de sua foz para um porto. T o m an d o o sentido oposto e acom panhando a orla m arí
tim a de Salvador rum o ao norte, chegam os à foz do Inham bupe, rio interm itente e
pouco profundo que desce da região de Serrinh a e banha a cidade de Entre Rios. M ais
adiante, o Itap icuru, o grande rio do Agreste baiano, nasce m uito no interior, na
chapada D iam an tin a, perto de C am po Formoso, e se lança no m ar na altura de
Conde, navegável apenas em sua parte baixa, perto do litoral, por pequenas embarca
ções. M ais favorável à navegação e com um a extensão de 2 64 quilôm etros, o rto Real
tem sua nascente perto da cidade de C ícero D antas e chega ao mar em Abadia, no
lim íte entre Bahia e Sergipe. No século XIX, era percorrido por veleiros de médio
porte que transportavam viajantes e m ercadorias das duas províncias. Encontramos,
finalm ente, a foz do São Francisco, o rio mais im portante da Província {embora nasça
em M ínas G erais), com seus 2 ,7 1 2 quilôm etros e sua orientação inicialm ente sul-norte
e, depois de Rem anso, oeste-leste, banhando Juazeiro e Paulo Afonso. No século XIX,
1.270 quilôm etros do São Francisco eram navegáveis, dos quais 1.009 na Província da
Bahia. Seus principais portos eram C arinhanha, U rubu, Lapa, Barra, Remanso, Pilão
Arcado, Sento Sé e Juazeiro. A navegação era livre e fácil entre Pirapora, em M inas
Gerais, e C achoeira de Sobradinho, quase na fronteira de Pernambuco. A partir dali
62 B a h ia , S é c u l o X I X
C a m in h o s T e r r e st r e s: o A g r e st e e o S e r t ã o
culpidas por ventos circulares e secos. Falar de sertão no N ordeste brasileiro eqüiva
le a pensar em im ensas e con tin u as terras secas, com inúm eros arbustos espinhosos,
especialm ente cactáceas e brom eliáceas.
A palavra sertão tem um sign ificad o tão vago que os dicionários a definem como
um nom e dado a q u alq u er região afastada das terras cultivadas e das costas, coberta de
vegetação áspera. P arece q ue sua etim o lo g ia vem da palavra deserto, através do
aum entarivo ‘desertão ’. N ão vam os en trar aq u i nas controvérsias dos especialistas que
opõem sertão e caatin g a. Esta ú ltim a , ‘m ata b ran ca3 na lín g u a guaran i, teria um a
vegetação de m im o sáceas, cesalpin áceas, euforbiáceas e herbáceas que precisariam de
um pouco m aís de ág u a q u e as brom eliáceas do verdadeiro sertão. Prazer de classificar,
com o q u al, em todo caso, no século XIX, a sab edo ria po pular pouco se ocupava. Os
boiadeiros ch am am in d iferen tem en te de caatin g a ou de sertão todas as regiões áridas
cobertas de arbustos, cu ja a ltu ra não u ltrapassa sete m etros de altu ra e cujas folhas
espinhosas são p ro tegid as por u m a espécie de cera e orientadas de m aneira a d im in u ir
a in cid ên cia dos raios solares. M u itas vezes, as próprias folhas desses arbustos não
passam de um g ran d e esp in h o . A ssim , o m elho r é vestir-se de couro, das botas ao
chapéu, p ara p erco rrer o Sertão . E ntre os arbustos, brotam algum as m oitas com folhas
caducas que sobrevivem graças ao orvalho provocado pelas grandes diferenças de
tem peratura en tre o d ia e a no ite. H á um a p lan ta euforbiácea cham ada favela ou
faveleiro — C in id o scu lu sp h y lla cã n tu s — que, esfriando à n o ite m u ito m ais rapidam en
te que o ar, provoca breves p recip itaçõ es de orvalho. Suas folhas, verdadeiras placas
incandescentes d u ran te o d ia , ao sol, q u eim am a m ão que as to ca.fi
U m a das poucas árvores que, às vezes, consegue crescer m ais um pouco é o
um buzeiro — S pon dias p u rp u r ea , d a fam ília das anacordiáceas — , árvore sagrada do
Sertão. Seu fruto, o u m b u , é co n su m id o cru ou cozido, peneirado e m isturado com
leite e açúcar, na fo rm a de u m a b eb ida cham ada u m b u z a d a ? Os pequenos bosques de
um buzeiros são as paradas preferidas dos boiadeiros, que, vasculhando raízes profun
das, encontram boas reservas de água, econom izada duran te os períodos beneficos.
Seus galhos, bem curvos, parecem feitos de propósito para suspender as redes que
propiciam um sono reparador; seus frutos são deliciosos e os próprios anim ais cobiçam
a extrem idade acid u lad a de suas folhas.
D urante os oito mcscs de seca rotal, o solo entre as árvores e os arbustos do
Sertão fica in teiram en te despido de q ualqu er cobertura vegetal, o que dá à paisa
gem um triste ar dc deserto, m onocrôm ico, acinzentado e desolado. Às vezes, a seca
dura o ano inteiro. M as, quando caem as raras chuvas de inverno, a paisagem se
transform a: em três dias, o im enso deserto m uda de cor, as árvores e os arbustos se
cobrem de folhas que têm todos os tons dc verde e o solo nu desaparece debaixo
das gram íneas rasteiras que florescem em cachos de todas as cores. M as são bem
raros esses períodos abençoados. Dc modo geral, os solos do Sertão permanecem
mal protegidos contra as chuvas, poucas e excessivamente violentas, e contra a grande
variação das tem peraturas diurna e noturna. A vegetação adaptou-sc aos rigores do
B a h ia , S é c u l o X I X
64
clim a e à laterizaçao dos solos superficiais. Assim, o Sertão fica duran te longos me
ses, todos os anos, imerso em tonalidades cinza e rosa. V egetação acinzentada ou
prateada sobre o solo rosa ou averm elhado, sob um céu im piedoso, sempre azul: eis
a rude paisagem costum eira do Sertão.
Os geógrafos costum am descrever a Bahia com o um a sucessão de três paisagens
diferentes que. do Litoral, sobe para o Sertão, passando pelos tabuleiros do Agreste.
Na realidade, há tão pouca u nidad e efetiva no Sertão quanto no A greste. O clim a é o
único fator de unidade ou diferenciação. M as, n atu ralm en te, os m icroclim as não
faltam num a terra tão vasta e com relevos tão variados. Q uan to mais distante o
oceano, m aiores as áreas clim áticas, É a vegetação que caracteriza as paisagens. Além
disso, os vales dos rios são verdadeiros corredores abertos para o m ar. Eles tornam
possível que o clim a m ais úm ido das costas possa lu ta r, com m aio r ou m enor êxito,
contra a aridez do Sertão.
Essa “zona in grata” — na expressão de E uclides da C u n h a — , im ensa como o
mar, foi dom inada e dom esticada por hom ens austeros e sólidos, os vaqueiros, pastores
de grandes rebanhos itinerantes, sem pre à busca de pastos escassam ente distribuídos.
Essas boiadas abriram verdadeiras trilhas no Sertão. Seus condutores sabiam orientar-
se segundo as constelações ou a posição dos tab uleiro s. N em os rios conseguiam deter
a m archa sem fim. Para atravessar um rio, era só fazer a bo iada segu ir um hom em que
nadava à sua frente com um a carcaça de boi na cab eça. 10
Os cam inhos do Sertão eram tão p recário s11 que, até m eados do século XIX,
Salvador continuava a im portar, do N o rte ou do S u l, por via m arítim a, quase toda a
sua carne-seca e a exportar, tam bém por via m arítim a, rodos os produtos agrícolas
com erciais originários do Recôncavo. N a segunda m etade do século XIX, a Bahia
começou a romar consciência dos graves problem as colocados pelas suas comunicações
internas. A navegação fluvial já não aten d ia, havia m u ito tem po, todas as necessidades
dos centros agrícolas, criados e suscitados pelos vaqueiros e suas boiadas lá onde
tinham descoberto algum vale úm ido capaz de abrigar culturas fornecedoras de v iv e-'
res, de início para um consum o local e, depois, pouco a pouco, para a venda às regiões
costeiras mais populosas, cuja prioridade era o cultivo dc produtos de exportação:
açúcar, fumo, cacau, algodão e café.
Como transportar legum inosas e farinhas?12 Entre 1860 e 1923, fez-se um esforço
para desenvolver as ligações entre litoral e interior, já evocamos a navegação fluvial e
também a via férrea, recebida como o meio ideal c privilegiado para todos os tipos de
transporte. Mas ela permaneceu insuficicm e para cobrir os vastos espaços interiores. ^
Os discursos c relatórios dos presidentes da Província descrevem os graves problemas
que a administração não conseguia resolver c os belos projetos jam ais realizados. Em
1855, por exemplo, foi elaborado um m agnífico program a de rede ferroviária que
deveria ligar Salvador aos extremos sul e norte de sua Província.
O Recôncavo e o Agreste foram sempre mais bem-servidos de vias de com uni
cação que o longínquo Sertão. Durante m uito tempo, os caminhos pioneiros, mar-
Li\ K o I - Os D o n s e a í A rm a d ilh a s d a N a tu r e z a 65
cados pelas trilhas das boiadas e das tropas de mulas, permaneceram as únicas vias
de ligação entre a cap ital e os sertões afastados dos rios. A febre do ouro e dos
diam antes, que levou exploradores à chapada D iam antina, durou pouco, mas pro
vocou o surgim ento de cidades como A ndaraí ou Livram ento e tornou possível o
estabelecim ento de um a econom ia de subsistência no Sertão. As mercadorias, no
entanto, continuaram a ser carregadas em lombo de burro ou em carro de boi'; foi
preciso continuar a seguir as trilhas, a percorrer — matas, savanas ou caatingas aden
tro os cam inhos abertos pelas boiadas. As paróquias que conseguiram fixar po
pulações nos sertões nasceram da pecuária e do seu com ércio, da mineração e de
uma econom ia de subsistência cujos produtos circulavam nos mercados locais.
N ão há dúvidas de que os Sertões das boiadas é o lugar das contradições descritas
pelo escritor-poeta E uclides da C u n h a por volta de 1900: “barbaram ente estéreis,
m aravilhosam ente exuberantes (...), é um vale fértil, um pom ar vastíssimo sem dono”.14
' ■ ■ ■' js,
C a m in h o s M a r ít im o s : o S u l
O grande problem a que a B ah ia foi obrigada a enfrentar durante todo o século XIX,
principalm ente depois da década de 1 8 7 0 , foi o de seu desenvolvim ento agrícola, com
a im plantação de cu ltu ras diversificadas em regiões que, até então, tinham permane
cido m arginalizadas, fosse porque os m eios de com unicação entre Salvador e sua
jh in terlân d ia eram de m á q u alid ad e, fosse porque a seca e as distâncias do Sertão
intim idaram d u ran te m u ito tem po os novos colonizadores, a não ser quando se tratava
de instalar currais para boiadas ou, entre 1840 e 1860, encontrar filões de ouro ou
diam antes. Restava o extrem o sul da Província, até o vale do M ucuri, um a espécie de
haste que faz fronteira com o E spírito Santo, estendendo-se ao longo do litoral, com
profundidade que não ultrapassa 150 quilôm etros. Rica em água e florestas, fértil,
ligada a Salvador por via m arítim a, testem unha, ainda hoje, a corrida às úteis terras
costeiras, característica dos prim órdios da colonização do Brasil. T ornar essa região
um novo Recôncavo parecia ser sonho possível. M as era preciso descobrir qual o
melhor produto a ser alí cultivado. Desde fins do século XVIII, Baltazar da Silva
Lisboa, ouvidor (cargo correspondente ao atual juiz de direito) da comarca de Ilhéus,
demonstrava incansavelm ente as possibilidades de exploração agrícola da região. Dois
notáveis da colônia, os irm ãos M anuel Ferreira da Câm ara Bittencourt e Sá e José de
Sá Bittencourt e A ccioli, publicaram trabalhos sobre seu desenvolvimento econômico.
A Coroa com partilhava o entusiasm o deles, sobretudo após a expulsão dos jesuítas,
principais senhores da região até 1 7 6 0 .1"’
Era necessário, entretanto, vencer inúmeros obstáculos. Depois da bacia do Ama
zonas, a costa sul da Bahia é a região mais úm ida do Brasil. A umidade excessiva
dificultava o cultivo de cana-dc-açúcar. Ali teinava, endemica, a m alária. E, sobretu
do, a costa estava isolada de suas terras interiores por um a vasta faixa de florestas
66 B a h ia , S é c u l o XIX
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tro p ic a is co m v ário s q u ilô m e tro s d e p r o fu n d id a d e , v e r d a d e ira se lv a , b a rre ira tão im
p e n e trá v e l q u e os novos p o v o a m e n to s d o in te rio r a n te s lig a v a m -se às c id a d e s lo n g ín
q u as d o S e rtã o d o n o rte, p re fe rin d o -a s a u m p o rto q u a lq u e r , m esm o m u ito m ais
p ró x im o . F oi esse o caso , p o r e x e m p lo , d e V itó r ia d a C o n q u is ta , q u e fazia p a rte da
c o m a rc a d e J a c o b in a , a p e sa r d e Ilh éu s e s ta r q u a tro v ezes m a is p e rto . O s reb an h o s do
rio d e C o n ta s d ir ig ia m -s e aos m a ta d o u ro s de S a lv a d o r, o q u e n ã o im p e d ia os h a b i
tan te s d a co sta s u l d e se re m o b rig a d o s a im p o r ta r , p o r v ia m a r ítim a , a carn e-seca
p ro v e n ie n te d o lo n g ín q u o P ia u í. J á sab em o s q u e n ão era p o ssív el s u b ir os rios dessa
reg ião a lé m d a z o n a d e flo re sta d e n sa ; só o J e q u it in h o n h a , co m seu s cem q u ilô m e tro s
n av eg áv eis, p e r m itia a lc a n ç a r as reg iõ es in te rio re s d e v e g e ta ç ã o m e n o s c e rra d a , m as
su a foz e ra c h e ia de lo d o e p e rig o . A lé m d isso , n o m a r, c o rre m q u a se de fo rm a
c o n tín u a , p a r a le la m e n te à c o sta s u l d a P ro v ín c ia , recifes d e c o ra l p e rig o so s p ara
n av eg an tes in e x p e r ie n te s .16 T o d a s essas d ific u ld a d e s e a a u s ê n c ia q u a s e to ta l de co lo
nos tin h a m p e r m itid o a n u m e ro sa s trib o s in d íg e n a s — p a r tic u la r m e n te a fam osa
trib o dos A im o ré s o u B o to c u d o s — p re se rv a re m s u a in d e p e n d ê n c ia n as flo restas, o
q u e to rn av a a p e n e tra ç ã o p a r a o in te rio r a in d a m a is d if íc il.
P a ra d esen v o lv er a reg ião era, p o rta n to , n e c e ssá rio p a c ific a r os ín d io s e a p rim o rar
as co m u n ic a ç õ e s. M a s os p rim e iro s esfo rço s n esse s e n tid o fo ram lo g o p o sto s de lado.
U m a e strad a e n tre C a m a m u e o S e rtã o , m a l c o m e ç a d a , fo i a b a n d o n a d a . Pontes
p ro jetad as em 1 7 9 0 n u n c a fo ram c o n s tr u íd a s .17 T e m p e s ta d e s, recifes, em b o cad u ras de
rios ch eias d e lo d o , ao q u e p a re c e , n ão im p e d ir a m q u e as ro tas co steiras fossem
p referid as aos c a m in h o s terrestres. Jo ã o C a p is tr a n o d e A b re u c o n ta de q u e m o d o , em
1 8 0 8 , o d e sem b arg ad o r (ju iz d e tr ib u n a l d e se g u n d a in s tâ n c ia )18 T o m ás N avarro
v ia jo u por v ia terrestre e n tre a B a h ia e o R io d e J a n e ir o p a ra e s tu d a r u m a nova ro ta
para os C o rreio s: “Seu itin e rá rio a c o m p a n h o u sem p re a co sta, m en o s o n d e escarpas
m u ito ab ru p tas o o b rig av am a fazer d esvio s. O s rios — sem p o n tes e sem barqueiros
— eram sub id os até o p rim e iro v a u .”19 D o p o n to d e v is ta a g ríco la , o su l d a P ro víncia
só com eço u a desen vo lver-se rea lm e n te nos ú ltim o s anos do século XIX .
N a P ro vín cia d a B ah ia, a n atu rez a foi e x trem a m en te p ró d iga em suas dádivas.
Salvad o r, seu porto e sua h in te rlâ n d ia p ró x im a parecem ter sid o m ais bem aq u in h o a
dos. M as, desde o século XV III , os b aian o s m ais c lariv id en tes já co n h eciam as riquezas
inexp loradas d a P ro víncia. Por q ue não foram elas d ev id am en te ap roveitadas? F alta d e
cap itais e escassez de hom ens? F.m S alv ad o r e em seu R ecôncavo devem ser en co n tra
das m u itas respostas a tais pergun tas.
LIVRO II
O P e so dos H omens
C A P Í T U L O 5
O P apel da H ist ó r ia
Q uais os hom ens ad equado s para povoar essa cap itan ia com tan tas regiões severas e
inóspitas? D ecerto hom ens fortes, d ecid id o s, dispostos a não m ed ir esforços, p rin
cipalm ente quando se estab eleciam a centen as, às vezes m ilhares, de quilôm etros da
costa bem m ais acolhedora, b an h ad a pelo oceano que aproxim a o em igrado da pátrla-
mãe e é prom essa constante de u m possível retorno. Instalado perto do litoral, se o
hom em se cansar de viver exilad o — seja p o rq ue o exílio não cu m p riu suas promessas,
seja porque, tendo prosperado, ele deseja acabar seus dias com a fam ília e em sua
aldeia, que m uitas vezes o viram u m a e o u tra p artir adolescente — o cam inho está lá,
ao seu alcance. M as o ho m em q ue se fixo u no A greste ou no Sertão interpôs entre ele
e os seus um a travessia su p lem en tar que, m u itas vezes, d ificu lta a realização do sonho
de um pronto retorno.
Q uantos foram esses hom ens in trép id o s que, d u ran te quase três séculos, ocupa
ram e povoaram o vasto territó rio que form ava, no século XIX, a Província da Bahia?
A resposta a essa p ergun ta pressupõe o con hecim ento da evolução das formas de
ocupação da terra e a análise das precárias fontes disponíveis para o estudo das popu
lações baianas. -
O atual Estado da B ahia nasceu paralelam ente à conquista do Brasil pelos portu
gueses no século XVI. Os índios encontrados no lito ral eram T up is, que ali se haviam
estabelecido dois séculos antes, vindos, segundo se supõe, do A lto X ingu. Teriam
conseguido expulsar para o interio r as tribos Jês, conhecidas m ais tarde pelo nome de
1 apuias. Vivendo na faixa litorânea, os T up is — T upinam bás e T up iniqu ins — foram
os prim eiros a entrar em contato com os europeus, o que explica o fato de cies serem
mais bem conhecidos por nós do que os Jês ou os C ariris. Os T upis ocupavam as
regiões costeiras, os Jês o interior e os C ariris o Nordeste. '
Até 1534, os portugueses não sc interessaram por aquela terra recém-descober-
ta, pois estavam empenhados na consolidação de suas conquistas no Extremo Oriente.
Nessa perspectiva, o Brasil representava apenas um episódio em sua marcha para
69
70 B a h ia , S é c u lo X I X
o Leste- Desse prim eiro período, a história reteve o nom e de um cam ponês do
A lentejo, Diogo Álvares, dito o C aram u ru , 1 que chegou aproxim adam ente em 1511.
A dotado pelos indígenas, ele se tornou o p atriarca dc um a lon ga linhagem de
m am elucos, mestiços de branco e índio . Personagem m uito controvertido entre os
historiadores brasileiros — que, por vezes, o consideram um traidor da causa por
tuguesa e, por outras, o prom otor das boas relações entre os europeus e os indí
gen as no co m ércio do p a u -b ra sil e dos v ív eres in d isp e n sá v e is ao reab asteci
m ento dos navios — , o fato é que D iogo Álvares ali estava, pronto a oferecer seus
serviços, quando, nos anos 1530, m udou a p o lítica portuguesa em relação ao Brasil.
A presença co n tín u a, na costa b ra sile ira , de navio s estran g eiro s — sobretudo
franceses — to rn ara-se u m a am eaça p alp áv el p ara a q u e la in acab ad a conquista
am ericana.
A fixação de povoadores dc origem européia em regiões em que a população
autóctone era pouco num erosa e nôm ade só se fez com a criação de núcleos urba
nos. U m prim eiro passo dessa nova po lítica fora dado quando, em 1531, M artim
Afonso de Sousa fundou em São V icente, no atual Estado de São Paulo, um pri
meiro núcleo de povoam ento estável. T rês anos depois, em 1534, dom João III de
cidiu oficialm ente colonizar o Brasil, in stituin d o o sistem a de capitanias hereditá
rias que tin h a dado bons resultados nas ilhas do A tlântico um século antes. Assim,
o Brasil foi dividido em quinze cap itan ias, cabendo a da B ah ia de Todos os Santos
a Francisco Pereira C outinho,
N ão temos o propósito de d iscu tir aqui as vicissitudes dessa breve tentativa de
colonização, destinada ao fracasso por causa da falta de hom ens e de capital, das
desavenças internas entre colonizadores ou entre estes e os indígenas, ou da escolha
de locais inadequados para as prim eiras povoações. O fracasso foi quase geral, pois
só as capitanias de Pernam buco e de São V icente conseguiram prosperar.2
D ecidida a instalação de um governo geral, em 1549 o capitão-m or Tomé de
Sousa desembarcou na baía de Todos os Santos para fundar a capital do Brasil, quase
cinqüenta anos dcpoís da passagem dc Am érico V espúcio pelo local. Encontrou ali
não mais do que os restos incendiados de um a pequena aldeia, que ficou conhecida
como V ila Velha, c uns cinqüenta habitantes de origem européia que viviam sob a
proteção dc Caram uru c seus fiéis am igos índios.^ Seguindo ordem expressa de dom
João III, I omé de Sousa escolheu um novo local, “mais para dentro da baía”, para
instalar os homens que o acompanhavam. No R egim ento que estabelecia direitos e
deveres do capitão-mor, o rcí determ inava fossem construídas “uma íortaleza e uma
povoação grande c forte, cm loca! conveniente, para. a partir dali, ajudar os outros
povoamentos e adm inistrar justiça”. Iim dois meses foram levantados os armazéns da
Cídade Baixa e, na Cidade Alta, o palácio do governador, a Câm ara M unicipal, o
bispado e uma primeira igreja, a dc Nossa Senhora da Ajuda. Tratava-se, evidente
mente, dc frágeis construções dc taipa. Dois anos mais tarde as chuvas de inverno
destruíram uma parte da muralha que as cercava.
SSvíp>>,..
L iv r o II - O P e so d o s H o m e n s 71
O que im pressiona nessa B rasília do século XVI é seu traçado regular, apesar do
terreno acidentado que já conhecem os.4 Os habitantes c as autoridades tentaram
conservar esse mesmo traçado quando, no fim do século XVI, a cidade ultrapassou
seus lim ites prim itivos, espalhando-se sobre os morros e os vales das cercanias. No
recinto da cidade ton ificada, protegido por numerosas torres, o espaço era repartido
por sete ruas: quatro lon gitudinais em relação à costa c três transversais. Elas desem
bocavam em duas praças: a da A juda, diante da igreja de Nossa Senhora da Ajuda, e
a do Palácio, cercada por edifícios adm inistrativos. T inha-se acesso à cidade por duas
portas: a de San ta Luzia, ao sul, que ligava Salvador ao prim itivo povoado de V ila
Velha e à sua paróquia de Nossa Senhora das V itórias; e a de Santa C atarina, que se
abria para o norte. A lgum as décadas m ais tarde, essas portas tom ariam o nome dos
conventos que foram construídos nas suas proxim idades: a do sul passou a ser cham a
da porra de São Bento e a do norte, porta do C arm o.
É inútil tentar avaliar a população desse prim eiro núcleo urbano, que reunia
os hom ens chegados com o fu n d ad o r, in d íg en as utilizado s como m ão-de-obra,
alguns em igran tes p o rtugueses e um co n tin g en te de m arin h eiro s em trânsito.
Só sabemos que, já em 1552, duas paróquias — a da Sé, dentro do recinto fortifi
cado, e a de Nossa Senhora das V itórias (V itória), na velha aldeia de Diogo Álvares
— repartiam entre si os fiéis da cidade, o que dem onstra que os sobreviventes da
prim eira tentativa de povoam ento não se haviam unido aos homens de Tomé de
Sousa dentro da área pro tegida.5 A existência de um a paróquia além -m uros prefigu-
rava a vocação din âm ica do prim itivo núcleo oficial. R apidam ente, a cidade ultra
passou seus exíguos lim ites, estabelecendo-se um jogo perm anente entre uma sede
urbana que tinh a seus próprios pomares e hortas e o campo vizinho, urbanizado,
que se sentia parte da cidade-capital. A partir da década de 1560, as portas do re
cinto fortificado p erm aneceram abertas, e a m u ralh a foi deixada praticam ente
destruída. '
A cidade e seus novos prolongam entos além -m uros, Palma e Desterro, temiam tão
pouco ataques inim igos que, sem efetiva proteção, foram conquistadas facilmente
pelos holandeses — é verdade que por pouco tempo — em 1624/’ Na época, âs
ladeiras da Conceição c da Preguiça — esta últim a assim chainada porque se podia
percorrê-la de carroça, cm pequenas carruagens ou em cadeirinhas de arruar , que
ligavam a C idade Alta à C idade Baixa, tinham sido acrescentados dois novos ca
minhos, as ladeiras do Tabnao c da M isericórdia, que levavam, como as primeiras, a
cinco pontos de desembarque: o arsenal, o da pesca, o do desembargador Baltasar
berra/,, o das amarras e, finalm ente, o dos padres, que pertencia aos jesuítas. A Cidade
Baixa, qnc algumas décadas antes não passava de um depósito, transformara-se num
ativo mercado, local de troca entre as mercadorias vindas da Europa ou do Oriente e
os produtos da terra, trazidos pelos agricultores da região: produtos de subsistência
como farinha dc mandioca, feijão dc diversos tipos e milho — e também de exporta
ção, como pau-brasi), algodão c açúcar, no século XVI; açúcar, algodão, fumo c pau-
72 B a h ia , S éc u lo XIX
brasil, no século XVII e, no século X V III, açúcar, fum o, algodão, m adeiras diversas,
couros, álcool de cana e ouro.
O açúcar foi o produto -rei, a verdadeira riq ueza de Salvado r du ran te todo esse
período.7 Fixou o negociante à b eira-m ar, perto dos arm azéns, e fez com que estabe
lecesse ali seu d o m icílio . T an to assim que a estreita faixa de terra que acom panha o
lito ral e m orre ao pé da encosta em q ue ia sendo co n stru íd a a C id ad e A lta tornou-se
paróquia em 1623, sob a proteção de N ossa Sen h o ra da C o n ceição da Praia. As três
paróquias o rigin ais — a Sé, a V itó ria e a C o n ceição d a P raia — testem unham , cada
um a à sua m aneira, o en raizam en to de u m a colonização vito rio sa e d in âm ica. Com o
desenvolvim ento de Salvador, foram criadas sete novas paróquias: Santo Antônio
A lém do C arm o em 1638, S en h o ra de San fiA n a em 1 6 7 3 , São Pedro o V elho em
1676, S an tíssim o Sacram ento d a R u a do Paço em 1 7 1 8 , N ossa Senh ora de Brotas e
Nossa Senhora do P ilar em 1718 e, fin alm en te, N ossa Sen h o ra d a Penha em 1760.
A que crescim ento p o p u lacio n al correspo ndeu essa m u ltip licação de paróquias?
A que m u ltip licação de ho m ens, sem os q u ais nadjt p'ode ser feito e que, todos os
días, lu tam para sobreviver ou p ara en riq u ecer? N os lim ite s d e u m a dem ografia pou
co conhecida, tentarem os elu cid ar esse-problem a no c ap ítu lo q ue se segue. Lembre
mos, apenas, que o m ilh a r de "habitantes dos anos 1 55 0 estava m u ltip licado por
cinq üen ta no fim do período co lo n ial, sem levar em co n ta a h in terlân d ia vizinha,
nem a m ais afastada, onde se estabeleceram de bom grado povoadores novos ou
nativos d a cidade, con quistadores de u m espaço v irgem , m odelado à custa do pró
prio suor. U m espaço de dim ensões h u m an as, q u an d o se trata do Recôncavo; mas
afastado, lo n gín qu o e severo, q u an d o se trata do A greste e do Sertão, que juntos têm
o tam anho da França.
A C o n q u is t a d o I n t e r io r
engenho) ou por lavradores {livres ou 'obrigados' a moer sua cana em determ ina'
do engenho), Nos tempos que se seguiram , um a única am eaça pairou sobre os esta
belecim entos agrícolas do Recôncavo: o risco dc um a invasão dos holandeses. Esres, já
vimos, estiveram na Bahia em U>24 e novam ente cru 1638, quando um a resistência
bem organizada frustrou seus objetivos e debelou o perigo.
Acom panhados por fam ílias, agregados, escravos negros e lavradores livres ou
'obrigados', os senhores de engenho fixaram -se no Recôncavo em grande número: São
Francisco da Barra do Rio de Sergipe do C onde foi o prim eiro dos vários núcleos
populacionais que então se form aram em torno de capelas pequenas, isoladas e hum il
des. Em 1659, o povoado contava com 325 fogos e 2 .7 2 4 alm as, e catorze engenhos
tinham se desenvolvido nos seus arredores. São Francisco do C onde recebeu seu foro
em 1693, ju n to com a vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de C achoeira, que
prosperara na m argem esquerda do Paraguaçu, por onde passava o cam inho que ligava
Salvador ao Sertão do São Francisco e que servia com o centro com ercial para os
engenhos de açúcar do ígu ap e e para as plantações de fumo da região de São Gonçalo
dos Cam pos.
Duas novas vilas foram criadas no Recôncavo no século XVIII, ambas em 1724:
Santo Am aro de Nossa Senh ora da Purificação (no cenrro da região açucareira) e São
Bartolomeu de M arago jip e que, em 1759, tinha cerca de 4 .5 0 0 habitantes. M aragojipe,
Jaguaripe e Nazaré eram as principais regiões produtoras de farinha de m andioca no
Recôncavo. Assim , no fim desse século, a região contava com quatro vilas: São Fran
cisco do C onde, C acho eira, Santo A m aro e M aragojipe, além de um a quantidade de
pequenos povoados surgidos em torno das capelas das propriedades agrícolas mais
im porrantes, com o nas já citadas regiões de Jagu arip e e Nazaré.
No século XIX, o Recôncavo estava repartido em oito m unicípios: Candeias,
■São Francisco do C onde, Sanro A m aro, C achoeira, M aragojipe, Jaguaripe, Nazaré
das Farinhas c A ratuípc. A h in teríân d ía próxim a dc Salvador havia sido conquista
da, de m aneira rápida c estável, por um a população de agricultores que tentaremos
estimar com os poucos recursos que 110^ facultam ,os dados dem ográficos disponí
veis, m uito im precisos, v. f
Mas nem todos os colonos se estabeleceram no Recôncavo, à distância de um ou
dois dias de marcha da costa. O vasto Sertão não tardou a atrair os mais pobres ou
mais corajosos. Já m encionam os como o avanço das boiadas para o interior deu vida
à região. Missões religiosas, que buscavam converter os índios, tam bém ocuparam o
Nordeste baiano. B ficaram conhecidas como Filtradas as expedições que partiam de
vários pontos do litoral, subindo os rios para conquistar novas terras, fazeriguerra^aos
índios Cariris, Anaiós, Caiapós, Acroiás c Poiás ou descobrir metais e pedras preciosas.
Foram estas as três maneiras dc tomar posse do Sertão baiano, c cada uma delas “
desempenhou um papel mais ou menos im portante, segundo as regiões. O rei conce- ^
dia aos chcfcs dessas expedições as sesmarias, propriedades grandes» ;\s vezes equivalen- o
tcs a vários m unicípios. Freqüentem ente, esses chefes pediam e obtinham as sesmarias
74 B a h ia , S é c u l o XIX
antes mesmo dc haverem empreendido a conquista: “Basta ter tinta e papel para fazer
as petições de concessões , dizia Capistrano de Abreu.
As principais missões religiosas, que pertenciam aos padres da Com panhia de
Jesus, aos frades capuchinhos e aos franciscanos, reuniam índios catequizados, com os
quais os religiosos construíam capelas e organizavam plantações e currais para o gado.
Os jesuítas fundaram as missões de Nossa Senhora do Socorro, C anabrava, Saco dos
Morcegos, Naruba e M anguinhos; os capuchinhos estabeleceram aideamentos em
*■Aramuru, Rodelas, Pambu, Poxim, P a c a r u b a j:n a ilha de U rucapé; os franciscanos
tinham missão na ilha dos Guanhãs. Essas missões foram violentam ente combatidas
pelos grandes sesmeiros, que quase sempre preferiam , ao convívio, m atar ou expulsar
os índios para tomar suas terras. D urante o século XVII, as duas grandes famílias de
sesmeiros — os Ávila da Casa da Torre e os Guedes de Brito da Casa da Ponte —
conseguiram expulsar de suas terras todas as missões religiosas.
De modo geral, o desenvolvimento das povoações sertanejas e das grandes pro
priedades interioranas, tão afastadas da sede do governo, nao seguiu o modelo do
Recôncavo. No longínquo Sertão, os núcleos de povoam ento perm aneceram , durante
m uito tempo, verdadeiros mundos perdidos, isolados, com um a população rarefeita e
itinerante. Sabemos, por exemplo, que, íá pelo ano de 1759, Jerem oabo era um mi
serável agrupam ento de 32 casebres e 252 habitantes, e que, num a região'que se esten
dia por milhares de quilôm etros quadrados — a do Itapicuru e do Vaza-Barris —,
contavam-se, no mesmo ano, 4 .8 9 3 casas e 3 8 .5 1 4 habitantes, o que representa uma
densidade de menos de um habitante por quilôm etro quadrado. A descoberta de filões
auríferos na serra de Jacobina no início do século XVIII representara um incentivo
passageiro para o povoamento do Nordeste baiano. A busca de metais preciosos, de
diamantes ou de pedras semipreciosas não se distinguiu, como forma de ocupação das
terras sertanejas, da guerra m ovida contra os índios ou mesmo do ruído dos chocalhos
que retiniam nos pescoços do gado que cruzava o Sertão.
Vejamos alguns exemplos. A inda no século XVI o prim eiro dos grandes proprie
tários de gado, Garcia d’Ávila, transferiu seus imensos rebanhos da península de
Itapajipe, ao norte da baía de Todos os Santos, para a ponta de ^Itapoã.» ninVhém
situada ao norte da cidade, mas à beira do A tlântico. A li, ele erigiu sua fortaleza — a
Casa da Torre,; e dali, combatendo os índios, avançando cada vez mais para o
interior, Garcia d’Ávila e seus descendentes conquistaram imensas terras do Sertão,
chegando ao São Francisco e ao M aranhão.
Em 1671, um bandeirante veio de São Paulo para lutar contra os índios Cariris c
Jes, sob as ordens dc Alexandre Sousa Freire, capitão-mor da Bahia. Ocupou o Alto
Paraguaçu e participou da destruição do famoso quilombo dos Palmares, desmantela
do em 1675. Seu filho, Manuel Parente, estendeu as conquistas do pai até o rio São
Francisco, apossando-sc dc imensas sesmarias, que iam até a região de Itaberaba e a
serra do Cristal. Seu nome ficou ligado á abertura da estrada que permitiu a comuni
cação entre Cachoeira e o São Francisco.
L iv r o II - O P e so d o s H o m e n s 75
U ma M etró po le C o l o n ia l ?
De certa maneira, Salvador caracterizou-se pelo fato de ter sido fundada ex-nibilo. As
populações indígenas encontradas pelos portugueses eram nômades ou seminômades,
dotadas de um a organização econôm ica que se lim itava a coleta, caça e pesca. As tribos
combatiam entre si. Segundo os critérios europeus da época, elas eram pouco ‘evoluí
das’ do ponto de vista socioculturaí. 12 Não existia no Brasil nenhum a daquelas cultu- .
ras indígenas ‘adiantadas’, como as que os espanhóis encontraram no M éxico, Peru,
Bolívia e Guatemala. Não havia, por conseguinte, qualquer riqueza acum ulada que
pudesse ser conquistada. É certo que o precioso pau-brasil havia tornado rentáveis as
viagens entre o V elho M undo e o Brasil mas, a longo prazo, essa única fonte de lucros
não justificava um esforço verdadeiro de colonização e povoamento. M as a determ ina-^ ©
' ção dos portugueses criou, na C olônia, um centro produtor de açúcar, cuja expansão
exigiu a conquista de novas extensões de terra e o estabelecimento de bases financeiras A..:.-—
próprias. Ali, poderiam ser utilizadas as técnicas já experimentadas nas ilhas do A tlâ n -^ ^ J V* «
tico e a mão-de-obra negra disponível nas costas africanas. J l* ^
Na Europa, crescia cada vez mais o consumo de açúcar, que estava destinado a ser
a .principal riqueza do Brasil. Foi este produto que fixou os colonizadores, tornando
possível a ocupação permanente das terras conquistadas. Na Bahia, a experiência
colonizadora de Francisco Pereira Courinho resultou na implantação de canaviais e na
construção de três engenhos. Assim, aos imperativos polícico-administrativos que
motivaram a fundação da cidade dc Salvador em 1549, somou-se o imperativo econô
mico. A colonização criou, na Bahia, uma economia agrícola de monocultura, comple
mentar à economia portuguesa. A produção maciça de um único bem e a atrofia quase
total de manufaturas originaram , por sua vez, uma situação de dependência econômi
ca. Excluídos os panos grosseiros feitos por tecelões locais e destinados a um consumo
restrito em engenhos e fazendas, a metrópole sempre aplicou com rigor uma legislação
\a- t" *
76 B ah ia , S éculo XIX
que im pedia qualquer rentativa de desenvolvimento do Brasil colonial. Este não foi o
caso, por exemplo, da América Espanhola; no M éxico, cidades como Puebla e Oaxaca
devem sua prosperidade no século XVII à instalação de m anufaturas de tecidos.
Salvador foi um a metrópole colonial? Até que ponto esse tipo de relação de domí
nio entre Portugal e seus postos avançados no Novo M undo autoriza qualificar como
metrópole um a cidade colonial, mesmo quando ela preside os destinos de uma vasta
região? Que é uma metrópole? Pode-se falar de m etrópole colonial?
Há m uito tempo a definição de m etrópole não m ais se baseia no fato de uma
cidade ter pelo menos cem m il e no m áxim o setecentos m il habitantes. Atualmente
predominam critérios relativos ã função exercida: “É m etrópole qualquer cidade que
não dependa de outra cidade, que se situe no topo da organização urbana, podendo
assim colocar-se em pé de igualdade, sem qualquer dependência, com as outras cidades
que se encontram na mesma situação.”13 Para ser dign a desse nom e, um a metrópole
tem o dever de urbanizar as regiões que lhe são próxim as e de m oldar as atividades do
campo vizinho de acordo com suas próprias necessidades.
Essa definição se aplica m al, é claro, ao m odelo de m etrópole colonial, pois esta
deriva sua existência das necessidades e da vontade de outro centro, que exerce o
dom ínio, em geral situando-se geograficam ente m uito longe da colônia, como Lis
boa, Londres, Am sterdã ou Sevilha. O riginariam ente, m etrópole é, por conseguinte,
“um Estado ou um a cidade considerada em relação a suas colônias, a seus territó
rios exteriores”.14 É esta, certam ente, a definição prim eira. Só por extensão é que se
passou a usar esse termo para designar a cidade m ais im portante de uma região ou
de um país.
Pierre George define dois tipos de m etrópole. O prim eiro deve possuir “organis
mos completos, característicos do conjunto dos m ecanism os econômicos do mundo
capitalista”. O segundo é representado por cidades fundadas com objetivos comerciais
por populações em igradas durante o período colonial, tendo som ente dois setores de
atividade: o setor prim ário regional e o setor terciário .15 Em geral, as metrópoles
coloniais correspondem a essa segunda categoria. Estava neste caso Salvador, cidade
portuária, em inentem ente com ercial e cuja atividade principal era, sem dúvida, o
encaminhamento, para o exterior, dos bens de consumo produzidos em sua hinrerlândia.
As metrópoles coloniais eram fortem ente marcadas pela influência do mundo
rural a que estavam ligadas. Como regra geral, não passavam de simples pontas-de-
lança do mundo voraz das nações colonizadoras e não podiam exercer o papel metro
politano que, cm circunstâncias diferentes, sua massa e seu peso humano lhe poderiam
ter conferido. Por outro lado, as metrópoles coloniais crescem c prosperam em detri
mento da região em que se situam . As pequenas cidades fundadas para estender sua
influência ao campo nunca conseguem seguir seu ritmo de crescimento e, muito
menos, superá-la em importância e vigor e c o n ô m ic o ,E sse crescimento macrocéfalo
das metrópoles herdadas dos tempos coloniais ainda pode ser constatado em quase
todos os países do Novo Mundo.
L iv ro II - O P eso d o s H om ens
77
sucessos haviam escondido de seus h ab itan tes as pesadas lim itaçõ es estruturais que
deveriam ter sido vencidas em tem po h ábil. A B ahia, que sem pre soubera adaptar-se
aos ritm os co n ju n tu rais da época co lo n ial, perdeu toda a sua capacidade de integração,
no m om ento preciso em que, com a In dep en dên cia, nova era se abria para o país.
T in h a chegado a hora dc ten tar investir em in d ú strias locais e de tirar partido de
riquezas não agríco las. Era o m o m ento de ten tar libertar-se do ju go e das influências
das cu ltu ras p o rtuguesa, francesa ou in glesa, para criar, com a experiência de dois
séculos de v id a co m u m de branco s, negros e ín d io s, u m a co m u n id ad e aberta e d in â
m ica. M as, em vez disso, os b aian os — orgulh osos de seus sucessos passados, que
desejavam preservar — recu saram crescen tem en te o que fora a sua força: um a ex
traord inária facu ld ad e de a d ap tação à v id a do d ia-a -d ia, u m a flexib ilid ad e dian te de
constrangim entos de to d a espécie.
N ossa p rin cip al tarefa será, p recisam en te, a de propo r algum as explicações para
essa in ad ap tação de S alv ad o r d ia n te dos in ú m ero s desafios lançados pela Independên
cia recém -p ro clam ad a a h o m en s q ue se ju lg av am preparados p ara recebê-la. M as, antes
de tentar co n h ecer a q u a lid a d e dos h o m en s q u e fizeram a B ah ia do século XIX,
precisam os co n h ecer o seu n ú m e ro , assim com o as e stm tu~ r '
ad m in istrativas q u e os en q u ad rav am .
Ta í (t i '
CAPÍTULO 6
P opulações da P r o v ín c ia da B a h ia
Pan o ram a G eral ( 1780- 1890)
Um S é c u l o d l A v a l ia ç õ e s I m p r e c is a s : 1780-1872
82
L i v r o II - O P e s o d o s H o m e n s 83
Esses com entários levam a pensar q u e o recenseam ento de 1 7 7 9 , ou o que dele nos
resta, não é m ais confiável que os outros, co n trarian d o a o p inião do historiador inglês
F .W .O . M orton, que afirm a tratar-se de “th e m ostdefensableX V IIIth cen tu ry popu lation
c o u n f .8 Dos 2 7 7 ,0 2 5 h abitantes recenseados em 8 7 paró q u ias, 5 7 ,3 % estavam na
com arca da B ahia (que in clu ía a cap ital, o R ecôncavo e parte do A greste), 8,7% na de
Jacobina, 6 , 1% na de Ilhéus, 3% na de Porto Segu ro , 1 9 ,4 % na de Sergipe dei Rei ç
5,5% na do E spírito Santo.
T A B E L A 2
C o m a r c a s, P o pulação e P a r ó q u ia s da C a p it a n ia da B a h ia , 1779
C om arcas P o p u l a ç Ao P a r ó q u ia s
Bahia 158.671 48
Jacobina 24.103 6
Ilhéus 16.313 7
Total 277.025 87
Fonte: Recenseamento de 1779. Adaptado de Ignácio de Cerqueira e Silva Accioli, M em ória s históricas
e p o lítica s da P rovín cia d a Bahia, v. 3, nota 12, p. 83.
Seja com o for, o recenseam ento de 1779 foi o ú ltim o do século, pois nas duas
décadas seguintes só foram feitas avaliações. Em 1781, José d a Silva Lisboa, futuro
V isconde de C airu , estim ou a p o pulação d a B ah ia em 2 4 0 m il alm as.9 Os números
fornecidos por V ilh cn a em 1800 tam bém não in sp iram gran de confiança, pois são
contraditórios — ora o auto r m en cio n a 2 1 0 m il, ora 3 4 7 m il alm as, para o conjunto
da C a p ita n ia 10 — , mas seus dados m erecem ser analisado s, p rin cip alm en te quando se
referem às paróquias urbanas e rurais de Salvado r e a outras paróquias da Capitania,
V erificam -se, portanto, disparidades, que podem ser explicadas de duas manei
ras: ou os recenseam entos não passavam de sim ples estim ativas, ou então alguns de
les não levavam em conta um a parte da população, sem que isso fosse explicitam en
te indicado. M esm o assim , eles fornecem alg u m as ordens de grandeaa, para *
Província c para o país. O historiador norte-am ericano D auril A lden, que estudou
o recenseamento de 1776, estim ou que, na época, o Brasil abrigava 1,5 milhão de
pessoas, assim distribuídas: M inas Gerais, 2 0 ,5% ; Bahia, 18,5% ; Pernambuco, 15,4%;
Rio de Janeiro, 13,8% ; São Paulo, 7 ,5 % . Todas as outras capitanias tinham menos
de 4% da população.”
Em 1805, um recenseamento eclesiástico contou 3,1 m ilhões dc habitantes no
Brasil, 535 mil dos quais (17,2% ) na Bahia. C om parado ao de 1779, esse número
indica um crescim ento populacional dc 91,3% . Embora pareça exagerado, ele é coc-
L i v r o II - O P e so d o s H o m e n s 85
rente com o que teria ocorrido em todo o país, pois a população brasileira teria mais
do que dobrado nesse período (1 7 7 6 -1 8 0 5 ). A distribuição dos habitantes pelas capi
tanias era sem elhante à apresentada acim a, com pequena perda relativa por parte das
mais povoadas. 12
Pesquisando os papéis do A rquivo da C idade de C achoeira, a historiadora norte-
am ericana C atherin e Lugar descobriu outro recenseam ento, que data de 1808 e apre
senta um quadro m ais coerente: o côm puto da população foi efetuado por com arca, a
população livre foi separada da escrava e, em cada um a dessas categorias, os habitantes
foram indicados segundo a cor de sua pele, em bora sem distinções de sexo ou idade.
Das 411.141 pessoas recenseadas, 2 1,6% foram consideradas brancas, 1,4% índias,
43,0% negras e m ulatas livres e 3 3 ,9 % negras e m ulatas escravas. 13
Levando-se em conta esses núm eros, entre 1779 e 1808 teria havido um cresci
mento po pulacional de 4 8 ,4 % . E lim in an do-se do recenseam ento de 1779 os dados
referentes à com arca de Sergip e dei R ei (5 4 .0 0 5 habitantes) e à C ap itan ia do Espí
rito Santo (1 5 .6 0 0 h ab itan tes) e do censo de 1808 o$ dados relativos à C ap itan ia
de Sergipe dei R ei, obtém -se um a progressão da ordem de 6 2% para a população da
C ap itan ia da B ah ia p ro p ria m e n te d ita . É preciso não esquecer que, às perdas
de territórios que a B ahia sofreu na década de 1820 (Espírito Santo e Sergipe), acres
centaram-se ganhos na região do São Francisco, até então subordinada a Pernambuco,
M as tudo in d ica que a perda em hom ens não foi com pensada, pois havia pouca
gente nas terras então incorporadas.
Entre 1814 e 1 8 1 7 , outro ‘recenseam en to’ (que serviu de base a um relatório
apresentado à C oroa por V eloso de O liv eira) avalio u a população baiana em 5 92.908
habitantes, o que parece exagerado. N este caso, provavelm ente foi aplicado um coefi
ciente arbitrário de 2 5% sobre os dados do censo eclesiástico de 1 8 0 5 .14 M ais adiante
no século XIX, d u ran te m u ito s anos, só encontram os estim ativas: em 1824, Adrien
Balbi calculou a população da B ah ia (inclusive Sergipe) em 8 58 m il habitantes, mais
do dobro do total apontado pelo recenseam ento de dezesseis anos antes, com a seguin
te distribuição: brancos, 2 2 ,2 % ; índios, 1,4% ; negros e m ulatos livres, 15,0% ; negros
e mulatos escravos, 6 1 ,4 % .13
Em 1845, M illet de Sain t A dolphe avaliou a população da Província em 650 m il
habitantes, núm ero m ais razoável, em bora relativam ente baixo, sobretudo se com pa
rado ao do censo de 1872, que será analisado adiante. F inalm ente, na época da Guerra
do Paraguai (1 8 6 5 —1870), Sebastião Ferreira Soares estim ou que a Bahia tinha 1,45
milhão de habitantes, dos quais 1,17 m ilhão livres, 280 m il escravos e 20 m il índios
sem dom icílio fixo, mas já parcialm ente civilizados. Esses números parecem exagera
dos, quando com parados aos do censo mais confiável, realizado em 1872 (1 .3 7 9 .6 1 6
habitantes).
Todas essas inform ações deixam a desejar, inclusive porque faltam estudos basea
dos nos registros paroquiais. Não obstante, é possível fazer algum as observações de
ordem geral.
B ahla. S é c u lo X I X
T A B E 1.A 3
século X IX mostram que a população de negros e m ulatos aum entou mais rapidam ente
que a população branca. M as, se Balbi subestim ou o peso dos negros e mulatos, em
compensação cie superestim ou consideravelm ente o núm ero de escravos existentes na
Bahia e em Sergtpc. Esta população aum entou m uito durante os trinta prim eiros anos
do século XIX, pois os africanos foram trazidos em grandes massas, geralm ente da África
O cidental — Sudão, às vezes A ngola — para acom panhar o verdadeiro boom açucarei-
ro do fim do século X V II1 e do Início do século X IX. 17 Se nos basearmos, porém, nos
números de 1808, maís seguros, e acrescentarm os um a m édia de sete m il escravos
importados por an o ,18 chegarem os a 2 5 1 .3 9 1 escravos — isto é, menos da metade do
número apresentado por Balbi — , o que nos dá um a participação de 4 3,54% de
escravos na população total da B ahia, percentual com parável ao de 1808 (33,9% ).
Em resumo, o que se pode dizer, analisando-se os dados anteriores ao censo de
1872, é que a população da B ahia sc caracterizou por um crescim ento contínuo e bem
marcado, por causa da im igração de populações brancas e da im portação de negros
africanos, cuja chegada acelerou-se no fim do século XVIII e no início do século XIX.
Não se conhece o peso do crescim ento vegetativo. C om o a taxa de reprodução dos
escravos era m uito baixa e a de m o rtalid ad e m uito elevada, 19 pode-se concluir que a
taxa de natalidade entre os brancos {e possivelm ente tam bém entre negros e mulatos
livres) era m uito m ais elevada.20 M as tais afirm ações, infelizm ente, não se baseiam em
estudos num éricos bem fundam entados.
1,45 m ilhão de habitantes para a Província. V icente V iana, tam bém presidente da
Província, m encionou 1,38 m ilhão em sua M em ória sobre o Estado da Bahia , de 1893.
Apesar de todas essas restrições, consideram os m erecedor de crédito e relativamente
rigoroso o recenseamento de 1872. Q uanto ao de 1890, passa-se o contrário: seus
métodos e resultados são quase unanim em ente contestados, de modo que faremos um
uso apenas parcial dos dados que apresenta.24
De qualquer forma, pode-se afirm ar que só na segunda m etade do século XIX a
Bahia tomou posse de seu território. Por volta de 1800, a Província contava com 71
aglomerações — povoações, lugarejos, paróquias, arraiais ou vilas, algum as com deze
nas de habitantes — , das quais 36 no Litoral ou nos dois recôncavos. Em dezesseis
casos, tratava-se de antigos aldeam entos indígenas, quase todos adm inistrados pelos
jesuítas até a expulsão destes em 1759. Em 1872, com prováveis 1 .3 79 .6 16 habitantes,
a ocupação do território continuava m uito dispersa, e os lim ites dos 72 m unicípios —
todos com sedes da adm inistração local e pontos de confluência dos m oradores, na sua
m aioria agricultores — eram extrem am ente vagos. M as em 1890 já havia 110 sedes de
m unicípio, das quais som ente 46 estavam no lito ral ou nos dois recôncavos. A criação
de novos m unicípios correspondia a um crescim ento dem ográfico ou a um a distribui
ção diferente dos habitantes pelo território?
TABELA 4
B a h ia 1 5 8 .6 7 1 2 4 9 .3 1 4 7 6 7 .4 2 6 l . 0 5 2 .0 2 0
ja c o b in a 2 4 .1 0 3 5 3 -8 5 4 4 9 8 .9 6 7 7 2 8 .9 7 9
Ilh é u s 1 6 .3 1 3 2 3 .7 8 0 8 8 ,8 9 4 9 7 .5 3 2
Porto Seguro 8 .3 3 3 9 .1 2 4 2 4 .8 9 9 2 4 .9 1 1
Total 2 0 7 .4 2 0 3 3 6 .0 7 2 1 .3 8 0 .1 8 6 1 .9 0 3 .4 4 2
Fontes. (1) Recenseamento do Marquês dc Valença, in Ign íd o de C erqucira e Silva Accioli, M em órias históricas ep olítica s da
/ roLíncia íZj Bahia , v, 2, nota 12, p. 83; (2) Cadastro da população da P rovín cia da Bahia coordenado no ano d e iSOS, Arquivo
M uniripal de Cachoeira, (3) Bahia, Sergipe, ParanÁ, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (Livros Raros), p. 506-6! t; (4)
hynopse do recenseam ento d e 31 d e dezem bro de !8 lJO, p. 151-157.
sido m elhores do que nas proxim idades da capital ou no Litoral Sul, particularm ente
quando se levam em conta as severas variações clim áticas que castigaram as regiões
sem i-áridas, ora sob forma de seca, ora de um a pluviosidade excessiva, destruindo as
culturas de subsistência e trazendo duros períodos de fome (entre 1809 e 1889, in
term itentem ente, foram registrados 25 anos de secas e onze de pluviosidade excessi
va) .26 É verdade que o Agreste e o Sertão não foram atingidos pela epidem ia de
cóíera-m orbo que devastou Salvador e seu Recôncavo em 1855, mas a grande seca
dos anos 1 8 5 7 -1 8 6 0 e a pluviosidade anorm al dos anos 1 8 6 1 -1 8 6 2 foram certam en
te tão nefastas para as zonas sem i-áridas e áridas quanto o cólera-m orbo para Salva
dor e seu Recôncavo.
Entre 1800 e 1890 o núm ero de paróquias na região de Jacobina passou de treze
para 56 (crescim ento de 3 3 0 % ). Isso é significativo, pois no século XIX as paróquias
eram a unidade de base ad m in istrativ a, já que o Estado m odelava suas estruturas pelas
da Igreja. No m esm o perío do, o núm ero de paróquias passou de sete para oito na
comarca de Porto Seguro, de catorze para 22 (57% ) na de Ilhéus e de 36 para 110
(205% ) na da B ahia, onde estavam Salvador e seus arredores.27
O forte crescim ento do in terio r da Província b aian a no século XIX é confirm ado
pelos núm eros, incom pletos e subestim ados, fornecidos para o ano de 1800 por Luiz
dos Santos V ilh e n a .2S Esse auto r — que se refere a apenas 177*787 habitantes em toda
a C ap itan ia — trab alh o u com u m docum ento eclesiástico em que só figuravam as
aglomerações co n stitu íd as em paróquias. No entanto , na época, existiam núcleos (às
vezes com forte densidade po pu lacio nal) a que não havia sido conferida essa condição,
Detendo o m onopólio das nom eações para os curatos e os benefícios, m as, em contra
partida, sendo obrigado a prover sua subsistência, o rei de Portugal não tinha pressa
em criar novas p aró q u ias.2"1 A lém disso, as aldeias indígenas, mesmo depois de colo
cadas sob adm inistração leiga, nao eram autom aticam en te transform adas em paróquias.
V ilhcna oferece o que ele m esm o cham a de “m apa de todas as freguesias que
pertencem ao arcebíspado da B ah ia”, seguido de outro que contém não vulgares
notícias de m uitas aldeias de índios que por ordem régia hoje são vilas . Das 36 aldeias
citadas, 27 pertenciam à C ap itan ia da B ahia. Elevadas à condição de vilas depois da
expulsão dos jesuítas, elas receberam vigários nom eados pela adm inistração real. Mas
os dezessete aldeam entos restantes ain d a eram adm inistrados por capuchinhos italia
nos, franciscanos e frades da O rdem do C arm o (carm elitas).30 São vagas as inform a
ções sobre a população dessas aldeias indígenas: o rccenseamenro era feito por lugare
jos, mas ignoram os a com posição dos mesmos. Entretanto, apesar das restrições que
podem ser feitas aos núm eros fornecidos por V ilhcna, eles nos pareceram utilizáveis
para um a com paração dc ordens dc grandeza (nada, aliás, nos prova que os recensea
mentos oficiais de 1872 e 1890 tenham realm ente conseguido levantar a totalidade da
população baiana).
A comparação dos dados fornecidos por V ilhena com os dos recenseamentos de
1872 c de 1890 perm ite reforçar a idéia de que um a im ensa revolução se produziu
90 B a h ia , S éculo X IX
TABELA 5
P opulação de S alvador e do R ecôncavo em 1872
Salvador 5 9 .8 1 9 5 2 .8 2 2 8 .2 0 1 8 .2 6 7 1 2 9 .1 0 9
R ec ô n ca v o * 1 6 0 .6 7 8 1 4 4 .4 9 7 3 2 .5 0 6 2 5 .9 4 2 3 6 3 .6 2 3
Torai 2 2 0 .4 9 7 1 9 7 .3 1 9 4 0 ,7 0 7 3 4 .2 0 9 4 9 2 .7 3 2
(’ ) Corresponde aos municípios de Abrantes, Maca de São João, Conde, Abadia, Cachoeira, Maragojipe, Tapera, Santo
.Amaro. São Francisco, Nazaré, Jaguahpe e Itaparica,
Fonte: Adaptado do recenseamento de 1872.
período colonial essas regiões tiveram um desenvolvim ento m edíocre. Apesar disso,
durante m uito tem po as povoações e vilas que nasceram ali, nas em bocaduras dos rios
ou nas baías protegidas da força do m ar, íoram apreciáveis fornecedoras de víveres e de
m adeira para a capital, que solicitava farinb a de m andioca, arroz, m ilho, peixe salgado
e m adeira para os arsenais reais. D urante boa parte do século XIX, a estagnação dessa
que cham am os Zona B deveu-se à perda de sua posição de principal fornecedora de
alim entos à capital. A ab ertura de vías de com unicação fez com que o Agreste ocupasse
esse lugar.
Não faltaram , contudo, iniciativas para diversificar a produção agrícola e criar
novas oportunidades no sul do Recôncavo. Em C am am u e V alcnça, por exemplo, um
café considerado de excelente q u alid ad e34 foi cultivado na década de 1820, em bora
essa cultura não atingisse ali desenvolvim ento sem elhante ao que teve no Sudeste (no
Brasil, o café foi plantado pela p rim eira vez em V içosa, M in as G erais, no fim do século
XVIII). A produção de cacau perm aneceu insignificante. T am bém houve tentativas de
estabelecer m anufaturas têxteis, aproveitando a energia das quedas d ’água ali existen
tes. A construção da terceira m anu fatu ra da Província da B ahia (as duas prim eiras
datam de 1834 e foram im plantadas na capital) teve início em 1844, fruto da associa
ção de três grandes com erciantes da cidade de Salvador: A ntônio Francisco de Lacerda,
Antonio Pedroso de A lbuquerque e o norte-am ericano Jo hn Sm ith Gülmer. Eles
investiram a enorm e q uan tia de 200 m il contos de réis e contaram com a colaboração
do engenheiro norte-am ericano João M onteiro Carson, proprietário de um a fazenda
na região. Pretendiam aproveitar as quedas do U na e a m atéria-prim a produzida na
região do río das Contas para produzir panos grosseiros, próprios à confecção dos
sacos utilizados para os produtos agrícolas de exportação, das roupas dos escravos e das
pessoas pobres da Província.
Inaugurada em 1 847, a Todos os Santos enfrentou, desde o início, muitos proble
mas: sua capacidade de produção cra pouco aproveitada — pois tinha enorme dificul
dade para se abastecer da m atéria-prim a de que precisava, sendo obrigada a fazer vir o
algodão das províncias de Sergipe e de Alagoas — , sua rentabilidade era baixa e seu
mercado era lim itado. Em 1851, a sociedade foi dissolvida. Pedroso de Albuquerque
92 B a h ia , S é c u l o XIX
ficou sendo o único proprietário até 1876, ano em que a fábrica foi fechada, quando
em pregava 260 operários, recrutados entre a população livre, e trabalhava com 176
fiadeiras e 4 .1 6 0 fusos, produzindo 1,1 m ilhão de m etros de tecido por ano.
Nesse período, B ernardino de Sena M ad u reira havia fundado na região uma se
gund a m anufatura, a N ossa Senhora do A m paro, que não teve destino mais feliz
V en d id a em 1869 à fam ília Lacerda, em 1887 passou às mãos d a V alença Indus
trial, fundada pelos com erciantes Jo sé Pinto d a Silva M o reira e D om ingos Gonçal
ves de O liveira, transform ada em sociedade an ô n im a em 1899, N a década de 1850
foram criadas um a fábrica de vidro (1 8 5 4 ), u m a fundição de ferro e bronze (1857)
e um a serralheria, mas todas m u ito pequenas. As experiências industriais da região
pararam por a í.35
Às m argens do rio P eruíbe, no m u n icíp io de C aravelas, no L ito ral Sul, desde 1818
o café era p lan tad o na colô nia su íço -alem a de L eo po ldina, a ú n ica a u tilizar mao-de-
obra escrava. Su a produção foi de 6 .6 1 0 sacos de sessenta quilos em 1836 e de 24.384
sacos em 1853. A co lô n ia com o ta l desapareceu em 1861, mas os colonos se estabele
ceram no local à frente de prósperas fazendas de café. D epois da A bolição da Escrava
tura, em 1888, os escravos foram em b o ra das plantações e a falta de mão-de-obra
arru in o u os proprietários, que tam bém d eix aram a região, ficando ao abandono a terra
exuberante, n a au sên cia de braços para colh er seus frutos,36
A h o stilid ad e do m eio físico e h u m an o e a fa lta de co n tin u id ad e das empresas
agrícolas e in d u striais explicam a estagnação dessa gran de zona, cujo ritm o de cresci
m ento po p u lacio n al foi o m ais fraco d a P ro víncia: em 1872, ali se concentravam 8,3%
d a população, p ercen tual q ue caiu p ara 6 ,4 % em 1890. Só na ú ltim a década do século
se generalizou a cu ltu ra do cacau, q ue se to rn o u o p rin cip al produto de exportação do
Estado d a B ahia e co n trib u iu sign ificativ am en te para povoar Ilhéus, Canavieiras e
B elm onte, que receberam num erosos m igran tes, vindos sobretudo de Sergipe, do
Recôncavo e do sul de M in as G erais.37
A terceira zona (C ) englobava todo o resto d a Província, m as essas imensidões
podem ser divididas em três subzonas. A p rim eira delas é o Agreste, região situada ao
norte da cidade de Salvador (com lim ites entre A b adia e Jerem oabo) e que se estende,
a oeste, por todo um território em torno de F eira de Santana, im portante mercado
para o gado do Sertão. A li o povoam ento é antigo : várias das atuais sedes de m unicí
pios nasceram de aldeias indígenas. A região produzia cana-de-açúcar, fumo e cereais
e sua pecuária era m uito desenvolvida, exceto nos m unicípios atingidos pelas secas,
como Santo A ntônio da G lória. O escoam ento da produção se fazia pelas precárias vias
tradicionais, fluviais c terrestres, mas, a partir de J 863, um a linha ferroviária ent^
A lagoinhas a Salvador tornou possível um transporte m ais rápido de mercadorias.
Em 1875 outros 48 quilôm etros de ferrovias estabeleceram um a ligação durável entre
Feira de Santana e C achoeira, no Recôncavo. Desta últim a cidade era possível chegar
a Salvador por via m arítim a num a viagem de sete horas. Assim , os habitantes de Fetra
passaram a fazer ida e volta em 24 horas, enquanto por terra eram necessários três dias
L m to II - O P eso d os H om en s 93
dc deslocam entos.39 Em 1SS6, a cidade tam bém foi ligada por ferrovia a São Gonçato
dos C am pos, im portante centro produtor de fumo, mas não conseguiu ligar-se nem às
regiões de M undo Novo e ju azeiro , nem a Salvador. A construção da ponte entre
C achoeira e São Félix, inaugurada em l 88*5, colocou Feira diretam ente em contato
com o C entro-O este da Província, especialm ente com a região da C hapada D iam antina,
que tinha ligação ferroviária com C ach o eira.40
A região do C en tro-O este é vasta: vai da cidade de Orobó, que fica no pé da
chapada D iam an tin a, até o Sudoeste, onde encontra M inas G erais. Deve um a certa
concentração populacional a suas m ú ltip las atividades agrícolas e m ineradoras, que
se desenvolveram sobretudo em meados do século XIX. Povoada a partir da década
de 1720, quando foram descobertos alguns filões de ouro, recebeu novo fluxo po
pulacional depois de 1845, com a exploração das m inas de diam antes, conhecidas
desde o século XVIII e redescobertas em 1842. Elas atraíram grandes contingentes
que se foram estabelecer em Lençóis, A ndaraí e São João do Paraguaçu, no contex
to de um lrush m in erad o r’ que não d u ro u m u ito , pois a partir de 1867 os diam an
tes do Cabo (África do Sul) com eçaram a fazer concorrência aos diam antes baianos.41
A depressão na região foi grave, apesar das tentativas de desenvolvim ento das cultu
ras de café, algodão, fum o, m an d io ca e cereais, que não podiam prosperar diante da
falta de m eios de com unicação com o lito ral.42 Apesar de todos esses problemas, a
população do C en tro-O este — que, segundo V ilh ena, era de 6 .2 3 3 habitantes em
1800 (núm ero, sem dúvida, subestim ado) — passou a 191-257 em 1872 e a 303.438
em 1890, evidenciando a atração que a aventura m ineradora ainda exercia. Nessa
região, estavam 12,8% do total de escravos da Província, em sua grande m aioria
empregados na m ineração.
Finalm ente, a terceira subzona do que cham am os Zona C com preendia as regiões
que sc estendem ao extrem o Sudoeste, ao extrem o O este, ao norte de Jacobina e mais
longe ainda, englobando o rio São Francisco. É ali que se atingem as profundezas da
Província da B ahia, com seus sertanejos que vivem na dependência dos caprichos do
clim a. As principais vilas tiveram sua origem nos currais — pontos de parada durante
as longas viagens das boiadas para o m ar ou para M inas Gerais — e também nas
atividades que foram surgindo pouco a pouco e se desenvolveram graças ao comércio
do gado bovino. Logo no início da segunda m etade do século XVIII, porém, a econo
mia dessa região foi ferida m ortalm ente pela decadência das atividades mineradoras
cm M inas G erais, pelo estabelecim ento de novas áreas de pecuária nessa capitania e,
principalm ente, pela criação dc fazendas de gado mais próximas dc Salvador, sobretu
do nas regiões do Agreste, Isolado, o vale do São Francisco começou a produzir apenas
para consumo próprio, cm um sistema dc econom ia fechada.
O São Francisco cra navegável cm boa parte do seu curso, mas a utilização dessa
via levava a mercados situados íora dos lim ites da Bahia, o que dificultava a integra
ção, principalm ente com Salvador. O sertanejo não se deixava abater e procurava,
por todos os meios, estabelecer contatos com as províncias vizinhas. Casa Nova, por
94 B a h ia , S éculo X IX
exemplo, tornou-se no século XIX um a vila m uito dinâm ica, graças ao seu comércio
com o Piauí. O P residen te D antas , prim eiro navio colocado em serviço no São Fran
cisco, começou a navegar em 1873, mas um verdadeiro serviço de comunicação flu
vial só foi efetivado em 1886. A estrada de ferro só chegou a Juazeiro em 1896.
No entanto, de um modo geral a região m ostrou-se fértil, sempre que as condições
clim áticas o perm itiram : havia criação de gado, produção de cereais e plantação de
algodão, mas quase tudo era consum ido in loco. N a década de 1890, no extremo Sul
e extrem o Sudoeste, vilas com o M acaúbas, Brotas de M acaúbas e C arinhanha entra
ram em decadência, apesar da pecuária. M as o m orador dessa vasta região se agarrava
à sua terra e ao seu horizonte lim itado . Estamos longe dos grandes êxodos de popula
ções, m ais tarde atraídas pela perspectiva de um a vida m elhor nos estados do Centro-
Sul do Brasil. D urante todo o século XIX essa subzona parece ter conseguido reter sua
população, que, entre 1872 e 1890, evoluiu de 3 0 7 .7 1 0 para 425.541 habitantes.
Ao térm ino dessa longa análise, alguns com entários se im põem . A população da
B ahia aum entou durante todo o período estudado, experim entando um crescimento
particularm ente vigoroso nas regiões que apresentavam fraca densidade populacional.
Isso fica evidenciado pela criação de novas sedes de m unicípio s e paróquias, bem como
pela elevação de vilas à categoria de cidades, como foi o caso de Alagoinhas (1863),
Am argosa (18 91 ), A ndaraí (1 8 9 1 ), A ratuípe (1 8 9 1 ), A reia (1 8 9 1 ), C ondeuba (1889),
V itó ria da C onquista (1 8 9 1 ), Feira de San tan a (1 8 7 3 ), Lençóis (1864), Serrinha
(1891) e São João do Paraguaçu (1 8 9 0 ).43 Apesar disso, a atração exercida pela capi
tal e sua hinrerlândia perm aneceu m uito grande. N ão surgiu nenhum a outra capital
regional, e Salvador conservou o privilégio de urbs prin ceps, em bora controlasse mal
sua im ensa hinterlândia.
O utra constatação im portante: a população livre aum entou consideravelmente em
comparação à escrava. A proporção entre escravos e nao-escravos, que em 1808 era de
6 6 % a 34% , em 1824 passou a ser de 39% a 6 1% , praticam ente se invertendo. Em
1872, nenhum a região possuía m ais de 15% de escravos, o que mostra que a Abolição
tão-som ente ratificou, em 1888, um processo que se iniciara havia m uito tempo.44
Finalm ente, essa população se fixou sobretudo em regiões que lhe ofereceram, em
certo momento, algum a oportunidade de enriquecim ento, embora em pouco tempo a
tenham desapontado. M as, agarrando-se aos novos h ib itats, os homens criaram am
bientes que lhes perm itiram suprir as necessidades essenciais de sua existência.
F a ix a s E tA ria s e D is tr ib u iç ã o p o r S e x o n a P o p u la ç ã o B a ia n a
É possível conhecer a composição por idade, sexo, cor e origem da população baiana
de então? Só o recenseamento dc 1872 perm ite esse tipo dc desagregação, que mesmo
neste caso deve ser encarada com m uita desconfiança, por causa dos erros que apare
cem nas tabelas originais. Mas, com cias, é possível chegar a algumas ordens de gran
Ln,~Ro II - O P eso d o s H om ens 95
TABELA 6
P o p u la ç ã o M a s c u lin a d a B a h ia p o r C or, 1 8 7 2
H o m e n s L ivres H o m e n s E scravos
TABELA 7
Em linhas gerais, o perfil fem inino era quase idêntico ao masculino, embora
com um percentual mais elevado para as m eninas de raça branca. Aqui, como na
tabela precedente, o maior núm ero de pessoas idosas se encontrava entre a popula
ção de cor, fosse livre ou cativa. O percentual de mulheres caboclas idosas era prati
camente igual ao de mulheres brancas. O número de pessoas idosas era, de modo
geral, elevado, sobretudo levando-se em conra o fato de que essas populações eram
mal nutridas, mal atendidas em termos de saúde e periodicamente atingidas por epi
demias mortais. Apesar de todas as reservas enunciadas, parece mesmo assim pa*3'
doxal que entre os escravos, alquebrados pelo trabalho, houvesse maior número de
velhos que entre os homens livres. Isso talvez reforce a idéia de que homens livres
pobres às vezes vivessem em piores condições que os escravos.
O número de homens cra significativamente superior ao de mulheres, e essa
diferença era muito sensível no caso de pessoas brancas em idade de casar (entre
dezesseis e quarenta anos). Entre os negros e mulatos, ela era menor.
L ivro II - O P eso d os H om en s 97
TABEL A 8
H o m e n s e M u l h e r e s e m I d a d e de C a s a r . B a h ia , 1872
P u p u l a ç Ao L lvrf P o pu l a ç Ao E sc r a v a
Mulheres 4 9 .9 1 4 1 1 0 .5 2 8 4 5 .8 7 4 1 0 .3 6 0 1 2 .2 6 7 2 3 .5 0 9
(1 6 —4 0 a n o s )
Homens 7 0 .0 7 7 1 1 1 -7 3 6 5 9 .0 8 9 1 0 .7 7 0 15,302 2 2 .7 8 4
( 2 1 - 5 0 anos)
M atizes R a c ia is e O r ig e n s da P o p u l a ç ã o B a ia n a .
A com paração da repartição por cor captada nos recenseam entos de 1808 e 1872 deve
levar em conta que o prim eiro d istin g u iu as categorias branco, índio, negro e m ulato,
enquanto o segundo trocou ‘ín d io ’ por ‘caboclo’, termos que não são equivalentes.
Caboclo designa o m estiço de índio e branco, que norm alm ente vive no interior, como
lavrador ou criador de gado. N a linguagem corrente, a expressão é usada tam bém com
o significado de ‘hom em rude, pouco civilizado’ . Não sabemos se os recenseadores
pretenderam designar dessa form a o índio puro ou o m estiço, ou se consideraram que
o índio só existia em 1872 sob form a de caboclo.
TABELA 9
D is t r ib u iç ã o da P o p u l a ç ã o B a ia n a po r C or
P o p u l a ç ã o L ív r e P o pu l a ç ã o E sc r a v a T otal
G er a l
B ran co s Ín d io s e N egros e T otal N egro s e
C abo clo s M ulato s M ulato s
Fcwffv, (1) Rtccnscamcmo dc 1808, excluída a comarea de Sergipe dei Rei; (2) Àdapcado de População considerada cm
re la to às idade*", p. 514 do recenseamento de 1872.
rubrica “origem ignorada” figura no documento. Assim, graças aos dados referentes a0
estado civil, deveria ser possível descobrir a taxa de celibato dessa população, mas isto
não acontece. Para começar, o núm ero de escravos (homens e mulheres) é inferior em
11.250 ao fornecido pelas tabelas anteriores, e não sabemos sequer se essas pessoas
fazem parte do grupo dos 23.417 que faltam na serie sobre a origem . Esse não chega
a ser um grave problema; se somarmos o núm ero de homens e mulheres — livres e
escravos -—■que consram das quatro categorias referentes a cor, e se compararmos esses
dados com as rabelas anteriores, obtemos dados com pletam ente coerentes para a po
pulação escrava.
A situação se com plica quando se observam os núm eros referentes à população
livre. Há contradições nas categorias de cor, sobretudo entre brancos, mulatos e ne
gros. Só se retom a a coerência quando, depois de diversas comparações de tabelas, se
percebe que 9.989 negros, 56 caboclos e 1.347 brancos — todos livres — foram
‘reconvertidos’ à condição de m ulatos, o que, no prim eiro caso, num ericam ente mais
expressivo, representava sem duvida um a prom oção.
Os dados sobre as m ulheres causam um a surpresa im ediata. Elas não eram
‘reconvertidas’em m ulatas, mas ao contrário: 2 49 m ulheres passaram com sucesso no
crivo que lhes perm itiu sentirem -se brancas sem restrições. Em bora, nesse caso, as
contas não dêem resultados com pletam ente coerentes — fica faltando o destino de
4.654 mulheres — , pode-se perceber que as negras foram prom ovidas a mulatas nas
mesmas proporções que os negros. T alvez elas pudessem passar com mais facilidade
ainda pelas m alhas da triagem relativa à cor.
Seria possível fazer um estudo sobre o celibato? A parentem ente sim , mas nunca se
repetirá bastante o quanto é preciso ter cautela em relação aos dados com os quais se
trabalha. Tomemos um exemplo: no docum ento sobre a origem , 20,8% das mulatas
escravas e 17,0% das negras escravas figuram como casadas, mas isso contradiz todos
os estudos feitos até hoje com base em outros tipos de docum entos —- como, por
exemplo, os inventários p o st m ortem — que dem onstram que menos de 1% dos
escravos eram casados. Aliás, tam bém o percentual dos m ulatos e negros casados é
diferente: aqui, os m ulatos correspondem a 18,7% , enquanto os negros chegam a
23,5% ! Haveria m ulatas casadas com negros? Essa questão levanta problemas, pois as
práticas m atrim oniais na Bahia são relativam ente bem conhecidas, e um a das chaves
para o êxito social é o processo que leva a em branquecer a p ele.^ Pode ser que os
recenseadores dc 1872 tenham contabilizado na rubrica ‘casam ento’ as uniões livres,
que eram muito numerosas. Este exemplo dem onstra o quanto é aleatório e perigoso
apoiar-sc nessas informações para análises mais aprofundadas.
Supondo-se que os dados sobre a origem estivessem corretos, observamos que
eram de origem baiana 98% dessa população. As outras províncias não mandavam
Homens à Bahia, exceto as limítrofes ou muito próximas (Pernambuco, Alagoas, Sergipe
e M inas Gerais), das quais alguns mulatos livres, dos dois sexos, safam com facilidade.
O numero de mulatos que vinham de outros lugares ultrapassava o da população
L iv r o II - O P eso d o s H o m en s 99
branca que deixava a B ahia. Eram todos, na certa, gente pobre, que partia em busca
de fortuna. Os m ulatos vinham até de províncias longínquas, como Paraná, Santa
C atarina e Rio G rande do S u l. M as o núm ero de m ulatas que chegavam era inferior
ao das que partiam .
Alguns com entários se im põem ao térm ino dessa segunda análise. A população da
Província era jovem , vigorosa e m uito m iscigenada. O ligeiro desequilíbrio entre
homens e m ulheres não parece ter sido capaz dc desregular o processo de reprodução.
Essa população desigualm ente d istrib u íd a,47 concentrada sobretudo em Salvador e nas
terras interiores próxim as à cap ital, vivia em torno de centros agrícolas situados a
vários dias de m archa uns dos outros, ou em torno de centros de m ineração. Para o
habirante do Sertão, a cap ital tin h a um a existência quase m ítica. O sertanejo vivia tão
longe de tudo, tão isolado, que só de vez cm quando era atin gido pelas decisões de uma
metrópole, cujas m otivações desconhecia e cu ja opulência ingenuam ente superestimava.
Em 1872, a população b aian a eq ü iv alia a 13,9% da brasileira; em 1890, essa
percentagem caiu para 13,4% . Sua taxa de crescim ento nesse período era de 1,96% ao
ano, contra 1,83% para a população total do país. Ju n tam en te com a da Província de
M inas G erais, a população baiana era a que apresentava as m aiores concentrações
populacionais do Brasil. Sua densidade era a m aior do país: 3,2 em 1872 e 4,5 em
1890, contra 1,1 e 1,6 para a m édia geral. Com o se vê, a evidente perda dc poder
econômico não im p ediu que a Província da B ahia continuasse a ser um a das mais
dinâmicas do país. N ova contradição — e não è a últim a de um a província que
parece esbanjar m uitos de seus recursos, até mesmo o m ais precioso: sua riqueza em
homens. Será que o mesm o aconteceu em Salvador, sua cap ital?48
C A P Í T U L O 7
A C id a d e d e Salvador
100
L i\-ro II - O P eso d o s H omens 101
temente cobertas de telhas, abertas para um pequeno jardim com hortas plantadas —
que, aqui e ali, sempre em torno de igrejas, formavam os núcleos de povoação, despro
vidos de estrutura adm in istrativa.2
A C âm ara M unicipal podia conceder, a particulares, terrenos e até pequenas
sesmarias, cobrando um a taxa (foro) perpétua sobre terrenos não construídos.3 T otal
mente sem m uralhas desde o século XVII, Salvador era protegida por pequenos fortes
instalados na costa (Santo A ntônio da Barra, Santa M aria, São Diogo, São M arcelo,
M ontserrat) ou nos planaltos m ais elevados do horst {São Pedro, Santo A ntônio Além
do Carm o, Barbalho). Em fins do século XVIII já havia dez paróquias, o dobro do
número observado cem anos antes.4 No século XIX foi criada apenas um a nova paró
quia, a de M ares, datada de 1871.
Em 1757, 1800 e 1829, fizeram -se três descrições m ais ou menos precisas das
paróquias ditas urbanas. A m ais an tiga dessas descrições é um a obra coletiva, feita
pelos nove párocos locais — eram então nove as paróquias, pois a da Penha foi criada
em 1760 — a pedido de Su a M ajestad e, que desejava inform ações sobre os habitantes
de cada jurisd ição eclesiástica. O pedido não foi acom panhado de nenhum a orienta
ção precisa e, por isso, obteve respostas desiguais: alguns, como Gonçalo de Sousa
Falcão, vigário da Sé, deram o núm ero de fogos e de alm as de sua paróquia, estabele
cendo até um a distinção entre “alm as de com unhão” (crianças com até sete anos) e
“almas de confissão” (pessoas com m ais de sete anos); outros deram informações bem
sucintas: “nesta p aró q u ia”, disse secam ente o vigário de Nossa Senhora da Conceição
da Praia, na C idade B aixa, “há quatro m il alm as de com unhão”.5 M as, de um a forma
ou outra, todos responderam ao questionário real.
C onsultando esse m aterial, m in h a atenção recaiu particularm ente sobre as res
postas dos vigários de N ossa Senhora de Brotas, onde m oravam apenas 45 pessoas, e
de Nossa Senhora da V itó ria, onde m oravam 1.500. O correra nesta últim a o desem
barque dos prim eiros colonizadores de Salvador e, em 1551, ela era um a das duas
paróquias da cidade (a título de com paração, a outra paróquia, a da Sé, a maís popu
losa da cidade, tinha 8 .4 4 2 alm as e o Paço, a menos povoada, 2 .0 1 8 ). Produtoras de
mandioca e de frutas, N. S. de Brotas e N. S. da V itó ria eram verdadeiras roças quase
vazias, onde um a população rural tirava proveito das riquezas do solo e da abundân
cia das águas. Na prim eira, alguns pescadores praticavam a pesca da baleia, pois seu
território incluía várias praias situadas no litoral norte da baía dc Salvador, onde se
encontravam dois abrigos para a pesca, ou armações: a Armação de Saraiva e a de
Grcgória. Não podiam ser qualificadas de centros urbanos, até porque inexistiam
serviços já im plantados nas outras paróquias (arm am ento, transportes, iluminação
norurna). Por que não eram consideradas ‘paróquias rurais ? Informações ulteriores
talvez respondam a essa pergunta, M as, desde já, fica claro que vinte anos depois do
censo de 3757, feiro pelos vigários, as paróquias de Brotas e da Vitória continuavam
muito pouco povoadas, guardando maís semelhança com as suburbanas que com as
demais paróquias urbanas. A paróquia da Penha, criada em 1760 como resultado de
um desm em bram ento da paróquia de Santo A ntônio Além do Carm o, tinha mai
alm as que Brotas.
M in h a segunda fonte de inform ação foram os textos escritos por volta de Isoq
por Luiz dos Santos V ilh en a, um professor de grego que provavelm ente utilizou os
dados do recenseam ento de I o de jan eiro de 1775, ordenado pelo governador Manuel
da C unh a M enezes com fins m ilitares.6 Ele tam bém d istin gu iu paróquias urbanas (Sé
C onceição da Praia, PÍIar, Sanro A ntôn io A lém do C arm o, Penha, S an t’Anna, Brotas
São Pedro, Passo e V itó ria), onde se encontrava um a m aio ria de negros e mulatos
cativos, e suburbanas (São B artolom eu de P irajá, N. S. do Ó de Paripc, São M iguel de
C otejipe, N . S. da Piedade do M ato im , Santo A m aro do Ipitana, São Pedro no Sauípe
da T orre, Senhor do Bonfim da M ata, San ta V era C ruz de Itaparica, Santo Amaro de
Itaparica e N. S. d a E ncarnação de Passé). O prim eiro grupo concentrava 7.080 fogos
e 4 0 .9 2 2 pessoas (entre as q uais, 1 .4 1 2 hom ens recrutáveis para o serviço m ilitar), e o
segundo 2.091 fogos e 1 6.093 pessoas (4 1 7 recrutáveis). É V ilh en a quem diz, sobre as
paróquias urbanas: “Das cinco partes de fogos encontradas, quatro são para os cléri
gos, as viúvas, os negros e m ülatos alforriados etc. N a q u in ta parte restante de fogos,
a dos pais de fam ília, decid iu-se que, sem recorrer a m étodos opressivos, seria possível
recrutar 1.412 hom ens para o E xército. Os hom ens restantes serviriam nas m ilícias.”
M ais adiante, acrescenta: “H o je há m ais fogos e alm as, m as é impossível recrutar a
m etade desse n ú m ero .”
Paróquias urbanas? P aróquias rurais? A defin ição , im precisa nesse início do século
XIX, torna-se ain d a m ais co m p licad a q uando en tra em cena um inform ante de 1829.
T rata-se de D om ingos Jo sé A ntônio R ebello, que descreveu Salvador em sua Corografia
ou a b revia d a história g eo g rá fica d o Im p ério do Brasil. N este trabalho, duas paróquias
sem pre classificadas com o ‘u rbanas’ — N . S. de Brotas e N . S. da Penha de Itapajipe
— foram in clu ídas na lista das paróquias ‘sub urb an as’! Reinava, portanto, grande
confusão sobre os lim ites entre a cidade e o cam po. As próprias autoridades adminis
trativas não sabiam m uito bem onde eles estavam . Em 1831, todas as portarias refe
rentes à construção de prédios ou casas se aplicavam tanto à cidade quanto ao seu
rossio (a de n° 3 0, por exem plo, obrigava os m oradores de toda a cidade a limpar e
sanear pântanos e riachos, que po luíam sobretudo os subúrbios; a de n° 39 proibia
construir ou m odificar um a casa sem a perm issão da M unicipalidade, sob pena de dez
m il réis de m ulta ou cinco dias de prisão e da dem olição da construção).7 fiara os ve
readorcs do século XIX, a cidade e seu distrito formavam um todo. A vida nas paróquias
suburbanas era um prolongam ento da vida nas da cidade, e a Câm ara M unicipal na
via razão para d elim itar os contornos da urbe propriam ente dita. ^_
A n e c essid ad e d essa d e lim it a ç ã o s u rg iu de rep en te, em m aio d e 1857, quan ^
re g u la m e n ta d o m ais rig o ro sa m e n te o an tig o im p o sto , estab elecido em 1811, so
im óveis u rbanos. O go vern o n o m e o u e n tão dois peritos — Francisco Pereira de Agu
e n g e n h e iro in d ic a d o pelo go vern o d a P ro v ín cia, e Francisco A n tô n io Filgueira, vere
dor in d ic a d o p e la M u n ic ip a lid a d e — para fixar co m m aio r precisão os limites
L ivr o II - O P eso d o s H o m e n s 103
dos quais esse im posto seria cobrado. Eis o resultado do trabalho: “A com issão encar
regada de fixar os lim ites da cidade para o im posto sobre os im óveis urbanos pôs-se de
acordo sobre a segu in te dem arcação para fixar os ditos lim ites. N a faixa litorânea, o
lim ite será d eterm in ad o pela lin h a desse m esm o lito ral, entre a co lin a do Farol da
Barra e a po nta de N. S. da Penha, co n tin u an d o sem interrupção pelo mesm o lito ral,
ultrapassando a baía d ita da R ib eira de Itap ajip e e atin gin d o o Forte de T ainh eiros até
o alam bique dos Fiaes, onde se term in ará o lim ite em lin h a reta para a E strada das
Boiadas. D a porta de en trad a do alam b iq u e de Fiaes, a lin h a lim ítro fe descerá para a
reserva de água da C o n ceição , de onde ela su b irá p ela m esm a estrada até a Praça da
Lapinha, de onde descerá n o vam ente p ara reu n ir-se à Fonte do Q ueim ado , de onde
subirá novam ente p ela E strada d a C ru z do C o sm e e, segu in d o -a até a Praça da Cruz,
descerá novam ente p ela la d e ira q ue passa d ian te do im óvel da Q u in ta dos Lázaros,
para em seguida sub ir de novo p ela R u a do V alia, chegando à Fonte das Pedras. Da
Fonte das Pedras, a lin h a passará p ela R u a do S an grad o u ro até chegar ao M atatu e, do
M atatu , ela c o n tin u ará nas im ed iaçõ es da p ropriedade de Jo aq u im Jo sé de O liveira e,
dessa propriedade, segu in d o a E strada de B rotas, a lin h a lim ítro fe irá até a casa d ita de
Boa V ista. D e Boa V ista, ela seg u irá a estrada q ue leva ao D iq u e, chegando em seguida
à grande casa do G arcia e, depois, segu irá pela estrada do rio de Sao Pedro até o bairro
da G raça. D a G raça, a lin h a de dem arcação passará d ian te d a igreja e convento do
mesmo nom e q u e p erten cem aos B en ed itin o s e, após passar d ian te da casa que perten
ceu ao finado C h rista d ’O u ro , ch egará d ian te d a casa de F rédéric H o ldem an , situada
na colina da B arra, de on de ch egará ao Farol d a B arra q ue foi seu ponto de partida.
Serão sujeitos a im postos todos os im óveís com p reendido s nesses lim ite s...”8 .
Percebe-se a d ificu ld ad e dos con tem po rân eos q u an d o foram cham ados a d efin ir os
espaços c u ja d en sid ad e d e m o g rá fic a era b aixa. A área d e lim ita d a pelos peritos
correspondia, em p rin cíp io , à sup erfície o cu p ada pelas dez paróquias urbanas.9 M as
excluía boa parte d a p aró q u ia de N . S. de Brotas (terras que iam até a Pituba) e de
N. S. da V itó ria (o R io V erm elh o ). N estes casos, os lim ites da cidade não corres
ponderam aos das paróquias d itas ‘u rb an as’. M as in clu íram a totalidade das terras que
pertenciam às paróquias realm en te urbanizadas.
Os habitantes das paróquias afastadas eram forçados a vir à cidade para todos os
atos oficiais, com o o registro de testam entos ou de certidões de com pra e venda e o
reconhecim ento de filhos ilegítim o s. O m esm o acontecia com num erosos habitantes
do Recôncavo, que escolhiam os tabeliães da cap ital para lavrar os registros de seus
docum entos, em bora todas as vilas do Recôncavo tivessem seus próprios tabeliães.
Assim, o T erm o acabava por englobar todo o Recôncavo, realizando um a simbiose
perfeitam ente natural entre a cidade e o cam po.
Em pleno século XIX o legislador não conseguia d elim itar a urbe com certeza e
precisão: usos, costum es, perícias e regulam entos nem sempre eram coerentes entre
si. Com o pode o historiador, obrigado a definir seu objeto, precisar então a parte do
território que deseja estudar? O prim eiro cam inho — porta estreita — considera
104 B ah ia , S éculo X IX
'urbano’ todo território coberto por um a rede de imóveis contínua e densa, onde já
estava instalada a rede dc serviços essenciais de um a cidade (ilum inação, água, esgo
tos, saúde pública, transportes); ou a área cujos habitantes tinham acesso a setores
secundário e terciário bem desenvolvidos; ou ainda a área sistem aticam ente conside
rada pelos habitantes c pelos viajantes estrangeiros como pertencente à cidade pro
priam ente dita. O ra, a centena de viajantes que passaram por Salvador no século XIX
quase sempre só m encionaram as paróquias do C entro. V itória teve o privilégio de
figurar em várias descrições, mas foi porque, após a Independência, residiam ali mui
tos estrangeiros.
O segundo cam inho — solução 'aberta* — passa pela adoção de critérios mais
hum anos e menos rígidos, que perm itam integrar à cidade um a área mais extensa. Em
vez de considerar o grau de urbanização, pode-se levar em conta a infinita complexi
dade dos gestos cotidianos, das relações sociais fundam entais, da tram a da vida urbana
que estabelece ligações entre com unidades m ais ou menos próxim as. Esta solução__
que, como regra geral, adotei — perm ite com preender m elhor a razão da enorme
disparidade existente nos dados dem ográficos anteriores a 1872 e dim inui o peso dos
erros de avaliação com etidos pelos contem porâneos.
Independentem ente da solução escolhida, os dados dem ográficos disponíveis per
m anecem m uito im precisos. T entarei analisá-los com o mesmo corte feito para o
conjunto da Província, distin guindo dois períodos: antes e depois de 1872.
A n t e s d e 1 8 7 2 : R e c e n s e a m e n t o s P a r c ia i s
Dou crédito lim itado a recenseam entos que não são dignos desse nome, a contagens
cujos m ecanism os não ficam claros, a avaliações que não passam de estimativas, às
vezes resultantes da sim ples aplicação de um coeficiente fantasioso sobre números
anteriores. T entei extrair delas o m áxim o de inform ações, mas estou consciente de que
fornecem apenas ordens de grandeza e não perm item com preender a real estrutura da
população de Salvador. 10
O prim eiro recenseamento de que se tem notícia data de 1706 e foi feito pela
Igreja. No ano seguinte, seguindo a legislação canônica em vígor em Portugal, o
sínodo do arcebispado da Bahia decidiu que uma vez por ano, entre os domingos da
Septuagésima e da Q üinquagésim a, os vigários deveriam recensear seus paroquianos e
os respectivos bens, indo dc casa em casa, anotando nomes, prenomes e endereços.
Deviam, além disso, indicar as pessoas que não tinham ainda atingido a puberdade
(catorze anos para o.s meninos c doze para as meninas) e os maiores de idade, obrigados
a confessar e comungar. É claro que, além de útil para a Igreja, esse recenseamento
podia servir aos interesses fiscais c m ilitares do Estado, Em 1708, o governador Luís
César de Menezes pediu aos padres que lhe fornecessem anualmente a lista dos chefes
dc família e dos filhos do sexo masculino (com as idades), bem como o número de
L iv r o II - O P eso d o s H o m e n s 105
fogos. 11 Não consegui encontrar nenhum desses censos. Só tenho os dados globais de
1706 (que apontam , para Salvado r, 21.601 habitantes repartidos em 4 .2 9 6 fogos) e de
três outros recenseam entos realizados até 1759.
Sem m encionar sua fonte, Afonso R uy afirm a que em 1718 a cidade contava com
3 9 .2 0 9 habitantes e 6 .6 1 7 fogos, restando ain d a 2 .6 7 6 pessoas nas paróquias rurais.
Rocha Pira escreveu em 1724 que antes dessa data havia em Salvador seis m il fogos,
com cerca de trin ta m il pessoas, d iv id id as entre a nobreza — leia-se ‘senhores de
engenho’ — , trabalhadores e escravos, “além daqueles que não são capazes dc receber
os sacram entos”. 12 O utras fontes põem em d ú vid a esses cálculos. Em relatório datado
de 1840, o arcebispo da B ah ia, dom R o m uald o de Seixas, dá inform ações sobre o ano
de 1755, m as tam bém não in d ic a sua fonte (seria esrabelecida a p artir das listas
nom inativas?). Segu ndo ele, S alvad o r tin h a então, em m eados do século, 3 7 .54 3
habitantes, d istrib uído s em 6 .7 1 9 fogos. O recenseam ento de 1757 indico u que as
nove paróquias d a cid ad e abrigavam 3 4 .4 2 2 h ab itan tes púberes e 4 .8 1 4 fogos, núm e
ros m enores do que os indicados por A fonso R u y para m uitos anos antes. N ada
ocorreu na história da cidade q u e justificasse um a d im in u ição da população e, sobre
tudo, da q u an tid ad e de fogos entre 1718 e 1757. M esm o ad m itin d o a hipótese de os
núm eros de 1718 in clu írem crian ças im púberes, perm anece inexplicável a queda no
núm ero de fogos. 13
O últim o recenseam ento desse período, realizado em 1759 por ordem do 7o
Conde dos Arcos (governador e cap itão -geral), foi m ais bem controlado. Nós o conhe
cemos graças às instruções dadas pelo m in istro português M artin h o de M elo e Castro
ao M arquês de V alença (governador e cap itão -geral em 1779). C ontaram -se então, na
cidade, 6 .7 8 2 fogos e 4 0 .2 6 3 h ab itan tes, excluin do desse total crianças de menos de
sete anos, índios que viviam em aldeias adm inistradas por religiosos e membros ou
servidores das ordens religio sas.1^ M as os resultados dos recenseam entos de 1757 e de
1759 tam bém não são coerentes, pois, segundo eles, em dois anos a população da
cídade teria aum entado em 17% e os fogos em 4 0% , o que parece im possível. 15
No que diz respeito aos recenseam entos realizados no últim o quarto do século
XVIII, as opiniões sc dividem . T hales de Azevedo considera que eles produziram as
únicas estatísticas realm ente com pletas e detalhadas, pois classificaram a população
por grupos de idade, cor c estado civil, avaliando o núm ero de nascimentos e óbitos.
Sua opinião tão favorável se baseia num único desses censos, o de 20 de junho de
1775, que ele analisa sem todavia fornecer os dados básicos sobre os quais trabalhou,
f, completamente diferente a opinião do historiador inglês Russel-W ood, que se recu
sa a tirar conclusões dc um levantam ento que considera malfeito e incompleto. 16
Inclino-me a concordar com este últim o. Vejamos do que sc trata exatamente.
Ocorreram dois recenseamentos no ano de 1775: além do de 20 de junho, men
cionado por Thales de Azevedo, foi realizado outro, meses antes, em janeiro, por
ordem do governador M anuel da Cunha Menezes, que enviou a Lisboa um levanta
mento dc “todas as pessoas que pertencem ao arcebispado da Bahia e cujos habitantes
B a h ia , S é c u l o XIX
106
são subordinados ao governo tem poral dessa m esm a B ahia, com distinção das comarcas
e vilas às quais pertencem , com o núm ero de fogos e alm as, para saber que pessoas
podem ser cham adas ao serviço de Sua M ajestad e sem que os povos sejam oprim idos.”
T ratava-se, portanto, de um recenseam ento para fins m ilitares e era bem conhecida
a falta de entusiasm o dos baianos em relação ao serviço m ilita r. V ilh en a percebeu isso:
“Fazer um m apa desta natureza neste país não é fácil com o talvez se sup un ha, porqUe
os pais de fam ílias, receosos de que lhes peçam os filhos para soldados, não só ocultam
m uitos, como nem dão os nom es nos róis da confissão, e o m esm o praticam com os
escravos, receosos de algum a cap itação ou trib u to s, segu n d o o n ú m ero de escravos que
constar possuem. ”17
Os recenseam entos apresentavam sub -registros de crian ças com menos de sete
anos de idade, de m odo que o m esm o pode ter ocorrido com a população adulta
m asculina. Esse censo de jan eiro de 1775 ap o n to u p ara a cid ad e de Salvador uma
população de 4 0 .9 2 2 alm as, repartidas em 7 .0 8 0 fogos, e para as p aróquias suburbanas
16.093 alm as e 2,091 fogos. C o m parado s aos núm ero s do recenseam ento de 1759, os
resultados parecem m edíocres: a po pulação d a cid ad e teria p erm an ecid o estacionária
durante 16 anos.
Essa constatação pessim ista perm ite duas hipóteses: pode ser que os números de
1759 tenham in clu íd o tam bém a população su b u rb an a, para a qual não disponho de
informações separadas, induzin do assim a u m a sup erestim ação dos habitantes da cida
de propriam ente dita. Por outro lado, essa d im in u ição pode ter sido real, causada pelo
êxodo de hom ens para o Sertão baiano ou p ara o Rio de Jan eiro , on de se incorporavam
ao Exército que lutava contra a Espanha no Sul. M as, sem d ú v id a, a explicação do
padre A velino de Jesus da C o sta é a m ais con vin cente. Para ele, o trabalh o de Manuel
da C unh a M enezes u tilizara dados de u m recenseam ento in co m p leto , realizado em
1768, fornecendo por isso núm eros sub estim ados. 18
Q ue dizer dos núm eros do recenseam ento de ju n h o de 1775? M esm o conside
rado como um dos m ais com pletos, apresentando “um a análise detalh ada da popu
lação da cidade por sexo, idade e estado c iv il”, ele tam bém é passível de críticas.
Com efeito, o núm ero de fogos apontado por esse docum ento é ligeiram ente supe
rior àquele de janeiro do mesmo ano (7-345 contra 7 .0 8 0 ), m as, contraditoriam en-
tc, a população é estim ada em 3 3 .6 3 5 , ou seja, sete m il habitantes a menos! Além
disso, como apontou T hales de Azevedo com m u ita acuidade, o núm ero de pessoas
casadas de um e outro sexo é exatam ente o mesmo para cada grupo étnico. Por
exemplo, para 1.697 homens brancos casados, há o mesmo núm ero de mulheres
brancas na mesma situação. Com o o mesmo se verifica com m ulatos e negros, fica
im plícita a mensagem dc que os casamentos só se efetuavam dentro do mesmo gru
po de cor. Sabemos que isso é falso: casamentos inter-raciais ocorriam em todas as
camadas, Além disso, a soma dos subgrupos não corresponde ao total apresentado:
12.720 brancos, 4.207 m ulatos livres, 3 .6 3 0 negros livres e 14.696 negros e mula
tos escravos, o que nos dá uma população de 3 6.253 pessoas e não as 33.635 pe*'
L tvro II - O P eso tx \s H o m e n s 10?
sois anunciadas. Portanto, é dihcil adm itir quç cssc ccnso seja mais seguro que
outros, anteriores ou contemporâneos.
Para term inar o secido \\ II1, (alta uma referência ao recenseamento dc 1779,
sobre o qual ja fiz com entários. Os resultados nele apresenrados provocam tanta
contusão quanto os dem ais. A tabela abaixo mostra que os números referentes à
população t O .JO 1) pessoas) e aos fogos (6.617) são idênticos àqueles fornecidos por
Afonso Ruy para o ano de 171S. Te ria este autor confundido as datas? É provável,
inclusoe porque não rcscla sua io n tt. Alias, não nve condtçoes de comprovar se—
quer a existência de um censo em 1718, de modo que fui levada a clim iná-lo de
minhas análises. Alem disso, enquanto o número de pessoas aum entou em relação
às indicações do ccnso de 1775, o contrário ocorreu com o número de fogos, ape
sar dc não haver nenhum a m enção sobre m udança nos critérios utilizados para
uesisni-los nessa data.
TABELA 10 , .
P o p u la ç A o d e S a l v a d o r , s e g u n d o o s R e c e n s e a m e n t o s d e 1706 a 1807
Focos P fsso a s
18051 - - 45.600 -
Í807lfl - - 51.112 -
f f 1 j A fq iiivrw t)n A rccb ísp ad o * rf/w i/Thíilçs d c A zeved o , P & voitnten to d a t i d ^ d t d o S a lva d or^ jv 1H5; (2) A fonso R u y
dc H t u 6r i 4 p f i í f t i c a f f i d m h ü i t t r t t i i w drf à d f t d t d o Sãh>iidor< p. 3 1 5 ; (3 ) D om R o m u d ld o Scj*d\h 1 Í4 0 , a p u d T h ales
dc A wv-dr/, o p f i t h p . 1R8; (4) Fira* do Ar/nrral. R r t r v r d t i ç ô n hiitòricm < p> 2 5 6 ; {*>) R c tc n s c a in c n to lo iro a n u n d ü J a C o n d e
d^>s A rcos, # p u d r h a lt s d r A /cvcdo, w/j. f i t . . p 19ÍJ: (iS) U rotíiisoaiH cm n fc ilo a m an d o do g o v ern ad o r M an n c i da
M rn r/ r* ^^r>^irr» dc 1 7 7 5 ), t f p f t d \ halos d r A/.ovcdn, np. r t l . Y p, 191 (7 ) Rcirttisoam rnrs* d e 20 de ju n h o t e
I 7 7 r/p t t p v d '1 h A\ri dc A /rvr<\<it np. ç i f ., p. 1 9 3 - 1 9 4 ; ÍK) R ct cn -sean u m o rc ali/ ad a d m an d o tio g o v ern ad o r M arqu es de
V a lrrv rj. * p H4 f h J c i dc A / c w d ij, ap. < tí.t p. 1 % 197; (9 ) ílcc c ru ca m c ritn a p u d T lia lc * de A w c d o , op.
P* 2 IA ; f|í> ) R frfn w ü m ^ n iú fo iío a m and o do C tm d e da P o m c i a p u d 3 halo* dc A iovcdo* (>/>. o / ,, p* 2 1 K
eclesiástico de 1805 apontou 4 5 .6 0 0 habitantes, núm ero que, dois anos depois, subiu
para 51-112, segundo novo censo, atribuído à iniciativa do Conde da Ponte Em
1855, M aurício W anderley, presidente da Província e futuro Barão de Cotejipe, orde
nou trabalho sem elhante, mas dele só pude encontrar resultados referentes a bairros de
algum as paróquias da cidade, Esse recenseam ento coincidiu com a epidem ia de cólera
morbo, o que explica seu caráter parcial. U tilizei largam ente seus resultados no Livro III
consagrado à fam ília, pois traz inform ações q u e, em bora fragm entárias, são dé
prim eiríssim a ordem .
Finalm ente, um últim o recenseam ento forneceu, para 1870, o número de 77 686
habitantes para a cidade e 3 6 .2 0 6 para sua área rural. U tilizei todos esses dados com
m uitas restrições, pois, além dos censos, possuo tam bém algum as avaliações de outro
tipo, cujo valor será discutido agora.
A n tes de 1 8 7 2 : A v a l ia ç õ e s
Dampier, que, em 1699, lim itou-se a escrever que Salvador era "the m ost com iderab le
Toxvn in B razil w h eth tr in respect o f th e Beauty o f its Buildings, its Bulk, or its Trade a n d
R eventti' (“a cidade mais im portante do Brasil, seja no que diz respeito à beleza de suas
construções, ao seu tam anho ou ao seu com ércio e rendas”) . 24 Afora essas, não
conheço nenhum a descrição de viajantes do século XVIII sobre a Bahia c sua capital.
Enconrrei, no enranto, um a avaliação populacional — além das de V ilhena e dc Rocha
P ita — feita por José da Silva Lisboa, funcionário real e futuro Visconde de C airu, que
chegou à Bahia em 1 7 7 9 e no ano seguinte estim ou em cinqüenta m il habitantes a
população da cidade. C o nsciente de ter utilizado métodos ultrapassados para descrever
as paróquias da B ahia e sua população, V ilh ena estim ou em sessenta m il os moradores
de Salvador em 1 7 9 9 .
As avaliações feitas no século XIX foram fantasiosas. H avia tendência a superes
timar o núm ero de habitantes, talvez porque os viajantes e cronistas visitassem sobre
tudo os bairros m ais populosos de um a cidade barulhenta e anim ada, que dava impres
são de forte dinam ism o. As densas zonas do porto e do C entro ofuscavam os bairros
inteira ou parcialm ente rurais, onde o povoam ento era m aís disperso. Entre 1800 e
1820, os estrangeiros registravam setenta m il a 115 m il habitantes, números que
correspondiam ao dobro dos fornecidos pelos censos de 1805 e de 1807!
As inform ações se tornaram m ais coerentes a partir do m eio do século. Os via
jantes dessa época (1 8 5 0 a 1870) falavam em 140 m il a 185 m il habitantes, d im i
nuindo assim a diferença entre as estim ativas m ais baixa e mais alta. M as ainda aí
havia superestim ação, resultante de im agens deform adas, m iragens produzidas por
uma cidade orgulhosa e arrogante que, do alto, dom inava um porto onde ancora
vam mil navios e prosperavam m il com ércios. Os habitantes viviam m uito nas ruas,
onde fervilhava a presença de crianças ao lado de suas mães e de jovens que ofere
ciam serviços.
Chegamos ao fim de um a longa, porém necessária, exposição. Precisamos agora
fazer uma escolha, com parando os núm eros dos recenseamentos e das avaliações,
todos igualm ente arbitrários. Precisamos ser cautelosos. Os dados não sustenram aná
lises muito precisas, mas perm item deduzir ordens de grandeza. O número de 21.601
habitantes, fornecido cm 1706 para a cidade de Salvador, me parece plausível. Com
efeito, no começo do século XVIII a m aior parte da população da Capitania ocupava
as terras do Recôncavo, onde sc desenvolvia a cultura da cana-de-açúcar, principal
atividade econômica regional. A observação dc Sebastião da Rocha Pita segundo o
qual em 1724 o Recôncavo abrigava três vezes mais genre do que a capital pode
ser aplicada ao ano dc 1706. Penso também que o número de 37-543 habitantes para
o ano dc 1755 concorda bastante bem com as demais informações disponíveis sobre o
deslocamento de pessoas para n interior, sobretudo cm direção às minas de ouro de
Minas Gerais ou da própria Bahia, descobertas (estas últimas) em 1720. Para o ano
de 1775, considero, pelas razões já explicadas, os números do recenseamento de 1° de
janeiro (40.922 habitantes) mais razoáveis que os do de julho.
110 B a h ia , S éculo X I X
Dos censos do começo do século XIX, privilegio o de 1805, que apontou 45.600
habitantes. Q uanto às avaliações, os núm eros indicados são tão exorbitantes que re
nuncio a utilizá-los. C aindo na arm ad ilh a de fazer m in h a própria estim ativa, inclino-
me a dizer — com prudência e ad m itin d o grande im precisão — que entre 1810 e
1870 a população de Salvador cresceu de cinq üen ta m il para cem m il habitantes, apenas
um pouco m ais do que tin h a, na época, o velho porto francês de N antes, por exemplo.
Com ecem os pelos grandes núm eros. Em 1 8 7 2 , pelo censo, o B rasil tin h a 10.112.000
habitantes, dos quais 3 8 0 .1 8 6 m oradores na P rovíncia d a B ah ia e 1 08.138 nas onze
paróquias de Salvador. Em 1 8 9 0 , o país tin h a 1 4 .3 5 3 .9 1 5 h abitantes, a Província
1 .9 03 .4 42 e as onze p aróquias 1 4 4 .9 5 9 .
O censo de 1872 — o prim eiro com pleto — conservou as an tigas divisões ecle
siásticas que repartiam a cidade em paróquias, o que, aliás, não deve causar surpresa:
as estruturas adm in istrativas do Estado se apoiavam nessas círcun scriçõ es.25 Como
m ostra a tabela 11, os resultados co n firm aram o que h avia sido sugerido pela tradição
e pelos recenseam entos feitos no século preceden te: as paróquias m ais povoadas eram
as do coração da C id ad e A lta — Sé, São Pedro, S an tW n n a e San to A ntônio Além do
C arm o — e a d a C o nceição da P raia (n a C id ad e B aixa, com preendendo o porto e
todas as instalações que dele d ep en dem ). Esta ú ltim a era o centro d a vida comercial e
financeira local no século X V III, ab rigan d o 2 1 ,9 % da população urbana, M as, em
1872, não passava de 5% . T o m an do com o referência o ano de 1755, a população das
paróquias sem i-rurais de Brotas e de V itó ria p ro gred iu rap idam en te, passando, respec
tivam ente, de 1.063 para 5-900 e de 1.582 para 1 1 .6 6 6 pessoas. Esta últim a transfor
m ou-se assim em um a das p aróquias m ais populosas da cidade, passando a abrigar
10,8 % dos habitantes.
A com posição da população por sexo in d icava um a lig eira vantagem dos homens,
mas não a ponto de apontar-se um d eseq u ilíb rio , levando-se em conta que se tratava
de um a cldadc cheia de im igrantes e organizada em torno de um a estrutura social
escravista. Infelizm ente, no que díz respeito a Salvador, não tenho a repartição por
faixa etária, que consegui obter para a Província. Os escravos concentravam-se sobretudo
nas paróquias com erciais, com o C onceição da Praia e Pilar, ou habitadas pela parte
maís abastada da população, com o Sé, São Pedro, V itó ria, Sanro A ntônio Além do
Carm o e Penha. Esta, aliás, era um a paróquia de vilegiatura ou de residências de verão.
O recenseamento de 1890, o prim eiro da R epública, não renovou a distinção
entre homens livres c escravos, pois dois anos antes íora abolida a escravidão. Em re
lação a 1872, a população total aum entou 34% , e a participação de cada paróquia
nesse total perm aneceu praticam ente a mesma, provavelm ente porque, depois da
Abolição, os escravos não m udaram seus dom icílios. Na relação entre sexos, no entanto,
L rv iio II - O P eso d o s H o m e n s lll
TABELA 11
P a ró q u ias P ü p u i a ç Ao L iv r e P o p u l a ç Ao E sc r a v a T o tal
TABELA 12
P o pu l a ç ã o das P a r ó q u ias de S a l v a d o r , 1 8 9 0
Fonte: Katia M. de Queirós M iuaio, Bahia: a cid ad e do Salvador t ttu m ercado rto i/cala XIX, p. 135, •
B a h ia * S écu lo X I X
112
E n sa io d e A v a lia ç ã o pa ra o S é c u l o X I X
N um a prim eira etapa, tentei id en tificar o crescim ento anual da população de Salvador
entre 1805 e 1872 para, em seguida, form ular algum as hipóteses sobre o dinamismo
dessa população entre 1800 e 1890. Parti das seguintes prem issas: os dados u tiliz a d o s
estão corretos; o percentual de aum ento da população se m anteve estável; o impacto
das epidem ias, guerras e tum ultos sociais foi uniform e durante o período em questão.
Os números de habitantes de Salvador em 1805 (4 6 ,4 4 0 ) e em 1872 ( 108. 138)
foram, respectivam ente, meus pontos de partida e de chegada, que definiram um
crescimento dem ográfico total de 5 7 ,8 %, equivalente 3 pouco mais de 1% ao ano.
C.,omo vimos, as avaliações feitas no século XIX pelos visitantes estrangeiros se afasta
vam muito desses números, oscilando, por exemplo, dc setenta mil a 115 mil habitan
tes entre 1812 c 1820, quando não houve guerras, epidem ias ou tum ultos sociais. As
evidencias não referendam essas estim ativas, indicando que, na época, a população
local estava entre 49 mil c 55 mil habítatues.
Sabc-sc q u e n e n h u m c o n tin g e n te p o p u lacio n al cresce ou decresce de maneira
u niform e d u ran te um lo ngo período. O scilações de preços, guerras, pestes, secas,
condições sanitárias c outros fatores in flu en ciam a dem o grafia de u m a cidade, cuja
evolução é form ada de saltos, regressões e períodos de estabilização. Para aprofundar
L í\"ro II - O P eso d o s H omens 113
essa dinâm ica no lim ite dos dados disponíveis, parti dos números referentes à m orta
lidade, registrados nas onze paróquias de Salvador ao longo de todo o século XIX.26
Calculei as m édias anuais de óbitos, por períodos de dez anos, a partir de três hipóte
ses: os dados são corretos, o núm ero de óbitos é proporcional ao de habitantes, e o
efeito das endem ias e epidem ias não varia de um a para outra década.
T A B E I A l A
Note-se que nas dccadas de 1810 e 1850 o núm ero de óbitos aum entou brusca
mente. Sugerim os duas possibilidades. A prim eira se refere a um possível aum ento
populacional, que traria consigo m ais mortes. N a década de 1810 teriam chegado
numerosos im igrantes europeus, sobretudo portugueses, depois que os exércitos fran
ceses deixaram Portugal? Q uantos escravos africanos a mais ou a menos aportaram
então? T eria havido m igrações, para a cidade, de cam poneses cujas atividades agrícolas
estavam em crise, em função da con jun tura ou dc condições clim áticas desfavoráveis?27
Para a outra década, as m esm as explicações podem scr tentadas, com um a diferença.
Prevista e an u n ciada com antecedência, a abolição do tráfico em 1850 foi precedida de
forte im portação de escravos africanos.
Houve queda nas atividades agrícolas e deslocam ento de população para a capital,
seja pelo m arasmo da cu ltu ra açucareira, seja pela ocorrência de uma das mais longas
secas da história da Bahia entre 1857 e 1860. Essa não foi a única provação. A década
foi marcada tam bém por duas epidem ias difíceis de debelar: febre am arela em 1850
(trazida pelo brique Brasil, proveniente de Nova O rleans) e cólera-morbo em 1855
(trazido do Pará pelo navio Im peratriz). Na verdade, o prim eiro surto dc febre amarela
na Bahia m anifcstou-sc em 18d9. Debelado som ente no ano seguinte, ressurgiu com
força total cm 1856, ano cm que o cólcra-tnorbo tam bém grassou. A partir de 1858,
cia tornou-se endêm ica, com m anifestações que atingiam sobretudo os marinheiros
ern 1861, 1862, IH6 Ú, 1873, 1875 e 1 8 7 6 -1 8 7 9 . A epidem ia não sc lim itou à cidade
dc Salvador: sc alastrou por todo o Recôncavo e até uma parte do Agreste, pois
dizimou as populações dc (crcrnoabo c Feira dc Santana. Só foram poupadas as regiões
do Sertão c do Litoral S u l7 H
A segunda possibilidade para csplicar aquele aum ento da m ortalidade é a de que,
nesses dois períodos, as condições sanitárias tenham piorado muito, Não me parece o
caso, até porque, na época das epidem ias, houve mais precauções c esforços higteniza-
dores para prevenir os contágios.
B a.hia, S é c u l o X IX
114
P o pu lação F lutuante
e P o p u l a ç ã o M e s t iç a
Resta saber que contingentes não eram registrados por essas contagens de população.
Quem eram , e qual seu número?
Em prim eiro lugar, cxcluíam -se os ‘ inocentes*, ‘párvulos* ou ‘ pagãos’, 011 seja,
crianças que ainda não tinham atin gido sete anos, a idade da confissão. Depois, os
‘agregados’ e suas fam ílias, que habitavam nos lares de seus senhores c, nas cidades,
eram muitas vezes assim ilados aos em pregados dom ésticos, em bora goíassem de um
status superior.' Por fim, os recenseam entos excluíam os m igrantes, que às vezes resi
diam na cidade durante alguns meses, retornando cm seguida para a região de origem.
F.m com pensação, moradores de Salvador em viagem tam bém não eram levados cm
conta. F\is aí um problem a: não havia motivo para adm itir a p r io r i que os dois grupos
se compensassem num ericam ente.
íucio leva a crcr que a população flutuante cra m uito im portante. Chegava-sc à
capital por via m arítim a (a bordo dc navios ou de embarcações dc pequeno porte) ou
terrestre (a partir do Recôncavo, próxim o ou distante, e do Sertão). Funcionava cm
Salvador o maior mercado dc escravos do Nordeste brasileiro, c os negros para ali
trazidos, oficial ou clandestinam ente, às vcz.cs perm aneciam m uito tempo antes de
serem vendidos/ Podemos tentar avaliar uma parte dessas populações?
Os dados sobre m arinheiros e navegantes são escassos. Praticam ente todos os
registros do porto de Salvador no século XIX (oram destruídos, c os que restam não
são hom ogêneos,' I ambém nesse caso, meus melhores informantes foram os viajantes
estrangeiros, tojos relatos puderam , às vc/çs, scr confrontados com dados oficiais. No
inicio do século XIX o inglês Tliom as Lindlcg calculou que, por dia, oitoccnras em
barcações —oriundas desde Porrn Seguro, no Litoral Sul, até Rio Real, no Norte —
aportavam cm Salvador para vender produtos/ Seu testemunho coincide com o de
uma tentena dc outros viajantes, havendo aqueles que, mais para o fim do século,
estimaram cm mais dc mil o número dc embarcações de cabotagem que aportavam
115
116
B ah ia , S éculo XIX
todos os dias na cap ital.5 Se cada em barcação trouxesse dois ou três m arinheiros, cerca
de dois mil homens c h e g aria m todos os dias por essa via. Encontrei os seguintcs
números para as entradas e saídas de pequenas em barcações entre 1851 e 1854, que
resultam em médias anuais de 1.021 entradas de em barcações em Salvador, com 8.703
tripulantes.
TABF.I.A 14
N avegação de C abotagem
N o segundo período (1 8 1 5 -1 8 3 0 ), o tráfico ain d a era legal, mas estava lim ita d o
ao sul do E quador. Para m o ntar a tabela abaixo, usei fontes diferentes, devidamente
d iscrim in adas.
As fontes que possuo se com pletam e se co n tro lam m u tuam en te. Segundo Goes
C alm on , nesse período a m édia an u al de im portação foi de 7 .0 2 3 africanos; segundo
Pierre V erger (que u tiliza dados coletados no Foreign O ffice de Londres, onde faltam
registros de cinco anos) foi de 6 .1 9 6 .17 Esses núm eros devem estar bem perto da
realidade. As im portações caíram entre 1823 e 1829 — anos de lu ta pela independên
cia da B ahia, m arcados por tu m u lto s sociais e p ela desorganização do co m ércio mas
subiram m uito às vésperas das novas restrições im postas pelos ingleses a essa atividade.
N o terceiro período (1 8 3 1 -1 8 5 1 ) o tráfico foi sem iclan d estin o , isto é, autorizado
pelo Brasil mas p ro ib id o pelos ingleses e seus aliados. N ão tem os dados relativos à
década de 1830. P ierre V erger e Leslie B ethel estim am que ocorreu um lento (mas
constante) crescim ento das im po rtaçõ es no p rim eiro quarto do século XIX, seguido
por um a aceleração nos anos 1 8 2 7 -1 8 2 9 e u m a estabilização até 1835. Em seguida,
elas cresceram de form a n ítid a , até a tin g ir o ponto m áxim o en tre 1846 e 1849.
Se excluirm os os nove anos (1 8 3 1 -1 8 3 9 ) para os quais não encontram os nenhum
dado e utilizarm os para o período 1 8 0 1 -1 8 1 5 os núm eros já apresentados, registramos
a entrada de 2 7 7 .6 8 1 africanos no porto de Salvad o r d u ran te a p rim eira metade do
século XIX. C o m o vim os, eles nao eram postos à ven da im ediatam en te, pois sua
aparência e saúde tin h am m u ita im p o rtân cia na hora de regatear o preço. O cativo era
lavado, tratado e colocado em regim e de engorda, recebendo carne-seca, peixe seco,
farinha de m andioca, bananas e laran jas. A duração dessa etap a dependia da demanda
e das condições de saúde dos negros, m as era freq ü en te q ue eles passassem váríos meses
nos entrepostos construídos pelos com erciantes para esse fim .18 C onstituía-se assim
TABELA 15
N ú m e r o de A f r ic a n o s C hegados à Ba h ia , 1 8 1 5 -1 8 3 0
Ano (D (2) (3) A no (D (2J (3)
TABELA 16
N ú m e ro de A f r ic a n o s C hegados à B a h ia , 1 8 4 0 -1 8 5 0
Ano (Ú (2) A no (1) (2) A no ít) (2)
1840 1.675 1.413 1844 6.201 6.501 1848 7.393 7.299
1841 1.4 10 1.470 1845 5.582 5.582 1849 8.401 8.081
1842 2.360 2.520 1846 7.824 7.354 1850 9.102 9.451
1843 3.004 3 .1 1 1 1847 11.769 10.064 1851 785 -
Fontes: (1} Leslie Bethell, A a b oliçã o do trá fico d e escravos no Brasil, p. 369. (2 )Pierre Verger, Flux et refiux d e la traite des nigres
en tre le g o lfe d u B énin e t B ahia d e Todos os Santos d u XVIT au XIXI siicle, p. 666.
um a população m argin al, n u trid a pelo m ercado da cidade, com o as outras populações
de passagem : m arinheiro s, navegantes, refugiados e viajantes de todo tipo.
S a n g u e s M is t u r a d o s : M it o s e R e a l id a d e s
Em todas as cam adas sociais de Salvador encontram -se evidentes traços de m iscigena
ção. No fim do século XVI, com o vim os, o jesu íta Fernao C ardim calculou a popu
lação local em três m il portugueses, quatro m il negros e oito m il índios catequizados.
Não estim ou a população m estiça, form ada por m am elucos, m ulatos cafuzos e m ulatas
que lá viviam . N ão nos esqueçam os de que o 'glorioso antepassado’ Diogo Álvares, o
C aram uru, prim eiro h ab itan te português da B ahia, tivera um a prole m uito numerosa
de filhos m am elucos legítim o s e bastardos, form ada já em 1549, quando chegara o
prim eiro governador.19 A pedido do jesu íta M anoel da N óbrega, a Coroa fizera uma
tentativa para m oralizar a vida devassa que seus súditos levavam na Bahia, enviando
para Salvador dezoito jovens órfãs, protegidas d a rainha. M as a experiência terminara
em 1558.20 D urante todo o período colonial, a im igração portuguesa foi essencial
mente m asculina, contribuindo para difundir a m iscigenação.
São escassos os dados que consegui coletar sobre a composição racial de Salvador
no século XIX. No que diz respeito à repartição por cor, é possível com parar os dados
do recenseamento dc 1808 com os de 1872.
TABELA 17
R e p a r t iç Ao d a P o p u la ç Ao B a ia n a po r C o r , 1808 t 1872 (%) _______ ^
P o p u ia ç Ao Livnti P o ia jla ç Ao E s c r a v a
podia fazer sem problemas serviços domésticos e serviços 'de ganhos’; os homens eram,
em geral, menos versáteis, incapazes dc alternar, por exemplo, um serviço rude como
o de transportes e um serviço dom éstico mais requintado. M as, além dessa explicação,
é preciso levar em conta que estava em curso um período de desm antelam ento da força
de trabalho escrava m asculina, pois eram preferencialm ente homens — e, entre eles,
preferencialmente os detentores de um ofício — os escravos colocados à venda para as
plantações de café do C entro-Sul do Brasil.
O recenseamento de 1872 fornece o núm ero de casas da cidade: 15.257, das quais
95,9% estavam habitadas e 4,1% não habitadas. Não sabemos se estas últim as eram
edifícios públicos ou residências fechadas/abandonadas, mas constatamos que os regis
tros consideravam freqüentes os casos de residências parcialm ente arruinadas. As pos
turas m unicipais determ inavam que “ninguém poderá ter, dentro da cidade, terreno
desocupado ou no qual haja casa não habitada, sem que estas sejam m antidas fechadas
e bem lim pas”.23 A análise que se segue leva em conta apenas as casas habitadas.
TABELA 18
R e p a r t iç ã o da P o pu lação de Salvad o r po r P a r ó q u ia s e R e s id ê n c ia s , 1 8 7 2
ocupação da cidade, porém com pequeno percentual dc escravos. Residiam ali grupos
sociais mais modestos, lado a lado com vários quartéis m ilitares. Estava na mesma
situação a paróquia dc M ares, criada cm 1871 pelo desm em bram ento de três outras
(Pilar. Penha e Santo Antônio Além do C arm o ), igualm ente ocupada por população
hum ilde c por um quartel de cavalaria. Explica-se assim o fato de que, ali, o percentual
de escravos era o mais baixo da cidade: 1,2%.
Era elevado o índice de ocupação das casas, em geral sobrados com um ou dois
andares, cujo ramanho variava conform e os bairros. Os prédios dc vários andares eram
pouco numerosos e se concentravam sobretudo nas paróquias da Conceição da Praia
(com ercial), da Sé e de São Pedro (onde residiam cam adas de m aior poder aquisitivo),
além de alguns bairros localizados em Santo A ntônio A lem do C arm o e em Sant’Anna,
próximos do Centro. Na Penha e na V itó ria existiam grandes casas senhoriais. As
fontes que me perm itiram form ular essas com parações apresentam dados do recensea
mento de 1855, referentes a dois bairros que podem os considerar significativos. Em
duas circuncrições da Sé foram encontradas taxas m édias de ocupação de 5,9 e 7,4 por
residência; em São Pedro, 7,2 e 4 ,9 ; em Santo A ntônio 9 ,9 ; e em Pilar, 10,7. É preciso,
pois, indagar se esses números — que dão um a m édia de 6,5 pessoas por residência —
estão corretos.
Essa m édia registrada em 1855 era bastante próxim a da que consta no recensea
mento de 1872 (7 ,4 ). Este prim eiro recenseam ento de 1855 — menos abrangente,
mas maís detalhado que o segundo — clarifica um pouco as coisas. T rinta c sete das
quarenta casas da 11a circunscrição de São Pedro eram térreas, com três ou quatro
cômodos e de frente para as ruas. V iviam nelas 160 pessoas, o que dava uma média de
4,3 por casa. Nos três sobrados do bairro, que geralm ente tinham dois ou três andares,
viviam 37 pessoas (18,9% da população total), o que significa 12,3 pessoas por casa.
É possível que as casas vazias registradas no recenseam ento de 1872 estivessem real
mente fechadas ou em ruínas. N a 10a circunscrição do Pilar (na C idade Baixa, vjzinha
da Conceição da Praia), a situação era inversa: existiam quinze sobrados (onde viviam
92% da população) e sete casas térreas, que abrigavam apenas dezenove habitantes. A
atividade comercial da cidade se concentrava nas paróquias de Pilar e de Conceição da
Praia, onde havia sobrados magníficos e espaçosos. N um deles, de dois andares além
do térreo, viviam 45 pessoas, distribuídas por duas famílias, seus escravos e um gniP°
no qual se misturavam africanos livres e agregados.
O recenseamento dc 1872 nos fornece um a idéia da repartição, por cor, dos
habitantes dc cada paróquia. Haveria áreas ‘mais negras’ que outras? Os mulatos eram
numerosos entre a população escrava? Onde sc encontrava maior número dc caboclos,
que a tradiçao geralmente relega para o interior das terras da Província? Para o estran
geiro que andasse pelas ruas da Bahia nos idos dc 1872, a resposta seria evidente: havia
uma maioria negra. Mas, entre as pessoas de cor, era difícil distinguir trabalhadores
livres e escravos. Entre cslcs últimos, que incluíam crianças, o número de mulatos era
relativamente alto, apesar da constante renovação do estoque africano (pelo menos até
I-ARO lí - o PrsO [Xis Hd V í NS 123
n iu n i ■>
RvrxísUxÁt1 nv Poitiaçao Km uava ih; S alvador por C or , 1872
Miamnis T otw
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quia sem i-rural, com baixa densidade populacional, que abrigava, em 'sítios’ dispersos
4,7% da população da cidade. M u ito s desses sítios eram casas de campo dos ricos qU(!
arrendavam algum a terra a cultivadores livres ou alforriados, interessados em plantar
hortas ou criar gado leiteiro. A paróquia m aís ‘m u lata’ era a da Penha, situada na zona
rural, longe do coração da cidade. A li, os m ulatos representavam 52,5% e as mulatas
61,9% da população. Os m ulatos livres tam bém eram num erosos na densa e popular
paróquia de Santo A ntônio A lém do C arm o, onde constituíam 49,3% da população
livre, e na aristocrática paróquia da Sé (49 % ).
O relativo eq uilíb rio num érico que se observa entre hom ens e mulheres de cor
seja na população livre, seja na escrava, não se repete entre os brancos. Aparece um déficit
de m ulheres, que representavam apenas 4 1 ,8 % da população branca, vista como um
todo. Essa relação podia variar segundo as faixas etárias da população, fazendo apare
cer alguns desequilíbrios não aparentes aqui. N o caso dos hom ens, esse déficit era
compensado pela p rática de casam entos ou uniões livres com m ulatas e negras. Com
raras exceções, as paróquias apresentavam alto ín dice de m iscigenação. Agrupando
todos os tipos m isturados e negros, e colocando-os em contraposição aos considerados
brancos, podem os ver, com m aior precisão, com o estes ficam ínfenorizados.
Os dados dispensam com entários. Pessoas de cor se infiltravam por toda parte e
viviam em sim biose com um a população branca q ue in clu ía europeus e ‘brancos da
terra3, cuja pele era apenas um pouco m ais clara que a de alguns m ulatos. Graças a
apoios de fam ília, eles conseguiam ultrapassar a barreira que separava homens livres e
escravos. O m ais em baraçoso não era ter pele escura, mas ter antepassados escravos,
N a paróquia sem i-rural de Brotas as caboclas chegaram a ser 20,6% da popula
ção fem inina e os caboclos, 6 ,6 % da m asculina. D e onde teriam vindo? Descenden
tes dos índios que outrora povoavam a região, gente o riu n d a das altas terras do Ser
tão (fugitiva das secas), m oradores de antigas aldeias indígenas do Agreste — todas
TABELA 20
TABELA 21
R e p a r t iç ã o da P o p u i a ç ã o F e m in in a L iv r e de S alvad o r por C or, 1872
B rancas M u ia t a s N egras C ah ix iías T otal
TABELA 22
P a r Oq c l u B ran co s n a o b ran co s
essas pessoas poderiam ter procurado trabalho nos sítios dos arredores da cidade.
M as não apenas elas. Em num erosos docum entos m encionam -se caboclos oriundos
das costas de Ilhéus, Porto Seguro e outras regiões do sul da Província, o que ajuda
a explicar sua concentração relativa nas paróquias da Conceição da Praia e de M a
res, na C id ade B aixa. Seu peso na população da cidade ainda era insignificante por
volta de 1870.
T ais eram os com ponentes da população de Salvador, cidade colorida e m isturada
e, por isso, cheia de vida! O processo de ‘em branquecim ento’ favoreceu o elo obriga
tório, representado pela população m estiça. N a Bahia, o ‘branco fino — ou seja, o
português branco — tornou-se cada vez m ais um a lem brança h istó rica;^ no im aginá
rio o modelo perm aneceu europeu, mas a realidade foi m arcada por uma miscigenação
ainda mais forte do que a sugerida pelas estatísticas. Embora não haja dados precisos,
pode-sc concluir que a im igração européia para a Bahia foi m uito fraca durante o
século XIX, com parada à im portação de negros.
N ão possuo nenhum a fonte referente a essa im igração na prim eira metade do
século XIX. Para a segunda metade, existe uma série dc cem livros de registros de
passageiros estrangeiros que entraram c saíram da Bahia entre 1855 e 1864. Mas eles
têm sérias lacunas do ponto de vista cronológico. Além disso, os dados não são homo
gêneos e sua triagem é m uito difícil. Uma sondagem apontou a entrada de 4.456
estrangeiros em nove anos. Mas ignoro totalmente se eles se estabeleceram em Salva
dor ou no interior da Província, ou ainda se tornaram a partir. Esses quinhentos e
poucos — exatam ente 495, cm média, por ano — europeus que entravam todos os
B a h ia , S é c u l o X I X
126
anos em Salvador eram m u ito poucos em relaçao aos 6 .6 7 3 africanos que entraram no
porto cada ano du ran te os ú ltim o s anos do tráfico de escravos.25
Os especialistas em questões sociais da B ahia co n sideram brancas as pessoas que
apresentam características d o m in an tes dessa raça, m esm o q u e h aja m istura de sangue
negro ou índio. N ão im po rta a origem racial. A lém disso , q uem tiver certo prestígio
social será considerado branco, m esm o q ue seja m estiço claro ou m ulato escuro.
Segundo Pierson, na B ahia, ser negro é po ssuir “traços negróides m u ito s visíveis” ou
ter um a “situação social in ferio r”. P ara ele, os term os ‘ n eg ro ’ e ‘b ran co ’ são m uito mais
“categorias baseadas na ap arên cia física q u e na ra ç a ” e se referem à posição na socie
dade, de m odo que a ascensão social pode ‘lib e rta r’ um in d iv íd u o de sua cor original.26
A ssim , a im ensa varied ad e de m estiços — p ara os q u ais os brasileiros inventaram
diversas palavras, com o m u lato s, cabras, pardos, sararás, cabos-verdes etc. — são
d etlarad o s ‘brancos’ se forem so cialm en te aceitos e ‘m u lato s’ em caso contrário.
Essa am b igü id ad e no uso atu al dos term os q u e se referem à origem racial e social
dos habitantes de Salvado r reforça a necessidade de q u estio n ar os historiadores do
século XIX. Q u al era, na época, o sig n ificad o exato desses m esm os termos? Que
m o bilidade a sociedade oferecia aos alfo rriad o s, q ue v iv iam a co n dição de escravos em
um passado m u ito próxim o? Seus descen den tes tin h am as m esm as chances que os
im igrantes brancos? A sociedade b aian a, escravista até 1 8 8 8 , freou a ascensão social
dos m ais h u m ildes, fossem livres o u escravos? O u, ao co n trário , foi m ais aberta, mas
perm issiva, após a A bolição?
U m a afirm ação m u ito repetida e pouco q u estio n ad a é a de q ue a sociedade baiana
estava d ivid id a, até 1888, em brancos senhores e negros escravos, passando em seguida
a dividir-se entre brancos ricos e negros pobres. N ão h averia a í u m a rejeição incons
ciente à m iscigenação? N ão fica esquecido que o branco de hoje era o m ulato e o negro
de outrora? A supervalorizaçao desse m odelo branco, ao qual aspira a sociedade baiana,
não apagou valores sociais de outro tipo , já que todo um grupo social — os negros
foi inserido nela sem poder preservar sua p rópria cu ltu ra?27
M eu problem a fundam ental é o seguin te: a dicoto m ía ‘branco rico’ e negro
pobre é uma característica da ‘raça’ negra — reduzida à escravidão, espoliada, explo
rada ou decorre da estrutura econôm ica escravocrata, d irigid a do exterior segundo
o tradicional esquem a da dependência? O term o escravo se refere a uma categoria
social, e não a uma raça, pois a cor da pele e a origem não passam de acidentes
históricos numa cidade de m estiços como Salvador. Já está, portanto, na hora de
percorrer as ruas c entrar nas casas para tentar com preender como se formou a estru
tura fam iliar e como os homens e as m ulheres da Bahia aprenderam a viver juntos, no
meio dc m il antagonism os, m il contradições.
LIVRO
A F a m íl ia B a ia n a
C A P ÍT U L O 9
U m Pouco de H ist ó r ia
129
130 B a h ia , S é c u l o XIX
tuiu um terceiro código, incluindo, pela prim eira vez, as leis ditas extravagantes, qUe
até então não haviam sido codificadas, perm anecendo fora do corpus juris. Finalmente,
em 1603, durante o reinado de Filipe III da Espanha (1 5 9 8 -1 6 2 1 ), veio à lu2 Um
duradouro código, que serviria de base legal inclusive para a formação do Estado
brasileiro, vigindo aqui durante todo o prim eiro século posterior â Independência
(a parte civil das Ordenações Filipinas só foi sub stituída no Brasil em 1917).
As Ordenações estabelecem um a distinção clara e reiterada entre ‘ nobres’ c ‘peões'.
M as, em qualquer desses casos, a fam ília portuguesa ou brasileira foi definida como
nuclear, formada por um casal e seus filhos. Para traçar a evolução legal dessa família
entre 1800 e 1890, interessam os especialm ente o pen últim o dos cinco livros, qUe trata
do direito civil e com ercial.2 T entarem os, prim eiro , saber com o se estabeleciam os
direitos pessoais no âm bito das relações famiÜais stn cto e lato sensu. Depois, numa
segunda etapa, definirem os os direitos e deveres decorrentes dessas relações.
R e g im es M a t r im o n ia is
No Brasil, a grande m aioria dos casam entos era efetu ad a em regim e de comunhão de
bens, tam bém conhecido com o de ‘carta de m etad e’. Se os futuros nubentes quises
sem assinar um pacto nupcial — situação pouco freq ü en te ■ — , deveriam ser maiores
de idade, livres de qualqu er em pecilh o e considerados capazes, do ponto de vista
civil. Até o século XIX, a m aio rid ad e legal era de catorze anos para os rapazes e de
doze anos para as moças, lim ites abaixo dos quais tornava-se necessário obrer autori
zação paterna ou ju d ic ia l para casar. A lguns desses contratos m atrim oniais — na
verdade, raros — sim plesm ente exclu íam ou, ao co n trário , form alizavam a comu
nhão legal.3 O utros tin h am objetivos d iferen tes, com o a d efin ição do regime dos
bens (próprios ou doados pelos pais) incorporados ao p atrim ô n io ou do montante
de doações feitas, no presente ou no fu tu ro , pelos nubentes entre si (poderiam ser
feitas inclusive depois da morre de um deles). A ssim , m arido ou m ulher podiam
oferecer dotes ao cônjuge. N a sociedade b aian a de então, viúvos abastados e com
descendência costum avam dar um dote ou u m a renda para o novo cônjuge ou as
filhas, como forma de lhes assegurar um p atrim ô n io próprio. T ratava-se, neste caso,
de um pacto dotal, que não deve ser confundido com um contrato dotal. O pacto
utilizado sobretudo por filhos de fam ílias nobres — destinava, à m ulher, rendas
próprias para suas pequenas despesas. Essa lei foi abolida em 8 de outubro de 1835,
junto com o m orgadio. Em caso de falecim ento, o dote ficava com o cônjuge viúvo,
enquanto o resto da herança era distrib uído entre os outros herdeiros legítimos-
N aturalm ente, os pactos que estabeleciam um a renda ou um dote anulavam o regi
me de comunhão legal de bens, como está registrado na série in titu lad a Livros de
Notas e Escrituras. O mesmo acontecia com o terceiro tipo de pacto, que estabelecia
a separação de bens entre os cônjuges.
L i v r o III - A F a m ília B a ia n a 131
Para que fossem válidos, esses três tipos de contratos deviam ser legalizados em
cartório, estipulando-se o nom e dos futuros cônjuges e de seus pais, bem como sua
nacionalidade, religião, data de batizado, idade, dom icílio e, se fosse o caso, grau de
p a r e n te s c o .S e o casam ento não fosse feito em com unhão legal, era indispensável
fornecer um a descrição detalh ad a dos bens de cada parte. Os contratos que encontrei
raramente obedeciam a essas regras. O m ais das vezes registravam apenas os nomes dos
futuros cônjuges, o local, a d ata e o m o n tan te do dote (só o dote da futura esposa era
estipulado). A lgum as vezes os nom es dos pais eram citados.
Eram, portan to, três os regim es m atrim o n iais em vigor no Brasil no século XIX:
com unhão legal, regim e de dote, e separação de bens. E studando testam entos e inven
tários p o st m ortem p u d e v erificar que, n a B ah ia, 9 0% dos casam entos eram celebrados
segundo o ‘costum e do rein o ’, isto é, a com unh ão legal. D efinam os m elhor cada um a
dessas três form as de associação m atrim o n ial.
R e g im e s M a t r im o n ia is e R e g im e s de B en s
Os regim es de bens eram fu n d am en tais para d istin g u ir os regim es m atrim oniais entre
si. C onsiderava-se q ue h a v ia co m u n h ão legal em quatro casos: o contrato nupcial
definira esse regim e, os futuros côn juges haviam declarado que seus bens passavam a
ser com uns, o casam ento fora celebrado sem contrato específico ou o contrato (assina
do antes do casam ento) fora con siderado nulo po r aten tar contra as leis da natureza,
do casam ento e dos bons co stu m es.5 A p aren tem en te, eram m u ito raras as contendas
entre cônjuges ou en tre herdeiro s em torno deste últim o caso. >
No B rasil, com o em todos os países regidos pelo d ireito rom ano, o casam ento em
regime de com unhão de bens era considerado u m a associação de tipo universal, na
qual o passivo e o ativo de cada côn juge, no presente e no futuro, pertenciam a ambos
em partes iguais. A co m u n h ão , que colocava os bens da fam ília sob adm inistração do
m arido, só era ad m itid a se o casam ento fosse celebrado “dian te da Igreja , se fosse
consum ado e sc nenhum dos cônjuges fosse escravo. O concubinato, por sua vez,
nunca deu d ireito à com unhão de bens pois, desde o C o n cilio de T rento (15 45
1563), a coabitaçao era co n trária aos princípios m orais e religiosos. T am bém estavam
excluídos da com unhão os bens recebidos sob a form a de doação, antes ou depois do
casam ento, ou atribuídos por testam ento com cláusula expressa nesse sentido.
O regim e de com unhão com portava riscos — altos riscos, pode-se dizer , pois
tornava os esposos solidários entre si, no contexto de nm a sociedade cuja econom ia era
m uito especulativa. As fortunas se faziam e se desfaziam em uma mesma geração, o
que, aliás, explica o uso dos dois outros regim es m atrim oniais. A separação de bens era
adotada em diversas situações:
- quando havia opção explícita por este regim e; quando os futuros cônjuges
declaravam não querer contrair m atrim ônio segundo o ‘costum e do reino ;
132 B a h ia , S é c u l o XIX
D iv ó r c io
F il ia ç ã o
dos dezoito anos, por ato cartorial, O casam ento tam bém em ancipava o filho m enor
mas a idade m ínim a legai para con traí-lo era de doze anos para as m eninas e de catorzé
para os m eninos. O pai devia prover alim en tação e educação para os filhos, recebendo
destes, em con trap artida, sem recom pensa, serviços correspondentes às suas idades. Se
o pai estivesse passando necessidades, os filhos deveriam sustentá-lo. Sancionava-se
assim, por lei, a solidariedade do núcleo fam iliar.
O pai ram bém tinha direitos e obrigações para com os bens dos filhos, que podiam
ser ‘bens ordin ário s’ (resultantes de herança recebida da m ãe que falecera ou de outros
legados, doações ou heranças, vindos de um parente ou de o u tra pessoa qualquer) ou
extraordinários’, cu ja lista era bastante longa. Eram extraordinários os bens herdados,
legados ou recebidos em doação m as cu ja ad m in istração fora con fiada a terceiros; os
bens adquiridos pelo trabalho do filh o -fam ília, m esm o q ue o cap ital tivesse sido em
prestado pelo pai; os bens ad q u irid o s no serviço civ il, m ilita r ou eclesiástico, sob forma
de salários ou em olum entos; os bens ad q u irid o s fo rtu itam en te pelo jogo, apostas ou
formas afins; os bens herdados pela in cap acid ad e do pai em herdar. C om exceção de
situações que exigissem a ad m in istração por terceiros, o pai tin h a com petência para
gerir os bens de seus filhos. A lém disso, era sucessor de um filho falecido, a menos que
este tivesse deixado descendentes ou cô n ju g e viúvo. C aso co n trário , mesmo que hou
vesse testam ento, o pai recebia pelo m enos 2/3 d a herança, desde que não tivesse sido
deserdado pelo filho por um m otivo previsto em lei.
M as havía lim itaçõ es ao poder paterno. Sem autorização do ju iz, o pai não podia
alienar, hipotecar ou trocar os bens de seus filhos; não podia com prar esses bens, nem
mesmo em leilões ou através de terceiros; não podia ob rigar um filho a servir de fiador;
não podia repartir ‘am igav elm en te’, sem a intervenção de um ju iz , a herança deixada,
para o filho, pela m ie ou por terceiros.
A mãe tam bém tin h a direitos e deveres para com os filhos, inclusive no que dizia
respeito aos bens destes. Em condições norm ais, d iv id ia o encargo de criá-los e educa-
los. Substituía o m arido ausente, não podendo dar um tutor aos filhos até que fosse
declarado o ‘óbito presuntivo’ do pai (podia, ela m esm a, exercer essa função). Em caso
de dissolução do casam ento, era obrigada a am am en tar as crianças até a idade de tres
anos ou dar-lhes am as-de-leíte, pelo m enos enquanto não contraísse novas núpcias.
Em seguida, devia zelar pela educação dos filhos, sobretudo se a fortuna do pai fosse
insuficiente.
Filhos naturais só podiam ser legitim ados depois do casam ento dos pais, adqui
rindo então os mesmos direitos c deveres dos filhos legítim os, como se tivesse ocorri
do um novo nascimento. M as os filhos nascidos de um casam ento anterior deviam
gozar do direito dc prim ogenitura, mesmo se tivessem nascido após o filho legitim a
do, e os filhos adultcrinos c aqueles cujos pais houvessem recebido ordens religi°saS
(chamados filhos sacrílegos) estavam excluídos d essa possibilidade.
Com exceção dos filhos nascidos desses ‘coitos danados’ (adultério, incesto ou
praticado por integrantes de ordens religiosas), qualquer criança nascida fora dos
L m t o III - A F amília B aian a 135
casamentos podia ser reconhecida pelo pai ou pela mãe, ou pelos dois conjuntam ente.
Desde que oferecessem prova de seu estado civil, viúvos dos dois sexos podiam reco
nhecer um a criança, m esm o que já tivessem outros filhos legítim os, legitim ados, na
turais, reconhecidos ou adotivos.
A idade dos filhos em vias de reconhecim ento não tinha im portância. Os dispo
sitivos se aplicavam inclusive aos não-nascidos, apenas concebidos. Tam bém era pos
sível reconhecer filhos naturais falecidos, sc estes tivessem deixado descendentes. Em
bora isso fosse proibido por lei, os reconhecim entos de paternidade traziam quase
sempre o nom e do p arceiro .10 Isso pode ser explicado pelo fato de que, freqüentem en
te, reconheciam -se, num m esm o ato, crianças nascidas de mães diferentes, de modo
que as inform ações sobre a m ãe provavelm ente eram ditadas por excesso de zelo em
m atéria de precisão!
O reconhecim ento de um filho n atu ral era feito em cartório, produzindo um tipo
de ato legal relativam en te num eroso nos livros dos tabeliães baianos e praticado por
todas as cam adas sociais d a população livre: ricos com erciantes portugueses, senhores
de engenho, advogados, m édicos ou sim ples africanos alforriados. A criança não podia
recusar a p atern idade ou m atern id ad e reconhecida. No entanto, mesmo depois de
validado, o ato carto rial podia ser contestado por declarações que demonstrassem sua
nulidade (por exem plo, pela com provação de que a paternidade ou m aternidade reco
nhecida era im possível) ou pelo reconhecim ento, por parte da m ãe, de que o pai era
o u tro .11
D epois de reconhecidos, os filhos n aturais passavam a gozar dos mesmos direitos
e deveres dos filhos legítim o s, in clu siv e no que dizia respeito à herança. A liás, os filhos
naturais não reconhecidos por seus pais tam bém podiam herdar um a parcela da parte
disponível (terça). E xistia p o ssib ilidade inclusive de reconhecim ento ju d icial de um
filho que requeresse a sim ples o u to rga de alim en tos ou tivesse sido concebido por
estupro ou rapto de u m a m u lh er.
F il h o s A d o t iv o s
A adoção estava prevista em lei, podendo ser solicitada, cm princípio, por qualquer
pessoa que tivesse m enos de cin q üen ta anos e, no m ínim o , mais catorze anos que a
criança. Sc fosse casado, o so licitan te precisava obter o consentim ento do cônjuge, se
vivesse cm união livre, não podia sequer solicitar um a adoção. Os tutores só podiam
adotar seu pupilo quando tivessem liquidado as contas de tutela. Não podia ser ado
tada um a pessoa que já tivesse descendentes legítim os ou legitim ados, nascidos ou
apenas concebidos.
R egistrada em cartório, a adoção não podia ser revogada, garantindo à criança o
mesmo estatuto de um fiiho natural reconhecido. M as, na Bahia do século XIX, as
raras adoções — encontrei apenas dez casos em 42 livros de tabeliães, que cobrem o
136
B a h ia , S é c u l o X IX
período d e 1800 a 1891 — eram asadas com o artifício para reconhecer filhos naturais
T ratava-se de um a m en tira social co m p letam en te in ú til, pois, nesses casos, as leis e oj
costum es facilitavam o recon hecim en to. Sob esse aspecto, a sociedade baiana não era
com plexada, nem h ip ó crita. O co n cu b in ato estava tão enraizado que ninguém se
preocupava em escondê-lo, m esm o nas cam adas m ais abastadas. U m exemplo entre
m il: um dos senhores de engenh o m ais poderosos d a B ah ia, Francisco Sodré Pereira
Barão de A lago inh as, não h esito u em p ro clam ar sua o rigem b astard a (era filho natural
de um a grande dam a do R ecôncavo, M a ria n a R ita de M en ezes B ran dão , que teve esse
filho im ediatam en te após sua viuvez, assim com o , aliá s, outros filhos de pais diferen
tes) ao p edir, em 1886, o títu lo de fid algo (que não lh e foi co n ced id o ), o único título
de nobreza tran sm itid o de form a h ered itária.
Os laços co n ju gais criav am , sem d ú v id a, ob rigaçõ es m ú tu as en tre os cônjuges e
entre estes e seus filhos, m as a legislação em v ig o r era to leran te p ara com as situações
m arginais. Procurava, sobretudo, p ro teger as crian ças, fossem legítim as, legitimadas,
naturais ou adotivas, todas elas q uase igu ais p eran te a lei. ,
D ir e it o s d e S u c e s s ã o e R e g i m e S u c e s s ó r i o
Até o in ício do século XIX, com o falecim en to do titu la r a p ro p ried ad e civil dos bens
passava aos herdeiros inscritos ou legitim ad o s, até o d écim o grau de parentesco. Se
fossem inco ndicio nais e dissessem respeito a u m a coisa in fu n g ív el, os legados podiam
ser transm itidos a q u alq u er categoria de le g a tá rio .12 O cô n ju g e sobrevivente guardava
a propriedade dos bens en q u an to a p a rtilh a não estivesse term in ad a, a menos que se
tratasse de bens próprios do falecido. Se não houvesse cô n juge ou se os bens fossem
incom unicáveis, a propriedade civil devia ser tra n sm itid a a pessoas “notoriamente
conhecidas com o irm ãos, irm ãs, tios, tios ou prim os do falecido, segundo o Alvará de
1754, Se a sucessão fosse de ordem testam en tária, essa propriedade poderia pertencer
ao cônjuge sobrevivente, ao descendente, ao ascendente ou ao executor testam entário
e herdeiro inscrito. Os legatários só entravam de posse de seus legados depois do ato
de partilha.
H avia um prazo de trin ta dias (contados a partir da abertura do processo sucessó
rio) para que se apresentasse um a descrição detalhada de todos os bens deixados pel°
falecido, mas isso era pouco respeitado. N a m aioria dos casos, fazia-se apenas uma
descrição sum ária, que 'esquecia’ um a parte dos bens, sobretudo daqueles que estives
sem fora da Província. Às vezes essa prática ocasionava processos. Geralmente, porém>
os herdeiros preferiam se entender e resolver am istosam ente as questões. O inventário
era redigido sob controle de um juiz com petente, que fazia com parecer os credores e
os legatários, para que seguissem o desenrolar do processo.13
N o século X ÍX eram m uito raros os que morriam em Salvador deixando bens
declarados, e ainda mais raros os que faziam um testam ento.1^ M as a lei reconhecia
Li\n.o III - A F a m ília B a ia n a 137
dois tipos dc sucessão: a testam cn tária e a a b in testa to (ou legítim a, que tratava dos
casos em que o falecido não d eixara testam en to ). N esse ú ltim o caso, o côn juge torn a
va-se o h erdeiro , segu in d o -se os descen dentes, ascendentes e colaterais.
Previam -se diversos casos de pessoas con sideradas incapazes de suceder: os in te
grantes dc ordens religio sas; os autores ou cú m p lices de crim es praticados contra o
falecido, in clu in d o -se a í os crim es co n tra a ho nra, v io lên cias e fraudes; o cônjuge
sobrevivente que, ten do filh os, não tivesse m an d ad o fazer um inventário em seguida
ao falecim ento ou q u e, em caso de lo u cu ra do falecido, não o tivesse ajudad o a
recuperar a razão; a ‘filh a -fa m ília ’ q u e se tivesse desonrado; e, até 1824, os estrangei
ros, os brasileiros p riv ad o s d a n a c io n alid a d e , os proscritos, os heréticos, os apóstatas,
os escravos, os bastardos e os ‘ m ortos c iv is’. A C o n stitu içã o de 1824 (que, m odificada
pelo Ato A d icio n al em 1 8 3 4 , p erm an eceu em v ig o r até 1 88 9) m anteve essa interdição
no caso dos escravos, dos b astard o s e dos ‘m ortos c iv is’.
Se o casam ento tivesse sido feito em regim e de com unh ão de bens, o cônjuge
sobrevivente receb ia a m etad e da h eran ça to tal depois de feitos o inventário e a avalia
ção. A ou tra m etad e cab ia aos d em ais herdeiro s. A ordem de sucessão da m etade
disponível era a segu in te: d escen d en tes, ascenden tes, cô n juge e, fin alm en te, o Estado,
Se não houvesse ascen d en tes, descen d en tes ou colaterais até o décim o grau, o cônjuge
sobrevivente era h erd eiro ú n ico , M as, nos séculos X V II e XVIII e no prim eiro terço do
século XIX, esse esq u em a p o d ia v ariar u m pouco q uando entravam em cena duas
interessantes in stitu içõ es — o m o rgad io e a c a p e la — que, abolidas em 1835, influen
ciaram as transferências de bens e de propriedades de certas cam adas sociais na Bahia.
Bens de m orgadio ou de cap ela estavam sujeito s a lim itaçõ es no d ireito de propriedade
e deviam perm anecer p erp etu am en te com a m esm a fam ília, não podendo ser p artilh a
dos ou alienados.
O m orgadio — q u e parece ter sido usado apenas u m a dezena de vezes na Bahia
durante o período colo nial — visava proteger as fortunas de fam ília, tendo sido ado
tado sobretudo por portugueses de ascendên cia nobre. Podia in clu ir bens situados no
Brasil c em P o rtu g a l.15 Essa in stitu ição trazia consigo certas obrigações, pois os
adm inistradores (ou seja, os herdeiros) deveriam gastar com obras ‘piedosas’ mais ou
menos a centésim a parte das rendas das propriedades. A capela — mais comum era
uma instituição de caráter religioso, feita para expressar a piedade dc seus fundadores,
que destinavam as rendas de certa área territorial para a construção e conservação de
um tem plo. Nem sem pre essa prática correspondia às intenções proclamadas. Com
efeíto, através desse m ecanism o a propriedade em questão se tornava inalienável c não
podia ser hipotecada. Num país cm que as terras m udavam freqüentem ente de mãos
e nem mesmo poderosos senhores de engenho escapavam ao risco de empobrecimento
rápido, era tentador im pedir que os herdeiros alienassem ou hipotecassem certas pro
priedades, m antendo aberta apenas a possibilidade de que fossem alugadas para saldar
dívidas eventuais.16 Assim, o proprietário original criava, para seus descendentes, um
escudo contra os reveses da fortuna.
B a h ia , S é c u l o XIX
H erd e iro s
No século XIX, havia, na B ahia, três categorias de descendentes: legítim os, legitim a
dos e ilegítim os (naturais). Os direitos das duas prim eiras eram iguais, sem distinção
de sexo, leito ou idade (o costum e de favorecer o m ais velho ou o segundo dos filhos
hom ens nunca existiu em Portugal nem no B rasil). Se não houvesse filhos vivos, a
sucessão passava para os netos, e assim sucessivam ente, até a extinção da descendência.
Por direito de representação, os descendentes de um grau inferior podiam concorrer
com os de grau superior, recebendo um a parte equivalente da herança. Exemplo: se
um herdeiro morresse antes de seus pais, mas deixasse descendentes, estes recebiam a
herança, em pé de igualdade com seus tios e tias. Resultava disso tudo um grande
parcelam ento das propriedades, sobretudo agrícolas.
Embora os filhos ilegítim os tam bém fossem m uito protegidos pela lei, havia nesses
casos regras particulares (que, aliás, se aplicavam aos filhos adotivos). Segundo o
antigo direito português, os filhos naturais dos plebeus tinham direito à sucessão com
direitos iguais aos dos filhos legítim os. No Brasil, o decreto n° 4463, de 2 de outubro
de 1847, estendeu esse tratam ento aos filhos naturais das fam ílias nobres. Em qual
quer caso, porém, era necessário o reconhecim ento cartorial ou testamentário da pa
ternidade ou m aternidade. Um filho natural reconhecido por uma pessoa casada só
recebia a metade daquilo a que teria direito, caso fosse legítim o. Alé disso, os filhos
legítimos c legitim ados não pagavam nenhum direiro de sucessão. Até serem assimila-
L iv ro III - A F a m ília B a ia n a
139
dos aos filhos legítim o s (1 8 6 1 ), os filhos n atu rais reconhecidos pagavam um a taxa de
10% e os filhos recon hecido s d u ran te o casam ento pagavam 20% (decretos de 1809
e 1835 e regu lam en to s de 1861 c 1 877).
É fácil a v a lia r as co n seq üên cias sociais de um a legislação desse tipo na tolerante
Salvador: todos os filhos tin h am d ireito a u m a p arte das heranças, de modo que se
criavam fortunas — alg u m as delas, a in d a atu ais — a p artir de situações m arginais. Os
atos de reco n h ecim en to de p atern id ad e se to rn aram cada vez m ais num erosos no
correr do século X IX . C o n te i u m a dezen a desses atos por ano entre 1800 e 1820 mas
esse núm ero passou a cerca de trin ta po r ano no m eio do século.
C lóvis B ev iláq u a a firm a q u e o código filip in o “gu ard a um silêncio en igm ático ”
sobre os d ireito s sucessórios dos filh os adotivo s. É que, na época, se recorria ao direito
rom ano, in terp retad o pelo uso m o derno. A pessoa ad o tad a sucedia a seus pais adoti
vos, sem perder seus d ireito s à sucessão dos bens de sua fam ília n atu ral. M as não tinha
direito a u m a parte le g a l, pois não era con siderado herdeiro necessário. Logo, sua
situação era m enos favo recid a do que a do filho n atu ral reconhecido, o que, aliás,
ajuda a ex p licar o p eq u en o n ú m ero de adoções enco ntradas na B ahia do século XIX.
Os bastardos — filh os a d u lterin o s ou incestuosos — não estavam afastados das
sucessões. N ão h erd avam d e suas m ães, m as estas não tin h am direitos à herança dos
próprios pais. P reo cu p ad a em não ex clu ir a crian ça, a legislação previa que se pulasse
um a geração, fazendo o b astard o h erd ar d iretam en te de seus avós. As crianças nascidas
de uniões ilíc ita s en tre m u lh eres so lteiras e hom ens casados entravam na lin h a de
sucessão pelo lado m atern o , m as não pelo paterno.
S u ce ssã o po r T e sta m e n to
A ordem de sucessão era a m esm a, tan to em casos testam entários com o em casos úb
intestato. M as a p o ssib ilid ad e de red ig ir um testam ento suavizava os rigores da Jei,
perm itindo que o testador dispusesse livrem en te da terça parte de sua fortuna a
terça’ — em favor de q uem escolhesse, ou ain d a em favor de um a instituição, religiosa
ou leiga. T odas as pessoas podiam fazer testam entos, corri exceção dos menores (de
catorze anos para os m eninos e de doze para as m eninas, como no caso dos casam en
tos), dos ‘filhos-fam ília’, dos loucos, dos heréticos, dos apóstatas, dos religiosos professos,
dos condenados à m orte, dos surdos-m udos (que, na época, não aprendiam a ler e a
escrever) e dos escravos. M as, em toda a B ahia, havia poucas pessoas alfabetizadas,
capazes de redigir. Por isso, os testam entos podiam ser 'p ú b lic o s, ditos também
abertos’, ou privados.17
Em Salvador, os testam entos serviam freqüentem ente para reconhecer paternida
de, alforriar ou favorecer escravos, esclarecer a m aneira como se desejava ser enterrado,
indicar a quantia que se desejava distribuir na forma de esmolas, solicitar a celebraçao
de missas, legar bens ou dinheiro para instituições. Por isso, os testamentos são uma
140 B ah ia , S é c u l o X IX
inesgotável fonte de inform ações sobre todas as cam adas sociais de Salvador. Nuj^
leito de m orte, a sinceridade torna-se praxe. Ricos e pobres m ostram então traç0s
m uito parecidos, entre os quais a vontade de sobreviver na lem brança dos seus.
U m a L e g isl a ç ã o B e m A d a p t a d a
A lguns traços o rigin ais aparecem nessa análise das bases legais da fam ília. A forma de
associação con jugal m ais com um era a com u nh ão legal de bens. Q ue podia significar
essa solidariedade, q uando os cônjuges nada possuíam ? M ais do que parece. Numa
sociedade em que a riq ueza era m u ito co n cen trada, o regim e m atrim onial era impor
tante m esm o en tre os que nada possuíam , pois criav a um a solidariedade profunda
entre os dois parceiros. A liás, m esm o no caso de separação de bens, quase todos os
contratantes estabeleciam dotes ou rendas. A té on de pu de ver, todos os que optavam
pelo regim e de separação de bens p erten ciam às cam adas abastadas (comerciantes,
m em bros de profissões lib erais, m ilitares, fu n cio n ário s). N o período de 1801 a 1809,
encontrei tam bém sete contratos desse tip o feitos po r escravos alforriados, mas foram
exceção. O regim e da com unh ão p o d ia ser m o dificado no decorrer da vida conjugal,
por exem plo q uando um dos cônjuges recebesse u m a doação incom unicável.
A solidariedade era um dos traços d o m in an tes d a sociedade baiana no século XIX.
A adoção quase auto m ática da com u nh ão de bens nos casam entos reforçava legalmen
te essas características n aturais, m u ito im po rtan tes para hom ens e m ulheres. As socie
dades ocidentais eram , no m esm o perío do, m ais in div id u alistas que a baiana.18
O superpoder dos m aridos era baseado n u m regim e de bens que — com exceção
de casos excepcionais, previstos em contratos ou im p lícito s em determ inadas cláusulas
dos legados , heranças e doações recebidas no decorrer da vida conjugal — lhes atri
buía a adm inistração dos bens do casal. A m u lher era dependente da vontade do
m arido, devendo pedir sua autorização até para certas despesas do dia-a-día. Se ela
quisesse exercer um a atividade com ercial separada do m arido, necessitava de uma
autorização especial deste últim o , registrada em cartó rio .19 Apesar disso, a separação
legal de corpos podia, em certos casos, afrouxar essa cadeia de dependência, sobretudo
nas classes m édias e nas menos favorecidas. Essa separação, bem como a separação de
bens, não era com um nas cam adas m ais abastadas, onde os desentendimentos conju
gais geralm ente term inavam com o afastam ento do m arido, que ia constituir ura*
fam ília m arginal. As mulheres dessa cam ada social raram ente transgrediam as inter ■
ções fundadas na moral religiosa.
O casal solidário — legal ou não —~ Linha direitos e deveres para com sua descen
dência. Através dc algum a das diversas fórmulas legais disponíveis, deveria reconhece
os filhos nascidos fora dos laços m atrim oniais, prática comum a todas as cama
sociais. É difícil avaliar com precisão a proporção de filhos ilegítimos r e c o n h e c i d o s ,
pois, em geral, isso não era feito por ocasião dos nascimentos, mas por testamento
L iv ro III - A F a m ília B a ia n a
O s p ró p rio s p ad res não h e sitav am em ap resen tar-se aos tab eliães para confessar,
co n trito s, o n ú m ero d e filh o s n ascid o s de su a “m iséria e frag ilid ad e h u m an as”.20
L e g ítim as ou le g itim a d a s , reco n h ecid as o u por recon hecer, adotivas ou (no pior
dos casos) n a tu ra is sem esp eran ças de reco n h ecim en to , todas as crian ças eram m u ito
pro tegid as p elo le g isla d o r, m as su b m e tid a s ao p o d er do pai ou, n a au sên cia deste, da
m ae ou d e u m tu to r, a té a m a io rid a d e . A sucessão n ão co m p o rtav a n en h u m d ireito de
p rim o g e n itu ra , m en o s nos casos, m u ito raros, de m o rg a d io ou de cap ela,21 restritos às
cam adas m ais a b astad a s. A le i c o n fe ria u m a ex istê n c ia real à fa m ília n atu ral. U m casal
q ue vivesse em u n iã o liv re era in c ita d o a c u m p rir seus deveres e a regu larizar sua
situ ação , n em q u e fosse no le ito de m o rte, d e m o d o a ev ita r co n trad ição flagrante com
a m oral cristã.
V ejam o s ag o ra co m o h o m en s e m u lh e re s de S alv ad o r co m p reen d iam essa m ensa
gem e com o tira v a m p ro v e ito d e to d as as a b ertu ras, to d as as p o ssib ilid ad es oferecidas
por u m a le g isla ç ã o re la tiv a m e n te flex ív el.
C A P ÍT U L O 1 0
T ip o l o g ia d a F a m íl ia B a ia n a
• 142
L iv ro III - A F a m ília B a ia n a
143
pioneiro, de M a ria L uiza M a rc ílio , sobre a população de São Paulo entre 1750 e
1850/ que retom a a d efin ição clássica de fam ília e a estende aos numerosos pais e
mães celibatário s então ex isten tes/ A crescenta ain d a a noção de ‘d o m icílio ’,6 local
onde viviam co m u n id ad es co n stitu íd as p rin cip alm en te por mem bros de um a fam ília
— ascendentes, netos e outros parentes, além de em pregados c hóspedes — que
com partilhavam o m esm o teto do chefe. Pode-se associar esse conceito ao de ‘fogos’,
usado nos antigo s recenseam en tos brasileiros. D e acordo com a ausência ou a presença
de um ou m ais chefes de fam ília, M a ria Luiza M arcílio distin gu e, entre a população
livre, três tipos de d o m icílio s — com apenas um chefe, com vários chefes e sem chefes
— por sua vez su b d iv id id o s em diversos tipos de associações fam iliares.7
E studando o caso de V ila R ica (M in as G erais), Iraci dei N ero da C osta8 propôs
outra classificação, m u ito ú til, sobretudo q u an d o se trata de d eterm in ar o tam anho e
a estrutura dos grup os do m éstico s. Ela parte de duplo critério; o institucio nal {família
livre ou escrava) e o ligad o aos costum es (fam ília in d ep en d en te ou dependente). Neste
últim o caso ap areciam os agregad o s — parentes ou am igos pobres, ou então escravos
alforriados — que existiam em todas as regiões do B rasil, tanto no cam po como na
cidade. E m bora livres, m an tin h am laços dc d ep en d ên cia e subordinação em relação ao
chefe das fam ílias q ue os h aviam recebido . É eviden te q ue essa classificação é ú til para
determ inar o tam an h o e a estru tu ra dos grupos dom ésticos.
Seria interessante ten tar u m a classificação que pudesse servir para várias regiões
brasileiras, de m odo a p e rm itir com parações entre as estruturas fam ilíais. Além disso,
é essencial d istin g u ir fam ílias form adas por pessoas livres, alforriadas ou escravas, para
que se possam cap tar as m o b ilid ad es sociais e afastar a idéia de um a sociedade bloquea
da, dual, que o p u n h a, sem nuances, senhores brancos e escravos negros.
A dotei um m étodo d iferen te, q ue m e pareceu útil para estudar prim eiro a fam í
lia nuclear, elem entar, b io ló gica, base de toda associação fam iliaf/ No Brasil, essa
fam ília era legítim a {ou seja, abençoada pela Igreja) ou natural. Sobre esta ultim a
— que podia scr form ada por um chefe m asculino, um a m ulher agregada e seus
filhos, se existissem — há poucos docum entos. A crescentei ainda os casais sem fi
lhos (que criam problem as dc classificação, pois dizem respeito a três casos diferen
tes: casal constituído cm idade tardia, casal sem filhos sobreviventes, e casal que
ainda não teve filhos) c as mães ou pais solteiros (não necessariamente a procriação
exigia coahitação prolongada; os atos cartoriais dc reconhecim ento de filhos natu
rais mostram que era com um que homens c mulheres tivessem vários filhos com
pessoas diferentes). , _
Para encontrar todos os tipos de a sso c ia ç õ e s que não fossem do tipo da família
simples, enfoquei depois os grupos domésticos, ou seja, conjuntos de pessoas que
compartilham o mesmo espaço dc v id a".111 M eu csrudo, que cobre o período 1800—
1890, se baseia essencialm ente cm duas séries de documentos; o recenseamento reali
zado cm 1855 na cidade de Salvador e 1.101 inventários p ost m ortem ( 7 15 de homens
c 386 dc m ulheres), feitos por pessoas, livres ou alforriadas, de todas as camadas sociais
144 B a h ia . S é c u l o XIX
d e Salvador. Aparecem tam bém inform ações sobre as fam ílias dos escravos q Ue pert
ctam aos tesradores.
Q uase rodos os docum entos do ccnso dc 1835 foram destruídos ou dçsaparec
ram . Restaram dados sobre cinco quarteirões, localizados cm quarro das onze par^_
quias da cidade: Sé, San to A ntônio A lém do C arm o , São Pedro e P ilar.11 Trabalh ‘
com apenas três delas — 21-* e 2 2 a da Sé c 10a do P ilar, q ue abrigavam ao todo \\\
fa m ílias— pois só nesses casos pude estabelecer os graus de parentesco dos integrantes
dos grupos dom ésticos. Para o estudo sobre a fam ília alfo rriada, utilizei uma terceira
série, form ada por 482 testam entos de escravos alforriados na Bahia no século XIX
F a m íl ia L egal e C o n s e n s u a l l
Jo h ild o Lopes de A thayde escreveu um pio n eiro estudo dem ográfico sobre a cidade de
Salvador no século XIX, recenseando as três grandes variáveis — batism os, casamentos
e óbitos. M as não prosseguiu em direção a u m a an álise aprofun dada da família baiana.
N ão obstante, encontrei nesse trabalh o inform ações m u ito úteis, como a média anual
de casam entos em períodos de dez anos. Enrre 1800 e 1839 essa m édia oscilou entre
198,7 e 2 0 4 ,7 ; na década de 1840, caiu para 182 ,5 ; entre 1850 e 1889 houve progres
são contínua: 2 7 1 ,3 (1 8 5 0 -1 8 5 9 ), 2 9 2 ,7 (1 8 6 0 -1 8 6 9 ), 3 5 8 ,7 (1 8 7 0 -1 8 7 9 ) e 401,6
(1 8 8 0 —1 8 8 9 ).12 O forte aum en to observado na passagem da década de 1840-1849
para a de 1 8 5 0 -1 8 5 9 (4 8 ,6 ) perm ite duas explicações, com plem entares entre si: as
epidem ias de febre am arela e de cólera tornaram m ais forte o medo da morte, levando
m aior núm ero de casais a regularizar suas situações, ou a Igreja aum entou sua influen
cia, tornando-se m ais rom ana e, portanto, m ais severa em m atéria de moral. Seja como
for, o núm ero de casam entos dobrou ao longo o século XIX.
C om o disse, para estudar a situação ju ríd ica da fam ília baiana, recorri a informa
ções dos 1.101 inventários p o st m ortem já m encionados e do recenseamento de 1855-
Os prim eiros possibilitaram a identificação de 772 fam ílias e o segundo de 11L entre
146 grupos dom ésticos.
N o u n iv erso re tratad o nas d u a s séries d e d o c u m e n to s , a so m a dos casais e das
pessoas viúvas q u e tin h a m filhos vivos ch e g av a a 8 2 % do total. P recisam os tentar saber
se os 18% restantes tin h a m filhos falecido s, N o re c e n se a m e n to nad a se diz sobre is>n.
em b ora apareça a id ade dos dois parceiros; nos in ven tário s o c o n trário se dá: fornecem -
se a idade e o n ú m ero dc filhos falecidos, m as ra ram e n te sc diz a idade dos cônjuges.
I rês dos cinco casais sem filhos citados no recen seam ento dc 1855 haviam ultra
passado a idade dc procriação. C asa m e n to s tardios e ram então bastante freqüentes,
fosse para legalizar an tig as u n iõ es livres, fosse para u n ir u m a pessoa viúva a outra.
Doações feitas a um dos esposos m uitas vezes explicitavam a situação, hntre 1806®
1 861 , por exem plo, foram celebrados 8 2 2 casam entos na paróquia do Paço, vizín a
à da Sé, localizada no centro d a C id a d e Alta; 2 1 ,6 % dos ho m ens e 11,9% das
U v ro III - A F a m ília B a ia n a
145
TABELA 23
F a m ília s L e g a is (1 8 0 0 -1 8 8 9 )
TABELA 24
Magistrado I - -
Escrivão 3 ■ - ■ -
Procurador de Justiça I - -
Escrevente - 1 -
Servidor público 8 I -
Advogado 1 - . -
Médico 1 - - _
Mestre - I -
Proprietário 1 - -
Comerciante 5 - -
Empregado no comércio 2 - -
Marítimo 1 - -
Ourives - - I
Correeiro 1 - -
Artista 1 -
Pedreiro - 1 I
Marceneiro - 1 -
Pintor dc paredes - 2 -
Chapeleiro - 1 -
Tanceiro - - 3
Euniiciro - I -
Açougueiro _ 1 1
Sem profissão 2 3 1
Total 28 13 5
__ ____ _________ L iv ro III - A Família B aiana 14 7
h'. •
$:= ■ ■
. TABF.LA 2 5
. R e pa r t iç ão d o s C a sa m e n t o s s e g u n d o a Idade
n a s P a r ó q u i a s d o P a ç o ( 1 8 0 6 - 1 8 6 1 ) e C o n c e i ç ã o d a P raia ( 1 8 5 5 - 1 8 6 5 )
O tam anho das fam ílias legais tam bém é um dado que perm anece vago quando se
consultam inventários e o recenseam ento de 1855. Nos melhores casos, obtêm-se fo
tografias’, que captam um instante preciso- A busca de uma sucessão de imagens da
mesma fam ília constrói o m ais das vezes um a história irregular e hesitante. Na tabela
abaixo, incluí casais ou pessoas viúvas com filhos; depois, contei todas as crianças, mesmo
as falecidas, deixando de fora só os filhos naturais que náo moravam com os pais.
TABELA 2 6
T amanho da Fa m í l i a L e g a l , 1 8 0 0 - 1 8 9 0
T otai de TO I AI DE
N ° DF. HLHOS R l CRNSFAMENTO I n v e n t á r io s
PAMll IAS FILHOS
Dl. 1 8 5 5 po st SiORlPM
126 ( 1 8 ,5 ) 126 (5 ,0 )
1 14 112
127 ( 1 8 .6 ) 254 (1 0 ,2 )
2 13 114
11 8 ( 1 7 .3 ) 354 (| 4 ,2 )
3 11 107
11 2 ( 1 6 ,4 ) 448 ( 1 8 ,0 )
4 5 107
63 (9 ,2 ) 315 ( U ,6)
5 4 59
54 ( 7 .9 ) 324 ( 1 3 ,0 )
6 3 51
81 (1 1 ,9 ) 669 (2 6 ,8 )
7 o u m ais 2 79
681 ( 100, 0) 2 ,4 9 0 (1 0 0 ,0 )
T o ta l 52 629
B a h ia , S é c u l o X IX
148
Fica claro que a fam ília legal na S alvad o r do século X I X era de tam anho m édi0-
70% delas tinham entre um e quatro filhos, e apenas 12% podiam ser consideradas
num erosas. Estas concentravam -se entre as cam adas m ais abastadas, pois, em 90% d0s
casos, tinh am com o chefe um profissional lib eral, um alto funcionário ou um grancje
com erciante. Para o con jun to da cidade, a m éd ia era de 3 ,7 filhos por família.
A tabela seguinte leva em conta, de um lado, casais casados e pessoas viúvas sem
filhos; de outro, casais e viúvos com filhos vivos, d e m enos de 20 anos e que viviam
com os pais. O recenseam ento fornece a id ad e dos cônjuges e de seus filhos, mas os
inventários, nem sem pre. N eles, com o v im o s, o m itia-se a p ró p ria idade do falecido.
Para um a m aior aproxim ação com a realid ad e, u tiliz ei apenas os inventários que
forneciam as idades dos filhos. D eve-se registrar, porém , que, em Salvador, os estudos
de reconstituição de fam ília sao esp ecialm en te d ifíceis, pois o costum e perm itia que,
depois de casadas, as m ulheres conservassem o no m e de so lteira. M u itas vezes, elas
utilizavam apenas o prenom e ou davam aos filhos (do m esm o p ai) nomes de outra
fam ília. Os filhos de sexo m ascu lin o p o d iam receber o nom e da fa m ília de um parente
ou am igo que se desejava h o m en agear.
TABELA 27
Tanto no recenseam ento com o nos inventários, era grande a presença de casais e
dc pessoas viúvas sem filhos: 3 6 ,8 % , em m édia, percentual m aior do que aquele
relativo aos casam entos tardios. Seriam casais 'velhos’? Não me parece. Em S a lv a d o r,
a morte atingia jovens dc todas as ídades e condições sociais. Não se pode considerar
certo que os viúvos acim a citados nunca tenham tido filhos, pois estes podeni ter
morrido antes dos próprios país. Por outro lado, a repartição de filhos por família é a
mesma que a da tabela precedente, mas houve um a dim inuição im portante das farní'
lias numerosas, em clara correspondência com os elevados índices de mortalidade do
século XIX, repleto dc epidem ias. São, aliás, abundantes as informações sobre os luto*
L iv r o III - A F am ília B aian a
149
nas fam ílias baianas, 60% das quais perdiam a m etade de seus filhos antes da m orte de
um dos pais. U m exem plo entre m il: Francisco Adães V ilas Boas, rico com erciante
português falecido em 1885, declarou em seu testam ento ter tido doze filhos, dos
quais seis m ortos em tenra idade. ’
As fam ílias de Salvador tinh am , em m édia, 1,9 filho (núm ero que subiria para três
se excluíssemos os casais e as pessoas viúvas sem filhos). Eram, portanto, pouco num e
rosas, por causa da gran de m o rtalidade in fan til e ju ven il, da idade relativam ente
avançada dos nubentes e dos segundos casam entos (note-se que a m édia encontrada
em São Paulo por M a ria Luiza M arcílio está m uito próxim a da m inha: 1,8 filho por
fam ília em 1 7 6 5 ).15 C o m o explicar então o aum ento da população da cidade e seus
grandes índices de crescim ento? A resposta se encontra na proporção, m uito elevada,
de filhos ilegítim o s nascidos em Salvador. À fam ília legal, acrescentava-se a consensual,
que vamos analisar agora. /
A F a m íl ia C o n se n su a l . ’
Fundada apenas no con sen tim ento m útuo dos parceiros, a fam ília consensual não era
reconhecida nem pela Igreja nem pelas leis, mas era encarada sem maiores problemas
pela sociedade baiana desde o in ício da colonização. Influenciados por essa forte cor
rente de tolerância e preocupados em proteger as crianças, os legisladores contribuí
ram para dar a essas uniões algum a existência legal, graças ao estatuto oferecido aos
filhos reconhecidos.
Johildo A thayde m ostrou que, entre 1856 e 1865, na paróquia da Sé, 45,7% dos
homens e 51,5% das m ulheres — portanto, quase a m etade da população — perma
neciam definitivam ente celib atário s.16 O estado civil dos nossos recenseados confirma
esses dados?
TABELA 28
Casados 148 40 1 62 1 (4 5 .7 )
36 36
Baseada no recenseamento dc 1855, esta tabela inclui os solteiros adultos que não
viviam em concubinato c não tinham filhos. Quase 36% dos recenseados estavam
nessa condição! Se fossem utilizados apenas os dados fornecidos pelos inventários post
B a h ia , Sécu lo X IX
m ortem , o percentual cairia para 2 9 ,6 % , m uito m enor que o obtido por Johildo
A thayde (que não distin gu e escravos e livres). iMas os inventários só diziam respeito a
um núm ero restrito de baianos, ou seja, aqueles que legavam heranças. Tomemos
como exem plo a década dc 1850, para a qual apurei p raticam en te todos os inventários
p o st m ortem . Segundo o estudo de A thayde, nessa época a m éd ia anual de óbitos em
Salvador — cidade com cerca de o iten ta m il h ab itan tes — era de 2.755,5 pessoa
considerando-se todas as condições ju ríd icas. Era um período de epidem ias, e o ín
dice bruto de m o rtalidade atin g ia 3 4 ,4 % (Jo h ild o A thayde fornece, para 1805, um
índice de m ortalidade de 3 0 ,2 % . Para 1872, de 2 4 ,7 % ). H avia na cidade aproxima
dam ente 1 0.870 escravos, um ‘esto qu e’ que, o ficialm en te, parara de se renovar desde
a abolição do tráfico, em 1 8 5 0 .17 Pode-se ad m itir que o ín d ice de m ortalidade dos
escravos era, pelo m enos, o dobro do existente entre a população livre; afinal, mal
nutridos, m al tratados, fazendo econom ias para poder com prar sua liberdade, eles
enfrentavam condições de v id a m u ito du ras, apesar de serem m ais independentes que
os escravos rurais. A m o rtalidade in fan til representava cerca de 30% dos óbitos. Res
tam então, para os adultos livres, cerca de 6 4 2 ,3 óbitos an u ais em m édia. Ora, traba
lhando apenas com falecim entos ocorridos na década de 1850, disponho de uma
m édia de 3 1,4 inventários por ano, feitos entre u m a cam ad a social que representava
apenas 4 ,9 % da população ad u lta. É pouco,
D isponho de outro recurso para m in h a pesquisa sobre os celibatários definitivos:
as raras listas eleitorais ain d a existentes. T om em os, por exem plo, a lista feita em 1857
na paróquia de São Pedro, situada na C id ad e A lta e v izin h a da Sé. Com o esta, era uma
paróquia residencial, habitada sobretudo por funcionários, pessoas que exerciam pro
fissões liberais ou ofícios artesanais. Entre os 2 0 6 eleitores que já haviam ultrapassado
os cinqüenta anos, 1 5 2 eram viúvos ou casados ( 7 3 , 8 % ) e 5 4 eram solteiros ( 2 ó ,2 % ),
São números mais próximos do resultado de m inhas contas do que daquele apresen
tado por Johildo A thayde. Não há dúvida de que as listas eleitorais privilegiavam
certas classes, pois o sistem a era censítário. M as o patam ar de rendas solicitado era tão
baixo (200.000 réis anuais) que figuram nesses docum entos pessoas humildes, como
pescadores, remadores e vendedores. É provável que um percentual situado entre os
4 5 % de Athayde e os meus 3 0 % corresponda à realidade baiana. Em qualquer caso,
fica claro que o celibato era um fenômeno im portante em Salvador.
U n i õ e s L iv r e s
expansão colonial, a ponto de a Igreja e o Estado passarem a adm itir uniões extralegaisJ^
U m a sim ples declaração de vida com um resolvia a questão, exim indo-se os mais
hum ildes da grande despesa representada pela convocação de um padre. O casamento
religioso só se tornara obrigatório em Portugal no scculo XVI, o que, evidentem ente,
não im pedira a existência dos am ores clandestinos que resultavam em ‘casamentos a
furto’ e ‘casam entos de p ú b lica fam a’ .
Essas práticas foram acentuadas no B rasil, com o afluxo de homens e a falta de
m ulheres de raça b ranca. U m a trad ição de celibatos e de form ação de fam ílias
consensuais nasceu e crio u profundas raízes na sociedade baiana. T an to os hum ildes,
às vezes pobres dem ais para assum ir as despesas de um a cerim ônia religiosa, quanto os
mais abastados recuavam d ian te das im posições do casam ento legal, como por exem
plo a educação dos filhos e a obrigação de sustentá-los. A tabela abaixo ajuda a avaliar
a proporção de fam ílias consensuais na Salvador do século XIX.
TABELA 29
F a m íl ja L e g a l e F a m íl ia C o n se n su a l n a B a h ia
F a m íl ia L e g a l F a m íl ia C o n s e n s u a l
R e c . de I n v e n t á r io s T otal R ec. de I n v e n t á r io s T o ta l
1855 (1800-1899) 1855 (180 0-18 89 )
Mãe celibatária - - - 32 41 73
Segundo o recenseam ento de 1855, 52,2% dos casais viviam em união livre. Mas,
segundo os inventários p o st m ortem , esse índice seria de apenas 16,5% . A grande
diferença se explica: esta últim a fonte não inform a com precisão sobre a eventual
coabitação de um a pessoa solteira com alguém do sexo oposto, O recenseamento
parece tratar a questão de form a mais precisa, de modo que se pode dizer que a fam ília
consensual era, na B ahia, m ais dissem inada que a legal.
Casais com filhos e pais ou mães solteiros eram , por sua vez, m uito mais freqüen
tes do que rasais sem filhos. N a série dos inventários, os homens representavam 73,2%
das pessoas celibatárias com filhos; no recenseamento a relação se invertia: eram m u
lheres 89,2% dos solrciros com filhos. Podemos resolver essa contradição atentando
152 B a h ia , S éc u lo XIX
para a p ró p ria natureza dos dois docum entos. Às vésperas da m orte, os pais r e c o n h
ciam seus filhos, para que estes pudessem herdar; até então, na m aior parte das veze
a prole ficava in teiram en te aos encargos da m ãe. ’
N a década de 1850, os inventários p o st m ortem registraram 121 mulheres e 203
hom ens celib atário s. N o recenseam ento de 1855 só apareceram 110 homens e 54
m ulheres nessa condição. N en h u m desses hom ens era português ou alforriado e só
um a m u lher figurava com o alfo rriada. M as a form a de elaboração do recenseamento
não perm ite u m a resposta precisa ao problem a que m e interessa aqui. Raramente os
inventários indicavam a id ad e e a cor do falecido, a não ser quando ele fosse filho
natural ou escravo alfo rriad o . E ntre as q u aren ta m ães celib atárias cujo testamento
consultei, cinco eram african as alfo rriadas e seis eram filhas naturais. Não se deve
esquecer que, na Á frica, o casam ento não era celebrado segundo as mesmas regras do
Brasil ‘lu sitan izad o ’ e católico, A gran d e m aio ria das m ulheres celibatárias era, sem
dú vid a, b aian a. Os hom ens, não; eram de o rigem européia 3 0 % e africana (alforria
dos) 12% dos 112 celib atário s cujos in ven tário s co n su ltei. A ssim , os recém-chegados
perpetuavam , em Salvado r, o costum e da u n ião livre.
Seria possível d efin ir a cor e o estatuto profissional desses pais e mães desacom
panhados de cônjuge? O recenseam ento de 1855 forneceu inform ações úteis, mas
o m itiu as profissões das m ães de fam ília. Sabem os, no en tan to , que quase todas as
integrantes de cam adas urbanas m enos favorecidas exerciam ofícios variados. Vendedoras
am bulantes, lavadeiras, costureiras, passadeiras, am as-d e-leite, bordadeiras e rendeiras
form avam um a população d ilig en te e ativa, que percorria as ruas de Salvador, freqüen
tem ente acom panhada d a filh arada b aru lh en ta e alegre, que anim ava uma cidade
atravancada, ativa e tagarela.
TABELA 30
O r ig e m d e P a is e M A e s C e l i b a t á r i o s ,
s e g u n d o I n v e n tá r io s , 1 8 0 0 -1 8 9 9
B r a sil e ir o s E u ro peus A p r ic a n o s
Pais 57 43 12
Mães 37 - 4
sociedade baiana. O utra fonte, que contribuía com 34,1% das rendas das mães celiba
tárias, eram os aluguéis de casas próprias ou tidas em usufruto, de ações bancárias, de
apólices da dívida pública e de em préstim os concedidos a terceiros.19
Q uantas mães celibatárias não tinham recursos para educar os filhos sem ajuda?
No levantam ento que realizei, apareceram sete mulheres m uito pobres, para as quais
TABELA 31
S i t u a ç ã o P r o f i s s i o n a l e P a í s d e O r i g e m d e P a is e M ã e s S o l t e i r a s ,
s e g u n d o I n v e n t á r i o s p o s t m o r t e m , 1 8 8 0 -1 8 8 9 ’
P r o fu são P ais S o l t e ir o s M ães S o lt e ir a s T o tal
Senhor de engenho 1 - - - - - 1
Negociante - 4 - - - . - 4
Proprietário - 2 - - - - 2
Padre 7 - - - - - 7
Mestre 1 - - - - - 1
Funcionário público I - - - - - 1
Comerciário 1 22 - - - 3
Militar 5 2 - - - - 7
Dono de barco 1 2 I - - - 4
Comerciante 4 20 - - - 2 26
Rentisu 12 4 2 14 - - 32
Alugador de escravos 7 2 2 1 4 - 2 27
Fazendeiro 2 - - - - - 2
Agricultor 4 2 - 2 - - 3
Músico - - 1 - - - 1
Barbeiro - - 4 - - - 4
f sneeiro I - - - - - I
Sapateiro 1 - - - - - 1
Caldeirei ro - - 1 - - - I
Carpinteiro 1 _ - - 2
I -
Funileiro - - - - 1
I -
Padeiro - - ‘ 2
1 t -
Pescador - _ _ - 1
1 -
- _ - - 1
Chapeleiro 1 -
7 - “ 13
Nío declarada 4 2 -
Total 12 37 - 4 153
57 43
B a h ia , S é c u lo XIX
houve inventário, mas não o q ue in v en tariar; ao m orrer, deixaram enum erados vesti
dos surrados, baús, cadeiras, cam as c mesas. Q u an to aos hom ens, seis eram pratica
m ente indigentes. Q uase todos exerciam u m a profissão q u e lhes perm itia suprir as
necessidades, e a m aior parte dos 9 ,8 % q ue “v iviam de suas rendas" eram antigos
com erciantes de pequeno porte, artesãos ou Iocadores de escravos. A grande maioria
dos pais celibatário s trabalhava no pequeno com ércio , na produção de artesanato ou
no cultivo de terra alh eia; 3 8 ,4 % deles eram de origem européia.
As uniões livres eram pois p raticadas sobretudo nas cam adas sociais inferiores e
entre im igrantes europeus. Os dados do recenseam en to de 1855, relativos ao estatuto
profissional das pessoas pesquisadas, co n firm am o q ue consta nos inventários post
m ortem : os pais celibatário s e os chefes de ‘fa m ília co n sen su al’ exerciam ofícios ou
em pregos que os situavam nas cam adas inferiores d a população urbana; 70,2% eram
hom ens de cor, o q u e corresponde à com posição racial d a cidade. Os mesmos dados
sugerem que as uniões extralegais eram p raticad as tan to entre negros como entre
brancos e m ulatos, e q u e os pais celib atário s eram raros nas cam adas sociais mais
abastadas. Essa d u p la afirm ação m e parece coerente com o que sabem os sobre a vida
e os costum es dos baianos. E ntre as 3 2 m ães solteiras registradas no recenseamento de
1855, havia quin ze m u latas, q uatro negras e treze brancas. Este ú ltim o número não
deve espantar: tratava-se de m ulheres h u m ild es, pois apenas quatro delas possuíam
escravos (duas das m ulatas tam bém os p o ssuíam ). V iviam sós ou, algum as vezes, com
a mãe ou um a agregada.
Casais de todas as cores de pele viviam livrem en te unidos, m as em geral os dois
parceiros tinham a m esm a cor. M esm o assim , as uniões livres entre pessoas de cores
diferentes eram m ais freqüentes que os casam entos nessas m esm as condições. Só encon
trei três casam entos mistos no recenseam ento de 1855. Eis o levantam ento completo
dos casais concubinos, com a referência d a cor dos dois parceiros; sete brancos com
brancas; três brancos com m ulatas; dois brancos com negras; oito m ulatos com mula
tas; dois m ulatos com brancas; quatro m ulatos com negras; nove negros com negras;
nenhum negro com m ulata ou branca. Entre os nove ‘casais’ negros, seis eram de
parceiros africanos. Dos três restantes, um era form ado por duas pessoas negras nasci
das no Brasil e dois outros por negros brasileiros unidos a africanas. Em contrapartida,
os brancos c m ulatos que viviam com negras as escolhiam entre as nascidas no B ra s il.
Voltaremos a essa questão quando tentarm os com preender como, na Bahia, ocorriam
a ascensão social c o processo dc ‘em branquccim enco’, ou seja, a passagem da categoria
de ‘m ulata’ para 'branca’.
P artin d o do re cen seam en to de 1 8 5 5 , a tabela 3 2 nos fornccc o n ú m ero de filhos
vívos nas fam ílias legais e nas co n sensuais. ,
O percentual dc casats sem filhos era mais elevado no caso d; ts fam ílias consensuais,
o que nad a tem de espantoso: 1/3 dos casais d c co n cu b in o s sem filhos era íorm ado p ° r
africanos alforriados com m aís dc q u a re n ta anos; outra terça parte também havi
ultrapassado a m esm a faixa etária. Pode-se c o n c lu ir q u e as u n iõ es livres se formavrlt1
L ^ -r o III - A F a m íl ia B a ia n a
t a b e l a 32
C o r e S itu a ç ã o P r o f i s s i o n a l d o s C h e f e s d e F a m ília
C o n s e n s u a l s e g u n d o o R e c e n se a m e n t o de 1 8 5 5 *
Escrivão 1 - -
1
C opista 1 I - 2
Policial - 1 - 1
C om erciante 3 - - 3
C om erciârio 1 - - 1
G a n h ad o r" - - 6 6
M arinheiro ’ - 1 - 1
Pescador 1 - - 1
A çougueiro - - 1 I
C arp in teiro - 1 - 1
Sapateiro - 2 - 2
M arceneiro 1 1 - 2
Pedreiro - - 1 1
T aneeiro 1 - - 1
Funileiro 1 1 - 2
T in tureíro 1 - - 1
A lfaiate - 3 - 3
M úsico - I - 1
Sem profissão - 4 2 6
T otal 11 16 10 37
(*) Não estão computadas as mães solteiras. (**) Termo empregado para carregadores de ca
deiras, vendedores ambulantes c assemelhados.
tardiam ente ou evitavam resultar em filhos? T alvez, Pelos testam entos e os atos cartoriais
que registravam doações, vc-se q ue vários desses casais se form avam em idade mais
avançada, m ovidos m ais po r busca de co m p an h eirism o e fuga à solidão do que pe
expectativa de form ar u m a fam ília.
A fa m ília co n sen su al era responsável por 4 9 .0 % do total de f.lhos, apesar de
r e p r e s e n ta r 6 2 , 7 % d o c o n j u n t o d a s fa m ília s . M e s m o as sim , a c o n ta r pe a m u n a
filh o s ile g ít im o s , p o d c - s c j u l g a r q u e a m a io r ia d os h a b ita n te s d e S a lv a d o r não estava
m u it o p r e o c u p a d a e m l i m i t a r o u e v ita r n a s c im e n to s . C r ia n ç a s , n a B a h ia , sem p re o
ram c o n s id e r a d a s c o m o d á d iv a s d e D eu s.
As famílias legais tinham , em média, 2,5 filhos e as consensuars 1,4 (a drferença
em relação ao núm ero de 1,9 que apresentei anteriormente se deve à nao-meorpora-
m B a h ia , S é c u l o X I X
TABELA 33
N° F il h o s F a m íl ia T o t a l de F a m Ilia
de T o ta l de
L egal F l LHOS C o n se n su a l Filhos
0 7 (1 7 ,1 ) - 18 (2 6 ,1 )
1 10 ( 2 4 ,4 ) 10 22 (3 1 ,9 ) 2Z ~ ’ ~
2 6 ( 1 4 ,6 ) 12 16 (2 3 ,2 ) 32
3 7 ( 1 7 ,0 ) 21 7 ( 10 , 1 ) 21
4 2 ( 4 , 9) 8 6 ( 8 ,7 ) 24
-
5 5 ( 12 , 2 ) 25 - -
6 2 ( 4 ,9 ) 12 - - -
7 o u m a is 2 ( 4 ,9 ) 15 - - - . ■
T o ta J 41 ( 1 0 0 ,0 ) 103 69 ( 100 , 0 ) 99
ção dos inventários p o s t m ortem ). Fato curioso: n en h u m a destas últim as tinha mais
de quatro filhos e 1/3 delas tin h a apenas um . C o m o o m aio r núm ero de casais estava
nessa situação, m ais u m a vez aparece o p ro b lem a dos nascim en tos ilegítim os — estu
dados por Jo h ild o A thayde — , q ue tan to preo cup ava os parlam en tares brasileiros de
então. A tribuía-se à escravidão o gran de n ú m ero de crian ças nessa situação, e havia
tolerância em relação a elas: “N o B rasil, as crian ças ilegítim as são m ais numerosas
que em todas as nações européias. T rata-se de um a con seqüên cia inevitável do siste
m a escravocrata estabelecido entre nós, co n seq üên cia ló gica de u m a situação em que
um a raça é proprietária de ou tra raça, com o se esta fosse um a coisa e não uma pes
soa. 20 Não era raro que u m a viú va m isturasse, aos seus próprios filhos, os filhos
naturais do falecido m arido. M as o destin o social dessas crianças dependia, antes de
m ais nada, de que fossem reconhecidas pelo p ai ou p ela m ãe, ou então colocadas, pot
laços de apadrinham ento, sob a proteção de u m a fam ília in flu en te.21
Q u a l era o ín d ic e d e n a s c im e n t o s ile g ít im o s e m re la ç ã o ao c o n ju n to d e nascimen
tos em S alvador? O e stu d o d e J o h il d o A t h a y d e c o b r e os 1 4 .9 8 2 registros de batismo
feitos n a p a ró q u ia d a S é no p e río d o d e 1 8 3 0 a 1 8 7 4 . A p ro p o rçã o encontrada foi
e n o rm e : 7 3 ,3 % dos registro s d iz ia m resp eito a c ria n ç a s ile g ítim a s , sen d o 12,5% enjei
tadas (a M ise ric ó rd ia , in s titu iç ã o q u e a c o lh ia c ria n ç a s a b a n d o n a d a s em roda Salvador,
en contrava-se n a p a ró q u ia d a S é ) .22
Pensei en c o n trar ín d ices dc ile g itim id a d e m u ito elevados en tre a população escrava,
m as constatei q u e 2/3 das c rian ç as livres nasciam fo r a d e laços legais de m atrim ô n io -
Eis aí um traço c aracterístico da so cied a d e b aian a, ch eio d c im plicações. Entre
destaca-se a au sê n c ia do pai, o que, p ara T h ale s de A zevedo, teria privado as crianças
baianas de u m ideal in te rio r” c de ag re ssiv id a d e.21 S u b m e tid a s à tu tela d a mãe, da av
ou d a m a d rin h a , elas teriam desen vo lvid o traços de caráter que aju d am a explicar 0
L ivr o III - A F amília B aiana 157
T AB E LA 3 4 '
L e g it im id a d e e I l e g it im id a d e s e g u n d o a C o r das C r ia n ç a s
P a r ó q u i a d a Sé, 1 8 3 0 -1 8 7 4 *
Total 3 .4 6 9 ( 1 0 0 ,0 ) 3 .6 2 6 ( 1 0 0 ,0 ) 1 .4 6 1 (1 0 0 ,0 )
{*) E jcclu sivãm en te e n tre a p o p u la ç ã o liv re .
U m terço das crianças brancas e 4/5 das m ulatas e negras eram ilegítim as. Assim,
os registros de batism o con firm am os dados do recenseam ento de 1855 e dos inven
tários p o st m ortem d a década de 1850. Sobretudo nas cam adas populares, as pessoas se
casavam pouco, porque a cerim ô n ia custava caro e não havia reprovação grave em
relação às uniões livres. E ntre 1850 e 1875, só 12,3% dos casamentos celebrados na
paróquia da Só envolviam cônjuges de cor.2^ Nas certidões de batismo era m uito co
mum aparecer apenas o nom e da mae.
Os pais de filhos naturais não gostavam de dar o próprio nome no dia do batizado
da criança, pois isso poderia ser utilizado para um reconhecim ento de paternidade
exigido pela m ãe ou, m ais tarde, pelo próprio filho ou sua descendência. Apenas a mãe
— nunca o hom em ou o casal — declarava na pia batism al um filho que nascera
escravo.25
As autoridades m unicipais sem pre intervieram para salvar crianças abandonadas,
ditas ‘expostas’ , custeando sua educação, durante três anos, no seio de famílias que as
recebiam. Não se sabe o que acontecia com as crianças que completavam três anos,
aliás idade-lim ite da am am entação obrigatória pela própria mãe ou por uma ama-de-
lehe por cia contratada. Com o crescim ento da cidade, o número de crianças abando
nadas aum entou de tal m aneira que a Câm ara M unicipal acatando uma proposta
real — passou a confiá-las a um instituto especializado, a M isericórdia, que obteve
para esse fim, em 1734, um subsídio de 4 0 0 .0 0 0 réis. M as, rapidam ente, a capacidade
de absorção sc revelou insuficiente, de modo que a M unicipalidade voltou a colocar as
crianças abandonadas em casas dc particulares, para evitar que servissem de pasto aos
anim ais domésticos que circulavam livremente pela cidade.-6 Apesar de existirem pes
soas de boa vontade, todo esse sistema funcionava mal: no fim do século XVIIT, Luiz
dos Santos V ilhena denunciou o abandono em que se encontrava o asilo da Misericórdia,
que funcionava mais como hospital.27 Numa única e imensa sala ficavam amontoados
doentes, am as-de-leite e crianças. A decisão de separar os primeiros só foi tomada em
1$8 B a h ia , S écu lo XIX
TABELA 35
T axa de M o r t a l id a d e d e C r ia n ç a s A b a n d o n a d a s
na C id a d e d e S a l v a d o r , 1 8 0 5 -1 8 5 4
TABELA 36
TABELA 37
A F a m íl ia S e g u n d o o E st a t u t o L eg a l d e S e u s M e m b r o s
Até a q u i, esta parte de m eu estudo esteve cen trad a nas fam íiias oriundas da populaCg0
livre de Salvador. P ara que nos aproxim em os m ais d a realid ad e b aian a, é indispensável
id en tificar as sem elh an ças e d iferen ças q u e existiam en tre fam ílias formadas por pes„
soas livres, alforriadas e escravas.
As prim eiras eram as m ais num ero sas e as m ais diversas, com o constatamos ante
riorm ente. A p artir de que critério s elas p o d em ser co m p aradas com as duas outras5
C om o co n seq üên cia de u m ín d ice de celib ato q u e ch egava a 4 0% (m aior entre as
m ulheres), a fa m ília con sen su al rep resen tava 5 3% das u niões livres. A m ulher pobre
tin h a m u ita d ificu ld ad e em a rran jar casam en to , co n statação con firm ada pelo grande
num ero de agregadas aos grupos do m éstico s. R aras m u lh eres solteiras sem filhos che
fiavam um desses grup os. O celib ato ap arecia m ais com o co n seq üên cia da pobreza do
q u e com o resultado de u m a escolha.
A fam ília con sen su al era m ais freq ü en te e n tre pessoas de cor, mas estava em
toda parte. As pessoas v iv iam ju n ta s, de p referên cia com gen te da mesma cor da
pele. Desejosas de ascensão so cial, m u lh eres brancas e m u íaras optavam por filhos
aín d a m ais claros, d escartan do u n iõ es com h o m en s de cor m ais escura. O ‘negro’
lem brava a Á frica e a escravidão. O ‘e m b ran q u ecim en tcf dos baianos se fez através
das m ulheres.
R ecordem os algu m as inform ações. Esses casais tin h a m , em m édia, 1,4 a 2,5 filhos,
e quase n u n ca ultrap assavam q u atro filh os; 6 2 ,3 % das crian ças batizadas eram ilegíti
mas e 20% dessas eram b ran cas. E xam in an d o os m esm os dados sob outro ângulo:
33,5% dos batism os de crian ças brancas en vo lviam filhos ilegítim o s. Em 85,9% dos
casos, eram as mães que levavam seus filhos à p ia batism al; logo, eram elas as declarantes,
cabendo-lhes a resp o n sab ilidade legal p ela criação d a prole. Só 2 ,5 % desses filhos ile
gítim os eram abandonados, percen tagem m ais elevada q ue a de abandonos de filhos
por mães solteiras (casais legais tam bém abandonavam filhos). Q uase a metade (44,7 A)
das crianças abandonadas eram brancas, m as isso se explica: as m ulheres brancas eram
m ais freqüentem ente forçadas por seu m eio social a ‘salvar a h o n ra’ da respectiva
fam ília, abrindo mão dc seu papel de m ãe. A lgum as grandes fam ílias guardavam na
lem brança verdadeiras tragédias: a filha de um senhor de engenho das m argens
Paraguaçu, altiva c bela, am ava com ternura um não m enos altivo e belo rtlU^ t^
escravo da plantação, Para evitar a fuga e o escândalo, a m ocinha grávida foi tranc.
em seu quarto, onde deu à luz um m enino, atirado nas águas do rio. O fitn da esto
foi o suicídio da moça, que cortou as veias com cacos dc vidro. ,. .
N e m todos os am o res ileg ais te rm in a v a m tr a g ic a m e n te . Ao contrário.
, , . ^ , c A l£ te ja
dad e e b astard ia e ra m traços característico s d a B a h ia d c I odos os Santos. ^
te n ta v a m o raliz ar os co stu m es, m as não o b tin h a êxito, até po rq ue ela mesma nao ^
o ex em p lo . E ntre 1801 e 1850, d e clara ra m ter filhos 18% dos padres baianos fale
em Salvador. Entre 1851 e 1 8 8 7 essa p ro p o rção su b iu para 5 1 % - ^
L iv r o III - A F am ília B aian a 161
Em Salvado r, era sobretudo a população livre (de todas as cores, mas com nítida
predom inância branca) que co n stitu ía fam ílias legais (6 4 ,5 % ). Som ente 9 ,7 % dos
negros se casavam dessa form a. O m atrim ô n io era privilégio dos brancos, m inoritários
mas detentores do prestígio social. O s baianos sc casavam pouco e relativam ente tarde,
esperando ate o m om ento em que consideravam ter os m eios m ateriais para criar e
educar as crian ças. Nesses casos, a m iscigenação era rara (8 ,4 % dos casos) e nunca
envolvia negros, com os quais as pessoas brancas viviam apenas uniões livres.
Na cidade, p raticam en te não existiam fam ílias num erosas, encontrando-se, em
m édia, de dois a três filhos em cada caso. As exceções ficavam por conta das cam adas
mais altas, nas quais reap areciam as características das fam ílias de senhores de enge
nho, tão freqüentem ente descritas. M esm o q uando tin h am m ais de vinte anos e esta-
vam inseridos no m ercado de trab alh o , os filhos viviam na casa paterna, às vezes sendo
sustentados, às vezes co lab o ran d o nas despesas.
A fam ília legal e a con sen su al dialo gavam entre si através de suas diferenças e,
sobretudo, de suas sem elh an ças, T in h a m , antes de m ais nada, forte em penho em
educar seus filhos e desejavam aju d á-lo s a su b ir na escala social. V ejam os agora se esse
esquem a d uplo se rep ro d u zia nas fam ílias alforriadas e escravas.
F a m íl ia d e L ib e r t o s
Até a A bolição, a alfo rria era u m a etap a o b rigató ria para q u alq u er escravo cuja descen
dência viesse a sc in teg rar às cam adas livres da população. D uran te toda a sua vida, o
antigo escravo co n tin u av a a ser um ‘alfo rriad o ’. O uto rgad a com m u ita largueza desde
as prim eiras décadas de fu n cio n am en to do sistem a escravocrata, a m edida não bene
ficiava apenas ao escravo.37 Em m ais de 2/3 dos casos, as cartas eram vendidas aos
escravos, por q u an tias geralm en te id ên ticas às que haviam sido gastas para comprá-los.
Para os senhores, que haviam explorado o trabalh o do negro por m uito tem po, trata
va-se de um a fonte su p lem en tar de ganhos; para os escravos, um passo no sentido da
liberdade perdida, sonh ada, ardorosam ente desejada. N a época da Independência
(1819), todos os anos cerca de 2 ,7 5 % da população escrava de Salvador recebia sua
carta de alforria. Em 1 8 3 9 -1 8 4 0 , essa proporção já chegara a 4,04% , subindo depois
para 6,62% em 1 8 6 9 -1 8 7 0 . A aceleração do ritm o de alforrias decorreu, ao mesmo
tempo, da situação econôm ica da Bahia e da desintegração do sistema escravocrata.
Q ue escravos conseguiam a carta de alforria? A resposta é sim ples: os que podiam
pagar, sem distinção entre africanos, m ulatos ou negros nascidos no Brasil. Os prim ei
ros, aliás, eram m ais num erosos na cidade que os nascidos aqui. Um escravo, na
cidade, podia ju n tar um pequeno pecülío.
Perm anentem ente im portados para assegurar a renovação do contingente, os afri
canos — cm sua m aioria, homens — representavam cerca de 2/3 da mão-de-obra
escrava. As m ulheres e crianças capturadas pelos negociantes internacionais eram ven-
162 B a h ia , S éculo X I X
TABELA 38
O rigem e S exo d a PoruLAÇÁo E sc rava de S a lv ad o r (1 8 1 1 -1 8 6 0 )
didas preferencialm ente na própria Á frica, onde valiam m ais do que os homens.39 Na
Bahia, a m aior parte das m ulheres escravas devia executar o mesmo trabalho dos
hom ens, sobretudo nas plantações de can a-de-açúcar, onde havia a média de uma
escrava para dois escravos.
Das 1.141 cartas outorgadas em Salvado r entre 1869 e 1870, 6 40 fornecem indi
cações sobre a idade e o sexo dos negros beneficiados, m ostrando que as mulheres
eram m ais alforriadas que os hom ens.
TABF.IA 39
Fonte: Katia M. dc Queirós Mattoso, “A Carta dc Alforria como fonte complementar pata o estudo da rentabilidade da mio
de-obra «crava urbana (1819-1888)", p. 159-160,
ccrcada por gente de várias etnias c forçada a viver segundo um código social Vjçj
d en ta!’, a m u lher africana procurou — c achou — em sua etnia novos laços (jc ^
dariedade. T al hipótese é corroborada pela m aneira com o essa solidariedade inflUcn
ciou a estrutu ra da fam ília dos alforriados.
T A li J-; I. A 4 0
Fonte: M .l. CArtcs Oliveira, O lib erto: a seu m u n d o e os ou tros (S alvador, 17 9 0 -1 8 9 0 ), p. 12f>-127. A autora com para os Tes
tamentos da população masculina livre e os testamentos dos alforriados nos mesmos períodos.
TABELA 41
C a sa m e n t o s e U n iõ e s s e g u n d o a O r ig e m d o s P a r c e ir o s
A N M T ~ ^ T A N~~ M B ND "
Africana 62 2 2 2 43 88 ' - "" i T~ 1
Mul a» _ _ _ _ _
Branca _ _ _ _
Náo declarada .2 9 12 - — _ 21 2 — _ _
mesmo grup o , sendo nove en tre os nagôs, dois entre jejes, u m entre haussás e um entre
bornus; as uniões m istas aco n teceram en tre nagôs e nujes e en tre haussás e bornus.43
Apesar de pouco a b ran g en te, este exem plo co n firm a os dados que aparecem nas tabe
las precedentes. R a ram e n te os african os se u n iam a negras brasileiras ou a m ulatas. As
rivalidades en tre as diferen tes nações d a Á frica foram devidam ente exportadas para o
Brasil, onde os b ranco s se esm eravam em a lim en tá-las, tendo em vista d ificu ltar revol
tas de escravos.44 A e n d o g a m ia e a u n ião livre eram m u ito freqüentes entre os africanos
libertos, sobretudo após 185 0.
Apenas cerca de 1/3 das pessoas viúvas tin h am filhos: com o vim os, freqüentem en
te os casam entos tard io s eram m ais voltados para a construção de um a vida com um do
que para a form ação de u m a prole. N a p rim eira m etade do século, em m édia, os casais
legais tin h am apenas 1,7 filh o (m u ito s pais tiveram filhos antes de casar ou depois de
enviuvar). Em com p ensação, fam ílias co n stitu íd as por pessoas solteiras parecem ter
sido m aís num erosas, com u m a m éd ia de 2 ,3 filhos.
A m édia de filhos se elevo u um pouco nas fam ílias legais do período 1851—1890,
atingindo 2 ,1 . M as os pais solteiros to rn aram -se cada vez m ais num erosos, am pliando-
se o costum e de dar, à crian ça, tam bém o nom e da com panheira. O ra, essas famílias
tinham , em m édia, 2,5 filhos, enquanro as mães solteiras tinham 1,9. Assim, a famíha
consensual não parcial parece su p lan tar a parcial (chefiada por um a m ulher sozinha)
na segunda m etade do século X IX . M u lh er nenhum a dava o n o m e de seu concubino.
Dc qualqu er m aneira, o m odelo fam iliar no grupo dos alforriados era duplo, assim
como entre os livres: fam ília legal e fam ília consensual. M as, a partir da segunda
metade do século, a fam ília nuclear dc tipo consensual passou a suplantar a fam ília
legal entre os alforriados de Salvador. O significativo índice de endogam ia que ca ^
teriza esse grupo perm ite pensar que o fim do tráfico negreiro, o aum ento na quantt
dade de cartas de alforria, a depressão econôm ica — enfun, todos os sinais qiue pire
nunciavam a irrem ediável desarticulação do sistema escrav o crata-- ajudaram a redefinir
os valores próprios desse grupo de antigos escravos. A fam ília, célula e motor da nova
estrutura, desem penhou nessa evolução um papel predom inante.
B a h ia , S éc u lo XIX
166
TABELA 42
N úmero de Filhos
1801-1850
IN IL 2N 2L 3N 3L 4N 4L 5N 5L +5N +5L
Homens casados 7 10 1 4 I 1 - l> - l2 - 7
Mulheres casadas 2 3 - 33 1 - - - - - -
Homens viúvos 2 2 I 1 - 1 - - - -
Mulheres viúvas - 5 3 2* 1 - - - - -
Homens celibatários 4 - 3 - 3 - - - - - -
Mulheres celibatárias 9 - 6 - 6 - 5 _ - - - i
IN 1L 2N 2L 3N 3L 4N 4L 5N 5L +5N +5L
Homens casados 3 2 - 2 1 3 - - - 2 - -
Mulheres casadas 2 3 1 1 1 - - 1 - _
- -
Homens viúvos 1 2 3 I 1 - - 1 - - - -
Mulheres viúvas 1 3 1 - 1 - - - - - 1 -
Homens celibatários 17 - 13 - 9 - 7 - 1 - 4 -
Mulheres celibatárias 7 - 5 - 2 - I - 1 - - -
(1) 1 natural e 3 legítimos; (2) 2 naturais e 3 legítimos; (3) e (4) uma testadora tem 1 filho legítimo e 1 natural,
A F a m íl ia E s c r a v a
Fam ília escrava eqüivale a dizer, essencialm ente, fam ília parcial. Os inventários post
m ortem nada revelam sobre o estado civil dos escravos recenseados, embora sejam
prolixos em outros dados, como a descrição de suas aptidões, de seus eventuais defeitos
físicos, de sua idade aproxim ada e de seu país de origem . Casam entos entre escravos
existiam , mas eram tão raros que escaparam a toda docum entação que pude consultar
Os 323 inventários p ost m ortem da década de 1850 relacionam ao todo 1-759 escravos,
sendo 983 homens e 776 mulheres, 109 das quais eram mães solteiras. A origem étnica
desses escravos é interessante.
À prim eira vista, a tabela 43 cria um problem a: por que a m aioria desses escravos
era de origem brasileira? As mulheres nascidas no Brasil eram 59,8% ! M as a expüc^í^0
é fácil. Os dados foram coletados depois da abolição do tráfico, num período em £Jue
era intenso o comércio interprovincial de escravos, com o envío de muitos africanas
para o Sul do país. Além disso, a maior parte dos recenseados, sobretudo as mulheres,
trabalhava no serviço doméstico,46 situação em que os escravos nascidos no Brasi
L ivro III - A F a m ília B aian a 167
TABELA 43
S exo e O r ig e m dos E s c r a v o s I n v e n t a r ia d o s , 1 8 5 1 -1 8 6 0
O rigem ________ H om ens M u lh e r e s T o ta l
eram preferidos. N ão esqueçam os, ain d a, q ue a cólera e a febre am arela matavam m ais
recém-chegados que filhos da terra, m ais bem protegidos.
O fim do tráfico desencorajava a com pra de escravos e a m ão-de-obra livre, forma
da por alforriados e im igrantes pobres chegados da Europa, era cada vez m ais abun
dante. Os que viviam do alu gu el de escravos foram obrigados a buscar outras fontes de
lucro, investindo por exem plo em ações bancárias ou em apólices do Estado.
N a tabela 43 aparecem 4 8 % de africanos — dos quais os nagôs eram os mais
numerosos — , entre os quais sc encontrava a m aior parte dos jovens chegados depois
da abolição oficial do tráfico, quando os navios negreiros tinham que fugir do controle
exercido, no m ar, por ingleses c franceses. Só para as crianças os inventários forneciam
idades precisas. As faixas etárias apareciam da seguinte forma: moleque , moço ,
‘ainda m oço’ e velh o'. M as havia exceções. Alguns inventários e cartas de alforria
davam, sim ultaneam ente, as duas informações, o que tornou possível traduzir em
números quatro categorias: m oleque (até 13 anos), moço (de 14 a 39 anos), ainda
B a h ia , S éculo X IX
168
moço (de 40 a 50 anos) e velho (50 anos e m ais). C in q ü en ta e seis por cento d0s
escravos tinham entre 14 e 50 anos e 4 4 ,4 % tinh am entre 14 e 35 anos. As crianças
representavam 2 2,1% .
Poucos escravos eram originários das costas sul ou leste da África, e o número de
m ulatos não era negligenciável. Entre negros e m ulatos brasileiros, havia 97 homens
para cada cem m ulheres, proporção coerente com a de outras análises. M as, para 0s
africanos, essa proporção se desequilib rava: para 171 hom ens, só havia cem mulheres
Entre as mães solteiras, 6 4 ,2 % tin h am apenas um filho e 3 8 ,5 % haviam nascido tio
Brasil. A etnia m ais bem representada, a dos nagôs, tin h a o m aior núm ero de crianças
pois 1/3 das 114 m ulheres tiveram filhos. Lem brem os: em m édia, na Bahia as mães
solteiras alforriadas tinh am 1,9 filho, en q u an to as mães solteiras livres tinham 1,7
Q uanto às m ulheres nagôs, sua m éd ia era de 1,6 filho. As brasileiras e as africanas
tinham , respectivam ente, 1 e 1,5. N ão há d ú v id a de q ue os escravos brasileiros se
reproduziam pouco.
Vim os que, no co n ju n to da população b aian a (in clu in d o libertos e brancos das
cam adas superiores), era forte a en d o gam ia lig a d a à etn ia ou à cor dos parceiros. Que
se passava, a esse respeito, entre os escravos? Q u e grau de m estiçagem podemos detec
tar entre eles? A m u lher escrava esco lhia seu próprio parceiro ou se encontrava exposta
ao arbítrio do senhor e a relações fo rtuitas q u e engendravam m estiços?
N a m aio ria dos casos, as m ães solteiras escravas tin h am filhos d a sua própria cor,
especialm ente as negras — logo, as african as. Só 10% delas tinham relações com
hom ens de pele m ais clara, não necessariam ente senhores brancos (disponho de exem
plos de m ulatos que tam bém eram escravos). Em com pensação, 3 0 % das negras bra
sileiras tin h am filhos m estiços. Eram m ais abertas, m ais preparadas para a miscigena
ção, que suas irm ãs africanas.
Assim , reencontram os aqu i o esquem a endo gâm ico já observado entre os libertos.
M esm o que não encontrasse um com p an heiro de sua etn ia, um a escrava podia preser
var sua origem africana buscando outro negro para ser o pai de seus filhos. Mais do
que a negra brasileira, a m u lher african a resistia ao processo de ‘em branquecim ento,
em bora este representasse um cam inho de assim ilação m aís seguro do que a alforria e
a liberdade.
Alguns traços sobressaem nessa segunda análise tipológica da fam ília nuclear sim'
pies na Salvador do século XIX. Em prim eiro lu gar, as uniões livres eram mais fte
qüentes que as legais, e as causas desse traço particularm ente característico da socieda
de baiana devem ser procuradas em razões de ordem institucional, econômica ou
psicológica, que tentam os descobrir com m aior precisão. Um segundo traço caracte
rístico dessa sociedade era sua forte endogam ia, quase perfeita nos dois extremos da
estrutura social. Os brancos — dom inadores e freqüentem ente afortunados, exerceu
do o poder e os meios de controle da sociedade que eles próprios haviam organizado
reagiam exatam ente da mesma m aneira que seus escravos dom inados e oprimidos-
Eram dois mundos separados em tudo, mas com as mesmas reações de autodefesa.
L ivro III - A F amília B aiana
169
Entre esses dois extremos da escala social havia um a numerosa população livre
parcialm ente m estiça, form ada por um a m ultidão de homens e mulheres de comporta
mento m uito menos ríg.do. Elos interm ediários dessa corrente, eles humanizavam as
relações sociais, aproxim ando os extremos e tornando os costumes mais flexíveis
Exerciam um difícil papel interm ediário, que exigia sacrifícios e concessões, a fim de
manter equilíbrios precários entre essas duas estruturas — branca e negra — opostas
em tudo. Essas cam adas interm ediárias da população baiana faziam os brancos se
desprender de algum as de suas tradições européias e, ao mesmo tempo, tornavam
menos africana a estrutura social negra. Graças a um terceiro estudo tipológico — o
dos grupos dom ésticos, bem m ais extensos que as fam ílias de tipo nuclear, das alianças
matrim oniais c dos sistemas de parentesco — poderemos verificar com maior precisão o
importante papel desem penhado pelas camadas intermediárias da população de Salvador.
G r u p o s D o m é s t i c o s : T e r c e ir o E s t u d o T i p o l ó g ic o
A análise dos grupos dom ésticos de Salvador no século XIX é dificultada por dois
fatores: a grande diversidade de situações que induziam as pessoas a com partilhar do
mesmo teto e a presença de escravos e agregados, categorias ausentes da Europa Oci
dental. Com ecem os pelo ú ltim o fator.
‘Ser escravo’ era m ais am bíguo do que parece. Sabe-se o que isso representava do
ponto de vista ju ríd ico . M as, qual o lugar ocupado pelo escravo no lar do senhor? Que
diferenças havia, a esse respeito, nos m eios urbano e rural? Em Salvador, o escravo era,
antes de m ais nada, um em pregado dom éstico, que cum pria — melhor — o papel dos
seus numerosos congêneres existentes nas sociedades ocidentais no século XIX.47 Nos
148 grupos dom ésticos que pesquisei, apenas quatro libertas apareceram citadas como
criadas, trabalhando da m esm a m aneira como o faziam quando eram escravas. Como
regra, o escravo era um servidor não assalariado e um a fonte de renda para seu proprie
tário, que o alugava a terceiros para fazer serviços externos, freqüentemente muito
penosos. M as tam bém havia os que dom inavam um ou mais ofícios (artesão, barbeiro,
músico, alfaiate, sapateiro, pedreiro ou pintor). O uso dessas aptidões era flexível e se
adaptava às dem andas m om entâneas do mercado de trabalho, tornando difícil distin
guir, numa mesma casa, qual escravo era exclusivamente doméstico e qual era ganha
dor . O escravo só perm anecia continuam ente no mesmo trabalho se fosse a única
fonte de renda de seu senhor — o que era um a situação freqüente. ^
Tendo sob sua responsabilidade manter a família do senhor e a sua própria,
escravo era o verdadeiro esteio da organização familiar. Criavam-se, assim, aços e
interdependência entre ‘dom inador’ c ‘dom inado’, abrindo a possibilidade de que a
dependência revertesse em favor do escravo.4ft
E o papel dos agregados nos grupos domésticos? Diversas realidades se escondiam
atrás da palavra ‘agregado’, que designava genericamente os que viviam com a família
170 B a h ia , S e cu lo X I X
com o pessoa da casa”.49 N o m eio urbano, eram pessoas que não tinh am conseguido
outro lu gar, por falta de m eios, ou tinham sido convidadas por parente ou amigo a
alu gar um côm odo na residência deste. Entre os exem plos de que disponho, o de
A ntôn io José de Souza M atto s é típico. B ranco, 51 anos, gu ard a na alfândega, casado
com dona M aria V itó ria de Souza M atto s (30 anos, tam bém branca), era pai de cinco
filhos, cujas idades variavam de um mês a onze anos. T odos viviam agregados à fam ília
de G erm ano M endes B arreto, branco, 61 anos, escrivão do T rib u n al, casado com
dona T eresa (branca, 55 anos), com quem tin h a dois filhos. Ignoro se havia parentesco
entre os dois casais (as duas esposas po deriam ter adotado o nom e dos m aridos,50 ou
então com partilhavam o teto paterno ). O grupo dom éstico contava ain d a com duas
velhas m ulatas e um m u lato de quin ze anos, além de três escravos africanos: Gustavo
(60 anos), Esperança (50 anos) e E ugênia (35 anos). C o n sid erad a com o agregada, a
fam ília Souza M atto s d ep en d ia d a o u tra, em bo ra os dois chefes fossem funcionários e
exercessem cargos p raticam en te eq uivalen tes, tan to do ponto de vista do salário como
do prestígio social. Logo, o agregado p o d ia pertencer à m esm a categoria social do
chefe do grupo dom éstico.
Irm ãos e irm as, afilhados, parentes afastados, viúvas, m ães solteiras e seus filhos
eram cham ados, com freq ü ên cia, de agregados. V iviam à custa do chefe da fam ília, a
quem prestavam serviços, ou então d isp u n h am de fo rtun a pessoal, participando nesses
casos das depesas da casa. T am b ém podiam estar nessa condição os filhos de um antigo
escravo alforriado que tivesse perm anecido na casa de seu ex-senhor. Se a fam ília não
possuísse escravos, esses negros ou m ulatos tornavam -se em pregados; caso contrário,
ocupavam um a posição in term ed iária, com andando e v igian d o a criadagem . De qual
quer m aneira, o agregado era m uito considerado no grupo. As crianças o tratavam com
respeito, cham avam -no afetuosam ente por um d im in u tivo e o escolhiam como padri
nho ou m adrinha de crism a.51 Freqüentem ente o agregado desem penhava o papel que,
no teatro clássico, cabe ao confidente, p rin cip alm en te dos jovens e dos senhores. Em
caso de necessidade, ele podia se encarregar de cu id ar da casa, fazendo guloseim as e
transform ando-se em vendedor am bulante.
Em todas as cam adas sociais da população livre — fosse ela branca, m ulata ou
negra — encontravam -se agregados, cu ja dependência em relação à fam ília da casa era,
às vezes, apenas aparente. Além disso, quando essa subordinação existia, não era obri
gatoriam ente dc um negro ou um m estiço em relação a um branco. Encontrei, por
exem plo, o caso cm que um a negra liberta (M aria Jo aq uin a dos Passos), nascida no
Brasil, solteira, dc 36 anos, tinha, como agregada, uma branca (D. Senhorinha M elânia
de C erquelra), mãe solteira dc dois filhos pequenos, com 34 anos dc idade.52 Viviam
com as crianças, mas sem escravos. Com o tinham praticam ente a mesma idade, inferi
que haviam crescido juntas; a 'Senhorinha' dera um 'm au passo’ c fora expulsa de casa,
recebendo dos país, no entanto, uma com panheira na pessoa da alforriada. Esta ‘irmã
crioula’ , provavelmente um pouco scrviçal, em todo o caso fiel e responsável, não seria
o chefe da família?
L iv r o III - A F a m ília B aian a 171
Os escravos e os agregados desem penhavam papéis variados nos grupos dom ésti
cos a que p erten ciam . Seria necessário m u ltip licar exem plos para que se tivesse um a
im agem m ais n ítid a dos laços que existiam entre esses dependentes e os chefes dos
respectivos grup os. A té as m ulheres que viviam com um hom em eram cham adas de
agregadas — n u n ca de con cub inas — e, se tivessem filhos, o pai não era citado.
R ecolhi dados sobre 147 grupos dom ésticos, que representavam um contingente
de 7 4 2 pessoas, no q u al se m istu ravam , de form a exuberante, livres, libertos e escra
v o s . A frente das fam ílias m aiores, encontravam -se em geral viúvos, viúvas ou casais,
m ajo ritariam en te brancos. O s casais casados tin h am , em m édia, um a fam ília de dez
pessoas, ao passo que as fam ílias dos solteiros tin h am , tam bém em m édia, 3,2 pessoas.
O tam anh o das fam ílias dos casais casados brancos (1 1 ,7 pessoas) era bem m aior que
aquelas dos casais casados de cor (seis pessoas). Os solitários e os grupos sem estruturas
fam iliais não tin h am escravos e, entre os 41 grupos dessas duas categorias — m ajori-
tariam ente form ados por liberto s e por m estiços — só cinco possuíam agregados.
Desses grupos dom ésticos, 2 8 ,6 % possuíam escravos, m as, em compensação, 35,3%
tinh am agregados e 5 ,5 % (oito, no total) tin h am agregados m as não escravos. D eve
mos con cluir que os agregados eram anexados a grupos dom ésticos que unham os
meios m ateriais para sustentá-los? Seriam eles adicionados aos escravos, com o sím bolo
da riqueza de u m a fam ília?
Em 4 2 ,2 % dos casos os grupos dom ésricos eram chefiados po r m ulheres, 71% das
quais eram solteiras, m u itas com filhos. A pesar da aparência m asculina da sociedade,
em todas as cam adas de Salvado r era freqüente que a m u lh er assum isse sozinha o seu
destino e o dos seus filhos, desem penhando assim um papel im portante. A m édia de
idade dessas m ulheres era de 40 anos, o que não im pediu que eu encontrasse dois
grupos chefiados, respectivam ente, por m ulatas — um a de 19, outra de 90 anos —
com pletam ente fora dessa faixa etária. A jovem m ulata de 19 anos era mãe de um
filho. Sua pouca idade dem onstra o quanto é ilusório utilizar critérios inspirados pelas
sociedades ocidentais para analisar um a sociedade na qual as uniões livres são mais
numerosas que os casam entos. No que dizia respeito aos homens, a média era a
mesma, mas o mais novo chefe de fam ília tinha 25 anos e o m ais velho era um
português de 77 anos.
O s gru p o s d o m é stic o s sim p le s c sem e stru tu ra s fa m ilia is (in c lu in d o neles os 'soli
tário s’) representavam 8 5 ,1 % do to tal, o q u e m e leva a receber com p ru d ê n c ia a
afirm ação dc q u e g ru p o s ‘ex ten siv o s’ ou co m plexos eram caraccerísticos da o rgan iz a
ção fam iliar dos baia mis. Eles ex istiam , m as co m o exceção. O m odelo patriarcal,
característico d a vida rural b rasileira, foi su b stitu íd o aq u i por form as de organização
fam ilial m ais sim p les, m ais flexíveis, m ais adap tad as i c id ad e. M as, co m o m ostra a
presença dos agregados, não sc ro m p e assim com práticas sociais herdadas da fam ília
de tipo patriarcal... Fssa fam ília baian a apresentava traços ‘m o d e rn o s’ em suas estru
turas e ‘arcaicos’ em seus fu n d am en to s e atitud es. É o q u e tentarei d efinir agora m ais
claram en te.
CAPÍTULO 11
S is t e m a s d e P a r e n t e s c o
e A l i a n ç a s M a t r im o n ia is
S is t e m a s de P a r e n t e sc o
172
L i v r o 111 - A F a m í l i a B a i a n a
instituições que regem o fu n cio n am en to da v id a social nos setores econôm ico, político
e relig io so .1
M as, em certas sociedades, com o a brasileira, a noção de parentesco ultrapassa
m uito esses lim ites, graças a associações baseadas em laços esp irituais ou vin culad as a
um a etnia. N o tecido social de Salvado r, esses tipos eram tão im portantes quanto o
parentesco de tipo clássico, o que, aliás, fica claro na própria term ino logia de uso
com um . É háb ito , por exem plo , frisar a d iferen ça que existe entre os tios e tias ‘de
sangue' e os ‘por a lia n ç a ’; pai e m ãe não são term os usados apenas para designar os pais
biológicos, mas tam b ém sogra e sogro. T odos m erecem o tratam ento de ‘senhor’ ou
‘senhora’, m as se o sogro tiver um d ip lo m a é cham ado de ‘d o u to r’ (todos os diplom ados
por escolas superiores sao do u to res; m as a m u lh er, m esm o que seja ‘do u to ra’, con tinu a
a ser tratad a por ‘d o n a ’ por seus genros e no ras). Para os filhos do prim eiro leito, o
segundo m arid o d a m ãe é ‘p ad rasto ’. A liás, ‘p ad rasto ’ e ‘sogro’ são term os que trazem
em si um a tênue id éia de exclusão, de fro n teira en tre parentes n aturais e parentes por
alian ça.2 Os antepassados tam b ém recebem defin ições precisas, com o, por exem plo,
‘tio-avô’ e ‘tia-a v ó ’. Ao m u ltip lic a r os avós, m u ltip licam -se tam bém as responsabilida
des e consolida-se a m em ó ria fam iliar.
A term in o lo g ia do parentesco se a rtic u la no B rasil sobretudo em torno dos m o
dos de filiação e de alian ça, p rin cíp io s essenciais do tecido parental. A filiação, que
estudam os no p rim eiro cap ítu lo , é d efin id a segundo seus aspectos ju ríd ico s: trata-se
do reconhecim ento dos laços de u n ião entre in d iv íd u o s que descendem biologica
m ente uns dos outros — ‘d escen d en tes’, p ara a filiação de cim a para baixo, ou ‘as
cendentes’ , para aq u ela q ue vai d e baixo para cim a. Em q u alq u er situação, a filiação
pode existir em lin h a d ireta ou co lateral. Em po rtuguês, cada caso tem um a designa
ção própria, e neste ponto as gen ealo gias fam iliais s lo precisas. Existe, pois, um a
m em ória gen ealó gica m u ito p ro fu n d a nessa sociedade de em igrados, que faz questão
de rem ontar a antepassados de duas, três ou m ais gerações, sobretudo quando se trata
de afirm ar a ascendência de um co lateral prestigioso, cu ja atuação confere brilho à
fam ília cm questão, T odos os ram os da fam ília C alm o n du Pin e A lm eida, por exem
plo, reivindicam até hoje, com o antepassado, um hom em de Estado do início do
século XIX, o M arquês de A brantes, que não teve filhos. Essa corrida ao ascendente
ilustre não é, aliás, um a característica exclusiva dos descendentes de portugueses.
Reencontramos a m esm a preocupação entre os africanos, que conservaram , por tradi
ção oral, os nomes de antepassados livres e de sangue real. Eles desem penham papel
particularm ente im portante no seio dc um a população que descende de antigos es
cravos; o dado social, aqui, é mais im portante que o dado propriam ente biológico.
Ainda hoje, certas fam ílias negras que têm um m em bro em funções elevadas na hie
rarquia religiosa dos candom blés dizem que podem rem ontar a um a ascendência real
de um a etnia africana qualquer.
As filiações na fam ília baiana são indiferenciadas ou cognáticas. Nao é através de
um dos sexos que se define se um a pessoa pertence a um grupo de parentesco. Todos
174 B a h ia , S t e c i o \ L \
os descendentes dc um in divíduo fazem parte de seu grupo de parentesco. Por sua ve2
o indivíduo é m em bro de tantas linh agens quantos ascendentes for capaz de identifi
car. O filho guarda o nom e do pai c da m ãe, form ando assim uni novo patroním ico
que indica, claram ente, sua dupla origem fam ilial. Q uando casa, a m ulher substitui o
patroním ico m aterno pelo de seu m arido, sem que isso in d iq ue um sistema dc filiação
patrilinear. O esposo conserva seu patron ím ico duplo original. G eralm ente, os filhos
naturais têm um único p atro n ím ico , do pai ou da mãe. Q uan to aos escravos, após a
alforria conservavam geralm en te o nom e da fam ília de seu antigo senhor.
P a ren tesco po r E sc o lh a
batism o . N a zona ru ral, on de freq ü en tem en te a co m u n id ad e tem m ais hom ens que
m ulheres, as vezes esta ú ltim a é su b stitu íd a pela própria N ossa Senhora. De q ualqu er
m an eira, o b atism o n u n ca e celebrado logo após o n ascim en to , sendo freqüente batizar
crianças q u e já co m eçaram a an d ar. A cerim ô n ia é segu id a da consagração da crian ça
a N ossa S en h o ra.
Em g eral, p ad rin h o s e m ad rin h as p erten ciam à m esm a catego ria social dos pais da
criança. N o e n ta n to , raram en te um escravo era escolhido para esse papel, e nas cam a
das sociais in ferio res — escravos e lib erto s — a preferên cia recaía sobre pessoas que
gozavam d e certo p restíg io na co m u n id a d e, m enos pela fo rtu n a e m ais pela persona
lid ad e e as relações estab elecid as. N u m a so ciedade em q ue as posições depen diam da
ajud a de terceiro s, a esco lh a de p a d rin h o e m a d rin h a bem -relacio n ado s integrava um a
estratégia de ascensão so cial o u , pelo m enos, de preservação de u m a condição já
alcançada. A ssim , co n so lid av am -se e esten d iam -se os laços de so lid aried ad e. Pais abas
tados esco lh iam com freq ü ên cia um m em b ro de fa m ília -ir m ã — ■um irm ão, tio ou avô
— , o que reforçava as ten d ên cias en d ó gam as das fam ílias baian as m ais im portantes.
Ao co n trário do q ue se passa ho je, no século X IX a respon sabilidade assum ida por
padrinhos e m a d rin h a s não se lim ita v a ao q ue estava escrito na certidão. Eles podiam
ser encarregados d a ed u cação , d a o rien tação pro fissio n al e do em prego do afilhado,
m esm o q u e os p ais deste fossem vivos. E, se falhassem , h avia a ‘reserva’, representada
pelo p ad rin h o ou m a d rin h a de crism a ou de consagração a Nossa Senhora, A ssim ,
desde o n ascim en to a crian ça era cercada por u m a rede protetora, m u ito im portante
num a sociedade em q u e a o rgan ização fa m iliar era instável, h avia grande num ero de
nascim entos ileg ítim o s e “crian ças, hom ens e m ulheres circulavam , construindo e
destruindo in can sav elm en te, ao lon go de u m a m esm a vida, formas dom ésticas precá
rias”.3 A im p o rtân cia do a p ad rin h am en to era tão gran d e que, com o nos casos das
ligações de parentesco, tam b ém h av ia p adrin h o s e m ad rin h as ‘de consideração’. Até
hoje, aliás, são tratadas assim as pessoas que, ao longo da vida, ajudam alguém .
E xistia u m t e r c e ir o e im p o r t a n t e m o d o d e f ilia ç ã o n ã o b io ló g ic a : a filiação étn ica,
e n c o n tr a d a s o b r e tu d o e n tr e os a f r ic a n o s e seus d e s c e n d e n te s . E m S a lv a d o r, escravos e
libertos d a m e s m a e t n ia se e n c o n t r a v a m c o m m a is f a c ilid a d e q u e nas p lan ta çõ es de
c a n a -d c -a ç ú c a r, o n d e os se n h o re s se e m p e n h a v a m em m is tu r a r african o s de todas as
origens, a fim d e e v ita r c o n ju r a ç õ e s e re v o ltas.4 N a c id a d e rein ava u m a relativa lib e r
d ade de m o v im e n to , po is a p r ó p r ia n a tu re z a das tarefas ex ig ia o c o n ta to c o n tín u o dos
trabalhadores e n tr e si. L ivres para g a n h a r a v id a c o m o q u isessem (c o n ta n to q u e d iv i
dissem os lucros c o m os se n h o re s, dos q u a is e ra m m u ita s vezes a ü n ic a fonte de ren d a),
era raro que os escravo s sc ap resen tassem in d iv id u a lm e n te no m erca d o de trabalho.
C ad a etn ia tin h a seus p o n to s fixos de e n c o n tro , em e n c ru z ilh ad as c h am ad a s de cantos .
A in d a por vo lta d e 1 8 9 8 , cerca de q u in h e n to s velhos africano s d a B ahia co n tin u av a m
a form ar esses ‘c a n to s ’ , p refe rin d o con viver c o m os co m p atrio ta s — g u ru n ces, haussas,
nagôs, jejes e a lg u n s m in a s — , m esm o q u e estes fossem po uco estim ad o s pelos negros
nascidos no B rasil.5 N essa época, os tapas, bo rnu s, congos e angolas já h aviam desa-
17 6 B ah ia , S éculo XIX
parecido.6 C ada ‘canto’ tinha seu ‘capitão’, prestigiado por seus cam aradas e respon
sável pelo grupo diante das autoridades da cidade.
A associação de natureza étnica não era utilizada som ente para a organização do
trabalho. Escravos e libertos se encontravam por etnia tam bém nas ‘juntas de alforria
(associações que angariavam fundos para pagar cartas de alforria) e, sobretudo, nas
confrarias religiosas instaladas na B ahia desde o fim do século XVII. Já expliquei como
o fato de pertencer a um a etnia podia influen ciar até a escolha de um parceiro sexual.
Não era, portanto, casual que a m aior parte dos africanos alforriados escolhesse seus
próprios escravos — quando conseguiam com prá-los — dentro da sua etnia. Esses
escravos eram freqüentem ente libertados, sem pagam ento, por ocasião da morte do
senhor; às vezes, herdavam os bens do senhor que não tivesse herdeiros legítim os.
Com preende-se por que a palavra parente podia designar qualquer pessoa que
pertencesse à m esm a etnia, criando-se assim m ais um tipo de filiação capaz de conso
lidar laços tão necessários aos baianos m ais pobres. Os candom blés da B ahia são, ainda
hoje, herdeiros desse sistem a de filiação: seus m em bros afirm am pertencer à mesma
fam ília, um a ‘fam ília de san to ’, que ocupa o lu gar da lin h agem desaparecida. Fator de
redefinição dos valores africanos, a filiação étn ica faz referência a um antepassado
comum e desem penha um papel tão im p o rtan te quanto a filiação bio lógica.7
P a re n te la
dos, alforriados e parentes distan tes, a parentela podia, inclusive, ter um aspecto
u n ilateral: u m a pessoa podia considerar-se parente de outra, mesmo que esta negasse.
O recon hecim en to da condição de parente im plicava a aceitação de deveres c obriga
ções recíprocos. Q u an to m ais prestigio sa fosse a posição ocupada por alguém , m aio
res eram suas respon sabilidades d ian te de um parente de sangue, de aliança ou espiri
tual. Essa respon sabilidade era, aliás, tran sm itid a de geração a geração, mesmo quando
novas parentelas e clien telas fossem acrescentadas às já existentes.
A ssim , nas velh as fam ílias baian as, a sustentação das posiçoes dos antepassados
não exigia apenas a cap acid ad e de m an ter c educar a p rópria fam ília, mas tam bém de
ocupar-se de toda u m a h eran ça dc fiéis clientes, que acreditavam firm em ente no poder
do parente p rotetor, m esm o q u an d o esse poder não existia m ais. T ratava-se, às ve7.es,
de herança b astan te p esada, sobretudo q uando a p arentela e a clientela eram pobres ou
m iseráveis. A té a d écad a de 1 9 6 0 , nu nca se recusava esse tipo de proteção, que repre
sentava a força e a fraqueza dessa sociedade fraterna, em que os laços criados pela ajuda
m útua p o d iam tran sfo rm ar-se em nós górdios. As estratégias estabelecidas em torno de'
alianças m atrim o n iais co m p letav am e tornavam m ais com plicados esses sistemas.
A l ia n ç a s M a t r im o n ia is : E x o g a m ia e E n d o g a m ia
am plo que o de grupo dom éstico. Por isso, é m elhor caracterizar esse tipo de endogamia,
unicam en te, por um a espécie de interdição, extensiva aos dois sexos, mas não de forma
absoluta: o cônjuge não pode ser escolhido fora do grupo dc origem , seja ele social ou
étnico. O ra, na B ahia, o m odelo social era essencialm ente branco, pois a riqueza era o
critério fundam ental para q u alq u er ascensão. A ssim , a m aioria dos baianos tendeu a
p raticar a exogam ia, sobretudo porque as estruturas da sociedade só eram rígidas na
aparência. N a realidade, os com portam entos não se deixavam tolher pelas regras.
j á m encionei o papel regu lado r que brancos e africanos desem penhavam nos dois
extrem os da sociedade, im po ndo lim ites firm es porém incapazes de enquadrar total
m ente a vida social. A cor, o d in h eiro e as restrições d a Igreja em m atéria de afinidade
espiritual ou de co n san güin id ad e não eram suficientes para im p ed ir algum as relações
sexuais e até casam entos. Os estupros e raptos dem on stram a força das paixões dos
que, com ou sem êxito, nao acatavam as regras im postas pela Igreja e as fam ílias. Só
um a análise q ue contabilizasse dispensas de casam ento po r razão de consangüinidade,
associada a um estudo d iferen cial dos casam entos, p erm itiria d eterm in ar a influência
desses com portam entos d iv erg en tes.13 E ntretan to, é possível in d icar com exatidão
algum as estratégias m atrim o n iais de dois grupos sociais bem diferentes: os 113 baianos
que, no século XIX, receberam títu lo s de nobreza e os escravos alforriados de Salvador.
Q uanto aos estupros e raptos, descobri alg u m a coisa em relatórios policiais e discursos
que solicitavam a criação de casas para m oças abandonadas ou expostas a esses perigos.
E st r a t é g ia s M a t r im o n ia is d o s B a ia n o s N o b il it a d o s
Foi m uito recente a form ação de u m a nobreza brasileira. D urante o período colo
n ial, os portugueses (e seus descendentes) que se tornassem poderosos senhores de
engenho no Brasil podiam p ed ir ao rei a condição h ered itária de fidalgo. Depois da
Independência, a jovem M o n arq u ia brasileira criou título s de nobreza para recom
pensar os que prestavam serviços ao país. Os dez conselheiros de Estado do im pera
dor dom Pedro I, que elaboraram a C o n stituição de 1824, foram os prim eiros: re
conhecidos como viscondes e depois elevados a m arqueses. Num erosos participantes
das lutas pela Independência na B ahia tam bém receberam esses títulos. Durante o
reinado de dom Pedro II, eles foram outorgados aos que gozavam de grande prestí
gio político e econ ôm ico ,1'* Entre as 986 pessoas tornadas nobres pelo Império, 113
nasceram na Bahia.
M as a nobreza brasileira cra dc ordem pessoal, isto é, não se transm itia aos descen
dentes. Só o título de 'fid algo ’ continuou hereditário, como no tempo da monarquia
portuguesa. Aliás, nem rodos os nobres eram fidalgos, e estes não recebiam forçosa
mente um título de nobreza, como mostra o caso de Francisco Pereira Sodre. Tornado
Barão de A lagoinhas em 1879, solicitou por duas vezes, a dom Pedro II, a condição de
fidalgo, hereditária em sua fam ília havia duas gerações. Em vão. Explica-se: ele tivera
L i v r o III - A F am ília B a ia n a 179
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$ mãe, que era filha e irmã de senhores de engenho do Recôncavo. Sua integração à
i■ fam ília m aterna foi de tal ordem, que ele acabou casando com a filha do irmão de sua
mãe, fazendo desaparecer de seu nome todo e qualquer vestígio do patroním ico Pereira.
O prestígio do proprietário de terras suplantava o do m agistrado, por m ais elevado que
fosse o grau atingido na m agistratura.
No que diz respeito a Carlos C arneiro de C am pos, as coisas são mais simples
ainda: aqui, o lado paterno era m ais im portante, graças aos dois tios solteiros, que
haviam feito carreiras brilhantes. É possível que o casam ento tão precoce com sua
prim a-irm ã tenha sido conseqüência de um desses ‘acidentes’ tão freqüentes, numa
época em que era comum a coabitação de prim os sob o mesmo teto. Seja como for, ao
casar Carlos somou as endogam ias fam iliar e de classe.
Essa endogam ia de classe caracterizava os outros 37 ‘cariocas’, exógamos do ponto
de vista fam iliar. Entre eles, só um utilizo u sua alian ça m atrim onial para reforçar uma
posição conquistada por m érito próprio. Foi A ngelo M oniz da Silva Ferraz, Barão de
U ruguaiana, filho de um proprietário rural do sul do Recôncavo, detentor de poucas
posses. Em prim eiras núpcias, A ngelo se casou com M aria Rosa de O liveira Junqueira,
que pertencia a um a grande fam ília de senhores de engenho e de altos m agistrados do
Recôncavo, T endo enviuvado duas vezes, o Barão de U ru gu aian a, deputado, senador,
presidente de província, m inistro e presidente do C onselho dos M inistros, casou-se
: sucessivamente com duas m oças, originárias do Rio de Janeiro.
A tabela 44 in d ica claram ente que a escolha m atrim o n ial dos ‘cariocas’ recaía
sobre moças do seu nível social. M as os pais recenseados não exerciam um a única
TABELA 44
A t iv i d a d e d o s P a is d e N o b r e s B a ia n o s F ix a d o s
no Rio de J a n e ir o e d o s P a i s d e s u a s M u l h e r e s *
A t iv id a d e P ai dos M a r id o s P ai d as M u lh e r e s
Senhor de engenho 8 7
Proprietário rural 3 2
Comerciante 4 -
Desembargador 2 4
Alto funcionário - 1
Militar 6 3
M&lico 1 -
Advogado 2 3
Outras 2 I
Sem informarão 8 15
Total 36 36
(*} Considcrima, apenat a principal atividade de cada um. Não foram incluídos trés nobres
que permaneceram solteiros.
L ivro III - A F amília B aiana 181
T A B E LA 4 5
A t iv id a d e d o s P a is d e N o b r e s B a ia n o s F ix a d o s
n a B a h ia e d o s P a is d e s u a s M u l h e r e s *
A t iv id a d e P a i d o s M a r id o s P a i das M u lh e r e s
Senhor de engenho 37 38
Proprietário rural 11 10
Comerciante 1 5
Alto magistrado 2 1
Alto funcionário 5 -
Militar 2 2
Médico - 1
Advogado I -
Outras -
Sem informação 5 7
Total 64 64
(#) C^cíhsulcraíTiojf npena.5 a principal atividade de cada um. Nao foram incluídos dez nobres
que permaneceram solteiros.
terras nao cu ltiv ad as e até a m ão -d e-o b ra escrava, sem com p rom eter o funcionam ento
d a em presa lig ad a ao engenh o. C o m p rar as partes dos outros herdeiros era quase
im possível, sobretudo po rq ue, no século XIX, o engenh o de açúcar era quase sempre
d eficitário , fazendo com q ue os senhores estivessem freq ü en tem en te en d iv id ad o s,17 Só
restavam d u as soluções: v en der a p ro p ried ad e e rep artir o d in h eiro , ou perm anecer
num sistem a q ue garan tisse a produção u n itária. A p rim eira solução nao era atraente:
desfazer-se da terra sign ificav a u m a im e d iata perda de prestígio e um a inevitável
decad ên cia so cial; além disso, h avia poucas p o ssib ilid ad es de in vestim en to interessan
tes. A in d ívisão era a m elh o r so lu ção . Para con servar p restígio e fo rtu n a, era preciso,
além disso, ter várias p ro p ried ad es. E n ten d e-se, assim , que cinco dos detentores de
títu lo s d e nobreza q ue fig u ram n a tab ela 45 ten h am casado com filhas de grandes
com erciantes, que d o m in av am a v id a eco n ô m ica d a cíd ad e. Essa determ inação de
conservar na m esm a classe social o p atrim ô n io te rrito ria l torn a-se ain d a m ais evidente
q u an d o se an alisam os v in te casam entos en dó gam o s, en tre os 6 4 recenseados aqui. Um
bom terço dos b aian os en o b recido s esco lh eu , com o esposas, p rim as-irm ãs, prim as
‘cruzadas’ e, em q u atro casos, so b rin h as.
A an álise das estratégias m a trim o n ia is de duas gran d es fam ílias do Recôncavo, os
A raújo G óis e os C o sta P in to , p erm ite co m p reen d er m elh o r esse sistem a enraizado nas
m en talid ad es b aian as. A fa m ília A raú jo G óis era u m a das m ais an tigas d a província. O
fu nd ad or p o rtuguês, G aspar de A raú jo , o rig in á rio d a v ila de Arcos de V al-de-V az, no
M in h o , e sua m u lh er, d o n a C a ta rin a de G óis, o rig in á ria d a v ila de A len q u er, perto de
Lisboa, chegaram em 1561 a São Jo rg e dos Ilhéu s, sede do d istrito d a nova C apitania
de Porto Segu ro . Esse casal p o rtuguês teve seis filhos nascido s no B ra sil.18 D epois da
m orte de sua m u lh er, G aspar se in stalo u em Salv ad o r, sendo recebido com o irmão
leigo num convento jesu íta, onde veio a m o rrer.
Desses seis filhos, dois deixaram nu m ero sa descendência: a filha m ais velha, Anrônia
de P ádua de A raújo G óis, casada com D o m ingos d a Fonseca Saraiva, português nas
cido em V iseu (B eira A lta) e estabelecido em C a iru (B ah ia), e seu irm ão Sim eão de
A raújo Góis, que se casou com a filh a de um a de suas irm ãs e se tornou senhor de
engenho no Recôncavo.
A descendência dc A n tô n ia de P ádua foi in terro m p id a no fim do século XVII,
após quatro gerações em lin h a direta, ao passo q ue a de Sim eão chegou a nossos dias.
N a prim eira década do século XIX, os descendentes de am bos ingressaram na vida
política e econôm ica dc Salvador e do Recôncavo. Por isso, foram objeto de estudos
genealógicos m ais precisos, que incluíram tam bém a genealogia dos ramos familiares
aliados.17 Interessam -m e aqui quatro dessas genealogias: a de A ntônia de Pádua de
Araújo Góis (1561 —1700?). a dc Sim eão de A raújo Góis (1 563?—18 6 7 ), a de Inocêndo
M arques de Araújo Góis, Barão de A raújo Góis (1 8 0 9 -1 8 7 8 ), e a de A ntônio Calmon
de Araújo Góis, Barão de C am açari (1 8 2 8 - 1 9 12).20
Apesar do cuidado e da exatidão típicos dos genealogistas, freqüentem ente faltam
dados sobre os anos de nascim ento e as idades na época dos casamentos. Isso vale tanto
L ivr o III - A F am ília B aiana
183
para os períodos recentes quanto para os antigos. A lém disso, m uitas crianças natim ortas
ou que m orreram em tenra idade nem foram assinaladas. Enfim, por causa da enorme
liberdade — que já assinalei — em u tilizar patroním icos diferentes no seio da mesma
fam ília, nem todos os casam entos endogâm icos puderam ser registrados. Entre 1561
e os prim eiros trin ta anos do século XX, os descendentes conhecidos de Gaspar de
A raújo e de C atarin a de G óis, em nove gerações, form avam um grupo de 375 pessoas;
entre elas, 2 1 7 se casaram , m as, segundo essas genealogias, som ente 93 deixaram
descendentes. O u seja: 124 desses 2 1 7 casam entos não teriam gerado herdeiros.21
Por outro lado , 6 0 hom ens e 43 m ulheres, integrantes desse universo de 375
descendentes, m orreram ad ulto s, m as na condição de celibatários. T om ando como
exem plo a lin h ag em de Sim eão de A raú jo G óis, que é a m ais longa e mais bem
docum entada, é possível co n statar que a p rática do celibato variou segundo o sexo e
o período. E ntre 1561 c 1800, o celibato dos hom ens (5 2 ,8 % do total) foi mais
freqüente q u e o das m ulheres (2 4 ,1 % ), ao passo que entre 1801 e 1920 a situação se
inverteu: 2 9 ,7 % dos ho m ens e 4 4 ,8 % das m ulheres perm aneceram nessa situação. H á
um a explicação p lausível. P o deria ser m ais fácil casar as m oças no período em que era
m aior a im igração de jovens portugueses que chegavam ao N ovo M u n do em busca de
fortuna, co n seguiam en riq u ecer no com ércio e, em seguida, tentavam receber a con
sagração social casando com u m a b aian a, filh a de senhor de engenho.
Por outro lado , com o já foi m en cio n ad o , 4 4 dos 2 1 7 casam entos celebrados
perm aneceram estéreis. Se acrescentarm os essas 4 4 pessoas às 2 3 que ficaram celiba
tárias, o p ercen tual de pessoas adultas sem descendência passa para 4 5,0% (48 das
375 pessoas recenseadas eram crianças que m orreram em ten ra idade). O ra, 88,5%
dos 193 casam entos dessa fa m ília foram exógam os, repartidos de m aneira bastante
igual ao longo dos três séculos e m eio. N ão há dúvida de que os casamentos entre
prim os lon gín qu o s eram freqüentes (ain d a hoje, os descendentes dessas fam ílias se
tratam de ‘p rim o ’ e ‘p rim a ’), m as esses parentescos devem ser considerados laços
m uito m ais de classe que de sangue. D e m odo geral, o antepassado comum se perde
na noite dos tem pos. As fam ílias do Recôncavo se m isturaram diversas vezes, mas na
m aior parte do tem po os laços sangüíneos foram bastante constantes. 5ó há registros
de doze segundos casam entos, oito dos quais contraídos por homens.
T am bém na fam ília A raújo Góis aparecia o m odelo endógam o de toda a nobreza
baiana, apresentando inclusive um a certa anom ia: todas as combinações eram possí
veis, exceto o casam ento entre irmãos e irm ãs. No decorrer do século XIX, entre os
descendentes de Inocèncio M arques de Araújo Góis (17 84 —1860), que se casou em
1803 com M aria jo a n a C alm on de Aragão, houve 52 casamentos e segundos casamen
tos, dos quais só dez foram endógam os.
V oltarem os a esses tipos de uniões após analisar os casamentos endógamos dos
C osta Pinto, outra dessas grandes famílias baianas.22 Ao contrário da fam ília Araújo
Góis, fundada no século XVI, o iniciador dos Costa Pinto chegou a Salvador no fim
do século XVIII. C o nstituiu, pois, uma fam ília brasileira recente, mas de ascensão
184 B a h ia , S éculo X I X
social m uiro rápida: já no m eio do século XIX, seu prestígio era igual ao dos Araújo
Góis, chegando a ultrapassá-lo no fim do século. Em 1880, os Costa Pinto fundaram a
usina de Bom Jard im , prim eira usina central de açúcar da B ahia e a segunda do Brasil,
e foram pioneiros na introdução de técnicas agrícolas m odernas. Os A raújo Góis, por
sua vez, eram típicos representantes dos senhores dc engenho com m entalidade arcaica.
O trem endo poder político e econôm ico dos C o sta Pinto tornava desnecessário
buscar origens m íticas para tentar enaltecer a fam ília. S u a gen ealo gia era extrem am en
te sim ples: A ntônio da C osta P into, o fundador, era o rigin ário da Província d’ Entre-
Douro e M inho. C om o m uitos com patriotas, chegou à B ahia para fazer com ércio e,
depois, se estabeleceu no Recôncavo com o proprietário rural. Em 1799, já possuía
várias propriedades em Santo A m aro, C ach o eira e Á gua Fria. Foi o ú ltim o adm inistra
dor da ‘capela in stitu íd a em 1726 por B ento Sim ões. S u a esposa, M arian a Joaquina
de Jesus, a ‘lá G rande’, descendia dos Lopes e dos F erreira de M o ura, duas fam ílias
im portantes do Recôncavo. Graças a esse casam ento, que gerou catorze filhos (sete dos
quais mortos na p rim eira in fân cia), A ntônio ingressou na fechada casta dos senhores
de engenho.
Os dados genealógicos de que disponho cobrem três gerações dessa fam ília. Cinco
filhos de A ntônio casaram -se e tiveram filhos, um casou-se m as não teve filhos, e
Francisco, apelidado ‘X ix i’, perm aneceu celib atário , tendo no entanto vários filhos
naturais, entre os quais o célebre engenheiro, geógrafo e historiador Theodoro Sam paio,
que nunca foi oficialm ente reconhecido pelo pai. N essa p rim eira geração, apenas
M anuel Lopes da C osta P into, V isconde de A ram aré, foi tão prolífico quanto seus
pais, tendo catorze filhos legítim os (com u m a sobrinha) e outros tantos naturais! Só
quatro filhos sobreviveram até o casam ento. D ois, casados com prim os-irm ãos, não
tiveram descendentes legítim os: Elias (1 8 6 6 —1905) só teve filhos naturais; sua irmã
Jú lía (dita Ju lin h a) da C osta Pinto (1 8 7 1 -1 9 3 5 ) casou duas vezes (com dois irmãos)
c morreu sem descendência, mas um dos seus m aridos tinha tido filhos naturais.
Assim, só dois filhos do V isconde de A ram aré tiveram prole legítim a.
M esm o deixando de lado quatro casam entos que uniram prim os longínquos, 12
dos 26 casamentos dos descendentes diretos dos Costa Pinto foram endógamos, se
guindo o mesmo m odelo presente na fam ília A raújo Góis: nao havia regra, mas se
notava uma pequena preferência por uniões entre prim os cruzados, em vez de primos
paralelos. Esse sistema encorajava o casam ento de uni homem com a filha de sua
própria irmã, o que não im plicava de modo algum a existência dc um modelo de
aliança assimétrica. Percebo, antes, um modelo nuclear desregrado, o da fam ília anômica,
decorrente da coabitação entre pais c filh o s,^ EIc predom inou num a estrutura social
muito ílexível, sobretudo no que dizia respeito âs famílias.
Esse tipo de solução não era expressamente procurado, mas era aceito. Os senho
res dc engenho, que em suas terras possuíam apenas uma casa digna de ser habitada
por gente de sua classe, acabavam por formar grupos domésticos extensos, vivendo em
ambientes propícios a essas uniões endógamas. M as, quando uma fam ília era dona dc
L iv r o III - A F am ília B a ian a 185
Sant A nna do C atu e ate mesmo Salvador, C ontudo, não há menção de que algum
engenho de porre tenha pertencido a essa fam ília. Pode-se especular que eles fossem
proprietários agrícolas de m edio porte, pois nenhum membro da fam ília recebeu título
de nobreza no século XIX. Alem disso, os B ittencourt não desem penharam papel
político im portante nas assem bléias Provincial e N acio n al.29
A fam ília B erenguer apresentava o m esm o perfil. Português de Funchal, com
ascendência espanhola, D iogo A ntônio de B itten co u rt Berenguer Cesar chegou à
Bahia na segunda m etade do século XVITI, tam bém sem que se saiba a razão de sua
vinda. Em 1760, casou-se na parp q u ia de Nossa Senhora do M onte do Recôncavo
com A na M aria Borges de Barros, filh a de A lexandre V az da Costa e de Josefa M aria
do Socorro Barros. Os dois m orreram em Salvador, Josefa em 1791 e Diogo cm 1805.
Seus descendentes residiram no Recôncavo e possuíram terras nas paróquias de Nossa
Senhora da P urificação, São Pedro do Rio Fundo, São G onçalo e Bom Jardim , todas
situadas no d istrito de San to A m aro , estendendo suas glebas para m ais longe, até
A lagoinhas (A greste d a B ah ia), São M ateu s (C ap itan ia do Espírito Santo) e Aracaju,
capital da C a p ita n ia de Sergipe. N enhum títu lo de nobreza foi atribuído à fam ília, que
só teve um representante na A ssem bléia Provincial, A ntonio B ittencourt Berenguer
Cesar, eleito d eputado em 1835 e 1 8 3 9 .30 Pelo jogo das alianças m atrim oniais, essas
duas fam ílias acabaram se torn an d o parentes das grandes fam ílias dos senhores de
engenho, com o Borges de Barros, A rgolo M enezes, Lopes V illas-B oas, Pires de Carva
lho e A lbuquerque, A ragão, M o reira Pinho etc.
Q uais eram as práticas m atrim o n iais dessas quatro fam ílias? Aproxim avam -se do
modelo dos C o sta P into ou do dos A raújo Góis? A endogam ia de fia sse era tão
pronunciada aqu i q u an to nas outras fam ílias im portantes da B ahia: as pessoas se
casavam dentro d a m esm a categoria social. M as, e a endogam ia fam iliar? O caso da
fam ília C osta Pinto parece ser u m a exceção à regra. No que tange a cinco dessas seis
fam ílias, o percentual de endo gam ia fam iliar era relativam ente baixo (9% , em mé
d ia).31 N ota-se tam bém que, para três dessas seis fam ílias, a endogam ia fam iliar esteve
ausente nas prim eiras gerações. Os casam entos entre prím os-irm ãos e entre sobrinhas
e tios sc m ultip licaram sobretudo no século XIX.
As fam ílias Bulcão, Sodré e B ittencourt, que apresentavam o mais fraco percentual
dc endogam ia, chegaram à Bahia mais ou menos ao mesmo tempo, isto é, na segunda
metade do século XVII. Duas delas, Bulcão e B ittencourt, se insralaram em terras
ainda pouco exploradas no século XVII, situadas na paróquia de Nossa Senhora do
M onte do Recôncavo, de onde foi desm em brada, no século XVIII, a paróquia de São
Pedro do Rio Fundo. A instalação dessas fam ílias na Bahia aconteceu num período de
depressão da econom ia açucareira. Isso não se deu no caso das fam ílias Berenguer e
Costa Pinto, que chegaram cin um período de nova expansão da cultura de cana-de-
açúcar. Além disso, as fam ílias qUe se instalaram na Bahia na segunda metade do
século XVII encontraram terras disponíveis no Recôncavo. As que chegaram no hm
do século XVIII se estabeleceram num Recôncavo dotado de grande densidade
10 B a h ia . S é c lto XIX
p o p u lacio n al, em que cada m etro q uadrado dc terreno tinh a que ser disputado. Nessas
circu n stân cias, a endo gam ia era o único m eio dc conservar os hens de um a família.
A exogam ia — não de classe, mas fam iliar — representaria um a estratégia m atrim o
n ial q u e, m ais q ue a con servação dc bens, p o ssib ilita ria a aq u isição de bens ç
corresponderia a um a etapa dc co n qu ista, num m om ento em que os laços fam iliais
ain d a náo estavam so lid am en te estabelecidos.
A endo gam ia sc m anifestou na fam ília A raújo G óis — um a das m ais antigas da
B ahia — logo nas prim eiras gerações, m as no in ício essa tendên cia foi relativam ente
fraca, com parada ao que ocorreu nas três gerações q u e atravessaram o século XIX. No
início da colonização da B ah ia, q u an d o a in d a era p eq u en a a população de origem
européia, a en d o gam ia era quase indisp en sável. A pesar disso, no século XIX a incidên
cia dessa p rática foi m aís acen tu ad a em rodas as fam ílias, pois nesse período a quan
tidade de terras dispon íveis d im in u iu e a con dição de p ro p rietário agrícola passou a
conferir título s de nobreza aos q u e asp iravam por eles. A dem ais, a ativ id ad e açucareira
era econ om icam ente p restigiad a, ap esar da gran d e depressão por que passou esse setor,
sobretudo na segunda m etade do século.
O estudo gen ealó gico dessas seis fam ílias do R ecôncavo tam bém torna possível
avaliar, m esm o de form a ap ro x im ativ a, o p ercen tu al de celib ato e de m ortalidade
in fan til. Im pressiona, nesse caso, o alto p ercen tual de celib atário s em todas as fam ílias
estudadas, inclusive a C o sta P into, o q ue ev id en cia a p rática d a endogam ia. Na gera
ção dos netos se en co n trava o m aio r p ercen tual de celib ato , exceto nas fam ílias Sodré
e C osta P into . E xcep cion alm en te, esse p ercen tu al podia a tin g ir até 90% da população
ad ulta. M as, com o o núm ero de gerações por fam ília sem pre foi m uito variável,
tentem os com parar apenas as três ú ltim as gerações que, de m odo geral, corresponderam
ao século XIX. , ? . . ■ ■
Foram celibatário s 4 2 ,0 % dos m em bros d a fa m ília A raújo G óis, 3 0 ,2 % da Bulcão,
3 3,3% da Sodré, 4 3 ,6 % da B itten co u rt, 4 1 ,8 % da B eren gu er e 2 5 ,7 % da Costa Pinto.
A m édia ficou em torno de 3 6 ,0 % , o que, aliás, co in cid e com os percentuais de
celibato encontrados para a p o pulação de Salvad o r. T an to nas zonas rurais quanto na
cidade, um pouco m aís de 1/3 dos adulto s perm aneciam solteiros.
Com exceção dos A raújo G óis e dos B ulcão, esse percentual era ainda mais acen
tuado nas fam ílias menos endogám icas. T entarei explicar mais adiante essa discordância,
associando outros dados. A ntes dc m aís nada, com parem os o percentual dc endogam ia
e o dc celibato nas seis fam ílias estudadas,
t a n r. I. a o .
A endogam ia fam ílíar im pedia que o percentual de celibato fosse mais elevado?
O celibato era praticado por um ou pelos dois sexos? Vejamos.
TABELA 47
C a s a m e n t o e C e l ib a t o e n t r e H o m e n s e M u l h e r e s d a s S e i s F a m í l i a s E s t u d a d a s
À prim eira vista, os resultados perm item afirm ar que os dois sexos praticavam o
celibato. M as um a análise m aís profunda, fam ília por fam ília, esclarece diferenças
relativam ente im portantes. Entre os A raújo Góis, por exemplo, 52,4% das mulheres
e só 29,4% dos hom ens perm aneceram solteiros; entre os Costa Pinto o celibato
m asculino era m aior, com 3 3,3% , contra 13,3% das mulheres. Essas duas famílias
apresentavam o m aior percentual de endogam ia fam iliar. Como explicar comporta
mentos tão diferentes?
Em prim eiro lugar, em bora fixados no Recôncavo, tudo indica que no século XIX
os Araújo Góis não viviam apenas de atividades agrícolas. Desde a prim eira metade do
século, cerca de 38% dos homens dessa fam ília haviam efetuado estudos superiores,
iniciando carreiras como advogados, médicos, m ilitares ou altos funcionários. Entre os
Costa Pinto, em bora 9 dos 25 filhos tenham feito estudos superiores, nenhum deles
exerceu um a profissão liberal, nem seguiu carreira na m agistratura. A principal ativi
dade continuou sendo a exploração agrícola. Aliás, dos nove filhos que fizeram estudos
superiores, três se tornaram engenheiros, especializados em agronomia, topografia ou
mecânica, profissões que podiam interessar ao bom funcionam ento da usina de açúcar
instalada em suas terras em 1880. Com o a atividade agrícola ficara em segundo plano
entre os Araújo Góis, o dote de suas filhas tornou-se mais difícil. Esta pode ter sido a
causa do número considerável de m ulheres dessa fam ília que permaneceram celibatá
rias (é interessante notar que o genealogista da fam ília — o mesmo da fam ília Bulcão
— não citou nenhum nom e de engenho que tenha pertencido aos Araújo Góis; o cia
dos Costa Pinto, m arcado por casamentos endógamos, tinha, como vimos, onze enge
nhos, todos situados em ricas terras de massapê nos distritos de Santo Amaro, Ca
choeira e Água Fria). t
Essa hipótese é corroborada pela análise das razões que levaram o imperador a
conceder títulos de nobreza a alguns membros dessas famílias. Somente dois Araújo
Góis receberam esses títulos: Inocêncio M arques, Barão de Araújo Góis, magistrado
e político, e seu irm ão maís moço, Antônio Calm on, que preferiu permanecer em
suas terras para fazè-las frutificar e se tornou Barão de Camaçari. A fam ília Costa
190 B a h ia , S éculo XIX
Pinto recebeu três títulos de nobreza, todos como recom pensa à sua im portante ati
vidade agroindustrial. A ntônio da C osta Pinto se tornou V isconde (e depois Con
de) de Sergim irim , seu Pilho A ntônio (d ito T otôn io) da C osta Pinto recebeu o títu
lo de V isconde de O liveira e seu irm ão, M anoel da C o sta Pinto, foi feito Visconde
de Aram aré, nome do engenho que possuía. Além disso, Cícero D antas M artins,
um dos genros dos C osta Pinto, associado a seu sogro e a seu cunhado na instala
ção da usina central de Bom ja rd im , recebeu o títu lo de Barão de jerem oabo, nome
de um a localidade do Agreste baiano, cm que os D antas possuíam m uita terra.
As fam ílias cujos filhos faziam estudos superiores — com o A raújo Góis, Bulcão e
Sodré — desem penhavam o principal papel no plano po lítico, com representantes nas
assem bléias Provincial e N acional, no E xecutivo e n a m agistrarura. Assim , ao lado do
forte percentual de celibato, havia igu alm en te um forte percentual de jovens que
abandonavam as atividades agrícolas pelas do setor terciário.
Q uanto à m o rtalidade in fan til, a irregu larid ad e dos registros fam iliais dificulta a
interpretação. Exceto para as fam ílias A raújo G óis e C osta Pinto, os percentuais muito
baixos de m ortalidade in fan til registrados alhures levam a crer que houve sub-regis-
tros. D urante todo o século XIX, a m o rtalidade infan til beirava 30% a 35% , o que
coincide com os resultados obtidos em m inhas análises precedentes. O utros 35%
m orriam celibatários. O grande núm ero destes leva a pensar que os casamentos
endógamos talvez fossem uniões forçadas, T eria realm ente sido o caso?
A autoridade paterna reduzia as m ulheres ao estado de eternas menores, condena
das a passar da subm issão ao pai à subm issão ao m arido, sem conseguir um a autono
m ia real. Excluídas da vida social, dos banquetes e das conversas oficiais, as mulheres
ou donzelas de boa fam ília raram ente saíam de casa, e nunca o faziam sozinhas.
Acompanhadas, iam à Igreja e ao baile. Com o as donzelas tinham m uito poucas
ocasiões de encontrar pessoas, a escolha do m arido acabava por se restringir ao círculo
fam iliar, pois seu contato com o m undo se resum ia a primos e tios. Nesse contexto,
estabeleciam-se fortes laços afetivos tntraíam iliares, fazendo com que, m uitas vezes, os
desejos dos filhos coincidissem com os dos pais.
Para as moças, a situação de celibatária era penosa. Ficavam, nesses casos, ao
encargo de um irmão ou irmã, educando os filhos dos outros, num a sociedade que
prestigiava fortemente a m aternidade, a criação dos próprios filhos e a boa adm inistra
ção de um lar. Os homens eram , quase sempre, economicamente independentes. Um
homem celibatário podia ter o prazer de ser pai, procriando fora de qualquer laço
familiar. Por exemplo, entre oito celibatários da fam ília Costa Pinto, dois deixaram
filhos naturais, c seis dos dezesseis homens casados deixaram uma descendência ilegí
tima; entre estes, três-casaram com primas-irmãs e não tiveram filhos.32
Nessa época, aliás, a maior parre dos filhos era dócil, e o apoio familiar era
necessário durante toda a vida. Privar-se dele eqüivalia, no caso dos homens, a privar-
se de todas as relações sociais necessárias a uma carreira; no das mulheres, a abdicar de
uma vida honrosa. Para elas, o celibato só podia ser encarado como um sacrifício de
L i v r o 111 - A F v v a i \ B a i a n a 191
moça sem dote. M anter boas relações com a família era fundam ental para preservar
sua pane da herança fam iliar.
A endogamia fam iliar desses enobrecidos baianos sc ligava, portanto. a im perati
vos econômicos, l/ma verdadeira endogam ia de classe estreitava os laços que já exis
tiam naturalm ente entre os membros das cam adas dom inantes da sociedade. Graças a
essa coesão sem falhas', os proprietários de terras conservavam seus privilégios, fazen
do com que sc impusesse à adm iração dos baianos a imagem dos ‘barões do açúcar’
todo-poderosos — uma imagem que tinha várias facetas pois, já o disse antes, nos
séculos XVIII e XIX um com erciante bem -sucedido podia tornar-se senhor dc enge
nho, com prando terras ou se aliando, pelo casam ento, às grandes famílias da região.
Assim, sangue novo e dinheiro renovavam constantem ente uma classe social cujas
atividades estavam sujeitas a flutuações econôm icas im previsíveis. No decorrer do
século XIX esse mecanismo perdeu eficácia, no que diz respeito à renovação dos
senhores de engenho, que passaram a fortalecer os laços de solidariedade no próprio
interior do grupo. '
Existiram três razões para essa situação. A prim eira: desde a Independência, m ui
tos portugueses retornaram ao seu país. para fugir da hostilidade dos brasileiros, que
os consideravam açam barcadores e aproveitadores. Foi inevitável adm itir que a vida
econômica de Salvador e do Recôncavo sofreu m uiro com a evasão dc capitais, relacio
nada a esse processo. O governo im perial expulsou numerosos comerciantes portugue
ses mas, cm seguida, os senhores de engenho consentiram em que eles retornassem,
para lutar contra o monopólio inglês c para proreger sua fome dc abastccimenro de
escravos africanos, cujo tráfico estava ameaçado pela ação da Inglaterra. O retorno dos
portugueses ao Brasil — agora como estrangeiros — recomeçou por volta dos anos
1 83 5-1 84 0, mas a maior parte deles não escondia o desejo de enriquecer e regressar
à pátria quando chegasse a velhice. Por isso, freqüentem ente esses novos imigrantes
permaneciam celibatários. Por outro lado, os ingleses tiraram o maior proveito da
abertura dos portos aos comeciantcs estrangeiros, decretada cm 1808. Importação,
exportação e navegação passaram a partir daí, pouco a pouco, das mãos dos portugue
ses à dos estrangeiros, sem contar com os brasileiros, igualm ente tentados pelo comér
cio de varejo. Em 1854, 83,6% dos comerciantes eram portugueses. Em 1873, eles
não passavam dc I 1,1%/*3
A esse primeiro problema acrescentou-se um segundo, em 1850, com a abolição
definitiva do tráfico. Portugueses e brasileiros tinham sido muito atuantes nesse ramo,
trocado por atividades comerciais mais modestas, como a distribuição de mercadorias
importadas por firmas estrangeiras.*4 Tornaram-se intermediários dc um comércio
controlado por estrangeiros e passaram a emprestar dinheiro aos pequenos varejistas
da capital ou do interior, tornando-se indispensáveis a seus clientes. O comércio
intcrprovincial dc alimentos permitiu que mantivessem laços estreitos com os senhores
de engenho, levando ao mercado a produção destes c abastcccndo-os coin toda especie
de produtos. Continuaram , enfim, a desenvolver atividades típicas de um capitalismo
192 B a h ia , S écu lo X I X
com ercial arcaico e especulativo, mas sem o brilho de outrora. Alguns se achavam à
frente de em presas que tentavam m odcrrtizar-sc, como certas indústrias têxteis ou
bancos. M as tam bém aí a especulação era m ais forte: os fundadores da fábrica de
tecidos se desinteressaram por ela e os banqueiros retiraram os capitais de seus bancos
por acharem suficientes os lucros, sem que houvesse preocupação com o provável
desm oronam ento do trabalho executado nos anos anteriores.35
U m a terceira explicação pode ser enco ntrada na perm anente crise açucareira, que
não incitava m ais à com pra de engenhos. T ornou-se m u ito m aís interessante investir
na com pra de bens im o b iliário s urbanos ou de apólices d a d ívid a pública, que tinham
m aior liqu id ez. Os raros portugueses que se casaram no Brasil escolheram filhas de
com erciantes ou de patrões q u e podiam ajudá-lo s em suas carreiras,36 De qualquer
m aneira, tom ados estrangeiros no B rasil, os portugueses passaram a ter que se natura
lizar para poder receber título s de nobreza. N a m aio r parte dos casos eles se contenta
ram , desde então, em receber condecorações liso njeiras.
A Bahia co n tin u o u a assistir à alian ça dos grandes negociantes e dos senhores de
engenho. M as o co n tigen te p o rtuguês não se renovava m ais entre a população local, e
eram grandes os sacrifícios im postos pela necessidade de conservar o prestígio social
que advinha da popriedade de terras açucareiras. A p artir dos últim o s trinta anos do
século XIX, os filhos e filhas dessa velh a aristocracia ru ral com eçaram a se casar com
filhos de profissionais liberais, funcio nários ou m agistrados não são necessariamente
aparentados com as grandes fam ílias do R ecôncavo. A sociedade m udou em proveito
desses recém -chegados. A B ah ia assistiu baianos oriundos do in terio r, ou até mesmo
de outras províncias, assum irem o controle da boa sociedade de Salvador, outrora
com andada pelos orgulhosos senhores de engenho do Recôncavo.
E st r a t é g ia s M a t r im o n ia is d o s B a ia n o s A l f o r r ia d o s
No outro extrem o da escala social, os alforriados form avam um grupo cada vez mais
numeroso, pois o núm ero de alforrias aum entou consideravelm enre no decorrer do
século XIX. Já descrevi as fortes tendências à endogam ia étnica desse grupo, estratégia
m atrim onial evidente, tanto para as uniões livres quanto para os casamentos legais.
M as, além da evidente preocupação em preservar a originalidade do grupo, que causas
incitavam antigos escravos, habituados ao celibato, a se unir quando reencontravam a
liberdade? O desejo dc constituir fam ília é um a explicação insuficiente, pois já de
monstrei que os casais alforriados tinham poucos filhos. D e v e haver outras razoes
talvez um desejo de ajuda m útua e dc solidariedade num am biente manifestamente
hostil a esses estrangeiros. Algumas estórias individuais, curtas mas sugestivas, ajudam
a aprofundar melhor esse universo.
O antropólogo Luiz M ott encontrou recen tem ente na Bahia um documento muito
revelador, q u e atesta a in flu en cia do grupo étnico na escolha de um parceiro. Trata
L m t o III - A F amília B alana 193
e prata. Seu legatário universal foi V icente Ferreira, filho de sua escrava M aria, que
Brigida tinha educado e libertado gratu itam ente.43
M ariana Jo aquina da Silva Pereira, africana da C osta da M ina, casou-se com José
Antônio de Etra, africano da m esm a região. Em 1810, ela o instituiu legatário univer
sal de seus bens, que haviam sido "adquiridos por ele e a ela doados por causa do amor,
da fidelidade e do zelo que ele sempre me dispensou e do bom casal que formávamos”,
diz ela.44 Tendo enviuvado, o m arido fez red igir seu testam ento em 1826, após ter
sido obrigado a vender um a grande parte de seus bens duran te as guerras da Indepen
dência, para poder nutrir os 22 escravos que possuía. Legou a eles a pouca fortuna que
lhe restava.45
Esses cinco exemplos poderiam ser m u ltip licad o s, mas acho que são bastante
reveladores das razoes que levavam esses alforriados a se casar. O casam ento era um
acordo de entendim ento e ajuda m útua, visando a m elhorar a q ualidade de vida dos
dois parceiros. A partir do m om ento em que os dois cônjuges encontrassem vantagens
e garantias na vida com um , não im portava que os bens estivessem repartidos de
m aneira desigual: a m ulher buscava o apoio de um a presença m asculina, tão necessária
nessa sociedade em que o verbo ‘poder' se con jugava no m asculino; o homem, fre
qüentem ente desprovido de bens, trocava, sem problem as, esse apoio por sustento.
O casamento dos africanos entre si, num am biente profundam ente hostil, estreitava os
laços de solidariedade e ajudava a sobrevivência do grupo e dos indivíduos.
Os objetivos das alianças m atrim oniais aparecem aqui tão concretos, tão bem
adaptados à condição social desses alforriados, quanto apareciam no caso das altas
camadas da sociedade baiana. C o incidên cia de objetivos, coincidência dos métodos
adotados para alcançar esses objetivos. O que im portava era a confiança e a ajuda
m útua, que tornariam possível a sobrevivência m aterial e cultural do grupo. Dois
grupos tão opostos (de um lado, aristocratas aparentados a senhores de engenho e, de
outro, ex-escravos) defendiam valores quase idênticos, com meios bem adaptados:
para os alforriados, o essencial era, sem dúvida, a sobrevivência m aterial, sem a qual
nada maís era possível. Precisam ente deste ponto de vista, as confissões que aparece
ram no testamento de Ana M aria da Silva Rosa foram m uito claras: o marido não
ajudou a aum entar ou preservar os bens do casal. M ais grave: ele colocou em perigo a
associação conjugal, dilapidando com concubinas os bens adquiridos com dificuldades
por sua mulher. Um perigo duplo, que aviltava o casam ento, única instituição do
mundo branco que perm itia, ao alforriado, inserir-se na sociedade, conquistando um
lugar reconhecido.
Existia, e n tretan to , u m a fonte de novas tensões: os filhos desses alforriados, que
representavam para seus pais um verd ad eiro in v estim en to social. Os filhos dos africa
nos náo eram m ais estrangeiros; os filhos d e negros alforriados já nasciam livres e não
tin h am mais a tara o rig in al d a escravidão. A d em ais, eles p o d iam tornar-se para seus
pais, já velhos, u m a fonte de renda, trab alh an d o e trazendo seu salário p ara o grupo
fam iliar. M as, esses filhos q u e já nasciam livres eram um elem ento q u e d ilu ía a coesão
L ivr o III - A F a m ü ia B aian a 195
R a pt o s e E s t u p r o s ( o u C o m o T e n t a r se L ib e r t a r
de R e g r a s I m p o s t a s pe la I g r e ja e a F a m íl ia )
tava. eram colocadas com o em pregadas dom ésticas em casas de fam ílias honestas.
Q uando se casavam , recebiam um enxoval m odesto e um dote de 3 0 0 ,0 0 0 réis.50
H avia um esforço para separar as Casas dc R ecolhim ento — como as de São Raim undo,
Nossa S en h o ra dos Perdões e N ossa Senh ora dos H u m ildes — , freqüentem ente
dedicadas a receber m ulheres perdidas, e os asilos ou colégios que recebiam , como
internas, tan to m oças pobres, geralm en te órfãs, q uan to moças de fam ílias da classe
m édia, que ali eram educadas. E sperava-se, assim , afastar os perigos que poderiam
advir de um a p ro m iscu id ad e entre m ulheres da v id a e jovens inocentes.
Todas as casas de reco lh im en to e colégios eram d irigid o s por freiras. As casas de
São R aim u n d o , dos Perdões e dos H u m ild es estavam sub m etidas à autoridade do
arcebispado da B ahia. A d a S an ta C asa da M isericó rd ia desapareceu em 1866 (após
um século e m eio de serviços) por falta de recursos. Os asiios-colégios do Coração de
Jesus, a C asa da P ro vid ên cia e a de N ossa Senh ora dos A njos (esta ú ltim a só funcionou
entre 1855 e 1 860) foram ad m in istrad o s pelas religiosas de São V icente de Paula,
chegadas à B ah ia em 1 8 5 3 . O C o lég io de N ossa Sen h o ra da Salete, por sua vez, foi
adm inistrado pelas religio sas po rtuguesas da O rdem d a A ssunção. A Igreja, por con
seguinte, estava presente em toda p arte. M as, ao passo que para a m u lher só existiam
perspectivas de p u n ição ou de segregação, para os hom ens suspeitos de terem com eti
do estupro havia duas p o ssib ilid ad es: a de um casam ento forçado com a vítim a e a de
um casam ento ráp id o , com o u tra m u lh er, antes de o escândalo vir à rona. Nessas
circunstâncias não era raro que o cu lp ad o fosse ob rigado, por sentença ju d icial, a pagar
um dote à m u lh er u ltrajad a , con fo rm e previsto nas O rdenações F ilipin as; podia tam
bém acontecer que, m ais tarde, com a ‘h o n ra restau rad a’ pelo casam ento forçado, o
hom em repudiasse sua m u lh er, sob o pretexto de q ue desconfiava de sua honestidade.
A m ulher p o d ia ser rep u d iad a pela p rópria fam ília, o que talvez explique o caso das
m ulheres celib atárias brancas, com filhos, vivendo sozinhas, que descobri ao estudar a
estrutura dos casais em Salvado r. O dote p o d ia servir, even tualm ente, para que a moça
se casasse novam ente.
O rapto e o deflo ram en to eram utilizados pelos próprios nam orados, para forçar
o consentim ento de pais rccalcitrantes. C o m o isso se passava na Salvador do séctilo
XIX? Consegui enco ntrar um com eço de resposta a essa questão ao exam inar as dis
pensas para casam entos, pedidas â Igreja pelos habitantes da paróquia de São Pedro
entre 1815 c 185K),51 As dispensas eram solicitadas prin cipalm ente nos casos dc im pe
dim ento causado por um a afinidade espiritual entre os futuros cônjuges (por exemplo,
padrinhos de batism o com uns) ou cm casos dc consangüinidade. A dispensa da Igreja
era necessária, tam bém , em caso de estupro ou de rapto.
N a prim eira m etade do século XIX, essas dispensas por rapto ou estupro foram
inexistentes, ou raras, mas, a partir dc 1854, começaram a sc m ultiplicar. Como
explicá-lo? N um erosas hipóteses poderiam ser formuladas, mas os exemplos de que
disponho são por dem ais lim itados para gerar um a explicação convincente. A hipótese
mais plausível parece ser a seguinte: durante a prim eira metade do século XIX, os
198 B a h ia , S é c u l o XIX
TABELA 48
P e d id o s de D is p e n s a d e C a sa m e n to na P a r ó q u ia de S ao P edro
1 8 1 5 -1 8 5 4 e 1 8 7 1 -1 8 9 0
Períodos C onsangüinidade AUNIUADP. Rapto Estupro
1815-1824 10 4 - -
1825-1834 12 1 3 -
1835-1844 27 5 2
1845-1854 24 - 2 6 1
1871-1880 34 2 13 10
ÍSSI-1890 38 6 9 13
raptos e estupros teriam sido sub -registrados. O crescim ento verificado por volta do
fim do século talvez tenh a deco rrid o de um m aio r rigo r por parte da Igreja, menos
in clin ad a a perdoar atos con trário s à sua m oral: ela passou a im por longos processos,
cu ja conclusão era im previsível, tan to para os futuros cônjuges quanto para suas fam í
lias. A dotando essa atitu d e, a Igreja criou, ao m esm o tem po, a possibilidade de regu
larizar situações que talvez tivessem red u n d ad o em uniões livres, pois o núm ero de pais
celibatários au m en to u d u ran te a segu n d a m etade do século.
Q ue pessoas com etiam esses atos de rapto e estupro? Infelizm ente, os pedidos de
dispensa não revelam gran d e coisa. Eles geralm en te in clu íam os nom es dos requeren
tes, sua filiação (leg ítim a ou n a tu ral), raram en te sua idade, sua religião, seu estaturo
ju ríd ico (escravos ou alforriados), às vezes sua cor e o nom e dos pais.
D urante todo o período coberto pelos dados (1 8 1 5 —1854 e 1871—1890), raptos e
estupros parecem ter ocorrido apenas entre a população livre, que provavelmente
inclu ía os libertos. Esbarram os novam ente num caso de sub-registro, pois é difícil
ad m itir que a população escrava nao praticasse estupros. M as o escravo era como
era”. Seus atos nao podiam envolver hom ens livres, nem prejudicar o conjunto da
sociedade. Com o o casam ento não era a norm a para as associações conjugais entre
escravos, o poder eclesiástico nao dava im portância ao fato de que tivesse ou não
havido estupro.
Só as pessoas livres tinham o privilégio de preocupar a Igreja! A grande maioria
dos casos em que a cor dos peticionários foi registrada referia-se a homens não bran
cos, com nítida predom inância de m ulatos: três raptos envolveram parceiros brancos,
. i c /
só um envolveu negros (que, aliás, eram nascidos no Brasil) e cinco eram mulatos, oo
um estupro dizia respeito a brancos, dois a negros nascidos no Brasil, nove a mulatos
e um envolvia um m ulato e unia negra. Os atos devassos eram cometidos contra
pessoas da mesma cor. Não há registro de caso de m ulher branca vítim a de um homem
de cor (lembremos que entre a população de cor se encontrava o m aior n u m e r o de
famílias consensuais). Tratar-se-ia dc um modelo de comportamento? Não se deve
generalizar, diante de um número de exemplos tão reduzido. Uma resposta conclu-
L i v r o III - A Fam ília. B a ia n a
199
A F a m í l i a B a i a n a e a s R e l a ç õ e s S o c ia is
O p a p e l q u e as f a m ília s d e s e m p e n h a v a m n a e d u c a ç ã o n ã o p o d e ser e s q u e c id o . A té a
I n d e p e n d ê n c ia , as in s t it u iç õ e s r e lig io s a s p r a t i c a m e n t e m o n o p o liz a v a m a instrução,
s o b r e tu d o n o n ív e l s e c u n d á r io , O p r im e i r o I m p é r io c r io u , a q u i e a li, cátedras de
g r a m á t ic a , la t im , g r e g o e fr a n c ê s . M a s só n o s e g u n d o I m p é r io , e m 1 8 3 4 , o A to A d i
c io n a l a u t o r iz o u as a s s e m b lé ia s le g is la t iv a s d as p r o v ín c ia s a e la b o r a r leis co n cernen tes
ao e n s in o d e n ív e l p r im á r io e s e c u n d á r i o . 1 E m 2 2 d e a b r il d e 1 8 6 2 , ap ó s d o is anos de
d iscu ssõ es, foi r e g u l a m e n t a d a u m a le i o r g â n ic a d e 1 8 6 0 , d e f in in d o a e s tr u tu ra escolar.
F o r a m c r ia d a s d u a s esco las n o r m a is : u m a p a r a m o ç o s , o u t r a p a r a m o ça s , c o m profes
sores d o m e s m o sex o q u e os a lu n o s . A s c lasses e r a m n u m e r o s a s . Só c o n s e g u ia m vagas
os filh os d e f a m ília s a b a s ta d a s , q u e se d e s t in a v a m a o c u r s o s u p e r io r d e d ireito , após o
q u e se t o r n a r ia m f u n c io n á r io s . O acesso d e escrav o s e filh o s d e escrav o s aos estabele
c im e n to s de e n s in o e r a o f ic ia lm e n t e v e d a d o .
E m 1 8 7 3 , t e n to u - s e a c r e s c e n ta r às d is c ip lin a s t r a d ic io n a lm e n t e m in is tra d a s no
en s in o e le m e n t a r — lín g u a s , g e o g r a fia , h is t ó r ia , c a t e c is m o e a r itm é t ic a — a de traba
lho s m a n u a is . N o m e s m o e s p ír ito , f u n d o u - s e o L ic e u d e A rte s e O fíc io s, d estin ad o a
e d u c a r filh o s d e o p e rá rio s e artesão s. E m 1 8 8 1 , a to d o p r e s id e n te d a P ro v ín c ia pro m o
v e u g r a n d e re fo rm a d o e n s in o . C r ia r a m - s e c u rso s d e p e d a g o g ia e in s titu iu -s e o jard im -
de-ÍnfâncÍa. O c u r r íc u lo d o cu rso p r im á r io p a s s o u a c o m p r e e n d e r : le itu ra , escrita,
g r a m á tic a p o r tu g u e s a , a r itm é t ic a , d e s e n h o , c iê n c ia s n a tu r a is , re lig iã o , ed u cação cívica
e artes d e c o ra tiv a s.2 M a s o acesso às esco las p ú b lic a s e p riv ad a s c o n tin u a v a restrito,
co m o o d e m o n s tr a m os d a d o s d o r e c e n s e a m e n to de 1 8 7 2 .
É in teressan te n o tar q u e , e m b o r a os escravos n ã o p u d e sse m freq ü e n tar a escola, 63
deles, e n tre os 1 6 7 -8 2 4 recen sead o s em 1 8 7 2 n a P ro v ín c ia d a B ah ia, sab iam ler e
escrever. Só três desses p r iv ile g ia d o s , p o ré m , v iv ia m e m S alv ad o r. A p o p u lação escrava
m a sc u lin a era de 9 8 .0 9 4 pessoas, das q u a is 4 7 s a b ia m ler e escrever, assim distribuídos,
q u a tro em C a m a m u , d o is em C a ra v e la s , u m e m V iço sa, d o is e m E ntre Rios, um em
P u rificação , u m e m I ta p ic u ru , u m e m P o m b a l, u m em S a n ta Isabel do P araguaçu, três
200
L iv r o III - A F am ília B aiana
TABELA 49
S.mto Antônio Além do Carmo 2.529 4.728 7.257 2.119 6.127 8.246
Esses núm eros sugerem que 37% dos habitantes da capital eram alfabetizados, o
que me parece m u ito para a época (talvez fossem considerados assim os que apenas
assinavam o próprio nom e). C om o era de esperar, o núm ero de mulheres que sabiam
ler c escrever era m enor que o dc hom ens (30 e 4 3% , respectivam ente). O percentual
referente ao conjunto da população revela que nem todos os alfabetizados eram brancos,
pois apenas 31% da população eram declarados de cor branca e muitos dos imigrantes
europeus — com íorte presença portuguesa — eram analfabetos. Entre 1852 e 1889,
7.815 portugueses de sexo m asculino estabclecem -sc na Bahia. Sabemos a idade que
3.1 55 deles tinham ao aportar: 34,5% escavam entre oito e catorze anos eram quase
crianças — e chegavam corno aprendizes do comercio junto a negociantes portugueses.
É legítim o pensar que m uitos não eram alfabetizados, tendo aprendido a ler na Bahia.
É interessante com parar dados das várias paróquias sobre a distribuição por cor da
população livre e o percentual dos que sabiam ler e escrever:
202 B a h ia , S é c u l o X I X
1 A R r ]. A 5 0
Sáo Pedro 3 5 .6 6 4 ,4 3 2 ,0 2 4 ,8 7 5 .2 10 ,0
Virôria 3 5 ,6 64 ,4 3 7,1 2 8 ,9 7 1 .1 4 6 ,8
Só 1/3 dos meninos e pouco mais que 1/4 das meninas entre seis e quinze anos
freqüentavam a escola em Saivador. O percentual de alfabetização entre as crianças
(27,9% ) era dez pontos percentuais menor que o referente à população adulta (37% ).
A paróquia de Brotas mais um a vez aparece à frente: 82,8% dos meninos e 80,9% das
meninas freqüentavam a escola: na Conceição da Praia o percentual referente aos
meninos caía para 73% , ntas o das m eninas, 89% , era o mais alto de todos. Nas
dem ais, menos de 30% das m eninas iam à escola, com exceção da de V itória, com
67,7% , e de Santo A ntônio A lém do C arm o, com 40,6% . Surpreende o percentual
registrado em S an t’A nna: só 8,8% das m eninas iam à escola nessa paróquia habitada
por cam adas m édias da sociedade. A situação dos meninos era bastante parecida com
a das m eninas: a paróquia de S an t’A nna registrava o m ais baixo índice de escolaridade
(14,6% ), seguida pela da V itó ria (18,% ) e de M ares (24 ,9 % ). Nas outras paróquias o
índice ficava acim a de 35% ,
Seja como for, são percentuais m uito baixos: a grande m aioria das crianças baianas
não aprendiam a ler e escrever.4 Em 1873, tom ou-se a decisão de generalizar a alfabe
tização, criando escolas prim árias noturnas para adultos nas paróquias da Sé, da Con
ceição da Praia, de Santo A ntonio A lém do C arm o, da Penha, do Passo e da Vitória.
No prim eiro ano de sua criação, as aulas eram freqüentadas por 648 alunos, mas nos
anos seguintes este núm ero dim in u iu progressivam ente, com algum as oscilações, até
atingir 64 em 1883. No ano seguinte, foram suprim idos os cursos prim ários noturnos.
É preciso dizer, porém , que as crianças ausentes da escola não estavam, de todo,
privadas de educação: recebiam afeto, cuidados e a instrução possível de familiares,
TABELA 5 1
C r i a n ç a s d e S e is a Q u i n z e A n o s E s c o l a r i z a d a s , 1872
P a r ó q u ia s M e n in o s M e n in a s
T otal % E sc o l a r iz a d o s T otal % E sc o l a r iz a d a s
dram alhões portugueses, e que os cenários e o vestuário dos atores sejam dos mais
pobres, os teatros estão quase sempre repletos".8 Por volta de 1820, os ‘m istérios’,
como o de Santa C ecília — a que assistiu L. F. T ollcnare9 — , e espetáculos mais
populares tinham a preferência do público. Os enredos eram inspirados no cotidiano
das fam ílias; contavam , por exem plo, os amores grotescos entre um velho negro ciu
mento e uina velha negra provocante, ou mostravam um inglês bêhado tentando falar
português, ou ainda cenas de em pregados dom ésticos pokrões. Representavam-se tam
bém tragédias, como um a baseada em M aom ê, de V oltaire, ou o dram a Duas filh a s do
conde de Bragança, do autor português A ntônio Pereira da C unha. Não faltavam
farsas, como A vila fid a lga , nem obras de Scribe e Alexandre Dumas, além da indefectível
H ernani de V ictor H ugo, Ó peras líricas eram encenadas por com panhias italianas,
como D ilúvio u n iv ersa l e L ucia d e L a m erm oor(à e D onízetti) e T em plário (de N ícolai),
Foi tam bém nos teatros que, na segunda m etade do século XIX, começaram a se
realizar bailes de máscaras que antecipavam os clubes carnavalescos do fim do século,
A julgar pelo que se lê no D iário d a B ahia dc jan eiro de 1863, esses bailes favoreciam
os encontros extraconjugais, pois um anúncio assinado por um certo Cavaleiro Ver
melho com eçava por um alegre “viva a m ascarada” e declarava: “estou te esperando
hoje no teatro... E ntendeu, bela dam a?” O utro anúncio, escrito num cíaudicantc
francês, dizia: “M adam e F... Estou te esperando hoje no baile de máscaras para dançar
contigo e beber cham panhe. Pierrô E scarlate.”10 Os baianos cultos — ou os que,
pertencendo à boa sociedade, queriam parecê-lo ■ — ■prom oviam os chamados saraus,
que tinham lugar à noite, em geral nas casas das fam ílias, ensejos para brilhantes
duelos de retórica, fundados sobretudo na capacidade m nem ônica dos contendores.
T udo era pretexto para festas n a B ahia, sobretudo em lugares abertos, na rua.
Festas cívicas — com destaque para as datas de expulsão das tropas portuguesas da
Bahia (2 de julho) e de Independência do Brasil (7 de setembro) — e religiosas se
sucediam num ritm o frenético. Só no calendário religioso havia dezenove grandes
ciclos de festas, sem contar as inúm eras procissões prom ovidas pelas ordens terceiras
e as confrarias religiosas, além das festas das com unidades africanas, que não eram
poucas, Estas com unidades adotaram o calendário religioso católico, para passar desa
percebidas da vigilância exercida pelo poder. Em dezembro, as festas do calendário
litúrgico eram Santa Bárbara (dia 4 ), Nossa Senhora da Conceição (dia 8), Santa Luzia
(dia 13) e Natal (dia 25). Em janeiro, Ano-Novo (dia Io), acompanhado da procissão
m arítim a dedicada a Nosso Senhor dos Navegantes (festa instituída pelos capitães e
pilotos que praticavam o tráfico negreiro), Epifania (dia 6), Nosso Senhor do Bonfim
(segundo dom ingo do mês) c o Entrudo. Em fevereiro ou março, a Quaresma, com a
procissão dc Nosso Senhor dos Passos. Em março, a festa de São Josc (dia 19). Em
março, abril e maio, Domingo dc Ramos, Q uinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa,
Sábado de Aleluia, D omingo de Quasfmodo, Ascensão, Pentecostes, festa do Divino
(acompanhada da festa do Imperador) e Corpus Christi. Em junho, a festa de Santo
Antônio de Pádua (dia 13), de São João (dia 24), de São Pedro e São Paulo (dia 29).
B a h ia , S é c u l o X IX
Em agosto. Assunção de Nossa Senhora (dia 15), que fechava o c ic lo .11 Celebrações,
tanto da cultura popular quanto da cu ltu ra das elites, têm até hoje grande peso no
cotidiano dos baianos.
Tam bém se lia na B ahia. M as quem lia? E o quê? Em 1811, no governo do Conde
dos Arcos, foi fundada a B iblioteca Rública. As autoridades portuguesas, porém , não
mostraram grande em penho cm dotá-la do m aterial necessário ao seu funcionam ento.
De fato, tudo ficou na dependência da in iciativa privada, e m uitos foram os baianos
que doaram seus livros à in stituição . Doações dos irm ãos Pedro e A lexandre Gomes
Ferrão Castello Branco e de Francisco A gostinho Gomes con stituíram o primeiro
acervo dessa b ib lio teca.12 Em 1819, ela contava cinco m il volum es, jornais em várias
línguas e panfletos em in g lês.13 Em 1863, o suíço T sh u d i avaliou seu acervo em
dezesseis m il volum es, especificando que eram quase todos escritos em lín gua estran
geira, o que naturalm ente lim itav a o núm ero leito res.14 U m inventário datado de
1887 recenseia cerca de vinte m il volum es, m apas incluídos.
D a leitura dos relatórios anuais dos seus diretores, depreende-se que a biblioteca
não podia crescer rapidam ente, porque o governo não liberava as verbas necessárias.
Em 1873, por exem plo, o diretor A ntônio Ferrão M o n iz assinalava que um a bibliote
ca, para ser ú til, deveria possuir obras de base em cada ram o das ciências teóricas e
aplicadas, um a coleção com pleta das obras clássicas de todas as literaturas, ou ao
menos das principais, além de jorn ais, revistas e obras novas. Q ueixava-se de que a
instituição não contava com dicionários, gram áticas, quase nada de filosofia com para
da e da escassez das obras em inglês, quando “atu alm en te o m ovim ento intelectual na
Inglaterra talvez seja superior ao da França e quase equivalente ao da A lem anha”. 15 De
fato, obras de autores franceses ou publicadas em francês existiam em núm ero consi
derável na biblioteca, como já o observara cm 1817 o francês T o llen are.16 Infelizm en
te, não foi possível encontrar um inventário dos acervos dessa biblioteca no século
XIX, mas entre as aquisições feitas em 1870 encontram -se: H o m m ep rim itifi de Eiguier,
obras de C laude Bernard, de N iem eyer, u m a H istoire d e F rance de H enri M artin, a
H istoire U ntverselle de Paradel, um a V/e d e Jésu s C hrist do padre D upanloup e a V iede
la Vierge M arie do abade O rsini. A biblioteca tin h a a assinatura da R evue des Deux
M ondes , do Jou rn a l d ’A griculture , do J o u r n a l des Savants, do J o u rn a l des E conomistes e
da revista JIlustration.
Encontra-sc o m esm o p re d o m ín io da lín g u a e d a lite ra tu ra francesas nas coleções
privadas, em b ora m e p are ça arriscad o ju lg a r o gosto dos leitores baian os por aquele
dos proprietários d e b ib lio tecas. Estas, a lém de refletirem gostos pessoais, eram em
sua m aior parte especializadas, p erten cen d o a m édico s, advogados, m agistrados ou
religiosos. A ju lgar pelos in ven tários m u ito su m ário s de dois livreiros falecidos em
1 880 , os leitores davam g ran d e preferência aos rom ances c obras históricas, em detri
m ento das obras filosóficas o u científicas. Em francês, liam -se sobretudo obras de
autores do próprio século XIX, com o M ad n m c d e Staêl, C h a te a u b ria n d , Lam artine,
Lam m enais, Balzac, V icto r H u g o , T o cq u evillc, G uizot, M ic h e le t e M in g u e t, que.
L iv r o 1 II - A F amil ia B ai sn a ; o~
A famí! ía natural, criacía pela mera vontade dos parceiros, era tão com um na Bahia
quanto a sacram entada pela Igreja C atólica. A liás, por ra7.õcs de ordem institucional,
econômica c dc m entalidades, as uniões livres eram mais numerosas que as legais. Do
ponto de vista institucional, a sociedade se com punha dc indivíduos cujos estatutos
legais e sociais eram diversos — os livres, os alforriados e os escravos — e, com muita
freqüência, as uniões consensuais se davam entre pessoas de condições diferentes. Era
comum que homens livres (brancos ou de cor) escolhessem concubina entre alforriadas
ou escravas. Várias situações podiam ocorrer.
A união legal com um a escrava — mesmo m ulata ou quase branca — era proibida
por lei. A união com um a alforriada era legalm ente viável, mas tendia a permanecer
consensual, pois o casam ento com um a m ulher de nível inferior podia ocasionar a
decadência social do hom em , privando-o ain d a da possibilidade de vir a se unir for
m alm ente com outra m ulher, que pudesse auxiliá-lo a ascender. Por outro lado, a vida
em comum com uma m ulher branca podia indicar que ela já era casada ou vinha de
um meio social inferior. Era tam bém freqüente que, tendo em vista a preservação de
bens, viúvas preferissem m anter um a relação oficiosa, renunciando a novo casamento,
mesmo quando se dispunham a ter filhos dessa relação ile g ítim a .19
As motivações de um hom em livre e de cor para viver no concubinato eram muito
semelhantes às do homem branco, sobretudo em se tratando de alguém que fizera
fortuna c que podia se valer disso para obter as graças de um a m ulher de condição
social superior à sua. Nos dois casos, o concubinato podia ser brevem ente interrom
pido, mas não raro se eternizava, como ocorreu com os portugueses que chegaram ao
Brasil após a Independência,
Essas situações só eram com uns nas cam adas m édias da população livre. Nas
camadas superiores, os homens, quer ficassem solteiros ou se casassem, tendiam a
m ultiplicar suas aventuras sexuais, m antendo ligações sucessivas ou sim ultâneas com
várias mulheres. Foi aliás o com portam ento desses homens que deu origem à idéia,
muito difundida na época, de que reinava a devassidão, idéia reforçada pelo combate
intransigente da Igreja aos que transgrediam as leis civis e religiosas.
H om ens livres, por um la d o , e escravos e alfo rriad o s, p o r o u tro , não eram ju lg a
dos pelos mesmos padrões. Razões de o rd em in stitu c io n a l e e co n ô m ic a atu av am , mas
o econôm ico pesava m ais. O liberto, com o o h o m e m livre, só po dia se casar com
u m a escrava sc a libertasse, o q u e p ressup un h a g ran d e d is p o n ib ilid a d e m aterial. H a
via casos em q u e isso era possível, m as dc m odo geral os alforriados viviam em
concubinato com alforriadas ou escravas. Em 1 8 5 3 , por ex em p lo , o alforriado nagô
Luiz V ieira, carregador dc cad eirín h a dc arru ar, alu gava um quarto por 8 0 0 réis
mensais no imóvel n" 61 da rua D ireita, on de m orava com Felicidade, tam bém de
origem nagó, escrava de outro alforriado, U m segu nd o q u arto no m esm o imóvel
estava alugado ao alforriado Jacin to e a sua am ig a F irm ina, am bos de m esm a origem.
Segundo o estudo d e J.J, Reis, o con cu b in ato de alforriados ou alforriadas com escra
vos era coisa rara, os alforriados preferindo um parceiro q u e tivesse o m esm o estatuto
L iv r o III - A F a m íl ia B a ian a 209
ju rídico .20 Aliás, as uniões livres, em geral contraídas em idades mais avançadas — o
que tam bém aco ntecia com os casam entos — , co n stitu íam acordos de entendim ento
e aju d a m útuos para m elho rar a vida dos dois parceiros, assim com o uma tentativa
dc perpetuar origens étnicas c o m u n s ,21
Q u an to aos escravos, com o já in d iq u e i, não se casavam , fato a que os senhores não
davam m u ita im p o rtân cia. T a m p o u c o en co n trei, nas m inhas pesquisas, registro de um
caso sequer de escravos v iv en d o em co n cu b in ato . Ao que tudo indica, as uniões livres
eram privilégio dos q u e gozavam do estatu to de cidadão livre ou de alforriado.22
É fácil im a g in a r a aflição dos escravos, privados de todo tipo de vida familiar.
Mas cabe p erg u n tar se essa privação era im po sta u n icam en te do exterior, pela pró
pria natureza da so cied ad e escravocrata. Até certo ponto, ela pode ter refletido uma
escolha do próprio escravo. C o m efeiro, a q u a lid ad e de pessoa lhe era recusada. T i
nha u m a existên cia de coisa, q u e se c o m p ra e vende. T o rn ar-se pessoa im plicava a
compra d a alforria, e esta era m u ito cara. O ra, a v id a em co m u m envolve obriga
ções m ú tuas e ten de a m elh o rar a situ ação dos parceiros do ponto de vista material.
Os escravos, rurais ou urbanos, q ue v iv iam na casa do seu senhor, tinham a sobre
vivência assegurad a. D a u n ião , c asam en to ou co n cu b in ato , resultam fllhos, cuja
existên cia c ria o b rig a ç õ e s ta m b é m de o rd em m o ral. A ssu m ir responsabilidades
parentais afastava para sem p re a p o ssib ilid ad e da alforria, pois resgatar a liberdade
de u m a fam ília seria caríssim o. M e lh o r era, portanto, evitar a união e suas conse
qüências. N o caso dos escravos de gan h o , ter um cônjuge e filhos era igualm ente
um obstáculo para a consecução da gran de m eta, a alforria. A causa principal para a
ausência de casam entos e co n cu b in ato s entre escravos era, ao q ue parece, um a forte
coação m aterial.
Em co n trap artid a, a associação en tre escravos do m esm o sexo, vivendo sob o
mesmo teto, era, com o v im o s, p rática corrente. É preciso não esquecer que a Igreja,
que censurava a v id a devassa da po pu lação Hvre e lib erta, condenando o concubinato,
nao dem onstrava gran d e interesse pela v id a que levavam os escravos, cujos desvios de
conduta sem pre d escu lp av a.2'1 F req üen tem en te, as m ulheres trabalhavam c seus com
panheiros m asculinos ajudavam a to m ar conta das crianças. Na época do processo
contra os p articip an tes da R evo lta dos M alês, de 1835, A jadi, por exem plo, declarou
que ficava em casa tom ando conta de seus três filhos, enquanto a mãe das crianças
estava na rua vendendo m ercadorias. E Tgnácio Santana declarou que sua vida de
homem idoso o reduzira a educar seus dois filhos m ais velhos, dos quais um ia à escola
e o outro aprendia o ofício dc carpinteiro , e a criar m ais duas crianças, ainda m uito
pequenas. Q uan do G aspar da Silva C unh a foi preso, as autoridades o encontraram
preparando um m ingau para sua am iga I crcsa que estava d o en te...
Essa relativa anornia da sociedade baiana, em que as uniões livres eram m aioiia,
não parece ter tido influencia negativa sobre os com portam entos de ordem fam iliar.
Filhos oriundos dc laços m atrim oniais ou consensuais gozavam da mesma proteção e
estavam subm etidos ao poder paterno, m aterno ou ao de um tutor. Desde que reco-
210 B a h ia , S é c u l o X I X
nhecidos, esses ú ltim o s tin h am tam bém o m esm o d ireito à herança paterna, numa
atitu d e perm issiva do legislad o r, q ue era ao m esm o tem po causa e efeito do grande
núm ero de uniões livres p raticad o nessa so ciedade. N ão era, aliás, m era conseqüência
da situ ação escravocrata e co lo n ial do B rasil, pois vigorava em P o rtu gal, onde as uniões
livres e os n ascim en to s ileg ítim o s eram tam bém freq ü en tes.25 No m áxim o, pode-se
a d m itir q ue aqui o fenôm eno se a m p lio u , em d eco rrên cia da m aio r d esiguald ad e entre
hom ens e m ulheres e po rq ue se tratava de u m a so cied ad e em q ue o casam ento era visto
com o m eio de ascensão so cial: era preciso p en sar duas vezes anres de se unir oficial
m ente a alg u ém p ara fu n d ar u m a fa m ília . .
R econhecendo as u niões livres e os d ire ito s dos filhos ileg ítim o s, a sociedade
b rasileira se afigu rav a m u ito ‘a v a n ç a d a ’ p a ra a ép o ca, crian d o u m a realidade que
teve en o rm e in flu ê n c ia sobre co m p o rtam en to s e relaçõ es so ciais. Estes tenderam a
ser m enos fo rm ais, to rn an d o po ssível a In tegração , nas cam adas sup eriores, de toda
u m a m assa o riu n d a de castas m en o s favo recid as. G raças a laços de parentesco indis
cu tív eis, um m u lato — e às vezes u m n egro — p o d ia su b ir n a h ierarq u ia social,
protegido por um sistem a ao m esm o tem p o ríg id o e flex ív el, freq ü en tem en te frouxo
e to leran te. . ■
Eis um p rim eiro traço carac te rístic o dessa so cied ad e, q u e dava m argem a com por
tam en to s sociais q ue tra n sg red iam os estatu to s legais q u e a d iv id ia m entre brancos e
negros, senhores e escravos. Foi assim q ue a in s titu iç ã o fa m iliar to rn o u -se um m eio de
prom oção social. J á o d em o n strei ao a n alisar as estratégias m a trim o n ia is que me
revelaram a a m p litu d e dessa ev o lu ção . Em to rn o d a fa m ília devem ser buscados os
elem entos para se co m p reen d er as co m p lexas h ie ra rq u ia s so ciais, pois a fam ília era o
eixo a cuja volta g irav am as relações so ciais, com base nas q u ais as h ierarq u ias se faziam
ou se desfaziam . R eu n in d o p aren tes, agregados e vizin h o s de ru a ou de bairro, os
casam entos, n ascim en to s, enterro s e o u tro s aco n tecim en to s fam iliares eram atos pú
blicos e, com o tais, criavam situ açõ es p riv ile g ia d as p ara ap reen d er a tram a tecida pelos
laços sociais.
A escolha do cô n juge se realizava em pelo m enos du as etapas: o nam oro e o
noivado. E,sta sucessão de fases não era a rb itrária , obedecendo a preceitos definidos
pela fam ília c a sociedade. O nam oro era u m a form a de relação q ue se estruturara no
início do século XIX, a partir da crise do casam ento de conveniência, im posto pelos
pais, vencido pela força do am or ro m ân tico . No tem po cm que o casam ento era
decidido pelos pais, havia noivado — geralm en te longo — mas não nam oro. Antes do
com prom isso, os futuros cônjuges não tin h am nenhum contato entre si.
O nam oro com eçava com u m a troca de olhares e gestos expressivos. A iniciativa
geralm ente partia do rapaz. Os avanços exploratórios eram discretos. Um antigo
M anual dos n am orados recom endava ao rapaz m u ita prudência ao se d irigir à moça
cujo am or pretendia conquistar. Um tom brusco e ousado podia ter resultados desas
trosos,26 Se a prim eira tentativa fosse bem -sucedida, se podia arriscar um passo um
pouco m ais ousado. ,
L i v r o III - A F am Ilia B a ia n a 211
Entre os rapazes, a idade do namoro com eçava por volta dos dezoito aos dezenove
anos; entre as m oças, um pouco m ais cedo, entre catorze e quinze anos. Apesar da
reclusão em que viviam as m ulheres, as oportunidades para um prim eiro encontro
eram m uitas: missas, novenas e outros atos litúrgicos, assim como as festas fam iliares.
É preciso dizer, porém , que esses m ovim entos eram secretos e assim perm aneciam
durante a m aior parte do nam oro. F reqüentem ente, mães, irm ãs mais velhas ou tias se
tornavam confidentes da jovem apaixonada. U m dos papéis tipicam ente reservados às
tias solteironas, que viviam na depen dência de um irm ão ou cunhado, era o de servir
de ‘pau-de-cabeleira’, ou seja, v ig iar de perto o desenvolvim ento do namoro ou pro
mover seu térm ino, se o rapaz não fosse do agrado da fam ília. Assim , conforme o caso,
a tia celibatária tornava-se cú m p lice ou espiã.
D urante a segunda etap a, que pressupunha a aquiescência do futuro parceiro,
estabelecia-se entre os nam orados u m a relação am bígua, que só podia ser legitim ada
pelo noivado. Os dois co n tin u avam a se encontrar em lugares públicos, mas — fre
qüentem ente graças à cu m p licid ad e de um m em bro da fam ília — tornavam-se possí
veis rápidos encontros, no portão da casa da m oça, ou ju n to a um a janela térrea, quando
havia, Seja com o for, esses encontros deviam ser públicos, à vista dc todos: encontros
em lugares escuros e escondidos, sobretudo à noite, eram sinônim o de m á conduta e
expunham a m oça ao escândalo. O pai era o ú ltim o a saber do nam oro de sua filha ou
de seu filho e só ele tin h a o poder de criticar, recusar ou aprovar a escolha.27
A função do nam oro era preparar a união dé ‘igu ais’ em estatuto social, maneiras
e tipo físico. No fundo, o casam ento era um problem a de fam ília, cujo sucesso depen
dia do acaso, já q ue “casam ento e m ortalha, no céu se talh a”. M as era preciso a
m áxim a atenção para prevenir certos desacertos. Por isso, deviam ser levadas em conta
noções como “somos o que é nossa fa m ília ”, ou “as fam ílias devem se parecer m uito”,
repetidas por um conselheiro fam iliar da épo ca.28
V encida esta segunda etapa, o nam oro cam inhava para o ‘compromisso : juras de
fidelidade entre os jovens nam orados, que os encorajavam a revelar suas relações às
respectivas fam ílias. Nessa nova etapa, o rapaz conquistava o direito de freqüentar a
casa da sua eleita alguns dias por sem ana, sempre sob a vigilância direta dos pais ou de
outros m embros da fam ília. F inalm ente, quando a união era decidida e o rapaz estava
em condições dc ‘pensar em casam ento’, era feito o pedido oficiai ao pai da moça.
Celcbrava-se então o noivado, um a etapa de m aior aproxim ação entre as duas famílias.
Enquanto isso, os jovens continuavam a s e ver, sempre sob vigilância. A virgindade era
o bem mais precioso da m oça.2''1
O namoro não era exclusivo da burguesia: também as classes médias da sociedade
baiana o praticavam . Aliás, segundo a tradição, era até mais comum nestas últimas,
pois na classe alta continuava freqüente a escolha do cônjuge pelos pais. O elevado
percentual de mulheres celibatárias que encontrei entre as famílias burguesas estuda
das é um indício de que as fam ílias preferiam que as filhas ficassem solteiras a vê-las
‘desclassificadas’ pelo casamento com um rapaz de condição inferior.^
212 B a h ia , S écu lo X I X
E videntem ente, esse era o paradigm a do nam oro e do casam ento, o modelo ideal
form al, ritualizado e hierarquizado , a que a realidade nem sem pre se ajustava com
perfeição, Podia haver desvios m aiores ou m enores, segundo as circunstâncias. Havia
por exem plo, nam oro e casam ento do rapaz ‘pobre e bo m ’ com a m oça rica, de família
respeitada; havia tam bém casam ento de rapaz de cor com m oça branca. Eram ‘arran
j o s ’ — que sem pre funcionaram bem n a sociedade brasileira — à m argem da endogamia
ou da isogam ia das classes, que com pensavam a falta de can didato s m ais bem qualifi
cados e perm itiam a incorporação de in d iv íd u o s com dotes intelectuais ou políticos
em fam ílias de com erciantes, p ro p rietário s agríco las, senhores de engenho, homens de
governo, sem que isso prejudicasse a m u lh e r.31
A ssim , nem sem pre o casam ento u n ia os ‘so cialm en te igu ais’, Os portugueses, por
exem plo, casavam -se facilm en te com m u latas ricas, e não raro um a branca sem dote
casava-se com um m u lato talen toso ou rico. Isso aco n tecia sobretudo nas categorias
interm ed iárias, aqu ela dos q u e tin h am pressa e q u eriam cortar cam inho até o topo da
h ierarq uia social.
Por outro lado , as relações entre n am orados e até en tre noivos nao eram tão puras,
com o já dem on strei ao an alisar os raptos e estupros. F req üen tem en te ocorria que a
m oça fosse d esvirgin ad a — po rtan to, co m p ro m etid a — pelo nam orado ou aquele a
quem tin h a sído p ro m etid a. C o m raras exceções, a m u lh er q u e p erdera a virgindade,
se nao con seguia gu ard ar o fato em segredo, evitando assim q uaisq uer problemas,
tin h a três escolhas: a p ro s titu iç ã o — d eclarad a, se fosse pobre, discreta se tivesse alguns
recursos — , o celib ato ou um casam ento de co n v en iên cia.32
Q uan d o o nam oro co n d u zia ao com prom isso e ao pedido de casam ento, celebra
va-se o noivado, em cerim ô n ia p resen ciad a por parentes, am igos, vizinhos e empre
gados. Por vezes, com o vim os, n lo era precedido de nam oro, pois tratava-se de esco
lha dos pais. Era com um fazer, no d ia do n o ivado, u m a exposição do enxoval da
noiva, em gerai adm irado com estardalh aço na presença da noiva e de seus familiares
e com frequência acerbam ente criticad o m al se cruzava o portão, na saída. Bebia-se,
com ia-se, contavam -se m il e u m m exericos e se fazia u m a provisão de futricas para as
semanas vindouras.
Para o casam ento, os dias preferidos eram as quin tas-feiras e os sábados. Sexta-
feira, jam ais: era d ia aziago. Em geral a cerim ô n ia era celebrada na presença das
fam ílias e dos am igos, na igreja da paróquia de um dos noivos, por um numero de
padres correspondente às posses das fam ílias. Os filhos dos grandes proprietários rurais
e senhores de engenho casavam -sc m uitas vezes nas casas dos pais. Até o advento da
República, o casam ento era um ato exclusivam ente religioso, pois não existia casamen
to civil. Era necessária a presença de duas testem unhas, mas este número podia ser
m ultiplicado quando havia m uitos am igos a hom enagear. Era com um que entre esses
am igos fosse in clu ída um a pessoa de condição social inferior, que podia ser um bom
artesão, um am igo de cor ou um em pregado cujas qualidades fossem especialmente
apreciadas. Por tradição, a esposa podia conservar seu sobrenome, e alguns dos filhos
L iv r o III - A F am ília B aiana
213
ou escravos: para eles, tratava-se de escolher alguém que tivesse algun s bens e gozasse
de prestígio m oral na sua própria categoria so cial.34 Ao q u e tudo in dica, o apadri
nham ento com o m eio de ascensão social só desem penh ava papel im po rtan te entre a
população livre e branca, ou en tre a de cor, q u an d o já so lid am en te estabelecida na
sociedade. ' ■ " " ■■■■■' ■. 1
N um outro ato, que se segu ia im ed iatam en te ao b atism o , podia-se apelar para
alguém m ais h u m ild e. T ratava-se da ‘ap resen tação a N ossa S en h o ra’ , em que a criança
era posta sob a proteção da V irgem M a ria. A ssim , além dos p adrinh os de batism o,
havia a ‘m ad rin h a de ap resen tação ’, q ue p o d ia ser esco lh id a até entre os agregados,
escravos alforriados, u m a v izin h a so lícita ou um p aren te pobre. Era um a prova de
am izade e consideração q ue p e rm itia co n q u istar a d ed icação de pessoas, alargando o
círculo fam iliar. Por ocasião do crism a, ch egad a à id ad e da razão, p ad rin h o s ou m adri
nhas podiam ser escolhidos en tre os m ais h u m ild e s. ■: . .
A niversários e fo rm aturas eram tam b ém ocasiões de festas nas fam ílias abastadas,
que a im pren sa da época não d eixava de rep o rtar. O s pobres, q ue nao festejavam seus
próprios aniversários, eram co n vid ad o s p ara esses festejos, q u an d o tin h am algum laço
com u m a fa m ília de posses. D ip lo m ar-se n u m a esco la su p erio r era, para o jovem
baiano, aco n tecim en to tão im p o rtan te q u an to casar-se. M u ito s escravos foram liber
tados no século XIX em h o m en agem ao su rg im en to de m ais um ‘d o u to r’ .
Q uan to à m o rte, todos a tem iam nessa c id ad e em q ue as condições de higiene
eram precárias e as en d em ias e ep id em ias grassavam . O ín d ice de m o rtalid ad e infantil,
já o constatam os, era catastró fico . Ign o ro a ex p ectativ a de v id a d a po pu lação adulta,
talvez entre 45 e 50 anos. U m a co isa é certa: a m o rte aterro rizav a e estava sempre
presente. T odos usavam figas, a m u leto q u e, segu n d o se acred itav a, co n jurava essa
fatalidade. Os padres, em suas orações e h o m ilías, não se can savam de tran sm itir aos
baianos a im agem de um D eus v in gativ o e cioso, em d etrim en to daquele Todo-
M isericordioso do N ovo T estam en to . M u ito cedo, o b aian o era prep arado para en
frentar a m orte, q ue o poria face a face com o C riad o r. Essa prep aração envolvia duas
etapas: prim eiro, o ingresso n u m a das num erosas irm an d ad es, o que dava a segurança
de ter um enterro decente; depois, a redação do testam en to , expressão das últimas
vontades, cm que as preocupações de ordem religio sa superavam de m u ito as de ordem
fam iliar.
Eram m uitos, dc fato, os baianos que red igiam seu testam ento “no gozo dc ótim a
saúde, com a m esm a m ente sadia que Deus [lhej deu, ign orando a hora que Deus
Nosso Senhor haveria por bem c h a n iá -[lo J”. Frases desse gênero eram geralm ente
seguidas por toda um a séríc dc invocações, tais com o: “R ecom endo m in h ’alm a ao
T odo-Poderoso, que a criou, c a Jesus C risto seu Pilho Ú nico, meu Senhor, que a
resgatou com seu precioso sangue, à V irgem M aria, Nossa Senhora m uito santa, a meu
santo padroeiro, a meu anjo da guarda c peço a todos os outros santos que intercedam
por mim agora e na hora de m inha m o rte.” O u ainda: “Recom endo m in h alm a à
Santíssim a T rin d ad e, que a ctio u , rogando à santíssim a M ãe de D eus, a meu anjo da
L iv r o III - A F a m íl ia B a ian a 215
guard a e san to p ad ro eiro e a todos os santos e santas da corte celestial que intercedam
por m im agora e q u an d o m in h a ím a d eixar m eu corpo, para que, com o um verdadeiro
cristão, eu possa esperar ser salvo graças aos m éritos desse m esm o Filho Ú n ico de
D eus1’. Em segu id a, o testam en to listava as irm an dades religiosas a que pertencia o
testador, pois em todas as classes sociais — in clu siv e as cam adas m ais hum ildes, com o
a dos alfo rriad o s — era co m u m o ingresso de u m a pessoa em várias delas. Descobri
algum as q ue p erten ciam a o ito .
A té 1 8 6 0 , era raro q ue se deixassem à fa m ília as decisões sobre o enterro , e m ais
raro ain d a desejar-se u m en terro sim p les, sem po m p a; para o período de 1 7 9 0 -1 8 2 6 ,
entre cem testad o res ex-escravos só 2 1 % dos ho m ens e 2 4% das m ulheres deixaram
suas fam ílias d e c id ir sobre seu se p u lta m e n to . M a s, se fizerm os o cálcu lo para o período
de 1 8 6 3 -1 8 9 0 , en tre cem testad o res, sem p re ex-escravos, 6 8 % dos hom ens e 64% das
m ulheres nao m e n c io n a ram a m a n e ira com o desejavam ser sepultados ou deixaram
isso a critério d a fa m ília .35 N os testam en to s dos pobres, boa parte dos parcos bens que
possuíam era d e stin a d a ao p ag a m en to das m u itas m issas a serem rezadas nos meses ou
anos sub seq üen tes à m o rte. A té os african o s recém -saído s da escravidão q ueriam um
enterro ap aratoso.
U m exem p lo é D a m ia n a V ie ira , african a d a C o sta da M in a , gan h ad eira, que
com p rara sua a lfo rria p o r cem m il réis.. Em 1 80 5 fez seu testam en to , onde aparecem
as sete irm an d ad es a q u e p e rte n c ia: N o ssa S en h o ra do R osário das Portas do C arm o,
Bom Jesus das N ecessid ad es e d a R ed en ção , Sao B en ed ito de São Francisco, Santa
Ifigênia d e São F ran cisco , N o ssa S en h o ra do R osário de S an tan a, N ossa Senhora do
Rosário d a C o n ceição d a P ra ia e B om Jesu s dos M a rtírio s .36 P ed ia q ue seu corpo fosse
enterrado com o h á b ito do seráfico São F rancisco e o féretro aco m panh ado pelo
reverendíssim o pároco , seu sacristão e m ais o ito padres. Seu corpo deveria ser trans
portado no caixão d a Irm a n d a d e de N ossa S en h o ra do R osário das Portas do C arm elo
e seguido por todas as irm an d ad es a q ue p erten cia. D eixou tam bém u m a esm ola de 12
réis para cad a u m dos 12 pobres q u e d eviam tran sp o rtar o corpo até a Igreja do
Rosário dc N ossa S en h o ra das portas do C arm o , on de q u eria ser enterrada. O rdenava
que fossem rezadas seis m issas de corp o presente p ela alm a de seu finado m arido, seis
pela de sua filh a, tam b ém falecid a, e q u atro por todas as pessoas com q ue lidara seja
para com p rar, seja p ara ven d er". C o m o ú n ico bem , deixou um a escrava avaliada em
5 0 .0 0 0 réis e m óveis sin gelo s, declarados de pouco valor.
Jo aq u im de São Jo sé escreveu seu testam ento em 1857. Era um africano de mais
de sessenta anos, cx-cscravo dc Serafim G onçalves, viúvo em prim eiras núpcias de
Rosa B árbara — african a que cie liberto u para des posar — e casado em segundas
núpcias com M aria do B onfim , tam bém african a, libertada pela filha do próprio
Jo aq u im , do p rim eiro casam ento. No testam ento, declarou ser irm ão das Confrarias
de São B enedito e de São V icen te Fcrrer, am bas ligadas ao convento dos franciscanos.
Pediu que lhe fizessem o enterro uo m ais decente possível e encom endou 24 missas
cantadas por sua alm a, m ais 24 pela alm a da p rim eira m ulher. À filha, deixou um a casa
2 )6 B a h ia , S éculo X I X
na rua de Baixo e “quatro filh inh as” — que sua segunda m ulher tivera antes do ca*
sarnento — que deveriam ser “batizadas e educadas da m aneira mais apropriada pela
d ita filha V eríssim a”. Assim , as filhas que M aria do Bonfim tivera quando ainda
escrava, fora dos laços m atrim oniais, não foram libertadas, mas dadas à filha legítima
para servi-la.37
Em 1846, o norte-am ericano T hom as E w bank escrevia: “O corpo [do defunto]
fica sem pre exposto na peça prin cipal da casa; raram ente é velado por mais de 36
horas e, m uitas vezes, menos que as 24 im postas pela lei. Se o finado for casado, um
pano preto ornado com fios dourados é pendurado na porta de entrada; se for celiba
tário, as cores são lilás e dourado; se for criança, azul e dourado. Os casados tinham
sempre caixões pretos, a m enos que fossem jovens, caso em que eram azul e verme
lho. Os religiosos eram levados à sep u ltu ra num caixão que ostentava um a grande
cruz, o que não era perm itido aos leigos (...). A m antes de belos trajes, os brasileiros
eram sem pre enterrados com suas m elhores roupas, exceto quando algum hábito ou
roupa especial era preferido por razões religiosas. As m ulheres casadas eram envoltas
em lençóis negros e tin h am os braços cruzados, cada m ão pousando no braço oposto.
As solteiras eram envoltas em lençóis brancos, enfeitados de gu irlan das de flores bran
cas, as mãos ju n tas em posição de oração. H om ens e rapazes tinham as mãos cruza
das no peito. Os ocupantes de cargos oficiais eram enterrados com suas vestimentas
de função, os padres com suas b atinas, os soldados com farda, os membros das con
frarias com as in d u m en tárias próprias. C rian ças de até dez ou doze anos eram vesti
das com hábitos religiosos ou com o santas, com o an jin h o s ou com o m adonas. M eni
nos pequenos, por exem plo, eram vestidos de São Jo ão , com um a plum a e um livro
nas mãos, ou de São José, segurando um pequeno bastão guarnecido de flores. M eni
no cham ado Francisco ou A ntôn io em geral era enterrado com roupa de monge. Se o
nome era M igu el, vestiria um saiote e um a tú n ica, teria um capacete dourado e uma
das mãos em punhando u m a espada. As crianças eram consideradas anjos, e as mães
se alegravam de vê-las sub ir aos céus, preservadas das tentações e pecados que encon
trariam na T erra.”38
N a visita que fez à B ahia em 1860, M axim ilian o , príncipe do Império Ausrro-
H úngaro — c futuro im perador do M éxico — , ao passar dian te do cem itério do
Cam po Santo viu um cortejo fúnebre no qual havia “um a carreta dourada, atrelada a
quatro cavalos pretos, com um dossel de veludo cheio dc franjas douradas e plumas de
avestruz pretas. Na rica boléia estava sentado, enfeitado como um macaco, uni negro
velho em libré espanhola. No carro triunfal havia um a cobertura preta e dourada que,
visivelm ente, nada cobria. Atrás seguia tnn corso de coches. Dessa vez tinham despa
chado um ricaço, e os herdeiros voltavam a galope para casa, para o banquete alegre,
para a boa sesta, feliz c despreocupada,”39
O espetáculo e o esplendor do cerim onial que cercava os enterros eram muitas
vezes iguais para ricos c pobres, brancos ou negros, alforriados ou livres. M as se tais
exibições dc fausto e pom pa eram solicitadas por gente que muitas vezes só escrevia
L iv r o III - A F a m Ilia B a ian a 21 7
testam ento para con signar esses desejos, havia tam bém pobrcs-coitados, cujos cor
pos eram conduzidos fu rtivam en te à sua ú ltim a m orada, graças à caridade pública.
O rom ancista X avier M arqu es deixou um a boa descrição do enterro de um desses
infelizes: “Da rua B aixa surge o cortejo fúnebre de um enterro de braço, composto
de um a confraria de negros envoltos em capas da cor dc ju n q uilh o s e de negras que
levam na cabeça, gu arn ecido s de flores, os tabuleiros com que vendem frutas e le
gum es na rua, um a delas segurando até um b an q u in h o em que se podia pousar o
caixão para d escansar".40
O fato é que a ‘boa m o rte5 estava no centro das preocupações de todos os baianos.
‘M orrer b em 5 era o ú ltim o dever so cial do ho m em . O corpo era velado pela fam ília, os
parentes, os vizinh os. Q u an d o era levado para igreja de p aró q u ia, o dono da casa em
que fora velado jo g av a um copo d ’ág u a na d ireção do cortejo, dizendo: “Eu te conjuro,
que Deus te receb a!” D epo is, toda a casa era lim p a, para q ue o defunto não voltasse.
Após o enterro, a fa m ília oferecia, em h o m en agem ao finado, um lauto banquete a
todos os presen tes.41
A Q u a l id a d e d a s R e l a ç õ e s S o c ia is
era ocorrência rara. O grande salto para a ascensão social era a alforria, e o ex-escravo
podia passar m uito tem po m arcando passo na cam ada inferior da hierarquia social.42
Já na segunda geração, e sobretudo na terceira, se tivesse havido m estiçagem , se os
traços da raça negra tivessem sido aten uados e se o sucesso m aterial e social fosse
notório, origens negras podiam ser co m p letam en te esqu ecid as.43 A liás, quanto maior
o êxito econôm ico e social, m enos lem bradas eram as origens.
É evidente que esse processo estava sujeito a norm as ditadas ‘de c im a , isto é,
fundadas num m odelo branco q u e envolvia relações de tipo p atriarcal, com tensões
enrre dom inadores e do m in ado s, protetores e protegido s. R elações dc dependência
perm eavam toda a escala social. O co m erciário que quisesse p ro gred ir em seu ramo
punha-se sob a proteção do patrão ; o fu n cio n ário , para ascender no serviço público,
depen d ia dos favores de alguém de posição m ais elevad a, q ue retrib u ía com sua fide
lid ad e; o artesão que trab alh av a p ara u m em p reiteiro cu id av a de fazer um bom traba
lho, que lhe granjeasse a co n fian ça do patrão ; o senhor de engenh o dependia do
negociante que, ao ven der sua p ro d u ção , aju d av a-o a m an ter sua posição social; o
po lítico q ue dava as cartas no seu d istrito sen tia-se m u ito m ais com prom etido com
outros po líticos — os q ue p articip av am das tom adas de d e c islo , na cap ital — que com
seu eleitorado. São co m p o rtam en to s que, em ú ltim a an álise, geravam laços dc solida
riedade que in terlig av am os h ab itan tes d a cid ad e p a ra além dos lim ites tacanhos im
postos pela catego ria social de o rig em , a cor o u o estatuto ju ríd ico .
O grande engan o d a m aio r p arte dos h isto riad o res sobre a q u alid ad e das relações
sociais em Salvad o r provém de suas fontes, larg am en te baseadas nas descrições feitas
por viajan tes estrangeiros, N ao p erten cen d o ao m eio, eles em geral n ad a m ais viam
que a espum a das ondas q u e agitav am m ais p ro fu n d am en te as relações sociais, deixan
do-se ilu d ir por u m a aparen te in tegração racial e, sob retu do , social. C ito alguns de
poim entos, tanto do in ício com o do fim do p erío d o q ue estudo.
Por volta de 1800, o inglês L in d le y confessou sua surpresa ao con statar a insensa
tez das hierarq uias sociais b aian as: “A F rança, em sua fase de m ais com pleta revolução
e igualdade dos cidadãos, jam ais a excederia a esse respeito. V ê-se, aqu i, o empregado
branco conversar com o patrão em term os d a m aio r igu ald ad e e co rdialidade, discutir-
lhe as ordens e questionar a seu respeito, se são contrárias à op inião que ju lgue mais
fundada. E o superior o recebe de boa cara, con cordando freqüentem ente com ele. O
sistem a não fica nisso, mas estende-se aos m ulatos e até m esm o aos negros (..-)•
A tribuo essa prom iscuidade à ign orância geral que im pregna o país, pois nenhum
povo tem pretensões c m ais h a u teu r 011 reserva do q ue o brasileiro, ao passo que, na
realidade, menos a possui cm sua própria so ciedade.”44
É um com entário curiosam ente con traditó rio. Parece que L indley tenta opor o
com portam ento coletivo aos com portam entos in d ivid uais: a sociedade seria em geral
igu alitária e cordial, ao passo que as reações dos indivíduos seriam m arcadas pela
altivez e a reserva. O ra, L in dley dá precisam ente um exem plo de relação pessoa a
pessoa. Q uando e quem dava mostras da altivez e da reserva que ele postula como
LrvRo III - A F am Ilia B a ia n a
O E s t a d o : O r g a n iz a ç ã o
e E x e r c íc io d o s P oderes
CAPÍTULO 1.5 ■
A H eran ça: O r g a n iz a ç ã o d o E st a d o
no F im do P e r ío d o C o l o n ia l
J u s t iç a e F in a n ç a s
O m agistrad o m ais im p o rtan te era o o u vid o r-geral, residente na cap ital de cada cap i
tan ia e sup erior h ierárq u ico de ouvidores civis e crim in ais {m agistrados superiores, ou
desem bargadores, q ue deliberavam no T rib u n al de R elação, de segunda in stân cia), de
ouvidores de com arcas e distrito s (que tam bém exerciam o ofício de corregedores em
223
224 B a h ia , S é c u l o X I X
causas civis e crim inais) e de numerosos juizes, entre os quais os ‘juizes de fora’, qUe
geralm ente presidiam as câmaras m unicipais e eram provedores da Rea! Fazenda (en
carregados dos testam entos, dos bens dos defuntos, dos ausentes e dos órfãos),2
Até a declaração de Independência, só a B ahia, o Rio de Janeiro e o Maranhão
tinham T ribunais de Relação, presididos pelo capitão-govcrnador-geral.3 Por volta de
1800, a Bahia tinha cerca de 85 juizes de prim eira e segunda instâncias, residentes em
Salvador, alguns dos quais pagavam à C oroa pelo direito de exercer o cargo. Segundo
V ilhena, os desem bargadores pagavam esses direitos ain d a em Lisboa, antes de partir
para o Brasil.'*
No início da colonização, havia um a estrita separação entre as adm inistrações finan
ceira — confiada ao provedor da Fazenda — e p o lítica. M as, no governo do Marquês
de Pombal (1 7 5 5 -1 7 7 7 ), criou-se a Ju n ta de A rrecadação da Real Fazenda, verdadeiro
conselho de Finanças, presidida pelo governador-geral e integrada por altos magistra
dos e altos funcionários, N a B ahia, por exem plo, faziam parte desse conselho, entre
outros, o chanceler do T rib u n al de R elação, o procurador da C oroa, o intendente da
M arinha e o oficiaí-m or da Secretaria.5 O utros serviços com pletavam a organização
financeira da C ap itan ia: a Ju n ta de A rrecadação do Subsídio V oluntário , a Secretaria
de Estado e Governo, a Intendêncía G eral do O uro, a C asa da M oeda, a M esa de
Inspeção (encarregada de controlar a q u alid ad e dos produtos exportados peia Bahia),
a Intendênçia da M arin h a e A rm azéns Reais e a A lfândega.
N a Bahia, o único cargo hereditário era o de secretário de Estado e de Governo
que, desde meados do século XVIII, estava nas mãos da fam ília Pires de Carvalho e
A lbuquerque. T am bém neste caso, só titulares de cargos subalternos deviam pagar
direitos ao serem nomeados. E xistiam 123 funcionários na área financeira da Capita
nia no século XVTII. Som ados aos 85 juizes ou oficiais de Ju stiça, chegavam , portanto,
a 208 as pessoas envolvidas nessas áreas de governo. A ltos m agistrados e altos funcio
nários eram escolhidos em Portugal, pois os brasileiros nao tinh am o direito de ocupar
os postos adm inistrativos m ais elevados, nem podiam ter esperanças de obter promo
ções. M as havia um a exceção, raram ente efetivada antes de 1808: eram os cargos de
juizes de fora — juizes ordinários, geralm ente form ados em C oim bra, que lideravam
o Poder Judiciário nos 33 Term os da C ap itan ia da B ahia.6
O E x é r c it o
m ilita r cia cap ital b aian a co m p reen d ia três regim entos (dois de infantaria e um de
a rtilh aria ) e u m a co m p an h ia de in fan taria, esta encarregada de guardar a fortaleza do
M o rro de Sao P aulo, q u e co n tro lav a a b arra do sul e a en trad a da baía. Ao Exército real
só cab ia p ro teger a cid ad e de Salvad o r e suas im ediações.
Em tese, as tropas de p rim eira lin h a deveriam contar com 3 .2 0 0 oficiais e solda
dos, m as esses efetivos n u n ca estavam com pletos. A pesar do serviço m ilitar obrigató
rio, o E xercito tin h a d ific u ld ad e em atrair o pessoal de que necessitava, pois os salários
eram m u ito baixos, m esm o q u an d o se lev a em con ta a com plem entação representada
por rações (feitas de fa rin h a de m an d io ca, carne-seca, saí e toucinh o) e pelo forneci
m ento de v e stu á rio .V ilh e n a a v a lia em dois m il hom ens o efetivo das tropas por volta
de 1S00, q u an d o o salário m en sal de u m soldado d e in fan taria era de 1.410 réis (para
efeito d e co m p aração , registre-se q ue u m artesão recebia u m a d iária de cerca de 320
réis). A p a rtir do m o m en to em q ue a lg u é m se alistav a no E xército, tornava-se soldado
para o resto d a v id a , su b m etid o u n ic am e n te à Ju stiç a M ilita r, que tin h a um a reputação
de rigo r p ara co m os so ld ad o s rasos e dc clem ên cia para com os o ficiais.8 Q ualquer
hom em e n tre dezesseis e q u a re n ta anos p o d ia ser recru tad o , sobretudo se fosse solteiro;
m as eram p rin c ip a lm e n te os m u lato s livres q u e se apresen tavam com o voluntários para
o a listam en to . E ram isen to s do serviço o b rig ató rio os cu ltivado res de m andioca, os
escravos, os q u e p erte n c iam ao S an to O fício , os detentores dos m onopólios de sal,
v in agre, azeite de o liv e ira e, e n tre o u tro s, até os q ue d etin h am concessões para explorar
jogos de cartas!
Por cau sa d essa fa lta de v o lu n tário s, o E stado se v ia obrigado a recorrer ao recruta
m ento fo rçad o , q u e m a n tin h a a cid ad e e seus arredores em con stante estado de alerta.
V ilh en a co n ta d e ta lh a d a m e n te os p ro ced im en to s “rep u gn an tes” do E xército, que es
palhava u m reg im en to in te iro p ela cid ad e, com ordem de p ren d er todos os brancos,
sem exceção, p ara tran cá-lo s na prisão . S o m en te u m a dessas operações perm itiu que
“445 pessoas de diversas q u a lid a d e s” fossem levadas, entre as quais havia até dois
padres! R ecru tam en to s desse tip o tam b ém eram organizados no Recôncavo e nos
cam pos vizin h o s, em q ue cap itães “m enos pios que um N ero davam livre curso a suas
paixões e cap rich o s. V ilh e n a acrescen ta que, assim q u e com eçavam essas cam panhas de
recrutam ento , a fom e torn ava-se fatal pois os “agriculto res, tanto pais como filhos,
receosos d e os p ren d erem , se m etem ao m ato ”, deixando de cu ltivar os alim entos
indispensáveis à so b revivên cia de populações que estavam sem pre à mercê da fome,
Esse sistem a acarretav a gran d e problem a p ata as tropas: a deserção. Em 1808, 20 ^ dos
efetivos da gu arn ição de Salvad o r fugiram , em geral para o Sertão, em cujo povoamen
to os desertores acabaram por desem penhar im portante papel. No regim ento de
filh aria, que n o rm alm en te contava com 1.200 hom ens, houve 71 desertores em 1813.
O núm ero de o ficiais nao guardava proporcionalidade com o das tropas, porque
a carreira daqu eles co n tin u av a a ter certo prestígio social. Os regim entos tm am
oficiais extras em todas as patentes, que eram cham ados agregados . E es e
qüen tem ente recrutados em P ortugal e, m uitas vezes, antes de chegar a Salvador
226 B a h ia , S é c u o XIX
As estruturas básicas do governo íocal eram tão anrigas quanto as do governo geral;
havia dois juizes ordinários, três vereadores escolhidos an u alm en te, um escrivão, um
procurador e dois ‘alm otacés’ (encarregados de controlar a q u alid ad e dos produtos
vendidos nos mercados locais, os pesos e m edidas e as condições de higiene e limpeza).
Juntos, eles form avam a C asa de V ereação, ou C onselho de V ereação, tam bém cham a
do em Salvador, desde 1646, de Senado da C âm ara. N o in ício do século XIX, este
órgão conservava a m esm a estrutura de 1696, mas o núm ero de funcionários que ali
deliberavam aum entara bastante, atin gin do 3 2, com funções bem específicas.20
Tratava-se de conselhos sem nenhum a atrib uição legislativa, mas nem por isso
desprovidos de im portância na vida local. Ao contrário. Cabía-Ihes tratar de pequenos
roubos, agressões ou in jú rias, cuidar das vias públicas, fixar taxas urbanas (pagas por
com erciantes e artesãos) e assim por d ian te.21 Juizes e vereadores eram escolhidos entre
os homens bons’, reconhecidos por sua riqueza e seu estatuto social elevado e chama
dos a compor esses conselhos m unicipais que, se não tinham atribuição legislativa, até
o fim do século XVIÍ desem penharam um papel político im portante, defendendo,
junto ar> poder central, os interesses dos produtores estabelecidos em Salvador e no
Recôncavo. A tal ponto que, em 1696, a presidência do Conselho M unicipal de
Salvador foi confiada a um juiz de fora, nomeado pela Coroa. D aí em dianre, em tese,
os membros do conselho m unicipal passaram a ser nomeados pelo governador; na
prática, porém, continuaram a scr escolhidos por seus pares.22
No século XVIU, o papel político da Câm ara M unicipal de Salvador dim inuiu, ao
passo que aumentou o das câmaras das vilas do Recôncavo c do interior. Ali, os juizes
de fora nomeados pela Coroa nunca tiveram bastante autoridade para oferecer resis
tência à atuação dos poderosos locais. Alguns votos dos vereadores conseguiam anular
L ivro I V - O Es t a d o : O r g a n iz a ç ã o e E xercício d o s P oderes 229
decisões dos m agistrados que, depois de certo tempo, acabavam por adotar os pontos
de vista do patriarcado rural local. Os ofícios m ais im portantes eram vitalícios,23 e os
seus beneficiários estavam isentos de alguns im postos.24
Os analistas definem o Estado português como patrim onial. O reí organizava o
poder político de m aneira patriarcal, com a estreita colaboração de seus súditos, que
dele esperavam favores e funções. ‘O rdem p ú b lica1 e ‘ordem privada’ operavam ju n
t a s , n u m sistem a de difícil gerência: era m ister que o rei lim itasse o crescim ento da
aristocracia local, a duração dos cargos concedidos e a influência das relações fam iliais
e, sobretudo, tomasse conta de todos os níveis adm inistrativos, tornando com petitivos
os diversos setores políticos, para q ue exercessem vigilân cia uns sobre os outros.26 Esse
Estado patrim on ial corresponde perfeitam ente às descrições que fizemos. No Brasil,
em todos os níveis, ordem pública e ordem privada colaboravam estreitam ente. Falta
saber qual a natureza dessas relações, e, sobre este ponto, as opiniões divergem .
O baiano N estor D uarte representa um a posição extrem a. A nalisando o sistema
político do Brasil C o lô n ia, enfatiza o poder da aristocracia rural dos senhores de
engenho e dos criadores de gado, poder baseado na ocupação e povoam ento das terras
por esses m esmos proprietários, sem intervenção da Coroa. D estarte, os proprietários
eram livres para ‘go vernar’ suas terras como achassem m elhor. T ornando-se centrífu
go, esse poder m udou de natureza, deixando de ser um a função pública para transfor
mar-se num a função privada. D uarte assegura que as aristocracias rurais governavam,
prom ulgavam leis, faziam ju stiça, com batiam tribos indígenas. Nos estabelecim entos
rurais ele vê verdadeiros castelos feudais. Esse m odelo se teria perpetuado ao longo de
todo o século XIX: “A grande paz do Im pério e seu equilíbrio encontravam apoio
junto a esses senhores territoriais que forjavam a força econôm ica e o poder m aterial
do Estado. Ela representava tam bém a única parcela ‘p o lítica’ da população brasilei
ra.”27 Os senhores da terra teriam , pois, tom ado o poder, atributo do Estado, e o
teriam conservado m esm o depois da Independência.
Raim undo Faoro diz exatam ente o contrário. Para ele, a conquista da terra e a
colonização foram obra do poder real, que soube orientá-las nos m ínim os detalhes.
A iniciativa privada agia sob a proteção e a tutela do rei e de seus vigilantes agentes.
O F.stado português seria, por natureza, centralizador e patrim onial; possuiria um
vasto m ecanismo dc controle sobre a vida econôm ica e a ação política da aristocracia
agrária, Faoro adm ite a existência dc tendências centrífugas e descentralizadoras, mas
afirma que, tanto na época colonial quanto no século XIX, o poder central soube
como com batê-las, com m aior ou menor sucesso. Segundo este autor, uma grande
parte da história política do Brasil gira em torno dos temas da centralização e da
descentralização.2*1
O que separa os dois autores não é uma divergência quanto à natureza do poder.
Os dois admitem a dualidade ‘poder público’ e ‘poder privado’. Divergem sobre os
procedimentos adotados pela aristocracia rural para exercer uma parte do poder do
Estado e sobre os lim ites desse poder, Para Duarte, a aristocracia, usurpadora do
230 B a h ia , S é c u l o XIX
O R e g im e M o n á r q u ic o B r a sil e ir o
1822-1889
O Brasil n u n ca foi co n sid erad o pelos portugueses com o u m a colônia, mas como um a
‘terra de a lé m -m ar'. A p a rtir de 1 8 0 8 -1 8 1 0 , a In d ep en d ên cia b rasileira am adureceu
grad ativam en te, com a ch egad a da fa m ília real ao R io de Jan eiro , a abertura dos portos
às nações am igas, a a ssin a tu ra d e um tratad o de com ércio com a Inglaterra, e, sobre
tudo, em 1 8 1 5 , com a elevação do B rasil à con dição de reino, ain d a unido a Portugal.
Foi necessário eclo d ir, em P o rtu gal, a R evo lução C o n stitu d o n a lista de 1820 para que
o rei dom Jo ão VI tom asse a decisão de d eixar o B rasil e regressar a Lisboa, entregando
a regência do E stado a seu filho Pedro. M as as cortes portuguesas se recusaram a
reconhecer que o B rasil tivesse os d ireito s po líticos e econôm icos de um Estado sobe
rano, provocando assim , nos b rasileiro s, sentim ento s de revolta em tudo sem elhantes
aos que co n d u ziram as ou tras regiões da A m érica L atin a à indep endên cia. A m aioria
dos brasileiros enviados às cortes po rtuguesas preveniu essa assem bléia de que a união
entre os dois países ficaria am eaçad a se o antigo estatuto fosse restabelecido e Lisboa
insistisse em no m ear os governadores das províncias, in d icar os com andantes m ilita
res, exigir a volta do p rín cip e regente e se opor à criação de um parlam ento e de uma
universidade no B rasil.
Os grupos d o m in an tes da sociedade brasileira se dividiam em três tendências,
que freqüentem ente sc opunham com vio lência. Os ‘tradicio n alistas’ eram portu
gueses, ou brasileiros descendentes de portugueses, m uitos dos quais haviam feiro
na M etrópole o eurso universitário . N egociantes, funcionários, oficiais ou membros
da alta hierarquia eclesiástica, só depositavam confiança em instiruições já estabele
cidas. Os ‘realistas’ — fortes entre os proprietários de rerras e os altos funcionários
brasileiros — com p arrilh avam as idéias dos trad icio n alistas, na m edida em que
desejavam preservar a sociedade tradicio nal. Reconheciam , entretanto, a necessidade
de reformas. Por fim , os ‘exaltados’, m ais num erosos, queriam m udanças sócio-
231
2^2 B a h ia , S é c u i.o X IX
A C o n s tr u ç ã o d o E s ta d o ( 1 8 2 2 - 1 8 5 0 )
Dom Pedro I, regente do B rasil depois da p artida de seu pai em 1821 foi coroado
im perador um mês após a proclam ação da Independência, ocorrida em setembro do
ano seguinte. N um erosas cap itan ias (que, então, se tornaram províncias) ainda esta
vam em fase de pacificação. D iv id id a, a B ah ia lutava penosam ente contra os corpos
expedicionários portugueses, en q u an to o Pará proclam ava seu apego à M etrópole e
Pernam buco p ro p u n h a um sistem a de governo descentralizado e federativo. Em 1824
a pacificação estava feita, m as as tensões po líticas cresceram — especialm ente em
Bahia, São Paulo e M in as — depois do fecham ento da A ssem bléia C onstituinte e a
outorga, pelo m onarca, d a p rim eira C arta C o n stitu cio n al do novo país, discutida
pelos seis m inistros e as q uatro personalidades (todos brasileiros) que integravam o
Conselho de Estado.
N a prim eira A ssem bléia L egislativa (1 8 2 6 —1829), os deputados liberais eram mais
numerosos que os fiéis a dom Pedro I. Por outro lado, a situação econôm ica do país
não era brilhante. N as regiões tradicio n ais do açúcar, a Independência, com suas lutas,
revoltas populares e sedições m ilitares, foi responsável por baixas na produção e na
exportação. Já não havia m aís o recurso ao crédito dos com erciantes portugueses. A
fabricação dc falsa m oeda de cobre provocou um a inflação'que o Banco do Brasil não
pôde controlar, indo à falência em 1829. A situação de beligerância contra as Provín
cias Unidas do Rio da Prata absorvia recursos, aum entava a dívida pública e desvalo
rizava o real (m oeda nacional de então). Os deputados queriam participar de fato das
decisões do Estado. Não ficaram satisfeitos nem com a abolição do tráfico, nem com
alguns privilégios de ordem com ercial, que gostariam de ver concedidos a todas as
nações am igas, e não só à França e à Inglaterra, como ocorreu.
A partir de 1826, entre a M onarquia e as forças políticas do país instalou-se um
conflito, atiçado por um a im prensa espalhafatosa e^virylenta. Dom Pedro I teve que
abdicar em favor de seu filho menor. Não obstante esse quadro, a Constituição e a
234 B a h ia , Sfeuu» X IX
organização do novo Estado puderam scr votadas, perm anecendo cm vigor durante
todo o período m onárquico, sem grande m odificação.
A Regência, que durou dc 1831 a 1840, teve que enfrentar desorganização das
produções tradicionais (açúcar, tabaco, algodão, especiarias), sedições e lutas políticas
Enquanto os m ovim entos revolucionários im pediam o desenvolvim ento da agricultu
ra no cam po, lutava-se na C orte para d ecidir se o poder devia ser confiado a um grupo
dc homens (Regência T rín a, 1 8 3 1 -1 8 3 5 ) ou a um só (Feijó, 1 8 3 5 -1 8 3 7 , e Araújo
Lima, 1 8 3 7 -1 8 4 0 ). No cam po da p o lítica exterior, nesse período o Brasil se opôs à
Santa Sé (a respeito do Padroado, de que tratarem os depois), à França e à Inglaterra
(a respeito de suas fronteiras com uns nas G uianas) e ao U ruguai (a respeito das
fronteiras fixadas em 1771 pelo T ratado dc Santo Ildefonso). Esta últim a era questão
m elindrosa, pois o Rio G rande do Sul estava em plena sedição desde 1835-
A inda não havia verdadeiros partidos políticos, mas os deputados se agrupavam
cm torno dc três form ações: a dos ‘caram u ru s’, tendcn cia conservadora que conspirava
para restaurar o poder dc dom Pedro I; a dos ‘exaltados’, que queriam m aior autono
m ia para as províncias; e a dos m oderados ‘cham an go s’, nos quais se apoiava o gover
no, que tínha m uita d ificu ldade para m an ter a unidade do Estado. Entre 1831 e 1845,
foram j^ecenseadas trin ta revoltas arm adas no J5ras|L No N orte e Nordeste, as^duas
províncias m ais atin gid as por esses m ovim entos foram a B ahia e o Pará, que se loca
lizavam longe da sede do governo e eram centros exportadores de algodão, especiarias,
tabaco e, sobretudo, no caso da B ahia, açúcar.
Apesar das revoltas, do d éficit da balança com ercial (pois as exportações dos
produtos tradicionais ficaram no mesmo nível de antes da Independência, mas as
im portações progrediram a partir de 1 830), da falta de créditos e da inflação ascenden
te, a Regência conseguiu com pletar a obra legislativa do período anterior.5 Em 1840,
com quinze anos de idade, dom Pedro II foi coroado. Sua m aioridade antecipada tinha
sido exigida por grande parte das forças políticas do país. Jovem dem ais para governar
sozinho, ora buscou o apoio dos liberais, ora dos conservadores, mas conseguiu paci
ficar as províncias ainda revoltosas (Pernam buco em 1848, Rio G rande do Sul em
1849). A prom ulgação, cm 1847, da nova lei eleitoral e a criação do cargo de primeiro-
m inistro, responsável pelo governo dian te do Parlam ento, contribuíram para que se
estabelecesse certo equilíbrio entre liberais e conservadores, inicíando-se uma alternância
no exercício do poder, que contrastava com as eleições truncadas e os movimentos
scdicíosos do período anterior. Os rratados de com ércio foram renegociados e o gover
no, após 1844, instaurou uma política protecionista que favoreceu um relativo pro
gresso industrial c melhorou as finanças do Estado/1 O tráfico de escravos foi abolido
por Eusébio de Queirós C outinho M attoso da Câm ara em 1850. Liberaram-se, assim,
capitais até então consagrados a esse comércio, estim ulou-sc a emigração estrangeira e
os esforços do Estado foram rcorientados para a m elhoria dos transportes.7
Entre 1843 e 1 8 5 1 , a guerra c o n tin u o u nas fronteiras do R io G rande do Sul,
c o n stan tem en te p ilh a d as por incursões das tr o p a s d o u ru g u a io M a n u e l O ribe, O
Ln.no IV - O E s t a d o : O r g a n i z a ç à o e E x e r c í c i o d o s P o d e r e s 235
r a a [■: l A S 1
7
00
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R ev o lt as A rm adas n o B r a sil , 1831
1831 2 - 3 - - 5
1832 1 - - - - 1
1S33 - - 1 - - 1
1834 - ~ - - - 0
1835 - l - - I 2
1836 - 1 - - 1 2
!2 2 Z - 1 1 - l 3
im - 1 1 1 l 4
1939 - 1 - 1 1 3
1840 - 1 - 1 1 3
1841 - - - 1 l 2
1842 _ - - - 1 1
1843 - - - - 1 1
1844 - - - - l 1
Total 3 6 6 4 11 30
Colorado. Os brasileiros afirm avam ter perdido oítocentas m il cabeças de gado nessas
regiões entre 1843 e 1851, mas esse argu m en to d issim u lava pretensões expansionisras
do Brasil, que apoiava o chefe dos Blancos, Fortunado Rivera, em sua lu ta contra
O ríbe. No outro extrem o, o Brasil não conseguiu resolver com a França o litígio em
torno do território do A m apá. M esm o assim , o balanço do período é relativam ente
positivo: o país conservou sua dim ensão territorial e os poderes do Estado foram
reforçados por um sistem a parlam en tar estável. Só os resultados econômicos não
estiveram à altu ra das am bições do jovem Estado independente, apesar da crescente
im portância da cu ltu ra do café. ■ .
A C o n so l id a ç ã o (1 8 5 0 -1 8 7 0 ) .
O apogeu do Im pério brasileiro ocorreu entre 1851 c 1864, período em que os dois
partidos principais se entenderam no Parlam ento, alternando-se no poder sob a égide
do marques de Paraná. Novas leis eleitorais foram votadas em 1855 e 1860. M as, na
econom ia, nem tudo ia bem. As tarifas alfandegárias eram constantemente modificadas
2 » B a h ia . S é c u l o XIX
A D esagregação (1870-1889)
Em 1870, com o fim da G uerra do P arag u ai, co m eço u um novo período de crise
perm anen te. D iversas ten d ên cias p o líticas passaram a sc en fren tar por causa da Abo
lição da escravatura e de co n flito s en tre M o n a rq u ia , Igreja e E xército. A lguns — entre
os q u ais m u ito s m ilitares — ad eriram a id éias p o sitivistas ou rep u b lican as, outros
perm aneceram fiéis a u m a m o n arq u ia m ais ou m enos lib eral. N o d ia 15 de novembro
de 1889, a R ep ú b lica foi p ro clam ad a, após v in te anos de lu tas p o líticas c discursos
fratricidas. A pesar do ap arecim en to de um in c ip ie n te setor in d u stria l, o Brasil conti
nuava a ser um país a g ríc o la ,8 dotado dc d istrib u içã o d e renda m u ito desigual. Os
‘barões do café’ se torn aram con corren tes dos barões do a çú car’ e acabaram por
sup lantá-los; com erciantes, em pregado s e fu n cio n ário s dos grandes centros tinham
rendas confortáveis; os cam poneses eram m u ito pobres.
Pouco a pouco o centro de grav id ad e eco n ô m ica se deslocava do N ordeste para o
C en tro -S u l, m as era im ensa a d isp arid ad e entre as rendas regionais. C om o o setor
exportador cra o m ais d in âm ico d a eco n o m ia, é possível calcu lar a repartição regional
da renda a partir das exportações efetuadas: por volta de 1880, o café produzido nas
províncias de São Paulo, Rio de Jan eiro e M in as G erais cobria m aís de 55% do total
da.s exportações. Sc acrescentarm os o açúcar, o algodão, as peles, os couros e outros
produtos, as exportações do C en tro -S u l e do Su l passam a representar 6 5% , ou seja,
18% a 20% da renda global. A dm itin do-se que os 8 0 % restantes se repartissem dc
m aneira proporcional â população, pode-se calcu lar que as províncias situadas entre
M inas G erais c Rio G rande do Sul (com a m etade da população do país) respondiam
por 60% da renda in tern a.,J Em 1872, 6 3 ,7 % dos escravos estavam concentrados nas
províncias do S u l.f(>A falta dc inovações no setor agrícola tradicional (açúcar c produ
tos dc subsistência) c a in su ficiên cia dos transportes aum entaram ainda mais o
distanciam ento entre o Nordeste c o Sul, O cacau, que acabava dc surgir, não conse
guiu m odificar o desem penho econôm ico negativo da B ah ia.11
A Independência trouxera mais problem as que soluções. Seria o Brasil um a vítima
de estruturas arcaicas, herdadas do período colonial? É evidente o peso dessa herança,
LiMto IN' - O E s t a d o : O r g a n i z a d o e E x e r c íc io d o s P o d e r e s 237
mas as respostas tam bém devem ser buscadas no com portam ento dos homens, em sua
capacidade de assim ilar c ad ap tar novas idéias. Sob todos os pontos de vista, no que
range à form ação do novo Estado, o papel de Salvador e das clires baianas foi exem
plar. A B ahia teve um a p articip ação decisiva nos setores econôm ico, religioso e polí
tico. A dem ais, a an álise dos fracassos e dos êxitos baianos torna possível com preender
m elhor o co m p o rtam en to dc todas as elites brasileiras nesse novo universo vigente
entre IS 2 2 c 1889. A pesar de certos insucessos, o Im pério do Brasil soube se im por
valentem ente no contexto in tern acio n al. A ntes de estudar o com portam ento das elites
baianas, é bom traçar um esboço do quadro in stitu cio n al {nacional e local) no qual os
baianos trab alh aram ao lon go de todo o século XIX, con tribuindo com um a ação
constante, dos m ais h u m ild es aos m aiores entre cies, para a form ação do Estado.
Os P o d e re s C e n tr a is (1 8 2 2 - 1 8 8 9 )
A In sta la çã o de P o d e r e s N o v o s ■
Em bora in sp irad a por d o u trin as e experiên cias que vigoravam na Europa, a redação
d a C arta C o n stitu cio n a l b rasileira tam b ém levou em con ta a tradição ju ríd ica luso-
brasileira, caracterizad a por u m a gran d e flex ib ilid ad e, de m odo a p erm itir a adição
posterio r de em en d as p ara v árias leis fu n d am en tais. R esu lto u u m a C onstituição
unitária, com um Poder E xecutivo fortem ente centralizado, capacitado a m anter com
firm eza a união en tre as pro vín cias b rasileiras. O im p erad o r, assistido pelo Conse
lho de Estado e p ela A ssem b léia G eral, passou a co n tro lar um governo que recebeu
am plas atrib uiçõ es.
O Poder L egislativo era exercido pela A ssem bléia G eral, q u e com preendia dois
corpos, o Sen ad o (cujos m em bros eram eleitos por sufrágio censitário e nom eados de
m aneira v ita líc ia pelo im p erad o r, que os esco lhia em lisras tríp lices) e a C âm ara dos
D eputados (cujos m em bros eram eleitos por períodos d e q u atro anos e que podia ser
dissolvida pelo im p erad o r). O Poder Ju d ic iá rio só foi d efin id o em linhas gerais. M as
a C o n stitu ição de 1824 in tro d u z iu u m a gran de novidade: o Poder M oderador, exclu
sivam ente reservado ao chefe de E stado, isto é, o im p erad o r, “a chave de toda a
organização p o lítica", destin ado a zelar “pela m an u ten ção da Independência, eq uilí
brio c harm o nia dos dem ais poderes”.
Através do Poder M o derador, cab ia ao im p erado r nom ear os senadores, convocar
a A ssem bléia G eral, sancionar os decretos e resoluções desta, aprovar ou suspender as
resoluções dos conselhos provinciais (que, a partir do Ato A dicional de 1834, se tornaram
assem bléias legislativas), prolongar o m andato ou ad iar a A ssem bléia G era!, dissolver a
C âm ara dos D eputados, nornear e d em itir livrem ente os m inistros, suspender magis
trados, perdoar c m oderar penas c conceder anistia. O Poder Executivo também
deveria scr exercido pelo im perador, por interm édio dos m inistros de Estado, mas na
verdade ele nunca exerceu ambos o,s poderes cm sua plenitude. Mesmo durante o período
maís crítico da crisc dc 1830/1831, nunca dissolveu a C âm ara, nem adiou suas reuniões.
Q uando, c m 7 de abril de 1831, dom Pedro I abdicou, deixando o Im p é rio para
d o m Pedro d e A lcântara, então com cinco anos dc idade, t o r n o u - s e e v id e n te que o
Poder M oderador, exercido por r e g e n te s , não tinha condições d e ser tão forte q u a n t o
o exercido pelo próprio im perador, A Lei de 1.831, s o b r e o e x e r c íc io da R e g ê n c ia ,
L f tu o I \ - O E s ta d o : O r c lx n iz a ç x o e E x e r c íc io d o s P o d e re s 239
que, apesar das aparências, era organizado para reforçar os potentados locais em detri
mento da adm inistração central.~~
Houve reação. A Lei Interpretativa (de 12 de m aio de 1840) e a reforma do código
crim inal (de 3 de dezem bro de 1841) retiraram a m aior parte das funções dos juízes
de paz, inclusive as de caráter policial (pois a eles cabia a nomeação dos chefes de
Polícia c de seus s u b o rd in a d o s ),re d u z in d o -o s a um papel quase que de tabeliães. O
Estado passou a nom ear os juízes m unicipais e os juízes de carreira, que passaram a
tutelar tribunais do júri, de m odo que todas as instância ju diciárias ficaram subordi
nadas à m agistratura de toga. .
Nao se deve esquecer, aliás, que os m em bros da m agistratura desem penharam um
papel político em inen te. A te 1855, eles po diam , inclusive, exercer m andatos eletivos,
tornando-se deputados, senadores, conselheiros de Estado e m inistros. M esm o após a
proibição da acum ulação de cargos, o papel dos m agistrados continuou a ser muito
im portante. Eles faziam e desfaziam carreiras po líticas, por influência ou por ação
política direta. . ■
Os P oderes d o E x é rc ito
m esm a coisa: segundo ele, o E xército e a M a rin h a de G uerra eram “bocas que devoram
ileg a lm e n te, todos os anos, os recursos d a n ação ”. U m ano depois, ele acrescentava que
“o Im p ério do B rasil não é o Im pério francês ( sk ), em q ue um com andante m ilitar
representa tu d o n u m a v ila ”. Para q ue serve, p ergun tav a ele, um m ilitar chamado de
co m an d an te? E ele lev an tav a a q uestão de saber se não acab ariam todos sob o “domí
n io d e ferro ” dos m ilitares se não fosse posto um fim ao “sistem a m ilita r”.25
TABELA 53
E v o l u ç ã o do E fetivo L egal do E x é r c it o
1830 3 0 .0 0 0 1 0 0 ,0 1871 1 9 .0 0 0 6 3 ,3
1841 2 0 .9 2 5 6 9 ,7 1889 13 .0 0 0 4 3 ,3
1865 3 5 .6 8 9 118,9
C ) 1 8 3 0 = 1 0 0 ,0 .
Fome: Relatórios do Ministério da Guerra, citados por E. Campos Coelho, Em bu sca d a id en tid a d e: o tx íreito e a p o lícia na
so cied a d e b rasileira, p. 40.
gínquas. Os oficiais eram freqüentem ente transferidos e os com andantes eram con
trolados pelos presidentes das províncias — pelo m enos até 1884, quando explodiu
a questão m ilita r’, que teve um peso decisivo na queda da M o n arqu ia. A Procla
mação da R ep ú b lica pode ser con siderada com o o artifício usado pelo Exército para
não perecer.2
A parrir da G uerra do P araguai, m udou a m en talid ad e dos m ilitares, que conside
raram m al reconhecidos e m al recom pensados os serviços por eles prestados. Por outro
lado, a guerra m ostrou aos jovens o ficiais as graves im perfeições do Exercito. Na
época, o Estado consagrou 5 0 % de seu orçam ento ao con flito , mas esse m ontante foi
drasticam ente redu zido , ch egan d o a 8% em 1 8 7 8 -1 8 7 9 , o m ais baixo nível de toda a
história do Im pério. U m real m al-estar se in stalo u nas fileiras e foi expresso em vários
artigos publicados na R evista d o Exército B rasileiro (1 8 2 2 ), um a revista profissional,
que p reten d ia ser a p o lític a , m as q ue m ostrava bem a m u d an ça de m entalidades, já que
em alguns artigos tra n sp arecia o desco n ten tam en to dos jovens oficiais. A m orte do
D uque dc C ax ias, em 1880, foi o cho qu e q ue restitu iu a lib erd ad e aos oficiais. A forte
personalidade de C ax ias co n stitu íra um ob stáculo à liq u id ação do Exército, cuja coe
são fora m an tid a por seu carism a. Ele era p ai e p rotetor, mas to talm en te dedicado à
Coroa. Sua m o rte lib ero u o corpo de o ficiais de u m a tu tela rigorosa, p erm itin d o o
aparecim ento dc novos chefes e o fim dos co n fo rm ism o s.23
D urante o Im p ério , o E xército era m u ito h etero gên eo . Aos oficiais recrutados em
suas próprias fileiras — os m ais num ero so s — se o p un h am os que saíam das academ ias
m ilitares. A m ais célebre delas era a da P raia V erm elh a, no R io de Jan eiro , onde
pontificava o jo v em B en jam in C o n stan t, adep to das idéias de A uguste C om te. Os
prim eiros preferiam te n ta r restabelecer a h o nra de sua corporação, ao passo que os
'cien tífico s’, form ados nas escolas, reiv in d icav am para os m ilitares o d ireito à livre
expressão e à c rític a ao governo. Essas duas ten dên cias acabaram por se unir, transfor
m ando a ‘questão m ilita r’ n u m dos grandes problem as do país entre 1883 e 1885-
N ada há de su rp reen d en te, p o rtan to , na con statação de que as reivindicações do
Exercito, im b u íd as dc idéias po sitivistas de o rd em ep r o g r es so e apoiadas pelos repu bli
canos civis, tenham desem penh ado um papel prep on deran te na instauração do regim e
republicano em 1 8 8 9 .29
cia um nos o m odelo de relação entre o poder (ain da p atrim o n ial) e a sociedade civil,
tornando-se a artífice da co n so lidação do novo E stado, pois reproduzia fielm ente
todas as esrruturas da so ciedade b rasileira. A exclusão dos escravos conservava e acen
tuava a clivagem essencial da sociedad e. A escolha de oficiais de todas as patentes entre
as cam adas sociais livres c abastadas in d icav a u m a segu n d a clivagem . T o d a a po pula
ção livre se associava, n u m a espécie de serviço litú rg ico prestado ao Estado. O ofício
exercido por um in d iv íd u o era um crirério m ais im p o rtan te para sua adm issão no
corpo de oficiais do q u e o m o n tan te de suas rendas. Em p rin cíp io , os artesãos e os
pequenos com erciantes não p o diam se to rn ar o ficiais (as raras exceções a essa regra
estavam expostas à perda de p a te n te ), o q ue tam b ém c o n trib u ía para consolidar as
hierarquias sociais ex isten tes.32 ■ .
A té 1873, o governo reco rreu à G u ard a N acio n al para todos os serviços policiais
do território — preservação d a o rd em , cap tu ra e g u ard a dos crim ino so s, repressão a
revoltas arm ad as, esco lta de fundos p ú b lico s e de gêneros a lim en tício s, caça aos escra
vos fugitivos e d estru ição de seus esco n d erijo s, repressão ao tráfico etc. — e para
serviços hono rífico s, com o a p a rticip ação nas procissões, paradas e revistas, tão fre
qüentes em S alv ad o r. N as so len id ad es m ilitare s, a G u ard a tin h a precedência sobre o
Exército. N esse ano foi p ro m u lg ad a a lei q ue retiro u as funções p o liciais da G uarda,
baixou o lim ite de id ad e p ara q u a re n ta anos e su p rim iu as patentes honoríficas de
oficial. A p artir d a í, e so b retu d o d ep o is de 1 8 8 0 , ela grad ativ am en te se tornou um a
espécie de corporação fo rm ad a exclu siv am en te p o r seus oficiais. D eixou de interessar
ao poder, cujas estru tu ras a d m in istra tiv a s já estavam estabelecidas. N a B ah ia, a criação
de um a v erd ad eira P o lícia , sep arad a d a G u ard a N acio n al, serve com o exem plo dos
problem as en co n trad o s pelo jo vem E stado in d ep en d en te para o rgan izar a defesa das
instituições e a proteção d a paz civil.
O p rim eiro corpo de P o líc ia d a cid ad e de Salvad o r foi criad o por decreto im pe
rial em 17 de fevereiro de 1 8 2 5 , com posto por um estado-m aior e duas com panhias,
cada um a com ] 16 ho m ens, en tre o ficiais e soldados, recrutados entre os integrantes
das tropas regularcs. Eles tin h am a m issão de zelar pela preservação da ordem e a
aplicação das p o rtarias do C o n selh o M u n ic ip a l. Esse prim eiro corpo dc Polícia pres
tou serviços apreciáveis na B ahia, então tu m u ltu ad a pelas revoltas de escravos, dos
levantam entos civis e dos m otins an tip o rtugueses, que duraram até 1831- Mas sua
participação nos tu m ulto s que seguiram a abdicaçao de dom Pedro I levou o piesi-
dente da Província a dissolvc-lo, sub stitu in d o -o pela G uarda M u n icip al, criada em 5
de junho dc 1831. T ratava-sc dc um corpo de m ilicianos rem unerados, recrutados
entre as pessoas fiéis ao governo da R egência, diretam en te subordinados aos juízes de
paz e destinados p rin cip alm en te a aju d ar a Ju stiça c preservar a ordem pública.
Essas guardas m u n icip ais não foram um privilegio concedido a Salvador, sendo
criadas cm todos os distrito s da Província, M as, com o advento da G uarda N acional,
apenas a cap ital m anteve um corpo m unicipal perm anente, criado em fevereiro de
1832 c form ado por um estado-m aior, um a com panhia de cavalaria e duas de infanta
246 B a h ia , S éculo XIX
ria. A com panhia suplem entar de perm anentes de infan taria, encarregada a partir de
1833 da segurança de roda a Província, nem sem pre interveio de forma im parcial nas
disputas de poder travadas entre clãs fam iliares, com o ficou patente no caso da disputa
que opôs dots poderosos clãs fam iliais, os Passos e os S in tra, na vila de Nosso Senhor
do Bonfim , entre 1831 c 1 83 2.33
O Aro A dicional de 1834, que su b stitu iu os conselhos m unicipais por um a Assem
bléia Legislativa, delegou a esta ú ltim a o poder de o rgan izar a P olícia da Província. Em
jan eiro de 1835, o co m an dan te do E xército na B ah ia criou um corpo de Polícia
provisório para sub stitu ir o 3 o B atalhão, q ue cu m p rira até então essa função, mas que
fora dissolvido depois de um m o tim . Esse novo corpo era form ado por destacamentos
dos batalhões da guarnição da cid ad e. Para evitar novos m otins, cada destacamento
assum ia, altern adam ente, suas funções p o liciais d u ran te um m ês, ficando sob o co
m ando de um m ajor. A in d a em 1 8 3 5 , u m a gu ard a foi acrescentada ao corpo m unici
pal dos perm anentes, sob o com ando de um chefe de P o lícia d iretam en te subordinado
ao presidente d a Província. A no vidade: cada d istrito teria doravante um corpo de
guarda, com andado por um delegado responsável perante o chefe da Polícia.
O recrutam ento dos guardas revelou-se tão d ifícil quanto o dos soldados: não
havia vocações e os salários eram m u ito baixos. E ntre 1838 e 1849, os efetivos da
corporação variaram de q u in h en to s a seiscentos hom ens, apesar da fusão com os
guardas m u n icip ais.34 Era pouco, para um territó rio de m ais de 5 0 0 .0 0 0 km 2! Na
capital, para tentar su p rir a essa in su ficiên cia (que perm aneceria crônica ao longo de
todo o século XIX) criou-se u m a ‘gu ard a de pedestres’, in icialm en te com duzentos
hom ens, efetivo que foi dobrado em 1851-
A epidem ia de cólera de 1 8 5 5 -1 8 5 6 desorganizou a v id a da cidade e suscitou
providências tam bém na área de segurança. Em 1859, os efetivos do corpo da Polícia
chegavam a 859 hom ens, sem in clu ir a guarda urbana, que nesse ano contava com 155
homens. Em 1870, os efetivos atin giram 9 0 0 hom ens; em 1872, um a nova companhia
de guardas urbanos de 117 hom ens foi criada. M as os salários continuam a ser ridicu
lam ente baixos, apesar da m obilidade exigida para esse corpo, que devia vigiar toda a
Província. U m a guarda urbana, de cem hom ens, foí criada para ajudar o corpo de
Polícia. D urante a G uerra do P araguai, cerca de m etade dos efetivos policiais (477
homens) partiu voluntariam ente para a frente de com bate, de onde só 77 voltariam.
Os dem ais foram colocados sob o com ando de um capitão da G uarda Nacional,
corporação a que o governo provincial freqüentem ente recorria para preservar n ordem
nas partes mais longínquas do território. Em 1873, com a perda das funções policiais
- pela G uarda N acional, a situação ficou caótica. No ínrerior, os chefes locais (quase
sempre proprietários de terras) c sua clientela continuaram a ditar leis por conta
própria. Consolidou-se a influencia dos todo-poderosos ‘coronéis’, que durante muito
tempo marcaram a política regional.33
Se a Guarda N acional criou um a espécie de m ilitarizaçao da sociedade brasileira,
foi em prol do Estado e dos chefes locais. O controle exercido pelos presidentes de
L a n o IV Q E s t a d o : O r g a n i z a ç ã o e E x e r c íc io d o s P o d e r e s
Os P o d e r e s L o c a is
A té a I n d e p e n d ê n c ia , os g o v e rn o s lo c a is e ra m fo r m a d o s p o r u m a ú n ic a in s titu iç ã o , as
c â m a ra s m u n ic ip a is . A le i d e 2 3 d e o u tu b r o d e 1 8 2 3 , q u e tra n s fo rm o u as an tigas
c a p ita n ia s e m p r o v ín c ia s , c r io u a fu n ç ã o d e p r e s id e n te d e p r o v ín c ia , co n serv an d o o
m u n ic íp io c o m o b ase d a a d m in is tr a ç ã o . D e m o d o g e ra l, a fu n ç ã o de p re sid e n te de
p ro v ín c ia p o d ia se r a s s im ila d a à d e g o v e r n a d o r d e C a p it a n ia n a é p o c a c o lo n ia l, pois
em am b o s os caso s as n o m e a ç õ e s e m a n a v a m d e u m p o d e r c e n tr a l. M a s h a v ia u m a
im p o rta n te d ife re n ç a : o g o v e r n a d o r c o n c e n tr a v a to d o s os p o d e re s, ao passo q ue o
p re sid e n te d e p r o v ín c ia a d m in is tr a v a a p o ia d o n a s d e c isõ e s d e u m a A ss e m b lé ia P ro vin
c ial e n ão tin h a sob se u c o m a n d o os p o d e re s ju d ic iá r io e m ilita r .
A o lo n g o d o s 6 7 a n o s d e g o v e rn o im p e r ia l, as in s tâ n c ia s m u n ic ip a is e p ro v in ciais
tiv eram d e stin o s d iv e rso s, A e v o lu ç ã o p o lític a e a d m in is tr a tiv a r e fle tiu a d e te rm in a ç ão
com q u e o E stad o d e s e ja v a c o n tr o la r to d a s as a tiv id a d e s d a v id a p ú b lic a b rasileira.
M a n ip u lo u -s e a in s titu iç ã o d o g o v e rn o p r o v in c ia l p a ra r e s tr in g ir o p o d e r m u n ic ip a l —
tarefa á rd u a , c o n te sta d a co m m a is o u m e n o s su cesso , o q u e p ro v o c o u u m e n c a m in h a
m e n to p o r e tap as, c u jo s re s u lta d o s n e m se m p re c o rre s p o n d e ra m ao q u e as partes
en v o lv id as d e s e ja ra m .
*
A In s t it u iç ã o do G overno P r o v in c ia l
24 8
•3
:JÍ
L iv r o ] \ O E s ia d o : O rga n iza çã o e. E x e r c íc io d o s P o d eres
O P o d e r M u n ic ip a l
dos juizes dc paz eleitos, mas isso, como vimos, não durou muito. Os próprios liberais,
arquitetos do Ato A dicional, não tardaram a perceber seus deleitos. Tavares Bastos
demonstrou que o Aro não precisou o que cra o ‘poder m unicipal’. Outro liberal, o
Visconde de U ruguai, demonstrou como o poder local ficara reduzido ao papel de
simples adm inistrador.s Q uanto aos conservadores, suas críticas não foram menos
enérgicas, como era dc se esperar.9
Finalmene, a Lei Interpretativa dc 12 de maio dc 1840 retirou o que restava de
poder às m unicipalidades, pois os juízes de paz (magistrados eleitos que tinham tanto
íunções judiciárias como policiais) foram substituídos por magistrados de carreira que,
nomeados pelo governo central, acum ularam as funções de delegados de Polícia, pas
sando a chefiar os subdelegados. Assim, conferindo m aior autonom ia aparente ao
poder local, o Estado reforçou a centralização.
Durante todo o período im perial, as m unicipalidades tentaram recuperar sua
independência, mas nenhum projeto teve êxito, apesar dos esforços de deputados
como o M arquês de O lin da e o V isconde de U ruguai. O Império brasileiro tornou-se
um Estado autoritário e centralizador, com um a população legalm ente dividida em
homens livres, alforriados e escravos. As instituições refletiam a hierarquia das classes
sociais, fortem ente enraizada no sentim ento de toda gente. Os privilégios dos que
possuíam bens ficavam m uito claros na escolha dos guardas nacionais, dos m agistra
dos, dos conselheiros m unicipais e dos conselheiros provinciais.
Mas falta entender os m ecanism os que perm itiam a esses homens açambarcar o
poder e os lim ites que havia para o exercício desse poder, tantas vezes qualificado de
absoluto, Todos os analistas da vida política brasileira do século XIX estão de acordo
sobre o papel desem penhado pelas províncias do Nordeste na formação do Estado
Nacional. Q ual foi o papel da B ahia, especialm ente de suas elites? Sugiro uma realida
de mais ‘quente’ e bastante diferente desta, por demais fria e formal, que acabo de
expor. Na verdade, a m inuciosa descrição que fizemos era necessária para que possa
mos captar agora se esse grilhão adm inistrativo podia adaptar-se ou não — e como
poderia fazê-lo — à ação das forças que se enfrentavam. Poderes, interesses e forças
locaís e nacionais não eram o reflexo exato da organização adm inistrativa, mas sabiam
tirar proveito dessa organização. É preciso que se veja como isso sc passava, sem
esquecer, aliás, que os interesses freqüentemente convergiam, quando se tratava de
controlar, enquadrar e vigiar. Nem todos os brasileiros — mesmo entre os que tinham
certos direitos de voto — participavam , verdadeiram ente, da vida política.
C A P Í T U L O 16
A E lite B a ia n a e a F o r m a ç ã o
d o E st a d o N a c io n a l
E lite é a p rim e ira p a la v ra a ser d e fin id a n este c a p ítu lo . S e g u n d o o d icio n ário , ela é o
q u e há d e m elh o r em u m g ru p o . L o go , as pessoas q u e o c u p a m os p rim eiro s lugares em
u m a so cied ad e fazem p a rte d a e lite . M a s , a b em d a v erd ad e, tais critério s são abstratos:
só se p o d e ser ‘o m e lh o r’ em u m g ru p o d o ta d o de c e rta h o m o g en eid a d e.
O ra, n ad a m en o s h o m o g ên eo d o q u e a so c ie d ad e b a ia n a , fo rm ad a por homens
livres e escravos, rico s e p o b res, lib e rto s e filh o s d e lib e rto s. C a d a g ru p o teria os seus
m elh o res, a su a elite? O escravo q u e se to rn a v a o p o rta-v o z d e seus com panheiros
ju n to ao sen h o r era rec o n h e c id o p o r to d o s — escravos e sen h o res — com o mem bro
de u m a elite. Se fosse n ecessário , o a lu fá , ch efe re lig io so m u ç u lm a n o , era escolhido
com o in te rlo c u to r p elas a u to rid a d e s civ is e ju d ic iá r ia s .1 L o go , existiam elites fora do
âm b ito dos p riv ileg iad o s p ela fo rtu n a e o p o d er. O s h o m en s livres tin h am suas hierar
q u ias, os cativos tam b é m .
E lites d esco n h ecid as saem do a n o n im a to e m situ açõ es de crise, revelando brusca
m ente poderes até en tão secreto s o u , p elo m en o s, m al co n h ecid o s e m al apreciados. O
poder p o lítico fo rm al é p erceb id o com m ais fa c ilid a d e , fazendo com que aqueles que
o exercem em q u a lq u e r n ív el p areçam in te g ra r a e lite . C o n sid erad a , porém , com o um
todo, com o esta elite vive e se m o v im en ta d en tro d a m assa? T en tarem o s com preender
com o um in d iv íd u o — ou grup o de in d iv íd u o s — co n segue p en etrar na elite reconhe
cid a, aceita por todos os in terlo cu to res,
N u m a p rim eira etap a, o ‘ m elh o r’ é d esig n ad o por um consenso social, segundo
critérios de co m p o rtam en to , berço, edu cação e riqueza. M as é indispensável que esse
reconhecim ento se torne p ú b lico , alcan çan d o as instituiçõ es e o poder oficial. Na
B ah ia, um com erciante, por m ais rico, por m ais respeitado e por m ais instruído que
fosse, tin h a sem pre um poder lim itad o e um prestígio pu ram en te local-
D urante todo o período im p erial, os com erciantes baianos ocuparam posições
secundárias na cena p o lítica, ofuscados pelos proprietários de terras, sem pre em evi-
252
L iv r o f\ - O L s , w : O r& w z a ç Ao e E x e r c i o o w í P o p f k e s
Í5 3
dcncia c derentores dos prim e,ro, papéis no plano nacional. Nem todo mundo era ...
senhor dc engenho ou idhu dc senhor dc engenho, mas só eles tinham prestigio
mesmo que houvesse homens mais ricos, Embora muito reccmc — a família Costa
Pinto, por exemplo, cuja genealogia já analisei, passou a ocupar lugares proeminentes
em apenas duas gerações — a propriedade da terra era a certidão necessária e suficiente
para ingressar no grupo dos privilegiados oficiais, reconhecidos como integrantes da
elite do país.
O nascimento e a propriedade da terra eram passaportes i n d i s p e n s á v e i s para in
gressar no restrito circulo da elite de Salvador. Mas não eram os únicos. Existiam
funções U m agistratura e algum as elevadas funções do Estado, por exemplo) ou con
dições ídipiom a de direito ou de m edicina, por exemplo) que abriam vias de acesso a
essa posição social.
A distinção entre elite graças à riqueza e ao berço e elite graças ao cargo não
deve nos iludir. Todos esses homens pertenciam ao mesmo meio social, que era o
núcleo onde se formavam as elites baianas e se confirmavam os atributos do peque
no círculo de proprietários de terras. Apenas indivíduos excepcionais, vindos de ou
tros meios sociais ou de outras com unidades, conseguiam penetrar nesse pequeno
mundo fechado.
A elite baiana a que estou me referindo agora não é a dos verdadeiros líderes —
raros, mas mais numerosos do que se pensa — que surgiram em meio a crises sociais
ou políticas e cuja força só foi reconhecida por autoridades (privadas ou públicas) que
buscavam interlocutores capazes de aplainar dificuldades.momentâneas. A elite baiana
que queremos definir c aquela que desempenhou um papel oficial na formação do
Estado nacional e que era, na verdade, a eiite de uma elite. Algumas centenas de
afortunados homens que — por laços familiares, alianças, riqueza, estudos e tempera
mento — souberam e quiseram servir a seu país, ajudando o imperador a organizar e
fortalecer a.s estruturas dc um Estado ainda jovem c mal estabelecido 110 contexto
internacional.
O Estado brasileiro nao nasceu ex nihiío. Foi mais transformado que criado. À
gestão patrim onial portuguesa, o Estado monárquico brasileiro tomou emprestada a
colaboração do poder privado, nascido das próprias circunstâncias do processo coloni
zador. Foi o que garantiu seu sucesso. Este poder — que ora foi sentido no Brasil
corno usurpador, ora como detentor dc uma delegação do Estado centralizador
conseguiu sobreviver graças ao ritmo muito lento da evolução das estruturas sociais c
econômicas c das mentalidades. O 'novo Estado brasileiro’, que se construiu sem
confrontos graves mas im plantou um sistema de governo centtalizador c auroritátto,
manteve a união nacional contra ventos e marés. Mas, na segunda metade do século,
embalado por seus primeiros sucessos, ele nao soube ampliar suas bases políticas: em
18H9, no fim do período imperial, só 10% da população tinham direito a voto, e a
escravidão tinha sido rccém-aboliila. O monarca compartilhava cada vez menos o seu
Fodcr Moderador.
A principal preocupação do poder central no século XIX foi transform ar as insti
tuições locais, regionais e até nacionais em cargos dc alta fiscalização. A organização
ju d iciária, policial e política dos m unicípios e das províncias foi, aliás, um excelente
instrum ento para um poder central exigente, controlador, às vezes esm iuçador. A
colaboração das elites locais era, sem d ú vid a, desejada, mas pouco a pouco se criou um
corpo paralelo de funcionários e de m agistrados, dedicados ao governo im perial c não
subordinados aos representantes da ordem privada. V erem os, por exem plo, como
agiam os altos m agistrados, que colocavam o interesse nacional antes do de suas
províncias ou m unicípios de origem . N a ap arên cia, eram potentados locais; na reali
dade, eram eficazes agentes da integração n acio n al.2 As forças centrípetas venceram as
centrífugas. Após 1850, o núm ero de ações contestadoras deixou de ser significativo,
firm ando-se o controle do Estado.
O debate entre centralização e descen tralização é um falso debate. Talvez fosse
m elhor levar cm conta as diferenças entre, de um lado, um sistem a político suposta
mente representativo e inspirad o nos m odelos europeus e, de outro, o autoritarism o
patrim onial e hierárquico do Poder E xecutivo central. F in alm en te, o universo político
só comportava poucos eleitores e m uito poucos políticos. Isso não significa que ínexistisse
certo tipo de representação p o lítica.5 A té a década de 1870, o sistem a era, ao mesmo
tempo, oligárquico e representativo de algum as cam adas sociais.
Só após 1870 — e, m esm o assim , em grandes cidades como Salvador — é que
um a nova classe social, um a ‘classe m éd ia’ ed u cad a, com eçou a afirm ar sua capacidade
de governar. O governo im perial m ostrou-se incapaz de aceitar e integrar essas forças
políticas locais e regionais, cada vez m aís ativas. T eve in ício um processo de desinte
gração, particularm ente nítido nesse m agnífico posto de observação que é a Bahia.
Para com preender o peso desse m ovim ento, basta estudar, em rodo o decorrer do
século, essas elites regionais e seu papel nacional.
A E l it e P o l í t i c a B a ia n a
Não disponho de nenhum a análise geral das elites políticas da Bahia no século XIX.
Só tenho in fo rm açõ es sobre alguns vultos que fizeram carreiras excepcionais.4 A lém
disso, este estudo sobre a sociedade baiana me leva a colocar algum as questões de
an tem ão .
O m tandn com membros eleitos, o novo Poder Legislativo — definido pela Consti-
tuiçãode 1824, completada pela Lei O rgânica dos M unicípios ( 1828), o Ato Adicional
de 1834 c diversas leis eleitorais — ,sc manifestava em todos os níveis da administração
pública, municipal, provincial c nacional. O Poder Judiciário oferecia alguns cargos
aos cidadãos ativos: juízes dc paz eleitos (mais tarde, nomeados), delegados e subde-
legados de polícia nomeados. A Guarda N acional, m ilícia de cidadãos-soldados, era
comandada, em diversos níveis, por oficiais oriundos da sociedade civil. Os titulares de
Liv r a IV O F p,x^RCÍC10 DOS Poüi RE4 2 tt
todos esses cargos rtnham a oportunidade dc exercer legalmente uma parcela dc poder,
inserida no esforço dc construção de um Kstadn nacional, independente e unitário. Os
homens investidos dessas responsabilidades pertenciam, em sua grande maioria, à elite
da sociedade baiana, Eram os notáveis, relativam ente numerosos sc levarmos em conta
a quantidade dc funcionários das m unicipalidades c dc membros das Assembléias
Provinciais. Ê im pressionante constatar o grande número dc deputados que, nascidos
cm famílias de Salvador ou de sua hintcrlândia, sc tornaram representantes dos distritos
mais longínquos do Sertão, sobretudo nos vinte primeiros anos da vida parlamentar.
Achei interessante tentar acom panhar, na medida do possível, a evolução desse papei
preponderante de Salvador ou do Recôncavo na vida política dc toda a Província. Nessa
perspectiva, surgiu um a série de pergunras: cm que ‘camadas superiores’ da hierarquia
social se elegiam os membros das câm aras m unicipais, e das assembléias Provincial e
Nacional? Q ual era o grau de instrução e a profissão desses eleitos? A quem representam
e por que o faziam? Em que m om ento Salvador e sua hintcrlândia deixaram de desempe
nhar um papel preponderante e as elites locais assum iram , nos parlamentos, a repre
sentação de seus distritos? Eram diferentes as carreiras dos homens políticos nascidos
na capital ou no Recôncavo e as daqueles que nasciam nos m unicípios do interior?
Como um político baiano adq u iria envergadura nacional, habilitando-se a se tornar
ministro, senador, conselheiro dc Estado ou presidente do Conselho? A carreira políti
ca ajudava a ocupação posterior de cargos adm inistrativos ou judiciários? E, inversa
mente, um a carreira com eçada na adm inistração ou na m agistratura podia desdobrar-
se na política? Q ue m ecanism os faziam a articulação entre o poder local exercido pela
organização m unicipal e o poder provincial? Até que ponto o prim eiro permanecia
subordinado ao segundo? Existiam eios de ligação entre o poder m unicipal e o poder
central, ou essa ligação passava necessariam ente pelo poder provincial? Depois de
conquistar poderes im portantes, os políticos baianos lutavam pelos interesses da Pro
víncia que os elegera ou se identificavam com o interesse nacional, mesmo quando os
dois se opunham ? A ‘carreira’ obrigava os políticos a subir todos os degraus m unici
pal, província! e nacional — da representação ou era possível queim ar etapas?
Se pudermos responder a essas dez perguntas, ou pelo menos propor hipóteses de
trabalho sobre elas, teremos uma boa visão geral sobre a atuação da elite baiana c sua
participação na formação do Estado nacional. Com eçarei pela últim a, que coloca o
problema das etapas de um a carreira política, pois ela perm ite que sc conheça uma
instituição eletiva de base, a m unicipalidade de Salvador.
Como vimos, a Câm ara do Senado cra uma instituição antiga, cuja estrutura foi
simplificada depois da Independência c da promulgação da lei orgânica de 1828 {que
mudou a denom inação do órgão para Câm ara M unicipal). Segundo o Almanaque t e
1862, assim sc distrib uíam os m em bros c funcionários da in stituição : nove vereadores,
nove suplentes, secretário, advogado, oficial m aior, secundo oficial, dois amanuenses,
contador, procurador, agem e, tesoureiro, porteiro, aju d an te de porteiro, engenheiro,
adm inistrador dc obras, escrivão das vistorias e alin h am en to s, adm inistrador dos cur
rais, escrivão dos ditos, porteiro do cu rral, ad m in istrad o r da cam p in h a, rccebedor da
balança grande, m édico, escrivão do jú ri, fiscal gerai e doze fiscais parciais.
Entre 1800 e 1829, os vereadores eram sub stitu íd o s an u aím en re, mas podiam ser
reeleitos. Por exem plo, E clísbcrto C a ld e ira B randt Pontes, coronel do Exército, foi
vereador em 1806, 1812 c 1813; M an u el Inácio da C u n h a M enezes, fururo Visconde
do Rio V erm elho e presidente in terin o da P ro víncia cm três ocasiões, foi vereador cm
1812, 1813 c 1823. Era freq ü en te q u e fam ílias im p o rtan tes — com o os Pires de
Carvalho e A lb u qu erqu e, os G alvão e os B randão — estivessem representadas no
Conselho M u n icip al por um de seus m em bros. A liás, entre 1800 e 1823 a eleição
estabelecia apenas u m a lista prévia de nom es, sub m etid o s à escolha do governador da
C apitania. '
A partir de 1829 c até 1 8 4 0 , os vereadores foram eleitos por dois anos, entre 1841
e 1848 por três anos e, en fim , entre 1848 e 1 8 8 9 , por q u atro anos. O núm ero de
vereadores aum en to u regu larm en te — eram nove em 1829 e q u in ze em 1886 — para
acom panhar o crescim ento dem ográfico de Salvador. .
Q ual a origem social e q u ais as profissões dos vereadores? A pesar de meus esforços,
n lo consegui obter docum entação sobre as fam ílias dessas pessoas, além de listas
incom pletas. Em com pensação, consegui inform ação farta sobre suas profissões e car
reiras políticas. Dos 44 vereadores eleitos entre 1 84 0 e 1872, id en tifiq u ei profissional
m ente 3 4: havia dez m édicos, oito advogados, sete fu n cio n ário s, q uatro proprietários,
três com erciantes, um padre e um o ficial. E ntre os dez não identificados, dois eram
vagam ente qualificados de ‘doutores’. Se in clu irm o s estes últim o s, vinte conselheiros
(quase a m etade) tinh am profissões liberais. T am b ém era sign ificativa a presença de
funcionários, mas não havía tantos representantes das atividades econôm icas da cidade.
Nao se deve, porém , atrib u ir a esses núm eros um a significação que eles não têm.
Em geral, essas pessoas exerciam várias atividades sim ultâneas, superpondo funções.
Assim, um advogado ou m édico podia ser ao mesmo tem po alto funcionário; um
proprietário dc terras, engenheiro ou até com erciante. José A ugusto Pereira de Mattos,
por exemplo, era advogado e tesoureiro d a alfândega da B ahia. Aliás, todos os verea
dores pertenciam a fam ílias em que se recrutavam funcionários im portantes, como os
Alm eida Galvão, os Alm eida C outo, os M onteiro, os M enezes c outras.
É interessante frisar que sõ um desses vereadores cra dc origem nobre: José Félix
da Cunha Menezes (1813-1 870 ), cujo paí, M anuel Inácio da C unha Menezes (1779
1850), desempenhara um papel im portantíssim o na época das guerras da Independên
cia. Nascido no ano cm que seu pai voltou a Portugal, M anuel Inácio era filho de
M anuel da C unha Mcnczcs, governador e capítão-geral da Bahia (1774—1780) e
terceiro Conde de Lum iares, e de Perpétua Gertrudcs de M enezes Sarmento. O jovem
L iv r o IV - O E s t a d o : O rg a n iz a ç Aq e E xer cíc io d o s P oderes
M anuel acom panhou seu tio. Francisco da C unh a Menezes, quando este últim o
retornou a Portugal cm 1805, depois de cum prir um m andato de três anos como
govcrnador-geral da Bahia (1 8 0 2 -1 8 0 5 ). Seu Biógrafo conta com o, apesar do fausto e
dos divertim entos da vida lisboeta, M anuel Inácio preferiu voltar à Bahia, renuncian
do à herança deixada por seu tutor, o m arechal José Rodrigues Pinheiro. Não foi,
registre-se, um a atitu d e dc com pleto desprendim ento. Nosso M anuel Inácio fizera
uma das m aiores fortunas de Salvador, graças — ainda segundo o biógrafo __ ao
monopólio de óleo de baleia (esse m onopólio foi abolido em 1820 e M anuel Inácio só
voltou à Bahia em 1 8 1 0 !).5 N ada disso im pediu que ele se tornasse um dos vultos
importantes desse período: vereador em 1812, 1813 e 1823, m em bro da Ju n ta de
Governo Provisório em 1823, negociador nos conflitos entre Portugal e dom Pedro,
membro do C o nselho da P rovíncia, senador, com andante-em -chefe da G uarda N acio
nal, seu cu rsus h o n o ru m era exem plar. Q uando de sua m orte, em 1850, seu filho
herdou tanto a fortuna m aterial q u an to a fortuna p o lítica do pai, mas teve uma
carreira relativam en te m edíocre, pois só conseguiu ser vereador e com andante-cm -
chefe da G uarda N acio nal. R ecebeu, m esm o assim , várias distinções honoríficas do
imperador: fidalgo cavaleiro d a C asa Im perial, oficial da O rdem da Rosa e com endador
das ordens de C risto , Im perial do C ruzeiro e M ilitar de Aviz. Em 1854, dom Pedro II
só lhe concedeu o títu lo de barão, apesar de ele pleitear o de visconde, como seu pai,
A falta de outros representantes da nobreza ju n to ao Conselho M unicipal de
Salvador duran te todo esse período pode ser explicada facilm ente: a m aioria dos no
bres morava no Recôncavo, e não na cid ad e propriam ente dita. Entre os 44 vereadores
dé minha lista, doze acrescentaram , à carreira m unicipal, outra de deputado às assem
bléias Provincial ou G eral. A penas cinco — três m édicos e dois bacharéis em direito
— foram representar sua província no Rio. Não era indispensável ter sido vereador
para tornar-se deputado provincial ou geral, pois não havia hierarquias ou sucessões
obrigatórias nesses m andatos.
O advogado Leonel Estelita Fernandes Neto, por exemplo, tornou-se deputado
provincial em ) 8 50 , aos 24 anos, e continuou nesse posto até 1861. Só então foi eleito
vereador, m andato que exerceu até 1866.ú O médico Antônio Garcia Pacheco Brandão,
por sua vez, só com eçou sua carreira política aos 35 anos, como vereador (1861
1866), tornando-sc em seguida deputado provincial entre 1868 e 1875.
Podia até haver coincidência de m andatos provinciais e m unicipais. Foi o caso de
Fernando A m onio Filgucirns, que acum ulou mandatos e funções: de 1844 a 1852 foi
vereador; dc 1848 a 1855 c de 1860 a 1861. foi deputado provincial, chegando a ser
vice-presidente da Assembléia. Em 1845 ele fora capitão da G uarda Nacional e, segun
do o Almanaque , contador da O rn a ra M unicipal. Em 1862, Francisco José foi major
do 3o Batalhão de Reserva da Guarda Nacional, posto que, tradicionalmente, era
ocupado por oficiais de carreira especializados na instrução m ilitar.
Acum ular mandatos entre os deputados cra quase praxe. Cito um ún.co exemplo:
« médico F ran cisco d e A z ev ed o M o n t e ir o tornou-se vereador pela p rim eira vCz aos
258 B a h ia , S e x x t o XIX
q u aren ta anos, em 1849; serviu no vam ente em 1 8 5 2 ; de 1858 a 1877, foi deputado
provin cial quase sem in terru p ção (as exceções foram as legislatu ras de 1864 e 1868),
cargo que acu m u lo u por du as vezes, em 1867 e 1 8 7 0 , com o de vereador. Como
tam bém foi eleito duas vezes (1 8 7 3 c 1877) para a A ssem bléia G eral, acum ulou
seguid am ente m andatos de d ep u tad o p ro v in cial, vereador e d ep u tad o geral.
Eram raros os hom ens capazes de exercer esses cargos. Faltavam pessoas instruídas
entre o pequeno núm ero de cid ad ão s ativ o s’ , o que facilitav a o d o m ín ío da oiigarquia
ç0 bre o co n ju n to d a p o p u lação livre. O m a an álise d etalh ad a dos políticos que repre
sentavam a P ro víncia nas assem bléias P ro vin cial e G erai p erm ite que se avalie o peso
relativo dos fatores in stru ção e fo rtun a pessoal nessas carreiras.
A A ss e m b l é ia P r o v in c ia l : P r e s id e n t e e V ic e - P r e s id e n t e
dos dezessete presidentes dc origem b aian a tam bém p resid iram os destinos dc outras
provín cias brasileiras e q uase todos foram d ep u tad o s às assem bléias Provincial c Na
cion al. T rês foram senado res, m in istro s c p rim eiro -m in istro s do governo central. Vê-
se q ue a função de p resid en te de P ro vín cia era u m a etap a n u m a carreira po lítica, assim
com o a m ag istratu ra ou um m an d ato p a rlam en tar. ,
V am os a algu n s exem plos b aian o s ilu stra tiv o s das carreiras p o líticas do Império
brasileiro . Francisco V icen te V ian a, p rim eiro B arão dc Rio das C o n tas e primeiro
p resid en te da P ro víncia da B ah ia, era o rig in á rio de S alv ad o r, on de nascera em 1754,
filho de Francisco V icen te V ian a , um co m e rc ia n te p o rtu g u ês q ue chegara à Bahia em
1725, com catorze anos de id ad e, e q u e se to rn ara sen h o r d e en gen h o no distrito de
Sao Francisco do C o n d e , no R e c ô n c a v o .14 U m a im en sa fo rtu n a e várias plantações
de cana to rn aram -n o ra p id a m e n te u m a p erso n alid a d e em in e n te d a elite baiana. Foi
m em bro do Senado M u n ic ip a l e do S an to O fício . Seus três filhos — F rancisco Vicente,
Fructuoso V icen te e Jo ão V icen te — estu d a ram d ire ito em C o im b ra e voltaram ao
Brasil para in gressar na m a g is tra tu ra (os dois m ais velh o s) e no clero (o m ais moço).
Aos 21 anos, F ran cisco V ic e n te foi n o m ead o ju iz dos órfãos da cid ad e de Salvador.
Em 1 7 8 7 , foi p ro m o v id o a o u v id o r-g e ra l e p ro ved o r d a co m arca d a cap ital, passando
a ser personagem de g ran d e d e sta q u e n a c id ad e . C asan d o -se com C a etan a do Sacra
m ento B an d eira, se a lio u a u m a p o d ero sa fa m ília de co m ercian tes e senhores de
engenho p o rtu gu eses, os R o d rig u es B an d eira. A p esar de suas origen s portuguesas e
de sua ed u cação em C o im b ra , d u ra n te as g u erras p ela In d ep en d ên cia (1 8 2 2 -1 8 2 3 )
Francisco V ic e n te lu to u p ela cau sa b rasileira, ch eg an d o a p resid ir a J u n ta Provisória de
G overno d a B ah ia. S u a rep u tação de h o m em m o d erad o e sua fid elid ad e à causa
b rasileira levaram a q ue fosse n o m ead o p ara a ch efia do E xecutivo baian o em 1824,
posto que ocu p o u com relativ o sucesso d u ra n te dezenove m eses. Foi recom pensado
com o títu lo de B arão de R io das C o n tas, co n ced id o p elo im p erad o r dom Pedro I em
o u tu bro de 1 82 5.
H o n o rato jo sé de Barros Paim (1 7 9 2 —1855) tam bém estudou d ireito em Coim bra,
antes dc segu ir u m a carreira típ ica de m a g is tra d o .1^ D u ran te as guerras pela Indepen
d ên cia, foi au d ito r do E xército L ib ertad o r d a B ah ia, estabelecendo sólidos laços com
a elite local, que ficou in co n d icio n alm en te ao lad o de dom Pedro I. T ornou-se, em
seguida, ju iz de fora dos distrito s de Ja g u arip e c de M arag o jip e, no Recôncavo, inte
grou o I ribunai C iv il dc Salvado r c, por volta dc 1830, tornou-se desem bargador do
Tribunal dc Relação da B ahia. T eve, por co n seguin te, um a carreira m uito rápida,
galgando em poucos anos todos os degraus da h ierarq u ia ju d iciária. Entre 1828 e
1831, foi m em bro do C onselho da Província. Eleito duas vezes (1 8 3 0 -1 8 3 3 e 1834
1837) à Assem bléia C era! do Im pério, tornou-sc tam bém deputado provincial em
1835, sucessivam ente reeleito até 1843, tendo presidido a m esa da A ssem bléia Provin
cial em 1837, 1838 e 1 8 4 l. F’ xerceu a presidência d a Província entre junho de 1831
e junho de 1832 ç, depois, interin am en te, em novem bro de 1837. Foi vice-presidente
dc 1835 a 1849. Eleito pelo Partido Conservador ou nom eado pelo governo, Honoraro
e E xercício d o s P oderes 261
José acumulou vanas lunqoes entre 18 3 5 c 1 8 4 3. Teve, inclusive, uma breve incursão
na cena nac.or.al, p o r ocas.ão de seu m anda,o de depurado à Assembléia Geral Ma
gistrado onisciente e onipresente, apto a exercer lodos os mandatos, sua carreira -
rnui,o parecida com a dos demais ocupantes de cargos provinciais - exemplifica a
necessidade. |á citada, de recrutar sempre os mesmos homens num mundo polírico
restrito, cm que os |t,ristas eram intercambiáveis assim que adquiriam experiência nos
negócios. D esconheço detalhes sobre sua fam ília, mas sei que morreu solteiro em
1855. sem d eixar herdeiros.
A carreira desse conservador pode ser com parada com a de um liberai, José Luiz
de A lm eida C o uto ( 1 8 3 8 - 1 8 9 5 ), ú ltim o presidente da Província da Bahia e o único
que não era m agistrad o . F ilho d c Jo ão C aetan o de A lm eida C outo e de Luiza Benvinda
Dorea C o u to , m edico, eleito aos 24 anos para a A ssem bléia Provincial, onde exerceu
três m andatos sucessivos en tre 1862 e 1869, ele foi igualm en te vereador (1867/1869),
deputado à A ssem bléia G eral (1878/81) e professor da Faculdade de M edicina da
Bahia, antes de ser n o m eado por algu n s meses presidente da Província de São P aulo.16
Depois, foi duas vezes p resid en te da B ahia, por três meses em 1885 e por cinco meses
em 1889. S u a carreira foi b rilh an te , m as, com exceção do pequeno episódio paulista,
não ultrapasso u os lim ites de sua p ro vín cia natal, assim com o ocorreu com as carreiras
de Francisco V icen te V ia n a e H o norato Jo sé de Barros Paim .
O cursus h o n o r u m de Jo ão M au rício W an d erley, ilustre B arlo de C o tejip e,17 foi
com pletam ente d iferen te. Filho de um proprietário rural, nasceu em V íla da Barra, na
m argem esqu erd a do rio Sao F rancisco, em região então pertencente a Pernambuco,
anexada à B ah ia em 1827. D iz a tradição q u e W an d erley era descendente de um
holandês que viera com M a u ríc io de N assau no século XVII e que se chamava Gaspar
Van der Lay. O bisavô de Jo ão M au rício teria dilap idado a fortuna da fam ília, obri
gando seu filh o a em igrar para o in terio r da cap itan ia, num a bem -sucedida busca de
riqueza. A fo rtun a p erd id a teria sído refeita em duas gerações. O pai de João M aurício
era contador d a d íz im a, possuía grandes propriedades rurais e se ocupava de numero
sos e im portantes negócios, in tegran d o o grupo de notáveis da região. Na época das
guerras pela Indep endên cia, apoiou a causa dos brasileiros, o que lhe valeu a Ordem
do C ruzeiro do Sul em 1825.
Km que época os W an d erley misturaram seu sangue àquele de uma descendente
dc africanos anônim os? A história, que canta loas às origens européias da fiimfl.a, nao
O revela. Seja com o for. a tez escura e o nariz achatado de João Maurício, nascido em
1 8 1 5 . não foram um obstáculo a uma brilham e carreira política no Partido Conseiva-
dor. encerrada apenas com sua morte, ocorrida cm 1889. F.le cursou a escola secunda
ria cm Salvador e estudou direito em O linda, onde desde 18 2 7 funcionava uma das
duas únicas faculdades brasileiras dessa especialidade (a outra estava em Sao Pau o).
Iniciou sua carreira pública como juiz municipal e de árfàos em Barra e Xiquexique,
longínquas cidades do Sertão baiano. Foram os eleitores da reg ião d o S ao Francisco
que o levaram à Assembléia Provincial, primeiro como suplente em 18 4 0 e em seguida
262 LVm ua , S fi u o X IX
como deputado ate 1852. Ao mesmo tem po, ele se aproxim ou de Salvador, sendo
nom eado, cm 18-14 , juiz dc d ireito cm Santo A m aro, no Recôncavo. De 1848 a 1852
foi várias vezes chefe dc Polícia de Salvador, fundão que acum ulou com mandatos
parlam entares (foi deputado provincial até 1853 c deputado à Assembléia Gera) de
1843 a 1856).
Nesse m esm o ano de 1852 foi nom eado, sim ultan eam en te, juiz do Tribunal de
Relação da B ahia (cargo que ocupou até 1857) e presidente da Província. Em 1855
deixou a presidência pelo M in istério da M arin h a, in ician d o um a carreira de âmbito
nacional. Foi escolhido senador cm 1856. No ano segu in te, casou-sc com Antônia
T ereza de Sá P ita e A rgolo, filha de A ntôn io B ernardino da Rocha Pita e Argolo,
C o nde de Passe, rico senhor de engenho do R ecô n cav o .1* V árias vezes ministro ç
m em bro do P artido C o nservador, Jo ão M au rício foi um dos principais negociadores
do tratado com o P araguai em 1871 e só teve um período de relativo ostracismo
duran te o governo lib eral do baiano José M aria da Silva Paranhos, V isconde de Rio
Branco (1 8 7 1 -1 8 7 5 ). N essa época, resid iu em Salvado r, num curto ‘exílio ’ político,
m arcado pelo esforço em m o dernizar o engenho Jacaracan g a, que com prara. Voltou à
p o lítica — e ao poder — em 1875, com o m in istro das F inanças, na equipe do Duque
de C axias (1 8 7 5 -1 8 7 8 ). F in alm en te, tornou-se presidente do C onselho dos Ministros
de 1885 a 1888 e, depois, presidente do B anco do B rasil, cargo que ocupou até a
m orte. Seu biógrafo e neto, Jo sé W a n d erley de A raú jo Pinho, afirm a que o avô morreu
pobre e que sua casa do R io de Ja n eiro teve q u e ser leilo ad a para que suas dívidas
pudessem ser p agas.19
Ao contrário do Barão de C o tejip e, o V iscon de de R io B ranco era um liberal.
José M aria — ‘J u c a ’ para os íntim o s — da S ilva Paranhos (1 8 1 9 -1 8 8 0 ) era quatro
anos m ais moço que João M a u rício W an d e rle y , m as m orreu nove anos antes dele.
Filho do português A gostinho da S ilva Paranhos e de Josefa Em erenciana Gomes
Barreiros, ele nasceu em Salvador, n u m a fam ília de grandes com erciantes, arruinada
na época da Independência. C om o desaparecim ento da fortuna fam iliar, o jovem
José M aria teve que prosseguir seus estudos às custas do Estado, como cadete da
F.scoia N aval do Rio de Jan eiro (1 8 3 6 -1 8 4 0 ), de onde saiu aspirante com o posto de
guarda-m arinha. Q u atro anos depois, obteve o dip lo m a de bacharel em matemáticas
e ciências físicas. M u ito apreciado por seus dotes intelectuais c sua inteligência, tor
nou-se professor catedrático da Escola M ilita r em 1848. Em 1860, era professor na
Escola C en tral, reorganizada em 1874 com a denom inação de Escola Politécnica.
Em paralelo, trabalhou no jornal liberal O Novo Tempo e no J o r n a l do Commercio,
obtendo destaque. O futuro V isconde de Rio Branco era considerado um conserva
dor moderado, o que mostra com o era im precisa a linha divisória entre conservado
res e liberais da época, A passagem de um partido para o outro se fazia segundo os
interesses do m om ento. Foi deputado provincial na legislatura de 1844—1845 e de
putado geral nas legislaturas de 1848, 1 8 5 3 -1 8 5 6 e 1 8 5 7 -1 8 6 0 (pelo Rio de Janeiro)
e na de 1861—1863 (por Sergipe).
o E s ta d o : O r g a n iz a ç ã o e E x e r c í c i o d o s P o d e r e s
Os D eputad o s à A s s e m b l é ia P r o v i n c i a l
O s p arlam en tares b aian o s, p ro v in ciais ou gerais, eram p o uco num erosos, sobretudo
porque a reeleição era regra e p o rq u e vários d ep u tad o s exerciam os dois mandatos
sim ultan eam en te. O arcebispo d a B ah ia, do m R o m u ald o A. de Seixas, por exemplo,
foi eleito d ep u tado geral na terceira leg islatu ra (1 8 3 4 -1 8 3 7 ) e d ep u tad o provincial na
p rim eira (1 8 3 5 -1 8 3 7 ). O co rreu o m esm o com dez outros deputados à Assembléia
G eral. Dos dezoito deputado s gerais dessa leg islatu ra, onze tin h am , por conseguinte,
m andato d uplo. T rcs dos q u in ze in tegran tes baianos d a A ssem bléia Geral (legislatura
de 1 8 6 9 -1 8 7 2 ) tam bém eram deputado s provin ciais. F in alm en te, na ú ltim a legislatura
da Assem bléia G eral (1 8 8 6 -1 8 8 9 ), os dois m andatos (pro vin cial e geral) não coinci
diam m ais. E ntretanto, onze dos dezesseis deputados gerais já haviam exercido um
m andato provincial,
A criação dc unia assem bléia que exercia o Poder Legislativo ocorreu em 1835,
pois, antes dela, o C onselho G eral da Província tin h a caráter unicam ente consultivo.
A duração de um a legislatura provincial era de dois anos. Entre 1835 e 1889, houve
27 legislaturas, com 509 deputados, entre titulares e suplentes.2^
Os funcionários do parlam ento provincial pareciam renovar-se constantemente.
C ada legislatura trazia novos elem entos, em núm ero que podia ir do quarto à metade
do total de deputados. Poder-se-ia então pensar num processo de cont/nua renovação
de políticos, graças à contribuição desses novos elem entos. V árias evidências podem
L iv ro IV - O E s t a d o : O r g a n i z a ç ã o e E x e r c I c io d o s P o d e r e s 265
T A B E L A 54
P e r c e n t a g e m d e N o v o s D e p u t a d o s n a A ss e m b l é ia P r o v in c ia l , 1 8 3 5 -1 8 8 9
Anos % Anos % Anos %
1 8 3 5 -1 8 3 7 - 1 8 5 4 -1 8 5 5 2 6 ,8 1 8 7 2 -1 8 7 3 3 5 ,7
I 8 3 8 -1 S39 5 1 ,0 1 8 5 6 -1 8 5 7 2 8 ,8 1 8 7 4 -1 8 7 5 3 4 ,1
1 8 4 0 -1 8 4 1 2 6 ,0 1 8 5 8 -1 8 5 9 4 9 ,0 1 8 7 6 -1 8 7 7 3 0 ,2
1 8 4 2 -1 8 4 3 3 7 ,0 1860-1861 4 1 ,0 1 8 7 8 -1 8 7 9 3 4 ,1
1 8 4 4 -1 8 4 5 3 1 ,5 1 8 6 2 -1 8 6 3 4 0 ,0 1 8 8 0 -1 8 8 1 5 3 ,5
1 8 4 0 -1 8 4 7 3 0 ,8 1 8 6 4 -1 8 6 5 4 2 ,8 1 8 8 2 -1 8 8 3 6 1 ,9
1 8 4 8 -1 8 4 9 3 4 ,0 1 8 6 6 -1 8 6 7 3 0 ,8 1 8 8 4 -1 8 8 5 3 0 ,8
1 8 5 0 -1 8 5 1 3 2 ,5 1 8 6 8 -1 8 6 9 4 5 ,2 1 8 8 6 -1 8 8 7 3 7 ,5
1 8 5 2 -1 8 5 3 3 3 ,3 1 8 7 0 -1 8 7 1 5 8 ,1 1 8 8 8 -1 8 8 9 3 7 ,5
dem onstrar o co n trário . A p rim eira delas é fornecida pelo núm ero de deputados,
titulares ou su p len tes, que rep artiram as 1.232 cadeiras di: sponíveis. 26 Foram 509.
Logo, cada d ep u tad o foi cham ado a ocupar, cm m édia, 2 ,4 2 cadeiras. Em outras
palavras, cada eleito c u m p riu quase duas legislatu ras e m eia. Pode-se m uito bem
retorquir que cinco anos de m an d ato representam um a m éd ia norm al, que perm ite
renovar o grupo dos eleitos. M as u m a análise m ais fin a da duração dos m andatos
dem onstra o q u an to essa m éd ia de 2 ,4 2 cadeiras por deputado é enganadora:
Entre os 509 dep u tad o s provin ciais, 4 0 6 (7 9 ,8 % ) foram eleitos por, no m áxim o,
três legislaturas, o que correspo ndia a um m andato de seis anos. Por outro lado, 44,6%
desses 509 deputados foram eleitos apenas um a vez, desaparecendo em seguida da
cena po lítica, pelo m enos no que diz respeito à representação provincial. Um grupo
relativam ente restrito de hom ens (2 0 ,1 % ) foi eleito constantem ente, concentrando
em torno de si a v id a p o lítica da Província.
T enho inform ações m ais ou m enos detalhadas sobre 77 dos 103 deputados que
serviram duran te m ais de tres sessões legislativas. Foram dezessete advogados, onze
m édicos, dois engenheiros do Exército e da M arinha, . 21 m agistrados, onze altos
funcionários provinciais, quatro padres e um jorn alista. H ouve ainda dois ‘doutores
não especificados, um com erciante e sete pessoas sim plesm ente qualificadas como
‘proprietários’.27
Havia, portanto, dois tipos de parlam entares. Aqueles cuja carreira alcançava um
nível nacional c que eram is vezes cham ados a assum ir as mais altas responsabilidades
e aqueles cuja carreira, em bora circunscrita nos estreitos lim ites de suas províncias, não
deixava de ser prestigiosa. O prim eiro grupo era representado por 33 parlam entares
que exerceram m andatos no nível provincial e nacional. Deles, só dezessete continua
ram como sim ples representantes de seus eleitores. Os outros dezesseis tornaram-se
senadores e m inistros (três), vice-presidentes da Província da Bahia (cinco), presidentes
B a h ia . S êcti.o XIX
T A P f. I A S S
N u m i r o n r Lr.casi .ATURAS n r C a p a
D i t p t a p o P r o v i n c i a l ísa R a i u a , 183 5 -1 8 8 8
—— —
Très - 69 (13,6)
Q uatro 36 (7,0)
Cinto 31 (6,0)
Seis 19 (3,7)
Sete 5 (1,0)
O ito 7 (3,4)
Nove 2 (0,4)
Dez 2 (0,4)
Onze - -
Doze 1 (0,2)
José foi v e re ad o r e d e p u ta d o p ro v in c ia l 1 •,
, j * •, * 7 m cial d l™ t e oito legislaturas, enrre 1835 e 1853
cheçando a vicc-presidente da Assembléia An ™ j • .
dois filhos naturais e um a fortuna de 1 7 8 .8 6 5 .7 9 4 ^ ^ legm m os’
m o s c sabe quem foram « pais do m édico Fiel josé de Carvalho e Oliverra, nem
a data d e sen aicein ie,n o . Nasceu provavelm ente em 1827 e, aos 25 anos, foi depu
tado a A ssem bléia ProvrncraL C asou-se em data ignorada com Ftancisca Dantas, irmã
de Cícero D am as M artm s, Barão de Jercm oabo, integrante da poderosa fitmilia dos
Dantas, do Agreste ba,ano, e casado com um a filha de A ntônio da Costa Pinto Conde
de S ergin n n m . Através de sua sogra, em aliado da fttmília Lopes, de importantes
senhores de engenho do R ecôncavo. Os dois tiveram carreiras bem diferentes' Fiel José
foi deputado provin cial de 1852 a 1861, secretário e vice-presidente da mesma Assem
bléia e responsável pela conservação da biblioteca da Faculdade de M edicina. Lídet do
Partido C onservador, o Barão de Jerem oabo foi deputado à Assembléia Geral durante
quatro legislatu ras (1 8 6 9 a 1889), duas vezes deputado provincial (18 60 -61 e 1870
71) e co n tin u o u sua carreira po lítica depois da Proclam ação da República. Reencon
tram o-lo, com efeito, com o senador na A ssem bléia C onstituinte da Bahia, que veio a
presidir em 1891, exercendo o m andato até 1896.29
F inalm ente, Jo aq u im d a C o sta Pinto (1 8 4 1 -1 8 7 9 ), filho de Antônio da Costa
Pinto, C onde de S ergim irim e cunhado do Barão de Jerem oabo, acim a citado. Eleito
deputado provin cial aos 2 9 anos, ele foi constantem ente reeleito até sua morte em
1879. O cupo u em 1877 a função de vice-presidente da Assembléia Provincial.30
M anoel d a S ilv a B araún a (1 7 9 9 —1876), Jo aquim T ibúrcio Ferreira Gomes e
Bernardo do C an to Brum tam bém sao bons exemplos. Não consegui muitas informa
ções sobre a fam ília do prim eiro, que era sobrinho de um célebre pregador, o franciscano
Xavier da Silva Bastos, d ito ‘irm ão Bastos B araúna’. Casou-se com Delfma M aria, da
qual se ignora o sobrenom e, e teve sete filhos, cinco dos quais meninas. O mais velho
dos m eninos seguiu a carreira do p ai, tornando-se funcionário e deputado provincial.
Em 1845, M anoel chefiou a Secretaria de Governo da Província e em 1862 foi secre-
tário-geral do Instituto B aíano de A gricultura. Na época do recenseamento de 1855,
M anoel estava á frente de um a grande fam ília. Com ele viviam sua sogra, sua cunhada
e duas dc suas cinco filhas, M aria H ildetrudes, solteira de 24 anos, e Amélia Augusta,
viuva aos 23 anos e mãe dc três filhos: M anuel Augusto Carigé Baraúna (sete anos),
Emilia A u g u sta C arigé Baraúna (cinco anos) e Eduardo Augusto Carigé Baraúna (dois
anos). M anocí criava mais sete netos, filhos de Gustavo de Sá e Menezes e de sua filha
Celestina C ân dida. Ainda Faziam parte do grupo fam iliar doze escravos adultos sendo
seis mulheres c seis homens. Alto F u n cio n ário , gozando de grande prestígio, a
era considerado ‘ figura dc relevo’, tendo sido sucessivamente eleito deputado entre
1842 e 1861. Tornando-se oficial da Ordem da Rosa em 1862, foi elevado ao grau e
comendador aleuns anos depois.- * 31 ,
Sobre Joaquim Tibúrcio Ferreira Gomes tenho poucas mformaçoes. Era filho do
Padre Vicente Ferreira Gomes, vigário da paróquia de Sao Gonçalo (situada no
■centro
:6 8 B ah ia , S écu lo X IX
Real. A vida ad u lta de dois dos filhos desse Barão é conhecida: em 1866, o m ais velho
^ u aíb ert° D antas ( I 8 2 J - 1 8 8 8 ) , tornou-se o segundo Barão de Rio Real, confi
gurando um caso bastante raro em que o filho recebeu o mesmo título nobiliárquico
do par (a nobreza nao cra h ered itária). Jo ão G ualbetto foi deputado às assembléias
Provincial e G eral, drretor da C a.x a E conôm ica de Salvador, com andante-em -chefe da
G uarda N acio n al na região de Itap icu ru e m em bro em inente do Partido Liberal. Sua
irm a, A na F erreira de Jesus D antas, casou-se com um prim o-irm ão pelo lado materno,
João dos R eis de Souza D antas, acim a citado. Dois parentes deste tiveram carreiras
políticas prestigio sas. Em p rim eiro lu g ar seu irm ão, M an o el Pinto de Souza Dantas
(1 S 3 1 -1 8 9 4 ), m agistrad o que foi sucessivam ente ju iz dos órfãos (1853), deputado
provincial ( 1 8 5 2 - 1 8 5 7 ), p ro cu rad o r (1 8 5 7 -1 8 5 8 ), deputado geral (1 8 5 7 -1 8 8 1 ), pre
sidente da P ro vín cia das A lagoas (1 8 5 9 -1 8 6 0 ), presidente da Província da Bahia
(1 8 6 5 -1 8 6 6 ), m in istro d a A g ricu ltu ra , do C om ércio e de O bras Públicas (1866),
senador ( 1 8 7 9 - 1 8 8 9 ), m in istro d a ju s t iç a e d o Im pério (1 8 8 0 ) e, enfim , presidente do
C onselho em 1 8 8 4 . C h efe p restigio so do P artido L ib eral, ele foi um fervoroso
abolicionista e fez v o tar a L ei dos Sexagenários, que libertava todos os escravos que
tinham m ais de sessenta anos.
O outro ho m em im p o rtan te d a fam ília D antas foi C ícero D antas M artins, Barão
de Jerem oabo (1 8 3 8 - 1 9 0 3 ), filho de Jo ão D antas dos Reis, irm ão do prim eiro Barão de
Rio Real, p rim o -irm ão pelo lad o m aterno de Jo ão dos Reis e de seu irm ão M anoel
Pinto. J á m en cio n ei o B arão de Jerem o ab o que, graças a seu casam ento, aliou-se à
fam ília C o sta P in to . L em bro que o B arão foi um dos líderes do Partido Conservador
na B ahia, rep resen tan do , com o tal, a região na A ssem bléia Provincial (1860—1861 e
1870—1871) e na A ssem b léia G eral (1 8 6 9 —1886). João dos Reis de Souza Dantas
estava m uito bem cercado pelos m em bros de sua fam ília, que evoluíam com sucesso no
plano n acio n al. E leito d ep u tad o pela p rim eira vez em 1854, esteve presente na cena
política da p ro vín cia até 1 8 8 9 , com o deputado e presidente da Assem bleia Provincial
(1 8 6 8 -1 8 8 1 , 1 8 8 4 -1 8 8 5 e 1 8 8 8 -1 8 8 9 ), ou com o vice-presidente nomeado pelo im
perador em 1878, 1879, 1882 e 1885. C hegou a exercer interinam ente a presidência
da Província entre 5 de jan eiro e 29 de m arço de 1882.36
O ú ltim o exem plo é o de A ntôn io O lavo C alm on de Araújo Góis (1 8 4 7 -1 9 1 9 ).
Por seu pai, ele era aparentado ao poderoso clã dos A raújo Góis, a cujas práticas
m atrim oniais já nos referim os. Por sua m ãe, era aliado à fam ília Calm on du Pin e
Alm eida. A liás, ele estreitou os laços com essa fam ília ao se casar, em 1873,
prim a C lara M aria C alm o n du Pin c A lm eida. Antônio Olavo foi o oitavo filho de
Inocêncio M arques de A raújo Góis, Barão de Araújo Góis, e de sua prim eira mulher,
M aria Francisca C alm on dc Abreu. Seu pai fez carreira na magistratura e terminou
como m inistro do S u p re m o T r ib u n a l d e Ju s tiç a ( 1 8 8 0 - 1 8 8 6 ) . d ep o .s de rer s.do
deputado p ro v in c ia l d u ra n te v ir ia s le g islatu ra s (1837 a 1 8 5 9 ) « d ep u ado g e r i de
1857 a 1860 C o m o se u irm ão m ais velh o , Inocéncro M arq u es de A rau jo Gors J r .
(1 8 3 9 -1 9 0 5 ), ele estudou direito na Faculdade de Olinda. Aquele, no entanto, segu.u
B a h ia , S é c u l o XIX
c a r r e ir a co m o d e p u ta d o n a s d u a s a ss e m b lé ia s , to rn a n d o -s e a té p re s id e n te d a P ro víncia
d e P e r n a m b u c o em 1 8 8 9 , e n q u a n to A n tô n io O la v o lim it o u s u a a ça o à B a h ia . Isso não
im p e d iu q u e d e s e m p e n h a s s e u m p a p e l e m in e n te , p o is, te n d o s id o e le ito p ela p rim eira
vez e m 1 8 7 2 , foi re e le ito a té 1 8 8 6 , o c u p a n d o o s p o sto s de s e c r e tá r io (1 8 7 2 ) , vice-
p r e s id e n te ( 1 8 7 9 e 1 8 8 2 ) e p r e s id e n te d a A s s e m b lé ia P r o v in c ia l ( 1 8 8 6 ) .37
C A P I T U L O 17
O s B a ia n o s n o G o v e r n o C en tral:
O r ig e m S o c ia l e F o r m a ç ã o
271
B a h ia , S é c u l o X IX
nhecidos nos m eíos políticos baianos, pois tin h am atu ad o com destaque nas guerras
pela Independência, tinh am sido eleitos para o C o nselho G eral da Província em 18261
ou, já instalados na cap ital do Im pério, tinh am exercido altas funções no aparelho de
Estado. Era esse o caso, entre outros, de José da C osta de C arvalho (M arquês de
M o n te A legre), Francisco de A caiab a M o n tezu m a (V isconde de Jeq uitin h o n h a) e do
m édico José Lino C o utin h o .
Os 32 deputados que nunca exerceram m an d ato provin cial eram hom ens nascidos
na B ahia, que tinh am fam ílias a li, m as q u e v iviam na cap ital do Im pério, como o
m édico Francisco B onifácio de A b reu , Barão d a V ila da B arra,2 Rodolfo Epifânio de
Souza D antas (cujo pai, M an o el P in to de Souza D antas, foi m in istro e presidente do
C onselho) e Luís A ccio li Pereira Franco (filh o do B arão de P ereira Franco, m agistra
do, presidente d a P ro víncia e várias vezes m in istro ). T ratava-se, pois, de baianos que
tiraram proveito de alian ças fam iliais ou de relações pessoais para conseguir uma
cadeira de deputado por sua p ro vín cia de o rigem .
O ritm o de renovação dos deputado s à A ssem bléia G eral não foi diferente do
observado para a A ssem bléia P ro vin cial. N o te-se, p o rém , que essa renovação podia
chegar a até 7 0% dos efetivos.
TABELA 56
TAREI . A 57
P r o f i s s ã o d o P ai D u p u t a p o s P r o v in c ia is D e p u t a d o s G e r a is
D ep . co m M an d ato D uplo
S e n h o r cie e n g e n h o
3 21
P ro p r ie tá rio rural 20 4
12
C o m e r c ia n te 7 3 5
Oficia! 6 _
2
Magistrado 5 3 4
Airo funcionário 3 _
5
P ro fissio n a l liberal 5 _ 2
Outros 3 l ~
]uçao da C o n stitu in te, ele e outros deputados foram ‘depo rtado s’ para a França, onde
perm aneceu exilado duran te oito anos. Sob o regim e de prisão d o m iciliar em Orleans,
estudou d ireito francês, co n tin u an d o seus estudos, depois, em Londres, na Bélgica e
na H olanda.
Em 1831, após a abdicação de dom Pedro I, pôde voltar ao B rasil, sendo im edia
tam en te eleito sup len te à segu n d a leg islatu ra d a A ssem bléia G eral (1 8 3 1 -1 8 3 3 ). Para
doxalm ente, se aproxim ou dos conservadores, os fam osos caram u ru s’, que pediam a
volta de dom Pedro. C h ego u a se p ro n u n ciar co n tra a reform a constitucional, defen
deu a m anuten ção dos títu lo s de nobreza e das ordens honoríficas e se manifestou
contra o exílio do im p erad o r que, en tretan to , o tin h a exilad o dez anos antes. Publicou
vários panfletos em defesa dos “p rin cíp io s fed eralistas” e contra a “liberdade dos
rep u b lican o s” e, oficiosam en te, d irig iu dois im p o rtan tes jo rn ais que faziam oposição
ao governo d a R egência: o Ipiranga (1 8 3 1 / 1 8 3 2 ) e o Catão (1 8 32 / 18 33 ). Todavia,
quando o padre D iogo A n tô n io Feijó assu m iu a R egên cia em 1835, M ontezum a
com eçou a se afastar do P artid o C o n servad o r, recusando-se a aju d ar as numerosas
forças po líticas unidas co n tra o novo regente. Em recon hecim en to de sua atitude
m oderada, foi nom eado m in istro d a Ju stiç a e dos N egócios E strangeiros entre maio e
setem bro de 1837, d u ran te os ú ltim o s m eses d a R egên cia de Feijó.
S u a v ersatilid ad e p o lític a im p e d iu que fosse reeleito d eputado à A ssem bléia na
legislatu ra de 1 8 3 4 -1 8 3 7 , m as nao na segu in te, co n sid erad a a m ais im portante da
história p arlam en tar b rasileira. T en d o apoiado a decisão de d ecretar a m aioridade de
dom Pedro II antes de este a tin g ir a id ad e leg al, foi nom eado m inistro plenipotencíá-
rio em Londres, onde fico u de setem bro d e 1840 a agosto de 1841. Intransigente,
acabou por se d esen ten d er com o m in istro dos N egócios E strangeiros e foi obrigado
a regressar ao B rasil, onde d ecid iu fazer carreira de advogado (foi fundador da Ordem
dos A dvogados do B rasil em 1 8 4 3 ), sem to d avia ab an d o n ar suas atividades políticas.
De 1847 a 1850, foi deputado à A ssem bléia P rovincial F lum inense. T entou duas
vezes, sem êxito, en trar no Senado com o representante da Província do Rio de Janeiro,
realizando seu desejo quando, na terceira ten tativa, em 1851, apresentou-se como
candidato pela B ahia. Su a reputação de advogado já era tão grandiosa que, desde
1850, fora nom eado conselheiro extraordinário do C onselho de Estado. Em 1854, o
senador M ontezum a obteve de dom Pedro II o títu lo de V isconde de Jequitinhonha
(todos os conselheiros do im perador foram enobrecidos nesse mesmo ano). Até sua
morte em 1 870, m anteve um a ação p o lítica independente e apresentou vários projetos
de reformas, que incluíam um a extinção gradual da escravidão. A discussão dessa
proposta foi prejudicada pelo início da G uerra do Paraguai. Este é o resumo da carreira
de um m ulato baiano, de origem m odesta, mas am bicioso, com bativo e versátil. Para
abrir seu cam inho e chegar aos prim eiros postos da vida política brasileira, ele soube
tirar proveito das circunstâncias favoráveis e das perturbações de um período agitado.
Tam bém loi exem plar a carreira de A ngelo M uniz da Silva Ferraz ( 1 8 1 2 —1 8 6 7 ),
originário da região Sul do Recôncavo, filho de um modesto proprietário rural da
E E x e r c íc io d o s P o d f r f s 2" ^
A taulfo foi m édico e E lgidio B en ign o teve sucesso com o c o m ercian te.6 Isso se deveu a0
fato de q u e nosso v ig ário se to rn ara u m chefe p o lítico im p o rtan te na sua região, comis
sário de ensino público en tre 1857 e 1 8 7 5 , fundador do In stitu to G eográfico e Histórico
da B ahia, m em bro do P artid o L ib eral e duas vezes d ep u tad o à A ssem b léia Provincial
(em 1882 e 1 8 8 6 ). A P ro clam ação da R e p ú b lica afetou sua carreira p o lítica, fazendo
com q u e B ellarm in o fosse m o rrer na cid ad e de C o n d e ú b a , on de passou a m aior parte
de sua v id a com o m in istro do S en h o r, chefe lo cal e bom pai de prole num erosa. No
seu caso, tudo se passou co m o se o sacerd ó cio , a lia d o a u m a só lid a in stru ção e a muitos
dons pessoais, tivesse ap agado m odestas origens sociais e costum es pouco recomendáveis.
Essas carreiras nao devem o b scu recer o fato de q u e a g ran d e m aio ria dos parla
m entares p erten cia às classes ab astad as d a so cied ad e b a ian a. Era excep cio n al que um
filh o de fa m ília m ais m o d esta tivesse acesso aos escalões sup eriores das carreiras que
levavam ao po der p o lítico . Isso fica a in d a m ais claro q u an d o , à an álise das origens
sociais, agregam os a das o rig en s geo gráficas dos h o m en s p ú b lico s baianos. Salvador e
suas elites co n tro laram as a tiv id ad es eco n ô m icas a cen a p o lític a d a P ro vín cia ao longo
de todo o século X IX . P ara p o d er so n h ar com u m a b rilh a n te carreira de homem
público ou p ara in g ressar no P a rlam en to , nao era su ficien te nascer n u m a família
prestigiosa e receber u m a in stru ção su p erio r. Era p reciso nascer na cap ital ou em seu
R ecôncavo. Dos 1 .2 3 2 d ep u tad o s q ue p assaram p ela A ssem b léia P ro vin cial entre 1835
e 1889, tenho in fo rm açõ es sobre a o rig em de 7 8 0 . D estes, 5 5 0 eram de Salvador, 116
do R ecôncavo e 114 do in te rio r.
São escassas, com o se vê, as in fo rm açõ es sobre g ran d e n ú m ero de deputados.
M esm o assim , não há d ú v id a de que, até a d écad a de 1 8 7 0 , o n ú m ero de deputados
origin ário s d a cap ital e de seu R ecôn cavo era su p erio r ao dos q u e vin h am do resto da
P rovíncia, o que co m p ro va a in flu ê n c ia da m etró p o le sobre o in terio r longínquo. Essa
p red o m in ân cia torna-se evid en te q u an d o se co n stata a origem dos 91 deputados que
representaram a B ah ia na A ssem bléia G eral en tre 1826 e 1889. C onsegui estabelecer
o local de nascim en to de 8 4 deles e co n statei q ue 5 4 nasceram em Salvador e 24 no
Recôncavo. O ra, assim com o os dep u tad o s provin ciais, os deputados à Assembléia
Geral teoricam ente representavam todas as zonas eleito rais da Província.
S e m d ú v id a , a c a p ita l d o m in a v a a c e n a p o lític a . M a s n ã o d e v em o s c o n c lu ir m uito
ra p id a m e n te q u e os d e p u ta d o s re p re se n ta sse m os in teresse s d as o lig a rq u ia s d e Salvad o r
e d e seu s arre d o re s. As te rra s lo n g ín q u a s só se in te g ra ra m ta rd ia m e n te à eco n o m ia
b a ia n a . Em a lg u n s caso s, re g iõ e s c o n se g u ira m se lib e r ta r do d o m ín io d e Salvad o r,
a u m e n ta n d o os in te rc â m b io s co m o u tra s p ro v ín c ia s. N o S u l d a B a h ía , p o r exem p lo , a
nova ex p an são do c u ltiv o do c ac au ap ó s 1 8 7 0 le v o u as o lig a rq u ia s lo cais a buscar
ap oio s em M in a s G erais, E sp írito S a n to e R ío d e Ja n e iro , c u jo s cen tro s eco nôm icos
eram até m ais acessíveis do q u e S a lv a d o r.7 O m esm o fe n ô m en o o co rreu nas regiões do
A lto e do M é d io São F ran cisco , c u jas c id ad e s rib e irin h a s so u b eram u sar o g ran d e rio
p ara d esen v o lv er in te rc â m b io s com as p ro v ín c ia s v iz in h a s d e P ern am b u co e M in as
G erais. A p erd a d e in flu ê n c ia d a c a p ita l b a ia n a se a c e n tu o u d ep o is d e 1 8 7 0 , e tu d o leva
Ldeo IV - O E s t a d o : O r g a n i z a ç a o e E x e r c íc io d o s P o d e r e s
tabula S8
L ocal de O rioem d o s D e p u ta d o s à A s s e m b lé ia P r o v i n c i a l , 1 8 3 5 —1 8 8 9 *
18J?- 1837 39 9 3 Ü
183S-1839 33 3 \ ‘ 12 49
1840-1841 33
46
1842-1843 37 22 62
I844-18 45 39 54
1846-1847 27 39
1848-1849 31 3 2 8 44
1850-1851 26 5 4 5 40
1852-1853 27 4 6 8 45
1854-1855 24 4 6 7 41
1856-1857 25 4 9 14 52
1858-1859 20 2 8 21 51
1860-1861 25 8 13 22 68
1862-1863 18 5 7 12 42
1864-1865 16 7 5 14 42
1866-1867 10 8 4 17 39
1868-1869 14 6 7 15 42
1870-1871 20 2 4 17 43
1872-1873 17 20 42
1874-1875 18 17 41
21 43
1876-1877 15
1878-1879 11
21 41
1 8 8 0 -1 8 8 1 1 (>
25 43
2 8 _________42
1882-1883
30 39
1884-1885
32 40
1886-1887
29 40
1888-1889
114 452 1-232
Toul 550 116 ^
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n ip ic n ta f n m i r i m com m ulta freqüência p o r c a u » uc “ “ r ' 11' ■ . v.. ■t ; ;;
1
B a h ia , S éc u lo X I X
Os novos eleitos seriam oriundos das regiões que representavam e teriam interes
ses opostos aos dos hom ens políticos da capital? N ão pretendo elucidar essas questões
aqui, em bora não tenha dúvida de que há um a dolorosa lacuna nas pesquisas sobre a
vida política da Bahia no fim do scculo passado.
TABELA S9
O r ig e m d o s N o bre s, S enadores e M in is t r o s B a ia n o s
Salvador 46 15 15
Recôncavo 43 4 9
Recôncavo Sul 5 2 2
Agreste 7 2 2
Sertão 9 2 1
Sem informações 2 1 2
Total 112 26 31
Esta tab ela d isp en sa com entários. N ão há d ú v id a de q u e a m aior parte dos enobre
cidos (7 9 ,5 % ), dos senadores (7 3 ,0 % ) e dos m inistros (7 7 ,4 % ) saíam das classes
superiores de Salvado r e de seu Recôncavo. H á u m a enorm e diferença entre as carrei
ras dos hom ens po líticos nascidos nessa região e as daqu eles que nasceram no interior
d a P rovíncia. Eram sobretudo os prim eiro s que chegavam aos cargos m ais elevados. As
origens fam iliares, o local de n ascim en to, o m eio social e a instrução formavam um
con jun to articu lad o de circun stân cias que in flu en ciav am a carreira política de cada
u m , com o fica p articu larm en te evidente q u an d o se ten ta saber as origens de alguns
deputados provin ciais que exerceram funções ad m in istrativas e ju d iciárias em outras
províncias do país. Os oito deputados que serviram com o dip lo m ata (u m ), presidentes
de província (dois), m agistrados ju n to aos T rib u n ais d a R elação da Província ou ao
Suprem o T rib u n al de Ju stiça (dois) e com o oficiais superiores (três) eram membros de
grandes fam ílias baianas enobrecidas ou Integrantes da alta m agistratura: Aragão Bulcão,
V icente de A lm eida, Pinto G arcez, Pessoa da Silva, C alm o n du Pin e A lm eida, Moniz
Ferrão de Aragão. Instrução superior era absolutam ente necessária para perm itir que
am biciosos, oriundos de um m eio social m odesto, tivessem acesso ao poder.
Apesar de relativam ente escassas, as inform ações que possuo sobre o grau de
instrução dos parlam entares baianos m ostram que só 225 dos 554 deputados recensea
dos fizeram cursos universitários, N a m edida em que nos adiantam os no século, os
dados se tornam cada vez mais raros, pois as fontes se tornam mais imprecisas e os
arquivos da Assembléia Legislativa baiana têm pouquíssim a inform ação. De qualquer
maneira, sobretudo para os deputados do interior, uma boa instrução — que pressu
punha algum recurso fam iliar — era um a garantia de êxito. Às vezes, ela podia atenuar
as lim itações de um a origem relativam ente m odesta.
U v W l I V - O & T A D O : ORCAN.ZAÇA0 F. E x ERUOC OOS P ^ rfs
279
TABELA 60
E st u d o s S uperiores do s •
D e p u t a d o s P r o v in c ia is , 1 8 3 5 - 1 8 8 9
D ireita 152
M edicina 42
Sacerdócio 19
Outros* 9
T otal 222
T A B E L A 61
C u r s o s S u p e r io r e s d o s
D e p u ta d o s G e r a is , 1 8 2 6 —1 8 8 9
Direito 70
M edicina 12
Sacerdócio* 4
Outros 3
Total 89
(•) Só encontrei parlamentares que pertenciam ao clero nai trís
primeiras legislaturas.
C o m o sc vê, os parlam en tos eram m u ito hom ogêneos. As carreiras dos deputados
dependiam da fid elid ad e ao poder c de so lid aried ad es nascidas na escola e, em seguida,
no próprio parlam ento. H ab itu alm en te, entre eles eram escolhidos os m inistros, os
presidentes do C o nselho , os senadores e os conselheiros de Esrado. T er nascido no
Recôncavo ou na cap ita! ou ter ingressado, pelo casam ento, num a poderosa fam ília de
senhores de engenho eram trunfos suplem entares para fazer um a carreira de ambito
nacional.
L iv r o I V - O Em ^ do ^ cam zaçào e E xercício dos P oderes
281
Os S en ad o res
Para com pletar os dados sobre os parlam entares baianos, precisamos mencionar uma
casta ainda m a.s fechada: a dos senadores. Para um político brasileiro do período
imperial, a nom eação v italícia para o Senado era a suprem a recompensa. Por um lado,
implicava uma presença perm anente — e sem ônus eleitoral — na cena política do
país: por outro, era o cam in ho que conduzia à cooptação pata funções m inisteriais. A
nomeação era feira a partir de um a lista tríplice, elaborada por consenso nos meios
políticos da P rovíncia e su b m etid a pelo presidente ao im perador.
Todos os senadores eram ‘m in isteriáveis’, e o próprio recrutam ento senatorial —
recompensa para expen encias ad m im stiativ as anteriores — era feito com essa perspec
tiva. U m a nom eação para o Senado libertava o político de qualquer laço com os meios
políticos provinciais. Os escolhidos gostavam de usar o título ‘senador da nação’,
rejeitando assim , m u ito n itid am en te, a ideia de que permanecessem vinculados a uma
província de o rigem .9 A liás, era possível tornar-se senador por uma província sem ser
originário dela. '
No caso da B ah ia, no en tan to , n u n ca houve senador de fora. Entre 1826 e 1889,
quando se deram as nom eações para o Senado, houve 26 senadores pela Província,
todos baianos (houve, isso sím , baianos nom eados para representar outras províncias).
E, com um a exceção, todos os nom eados eram verdadeiros notáveis, oriundos das
famílias maís abastadas, com um a instrução superior ad qu irid a em Coim bra (mais de
metade) ou em escolas superiores brasileiras. Só Inácio M anuel da C unha Menezes,
Visconde de R io V erm elh o (1 7 7 9 -1 8 5 0 ) nao tin h a curso superior, mas era filho de
um antigo governador e cap itão -geral da B ahia, M an u el da C unh a Menezes, terceiro
Conde de L um iares, e tin h a sido personagem m uito im portante nas guerras pela
Independência.10
Os quinze senadores que estudaram em C oim bra pertenciam ao pessoal adm inis
trativo e político do A ntigo R egim e. H aviam servido ao Estado português, sobretudo
como m agistrados e, em seguida, a dom Pedro I, que os brasileiros sempre considera
ram como um m onarca p o rtu gu ês.11 Depois da Independência, a m aior parte deles
integrou o círculo de altos funcionários que assum iram responsabilidades m inisteriais
no novo Estado. ,
M anoel V ieira T osta, M arquês de M u ritib a, foi o últim o senador do cia os
co ím b ran o s’, c o n se rv a n d o s u a c a d e ira até 1 8 8 9 . C o im b ran o s ou form ados no
dezesseis sen ad o res b a ian o s a d e rira m ao P artid o C o n serv ad o r e dez ao i era tr
desses dez lib e ra is fo ram c o n se rv ad o res em alg u m m o m en to ). Isso re orça
que o Sen ad o sem p re foi u m b a lu a rte d o co n serv ad o rism o . O s lib erais representavam
3 1 ,2 % dos sen ad o res n o m e ad o s an tes de 1 8 5 6 e 5 0 ,0 % dos no m eados depois. Isso
in d ica, d e u m la d o , q u e o m o n a rc a d esejav a m aio r e q u ilíb rio , ao prom over, m esm o de
form a im p e rfe ita , a a lte rn â n c ia ; d e o u tro , in d ic a q u e entre os hom ens p o lín co s d a
B ahia en c o n trav am -se e sp írito s ab erto s às id éias novas. , .
B a h ia , S écu lo XIX
M as, de m odo geral, os po líticos d a B ahia eram m ais conservadores que liberais
denom inações que precisam ser m ais bem precisadas nos planos d o u trin ário e ideoló
gico. A form ação de partidos políticos aco nteceu na época das Regências (1831—
1 84 0), sobretudo na ú ltim a delas, exercida por A raújo L im a (1 8 3 7 ). Con$tituíram -se
então os dois partidos, C o nservador e L ib erai, q ue passaram a governar o país por
altern ân cia. Essa altern ân cia no governo teve duas exceções: d u ran te o período dito de
C o n ciliação , em q ue conservadores e lib erais go vern aram ju n to s (1 8 5 3 -1 8 5 7 ), e du
rante a existência da L iga Progressista, que go vern o u de 1862 a 1866.
O Partido C o nservador nasceu de u m a coalizão entre antigos m oderados e anti
gos conservadores, estab elecid a por u m a n tig o lib eral, B ernardo Pereira de Vascon-
cellos, com o propósito de refo rm ar as leis, ju lg ad as descen tralizado ras, impostas
pelo A to A d icio n al de 1 8 3 4 . O s defensores dessas leis organ izaram -se então no Par
tido Liberal. Essa b ip o larid ad e d a v id a p o lític a b rasileira teve, do ponto de vista
form al, duas m odificações im p o rtan tes, com a form ação do efêm ero Partido Pro
gressista, nascido d a L ig a P ro gressista em torno de 1 8 6 4 , e do P artido Republicano.
C om postos de liberais e conservadores d issid en tes, am bos resultaram do movimento
de con ciliação realizad o em 1853 sob a égid e dos conservadores. C onduzido por
N abuco de A raújo e Z acarias de G óis e V asconcelos (este ú ltim o , baian o), o Partido
Progressista ficou no governo de 1 86 2 a 1 8 6 6 , q u an d o foi dissolvido por causa de
dissensÕes intern as. A lgu n s de seus m em bros fo rm aram o novo P artido Liberal, ou
tros entraram no P artid o R ep u b lican o , fu n d ad o em 1 8 7 0 .13 A té o fim do Império,
o sistem a p erm an eceu trip a rtite , com o P artid o R ep u b lican o se opondo aos dois
partidos m o narquístas q ue se altern av am no poder. M as, incapazes de unificar suas
ações e sua d o u trin a, os rep u b lican o s n u n ca estiveram no poder, pelo menos até a
queda do Im p é rio .14
Q ue diferenças existiam entre os dois p artido s q ue d o m in aram a vida política
brasileira entre 1840 e 1889? E ntre os especialistas, três posições se destacam .
P rim eiram ente há aqueles q u e afirm am q ue a bipolarização conservadores-liberais
foi um a ficção, pois, nas questões fu n d am en tais, nada separava esses dois partidos.15
A vinculação a um ou a outro resultava m ais de com binações que estabeleciam perio
dicam ente a relação de força entre partido no governo e partido na oposição, que de
convicções ligadas a um a teoria p o lítica qualqu er. Conservadores e liberais tentavam
reforçar as oligarquias políticas que governavam o país, sem apresentar projeros de
sociedade c de governo capazes de m udar o curso dos aco ntecim en tos.16
A se g u n d a te n d ê n c ia a firm a q u e esses d o is p a rtid o s n ão re c ru tav a m seus m em bros
nas m esm as classes so ciais. M a s os três au ro res d essa tese d iv erg e m en tre si. R aym u n d o
F aoro c o n sid era o P artid o C o n se rv a d o r c o m o o p a rtid o dos co rp o s b u ro crático s do
Im p é rio , e n q u a n to os lib e ra is re p resen tav am os in teresses a g rá rio s, co n trário s ao m o
v im e n to c e n tra liz a d o r ap o ia d o p e la b u r o c r a c ia .17 A zevedo A m a ra l, p o r su a vez, consi
d era o P a rtid o C o n se rv ad o r c o m o o re p re se n tan te d o s in teresses ru ra is e o P artido
L ib eral co m o a voz d o s g ru p o s in te le c tu a is e d e o u tro s g ru p o s m a rg in a is em relação ao
U vao I\ O E s ta d o : Q » G M a ^ ' E E x e r c ic o d o s P o d e re s
Souza D antas, en tre outros. C riaram -se, assim , verdadeiras d in astias que dominaram
a v id a p o lítica das provín cias. Isso d em o n stra, m ais u m a vez, o quanto o recrutamento
dos hom ens p o lítico s ficava restrito a algu m as fam ílias. Eram as seguintes as funções
exercidas pelos senadores antes de sua no m eação, tom ando com o referência o grupo
profissional no qual cada um com eço u sua carreira: v in te m agistrados, um funcioná
rio, dois d ip lo m atas, um professor, um advogado e um p ro p rietário .
P o rtan to , a enorm e m aio ria dos senado res com eçou na v id a profissional como
m agistrado. M u ito s foram , em seg u id a , alto s fu n cio n ário s do M in istério das Finanças,
presidentes dc p ro vín cia ou m em b ro s do S u p rem o T rib u n a l de Ju stiça. Zacarias Góis
e V asconcelos, por exem p lo , foi p resid en te do C o n selh o em 1 8 6 2 , antes de entrar para
o Senado em 1 8 6 4 . A p resid ên cia do C o n selh o dc M in istro s foi criada em 1847. Até
1889, oito dos 2 6 senadores b aian o s o cu p aram esse cargo, eq u iv alen te ao de primeiro-
m in istro , d irig in d o onze dos trin ta m in istério s q ue se suced eram . D ois baianos presi
d iram os m in istério s q u e d u rara m m ais tem p o : Jo sé M a ria d a S ilv a Paranhos, Vis
con d e de R io B ranco, en tre 1871 e 1 8 7 5 , e Jo ão M a u ríc io W an d e rle y , Barão de
C o tejip e, en tre 1885 e 1 8 8 8 . R io B ran co , registre-se, era sen ad o r por M ato Grosso, e
não pela B ahia. O ito dos v in te m agistrad o s-sen ad o res eram filhos de proprietários
ru rais, em bo ra nem todos fossem senhores de en gen h o . A lgu n s eram m ais modestos,
com o, por exem p lo , A n gelo M u n iz d a S ilv a Ferraz, Barão de U ru g u aian a, cujo pai,
com o foi d ito , era a g ric u lto r d a região de V alen ça, no R ecôncavo.
Q u e etap as d ev iam ser perco rrid as en tre a m a g istratu ra e o acesso ao Senado?
P ergu n ta d ifíc il, se to m arm o s o gru p o de senado res com o um todo. A resposta fica
m ais fácil se separarm o s os ‘co im b ran o s’, n o m eado s antes de 1 8 5 6 , dos outros, nomea
dos depois dessa d ata. C o m o dissem os, esses ho m ens do A n tigo R egim e começaram
sua carreira d u ran te o p erío d o co lo n ial. Q u ato rze deles nasceram antes do ultimo
quarto do século X V III e só dois' nos p rim eiro s anos do século XIX. Entraram no
Senado por terem servido à C orre com d istin ção . V am o s segu ir a carreira de alguns
deles, cheias de lições.
T om em o s, por exem plo, os dois irm ãos C arn eiro de C am po s. Seu pai era portu
guês, o rigin ário do M in h o , “p ro p rietário ru ral", segundo os biógrafos.22 José Joa
q u im , o filh o m ais velho, nasceu em 1768. D estin ado ao serviço da Igreja, recebeu o
hábito da O rdem de São B ento — com o nom e de irm ão José de São Joaquim
8 dc dezem bro de 1782, d ia em q ue os baianos festejam com fausto e fervor a
Im aculada C onceição de M aria. M as sua vocação não era firm e, pois em 1797, após
ter estudado m atem ática, teologia e d ireito em C o im b ra, se tornou preceptor dos
filhos de dom R odrigo dc Souza C o u tin h o , hom em de Estado português. Essepresti
gloso patrocinador abriu os cam inhos para que José Jo aq uim fizesse um a típica car
reira de funcionário, prim eiro no Porto, no M in istério das Finanças, e em seguida, a
partir de 1815, no Brasil, no M in istério dos N egócios Estrangeiros, D urante o reina
do de dom Pedro I (1 8 2 2 -1 8 3 1 ), José Jo aq uim foi, sucessivam ente, membro do
Conselho de Estado, m inistro dos N egócios Estrangeiros e do Império (1823), prin
cipal redator da C arta C o n stitu cio n al de lR 7 á . .
(„ o cmque , r r fe. n o m c a ; 0 r dr = : ; : ; ; 0 :
C aravelas, e m .m stro d a Jr.srrça ern ,8 2 9 . Ele foi um dos rrês m em bros da R egênd
Provisoria que governou o B ras.l depois da abdicação de dom Pedro I. Em 1832
votou a rv o r u q u e o cargo de senador (osse vitalício e, depois, a favor do Ato
A dicional a C arta C o n stitu cio n al. Km 1834 dois i r « a ,
. . . . . ao is ano:> an tes dc m orrer (com 68
anos, sem dentar d escen den tes), vorou pela destitutção dc José Bonifácio de A ndrada
e Silva, rutor do jovem dom Pedro II.
Francisco, seu irm ão m ais m oço (1 7 7 6 -1 8 4 2 ), estudou direito em C oim bra
Chegou ao B rasil com o o im d o r-g e ra l d a com arca de Porto Seguro, onde foi juiz dos
órfãos entre 1815 e 1 8 2 1 . Em segu id a, foi nom eado, em Salvador, ju iz do T ribunal de
Relação e in ten d en te do ou ro . D u ran te a guerra de Independência da Bahia (1 8 2 2
1823), foi secretário da J u n ta do G overno Provisório e, em 1825, tendo sido nomeado
juiz no R io, d eixo u d e fin itiv a m e n te sua p ro vín cia natal. A posição do irm ão, oito anos
mais velho, teve, sem d ú v id a, g ran d e in flu ên cia em sua carreira. A liás, Francisco foi
considerado o v erd ad eiro red ato r da C a rta de 1824, atrib u íd a oficialm ente a José
Joaquim . A m bos fo ram n o m eado s senadores em 1826. Em 1830, Francisco assum iu
a chefia do M in isté rio dos N egócios E strangeiros e, em 1831, tornou-se juiz do
Suprem o T rib u n a l de Ju stiç a . E m bora fosse q u alificad o de ‘conservador', tom ou po
sições m u ito p ró xim as às do ‘lib e ra l’ Jo sé Jo aq u im , votando, por exem plo, a favor do
Senado v ita líc io e d a d estitu iç ão de José B onifácio com o tutor de dom Pedro II. Os
dois irm ãos tam b ém fo ram a favor d a Lei In terp retativ a do Ato A dicional de 1834,
votada em 1 8 4 0 . M as, co n trariam en te a seu irm ão, Francisco quis a m aioridade de
dom Pedro II em 1 8 4 0 . M o rre u coberto de honrarias em 1 8 4 2 .23
A trajetó ria de D o m in go s B orges de B arros foi bem diferente da dos irmãos
Carneiro de C am p o s. N ascid o em 1 7 7 ?, na paró q u ia de São Pedro do Rio Fundo, no
distrito açu careiro d e S an to A m aro do R ecôncavo, filho do coronel Francisco de
Barros, riq u íssim o sen h o r de en gen h o , e de L uiza C lara de Santa Rita, Domingos
estudou filo so fia em C o im b ra. O no m e de sua m ãe me leva a pensar que o sangue
africano tenh a v in d o por esse lad o (os Borges de Barros da geração de Dom ingos eram
T rancos da terra'). B acharel, ele v o lto u a Salvador em 1804, tornando-se diretor do
Passeio P úblico da cid ad e e, depois, professor de agricultura. Em 1814, aos 35 anos,
casou-se com u m a riq u íssim a v iú v a, M aria do C arm o G ouveia Portugal, nascida em
1795, filha de Pedro A lexan drin o de Souza Portugal. Deste casam ento nasceu, em
1816, Luiza M arg arid a P o rtu gal Borges de Barros, que se casou, em 1837, com Jean
Horace jo sep h E ugène, C onde de B arrai, M arquês de M ontferrat, p a rq u e s de a
Batie d'A rvillars, que conheceu d u ran te um a longa estadia na França A Condessa de
Barrai foi um a personagem m uito im portante na C orte de dom Pedro II, à qual se
in teg ro u em 1854 com o prcceptora das princesas reais Isabel e ^ o p o ld m a . U nida ao
• , , • > fin íss im a e dotada de inteligência
im perador por um a ‘am izade am orosa , essa mu
notável deixou u m a correspondência fascinante.
286 B a h ia , S é c u l o XIX
M as voltem os a seu pai que, de 1815 a 1821, fora eleito e reeleito vereador. Nesse
ano, foi enviado às C ortes de Lisboa, entre os representantes da C ap itan ia da Bahia
Ao v o ltar ao B rasil, elegeu-se para a C o n stitu in te de 1823. Suas posições cheias de
p rud ên cia foram recom pensadas por dom Pedro I, que o nom eou enviado extraordi
nário e m in istro p len ip o tcn ciário na F rança, onde perm aneceu de 1823 a 1828, quan
do se tornou senador, já com o títu lo (recebido cm 1825) de Barão da Pedra Branca.
M o rreu cm 1855- deixan d o , a sua filh a e a u m filho bastardo, vários engenhos.
C oberto de título s e de ho nras, D o m ingo s era fig u ra de destaque no Im pério, dign i
tário da O rdem da Rosa, G rã-C ru z da O rd em de C risto e V ead o r da C asa Imperial.
Ele foi um dos raros da velha g u a rd a ‘co im b ran a ’ q ue en fren taram em 1826 o sufrágio
de seus concidadãos, m as não exerceu o m an d ato por ter sido escolhido senador
(1 8 2 9 ).24 O s outros senadores eleito s foram M an o el dos San tos, M artin s Vallasques
(pelo M aran h ão ), C assian o E sp irid ião de M ello M atto s, M an o el A lves B ranco, José
C arlos de A lm eid a T orres, M an o el A n to n io G alvão, Gê A caiab a de M ontezum a,
Francisco G onçalves M a rtin s e M a n o e l V ie ira T o sta.
Q uan to aos senadores n o m ead o s en tre 1856 e 1889, todos estu d aram no Brasil e
todos eram bacharéis em d ire ito . C o m exceção de Z acarias de G óis e Vasconcelos,
professor da F acu ld ad e de D ireito de O lin d a, e de Pedro Leão, advogado e jornalista,
os senadores co m eçaram n a m a g istratu ra e in icia ram suas carreiras po líticas como
deputados às assem bléias P ro v in cial e G eral.
M an o el P in to de So u za D antas, cham ado C o n selh eiro D an tas, nasceu em 1831,
em Itap icu ru , no rico A greste b aian o . Seu p ai, M a u ríc io Jo sé de Souza, proprietário
rural abastado, era sobretudo o m arid o de C a ro lin a F rancisca de Souza D antas, filha
de um a poderosíssim a fa m ília d a região. Em 1 8 5 1 , M an o el se casou com A na A m ália
Josefm a B arata, de R ecife, on de o jovem estu dava d ireito . U m a vez bacharel, voltou a
Salvador onde foi, sucessivam ente, procurador de finanças, ju iz dos órfãos e promotor
ju n to ao procurador-geral. N ão passou pela A ssem bléia P ro vin cial, pois, em 1857, foi
eleito deputado à A ssem bléia G eral, onde p erm an eceu até 1881, a m enos dos anos
entre 1871 e 1877. Foi m in istro d a A gricu ltu ra, do C o m ércio e das O bras Públicas cm
1866, m inistro da Ju stiça e do Im pério em 1 8 8 0 , presidente do C onselho e chefe do
Partido Liberal em 1884. Fervoroso ab o licio n ista n u m a época em que o problem a da
escravidão exacerbava as paixões p o líticas, o conselheiro D antas esbarrou m inta opo
sição cada vez m ais forte, sendo obrigado a ceder seu lu gar a outro baiano, o Barão de
C otejipe, que liderava a ala conservadora. Ele m orreu cinco anos após a Proclamação
da R epública, cercado pelo respeito dc todos, que o consideravam figura proemiente
dessa alta classe política baiana, tão característica da ép o ca.^
O últim o senador baiano nom eado pelo im perador, em 1888, foi Luiz Antônio
Pereira franco , Barão dc Pereira Franco, nascido cm Salvador em 1826, filho de um
rico com erciante, cujas atividades, no entanto, deixavam a desejar. M as ele soube
casar-se, cm 1849, com Leonor Fclisbcrta A ccioli de Vasconcelos, cujo pai, também
m agistrado, juiz do T ribunal dc Relação da Bahia, m em bro de um a excelente fam ília
L[\'RO IV — o ESTA.no- O u r n - i v i , . - i
-------—~— - ' ___>: * E E xercício d o s P o d e r e s 287
batana. cuidou da carreira do genro. Foi uma carreira clássica. O jovem Luiz Antônio
toi, sucessivamente, ju iz municipal em Irará ( 1 8 4 8 - 1 850) e em Nazaré (1 8 5 0 - 1 8 5 5 )
depois juiz de direito em Feira de Santana ( 1 8 5 5 - 1 8 7 1 ) . De 18 48 a 18 6 3 foi suces
sivamente ele.to suplente de deputado provincial e deputado ptovincial De 18 5 7 a
1*7’ d' P « d° fa^ 7 btóiaGf a1' que"5o ° ’nterrom peu sua carreira de m a g t
trado; dc 1875 a 1877 foi )m z de d ireito em N iterói (RJ) e de 1887 a 1888
desem bargador da R elação da C orte. Foi m inistro da M arin h a duas vezes ( 1 8 7 0 - 1 8 7 1
e I S 7 5 - 1 8 7 8 ) , e m in istro da G uerra in terin o em 1 8 7 6 , O cargo senatorial, outorgado
em 1 8 8 8 , recom pensou suas atividades no cam po jurídico e no político, que não
foram intero m pidas pelo regim e republicano. A té sua morte ( 1 0 0 2 ) foi ministro do
Suprem o T rib u n al fed eral.26
Para o Im perador, as nom eações recom pensavam bons e leais serviços e conquis
tavam am igos nas adm in istraçõ es. A pequen a tab ela que segue dem onstra bem essa
estratégia.
TABELA 62
C argos O c u pa d o s pelo s S e n a d o r e s B a ia n o s , 1 8 2 6 -1 8 8 9
Cargos 1826-1840 1840-1889
Presidente do Conselho - 8
M inistro 3 15
Conselheiro de Estado 3 10
Deputado Gera! 1 16
Deputado provincial - 11
Conselheiro municipal - 4
M in ist r o s e P r e sid e n te s d o C o n s e l h o
TABELA 63 ■
P r o v ín c ia s de O r ig e m d o s M embros do G a b in e t e
durante o S e g u n d o I m p é r io , 1 8 4 0 -1 8 8 9 (% )
1840-1853 1857-1871 1873-1889
panhava de um a função p o licial, pois m u itas vezes os ju ízes eram delegados locais da
P olícia no lugarejo onde resid iam . E essa função p o licial era d a co m p etên cia direta d 0
Executivo e não do Ju d ic iá rio .
Entre 25 e 3 0 anos, se fosse eleito d ep u tad o , o jovem m agistrad o , que já represen
tava ao m esm o tem po os poderes Ju d ic iá rio e E xecutivo, era investido de um poder
legislativo. F req ü en tem en te, ocupava u m a cad eira na A ssem b léia P ro vin cial durante
várias legislaturas. N essa fase d e sua carreira, os laços co n stru íd o s com as grandes
fam ílias das regiões q u e representava p o d iam ter u m papel d eterm in an te. A carreira
po d ia ser u n icam en te lo cal, ou então u ltrap assar as fro n teiras d a P ro vín cia, segundo o
desenrolar de um jo go ch eio de n u an ces.
Por exem plo, um m agistrad o q u e fosse eleito d ep u tad o apenas u m a vez nunca
faria carreira na p o lític a e, p ro v av elm en te, nem n a m a g istratu ra. O m ais provável é
que estacionasse no posto de ju iz de d ire ito . E ntre os m agistrad o s eleito s várias vezes
para a A ssem b léia P ro v in cial, três tipos de carreira se a p resen tav am :
—A carreira apenas p ro v in cial, com g ran d e in flu ê n c ia n a so cied ad e lo cal. Integra
vam freq ü en tem en te a m esa d a A ssem b léia (com o secretário , v ice-p resid en te ou pre
sid en te), irm an d ad es religio sas, associações lite rá ria s e b en eficen tes. P resentes na capi
tal, em S alvado r, d u ra n te as sessões p arlam en tares, eles p o d iam p ro ssegu ir na carreira
de m agistrad o: os q ue a tin g ia m as m elho res posições te rm in a v a m suas carreiras como
desem bargadores do T rib u n a l da R elação, e sua n u m ero sa clien tela p o lítica increm entava
as fileiras do p artid o ao q u al p e rte n c iam .
—A carreira q ue u ltrap assava os lim ite s d a P ro v ín c ia , com a eleição p ara a Assem
b léia G eral, cu ja sede era no R io de Ja n e iro . F req ü en tem en te, esses m agistrado s torna
vam -se chefes de P o lícia de o u tra p ro v ín cia, in g ressav am em várias associações religio
sas e beneficentes, eram n o m eado s v ice-p resid en tes de suas p ro vín cias d e origem e,
depois, presidentes de o u tra p ro v ín cia. L á pelos q u a re n ta anos, to rn avam -se juízes do
T rib u n al da R elação. Aos 55 ou 60 anos, sua carreira na m a g istratu ra era então
coroada com u m a nom eação ao S u p rem o T rib u n a l, no R io , o n d e recebiam títulos de
nobreza, condecorações e outras h o n rarias.
— A carreira que usava a m a g istratu ra com o tram p o lim p ara a p o lítica. Juízes
m unicipais ou dc d ireito com m ais ou m enos 2 3 anos, entre 25 e 3 0 anos se tornavam
deputados provinciais e entre 30 e 3 5 anos eram eleitos para a A ssem bléia Geral.
Freqüentem ente reeleitos, tornavam -se con hecido s. Podiam então aceder à presidên
cia de um a lon gín qua província aos 35 ou 40 anos, antes de co n q u istar a chefia de um
m inistério ou um posto no C o nselho dc Estado ou no Senado. M u itas vezes a carreira
política interrom pia neste ponto a carreira ju ríd ica : dos treze baianos que foram
m inistros e m agistrados, dez se aposentaram com o desem bargadores do T ribunal da
Relação e três como m inistros do Suprem o T rib u n a l. A função m in isterial não podia
ser acum ulada com um alto posto na m agistratu ra, ao passo q u e não existia nenhum a
incom patibilidade entre as funções de ju iz de direito, de delegado de P olícia e de
deputado.
L im ío I V O E s t a d o : O r g a n iz a ç ã o e E x e r c íc io d o s P o d e r e s 291
A I g r e ja
CAPÍTUT.O 18
In t r o d u ç ã o
A p r o d ig io s a tr a n s f o r m a ç ã o q u e o c o rr e u n a v id a p o lít ic a , e c o n ô m ic a e s o c ia l do
O c id e n te no s é c u lo X IX fo rç o u a I g r e ja C a t ó lic a a m o d if ic a r -s e , te n d o em v is ta
re fo rç ar a a u t o r id a d e d o p a p a . O d e s m o r o n a m e n to d o A n tig o R e g im e a c a rre ta r a o
e n f r a q u e c im e n to g e r a l d a s r e g a lia s d e tip o g a lic a n o o u jo s e fis ta . A I g r e ja se lib e r
tav a d e seu s a n tig o s e n tr a v e s , a f ir m a n d o a p r o f u n d id a d e d a fé c a tó lic a e a n e c e s
sid a d e d e os p o d e re s le ig o s , d e fe n s o re s d a o r d e m s o c ia l, se c u rv a re m a n te as fo rças
e s p ir itu a is .
O refo rço d a a u to r id a d e do p a p a im p lic a v a u m e n fra q u e c im e n to do p o d er p o líti
co te m p o ral. M a s , d u ra n te o p o n tific a d o de P io IX ( 1 8 4 6 - 1 8 7 8 ) , a Ig reja se v iu
in v e stid a d e p o d eres ilim ita d o s no p la n o d a d o u trin a . I n q u ie ta co m as p o ssíveis co n
seq ü ên cias d a filo so fia d o sé c u lo X V III e d o lib e ra lis m o do sécu lo X IX , ela d e c id iu
fixar os p rin c íp io s de q u e n ão p o d ia a b rir m ão : o re su lta d o foi a e n c íc lic a Q u a n ta Cura
(1 8 6 4 ), s e g u id a d a S ylla b u s , “c a tá lo g o d o s erro s p rin c ip a is do no sso te m p o ”. N esta
ú ltim a — q u e os a d v ersário s tra n s fo rm a ra m n o c o m p ê n d io de o b scu ran tism o do
V atican o — n em to d o s os erro s fo ram c o n d e n a d o s p e la m esm a razão: algu n s eram
h eresias (co m o o p a n te ís m o , o n a tu r a lis m o e o ra c io n a lism o a b so lu to ), o u tro s d iziam
respeito a q u estõ es d e d is c ip lin a , às relaçõ es e n tre Ig reja e E stad o , ao casam en to dos
padres etc. P io XI v isav a e s se n c ia lm e n te o so c ialism o , a fran co -m aço n a ria e o lib era
lism o m o d ern o , sob to d as as suas fo rm as, a té m esm o as religio sas. Essa renovação da
d o u trin a foí c o m p le ta d a com a p ro clam a ção de do is d o g m as: o da Im acu lad a C o n cei
ção (1 8 5 4 ) c, so b retu d o , o d a in fa lib ilid a d e do p o n tífic e , d ecid id o no C o n c ilio do
V atic an o ( P a stor a etern u s, 1 8 7 0 ). N o m esm o m o m en to , a p erd a de seus estados o b ri
gou o p ap ad o a ab o n d o n ar suas p reo cup açõ es p o líticas,
Essas novas o rien taçõ es criaram um c lim a de in tra n s ig ê n c ia , q ue se trad u z iu
no triu n fo c a d a vez m ais n ítid o , so b retu d o en tre os bispos, de um u ltram o n ta-
n ísm o q u e su sc ito u em a lg u n s p aíses, com o o B rasil, m u itas d ific u ld ad e s. A Igreja
en tro u em c h o q u e com a S u íç a q u a n d o d a g u e rra de S o n d erb u n d (1 8 4 6 ), com a
295
296
B a h ia , Sf.cuLO XIX
A Tgreja b rasileira foi criada em com p leta subordinação ao Estado, num regim e
em que a proteção p ro m etid a às estruturas eclesiásticas e à vida religiosa era m al
eq uilib rad a, com um a in gerên cia opressiva do secular no sagrado. Segundo C aio Prado
Jú n io r, “por efeito do Padroado, a Igreja não gozou n u n ca no Brasil de indep endên cia
e auton om ia. O s negócios eclesiásticos da C o lô n ia sem pre estiveram nas m ãos do rei,
que deles se ocupava através do D ep artam en to de sua ad m in istração já citado acim a,
a M esa d a C o n sciên cia e O rd en s”.2
Integrada por seis teólogos e ju rista s, essa M esa foi criad a pelo governo português
em 1532 para a d m in istra r a v id a religio sa da C o lô n ia, passando a fu n cio n ar com o um a
espécie de d ep artam en to religio so d a ad m in istração geral, ou um m inistério do culto.
Suas relações com o rei giravam em torno d a gerên cia dos estabelecim entos de carid a
de, da in stitu ição de cap elas e h o sp itais, da fu n dação de ordens religiosas ou de
universidades, do resgate de cativ o s, d a criação de novas p aró q u ias, das nom eações de
todos os titu lares de cargos eclesiástico s e do tratam en to dc q u alq u er contencioso
jurídico relacio n ad o com assun tos religio so s.3 E ram , po rtan to, atrib uiçõ es m uito vas
tas, que co n feriam im p o rtân c ia co n sid erável a essa alta câm ara religiosa. A m aior parte
das suas decisões foi to m ad a na M etró p o le, po r hom ens que, m u ito freqüentem ente,
nunca estiveram em co n tato com a realid ad e e a v ivên cia da C o lô n ia.
A pós a In d ep en d ên cia e o estab elecim en to de um governo nacion al que instaurou
o regim e m o n árq u ico em 1 8 2 2 , a Igreja teve q ue en fren tar inúm eros problem as, tanto
nas relações com o E stado e os fiéis com o nas relações in tern as à p rópria in stituição , ou
seja, entre a h ie ra rq u ia eclesiástica e seu clero. O novo Im pério brasileiro reafirm ou o
Padroado real, co n firm o u o cato licism o com o religião do Estado e m anteve a paróquia
(circunscrição eclesiástica) com o u n id ad e ad m in istrativ a básica. M as exigiu que a
Igreja fosse to talm en te sub m issa ao E stado. A separação d efin itiv a entre as duas in sti
tuições viria, m ais tard e, no âm b ito de um v io len to co n flito , cheio de conseqüências
para os fiéis. C o n seq ü ên cias diferen tes, aliás, segundo o m eio social a que pertenciam .
A Igreja tam bém teve que resolver inúm eras questões referentes ao clero, para que
este pudesse exercer suas m issões esp iritu ais e sociais com d ign id ad e. A tarefa foi dura,
sobretudo porque o clero estava h ab itu ad o a um a d iscip lin a frouxa, adotando atitudes
freqüentem ente co n trárias às d a h ierarq u ia. O ra, nesse m om ento a Igreja precisava
arregim entar todas as suas forças para lu tar contra a ascensão do ateísm o e das doutri
nas heterodoxas,
Essas condições particulares que cercaram o estabelecim ento e a propagação da fé
católica no Brasil fazem com que as obras consagradas à Igreja apresenrem a im agem
de um a instituição passiva, subm issa ao poder tem poral, cúm plice das oligarquias
econômicas e sociais, responsável por tensões ç conflitos que perduram ainda hoje na
sociedade brasileira, incapaz dc sc libertar da autoridade do Estado e im por sua própria
trajetória,4 T rata-se de julgam entos severos, que acentuam os aspectos negativos da
ação da Igreja no Brasil. M as são anacrônicos, pois julgam séculos passados partindo
dc premissas e de critérios próprios às realidades contem porâneas.
298
B a h ia , S é c u lo XIX
Pode-se conseguir alívio de con sciên cia e d irig ir a ação a tu al num sentido preten-
sam ente expiatório através da catarse dos erros de um passado d elib eradam en te esva
ziado de q ualqu er especificidade. M as, seguin do essa trajetó ria, a Igreja corre o risco
de deixar com pletam ente de lado grande parte de sua h istó ria, estabelecendo uma
ruptura que desvaloriza a in stituição divin a que ela p ro clam a ser, assim com o todo um
conjunto de princípios dogm áticos, m orais e éticos q ue tem o dever de sustentar.
Com o crer num a Igreja que, através de seu m ea culpa, sem eia a d ú v id a entre os menos
preparados e m aís fracos e renega u m a áçao m u ltissecu lar?
Com o crer na p eren idade, na u n iversalid ad e dessa Igreja, que sem pre enquadrou
estreitam ente a fam ília brasileira, sua educação, sua saúde m oral e física, suas m anifes
tações coletivas? C ritica r sem nuances todo esse passado c obscurecer u m a trajetória
histórica, negar as sucessivas adaptações a u m a realid ad e sem pre diferen te e, sobretu
do, reduzir a im agem d a Igreja a seus traços de p assividade, subm issão e in ércia — ou
seja, de cu m p licid ad e com um poder q ue sem pre esteve ao lado dos opressores.
Parece ser perfeitam ente possível dar, à ação esp iritu al e tem po ral da Igreja C ató
lica, um a interpretação m ais po sitiva e m enos cu lp ad a. As obras recentes, com efeito,
deixam de inserir a evolução d a in stitu ição em u m a trip la perspectiva:
- Prim eira, a de seu contexto histórico. T ratava-se de u m a Igreja oficial, e o
Estado lhe im punha algum as coações, que evo luíram com o tem po, através de anuências
e recusas. As revoltas das autoridades eclesiásticas desem bocaram , no fim do século
XIX, na separação entre Igreja e Estado. M as, nas interp retaçõ es da ação da Igreja no
Brasil, im pressiona o caráter atem p oral. M esm o onde certos cortes cronológicos são
respeitados, o discurso perm anece in teiram en te fora do tem po.
- Segunda, a da posição d a Igreja (e daqueles q u e a serviam ) no d ebate fundam en
tal que opunha, no B rasil, opressores e op rim idos, livres e escravos, brancos, negros e
mestiços.
- Terceira, a da atitu d e da Igreja oficial d ian te das religiões m inoritárias — o
amm ism o, o islam ism o, o protestantism o — e das novas filosofias que se desenvolve
ram no século XIX.
Para estudar a ação e o destino da Igreja C ató lica no Brasil, os historiadores
propõem dois modelos cronológicos. No prim eiro, tam bém adotado por Tristão de
Athayde, o sociólogo baiano T hales de Azevedo distingue três períodos, definidos
pelo papel que a religião e a Igreja desem penharam na ordem civil e política do
Brasil. Para esses autores, o prim eiro período (1 5 0 0 -1 7 5 9 ) foi o da catequese, da
conversão dos pagãos ao cristianism o, essencialm ente obra dos jesuítas. O segundo,
marcado pelo regalismo (doutrina que defende a ingerência do chefe de Estado nas
questões religiosas), começou com a expulsão dos jesuítas (1759) e terminou com a
chamada Questão Religiosa, matriz do conflito entre Igreja e Estado (1872). Final
mente, no terceiro período (1 8 7 3 -1 8 9 1 ) começou a firm ar-se a independência da
Igreja em relação ao Estado, com a revolta dos bispos, que levou à separação definiti
va das duas instituições.^
L i v r o V - A I g r e ja 299
E m bora interessante, essa cro n o lo gia tem aspectos que não concordam com os
fatos: em p rim eiro lu gar, não é aceitável a afirm ação de que a expulsão dos jesuítas
interro m peu a conversão dos pagãos. N ão há dú vid a de que os m em bros da C o m p a
nh ia de Jesus d esem p en h aram um papel p rim o rd ial na catequese das populações
am erín d ias e african as, m as, de certo m odo, o trabalh o co n tin u o u , com outras ordens
religiosas e até com o clero secu lar. C o m efeito, foram enviados padres seculares para
a m aior p arte das ald eias q u e tin h am sido o u tro ra confiadas à adm inistração dos
jesu ítas, e nelas fu n d aram -se p aro q u ias. Padres seculares e regulares con tinuaram a
evangelizar os num ero so s african o s q ue chegavam ao país (no século XVII, 1,7 m ilhão
deles vieram de A n g o la e d a C o sta d a M in a ).6 Por ou tro lado , o regalism o com eçou a
ser contestado logo no in íc io d a segu n d a m etade do século XIX por um liberalism o
religioso q ue p ed ia, in ca n sav elm en te, a laicização do E stado.7 F in alm en te, essa crono
logia, por sua g e n e ralid a d e , nao leva em co n ta as diversas reform as feitas na instituição
eclesiástica, q ue lev aram à ro m an izaçao d a Igreja b rasileira e ao aum en to do núm ero
de padres seculares e regu lares de o rigem estran geira.
O segu n d o m o d elo ap resen tad o na H istória d a Igreja n o B rasil propõe tam bém
três cortes cro n o ló gico s, m as u n ic am e n te no q u e se refere ao século XIX. D e m odo
geral, eles co rresp o n d em aos q u e foram u tilizad o s pelos historiadores da época. No
prim eiro desses p erío do s (1 8 0 8 —1 8 4 0 ), d estaca-se o papel d a Igreja no processo de
em ancipação n a cio n al; no segu n d o ( 1 8 4 0 - 1 8 7 5 ), estuda-se a posição d a Igreja d iante
da form ação do E stado lib e ra l; no terceiro (1 8 7 5 - 1 8 8 8 ), tenta-se d efin ir a ação da
Igreja d u ran te a crise fin al do Im p ério . A pesar de algum as v an tagen s,8 essa cronologia
tem um gran d e in co n v en ien te: ela esm iu ça o processo histórico em fases dem asiada
m ente cu rtas, incapazes d e ressaltar m u tações im p o rtan tes, que se processam num
tem po m ais lo n go , m o vidas pelas novas forças ideoló gicas que orien taram a ação do
Estado, pelos p roblem as externos e intern os d a p ró p ria Igreja e pelo povo, com sua
vinculaçao e subm issão aos poderes do E stado e d a Igreja.
A chei litil propor u m a nova cron olo gia, redu zin do esse segundo modelo a dois
períodos: 1 8 2 2 -1 8 4 0 e 1 8 4 0 -1 8 8 8 . O p rim eiro corresponde, ao m esm o tem po, à
organização das novas estrutu ras do Estado brasileiro e à reorganização da Igreja
C atólica, o co rrida q u an d o se fez sen tir a necessidade de reform as, expressas na busca
de novas atitu des em relação ao E stado, a seu clero e aos fiéis. D urante esse prim eiro
período, a h ierarq u ia da Igreja se aproxim ou de Rom a para tentar liberta-se da presen
ça de um Estado dem asiad am en te opressor, com eçou a preparar m elhor o clero para
sua m issão, reform ou seus costum es e, enfim , procurou assegurar para si a direção das
num erosas funções que ela havia abandonado aos leigos. Entre 1822 e 1840 a Igreja
lançou os fundam entos de sua ação futura, conscientizou-se de sua própria existência
c quis afirm ar-se com o poder independente.
N o segundo período (1 8 4 0 —1888), aparecerem correntes favoraveis às idéias libe
rais e positivistas. Elas engendraram tendências políticas e ideológicas que contribuí
ram para a preservação do regim e im perial, mas tam bém prepararam sua queda. Nesse
300 B a h ia , S é c u lo XIX
novo clim a, a Igreja acabou de se rom anizar, aproxim ando-se ain d a m ais da Santa Sé,
e com pletou suas reform as interio res, que o b jetivaram a form ação in telectu al e moral
do clero. E ntretanto, ao se opor vigorosam ente à ingerência do poder civil no campo
esp iritu al, ela m ostrou u m a face até então desconhecida, que nem sem pre produziu,
ju n to ao povo, os efeitos desejados.
Ao afirm ar o desejo de se to rn ar in d ep en ten te do Estado, a Igreja não conseguiu
garan tir sua in flu ên cia sobre a população, co n trariad a com a perda de algum as prer
rogativas oriu n das d a época co lo n ial e, sobretudo, com a desco nfian ça dem onstrada
em relação à sua religio sid ad e e suas devoções. Estas en co n traram possibilidades de
expressão ju n to ao p ro testan tism o e aos culto s an im istas. C o m b atid o ardorosam ente
pela Igreja m as ap o iad o fo rtem ente p ela corren te u ltralib eral, o p lu ralism o religioso
acabou por se im p o r em d etrim en to do cato licism o , o u tro ra todo-poderoso.
T en d o com o pano de fu n do a divisão cro n o ló gica q u e proponho, m as co n tin u an
do a segu ir o curso da n arrativ a, os cap ítu lo s segu in tes tratarão d a evolução da Igreja
C ató lica b rasileira no século XIX. Sem p re que possível, m in h as análises tom arão como
exem plo a P ro víncia d a B ah ia. O tem a do p rim eiro cap ítu lo desta parte será as relações
entre Igreja e E stado, q ue colocaram frente a frente a a lta h iera rq u ia cató lica e as elites
dirigentes do país e giraram em torno do co m p o rtam en to d a Igreja, em todos os
cam pos de sua ativ id ad e. T en tarei m o strar com o, através de u m a evolução relativa
m ente rápida, a h ierarq u ia eclesiástica to m o u co n sciên cia de si p ró p ria e forjou um a
nova id en tid ad e para a Igreja. V erem os, em segu id a, com o essa nova identidad e foi
cap tad a pelas elites dirigen tes, torn an do-se fonte de v io len tas oposiçoes, que acarreta
ram a ru p tu ra entre as duas in stitu içõ es. E xporei, fin alm en te, a posição dos bispos
brasileiros em relação à escravidão e à A bolição.
O segundo cap ítulo será exclusivam en te consagrado ao clero secular. A bordarei os
tem as referentes à estru tu ra d a Igreja, ao recru tam en to do clero, à sua form ação, às
suas rendas e às suas atitu des d ian te d a h ierarq u ia eclesiástica e do poder tem poral.
D arei atenção especial à con sciên cia do clero sobre sua m issão sacerdotal e à m aneira
como a exercia.
A renovação da v id a m onástica é o objeto do terceiro cap ítulo , T endo entrado
em crise na segunda m etade do século X V III, as ordens religiosas atravessaram
longo período de decadência. M ais do que a falta de vocações, o poder tem poral foi
responsável pela persistência dessa situação, ao tom ar um a série de m edidas que vi
saram a apropriação, pelo Estado, dos bens do clero regular, julgados consideráveis.
Q ualquer doação esbarrava em interdições, e a adm issão de noviços foi proibida.
Por isso a renovação m onástica tardou tanto. D ependeu da chegada de religiosos
estrangeiros, que, numerosos após 1870, revitalizaram as ordens tradicionais deca^
dentes e criaram novas ordens, inexistentes na cena brasileira durante o período
colonial.
O quarto capítulo trata das manifestações de fé do povo de Deus, Veremos então
como o clero católico transm itia sua mensagem a pessoas que viviam realidades dife-
L iv r o V - A Ig r e ja 301
re n te s, s e p a r a d a s p o r e s ta tu to s le g a is , c o re s d e p e le , tr a d iç õ e s c u ltu r a is , tip o s d e v id a
m a te r ia l e g r a u s d e in s tr u ç ã o .
N o q u in t o c a p ít u lo , e s tu d a r e m o s a c o n c o r r ê n c ia fe ita à I g r e ja C a tó lic a p e la s o u
tras d o u t r in a s c ris tã s e c u lto s r e lig io s o s . N u m a p r im e ir a e ta p a , te n ta r e i e x p lic a r p o r
q u e o c lim a fo i fa v o rá v e l à e c lo s ã o d e n o v a s e x p re ssõ e s r e lig io s a s . E m s e g u id a , m o s tra
rei c o m o o u tr a s d o u t r in a s c r is tã s , a s s im o c o m o o Islã , te n ta r a m o c u p a r u m esp aço
re lig io so o u tr o r a e x c lu s iv o d a I g r e ja C a t ó lic a . T e n t a r e i, f in a lm e n te , d e m o n s tr a r co m o
e p o r q u e e m e r g ir a m o s c u lto s d ito s a f r o - b r a s ile ir o s , tã o a n tig o s q u a n to a e sc ra v id ã o ,
e c o m o c o n s e g u ir a m t o r n a r - s e v ito r io s o s n a c o n c o r r ê n c ia c o m o c a to lic is m o a p a r tir
d o sé c u lo X IX .
CAPÍTULO 19
H ie r a r q u i a E c l e s iá s t ic a e P oder
P o l ít ic o n o S é c u l o XIX
( 1822- 1890)
502
L iv r o V — A I gueja 303
jad as com o novos in stru m e n to s das elite s, essas id éias, d o g m as e credos p e rm itia m q u e
se co m b atesse a Ig reja no q u e ela p o ssu ía de m ais p ro fu n d o , com o o b jetivo de
d im in u ir su a in flu ê n c ia m u ltis s e c u la r. A lu ta não se d esen ro lo u apenas no p lan o
id eo ló gico o u d o u trin á rio . A q u e stão do p o d er esteve fo rtem en te presente. A q uem e
com o o b e d e cer — ao E stado o u à Ig reja — foi o p ro b lem a de u m povo in teiro . A té
hoje a h is to rio g ra fia b ra s ile ira e sca m o teo u esse asp ecto d a q u estão .
dade c de toda postura sacra, conduz a um a im agem que nem sempre corresponde
àquela transm itida por docum entos pouco analisados até hoje. Voltarem os a esse
assum o quando tratarm os do clero. No conflito entre Igreja c Estado, os bispos e
alguns membros em inentes do capítulo é que tom avam posição. Q ue consciência
àn h am de sua missão? C om o assim ilavam o Estado? Com o com preendiam o clero e
os fiéis? Com o evoluiu sua atitude durante esses setenta anos de história da Igreja
C atólica no Brasil?
À época da Independência, com um a população de cerca de quatro milhões de
habitantes, o Brasil tinha um arcebispado (B ahia), seis bispados (O lin da, Rio de
Janeiro, Sáo Luís, Belém, M arian a e São Paulo), duas prelazias (G oiás e C uiabá), 650
a 700 paróquias e algum as centenas de capelas. Apesar de recrutados quase sempre no
clero m etropolitano, os bispos não pensavam nem agiam da m esm a m aneira. Repre
sentavam mais os interesses da C o rte que os interesses pastorais, e o Estado só exigia
deles que mantivessem a d iscip lin a do clero e a ob ediência do povo. A prova disso é
que, mais cedo ou m ais tarde, eram cham ados a desem penhar algum papel político nos
negócios da C olônia. Por conseguinte, sua atividade pastoral estava ligad a às próprias
lim itações da função episcopal, im postas pelo Padroado. '
Considerados nobres, ligados à Coroa portuguesa, os bispos do Brasil viam-se fre
qüentemente obrigados ao exercício dc funções adm inistrativas, como substituir o go-
vernador-geral em caso de vacância. Os que mostravam certa independência no cumpri
mento de suas obrigações pastorais eram afastados pela autoridade real. As sedes episcopais
permaneciam, por vezes, vagas durante m uito tempo, fosse por razões políticas (às vezes
Lisboa não conseguia escolher um novo bispo), fosse porque o bispo nomeado resolvia
tomar posse de sua diocese por procuração, retardando em meses, ou mesmo anos, sua
chegada de além-m ar. Alguns acabavam por renunciar à perigosa viagem Portugal-
Brasit. Este absenteísmo parece ter sido freqüente. Na verdade, o direito canônico obri
gava os membros do clero secular e regular — bispos, cônegos, párocos, abades c priores
— a habitar na sede de seu posto, mas a necessidade de os concílios reiterarem sucessiva
mente essa obrigação demonstra como ela era descum prida. Na França, só 110 século
XVII a 'residência’ passou a fazer parte dos costumes sacerdotais, generalizando-sc ape
nas no século XVIII, No Brasil, o período de vacância entre dois bispos sucessivos
durava, em média, três ou quatro anos, mas houve casos dc intervalos muito mais longos,
como o que ocorreu após a partida dc dom Pedro da Silva Sampaio, bispo da Bahia entre
1634 e 1649: seu sucessor chegou 23 anos depois, lãurantc ausências tão prolongadas,
a instituição eclesiástica não podia funcionar normalmente, já que se via privada dc
dois poderes exclusivos dos bispos: o poder dc ordenar c o poder jurídico eclesiástico.
O primeiro define a confirmação c a ordem (na ausência dos bispos, nenhum padre
pode ser ordenado). O segundo prevê que eles governem o povo cristão, fiscalizem o
ensino da doutrina, legislem, administrem e julguem causas eclesiásticas/’
Educados em Portugal, os bispos recebiam formação teológica marcada pela men
talidade e espírito regalistas c pelo jansenismo da Universidade de Coimbra, onde a
L evro V - A I greja 305
m aior parte estudava. D e m odo geral, o episcopado não se opôs ao m ovim ento de
Independência (a exceção ficou por conta do vigário geral da diocese do Pará e futuro
arcebispo da B ahia, dom R o m ualdo A ntôn io de Seixas, que se declarou, às Cortes de
Lisboa, con trario à Indep endên cia em 1 82 1). M as, depois de 1822, surgiram dois
tipos de problem as novos: os que diziam respeito às relações entre a Igreja e Estado,
que deviam ser defin idas, e os que se referiam à reform a da própria Igreja.
O prim eiro problem a foi o do Padroado: seria legítim o e ju ridicam en te aceitável
que o im p erado r do B rasil, país agora in d ep en den te, continuasse a ter um privilégio
que fora con cedido ao rei de P ortugal? O poder respondia afirm ativam ente. Com
efeito, o artigo 5 d a C o n stitu içã o de 1 82 4 declarava: “a Igreja C ató lica A postólica
Rom ana co n tin u ará a ser a relig ião do Im pério. T odas as outras religiões são p erm iti
das, com a co n d ição de q ue seu culto seja dom éstico ou privado, em casas a isso
destinadas, m as q u e não ten h am as form as exteriores de um tem p lo .”7 Ao dizer 'con
tin u ará’, a C o n stitu içã o do novo p aís afirm ava a determ inação de m anter o statu quo
a n te e, com ele, todos os p riv ilégio s do passado. P ara con trab alançar o privilégio
concedido ao cato licism o , a C a rta d eclarava no parágrafo 14 do artigo 102 que todos
os decretos co n ciliares, cartas ap o stó licas e outros regu lam en to s eclesiásticos deveriam
receber o b en ep lácito im p eria l antes de serem d ifu n d id o s.8 C o m essas m edidas, o novo
Estado deixava claro q u e desejava m a n te r com a S an ta Sé relações privilegiadas, nos
m oldes que v ig iam em P o rtu gal. M as, ao m esm o tem po, reivin dicava o direito de
im por lim ites à ação d a Igreja, afastan do a p o ssib ilidade de in gerên cia do' papa nos
negócios brasileiro s.
Para que seus d ireito s fossem reconhecidos e pudesse negociar um a concordata, o
im perador dom Pedro I en v io u a R o m a, com o m in istro extraordinário, o m onsenhor
Francisco C o rreia V id ig a l. N ascido no R io de Jan eiro em 1766, este u ltim o abraçara
ainda jovem a carreira eclesiástica, m as, form ado tam bém em d ireito , exercia em
paralelo a profissão de advogado. T in h a idéias m u ito m odernas — até heterodoxas
-—, sobretudo no q ue d izia respeito às relações do Estado com Rom a, Considerava,
por exem plo, q ue a sup rem acia e a in falib ilid ad e do papa eram doutrinas que fora
de R om a não se su sten tam ”. A lém disso, estabelecia clara distinção entre o papado e
a Igreja C ató lica, con siderando o prim eiro como um a instituição puram ente p o líti
ca.7 Os resultados dessa longa e laboriosa m issão foram o reconhecim ento do Brasil
como nação soberana e a bula Preteclara P ortu galliã , datada de m aio de 1827, na qual
Eeão XII concedia ao governo brasileiro os mesmos direitos e privilégios acordados
com os reis portugueses desde o século XVI (observemos que a Assembléia Geral
brasileira ju lgo u in ú til o conteúdo da bula, porque, segundo a m aioria dos deputa
dos, os direitos do im perador sobre a adm inistração da Igreja eram inerentes ao seu
cargo e provinham do texto constitucional de 1824).
N a verdade, Rom a concedeu esses direitos ao im perador, mas nao assinou um a
concordata, de m odo que o reconhecim ento tinha, a seus olhos, caráter temporário.
A Santa Sé designou um representante, um núncio apostólico, mas suas atribuições se
306 B a h ia , Secm.o XIX
lim itaram a apreciar pedidos de dispensa de votos religiosos. Isso convinha ao governo,
que prom overa cam panha visando a extin guir as ordens religiosas. M as a presença de
um núncio inspirou m uita desconfiança nos liberais, que o consideraram como repre
sentante de um poder estrangeiro disposto a interferir em negócios que, mesmo sendo
de cunho religioso, eram de exclusiva com petência do Estado.
Essas prim eiras m edidas defin iram , de um lado, as relações entre Igreja e Estado
e, de outro, as do Estado com a San ta Sé. Aos olhos do poder, legitim aram seu papel
de direção dos negócios eclesiásticos. O governo passou a agir com o chefe religioso
incontestável. E Rom a tolerou sua atitu d e. A C o n stitu ição foi com pletada com uma
im pressionante série de leis, decretos e p o rtarias, sobretudo no que d izia respeito ao
funcionam ento do Ju d iciário : após ter sup rim id o a Legação, trib u n al de terceira ins
tância que funcionava sob a égide da N u n ciatu ra, o governo se outorgou o direito de
ju lg ar as causas eclesiásticas, que deviam subm eter-se “em segunda e ú ltim a instância
ao tribu nal de apelação com p etente”. Essa m ed id a a tin g ia d iretam en te a competência
ju ríd ica da Igreja. Por outro lado, o C ó digo P enal do Im pério considerava crime
contra a soberania nacional q u alq u er “concurso a u m a au to rid ad e estrangeira, dentro
ou fora do Im pério, sem um a leg ítim a perm issão, para im p etrar graças espirituais,
distinções ou privilégios na hierarquia eclesiástica, ou autorização de um ato religioso”.11
Ao reafirm ar-se o Padroado, exigir-se o ben eplácito im p erial para qualquer ato
concernente à v id a esp iritu al e m aterial d a Igreja e d eterm in ar-se a possibilidade de
recursos à C o roa para d irim ir divergências entre u m a au to rid ad e eclesiástica e um
terceiro, criou-se u m a situação em que a Igreja não só p erm an ecia subm issa ao poder
tem poral, mas tam bém era im p ed id a de exercer livrem en te sua m issão. Por outro lado,
esse m odus v iv en d i — “novo dentro do an tig o ” — só podia gerar atritos entre um
poder civil que q u eria conservar sua p reem in ên cia e um a h ierarq u ia eclesiásrica cada
vez m ais desejosa de conduzir seu próprio destino.
Os problemas da reform a diziam respeito, essencialm ente, à preparação e moralidade
do clero e à instrução religiosa do povo. M as as soluções previstas estiveram longe de
obter unanim idade ju n to a um clero d iv id id o sobre com o tratar as relações com o
Estado e a Santa Sé c m ais preocupado com atividades políticas do que com sua missão
pastoral. Até as questões concernentes à vida in terio r da Igreja passaram a ser discuti
das em praça pública.
Por volta de 1825, a parte m ais ativa do clero sc dividiu politicam ente em dois
grupos: o dos reformadores de tendência liberal, form ado por padres que pertenciam
ao baíxo clcro, e o dos reformadores conservadores, cujos m embros se reuniam em
torno dos bispos. O prim eiro era liderado pelos padres Diogo A ntônio Feijó, chefe
pragm ático do m ovim ento, e M anuel Joaquim do A m aral G urgel, o principal teórico.
As biografias desses dois chefes religiosos paulistas apresentam m uita semelhança.
Embora filhos ilegítim os, receberam boa educação, habilitando-se a brilhar na política
e no m agistério. Eram dotados de forte vocação religiosa e compartilhavam uma
mesma forma de ver a realidade do país. Foram grandes defensores da abolição do
L iv r o V - A I g reja 307
go v ern o contra R o m a.16 N egando a p rim azia do papa, rad icalizan d o suas posições,
os reform adores liberais propunham a co n stitu ição de um a Igreja N acio n al, cuja au
toridade suprem a seria confiada a um co n cilio , tam bém n acio n al.
A p o siçã o dos r e fo rm a d o re s c o n s e rv a d o re s e ra d ia m e tr a lm e n te o p o sta.
U ltram ontanos, eles eram a favor de u m a estreita colabo ração com R om a e reconhe
ciam o papa com o chefe do cristian ism o cató lico . A deptos do p rin cíp io de igualdade
entre os poderes esp iritu al e tem p o ral, desejavam u m a larga au to n o m ia da Igreja,
sobretudo no que d izia respeito às questões esp iritu ais. D efen d id a com vigor, essa
posição só podia ser fonte de co n flito s, já q ue o E stado tin h a co n seguido o reconheci
m ento de seus direitos sobre a d ireção dos negócios da Igreja. Esses reformadores
consideravam que a au to rid ad e su p rem a d a Igreja d evia ser exercid a pelos bispos,
sucessores dos apóstolos, sem p a rtilh a . F avoráveis às an tigas estru tu ras institucionais
da Igreja, eram in im ig o s dos q u e pregavam a in tro d u ção de elem ento s novos, que
diziam respeito sobretudo a dois pro b lem as: o celib ato dos padres e a extinção das
ordens regulares. A discussão fico u ra p id am en te p ú b lica, já q ue os debates tiveram
lugar em plen a A ssem bléia G eral e até m esm o em alg u m as assem bléias provinciais.
Os dois grupos desejavam reform as capazes de co n ferir u m a nova personalidade à
Igreja. A intenção era a m esm a, m as os m eios de realiz á-la d iv erg iam de m odo estranho.
Q ue R e f o r m a s pa r a o C lero B r a s il e ir o ?
H om ens do século m ais do que hom ens da Igreja, os padres representavam, entre
tanto, um a parte im po rtan te da elite intelectual da nova nação, sendo chamados a
participar ativam ente da v id a política. Funcionários de Estado e deputados, eram
solicitados a posicionar-se sobre questões referentes à autonom ia da Igreja diante do
Estado e tom ar atitudes sobre problem as que incidiam sobre o funcionam ento interno
da instituição eclesiástica, da qual eram os servidores. Conservadores e liberais reco
nheciam o caráter am bíguo da situação do clero, o que os m otivava a propor profun
das reform as. As questões do celibato e da extinção das ordens religiosas ajudaram a
m ostrar a u rgência de restabelecer o esplendor e a dign idade da Igreja.
D esde os prim órdios a questão do celibato d iv id iu clero e leigos. N a form a de uma
pergunta im provisada pelo deputado baiano A ntôn io Ferreira França, m édico de pro
fissão, o problem a foi colocado na A ssem bléia Geral em 1827. Retom ou-se a discussão
em 1834, a p artir de p ropo sta do p arlam en tar baiano, que surpreende por sua concisão
e rudeza: “que o nosso clero se case e que os religiosos e religiosas desapareçam de
nosso m eio ”, disse em sessão p arlam en tar, abrindo longa polêm ica que prendeu a
atenção do pú blico , torn ou-se u m dos assuntos preferidos da im prensa e suscitou a
produção de m uitos panfletos.
No cam po dos reform adores conservadores, num erosos leigos — como José da
Silva Lisboa, o V isconde de C a iru -— saíram em defesa do arcebispo da B ahia, dom
Rom ualdo A n tô n io de Seixas, e do bispo do M aran h ão , dom M arcos A ntônio de
Sousa, porta-vozes da ortodoxia. Procurando abordar os aspectos teológicos, ju ríd i
cos e históricos d a questão , eles se baseavam nas decisões do C oncilio de Trento,
cuja validade só foi reco n h ecid a pelo Estado brasileiro em novem bro de 1827, com
três séculos de atraso em relação à Igreja. Em suas M em órias, o arcebispo da Bahia
descreveu um a sessão p arlam en tar em que o padre D iogo Feijó defendeu a abolição
do celibato: “N o fim d a sessão, tom ei a palavra e m e opus vigorosam ente à célebre
dissertação que propusera a revogação da an tiga e venerável discip lina do celibato.
Fazendo alusão a Erasmo — que observou que a Reform a de Lutero tinha um ar
de com édia, porque tu d o devia conduzir ao casam ento — eu lam entei que se pu
desse fazer entre nós a m esm a observação, concluindo assim os trabalhos da sessão
Com um ato verdadeiram ente côm ico e rid ícu lo .”20 Para esses conservadores, a re
forma moral do clero passava pela reform a geral dos costum es, por uma formação
verdadeiram ente religiosa dentro dos sem inários e por um a rigorosa seleção dos
candidatos ao sacerdócio.21
Com o vim os, os adeptos da extinção do celibato clerical tinham como expoente o
padre Diogo A ntônio Feijó, que unia em torno de si boa parte do clero de São Paulo
e numerosos leigos. Defendiam que a reforma moral do clero passava pela abolição do
celibato: “Estando certo dc que a lei do celibato, através de uma experiência ininterrupta
de quinze séculos, produziu a im oralidade num a classe de cidadãos encarregados do
ensino da m oral pública e que por essa razão sua missão é não somente inútil como
prejudicial, quando os povos constatam em sua conduta o desmentido de sua doutrina
310 B a h ia , S é c u l o XIX
( ...) é então dever da A ssem bléia G eral retirar a seus servidores públicos toda ocasião
que os torna in ú teis ou nocivos à sociedade. Su p o n do igu alm en te que a Assem bléia
G eral revogue o im p ed im en to da O rdem m as que a Igreja, ao m esm o tem po em que
reconheça a validade do casam ento dos padres, co n tin u e a dem iti-los e até a excomungá-
los, é evidente que esse choque entre a concepção do poder tem p o ral e a proibição do
poder esp iritual deve p ro d u zir m u rm ú rio s, fo m en tar partido s e acabar por perturbar
a paz pública. A A ssem bléia G eral, em vez de revogar o im p ed im en to da O rdem , não
som ente pode, mas deve então suspen der seu b en ep lácito às leis referentes ao celibato,
para que elas nao possam se to rn ar im p o sitivas no Im pério do B rasil.”22
Para os reform adores lib erais, o celib ato não h av ía provado seus m éritos. A hipo
crisia que se in stalara entre os sacerdotes a tin g ia as bases m o rais d a sociedade. Pôr fim
ao celibato eq ü iv alia a prestar u m im enso serviço aos cristãos. O E stado, por interm é
dio do P arlam ento , d evia ag ir nesse sen tid o , já q ue o celib ato nao tin h a fundam ento
teológico: era apenas u m a lei de d ireito eclesiástico . O recurso ao E stado, convidado
a legislar sobre essa q uestão essen cialm en te in te rn a à Igreja e de caráter universal,
dem onstra claram en te o q u an to a ala rad ical do clero estava d isp o sta a ab d icar de seus
direitos, con tan to que pudesse a tin g ir seu o b jetivo .
Apesar de veem entes, os debates foram in satisfató rio s e se ab ran d aram com rapi
dez. Os espíritos não estavam p rep arados p ara en fren tar esse tip o de problem a, que
voltou à p au ta sete anos d ep o is.2^ P arece-m e necessário tra ta r a questão no contexto
m ais geral q u e agitav a a p o lític a d a época: a co n testação p a rlam en tar sobre os tratados
assinados com P ortugal, In g laterra e F ran ça, a discussão sobre abolição do tráfico de
escravos, a falência do B anco do B rasil, a o rgan ização dos órgãos de adm inistração
m u n icip al e ju d ic iá ria e, sobretudo, a oposição das correntes lib erais à p o lítica autori
tária de dom Pedro I, que se m an ifesto u em u m a sucessão de m o vim ento s sediciosos.24
A discussão m udou de tom ao ser reto m ad a em 1 8 3 4 . N ão se falo u m ais em abolir
o celibato, mas em dispensar aqueles q ue fizessem so licitação específica nesse sentido.
Por outro lado, não se cogitou m ais de solução n acio n al, pois essa proposta só foi
apresentada pela diocese de São P aulo; as dispensas deveriam p erm itir ao bispo orde
nar até pessoas casadas, “segundo o exem plo d a Igreja grega e dos cristãos reform a
dos A5 Aberta na A ssem bléia P ro vin cial de São P aulo, essa discussão foi objeto de urna
representação entregue pelos parlam entares ao bispo local, dom M anuel Joaquim
Gonçalves de A ndrade, que a enviou à apreciação do cap ítulo . Ela se baseava em
numerosos argum entos: a dispensa do celibato era necessária para o bem -estar espiri
tual dos fiéis e a u tilid ad e da Igreja, o que in flu iria na prosperidade da pátria; a
conduta im oral do clero era um obstáculo à elevação espiritual do povo, de modo que
o casam ento dos padres corrigiria os m ales existentes c serviria de exem plo aos celiba
tários leigos, para que csccs tam bém fossem atraídos ao casam ento; o Estado se benefi- -
ciaria do aum ento no núm ero de casam entos, que aju d aria a aum entar a população do
país; a m edida contava com o apoio d a opinião pública; o exercício do ministério
sacerdotal exigia um a consciência pura, c a dispensa do celibato, estabelecendo a
L iv ro V - a I g r e ja 311
decência do cu lto , faria cessar o escândalo; a m edida p erm itiria tam bém resolver o
problem a da escassez dc padres, pois os casados poderiam ser ordenados e grande
núm ero de hom ens v en ceria sua h esitação .26
O parecer do cap ítu lo foi favorável à dispensa, mas dom Jo aq u im preferiu subm e
ter o caso ao m inistro d a ju s tiç a , A u relian o de Sousa O liv eira, por receio de abrir um a
“brecha no d ireito can ô n ico ”. Por essa v ia, o debate ganh ou dim ensão nacional, já que
o m inistro pediu a o p in ião do arcebispo da B ah ia e da C om issão E clesiástica da
Assem bléia G eral.
O arcebispo da B ah ia e p rim az d a Igreja do B rasil, dom R om ualdo A ntônio de
Seixas, p erm an eceu fiel às id éias q u e expressara em 1827, época da p rim eira discussão.
Refutou os argu m en to s em favor da d isp en sa d a lei do celib ato , negando que ela fosse
o único m eio de im p e d ir o escân dalo d a in co n tin ên cia dos padres. Para o arcebispo, a
m oralização do clero passava por três ponto s: a reform a m o ral da sociedade brasileira,
o fortalecim ento dos sem in ário s diocesan os e, en fim , a rigorosa seleção dos candidatos
ao sacerdócio: "O m eio de elevar o clero do estado abjeto e d ep rim en te em que se
encontra nao reside no casam en to , m as, antes de tu d o , na reform a dos costum es
públicos, p o rq ue os m in istro s d a Igreja, provindos do m eio secular e nele vivendo, não
podem d eixar de p a rtic ip a r m ais ou m enos d a corrup ção geral, com o todos os outros
hom ens, sejam eles celib atário s ou casados { ...). Em segundo lugar, um a educação
cuidada e ad ap tad a aos fins a se q u e propõe e que, form ando-os na ciência e na
piedade, torne sua vocação in d u b itá v el, bem com o sua cap acidade para o santo m in is
tério. Foi neste esp írito q u e a Igreja in ic io u os sem in ário s eclesiásticos, que os padres
de T rento (C o n cilio ) reco m en d am com o o m eio m ais eficaz para preservar da propa
gação dos vícios a ju v e n tu d e q ue se d estin a ao estado eclesiástico, inspirando-lhe esta
pureza de costum es q ue ele exige. O eclesiástico que, em um bom sem inário, teve
contato estreito com as letras, q ue foi educado em u m a d iscip lin a regular, não é,
habitualm ente, tão vicioso e d esam p arad o com o aquele que une a ignorância aos
hábitos de u m a v id a in teiram en te m u n d a n a .” F in alm en te, o arcebispo da Bahia defen
dia a idéia de que toda ordenação deveria ser precedida por um exam e detalhado dos
candidatos: “Ao a d m itirem os can didato s à ordenação, os bispos devem ser rigorosa
mente escrupulosos. Som en te devem aceitar aqueles que, m ediante aprendizado em
sem inários e co n d u ta irrepreensível, provem que são anim ados por um verdadeiro
espírito eclesiástico, c não aqueles q u e dão provas equívocas de um a aplicação assídua.
Q ualquer in du lgên cia nesta m atéria é altam ente perigosa. “7
Encontram os, nesses três pontos, um resum o do program a reformista em preendi
do pela alta h ierarq uia da Igreja — os cham ados bispos reformadores nos anos
1840. M ais tarde esse program a foi com pletado pela criação de conferências eclesiás
ticas e pela introdução de novas ordens m issionárias c educativas. As posições assum i
das por dom R om ualdo m ostram claram ente que, no espírito da alta hierarquia, a
reforma da Igreja devia partir dc um a visão que transcendia o m undo eclesiástico, o
que correspondia perfeitam ente ao espírito do C oncilio de Trento, reavivado em
3 l2 B a h ia , S é c u l o XIX
quase toda parte, àquela época, no âm bito da cristan dade cató lica. A ativ id ad e pastoral
estava condicionada pela form ação esp iritual an terio r dos sacerdotes.
A Com issão Eclesiástica da A ssem bléia G eral foi favorável à reapresentação da
Assem bléia Provincial de São Paulo. M as deixou ao bispo de São P aulo o cuidado
de tom ar a decisão fin al, dando-lh e todo o a p o io .28 N a verd ad e, apesar desses deba
tes prelim inares, a abolição do celibato clerical nao foi ob jeto de discussão pública
na Assem bléia G eral. C o n tin u o u a ser objeto de considerações detalh adas no pro
jeto da nova constituição eclesiástica, apresen tado pelos padres reform adores paulis
tas em 1835.
Apesar de não pretender tornar-se u m m o delo p ara a reform a in tern a d a Igreja, o
projeto, m uito abrangente, exp rim iu as intenções desse grup o de reform adores radicais
e, por essa via, foi de encontro às preocupações de to d a a Igreja C a tó lic a brasileira. A
intenção dos reform adores p au listas era de q u e a no va co n stitu ição substituísse a
elaborada pela A rquidiocese da B ah ia no in íc io do século X V III e ad o tad a em seguida
por todas as dioceses brasileiras. D u ran te o perío do co lo n ial, dois sínodos diocesanos
haviam sido convocados pelo q uarto bispo do B rasil ( 1 6 0 0 - 1 6 1 8 ), dom C onstantino
Barradas, e pelo arcebispo d a B ah ia (1 7 0 2 - 1 7 2 2 ), dom Seb astião M o n teiro da Vide.
Os artigos da co n stitu ição red igid a pelo p rim eiro sínodo n u n ca foram integralm ente
publicados, caindo em desuso. O B rasil co n tin u o u a o b edecer às constituições de
Lisboa. Com o segundo sínodo, foram fin alm en te p ro m u lgad as, em 1707, as C onsti
tuições P rim eiras do A rcebíspado d a B ah ia. A dotadas por todas as dioceses brasileiras,
elas perm aneceram em vigor até o fim do século XIX. Jo ão C am ilo de O liveira Torres
constatou sua im po rtân cia, ao escrever: “A a n tig a sociedade b rasileira era essencial
m ente sagrada, as leis da Igreja eram o ficialm en te recon hecidas pelo E s ta d o ...”29
Os m em bros da C om issão E clesiástica q u e trab alh aram no p rojeto pau lista de
1835 desejavam o seguinte: restabelecer o an tig o esp len do r e a d ig n id ad e da Igreja;
fazer desaparecerem os abusos “q ue o tem po in tro d u z nas m elhores instituiçõ es”;
realizar reformas disciplinares que estivessem em h arm o n ia com o E vangelho, a pureza
da doutrina e a d iscip lin a dos prim eiros séculos do cristian ism o ; au x iliar o bispo no
exercício de seu m unus pastoral através de um conselho de padres (presbitério), subs
tituindo o capítulo; sim plificar o processo ju d iciário eclesiástico; fazer do padre um ser
m oralm ente sadio, cu ltu ralm en te apto a exercer seu m in istério , financeira e politica
mente independente, graças à instituição de um a caixa eclesiástica que o ajudaria.30
Duas observações sobressaem. Prim eira: o objetivo prin cipal era a reforma dos
costumes dc bispos, padres c díáconos (ou seja, a reform a da Tgreja passava pela
reforma dc seus m inistros). Segunda: ao an u n ciarem esse objetivo principal, os
reformadores paulistas fizeram coro com o discurso da outra facção do clero. M as, se
o objetivo cra o mesmo, os meios para alcançá-lo divergiam : para uns, a reforma
deveria passar, antes dc tudo, pela reforma da moral pública; para outros, a solução
passava pela abolição da lei do celibato. O pensam ento do arcebispo da Bahia, dom
Romualdo, era representativo da prim eira corrente: “É necessário recorrer a outros
L iv ro V - A I g r e ja 313
m eios: creio q ue o p rim eiro séria m elh o rar o sistem a de educação p articu lar e público,
preservando a ju v e n tu d e dos erros c dos vícios cu jo veneno lhe é su tilm en te ad m in is
trado por tan to s escrito s ím p io s e liccncio so s, e im p rim ir, assim , em suas jovens alm as,
hábitos de v irtu d e e de m oral religio sa, sem os q u ais cairão in faliv elm en te as m elhores
leis e in stitu içõ es. S eg u n d o o gran d e L cib n itz, o p rin cip al m eio de reform ar o m úndo
é a ed ucação : d ign o s rep resen tan tes do sacerd ó cio c o n trib u iriam , através de seu éxem -
plo, à retorm a dos co stum es p ú b lic o s.”31
E m bora não estivesse iso lad o do resto, o p ro b lem a do celibato era im portante.
Todas as reform as c u ltu ra is, fin an ceiras, p o lítico -eclesiats e pastorais propostás pelos
reform istas p au listas d e p en d iam da so lu ção desse problem a. A liás, o silêncio que en
cobriu esse p ro jeto d a c o n stitu iç ã o eclesiástica só pode ser explicado pela inquietação
dem o n strad a pelo b isp o de São P au lo e pelos p o lítico s leigos da P rovíncia. O prim eiro
nunca d eu se g u im en to ao p arecer, no e n ta n to favorável, expresso p ela C om issão Ecle
siástica d a A ssem b léia G eral; e os segu n d o s evitaram colo car em p au tá, duran te as
sessões p arlam en tares, o p ro jeto dc co n stitu ição ! Os espíritos a in d a não tin h am am a
d u recid o b astan te p a ra a ce ita re m co m o p rin cíp io co n d u to r d a reform a u m a solução
con sid erad a h erética . A e n c íc lic a M ira re Vos, p u b lica d a em 1832 por G regório XVI,
condenava o d esejo expresso p o r alg u n s eclesiástico s, que, “esquecendo sua d ign id ad e
e condição e arrastad o s p ela an sied ad e do desejo , ch egaram a tal ponto de libertinagem
que ousam p ed ir p u b lic a m e n te e com in sistên cia aos P ríncip es a abolição desta im po
sição d isc ip lin a r (o c e lib a to )”. Este p arágrafo visava, sem d ú v id a, o padre Feijó e os
outros ‘ noivos’ p erten cen tes ao clero b rasileiro , segu n d o a p ito resca expressão de dom
R om ualdo A n tô n io de S eix as.32
A posição u ltra -re g a lísta expressa por esse grup o de reform adores só podía trazer
preocupações p ara u m a classe p o lític a d o m in ad a pelos conservadores e in im ig a de
tudo o que pudesse levar a excessos. M as outros aco ntecim en tos co n trib u íram para
preservar o silên cio em to m o do p ro jeto de co n stitu ição eclesiástica. As discussões
sobre a situ ação m aterial do clero em 1 8 3 1 , po r exem plo, resultaram na m anutenção
do s tatu quo: os sacerdotes co n tin u aram a ser fu n cio n ário s do Estado, e o projeto de
um a caixa eclesiástica não foi v o tad o .33 O segundo aco ntecim en to foi o conflito entre
o Estado b rasileiro c a S an ta Sé cm torno da in d icação , em 1833, do padre A ntônio
M aría dc M o ira para o bispado do Rio de Jan eiro . Recusado pela Santa Sé, o padre
M oira foi o b rigado a ren u n ciar em 1838. Esse conflito con tribuiu para afrouxar os
laços entre a h ierarq u ia da Igreja C ató lica, que professava um regaiism o m oderado, e
o Estado. D efensores da Santa Sé, os bispos viam com desconfiança tudo o que
pudesse con trib u ir para au m en tar a ingerência do Estado nos negócios religiosos. Os
reformadores paulistas, ao contrário, contavam com o Estado para apoiar suas propostas.
Em 1837, o governo da Província dc São Paulo, com o acordo do bispo diocesano,
aprovou o regulam ento concernente ao capítulo-catedral, seguindo as normas regalistas
mais estritas, q u e não levavam cm conta as proposras de estabelecim ento de um
p resbyterium , em conform idade ao que determ inavam a linha tradicional do Concilio
314 B a h ia , S é c u l o X IX
lojas maçònicas levoo a Igreja Católica do Brasil a uma hosulidade que desempenhou
papel d ete rm in a n te q u an d o da Q u estão dos Bispos, em 1872.
O E p is c o p a d o B r a s il e ir o e o E sta d o :
da A pa r e n t e S u b m is s ã o à R e v o lta A berta (1840-1890)
Essa segu n d a fase foi m arcad a p ela ‘ ro m an ização ’ d a Igreja, que se tornou menos
nacional. E sboçou-se en tão u m am p lo m o vim ento em favor d a au to n o m ia em relação
ao E stado, a firm a n d o -se q u e os b rasileiro s eram , an tes de m ais nada, "católicos rom a
nos” e não "cató lico s do C o n selh o do E stad o ”. A Igreja se tornou m ais intransigente
em m atéria de o rto d o x ia. A p o stu ra de ‘d o n a d a v erd ad e7 foi reforçada depois da
proclam ação, em 1 8 7 0 , d o d o g m a d a in fa lib ilid a d e do p ap a, defen dido ardorosam ente
pelo ep isco p ad o brasileir.o. Este tam b ém su sten tav a que a verdade era sem pre católica,
e o erro, sem p re lib e ra l e p ro testan te. Essas posições rad icais fizeram da Igreja um a
in stitu ição m ilita n te . E n tre os bispos, p red o m in av a a id é ia de u m a vasta conspiração
d irigid a co n tra a Igreja, q u e d evia ser co m b atid a a q u alq u er preço. É claro que tal
com bate era e m in e n te m e n te co n servad o r, d irig id o co n tra as idéias liberais, “novidades
nocivas do sé cu lo ”. C o m o d o n a d a verdade, a Igreja devia com b ater o “m undo de
erros”, q u e e n co n tra v a eco no governo e era estim u lad o por ele. Isso exigia autonom ia.
Dom V ita l, bispo de O lin d a , um dos p rin cip ais personagens da Q uestão Religiosa,
proclam ava c ate g o ric a m e n te : “O s p rín cip es e os m onarcas são ovelhas de Jesus Cristo
e não seus pasto res; são filh os d a S an ta M a d re Igreja e não seus pais; são súditos e não
prelados.”35 Essa asp iração p o r a u to n o m ia e o desejo de afirm ar a universalidade da
Igreja C a tó lic a c o n d u z iu o ep isco p ado a u m a u n ião m ais ín tim a com Rom a, o centro
da ortodoxia.
Em 1 8 7 0 , 57 b rasileiro s (dezoito de P ernam buco, oito do C eará, oito do Rio
G rande do N o rte, sete d a B ah ia, um d a P araíba, um de Sergipe, doze do Rio G rande
do Sul c dois dc S an ta C a ta rin a ) já estudavam no S em in ário Latino-A m ericano de
Rom a A 1 A ação dc Pio IX tam bém in flu iu m u ito nessa reaproxim ação; para estreitar as
relações, cie ch am o u os bispos a Rom a em três ocasiões: a proclam ação do dogma da
Im aculada C o n ceição (1 8 5 4 ), a celebração do XIX C en tenário da M orte dos Apósto
los Pedro e Paulo (1 8 6 7 ) c a reunião do C oncilio do V aticano (1 8 6 9 -1 8 7 0 ). Finalmente,
a ínvasão dos Estados p o n tificais c sua perda pela Santa Sé despertaram um movimen
to de so lid aried ad e, inclusive com coletas nas igrejas para aju d ar o papa, apresentado
como vítim a dc in ju stiças. A romani/.ação da Igreja provocou m aior hostilidade dos
meios liberais, q ue não viam com bons olhos essa aproxim ação com a Santa Sé.
T enho que abrir parciitcsis aqu i, para esclarecer qual a situação da Igreja por
volta da década de 1870, qual sua influência no conjunto da populaçao e por que
essa Igreja suscitou nos m eios liberais um a hostilidade que a con uziu a atitu es
pol iticam ente m ilitan tes.
316
B a h ia , S é c u l o XIX
U ma I g r e ja so b T utela
Por volta de 1870, a Igreja C a tó lica b rasileira tin h a u m a arqu id io cese e onze dioceses.
D urante o S egu ndo Im pério ( 1 8 4 0 - 1 8 8 9 ), n u m a época em q ue o país já tin h a 14,3
m ilhões de h ab itan tes, só du as dioceses foram criad as, a de D iam an tin a (M G ) e a do
C eará. A dom A n tô n io de M aced o C o sta, bispo do P ará, q ue p ed iu a divisão de sua
im ensa diocese, dom Pedro II resp o n d eu q ue ele p ró p rio a d m in istra v a u m território
m aior que toda a A m azô n ia!37 ‘
Em com pensação, n in gu ém p o d ia acu sar o im p erad o r de escolher bispos incom pe
tentes, já que a San ta Sé aceito u sem restrições todos os in dicado s. C o m o vim os, entre
esses bispos reinava u m espírito reform ista, que ab ran gia todas as dioceses, sobretudo
com a colaboração dos cap uch inh os, dos lazaristas e de m u itas congregações femininas
que se estabeleceram no B rasil a p artir de m eados do século XIX. Esse vento reformista
foi, entretanto, fonte de m uitas tensões entre u m a Igreja q ue se dizia herdeira distante do
C o ncilio de T ren to e u m governo que, antes de m ais n ad a, q u eria ser visto com o liberal.
As reform as alm ejad as p ela h ie ra rq u ia en v o lv iam so b retu d o o clero, m as se torna
vam difíceis por cau sa d a d ep en d ên cia d a Igreja. A p en as o E stado estava autorizado a
nom ear padres e criar novas p aró q u ias. C a b ia a cad a bispo ap resen tar candidatos,
geralm en te selecionados através de exam es, ap resen tad o s em grup o s de três e listados
por ordem de preferência. A co m p an h ad a do cu r r icu lu m v ita e dos can d id ato s e de um a
carta do bispo ju stifican d o a esco lha, a lista era e n v iad a ao im p erad o r, q u e por vezes
não levava em con ta a in d icação e n o m eav a, p o r exem p lo , o ú ltim o colocado ou
m esm o alguém q ue não fora co g itad o , o q u e in co m o d av a os prelados.
C onscientes das d ificu ld ad es d eco rren tes dessa d ep en d ên cia, os bispos procura
ram ad q u irir, pelo m enos, u m a a u to n o m ia e sp iritu a l q ue lhes p erm itisse assum ir, em
relação ao clero, u m statu s su p erio r àq u ele o cu p ado p ela au to rid ad e tem po ral. M as,
sem desencadear u m a oposição fro n tal a seus bispos, o clero freq ü en tem en te adotou
atitudes incom patíveis com o novo esp írito q ue a Igreja ten tava im po r.
C om novos decretos, o E stado d o m in av a cad a vez m ais a Igreja: em m aio de 1855,
o governo reforçou sua po stura co n tra as orden s regu lares, p u b lican d o um a circular
que suspendeu o funcio nam ento dos no viciados; em p rin cíp io provisória, a m edida
vigorou durante dezenas de anos, com o se tivesse por objetivo extin gu ir as ordens.
U m a p o rtaria p u b licad a em o u tu b ro de 1 85 9 reg u lam en to u a co n stitu ição do
patrim ônio que q u alq u er can didaro ao sacerdóçío devia ter para ser ordenado: daí em
diante, esse patrim ônio passou scr descontado da côngrua recebida pelo padre (e pago
pelo Estado). Em 1862, os bispos passaram tam bém a ter residência obrigatória,
dependendo de perm issão im perial para sair de suas dioceses. Em 1863, a nomeação
de professores para os sem inários passou a ser sub m etida à aprovação do im perador,
que desejava exercer controle sobre certas disciplinas.
M as foi a lei n° 1.191, de 28 de m arço de 1857, que provocou os maiores
protestos: ela regia a com petência, a interposição, o efeito e a forma do julgam ento
L iv ro V- A I g r e ja
3 17
de recursos à C oroa. O poder tem poral tornou-se juiz de atos eclesiásticos O pará
grafo 3° do artigo 1° declarava que cabia recurso à Coroa sempre que houvesse vio
lência notória no exercício do poder esp iritual, suspendendo assim o direito natural
ou os Cânones da Igreja C a tó lica .38 Em 1866, dom A ntônio de M acedo Costa bispo
do Pará, resum iu a situação da Igreja; “O governo ingere-se em tudo e quer decidir
sobre tudo ( .. .) . E assim vão os avisos, os decretos, as consultas dos magistrados
seculares su b stitu in d o pouco a pouco os cânones da Igreja.”39 A ingerência do Esta
do na vida esp iritu al da Igreja só p o d ia provocar união e protestos por parte dos
prelados: “A catequese, a resid ên cia dos párocos, o noviciado dos conventos, a adm i
nistração das igrejas deles, os estatutos das catedrais e dos sem inários, a organização
que se lhe deve dar e até os nom es que lhes com petem , as condições que se devem
exigir para a adm issão às ordens — tu d o isto o G overno ju lg a ser da sua alçada”,
escreveu em 1863 dom M aced o C o sta, co n cluin d o : “Escravidão, e escravidão igno-
m iniosa, é o q ue q u ereis im p o r, com vossas teorias de Estado pagão, de Estado sem
Deus, de Estado fo nte e critério de todos os direitos, absorvendo o cidadão todo
inteiro { ...). E scravidão d u ra e ign o m in io sa é esse Estado civil de m itra e báculo,
governando a I g r e ja ...”40
P r á t ic a s R e l i g i o s a s e P o l í t i c a s d a E l it e L e ig a
A oposição entre Ig reja e E stado foi alim en tad a pelas posições doutrinárias da elite
leiga do país. De m odo geral, povo e elites não eram católicos no sentido estrito da
doutrina ortodoxa. O ‘país le g a l’ se declarava católico, mas o ‘país real’ vivia à margem
da fé rom ana. M a jo ritaria m e n te ign orante e iletrado, o povo vivia com um a religião
que m antinh a relação quase sensível com D eus e os santos, m aterializados em im a
gens, ramos e escapulários. As pessoas se recom endavam aos santos de sua devoção,
único recurso disponível d ian te das dificuldades e opressões de que eram vítim as no
cotidiano. A traídas por m istério s, apreciavam estórias de m ilagres, principalm ente
quando estavam ligad as a curas, o que, aliás, ain d a hoje é atestado pelos milhares de
ex-votos que ornam as ‘salas dos m ilagres’ de m uitos santuários. Os populares parti
cipavam pouco dos sacram entos. Confissões e com unhões eram raras fora do ciclo
pascoal, O batism o servia m ais para inserir a crian ça na sociedade civil do que como
sinal dc que havia nascido um a nova criatura de Deus. A religião do povo era mais
uma religião de paixão que de ressurreição. Ela se manifestava melhor numa procissão
do Senhor M orto que no T riu n fo E ucarístico. 1
O papel do padre era relativam ente pouco im portante, já que a religiosi a
popular se apoiava sobretudo cm orientações leigas (rezadeiras de terços, be ^
etc.) ou em im agens m ilagrosas c outros objetos protetores (me as, ros^
escapulários, fitinhas etc.) munidos dc poder suficiente para resolver todas as situações.
Para o povo, a Igreja era “a propriedade dos padres”; ela era vista mais como expressão
318 B a h ia , S é c u l o X IX
da lei do que com o in term ediária na relação pessoal com D eus, N as palavras do padre
Jú lio M aria, um dos m ais im portantes teólogos brasileiros do fim do século XIX, o
catolicism o estava reduzido a “cerim ônias que não edificam , a devoções que não
apuram a esp iritualidade, a novenórios que não revelam fervor, a procissões que ape
nas divertem , a festas que não aproveitam nem dão gló ria a D eu s.”43
No m eio desse povo ignorante e iletrado , cu ja religio sidade in q u ietava os meios
clericais, destacava-se um pequeno núm ero de pessoas cultas e instruídas. U m a boa
m aioria dessa elite era cató lica por h áb ito , por tradição e por conveniência social.44
U m a m ino ria ín fim a tin h a acesso à esp iritu alid ad e da Igreja e seguia fielm ente a
orientação dos prelados, tornando-se para eles, nos m om entos difíceis, um apoio
apreciado.45 Essa m in o ria co m p artilh av a os ideais u ltram o n tan o s do neocatolicísm o,
que afirm ava a sup rem acia papal e se in su rg ia co n tra a id éia de um Estado sem
religião, isto é, leigo e n eu tro .46
No outro grupo, duas ten d ên cias se d elin eavam ; u m a, regalista, predom inante na
prim eira m etade do scculo XIX, pregava a união dos poderes esp iritu ais e temporais,
concedendo de fato sup rem acia ao E stado sobre a Igreja; outra, u ltralib eral, tentava
obter do Estado um verdadeiro lib eralism o religio so . Esta ten d ên cia era form ada por
liberais, republicanos e positivistas. Estes, adeptos da R ep ú b lica, consideravam o Es
tado como o ponto cu lm in an te da sociedade e não p o d iam aceitar a proposta de uma
Igreja que se colocava acim a das in stitu içõ es seculares. A atitu d e dos positivistas,
porém , foi m uito m enos rad ical e m u ito m ais am b íg u a q u e a dos liberais. N a prática,
os positivistas adotaram com o m issão su b stitu ir a velha fé da população católica por
um novo credo, um a religião cien tífica e h u m an a. E nquanto os lib erais lutavam aber
tam ente contra a 1im agem u ltram o n tan a d a Igreja, os po sitivistas se lançaram numa
política racionalista, baseada nos en sinam ento s de A uguste C om te.
Em sua lu ta contra os lib erais, os po sitivistas se apoiavam em alguns pontos
essenciais da d o u trin a da Igreja, com o d ireito de propriedade, proteção à fam ília e
m oralidade pública. Eles estim ulavam a particip ação da Igreja n a v id a pública, mas
com a condição de que ela e o Estado se separassem . A ceitavam um a vasta participação
da Igreja na vida social, mas contavam tirar proveito da tradição católica do povo
brasileiro para im p lan tar sem m u ita d ificu ld ad e seu próprio projeto de um a sociedade ■
leiga, com um governo au to ritário e racional. Enfim , os positivistas seguiam uma
estratégia na qual a Igreja servia de instrum ento para sua penetração nas camadas
populares, razão pela qual evitavam qualqu er tipo de conflito com ela.47
Houve confronto sobretudo com os ultraliberais, que defendiam , em relação à
Igreja, um a política de Estado ain d a mais tem ida e execrada pelos católicos do que a
inspirada pelos princípios e prática regalistas. Pregavam a laicização do Estado e a
secularização das instituições públicas c privadas. No plano dos princípios, proclama
vam a neutralidade do Estado em m atéria dc religião e, como conseqüência lógica, a
separação das duas instituições. D ebatidas na imprensa, essas idéias foram objeto de
vários projetos apresenrados nas casas legislativas. A m açonaria, por sua vez, tomou
L ivr o V - A Igreja 319
pane no com bate a favor da liberdade religiosa e do afastam ento da Igreja brasileira em
relação a R om a e às ordens religiosas estrangeiras. Entre elas, a C o m p an h ia de Jesus era
especialm ente visada. 1 T ratava-se, sobretudo, dc libertar o país de q u alq u er influência
clerical. C uriosa atitu d e, q u an d e se sabe que, nessa época, todo bom m açom era, antes
de tudo, bom cató lico (o u , pelo m enos, pensava que era).
Para executar esse projeto, os u ltralib erais lideraram um a dupla ação: no plano
ideológico, apoiaram e foram apoiados por correntes de pensam ento hostis à filosofia
e à d outrina cristãs, com o o po sitivism o , o m ateriaiism o haeckelíano, o naturalism o
criticista, o d an v in ism o e o ev o lu cio n ism o sp en cerian o ,49 cujas teorias eram estudadas
nas faculdades de d ireito e em outras escolas superiores do país, além de abertam ente
discutidas em in ú m ero s pan fleto s e na im p ren sa. Q ual era a a titu d e da Igreja diante
dessa agitação e sp iritu a l, q u e aliás se in tegrav a perfeitam en te ao processo de m oderni
zação do E stado b rasileiro , visan d o à refo rm u lação dos esquem as e m odelos de com
portam ento e à m u d an ça de seus valores m o rais?50
Além de co n d en ar esses sistem as filosóficos e as correntes po líticas que os apoia
vam, ela se apresen tava com o defensora d a au to rid ad e, d ian te de um a liberdade exces
siva; do statu q u o , d ia n te d a b u sca caó tica de u m a nova ordem ; da tradição, diante de
inovações sem pre p erig o sas.51 Era u m a a titu d e q ue levava T avares Bastos a in citar a
que todos se levantassem p ara co m b ater “o in im ig o invisível e calado q ue nos persegue
nas trevas. Ele se ch a m a esp írito c lerical, isto é, cadáver do passado. Somos o espírito
liberal, isto é, os artesãos do fu tu ro .”52
A estratégia u ltralíb era i lan çava m ão de todos os m eios para atin g ir o ‘público
esclarecido’. Suas idéias eram d ifu n d id as po r artigos de jo rn ais, pela publicação de
livros e, sob retu do , p ela discussão em club es, salões, escolas e parlam entos. A isso,
acrescentavam -se as cam p an h as lid erad as pelo baian o R u i Barbosa e por T ito Franco
de A lm eida, sem falar n aq u elas, agressivas, de um S ald an h a M arin h o ou de um Tavares
Bastos.53 Em 1874, u m a representação apresentada à A ssem bléia Geral pelos ultraliberais
Tavares Bastos, Q u in tin o B ocaiúva, V ieira Ferreira, F.J. de Lcmos e J. do C outo
C outinho resum ia as pretensões dessa corrente: in teira liberdade e igualdade para
todos os cultos; abolição da Igreja oficial e sua em ancipação do Estado, com supressão
dc seus privilégios; ensino p ú b lico separado do ensino religioso; instituição do casa
mento civil ob rigatório ; registro civil dos nascim entos, casam entos e óbitos; seculari-
zação dos cem itérios.
Es.sc con jun to dc reivindicações era reforçado por com portam entos julgados revo
lucionários pelos ultram o ntan os, porque visavam a sccularizar a política c, por esta via,
“anular a influência po lítica do clcro ”.54 A crescente laicização do Estado, entretanto,
não decorria unicam ente de que os liberais desejassem im por seus princípios. Dois
outros fatores pesavam m uito nessa orientação: a im igração de estrangeiros não cató
licos e os problem as escolares. .
Por volta da década de 1 870, a necessidade de m ão-de-obra era cada vez m aior,
sobretudo na agricultu ra. Finda a im igração africana forçada, a Europa tornou-se o
B a h ia , S é c u l o XIX
320
Antes da explosão da Q uestão dos Bispos em 1872, o Estado vetou obstinadam en
te todos os projetos apresentados pelos ultraliberais. O im perador considerava a sepa
ração um a valam idade que devia ser evitada a qualquer custo; só o statu quo podia
garantir a paz e a ordem so cial.'* Sobre esse ponto a atitude do Estado coincidiu com a
da Igreja, hostil a q u alq u er separação; hierarquia e leigos católicos lutavam pelo fim da
rurela do Estado sobre a Igreja, mas defendiam o princípio de união entre as duas
instituições. A Igreja, aliás, sem pre apoiou essa posição com firm eza (depois, eia afir
mou que a separação foi im posta pelo poder tem poral). Em sua pastoral coletiva de
1890, quando era im in en te a separação, os bispos brasileiros defenderam que a inde
pendência da Igreja d ian te do Estado não se podia traduzir em separação: uEm nome
da ordem social, em nom e da paz p ú b lica, em nom e da concórdia entre os cidadãos,
em nome dos direito s da co n sciên cia, nós, católicos, rejeitam os a separação entre a
Içreja e o Estado; exigim o s a u n ião en tre os dois poderes.
A paz entre a Igreja e Estado foi possível en q u an to ninguém defendeu as prerroga
tivas da p rim eira fren te à proteção sufocante do segundo e de suas intervenções na
cam po e sp iritu al. A Q u estão R eligio sa, ou Q uestão dos Bispos, serviu para esclarecei
contradições e m al-en ten d id o s q ue já existiam entre as duas instituições.
Q u fa tã o R e l ig io sa o u Q u e stã o d o s B isp o s
A historiografia trad icio n al apresen tou a Q uestão R eligiosa com o um conflito entre
bispos brasileiros c a m aço n aria. Esta ú ltim a, sem dú vida, desem penhou im portante
papel na vida p ú b lica do país e nessa q uestão .00 M as hoje a interpretação acim a foi
abandonada cm prol de u m a an álise m ais am p la e m ais rica, que vê no conflito entre
igreja e Estado a expressão b rasileira da oposição universal entre liberalism o triunfante
e ultram o n tan ism o conservador e in tran sigen te,^ 1 A Q uestão R eligiosa, no entanto,
marcou uma ru p tu ra en tre os destinos da Igreja C ató lica e da m onarquia no Brasil,
pois enfraqueceu esta ú ltim a e co n trib u iu para desacreditar, até mesmo entre os cató
licos, a união das duas in stitu içõ es.162 _
O conflito com eçou em 18 7 2 , q uando dom Pedro M aria de Lacerda, bispo do Rio
de Janeiro, suspendeu o padre maçom A lm eida M artins, que fora orador oficial de
utrta festa organizada pela loja do Cirande O rien te do L aviadio em comemoração à Lei
do V entre Livre, p rom ulgada cm 28 de setem bro de 1871. O hom enageado fora o
Visconde dc Rio B ranco, presidente do Conselho dc M inistros, autor da let e grao-
mestre da m açonaria brasileira. Esta reagiu h punição com um manifesto, publicado
em abril de 1872, defendendo o prin cípio dc qnc um maçom podia s c r ' u m bom
católico: o fato dc pertencer a um a loja não excluía o compromisso com a Igreja. O
m anifesto afirm ava que a suspensão do padre expressava o espírito uítram om ano e
jesuíta da Igreja, disposta a se opor à m açonaria. O ra, essa oposição estava bem
explícita desde o século XVIII e vinha sendo reafirm ada em uma longa série de docu
322 B a h ia , S é c u l o XIX
m entos preparados por diferentes papas: as co n stitu içõ es In em in en tt, de C lem en te XII
(1 7 3 8 ), P rovida s , de Bento X IV (1 7 5 1 ), E cclesiam in Jesu C hristo, de P io VII (18 21 ),
Q uo gra viora , de Leão XII (1 8 2 5 ); a en cíclica Q ui p lu rib u s e a alocução Q uibus
quantisque, de Pio IX (1 8 4 6 ); além das en cíclicas N oscitis e t n oh iscu m (1 8 4 9 ) e Quanto
co n ficia m u r m o erere (1 8 6 3 ), d a alo cução S in gu la ri q u a d a m (1 8 5 4 ) e d a constituição
A postolicae sed is (1 8 6 9 ).
A partir d a suspensão do padre M a rtin s , os ataq u es d a m aço n aria à Igreja se
tornaram vio lento s. N um erosos artigo s foram p u b licad o s n a im p ren sa. A cam panha
sistem ática de d ifam ação ch ego u a passar aos ato s, fazendo-se celeb rar um a missa,
apesar da in terd ição do bispo dom P edro M a ria . A ig re ja fico u ch eia de gente e o
bispo, segu in do os conselhos d a n u n c ia tu ra , não o u so u su sp en d er o celeb ran te.63
O co m p o rtam en to arro g an te d a m a ç o n a ria e as cam p an h as p ara rid icu larizar a
Igreja e sua h iera rq u ia levaram os bispos b rasileiro s a to m ar p o sição . In icialm en te de
caráter localizado, o co n flito alcan ço u d im en sõ es n acio n ais com a in terven ção de dom
V ital M a ria ,64 bispo de O lin d a (PE ), e de d o m A n tô n io de M aced o C o sta ,65 bispo do
Pará. Estes dois prelados passaram à co n tra-o fen siv a, ex ig in d o q u e as irm andades
religiosas e de ordens terceiras d em itissem seus m em b ro s q u e fossem m açons. As
irm andades resistiram , d eso b ed ecen d o aos p relad o s e o b rigan d o -o s a suspendê-las.
Elas ap elaram então ao im p erad o r, aleg an d o q u e tin h am caráter m isto — eram , ao
m esm o tem po , in stitu içõ es civis c religio sas — e, p o r isso, deviam respon der a duas
autoridades: os bispos (em questões e sp iritu a is) e o E stado (em questões tem porais).
Em seguid a, lem bravam q u e o governo b rasileiro n u n ca ra tific ara os docum ento s do
V aticano que con denavam fo rm alm en te a m a ç o n a ria ,66
O C onselho de Estado d e lib e ro u , às pressas, q ue os bispos tin h am “usurpado a
jurisd ição do poder tem p o ral” e q u e era “d a co m p etên cia exclu siv a do poder civil
presidir à co n stitu ição o rgân ica das irm a n d a d es” (p elo P ad ro ad o , cab ia ao im perador
aprovar os com prom issos q ue regiam as co n frarias e as ordens terceiras).67 O rdenou,
por conseqüência, a rein tegração dos m açons e p ro ib iu q u a lq u e r nova expulsão.
A decisão do C o n selh o de E stado foi im e d iata m e n te rejeitad a pelos prelados.
Dom V ital M aria d eclaro u ser “m ais im p o rtan te o b edecer a D eus q ue aos hom ens ,
reafirm ando que, cm m atéria religio sa, o po der tem p o ral d evia estrita obediência à
Igreja: Sc o governo b rasileiro é cató lico , não som ente ele não pode ser o chefe ou o
superior da religião católica, m as é até seu sú d ito ”. A firm ando que seria um a apostasia
da fé reconhecer a au to rid ad e do poder civil na co n dução das questões espirituais,
dom M acedo C o sta acrescentou: “Não posso sacrificar-lh c m in h a consciência e a lei
de D eus.”68
A atitude altan eira c in tran sigen te dos prelados acionou um a terrível engrenagem .
O procurador da C oroa denuncio u dom V ital em 10 de outubro de 1873, baseando
sua argum entação em nada menos do que sete artigos do C ó digo C rim in al. Recusan
do-se a reconhecer a com petência do governo nessa m atéria, o bispo foi form alm ente
acusado pelo Suprem o T rib u n al de Ju stiça que, em 2 2 dc dezem bro, expediu um
L iv ro V- A I g r e ja 32 3
"È
324 B a h ia , S é c u l o XIX
e espiritual.71 A carta de adm oestação seria escrita pelo cardeal A ntonelli e remetida a
dom V ital por interm édio do núncio, m onsenhor D om enico Sanguigni.
M as o sucesso obtido pelo Barão de Penedo foi irrem ediavelm ente comprometido
pela prisão de dom V ital. Pio IX e seu secretário declararam ter sido enganados pelo
em issário do governo brasileiro e o papa ordenou que a carta fosse destruída. Dom
V ital sempre negou tê-la recebido, mas está provado que dom Pedro M aria de Lacerda,
bispo do Rio, fez a entrega. O recuo do V aticano e sua firm e condenação dos atos que
atingiram os prelados brasileiros tiraram q u alq u er possibilidade de vitória ao governo.
Restava-lhe ir até o fim para m an ter sua autoridade in tacta.72 U m ano após a conde
nação, os dois bispos foram anistiados e restabelecidos em suas funções pastorais. Essa
m edida, entretanto, não conseguiu abafar um a questão que tinh a tornado públicas as
incom patibilidades que existiam entre as duas instituiçõ es. Pela prim eira vez na histó
ria das relações entre Igreja e E stado, ocorrera um choque de extrem a violência. Qual
foi sua verdadeira significação?
À prim eira vista, ele parecia ser um a transposição, ao B rasil, da controvérsia entre
liberais e ultram ontanos que agitava a E uropa O cid en tal.73 O que se passava nos países
europeus tin h a im ed iata repercussão no B rasil, pois cada vez m aior núm ero de prela
dos eram formados sob orientação rom ana. A atitu d e intransigen te e com bativa de Pio
IX levou a h ierarq uia b rasileira a tom ar posições inflexíveis e exasperou os liberais
brasileiros, inclusive aqueles que nao adotavam posições radicais. Q uando foi procla
mado o dogm a da in falib ilid ad e do papa, a situação se degradou. O Barão de Penedo,
liberal m oderado, pouco suspeito, expressou sua inquietação : “O que está acontecen
do no Brasil é o que está se passando quase no m undo inteiro. As tendências prepotentes
dem onstradas h o je pelo po d er eclesiástico são a co n seq ü ên cia desse elem ento
perturbador (a in falib ilid ad e po ntificai) introduzido no catolicism o. N a Itália, na
A lem anha e na Suíça, a origem das lutas entre as m ilícias da C ú ria romana e os
governos desses Estados é a m esm a que no B rasil,”71*
Além disso, a Q uestão R eligiosa decorreu de um a união im perfeita entre uma
Igreja que se tornara gradativam ente uítram ontana e um Estado que permanecera
regalista e preocupado em m anter antigas prerrogativas, transformadas em direitos
indiscutíveis. As novas atitudes da Igreja C atólica transparecem nitidam ente nessa
frase de dom V ital: “Não é um governo sinceram ente católico aquele que nada aprova
e nada condena do que a Igreja aprova e condena.” No espírito desse prelado educado
em Roma, não havia dúvida de que o poder temporal devia calcar seus atos e atitudes
nos atos e atitudes da Igreja, Ao pretender impor seus pontos de vista, a Igreja contri
buía para radicalizar as posições do Estado c dos liberais. Para estes últim os, os bispos
nao deviam julgar os atos do poder tem poral.73
A Questão Religiosa também expressava a vontade de afirmação de um Estado
cioso de suas prerrogativas, s o b r e tu d o duas: o beneplácito imperial para as colações
eclesiásticas e o recurso à arbitragem da Coroa para os casos de divergência entre
cidadãos do Império e fiéis da Igreja. Ambas eram consideradas pela Igreja como
L iv r o V —A I greja
325
do C risto " — e sua falta dc fle x ib ilid ad e c dc realism o foram fatores negativos na busca
de um a v erd ad eira so lu ção aos problem as existen tes.82
Aos olhos d a g ran d e m assa do povo b rasileiro , todas essas brigas (e os com prom e
tim entos q u e o casio n avam ) eram ‘ negócios de gen te im p o rtan te . M esm o ignorando
as questões d e d o u trin a , o povo, in flu en ciad o pelo clero, estava convencido de que a
m aço n aria, bo de ex p ia tó rio d a id eo lo g ia u ltra lib e ra l e p o sitiv ista, era um a ‘coisa erra
da , que des ia ser e lim in a d a . M as se, em sua g ran d e m aioria, o povo apoiou o clero e
os bispos na defesa d a re lig iã o tra d ic io n a l, u m a p eq u en a m in o ria aderiu ao protestan
tism o e aos cu lto s a n im ista s q u e co m eçaram a m an ifestar-se na segunda m etade do
século XIX. O p lu ra lism o relig io so , cu ja ex istên cia era ign o rad a pelo Estado e com ba
tida pela Igreja, se estab eleceu no B rasil no m o m en to preciso em que a separação entre
Igreja e Escado se to rn o u in e v itáv e l. .
A I g r e ja e a E s c r a v id ã o
os direitos .piais sagrados da pessoa hum ana .88 Logo, era o Estado que devia abolir
essa injustiça, para que os padres pudessem pregar a abolição da lei da escravidão sem
serem taxados de subversão e instigação à revolta.
Por outro lado, os que justificavam a existência da escravidão apoiavam -se em dois
princípios: o di reito inalienável á propriedade e a consideração de que os escravos eram
o prolongam ento da fam ília do senhor. No que d izia respeito ao prim eiro princípio, a
Igreja estava em m á posição para condenar a propriedade de pessoas hum anas c sua
idenrificação com objetos próprios para com pra e venda: ordens religiosas e padres
seculares eram , eles próprios, proprietários de escravos, E sin to m ática, aliás, a distin
ção que a Igreja fazia entre os ‘objetos sagrados’ e as pessoas hum anas reduzidas à
condição de escravos. Segundo as constituições sinodais, havia excom unhão expressa
para rodos os que utilizassem para fins profanos m adeira, telhas ou tijolos que tivessem
servido à edificação de um a igreja. M as a escravização de m ilhares dc seres humanos
nunca foi condenada pelo direito canônico. Perdigão M alh eiro , que publicou em
1867 sua célebre obra A escra vid ã o no B rasil , ju stifico u a Igreja: “Se padres, igrejas e
conventos possuíram c possuem escravos, isto prova apenas um abuso, um fato, e não
que faça parte do espírito da religião cristã leg itim ar a escravidão.”86 Defensora da
ordem legal estabelecida, a Igreja só com eçou a to m ar um a atitu d e quando os meios
leigos com eçaram a falar da escravidão com o um a ‘lei injustaL
Ao incitar os cativos à obediência e à resignação, a Igreja co n trib u iu m uito para
legitim ar a tese de que os escravos eram um prolon gam ento da fam ília do senhor.
Com o se fossem crianças, os escravos tin h am deveres para com o pai, mas nenhum
direito.87 A evolução do pensam ento ju ríd ico da Igreja foi aco m panh ada pela evolução
de seu pensam ento teológico. Essa lenta m utação, entretanto , foi devida sobretudo à
marcha dos acontecim entos, m uito m ais que a um aprofundam ento doutrinário ou
teológico.88 Com efeito, um a série de m edidas pren un ciavam a extinção definitiva da
escravidão. Em 1850, o tráfico foi d efin itivam en te abolido. Em 1853, foram parcial
mente em ancipados todos os africanos livres, im portados clan destin am en te entre 1831
e 1853, que tivessem servido à nação d u ran te catorze anos (ou seja, eles eram consi
derados livres, mas ficavam sob tutela do governo, que os em pregava em obras públi
cas ou os alugava pelo tem po necessário à form ação de um pecúlio que lhes permitisse
pagar sua passagem de volta à África; esta ú ltim a m edida, no entanto, nunca foi
realm ente posta em prática). Em 1864 foram fin alm en te em ancipados todos os africa
nos bem como seus filhos — im portados clandestinam ente e que se encontravam
a serviço do Estado ou de particulares. D urante a G uerra do Paraguai foi oferecida
liberdade gratuita a todos os escravos que sc alistassem no Exército, m edida depois
estendida às suas m ulheres .8} Três anos mais rarde proibiram -se leilões de escravos.
Finalm ente, a Lei do Ventre Livre declarou cm 1 871 que eram livres todas as crianças
nascidas de mães escravas.
Esses acontecimentos — aos quais é preciso acrescentar a Fala do Trono (1868)i
em que dom Pedro II tratou com insistência do fim da escravidão — fortaleceram na
L i v r o V - A I grííia
senhores e tudo que lhes perten ce.” Após tê-los convidado a não colocar obstáculos à
execução da lei, dom Pedro M aria d izia aos senhores q ue não perm itissem que "a
negligência, a inveja, a m iséria ou o desespero levassem as m ães a com eter o a b o r t o , o
in fan ticíd io , o abandono de crian ças inocentes e d esam p arad as”. Em nenhum mo
m ento o prelado cario ca contestou a leg itim id ad e d a escravidão ou afirm ou o direito
natural do escravo à liberdade. A o co n trário , colocando-se do ponto de vista legal, ele
se insurgiu contra os que desejavam a abolição d a escravidão, por causa da desordem
que isso acarretaria. De q u alq u er m an eira, a lei previa q ue os pais permanecessem
cativos. Os padres tin h am o dever d c co n tin u ar a p regar, aos escravos, resignação e
ob ed iência.97 De m odo geral, a a titu d e do clero perm an eceu cautelosa.
Nesse ponto não estam os de acordo com o p ad re Jo sé O scar Beozzo, para quem
dom Pedro M a ria de Lacerda se o p u n h a à escravidão e d esejava a A bolição. A afir
m ação de dom Pedro M a ria — "Q ue sejam os revolucio nários (abolicionistas) a pro
fanar a palavra lib erd ad e; nós, no en tan to , m o stram os q ue a lib erd ad e, quando jus
ta (isto é, legal), pode levar-nos a algu n s sacrifício s q u e devem ser compensados
pela m an u ten ção da ordem e das v an tagen s m ateriais e p e c u n iá rias” — é um a pro
va suficien tem ente clara do esp írito co n servado r e a n tiab o lic io n ista do prelado ca
rioca, cujos argu m en to s alin h avavam -se com os dos p ro p rietário s de escravos, antia-
bo licio n istas.98
As ordens religiosas e o baixo clero eram m ais favoráveis à A bolição. Em 1869, por
exem plo, a O rdem de São B ento, no R io de Ja n e iro , lib erto u todos os seus escravos de
m ais de cin q ü en ta anos e, em segu id a, as crian ças nascidas de mães escravas, Quando
a Lei do V en tre Livre foi p ro m u lg ad a, em 1 8 7 1 , a O rd em deu lib erd ad e a todos os
seus escravos, que eram quase três m il.99 O baixo clero tam b ém lib erto u escravos e fez
doações aos fundos de em an cip ação criado s p ara a ju d á -lo s.100
Só em 1879 a A bolição foi d iscu tid a de novo n a A ssem b léia G eral do Im pério. O
m ovim ento ab o licio n ista era chefiado então p o r Jo aq u im N abuco, jovem depurado
eleito por Pernam buco. Sob seu im p u lso e o de seus adeptos, novas associações
em ancipadoras foram criadas em todas as grandes cidades do país. A partir de 1883,
através de um a cam panha n acio n al, os ab o licio n istas con centraram seus esforços em
três frentes: nàs assem bléias legislativas, na im p ren sa (onde pediam a suspensão das leis
sobre a escravidão) e na arrecadação de fundos destinados a com prar a liberdade dos
escravos. Em 1884, as províncias do C eará e da A m azônia tinh am conseguido libertar
todos os seus escravos. Em 1885, a A ssem bléia G eral aprovou a Lei dos Sexagenários,
que declarava livres todos os escravos de m ais de sessenta anos, im pondo-lhes, todavia,
mais três anos de serviço junto a seus antigos senhores. Por volta de 1887 a escravidão
estava moral e po liticam en te condenada: em 13 de m aio de 1888 a Lei Áurea a
extínguiu. M as, tendo durado m ais dc três séculos, ela m arcou profundam ente a carne
e as m entalidades brasileiras.101
Nesse período crucial de quase nove anos que precedeu a Abolição, a hierarquia
episcopal m ostrou-se cautelosa. A participação da Igreja no m ovim ento abolicionista
- L iv r o V - A Igreja 33,
o s m é to d o s e m p r e g a d o s p a r e c e m b r u t a is . M a s c o n t in u a r a m a t r a d iç ã o d o s q u e fo ram
e m p r e g a d o s s e m p r e q u e a I g r e ja , e m t o d a p a r t e , te v e q u e e n f r e n t a r h o s t ilid a d e c re s
c e n te d a p a r te d o s le ig o s . M a is p r ó x im a d e R o m a , t o m o u c o n s c iê n c ia d e s u a u n iv e r
s a lid a d e e d a n e c e s s id a d e d e a lia r s u a d o u t r in a e s u a s p r á t ic a s à s d a I g r e ja C a tó lic a
u n iv e r s a l. N o fim d o I m p é r io , a I g r e ja a in d a n ã o r e s o lv e r a o p r o b le m a d e s u a s e p a r a
ção do E sta d o r e s o lv id o f in a lm e n t e e m 1 8 9 1 — m a s j á c o n s t r u ír a as b a se s p a ra tal.
Q u a l a im p o r t â n c ia d a s r e f o r m a s f e ita s d e n t r o d a in s t it u iç ã o ? É o q u e v o u te n ta r
a v a lia r a g o r a .
CAPÍTU LO 20
C ônegos e Pá r o c o s:
U ma V e r d a d e ir a R iq u e z a em H omens
A Igreja C ató lica disp u n h a de três tipos de instituições: a estrutura de base, represen
tada pelo clero secular, incum bido de m anter o culto e zelar pela fé dos fiéis; o clero
regular, form ado pelas diferentes ordens religiosas estabelecidas no país desde meados
do século XVI; e instituições dirigidas por leigos, como as irm andades e as ordens
terceiras, que floresciam em cidades e lugares de algum a im portância, sem depender
diretam ente do poder diocesano exercido pelos bispos. As duas últim as dessas institui
ções desem penharam im portante papel, sobretudo no período colonial, como instru
mento de evangelízação das populações pagas (caso do clero regular) e locais de con-
graçamento de um povo que se diferenciava pelo estatuto legal, pela cor da pele e por
pertencer a grupos sociais diferentes (caso das irm andades e ordens terceiras).
No topo da hierarquia estava o bispo (ou o arcebispo) que, à frente da diocese,
adm inistrava a vida religiosa com a ajuda de um capítulo e de um tribunal eclesiástico
encarregado de ju lg ar litígio s que envolvessem membros da Igreja. Junto com os
bispos, os integrantes destes últim os órgãos formavam o alto clero. A eles é necessário
acrescentar os abades e superiores das ordens religiosas, cuja posição, no entanto, não
era comparável à de seus colegas europeus, mesmo portugueses; seu papel político e
sua influência social eram quase nulos.
O culto e os sacramentos eram assegurados pelo baixo clero — párocos e coadjutores
— que dirigia as paróquias. Em todos os escalões, os membros do clero eram nomea
dos pelo rei de Portugal e, depois, pelo imperador do Brasil. Mas havia párocos
nomeados pela autoridade episcopal e padres que, escolhidos por irmandades religio
sas ou contratados por particulares, serviam como capelães. No Brasil, só podiam ser
cônegos os integrantes dos capítulos das igrejas catedrais (havia a categoria de cônegos
honorários, título com o qual eram agraciados alguns sacerdotes de destaque). Segun
do o direito canônico, o capítulo-catedral podia aconselhar o bispo (a pedido deste) e
governar a diocese vacante, designando um vigário capitular.
333
B a h ia , S é c u l o X IX
3M
O A lto C lero: o C a p It u l o - C a t e d r a l
O A lto C lero : o T r ib u n a l E c l e s iá s t ic o
disso, este m esm o po d er não ap elav a m ais para a Ig reja em casos de vacância da
p resid ên cia de u m a p ro v ín cia, pois as novas e stru tu ras a d m in istra tiv a s confiavam essa
tarefa a um dos v ice-p resid en tes. tam b ém n o m ead o s pelo im p erad o r. M as não h i
d ú v id a d e q u e a assem b léia de côn ego s rep resen tava um corp o c lerical privilegiado,
q u e in flu ía nos negócios das dioceses. A falta de estu d o s sobre essa q uestão não me
p erm ite sab er q u ais eram as relações en tre o c a p ítu lo e o c o n ju n to dos padres que
se n -iam nas p aró q u ias de cad a d io cese.
C o m o no passado, o T rib u n a l dc In srân cia c o n tin u a v a a ser p resid id o pelo arce
bispo. M as. em m eados do sécu lo X IX , o n ú m e ro de ju ízes a u m e n to u , todos agora
rem u n erad o s. O T rib u n a l E clesiástico de Ju s tiç a passou a ter doze ju ízes. dos quais
nove eram cônegos e três p ad res; do is destes ú ltim o s tin h a m o títu lo de doutor, ou
seja, h aviam feito estudos u n iv e rsitá rio s. P or o u tro lad o , o trib u n a l deixou de ser
responsável pelo exam e dos c an d id ato s ao sacerd ó cio , tarefa e n tre g u e exclusivam ente
ao corpo de d ezo ito ex am in ad o res do sín o d o . O n ze d eles eram cô n ego s, seis perten
ciam a ordens religio sas e dois eram sim p les p ad res. P or c o n se g u in te , a g ran d e m aioria
dos m em bros do trib u n a l era fo rm ad a p o r cô n ego s.
O arceb isp o, o ca p ítu lo e o T r ib u n a l de In stâ n c ia fo rm avam o governo do arce
b isp ad o , d eten d o o p restíg io , os cargo s e as d ig n id a d e s. A seu lad o estavam os párocos
de S alv ad o r, can d id ato s às m esm as h o n rarias no fu tu ro . E n tre alto e baixo clero e entre
cíero d a cap ital, do R ecôn cavo e das terras lo n g ín q u a s do in te rio r, as diferenças eram
n ítid as. N o m eio ru ral estavam os m enos favo recid o s m a te ria lm e n te , q u e além disso
exerciam tarefas m ais pesadas.
O s cleros secu lar e reg u lar co n cen trav am a m assa dos eclesiástico s, em penhados
em propagar e m an ter a fé cató lica. O p rim eiro g ru p o se d is tin g u ia do segundo porque
estava sub m etido ao go vern o o rd in ário da Igreja, exercen d o suas funções sob a autori
d ade do bispo, ao passo q u e o segu n d o o b ed ecia às regras de u m a ordem chefiada por
um abade ou um prio r. C a d a um desses grup os d esem p en h o u um papel diferente — c
co m p lem en tar — no en raizam en to d a Igreja no B rasil. É indispensável estudá-los
separadam ente.
Na década dc 1820, a situ ação do baixo clero lem brava m uito a que existia na época
colonial. Nas zonas rurais, pouco povoadas, predom inavam os capelães, encarregados
dc celebrar missas, ad m in istrar sacram entos, p resid ir as festas c abençoar as colheitas.
C ontratados por particulares, ensinavam religião aos moradores, suhordinando-sc muito
m ais aos grandes proprietários agrícolas que à h ierarq uia da Igreja, que adotou em
relação a eles, por m uito tem po, um a atitu d e longín qua. Os capelães, aliás, não foram
os únicos a experim entar essa preponderância das relações laicas sobre as religiosas.
Inúm eros padres viveram na m esm a dependência, que perdurou durante o século XIX
L iv ro V- A I g r e ja
337
(e m esm o d epo is) co m o u m traço característico , ch eio de con seqüên cias, do clero ru ral
brasileiro . F re q ü e n te m e n te , aliá s, o cap elão não m orava nas p ro p riedades em q u e ia
cu m prir seus deveres religio so s nos fins de sem an a.
N a c id ad e, o p ad re n o m ead o pelo E stado (vigário co lado ) ou pelo bispo (vigário
enco m end ad o) estava à fren te de u m a p a ró q u ia e tin h a o ‘encargo das alm as’ que nela
h abitavam . M as tam b ém p o d ia servir com o c o a d ju to r ou ser co n tratad o por um a
irm an d ad e re lig io sa . A d e n o m in a ç ã o de cap elão , por sua vez, en co b ria três realidades
diferentes: a do p a d re resp o n sáv el p o r u m a cap ela situ a d a no p erím etro de u m a paró
quia e s u b m e tid a a a u to rid a d e de seu p áro co (o v ig ário p o d ia exercer esse cargo); a do
que exercia suas fu n çõ es sac e rd o ta is ju n to a u m a irm a n d a d e religio sa ou u m a fam ília;
e a do q u e a ju d a v a no co ro d a c a te d ra l, ap esar d e não ser cônego.
A categ o ria dos cap elães m e in te ressa p a rtic u la rm e n te . M u ito im p o rtan te du ran te
todo o p e río d o c o lo n ia l, seu *p ap el foi, no B rasil, ab so lu tam en te o rig in al, irred u tív el
aos m o delo s eu ro p e u s d a é p o c a .3 T in h a o en cargo das alm as de u m a parte da p o pu
lação, fre q ü e n te m e n te n u m e ro sa , q u e escap av a ao clero su b m etid o à au to rid ad e epis
copal. O s p a d re s-ca p e lã e s q u e serv iam ju n to às irm an d ad es religio sas ou às fam ílias —
eram m a io ria — d e v ia m su as fu n çõ es a co n trato s p rivado s.
O cap elão de u m a irm a n d a d e re lig io sa era n o m ead o pelo d iretó rio desta. E scolhi
do por leigo s e co lo c ad o sob seu co n tro le , n ão se to rn av a au to rid ad e, com o o pároco.^
Ficava até su je ito a san çõ es, se n e g lig e n c ia sse atos do cu lto ou se cobrasse por eles m ais
do que fora e s tip u la d o . A d e m a is, o cap elão d e v ia d efen d er a irm an d ad e em caso de
conflito com o p áro co . Essa s itu a ç ã o su sc ito u d ific u ld ad e s p ara a Igreja, sobretudo no
século X V III, q u a n d o as irm a n d a d e s estiv eram no ap o geu : h avia a igreja do pároco,
h ierárq uica, e a ig re ja -irm a n d a d e , a d m in istra d a po r seus m em bros. M u itas contendas
opuseram as d u as, so b retu d o p o rq u e os p áro co s, com razão, consideravam -se as unicas
autoridades relig io sas lo cais, o q u e as irm an d ad es co n testavam . Festas e procissões, por
exem plo, en sejav am ch o q u es.
Apesar dessas co n trad içõ es, os cap elães tam b ém com p lem entavam a ação dos
m em bros d a Igreja h ie rá rq u ic a , q u e não eram su ficien tem en te num erosos para assegu
rar a evangeli/.ação de g ra n d e parte das populações m argin alizadas. Ao elim in ar essa
dualidade d u ran te a segu n d a m etade do século XIX, a rom anização da Igreja C atólica
brasileira ab riu espaços para o crescim en to de diversas igrejas protestantes e de seitas
religiosas.^ T alv ez as classes p o p u lares — as q ue p rim eiro se converteram ao protestan
tism o — enco ntrassem nas estru tu ras dessas igrejas um a gestão dem ocrática que
caracterizava o u tro ra as co n frarias) e um a ad m in istração colegiada dotada de gran e
autoridade m o ral. .
Essa d iferen ça no exercício d a função sacerdotal tam bém se m an.festava nas rela
ções entre u m a Igreja h ierárq u ica, mas disrante, e um capelão cujas unções se exer
ciam ju n to de u m a fam ília. N o rm alm en te os engenhos não tinham m ais de oitenta
escravos, mas em suas terras, à volta do m oinho de açücar, gravttava um a populaçao
<lc ho m en, livres e alfo rriad o s. N as grandes explorações eanav.etras, que concentravam
B a h ia , S é c u l o XIX
358
centenas de pessoas, era hábito ter um padre à disposição. Ele vivia no engenho, quase
sempre morando em casa separada, para que pudesse ter certa independência erTl
relação ao senhor.6 Segundo o jesuíta A n to n il, “o prim eiro , que se há de escolher com
circunspecção e inform ação secreta do seu procedim ento e saber, é o capelão, a quem
se há de encom endar o ensino de tudo o que pertence à vida cristã”. O capelão tem a
obrigação de dizer a M issa na capela da propriedade todos os dom ingos e feriados, de
explicar o catecismo, isto é, os principais m istérios da fé e os m andam entos que Deus
e a Santa Igreja m andam observar, de ouvir as confissões dos fiéis com a autorização
do ordinário, de adm inistrar os sacram entos, de fazer com que todos vivam em paz, de
zelar para que Deus seja louvado, assim como a V irgem Nossa Senhora, cantando suas
litanias todos os sábados e, durante o mês em que o m oinho não roda, recitando o
terço e, enfim, não tolerar risos, conversas e práticas indecentes, não som ente na capela
como na galeria coberta, sobretudo duran te a celebração do Santo Sacrifício da M issa.7
Além de dar aulas aos filhos do senhor de engenho e abenço ar o engenho, pedindo a
Deus que a m oagem fosse rentável, o capelão tin h a a obrigação de casar, batizar e fazer
com que o dever pascoal fosse cum prido. M as isso devia ser feito com autorização in
scriptis do cura da paróquia encarregado dessas funçõ es.8
Os capelães das irm andades religiosas ou das grandes plantações nem de longe se
enquadravam no m odelo tridentino. M an tin h am laços m u ito frouxos com as autori
dades eclesiásticas, subm etiam -se ao clero o rdin ário sem que dele fizessem parte, eram
dotados de am pla m argem de ação (tam bém prestavam serviços, por exem plo, a navios
negreiros) e acom panhavam expedições às terras interiores, entrando em contato com
índios. Por todas essas razões, alguns consideram que “o capelão representa uma
religião fam iliar, um cristianism o dom éstico que se opõe ao da Igreja oficial, em que
o bispo e o pároco representam R om a, tão distante, e toda sua organização”.9
Deve-se realmente ver no capelão, padre secular como q ualqu er outro, um opositor
sistemático da Igreja hierárquica? Será realm ente ú til opor religião fam iliar e cristianis
mo doméstico a religião oficial e cristianism o universal? Em ú ltim a análise, que ele
mentos diferenciam os dois universos? A religião d ita fam iliar e o cristianism o deno
minado doméstico não estão contidos no conjunto m aior da Igreja C atólica? No plano
da catequese e da moral nunca houve divergências. Parece-nos, pois, que é necessário
ver aí, menos que uma oposição, um a com plem entaridade nascida das estruturas desta
Igreja surgida sob o regime do Padroado.
Os padres encontravam no Brasil possibilidades variadas —* e complementares —
e exercer seu m inistério, Mas todas essas funções, desenvolvidas na cidade ou no
campo, não criavam um dinam ism o verdadeiro. Relacionavam -sc a um a rotina inca
paz e satisfazer as ambições pessoais de um clero cujo nível cultural era superior ao
o conjunto da população.HJ Ele sc engajava cm atividades profanas que demandavam
X V n i^ H 3 C ^ ümo expliquei anteriorm ente, entre o fim do século
e a écada dc 1840 o clero regular participou ativam ente de todos os movimen
tos revolucionários que agitavam o país.
L iv r o V - A I g r e ja 339
Os padres se to rn ara m figu ras im p o rtan tes nesses m o vim ento s, sobretudo no
N ordeste. D u ran te a C o n fed eração do E quado r, em 1 8 2 4 , o frade carm elita Jo aq u im
do A m or D iv in o C a n e c a (F rei C an eca) d esem p en h o u im p o rtan te papel, tendo sido o
único chefe re v o lu cio n á rio fu zilad o . A in d a em P ern am b u co , o decano B ernardo Luiz
Ferreira e os p ad res Jo ã o R ib e iro e M ig u e lin h o p articip aram do com ando da R evo lu
ção de 1 8 1 7 . N a B ah ia , o cô n ego M a n u e l Jo sé de F reitas B atista M ascarenhas, co
nhecido com o p ad re M a n u e l D en d ê B us, e dom M arco s de So u za C o elho , futuro
bispo do M a ran h ã o , ficaram ao lad o dos b rasileiro s q u an d o d a gu erra pela in d ep en
dência ( 1 8 2 2 - 1 8 2 3 ) .
A d otan d o p o siçõ es q u e iam do ex trem ad o rad icalism o ao lib eralism o de cunho
mais teórico, p a rte do clero m o strav a ter u m a co n sciên cia m ais p atrió tica que ecle
siástica. H av ia, é c e rto , os q u e c o m p a rtilh a v a m os ponto s de v ista d a a lta h ierarq u ia e,
do alto dos p ú lp ito s, p reg av am o rd em c tra n q ü ilid a d e , acu san d o de an arqu istas os
m ovim entos lib e ra is dos p rim e iro s anos de in d e p e n d ê n c ia do p a ís .11
Os m em b ro s m ais c u lto s e m ais in flu e n te s do clero eram in flu en ciad o s por Jean -
Jacques R o u sseau , A d a m S m ith , E m m an u el K ant e V ic to r C o u sin . Os b aian os liam La
Fontaine, m as ta m b é m M o n te s q u ie u , V o lta ire , C o n d ílla c e B e n th a m .12 A lgum as des
sas obras eram c o n d e n a d a s p o r R o m a, p o is d efen d iam d o u trin as declaradas heréticas
havia m u ito te m p o .13 A liá s, os co n h e c im e n to s teo ló gico s desse clero não eram nada
ortodoxos. B aseav am -se n o C a tecism o de M o n tp e llie r e no M a n u a l d e teo lo g ia de Lyon,
obras jan sen istas, tam b ém co n d e n a d as p o r R o m a. O p rim eiro era a tradução das
Instruções gera is, em fo rm a de c ate c ism o , feita pelo. o rato rian o François-A im é Pouget,
diretor do se m in á rio de M o n tp e llie r. F ora im presso em Paris em 1702 e várias vezes
condenado p ela S a n ta Sé d esd e 1 7 2 1 . As I n stitu tio n es T b eo logia e a d usum schotarum
haviam sido p u b lic a d a s em L yo n em 1 7 8 0 , em seis vo lu m es, pelo o rato rian o Joseph
Valia e co lo cadas no In d ex dos livro s p ro ib id o s em 1 7 9 2 . A pesar dos protestos do
núncio C a le p p i, a co m issão p o rtu g u e sa de cen su ra au to rizo u a p ublicação do livro,
que foi ap o iad a pelo b isp o do R io de Ja n e iro . Em 1 8 1 3 , o bispo Jo sé C aetano da Silva
C outínho c o n ú n c io m a n tiv era m u m a p o lêm ica sobre a T eologia de Lyon, utilizad a
como texto b ásico para os p ad res. O bispo desafio u o n ú n cio a ap o n tar pelo menos um
erro na obra. Este não aceito u o d esafio , co n sid eran d o -o supérfluo, já que o livro
estava no Index.
Cirande parte do clero era m em b ro de lojas m açônicas, apesar da condenação
bestas pela S an ta Sé. O p ad re A n tô n io Feijó, dom José C aetan o da Silva C outm o
(bispo do Rio dc Ja nciro en tre 1808 e 1833 e C o n d e de Irajá), o conego Jan u ário a
Cunha Barbosa e os irm ãos F rancisco dc S an ta T eresa dc Jesus Sam paio e Francisco
M ont’A lvcm e eram algu n s m em bros do clero brasfleiro p o liticam en te m uito ativos e
notoriam ente ligad o s, em a lto grau , à m aço n aria.1
Em grande m ed id a a u to d id ara, im b u íd o de doutrinas pouco ortodoxas e m uito
Politizado, o clero a g ia da m esm a form a que a população em geral. O povo sabia
diferenciar o padre q u e celebrava os m istdrios da U em sua igreja e o hom em que v.vra
Bxm\. S íc v to XIX
« i a vid a profana. M as esses hom ens, que ap aren tem en te sc d istin g u iam tão pouco dos
outros, exerciam gran de in flu ên cia. É preciso, por isso, an alisar a lundo a fiç u ra _
m ais regra do que exceção, m esm o depo is das reform as, cm pieno século XIX — do
padre q u e vivia cercado por sua fam ília, assim com o a figura dc sua ‘esposa*, d e d i c a d a
aos cuidados da casa. O pai-pároco . freq ü en tem en te ch am ad o dc ‘ padrinho* por seus
próprios filhos, ocupava-se da educação e das carreiras desres, com o qualquer pai
D urante o prim eiro q u arto do século XIX, e m esm o depo is, os padres não usavam
batina, vestindo-se da m esm a m an eira q ue suas ovelhas. O padre C o rreia, por e x e m
plo, proprietário de um a gran d e lazen da em T rcs Rios (R J), apresentou-se ao viajante
alem ão Pohl com um a jaq u eta e u m a con decoração d a O rdem de C risto! O m e sm o
v iajan te id en tifico u outro padre graças a seu b arrete; ou tro usava um casaco azul-
ceieste, m eias cu rtas e tam ancos nos pés, com as pernas nuas.
H avia padres ricos, mas eram m in o ria. E m bora, sem d ú v id a, privilegiados, eles em
gerai não tinh am vida farta. Do E stado ou das irm an d ad es, recebiam salários insufi
cien tes.15 No século XIX, d eix aram de ser ag ricu lto res, co m ercian tes, ferreiros ou
donos de albergues, mas essas ativ id ad es foram su b stitu íd a s por outras. M uitos se
tornaram deputados, professores ou direto res de escolas. Por o u tro lado, perpetuou-se
a prática de so licitar donativos dos fiéis, apesar dos esforços d a h ierarq u ia para aboli-la.
No fim do século XVIII havia em S alv ad o r um padre para seten ta habitantes, mas
essa proporção foi m o d ificad a d u ran te a segu n d a m etade do século XIX, com a dim i
nuição havida no clero. A ch egad a dc p eq u en a q u a n tid ad e de padres e religiosos
estrangeiros não aju d o u a resolver o p ro b lem a da escassez de vocações, considerado na
época com o con seqüên cia do descrédito cm q u e se enco ntrava o sacerdócio. Os baixos
salários tam bém co n trib u íam para isso ,16 m as é preciso acrescen tar outros fatores. Em
prim eiro lu gar, a criação do ensino su p erio r d ren ara um a parte d a juventude para
ofícios m uito m ais prestigiosos, com o os de advogado, m édico, engenheiro, juiz e
político. Também acontecia com freqüência q ue o perío do de estudos nos pequenos
sem inários não levasse ao sacerdócio, com os sem inaristas preferindo ingressar no
serviço publico, onde as rem unerações eram m aiores e as vantagens sociais, mais
concretas. Um funcionário in sign ifican te gozava, ju n to ao público, de um prestígio
m uito superior ao de um padre. A lém disso, a função daquele trazia uma série de
benefícios, que podiam inclusive abrir cam in ho para a fortuna.
A firme determ inação de reform ar os costum es do clero exigia que os candidatos
tivessem vocação. Os bispos reform adores sacrificaram deliberadam ente a quantidade
à qualidade, c a rom anização da Igreja — sua estrita ortodoxia, sua posição intransi
gente diante das novidades do século — fez o resto.
Essa era a imagem transm itida pelo clero brasileiro nos prim eiros anos posterio
res à Independência. Apesar dc suas características negativas, os padres eram muito
bem acolhidos pela população, fossem capelães dc engenho ou de irmandades, p&
rocos rurais ou urbanos. Apesar dc suas inúm eras lim itações, eles foram conselhei
ros e amigos das fam ílias, protetores dos oprim idos, mestres-escola informados e
L iv ro V- A I g r e ja
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escutados, v erd ad eiro s pais p ara su as ovelhas. A s reform as in tro d u zid as pela Igreja
alteraram essa .m agem ? O s padres perderam sua condição de 'pais’ com a rom anização
da Igreja? A s reform as criaram um novo p erso n agem , em ru p tu ra com a sociedade
em que vivia? V o u te n ta r e lu c id a r essas q uestõ es, to m an d o com o exem plo o clero
secular d a B ah ia.
O C l e r o B a ia n o D ia n t e d a s R efo rm as
Pioneiro no B rasil, o arceb isp ad o d a B ah ia a d m in istra v a u m im enso territó rio , con tan
do com padres reg u lares e secu lares. N o in íc io do século XIX, em toda a C ap itan ia
existiam 89 p a ró q u ias (d ad o s de 1 8 0 8 ) p ara u m a p o p u lação d e 3 3 6 .0 7 2 habitantes
(dados d e 1 8 1 2 ). A s p a ró q u ias era m m u ito d iferen tes en tre si, tanto pelo tam anho de
seus territó rio s co m o p elo n ú m e ro de seus h a b ita n tes. O recenseam en to de 1872
registrou 169 p a ró q u ias e 1 .3 8 0 .1 8 6 h a b ita n te s; o de 1 8 9 0 , 196 p aró q u ias e 1 .9 0 3 .4 4 2
habitantes. Em relação ao n ú m e ro d e h a b ita n te s, o n ú m ero de p aró q u ias d im in u iu , o
que m ostra q u e, co m o o rei de P o rtu g a l, o im p erad o r do B rasil não se interessava pela
criação de novas p a ró q u ias.
A p artir de m ead o s d o sécu lo X IX , a fig u ra do capelão tendeu a desaparecer dos
engenhos, p o is a p ro d u çã o a ç u c a re ira en tro u em d ecad ên cia. M a n te r um serviço reli
gioso privado to rn o u -se u m peso no o rçam en to dos senhores, preocupados em cortar
despesas ju lg a d a s su p érflu as. N o p erío d o 1 8 3 0 —1 8 8 9 , n en h u m inventário de senhor
de engenho assin alo u despesas relativ as à m an u ten ção de um capelão, cuja função de
m estre-escola p erd eu im p o rtâ n c ia d ep o is d a criação , em Salvador, de internatos priva
dos, cada vez m ais p ro cu rad o s p a ra ed u car os filhos de fam ílias tradicio n ais.
A fraca relação e n tre n ú m ero de p aró q u ias e de h ab itan tes pode in d icar um a
dim inu ição nos efetivos do clero? N ão possuo n en h u m dado q u an titativ o que perm ita
afirm á-lo .17 Em co m p en sação , an álises q u alitativ as perm item deduzir que a B ahia não
escapou a um a sensível q u ed a no nú m ero de can didato s ao sacerdócio, característica
comum a todo o B rasil. Em 1 8 4 9 , o problem a foi colocado pelo presidente da Provín
cia. João José dc M o u ra M agalh ães, nos seguintes term os: Seu destino [dos padres] é
bem m esquinho e d ign o de com iseração. N inguém ignora que os prim eiros [os páro
cos] com 300 m il réis c os segundos [os coadjutorcs] com 50 m il réis anuais, nao têm
meios de prover a sua indispensável sub sistência. Por outro lado, é impossível que unia
côngrua in sign ifican te, sem outras considerações sociais, possa atrair distintos cida
dãos capazes de form ar um clcro virtuoso e culto." O presidente acrescentou que os
paroquianos recusavam -se a pagar os direitos de estola e outros em olum entos devidos
ao clcro, segundo a legislação em vigor. D eclarou tam bém que “o destino dos cônegos
c dignitários m e tr o p o lita n o s não é m ais favorável pois, reduzidos a côngruas insigni
ficantes, não têm m eios de se m anter com decência num a capital em que os gêneros
alim entícios de prim eira necessidade são tão caros .
342 B a h ia , S é c u io X IX
P ragm ático , o p resid en te da P ro v ín cia a trib u iu a fa lta de in teresse dos jovens pela
v id a sacerd otal à m o d éstia dos salário s, sem se in te rro g a r sobre as o u tras razões qUe
p o d iam afastá-lo s do m in istério eclesial. Q u a tro anos m ais tard e, ao festejar a funda
ção do S em in á rio M en o r em q u e os p ad res v icen tin o s d avam a "p rim eira educação
para o sacerdó cio ", o novo p resid en te, Jo ão M a u ríc io W a n d e rle y , futuro Barão de
C o te jip e , a d m itiu q u e " ain d a há m u ito a fazer p ara q u e ten h am o s u m clero de boa
m o ralid ad e e in stru íd o ”. O tem a dos baixo s salário s v o lto u em su a alocução: “Os
ven cim en to s do reveren do c ap ítu lo e as cô n g ru as dos p áro co s são extrem am ente insu
ficientes para as necessidades básicas d a v id a e, se em alg u m as p aró q u ias há emolumentos
su b stan ciais, com o a firm a o E x celen tíssim o M e tro p o lita n o , n a m a io r parte dessas, eles
[os párocos] só p a rtilh a m u m a p o b reza e u m a m isé ria a v ilta n te s e p o d em se considerar
com o verdadeiros m e n d ig o s.” 19 <■■■
Em 1856, Á lvaro T ib é rio de M o n co rv o L im a , ta m b é m p resid en te d a Província,
rep etiu o m esm o tip o de c o m en tário : após fe lic ita r u m a p a rte d o clero q u e apresentava
sinais de sensível m elh o ra e n ão recu sara tra b a lh a r nos lo ca is afetad o s p ela epidem ia de
cólera-m orbo — “m u ito s p erd eram suas v id a s p o r a q u e la s de seus irm ão s” — acres
cen to u: “N ão b asta se o c u p a r d a e d u ca ç ão do c lero , m as é n ecessário , p ara a santidade
e a im p o rtân cia de seu caráter, fo rn ecer-lh e recu rso s p a ra q u e possa v iv er decentem en
te, po up ado d a in d ig ê n c ia ; é p reciso co n fessar q u e são m e sq u in h as as côngruas de 300
m il réis q ue os cu ras receb em .” P ara rep a ra r tal situ a çã o , ele propôs q u e a Assembléia
P ro vin cial au m en tasse os 2 0 m il réis ex tra o rd in á rio s q u e os p ad res receb iam dos cofres
públicos, sendo o b rigad o s a co m p le tar, do p ró p rio bo lso , o salário de seus coadjutores,
aos q u aís os fundo s p ro v in ciais só d avam 50 m il réis a n u a is .20 A A ssem bléia não
respondeu ao apelo do p resid en te.
O p ro b lem a do salário dos p ad res foi n o v am en te co lo cad o por ou tro presidente de
P rovíncia, Jo ão Lins V ie ira C an san ção de S in im b u , q u e aliás o fez de form a mais
precisa que seus predecessores, d a n d o até u m a exp licação in teressan te. Segundo ele, o
pároco, m esm o com parcos recursos, era o u tro ra u m p erso n agem im p o rtan te que, se
precisasse de din h eiro — p ara co n sertar sua ig reja, por exem plo — era capaz de
levantá-lo. A gora, esbarrava no poder p o lítico : "se o respeito de q ue goza íbr um
obstáculo ao projeto am b icio so de um p o ten tad o p o lítico local, sua paróquia será
d ivid id a e seus recursos d im in u íd o s”. Em to d a p arte os padres tin h am que encontrar
protetores. N lo podiam pedir d in h eiro aos paro q u ian o s, nem .obrigá-los a cum prir
seus deveres religiosos. H avia os q ue chegavam a bater de porta em porra para distri
b u ir cédulas eleitorais dos seus benfeitores. Por tu d o isso, era necessário dar a eles
m eios de v id a e só aju dar com din h eiro p ú b lico as paróquias cujos m em bros tivessem,
dem onstrado, através de oferendas, que tam bém estavam dispostos a colaborar (é
interessante observar que, ao pedir ao Legislativo para m elhorar a sorte do clero, o
presidente não escondeu a intenção de fazer com que os paroquianos colaborassem
tam bém ),21 Assim com o das vezes precedentes, os parlam entares baianos não acataram
essa nova recom endação. Os salários do pessoal eclesiástico perm aneceram fixos e
extrem am ente baixos até o fim do período im n p ri.l j . , „
H^noao im p erial, sem que os donativos dos fiéis
aum en tassem .
Sem d ú v id a , as pobres co n diçõ es m ateriais im postas ao clero influíam fortem ente
na relu ran cia dos ,o ven s em ab raçar esse cam in h o . M as não se devem afastar as razões
evocadas acim a, tao im p o rtan tes q u an to o fator m aterial: a carreira eclesiástica tornou
se m enos p restigio sa q u e as profissões lib erais, a m agistratu ra e até o funcionalism o
pú blico . N ão devem o s esq u ecer tam b ém q u e o núm ero de can didato s dim in u iu quan
do a alta h ie ra rq u ia passou a selecio n á-lo s com m aio r cuidado. D este ponto de vista,
a a titu d e do arceb isp o do m R o m u a ld o A n tô n io de Seixas foi m uito clara: “E se hoje
não é tão fácil e n c o n tra r h o m en s de v id as in o cen tes e sem m áculas, com o nos prim ei
ros séculos, p elo m en o s é nosso d ever fech ar as portas do san tuário aos intrusos que
ousam ap resen tar-se sem luzes e sem costum es e q u e só vão servir para arruinar (a
Igreja) com o u m a rede e ste n d id a sobre o T ab o r, com o d izia o profeta.”22
Em m ead o s do sécu lo X IX , o clero b aian o era considerado o m ais culto e o de
m oral m ais elev ad a do B ra s il.23 A rigo rosa seleção elim in ava m uitos candidatos, le
vando-os a re n u n c ia r ao sacerd ó cio . M esm o assim , apesar dessa laboriosa seleção e
das reform as d e stin ad a s a p rep arar m elh o r os padres para o trabalho apostólico, as
“im perfeições m o ra is ” e a “fa lta de ap tid õ es p ro fissio n ais” desse clero foram denun
ciadas pelo p resid e n te de P ro v ín cia em 1 8 6 8 : “A indiferença com a qual alguns pá
rocos en caram esse estad o de coisas, só se o cupando de assuntos não relacionados
com seu m in isté rio sag rad o , nos dão a m ed id a dos grandes m ales que afligem nossa
so cied ad e.”24 S erá q u e as refo rm as não h aviam chegado n u m m om ento adequado?
Em que co n sistiam ?
O m o v im en to refo rm ista estava preo cup ado em regenerar m oralm ente o clero
antigo e criar u m clero novo, in sp irad o no m odelo do C o n cilio de T rento, de 1545
1563. E ntre as m ed id as to m ad as por do m R o m u ald o A ntôn io, arcebispo da Bahia e
figura em in en te do m o v im en to , destacaram -se: a obrigação de usar o hábito ecle
siástico, com o sin al d istin tiv o do clero em suas funções litúrgicas, a prática restau
rada do celib ato , segu n d o os decretos trid en tin o s; a in stituição de conferências ecle
siásticas p ara m elh o rar o n ív el do clero ; e, fin alm en te, a criação de sem inários
diocesanos. As três p rim eiras in iciativas tin h am com o objetivo repor nos tri os o
clero m ais an tigo , en q u an to a ú ltim a dizia respeito à form ação dos novos candida
tos ao sacerdócio.
O Uso d a B a t in a
o padre devia, arues de «udo, ser para seus semelhanres “um exemplo vivo, de^ r r u d e
« retidão, não apenas em sua vida de rodos os d ias e em s e u s ma t a m b ^
c o s . u m c s
m o rai, a Igreja acrescentava exigên cias de ap arên cia exterior. N as C o nstituiçõ es Pri
m eiras do A rcebispado da B ah ia, a preocupação de estabelecer regras sobre a aparência
dos padres em sua v id a co tid ian a p recedeu a preocupação de d itar seu com portam ento
m orai. Eles deviam vestir-se sem pom pa, luxo e o rn am en to s, de preferência com bar
retes negros e roupas, tam bém negras, que lhes cobrissem os artelhos. A penas os cônegos
e os padres licen ciad o s (ou doutores) p o diam usar o anel, que d evia ser retirado
d u ran te a celebração d a m issa. Em casa, estavam au to rizad o s a usar roupas de ‘cores
honestas’: negro, m arro m , roxo e b ranco . V erm elh o , am arelo , verde e escalarte esta
vam proibidos. Para q ue sua adesão à Igreja fosse visível em todo lu g ar e por todos, a
tonsura devia estar b em -feita, a b arb a e o b igo d e raspados e os cab elos cortados curtos,
po r cim a das orelhas. P ortar espada, sair à n o ite, b eb er, com er em tavernas, freqüentar
teatro, d an çar, m ascarar-se e p a rticip a r de jo go s de azar eram ativ id ad es proibidas,
M as, para a h ie ra rq u ia d a Igreja, não se tra ta v a apenas d e d ar nova vida aos
decretos trid en tin o s, adotan do m ed id as já p rescritas nas C o n stitu içõ es Prim eiras do
A xcebispado d a B ahia, do in íc io do século X V III; tratav a-se, sobretudo, de renovar a
con sciên cia d a d ig n id ad e eclesiástica. O h áb ito passou a ex p rim ir a ren u n cia e a
abnegação de u m a v id a in te ira m e n te d e d icad a ao serviço de D eus. D om Rom ualdo
A n tô n io , in iciad o em sua função em 1 8 2 8 , a ssu m iu nesse po n to u m a posição firme e
intransigen te. J á na sua segu n d a p asto ral, d a ta d a de 2 0 d e fevereiro de 1829, afirmou:
“C om o se caracterizarão aqueles (se é q u e há algu n s n esta diocese) q ue se apresenta
riam para celebrar o terrível S acrifício , o u p ara sentar-se no S an to T rib u n a l da Peni
tência, sem o hábito clerical com o q u al a Igreja os h o n ro u , m as com roupas inteira
m ente seculares e profanas?” O bispo o rd en o u então q ue “n en h u m p ad re possa celebrar
o Santo Sacrifício sem b atin a, nem o u v ir u m a confissão na m esm a Igreja sem a batina
e a sobrepeliz”. E acrescentou: "N ós encarregarem os tam b ém , sob sua m ais estrita
responsabilidade, os R everendos Prelados dos conventos, os párocos, os sacristãos ou
outras pessoas aptas a dar perm issão p ara a celebração d a M issa, de recusá-la aos padres
que se apresentarem sem b a tin a .”25 N ote-se que, nessa p rim eira recom endação, o
arcebispo se lim ito u a prescrever o uso do hábito eclesiástico u n icam en te nas funções
litúrgícas. Isso é m uito revelador: o clero de então acostum ara-se a celebrar a liturgia
vestido como os leigos.
Esse p rim e iro p asso p à ra im p o r o uso d o h á b ito foi m a is d e ta lh a d o n a p asto ral de
1 8 3 2 , q u e tra to u d o s e stu d o s e d as o rd e n a ç õ e s sa c e rd o ta is . D ep o is d e le m b rar os
decreto s d c 5 d c ju n h o e d c 19 d e se te m b ro d e 1 8 3 0 so b re o uso o b rig a tó rio d a batina,
sem a q u a l h a v ia p ro va d e falta d e v e rd a d e ira v o c a ç ã o ”, d o m R o m u ald o A n tô n io
in sistiu n a e x ig ê n c ia : E n q u a n to a Ig re ja p ro c u ra d a r u m a tão a lta id é ia d a im p o rtân cia
com a q u a l h o n ra e d is tin g u e seu s m in istro s ( . . . ) q u e re p u ta çã o p o d e m erecer o
o rd en áv el q u e , ap esar d c nossas re p e tid a s ad v errê n cias e d u ra n te o cu rto p erío d o de
seu ap re n d izad o , d u ra n te o q u a l só a m o d é stia , o re c o lh im e n to e o fervor da piedade
d evem b rilh a r, tem o d esejo d e se ap re se n tar a nossos o lh o s, e x ib in d o su a d eso b ed iên
cia e com o não d c n u n c iá -lo d c não ter p resen te em seu esp írito o am o r do estado ao
L c v ro V- A I g r e ja
345
mais facilm ente q u e o pobre clero das zonas rurais e das paróquias afastadas M as por
volta de 1880, hav.a padres que, no cotidiano , ignoravam a batina. Bellarm ino Sylvestre
Torres, por exem p lo , se vestia com roupas com uns, no exercício de seu m andato de
deputado à A ssem b léia P ro vin cial. A ssim aparece, na única foto que possuímos, este
padre p arlam en tar q u e era, ad em ais, p ai de num erosa fam ília. ’
O C e liba to
recebia a côngrua? Nesses casos, ap arecia u m a a ltern ativ a in teressan te: o padre era
in icialm en te repreen dido, recebendo u m a m u lta dc 1 .5 0 0 réis; se persistisse em suas
intenções, era enviad o à prisão por u m m ês; em seg u id a, se errasse de novo, era ex ilad o
d u ran te dois anos do territó rio de sua diocese e pagava m u lta de dez cruzados; final
m en te, caso persistisse, era exilad o na Á frica e pagava u m a m u lta fixad a pelo arcebispo.
M esm o nesses casos, as sanções m a teria is p reced iam as e sp iritu a is. O pecado de
co n cub in ato não levava a n en h u m processo, po is o bispo era co m p eten te para aplicar
a pena, que a tin g ia tam bém a co n cu b in a , aliás com m ais força do q ue no caso das
m ulheres q u e m an tin h am relações ilíc ita s com leigo s. .
A ntes de ap licar as sanções, no e n ta n to , h a v ia m ed id as p reventivas. P ara evitar
q u alq u er fornicaçao, a m o ralid ad e das serv içais d ev ia estar a cim a de q u a lq u e r suspeita,
sendo form alm ente p ro ib id o q u e o p ad re tivesse criad as com m enos de cinqüenta
anos, a não ser q u e se tratasse de fa m iliare s (avós, m ães, irm ãs, so b rin h as e primas-
irm ãs), “pois o estreito laço de p aren tesco as co lo ca a cim a de su sp eitas”. A pesar dos
esforços, num erosos foram os p ad res q u e v io lara m essa d is c ip lin a fu n d am en tal da vida
religio sa cató lica. Para e x p licá -lo , é p reciso le m b ra r q u e a im a g em de padres casados e
com filhos era tão a n tig a no B rasil q u a n to a p ró p ria p resen ça d a Igreja. Esse costum e
era aceito pelo povo e estava p ro fu n d a m e n te en raizad o nos h áb ito s clericais. No
m om ento em q ue as refo rm as in terv ieram p a ra ab o li-lo , g ran d e p arte do clero viviá
m aritalm en te.
O caso d a B ah ia é ed ific a n te . M e u estu d o se b aseia em 114 testam entos e 29
inventários de padres falecid o s na P ro v ín cia en tre 1801 e 1 8 8 7 , o q u e con figura uma
am ostra razo avelm en te rep resen tativ a. Ign o ro , p o rém , a id ad e em q u e cad a um desses
padres faleceu. D esses 114 p ad res, dois — Jo sé A lves de B arata e Ignacio José M aria
— eram viúvos q u an d o receberam a o rd en ação . O p rim eiro , falecid o em 1827, tinha
sido casado com d o n a F elícia, q ue lh e d era duas filh as e cinco filh os, um dos quais
seguira a carreira do p a i.27 Ign acio Jesu s M a ria , falecid o em 1 8 3 7 , tornara-se padre
para superar o sofrim ento cau sado p ela m o rte d a m u lh e r em u m p arto .28
Restam os inventários de 112 padres, todos declarad o s celib atário s, com o exigia a
lei. Sessenta e sete deles m o rreram entre 1801 e 1 8 5 0 ; 4 5 , en tre 1850 e 1887. Se
adm itirm os que, em geral, m o rreram com 55 a 65 anos de idade, nasceram entre
m eados do século XVIII e m eados do século XIX. T rata r-se -ia en tão de um clero an
tigo, form ado sem a influên cia das duas reform as essenciais — a restauração do celi
bato e a fundação dos sem inários episcopais — in tro d u zid as a p a rtir dos anos 1840.
Q ue com portam ento teve esse clcro?
A ta b e la 6 4 é c la ra : 8 2 % d o s p a d re s fa le c id o s e n tre 1801 c 1 8 5 0 n ão d e clara ra m
filh o s, m as e n tre 1851 e 1 8 8 7 esse p e rc e n tu a l c a iu p a ra m e n o s d a m e ta d e (4 8 , 9 % ). É
esp an to so , m as é fác il e x p lic a r: os p a d re s falec id o s n o s e g u n d o p e río d o a in d a e ra m , por
id a d e e m e n ta lid a d e , h o m e n s d o sé c u lo X V III.
P or q u e , e n tã o , no p e río d o a n te r io r , a in d a m a is p ró x im o d o sé c u lo X V III, só 18%
d e c la ra ra m filh o s? A q u i ta m b é m a e x p lic a ç ã o é sim p le s: em 1 1 d e a b ril d e 1831 f°*
t a b e l a 64
As C o n f e r ê n c ia s E c le s iá s t ic a s
N a época co lo n ial, q uatro cam in h o s, não ex clu d en tes e n tre si, p o d iam preparar para
a v id a religiosa. O p rim eiro eram as C o n frarias do M e n in o Jesu s. C riad as nos Colégios
Jesuítas no século XV I, elas eram d irig id a s e m an tid as po r leigos. Desapareceram
m uito cedo, pois os jesu ítas não aceitavam com facilid ad e q ue leigos se im iscuíssem
nos negócios da O rdem .
O segundo eram os próprios C o légio s Jesu ítas que, entre 1560 e 1759, funciona
ram em regim e dc in tern ato , sendo responsáveis pela educação dc jovens, independen
tem ente de sua opção pela carreira sacerdotal. O ensino era m in istrado alí em três
graus elem entar, secundário (h u m an idades) e sup erior (artes) — e, durante certo
período, os que pretendiam seguír na vida religio sa faziam , à parte, um curso de
teologia m oral e especulativa. D epois do fracasso das confrarias, os colégios se dedica
ram à form ação dos futuros sacerdotes.
O terceiro cam inho eram os sem inários eclesiásticos. Nas últim as seções do Con
cilio de T rento os participantes insistiram na necessidade de preparar m elhor os pa-
dr« com a criação dc sem in ário s. A ssim com o „ os países d l E
esse desejo tam b ém tard o u em transform ar-se em realidade O n ■ ■
fim dado no fim do sécu lo X V I. pelo je su íta B arro,om eu de C I SZ Z Z lT Z
Cachoetra no R econcavo b a,an o , p reren d ia en sin ar as crianças a ler, escrever e contar
e dar-lhes hçoes d e g ram a r,c a e h u m a n id ad es, m as não de filosofia. As hom ilias dom i
nicais bastar,am p ara en sm ar-ih es os m istério s d a fé. T rarava-se, em sum a, de form ar
bons curas d e p aro q u ia e nao dou tores d a Igreja ou teólogos. Sem pre pela iniciativa
dos jesuítas, nu m ero so s sem in ário s foram depois fundados no Brasil.
Por fim , na ép o ca c o lo n ia l h a v ia os sem in ário s diocesanos que, ao contrário dos
eclesiásticos, d e p e n d iam d a a u to rid a d e episcop al. C o m eçaram a surgir a partir do
meio do século X V III, tam b ém sob in flu ê n c ia dos jesuítas. G abriel M alagrida, “ver
dadeiro m issio n ário p o p u la r”, foi seu in icia d o r. T en d o v isitad o as terras do Norte e
do N ordeste nos anos 1 7 4 0 , esse je s u íta perceb eu q ue era necessário agir para m elho
rar a form ação dos jo v en s sacerd o tes. Em 1 7 5 1 , obteve perm issão do rei de Portugal
para íu n d a r sem in ário s o n d e q u er q u e se fizessem necessários. A té 1676 o Brasil
contava com u m ú n ic o b isp ad o , o d a B ah ia, e os futuros padres faziam seus estudos
nos colégios dos je su ítas, term in a n d o sua fo rm ação, even tualm ente, em Portugal, de
onde v o ltav am d o u to re s em d ire ito can ô n ico o u d ireito civil. A id éia do padre
M alagrid a d e fu n d a r u m sem in ário diocesan o recebeu apoio integral do arcebispo
dom B otelho, ch egad o à B a h ia em 1 7 4 1 . H á indicações de que a direção desse sem i
nário foi co n fiad a aos p ad res d a C o m p a n h ia , e é provável que ele tenha funcionado
nas d ep en d ên cias d o C o lé g io dos Je su íta s em Salvado r. Em 1756, foi transferido para
imóvel p ró p rio , in stala n d o -se sob a invocação de N ossa Sen h o ra da C onceição. Em
dezembro de 1 7 5 9 , foi in v a d id o por soldado s, q u e pren deram os jesuítas e expulsa
ram os alu n o s. Foi n ecessário esperar o in ício do século XIX para ab rir um novo
sem inário d io cesan o , sob o u tra d ireção . D epois da expulsão dos jesuítas, todos os
sem inários d irig id o s p o r eles foram fechados, com exceção do de M arian a (M G ), que
continuou a fu n cio n ar in term iten tem en te,
Apesar dos esforços, a fo rm ação dos padres co n tin u o u extrem am ente precária
durante o período co lo n ial e m esm o depo is. Os jovens que queriam abraçar a car
reira eclesiástica p o diam apresen tar-se d ian te dos exam inadores sinodais sem haver
passado por um co légio jesu íta ou um sem inário . Os candidatos ao sacerdóc
quinam seus co n h ecim en to s com professores particulares, na m aioria das ve
giosos.^ A p artir de m eados do século XIX, dois institutos passaram a zelar pela
formação dos can d id ato s. . , c„ ...
O S em in á rio M en or, fundado cm 1852 com o nome de Scram ário dc Sao V .cen
de Paula, ab riu suas p o r,as, inieh .lm e.irc, para rodos os jovens: Q ue os pa.s de
fem ilias não fiq u em receosos pela denom inação de sem .náno ecles.ásnco ou pela
idéia de que ele é u n icam en te destinado ao aprendizado dos que asptram ao sacerdd-
c b ”, escrevia o arcebispo. “M esm o que esta seja nossa prim e.ra mtençao, sem d ü w ^
digna da aprovação de todos os q u e desejam o m elhoram ento do clero, suas portas
352 B a h ia , S é c u l o XDC
estão abertas a todos os jovens q u e se ap resen tarem com as co n d içõ es prescritas peíos
estatutos, a vocação de cad a u m p ara q u a lq u e r o u tro estad o p erm an ecen d o inteira
m ente liv re .”35
M as em 1 85 6 os padres lazaristas to m aram a d ireção do se m in ário , que passou
a d ed icar-se exclu sivam en te a can d id ato s ao sacerd ó cio . Essa o rien tação correspondia
m elh o r ao novo m o d elo de Igreja, q u e d esejav a sep arar o m u n d o esp iritu al e 0
m a teria l, clérigo s e leigo s. O s padres d ev iam ser fo rm ad o s p a ra to rn ar-se exclusiva
m en te os “curas das a lm a s”.36 N esse se m in á rio , e n sin a v a m -se la tim , francês, grego,
geo grafia, retó rica e filo so fia, m atérias co n sid e ra d as p rep ara tó ria s p ara o curso de
teo lo gia. Q u an d o foi fu n d a d o , ele fu n c io n a v a co m a lu n o s extern o s e internos; mas,
q u an d o os lazaristas assu m ira m a d ire ç ão , o e x te rn a to foi s u p rim id o , sendo restabe
lecid o em ju n h o de 1 8 6 2 . O e sta b e le c im e n to n ão re c e b ia n e n h u m a subvenção do
E stado e v iv ia ex clu siv am en te de a n u id a d e s p agas p elo s a lu n o s, o q u e , aliás, explica
em p arte suas sucessivas tran sfo rm açõ es.
A provados em 1 8 6 1 , os estatu to s e x ig ia m q u e os a lu n o s tivessem pelo m enos dez
anos de id ad e, m an ifestassem in te n ç ã o de s e g u ir a c a rre ira sac e rd o ta l, não tivessem
sido expulsos de o u tra esco la e n ão fo ssem filh o s n a tu ra is . C o m p reen d e-se o quanto
esta ú ltim a co n d ição cau sav a p ro b lem as aos b a ian o s. E la foi fin a lm e n te su p rim id a em
1 8 8 8 , o q ue d em o n stra q ue nessa ép o ca, ap esar dos esforços d a Ig re ja p a ra reform ar os
costum es dos fiéis, os n ascim en to s ile g ítim o s a in d a eram c o m u n s n a so ciedade baiana.
M as a n o rm a fo i restab elecid a e m 1 9 0 0 , o q u e m o stra co m o a Ig re ja estava apegada a
esses p rin cíp io s de ap licação tão d if íc il.37 P o u co s a lu n o s p o b res eram adm itid o s no
S em in ário M e n o r, p o is as vagas g ra tu ita s eram escassas. D ava-se p referên cia àqueles
que, além do atestad o de po breza, a p resen tassem traço s de talen to e bom caráter,
tran sm itin d o u m a esp eran ça bem fu n d a d a de q u e p o d e riam ser ú teis à Ig reja ”.38 Não
se conhece a o rig em so cial desses jo v en s se m in a rista s, m as é p ro vável q ue pertencessem
às cam adas sociais m édias d a so cied ad e b a ian a. M u ito s deles p ro vavelm en te vinham de
regiões ru rais, onde o padre m a n tin h a certo p re stíg io .39 '
U m a vez ad m itid as no sem in ário , essas crian ças eram su b m etid as a severa disciplu
na d u ran te os q u atro anos de estudos. O s dias eram p reen ch id o s com serviços religio*
sos e trabalh o. E m pregavam -se todos os m eio s — com o reclusão no sem inário e
v ig ilân cia para assegurar a m o ralid ad e e a ap tid ão dos can d id ato s, evitando o
contato destes com a corrup ção do século*. Era u m a tarefa fácil q uando o seminário
funcionava em regim e de in tern ato , m as im possível q u an d o h avia estudantes externos,
que traziam consigo as tentações do m u n do exterio r. N em sem pre era fácil afastar esses
estudantes das influên cias da v id a em sociedade.
E m 1815, a n te s d a c ria ç ã o d o S e m in á r io M e n o r , o a rc e b isp o d o m F re i F ran cisco
d e S ão D âm aso A b re u V ie ir a fu n d o u o S e m in á r io M a io r , o u S e m in á rio d e C iên cias
E c le siástica s, e s ta b e le c id o n a a n tig a r e s id ê n c ia d o te so u re iro d o c a p ítu lo -c a te d ra l, cô
n e g o R o d rig o T e lle s d e M e n e z e s q u e , ao m o rre r, le g a ra se u s b en s à Ig re ja . Q u a n d o , em
1 8 2 8 , d o m R o m u a ld o A n tô n io to m o u p o sse e m su a d io c e se e n c o n tro u ali co n d içõ es
L iv r o V- A I g r e ja
353
ciên cia H o entanto , a Igreja responde com discussão cien tífica a todas as dificul
dades que lhe são apresen tadas.”44
A pesar de todos esses esforços, o ensino nos sem inário s deixou a desejar durante
m uito tem po. Em 1872, o governo im p erial d eclaro u que esse estabelecim ento conta
va com professores que não estavam à a ltu ra de sua tarefa. Em Salvado r, essa afirmação
apareceu, por exem plo, no jo rn al cató lico C h ron ica R eligiosa , q ue a trib u iu a situação à
intervenção do próprio governo nos negócios d a Igreja, feita com “m á vontade em
relação aos negócios religiosos”. O ensino nos sem inário s tin h a sido reduzido e o número
de padres, lim itad o .45 C o m efeito, c o n trariam en te aos sem in ário s m enores, mantidos
po r anuidades pagas por seus alu n o s, os grandes sem in ário s recebiam subvenções do
Estado, que dem onstrava po uco interesse em a u m e n ta r suas despesas nessa atividade.46
O núm ero de can d id ato s que freq ü en tavam o S em in ário M a io r da B ah ia era, com
efeito, pequeno. E ntre 1857 e 1861 o scilo u en tre 2 0 e 2 3 alu n o s e desse últim o ano até
1889 entre 4 0 e 50, atin g in d o o n ú m ero m áxim o de 5 4 alu n o s em 1879. Em 1861 só
houve seis ordenações; em 1 8 7 0 , o ito ; em 1 8 8 6 e 1 8 8 9 , cin co . J á em 1870, o presiden
te d a P rovíncia, B arão de São L o uren ço , assin alo u q ue a q u a n tid ad e de padres forma
dos era in su ficien te, atrib u in d o esse fato à d im in u iç ã o do gosto p ela v id a religiosa.47
H o rários, d iscip lin as en sin ad as, regras d e co n d u ta , sanções ap licad as contra recal-
citrantes e todos os d em ais aspectos dos estatuto s desse S em in á rio de C iências Ecle
siásticas eram tão severos q u an to os do S em in á rio M en o r. P o r exem plo , os seminaris
tas que, d u ran te as férias, se vestissem com o leigo s e freqüentassem teatros ou cafés —
para não falar em locais m enos decentes — p o d iam p erd er o ano letivo ou sofrer outra
punição im posta pelo arcebispo. Só era p e rm itid o in tro d u z ir no sem inário o jornal da
diocese. A pesar dessas in terd içõ es, relacio n ad as com o desejo de form ar um clero que
tivesse aprendido costum es irrep reen síveis, do m A n tô n io de M aced o C osta foi obriga
do a reconhecer fracassos. Ele não h esito u , por exem plo , em criticar o padre Romualdo
M aria de Seixas B arroso, p o stu lan te a bispo: “F ala-se m u ito na B ah ia e alhures do que
o governo pensa sobre o padre R om ualdo M a ria de Seixas Barroso com o candidato a
um trono episcopal vacante. Esse jovem m in istro do cu lto não m e parece reunir as
qualidades requeridas para se to rn ar bispo. O padre Barroso tem um conhecimento
m uito superficial em m atéria de teo lo gia e d ireito can ôn ico e tem grandes lacunas na
doutrina, o que se pode constatar em seus escritos. N om eado há alguns anos reitor do
Sem inário da B ahia, co n trib u iu para q ue esse estabelecim en to caísse num terrível
estado de desorganização. N ão é piedoso nem tem espírito sacerdotal. Apresentados
por ele, foram ordenados alunos que já eram concubinos notórios, im orais, devassos
e sem instrução.”48
O padre R om ualdo M aria era sobrinho de dom R om ualdo A ntônio, grande pfc~
lado reformador, e integrava a elite intelectual da arquidiocese. Deve-se considerar que
dom A ntônio fez um julgam en to severo dem ais a seu respeito? Talvez não. Ao lado de
seu m inistério sacerdotal, o padre R om ualdo M aria exercia funções políticas ■f°*
deputado à A ssem bléia Provincial por m ais de vinte anos (1854—1876) — que fizeram
L ivr o V - a I g reja
355
TABELA 65
18572 - 37 - 23
1858 - 80 - 21
1860 - 93 - 20
1861 - 83 - 23
18633 47 - 25 40
18634 84 - 22 38
1868 - 7 0 -8 0 - 49
1870 113 - 39 45
1871 - 111 - 41
1878 78 - 40 45
1879 - 109 - 54
1881 88 - 9 39
1884 - 99 - 39
18855 - , 103 - 45
1886 - 97 - 48
1887 - 101 - 45
1889 - 73 - 40
(1) Só h l dados pára o Seminário M eno r; (2) Supressão dos externatos; (3) Recriação dos
externatos do Seminário Menor; (4) Decreto n° 3.073, de 22 de abril, reforma o ensino nos
seminários; (5) Supressão dos externatos no Seminário Menor. Para 1868,1871 e 1879 temos
apenas os números totais. . -
Fonte: Faias dos presidentes da Província, 1853—1889.
dele um personagem im p o rtan te nos negócios da Província. Estava, pois, m uito longe
do m odelo dc padre — afastado das questões m undanas — desejado pelos bwpos de
form ação européia e ro m ana.
O peso d a tradição era enorm e c nunca foi com pletam ente anulado pe as re o
tnas. Padres q u e se preocupavam com negócios do século eram tão com uns quanto
padres concubinos e pais dc fam ília, pelo menos até o fim do século XIX. A té o fam
do período im p erial, eles co n tin u aram sendo eleitos para a Assem bléia Provincial,
quase sem pre representando distritos eleitorais do interior, onde eram raros os homens
instruídos. N a segunda m etade do século XIX, poucos mem bros do clero representa
vam os d istrito s da cap ital ou de seu Recôncavo.
B a h ia , S é c u l o XIX
3%
O R e c r u t a m e n t o d o C lero
Com raras exceções n o rm alm en te ligad as a fam ílias im p o rtan tes, é im possível saber a
origem fam iliar do clero baiano. Em com p ensação, po de-se saber sua nacionalidade e
o estado civil de seus pais, u tilizan d o testam ento s e in v en tário s p o st m ortem .
A té o fim do século X V III, p arte do clero b aian o , so b retu do a q ue pertencia aos
altos escalões da h ierarq u ia, era de origem p o rtu gu esa. E ntre os 69 padres falecidos
entre 1801 e 1850, encontravam -se treze p o rtugueses, u m espan ho l e um o riginário de
L uanda (A ngola). U m pouco m ais do q u in to en tre eles, por co n seg u in te, nascera no
exterior (2 1 ,7 % ), ao passo que no perío do de 1 8 5 1 - 1 8 8 7 só en co n trei dois padres de
origem estrangeira (um p o rtuguês e u m esp an h o l), n u m to tal de 4 5 .
TABELA 66
O r ig e m e F il ia ç ã o d o C l e r o B a ia n o (1 8 0 1 - 1 8 8 7 )
18 0 1 -1 8 5 0 1 8 5 1 -1 8 8 7
Local de O rigem
Espanha 1 (1,5) - -
Legitimada - - 2 (4,4)
Natural 8 (11,6) 3 (6,6)
NSo indicada 10 (14,5) 11 (24,4)
Total 69 (100,0) 45 (100,0)
1ontes: Testamentos e inventários depositados lio Arqiuivo do Estado da Dali ia, ScçSo Judi-
ciá ria.
q uan to fora a M o n a rq u ia p o rtu gu esa. P erp etu o u -se a v elh a d iferen ça entre vigários
colados, nom eados pelo im p erad o r, e v igário s en co m en d ad o s, nom eados ad tempus
pelos bispos. Estes ú ltim o s tin h am poucas p o ssib ilid ad es de ser no m eado s in perpetu u m
pelo p o d er im p erial, a m enos q u e dispusessem de sólidos apoios p o lítico s. A ingerência
do poder civil nos negócio s da Igreja se to rn ara tão a m p la, q u e nem sem pre os mais
puros, m ais in stru íd o s e m ais caridosos receb iam os cargo s eclesiástico s. As opiniões
dos bispos sobre os can d id ato s p ra tic a m e n te não eram levadas em con ta. O s políticos
freq ü en tem en te im p u n h am suas escolhas.
Ignoro, p ara o co n ju n to do p erío d o , a relação en tre v ig ário s colados e encom en
dados. Em 1 8 8 7 , 124 das 190 p a ró q u ias b aian as eram d irig id a s por estes últim os ou
po r u m a no va categ o ria, in ex isten te no p erío d o c o lo n ia l: os curas nom eados interina
m en te pelo p róprio g o v ern o .52 M a is de 2/3 das p a ró q u ias estavam en tregues a titulares
provisórios. A liá s, já em 1 8 8 1 , o p resid en te d a P ro v ín cia, Jo ão L ustosa da Cunha
P aran agu á, a trib u ía o estado lam en táv el em q u e se en co n trav am as igrejas paroquiais
à in terin id ad e de seus v igário s: sem saber se iam p erm an ecer, eles não pedíam donativos
p ara realizar ob ras. D epo is d e le m b ra r q u e , seg u n d o as d eterm in açõ es do C o n cilio de
T ren to , o cargo d ev ia ser p reen ch id o no s d ez d ias su b seq ü en tes à v acân cia e que, pela
le i d e 22 de setem b ro de 1 8 2 8 , as n o m eaçõ es d ev iam ser feitas m ed ian te apresentação
de u m a lista tríp lice pelos bispos ao go vern o c e n tra l, o p resid en te d en u n ciav a a lenti
dão desse processo, q u an d o h a v ia n a dio cese d a B a h ia u m clero n u m ero so e reconhe
cid am en te co m p eten te.53
Seria o po der c en tra l o ú n ic o respon sável p o r essa situ ação ? T alv ez o arcebispo
tivesse p arte d a resp o n sab ilid ad e, p o is tam b ém n ão se in teressava em apressar a no
m eação de can d id ato s q u e — sab ia — não d ep en d iam de sua aprovação. T rata-se de
u m a hipótese sobre u m p ro b lem a q u e m erece estu d o m ais ap ro fu n d ad o . O manuseio
de diversos dossiês prep arados pelos bispos sobre can d id ato s não aju d o u a esclarecer
detalhes a esse respeito.
Às categorias dos párocos colados, en co m en d ad o s e in terin o s, pode-se acrescentar
os coadjutores e os capelães, cu jo n ú m ero deve ter v ariad o m u ito no decorrer do século
estudado. O s coadjuto res co n tin u ara m a ser n o m eado s pelo governo e pelo bispo, e
sua situação m aterial não m elho rou. A liás, h avia po uca oferta de gente para essa
função, sobretudo q uando se tratava de servir em p aróquias rurais. Para atraí-los, os
párocos eram obrigados a co m p letar do p róprio bolso os salários oferecidos, encargo
insuportável para os que tin h am rendas m odestas. A lém disso, m uitos párocos rurais
tinham que com p artilh ar seus tostões — e o faziam de m á vontade — com os capelães
que trabalhavam em seu territó rio paro q u ial.
N o m om ento em que d im in u iu o núm ero de candidatos ao sacerdócio, dim inuí
ram tam bém as possibilidades de fazer-se carreira eclesiástica fora da estrutura da
Igreja hierárquica e p aroquial. O núm ero de capelães de f a m í l ia e de ir m a n d a d e s
religiosas provavelm ente caiu a partir da segunda m etade do século XIX, o que, aliás,
era do interesse da h ierarq uia, q ue durante a época colonial não conseguira exercer
L iv ro V- A I g r e ja
3 59
sobrc eles a in flu ê n c ia d esejad a. O s bispos reform adores de todo o Bm sil tinh am com o
objetivos colo car o clero sob a a u to rid a d e tu te la r da Igreja, u n ificar sua co n d uta ê
evitar possíveis h etero d o x ias. A B ah ia não era exceção. «n au ra e
As R en d as d o C le r o
T A B E L A 67
T otal 26:634.440
TABELA 68
Deão 4 0 0 .0 0 0
Foi espantoso constatar que apenas a côngrua do arce ispo iminuiu, atoi p
9ual só encontrei uma explicação: o legislador se limitou a lembrar a Provisão de 4 de
urarço de 17 4 1, que fixou o montante dessa côngrua. Se levarmos em conta as decla-
«Vôes de dom Mqanuel Joaquim da Silveira, csrava na Bahia o brspado
Brasil. Ele conruu que, quando ehegou à P— para _ de não
que levava vantagem sobre predecessor p q
s e u ^ Jo conhcc;mento dos
rer meios sequer para tratar da saude abala , 9
presidentes da Província.65
364 B a h ia , S é c u l o XIX
TABELA 69
F o lh a d e P a g a m e n t o s d o A r c e b is p a d o d a B a h ia , 1835
Arcebispo 2:680.000
Deão 600.000
Coadjuror 50.000
Sacristão 189,000
Maceiro 45.000
Organista 225.000
Sineiro 150.000
Fabriqueiro 300.000
Ferreiro 40.000
Total 13:600.500
Fonte; Adaptado de Ignácio de Cerqueira e Silva Accioíi, M em ória s histérk as e p o lítica s da
P rovíncia da Bahia, v. 5, p. 120.
Em 1 8 3 5 , o o rç a m e n to e c le s iá s tic o v o ta d o p e la A s s e m b lé ia P ro v in c ia l foi de
5 8 :3 1 4 .7 2 0 d e réis, dos q u a is 1 6 :0 0 0 .0 0 0 d e stin a d o s à c o n stru ç ã o d e ig rejas paro quiais.
M as h o u ve o u tra n o v id a d e im p o rta n te : a d o ta ç ã o do c a p ítu lo fo i v o ta d a sep arad am en
te, alcan çan d o 1 3 :6 0 0 .5 0 0 d e réis. L o g o , p a ra o c o n ju n to do c le ro fo ram destinados
5 5 :9 1 5 .2 2 0 d e réís, o q u e re p re se n ta v a 9 % do O rç a m e n to d a P ro v ín c ia p a ra o exer
cício 1 8 3 5 —1 8 3 6 , co m u m a u m e n to d e 1 4 5 % em re la ç ã o à d o ta ç ã o d e 1 8 0 0 .^
C o m p aran d o os n ív eis de 1 8 0 0 e d e 1 8 3 5 , p a ra o a lto clero o au m en to foi o
segu in te, d ecan o , 5 0 % ; d ig n itá r io , 6 6 ,6 % ; cô n eg o , 6 0 % ; c ô n e g o sem ip reb en d ad o ,
1 4 0 % ; v ig á rio d a c a te d ra l, 5 0 0 % . P ara o b aix o clero (in c lu in d o n esta catego ria os
padres q ue, a diversos títu lo s, e n c arreg av a m -se d a ig re ja c a te d ra l): c o ad ju to r da cate
d ra l, 6 6 ,6 % ; su b c h an tre , 6 2 ,1 % ; cap elão , 5 0 % . O s c lérig o s das o u tras paróquias
tiveram su a c ô n g ru a a u m e n ta d a em 5 0 0 % e os c o ad ju to re s em 100 % . N o período
segu in te, a c ô n g ru a do clero b aian o se e stab iliz o u .
A cô n g ru a, os d ire ito s d e esto la e o u tro s e m o lu m e n to s n ão c o n stitu ía m as únicas
fontes de renda do clero . A an álise d e testam en to s e in v en tário s m o stra q u e todos os
L iv r o V - A I greja
365
q u e devia ser co m p lem en tar a o u tras, in certas, o b tid as no e x ercício das funções sacer
d o tais, d e acordo com a boa v o n tad e dos fiéis.
O p atrim ô n io do fu tu ro padre era fo rm ad o por seu s p ais ou p aren tes, ou ain d a por
terceiros. N o in íc io do sécu lo , ele às vezes era c o n stitu íd o d c fo rm a p ro visó ria, encon
trand o-se, nos atos carto riais, freq ü en tes restriçõ es co m o estas: “com a co n dição qUe
ele só tom e posse d a d ita fazenda d ep o is de ter sid o o rd en ad o ( . . . ) e q u e esse patrim ônio
retorne a seu c o n stitu in te se seu b e n e fic iá rio a d q u ir ir u m carg o em co lação ” ou ainda
“en q u an to ele não tiv er cargo s". T a m b é m p o d ia a c o n te c e r q u e o fo rm ad o r de um pa
trim ô n io o d eclarasse n u lo se seu b e n e fic iá rio n ão tivesse sid o o rd en ad o padre num
prazo aceitável, não esp ecificad o .70 E vitava-se assim o p a ra sitism o , várias vezes denuncia
do, p raticad o no m eio c le ric a l. Essas c lá u su la s re stritiv a s, c o n tu d o , n ão eram generali
zadas, e o pad re assu m ia suas fu nçõ es sac e rd o ta is m u n id o d e u m p eq u en o pecúlio que
lh e p e rm itia en fren tar as n ecessid ad es m ais u rg en tes. A liá s , a p a rtir d e 1 8 3 5 a legisla
ção p ro ib iu a sup ressão do p a trim ô n io dos p ad res sob q u a lq u e r p retex to .
O pad re secu lar tam b ém p o d ia a d q u ir ir bens p o r h e ra n ç a ou legad o . Ele herdava
d e seus pais, m as era o b rig ad o a tra z er em co lação as d o açõ es q u e recebera durante a
v id a destes. S o m en te os reg u lares red u zid o s ao estad o se c u la r se beneficiavam do
m esm o d ire ito , o q u e foi o m o tiv o a le g ad o p a ra n u m ero sa s red u çõ es d e religiosos ao
estado secu lar no século X IX . Eles tam b ém p o d ia m receb er, a títu lo pessoal, legados
d e sua fa m ília ou de terceiro s. À s vezes, m as ra ra m e n te (cato rze casos em 1.115
an alisad o s), esses legad o s eram co n testad o s p ela fa m ília dos d efu n to s. Em com pensa
ção, os padres receb iam severas c rític as dos fiéis, q u e rep ro v av am su a voracidade por
d in h eiro no exercício de su a m issão sacerd o tal — v e lh a ce n su ra, fe ita a todas as Igrejas
do m und o , às vezes in ju sta m e n te .
C om o a m o vim en tação fin an c e ira das p a ró q u ias n ão estava sujeira a nenhum
registro form al, é im p o ssível sab er q u a l a p a rtic ip a ç ã o do d in h e iro dos fiéis na receita
acu m u lad a. T am b ém é im po ssível d is tin g u ir, en tre os bens dos p ad res, aqueles origi
nados de h eran ça, legado ou in v estim en to s. É certo , no en ta n to , q u e os padres inves
tiam em aventuras co m erciais — com o a co m p ra de escravos n a costa africana, por
exem plo , terras e propriedades im o b iliária s.
A p e sa r d o ta m a n h o in s u f ic ie n te — a p e n a s 2 3 in v e n tá r io s — , n o ssa a m o stra apre
se n ta u m a im a g e m c h e ia d e m a tiz e s so b re a f o r tu n a d o s p a d re s q u e m o rreram em
S a lv a d o r, E n tre 1821 c 1 8 5 0 , c ie s d e ix a r a m h e ra n ç a s e n tre 1 :3 6 6 d e ré is (in v e n tá rio n°
5 / 7 2 4 , d o p a d re M a n u e l d e S a n ta M ô n ic a D e lf im , fa le c id o e m 1 8 2 1 ) e 1 2 :0 8 2 d e réis
(in v e n tá r io n° 6 / 7 9 7 , d o c ô n e g o J o ã o C o r r e ia d e B r ito , fa le c id o cm 1 8 3 6 ). E n tre os
o ito in v e n tá rio s d e p a d re s fa le c id o s n esse p e río d o , só u m d e ix o u p assiv o (n ° 4 / 7 8 9 , do
p a d re Jo sé d o A m a ra l M a c e d o , fa le c id o cm 1 8 3 4 ). P a ra o s e g u n d o p e río d o , d e 1851
a 1 8 8 7 , as fo n tes são m ais s u b s ta n c ia is : os q u in z e in v e n tá rio s a n a lisa d o s m o stram que
as fo rtu n as d o s p ad res sc situ a v a m e n tre 2 8 1 .0 0 0 ré is (n** 3 / 1 0 8 4 , d o p a d re Francisco
H e n riq u e d e A lm a d a , fa le c id o c m 1 8 8 6 ) e 4 7 :1 1 2 d e ré is (n ° 5 / 7 2 2 3 , d o cô n ego Jo ão
Jo sé d e A lm e id a , fa le c id o no m esm o a n o ). O c ô n e g o L o u re n ç o B o rges d e Lem os,
pároco de N o ssa S e n h o ra d a P en h a, falecid o em 187S rU; - , , ,
I & (inventário n° 7/3682). cldo ^ 7 5 , detxou um pa5s,v„ de 1:4 8 8 de
cinco deixaram som as entre 101 e 5 0 0 m il réis, q u atro som as entre 500 m il réis e
1:000 de réis e seis outros som as entre 1 :0 0 0 e 6 :0 0 0 de réis, A m éd ia de fortuna desse
grupo de pessoas q ue ocupava os escalões m ais baixos d a h ie ra rq u ia social era de cerca
de 1:025 de réis, o q ue é co eren te com a posição q u e os alforriados ocupavam na
sociedade de então.
Para a segu n d a m etad e do século X IX , tem os q u in ze in v en tário s de padres,74
D ois deles d eixaram d ívid as, q u atro d eix aram m enos d e 2 :0 0 0 de réis e dez deixaram
bens avaliados en tre 4 :9 2 6 d e réis e 4 7 :1 1 2 de réis. A h eran ça m ais m odesta, de 182
m il réis, foi a do padre Francisco H e n riq u e de A lm ad a, falecido em 1886, no mesmo
ano, o cônego Jo ão Jo sé de A lm e id a d eix o u a seus h erd eiro s 4 7 :1 1 2 de réis. A dife
rença en tre essas duas fo rtun as é co n sid eráv el. O côn ego Jo ão Jo sé era m em bro de
u m a p o d erosa fa m ília d e sen h o res de e n g e n h o do d is trito de S an to A m aro, no
R ecôncavo, ao passo q u e o padre F ran cisco era, d o p o n to de v ista d a origem familiar,
um desconhecido. Sem d ú v id a, o côn ego h erd o u d a fa m ília u m a parte de seus bens,
entre os quais figu rava u m a fazen da e u m reb an h o de ovelhas. Ele não era, aliás, o
único padre b aian o m u ito rico. Em 1 8 8 5 , o cô n ego H e n riq u e de Souza Brandão,
tesoureiro do cap ítu lo e filh o de u m a p o dero sa fa m ília do d istrito de Santo Amaro,
d eixou a seus h erd eiro s a in teressan te so m a de 2 9 :0 0 0 de réis (in v en tário n° 5/1985).
G randes fortunas seriam características de cônegos? E d ifíc il responder. U m ano mais
tarde, o cônego G ustavo A dolfo d e S á B arreto , m em b ro de u m a fam ília m uito co
nh ecid a na cid ad e de S alv ad o r, d eixo u ap en as d ív id as, n u m valo r de 119-634 réis
(inventário n° 7/ 1097).
C o n tin u em o s a co m p arar os in v en tário s dos padres e os d a população livre e
alforriada desse perío do. T o m em o s n o vam en te u m só an o , o de 1866. A m aioria dos
sete inventários desse ano d iz respeito a fo rtu n as superiores a 1 0 :0 0 0 de réis. Com
efeito, a não ser os 1 :5 6 6 d e réis deixado s pelo alfo rriad o E liseu A ugusto Pires, horte-
lão dos arredores d a cid ad e (in v en tário n° 1/1089 de 1 8 8 6 ), e os 4 :1 4 3 de réis em
ações bancárias e obrigações do E stado deixado s por Jo a q u im Luiz A gu iar (inventário
n° 7/1089 de 1 88 6), todos os outros registraram fo rtun as superiores a 15:000 de reis
em valores brutos (antes d a sub tração de despesas e d ívid as). M as três entre elas
estavam m uito oneradas por d ívid as, razão p ela q u al os herdeiros só receberam entre
8,5% e 4 9,5% do seu valor.
N ão tenho a in ten ção de m e a lo n g ar nessa q u estão , à q u al consagrarei um
estudo à p arte.75 Por en q u an to , b asta acen tu ar q ue a fo rtun a m ais baixa, a do
alforriado E liseu A ugusto Pires (1 :5 6 6 de réis), foi m aio r que a do padre Francisco
H en riqu e de A lm ada (2 8 1 .0 0 0 réis); e q u e a do co m ercian te português A ntônio José
Luiz B randão (8 7 :7 7 3 dc réis) foi quase duas vezes m aior que a do cônego João Jose
de A lm eida (4 7 :1 1 2 de réis). A an álise dessas duas ú ltim as fortunas m ostra que a do
cônego nada tin h a de exo rb itan te. Se a com pararm os à deixada pelo comerciante
português F rancisco Adãcs V ilas Boas (1 .1 8 9 :6 8 7 .9 7 9 réis, segundo o inventário
n° 4/7216 de 1 8 8 4 ), ela se transform a num a fo rtun a boa, m as não excepcional. No
L iv r o V- A I greja
' - -C 369
Dois M o d e lo s p a r a a M e s m a M is s ã o
p ad re’ d evia ser b rasileiro e recru tado em fam ílias leg alm en te co n stitu íd as, talvez
m odestas, m as com hábitos irrep reen síveis. D epois de passar p ela seleção e entrar
no S em in ário M en o r, o can d id ato devia su b m eter-se a q u atro anos de internato
on de recebia só lid a instru ção e m o ld av a o caráter e o co m p o rtam en to . Se fosse jul
gado apto a prosseguir, era a d m itid o no S em in á rio M a io r, o n d e, du ran te mais qua
tro anos, preparava-se para exercer su a m issão sacerd o tal. N essa etapa, os superiores
h ierárq uico s ju lg av am n o vam en te a vocação do c an d id ato e d ecid iam se era oportu
no orden á-lo .
O rd en ad o p ad re, o jo v em nao tin h a m ais o le q u e de p o ssib ilid ad es de outrora, que
p erm itia a u m a p arte do clero pro teger-se de p reo cu p açõ es m a teria is prem entes e viver
com alg u m a in d ep en d ên cia m a teria l e e s p iritu a l. A go ra, an tes de ser aprovado pela
au to rid ad e go v ern am en tal, o ex ercício de q u a lq u e r fu nção sacerd o tal dependia da
au to rid ad e dio cesan a (no a n tig o sistem a das cap elan ias o E stado não exercia nenhuma
in flu ên cia sobre o recru tam en to dos padres feito p o r p a rtic u la re s; em contrapartida,
exercia in flu ê n c ia in d ire ta no recru tam en to dos cap elães p elas co n frarias religiosas, já
que os estatuto s destas estavam sob seu c o n tro le). A lém d isso , os novos padres tinham
q ue viver apenas com a c ô n g ru a e n ão p o d iam m ais ex ercer a m u ltip lic id a d e de ofícios
q ue o u tro ra lhes p e rm itia m v iv er m o d estam en te e a té a n g a ria r alg u n s bens (ou mesmo
fo rtun as). M as, com um p o uco de sorte, eles a in d a p o d iam p restar serviços remune
rados — m estre-escola ou p recep to r, p o r ex em p lo — , co n tan to q u e isso não os afas
tasse dos seus lo cais de m o rad ia e fosse p e rm itid o p elo bispo . A tu d o isso se acrescen
tava a falta de en tu siasm o d em o n stra d a p elo go vern o p ara criar novas paróquias e até
p ara no m ear titu lares de p aró q u ias o u seus co ad ju to res.
Por outro lad o , co m p reen d e-se a h esitação dos bispos em u tiliz a r seu direito de
nom ear párocos a títu lo p ro visó rio , po is o su sten to destes recaía sobre os fiéis. O
m étodo tin h a, aliás, ou tro in co n v en ien te: n a p rática, su b o rd in av a o pároco a um chefe
local ou, na m elhor das hip óteses, a u m a co m u n id a d e . E le ficava pois subm etido a
trip la auto rid ad e: a do bispo , a do E stado e a do chefe p o lítico da paróquia em que
servia. Este ú ltim o exercia, sem d ú v id a , o p o d er m ais pesado c opressor, m as seu apoio
era m uitas vezes in d isp en sável para a carreira do padre.
Os padres de form ação e co m p o rtam en to an tigo s eram capazes de conviver
tirando proveito da situ ação , às vezes em d etrim en to dos fiéis — com essas tres
autoridades, cujos p rin cíp io s eram freq ü en tem en te co n trad itó rio s. M as qual era a
atitud e dos padres form ados segundo o m odelo trid en tin o c rom ano? A Igreja conse
gu iu im por esse m odelo, que enfatizava o aspecto esp iritual em relação ao material? E
d ifícil responder.
N ão h á dúvida d c que as reform as in tro d uzid as a p artir de m eados do século X IX
conferiram à Igreja brasileira — e baiana, em p articu lar — um aspecto clerical, a
im agem fam iliar do padre-precepcor, do padre-tio, do padre-paí, do padre-padrinho,
tendeu a se enfraquecer, surgindo em seu lu gar a do padre-cura, com hábitos reforma
dos e educação religiosa superior. Essa im agem era verdadeira, so b re tu d o em Salvador
L:\-ro V - a I greja
371
A ntes p risio n eiro o b ed ien te de seus fiéis, o padre era agora o m estre que contro
lava suas devoçoes, que q u e r,a d tn g tr su a consciência em nova d ireçío , difícil de ser
com p reend id a p ela m assa tgn o ran te e an alfab eta e por um a parte d a elite, subm etida
às in fluen cias ideolo gtcas do sécu lo . D esejando colocar os fiéis sob com pleta depen
dência esp iritu a l d o clero , a Igreja C a tó lic a co n trib u iu para afastá-los dele. Sem dúvi
da. procissões e o u tras celeb raçõ es religio sas con tinuavam presentes no dla-a-dia dos
paroquianos. M as, p o uco a p o u co , elas perderam a espontaneidade e a vivacidade
p o pulares. A c a b a ra m p o r se to rn a r sím b o lo s de u m a religio sid ad e que perdera
esp iritu alid ad e, fervor e, so b retu d o , p ap el so cial. P ropiciando outrora um a alegre
convivência de to d as as categ o rias sociais, elas se tornaram o refugio das pessoas mais
carentes, q u e a Igreja tin h a in teresse em proteger, tolerando práticas que, aliás, julgava
supersticiosas.
As procissões relig io sas e o u tras p ráticas populares se tornaram um espetáculo
orquestrado p ela Igreja, no q u al os atores eram um a m in o ria de pobres, fiéis ao
catolicism o tra d ic io n a l, e os espectadores eram os ‘novos’ católicos, tomados pela
dúvida e a in d ife re n ç a . Só as cerim ô n ias realizadas nas igrejas, como a recitação do
rosário ou a a d o ra çã o do S an tíssim o S acram en to , reu n iam grupos de fiéis com
e sp iritu alid ad e nova, nos q u ais as m u lh eres eram m aioria. A volta do padre à sacristia,
ressacralizando o san tu á rio , co n feriu nova dim ensão à confissão, à missa e à com u
nhão, mas afasto u desses atos gran d e p arte dos fiéis. A Igreja C atólica ganhou em
qualidade o q u e p erd eu em q u an tid ad e? M ais um a pergunta que ficará sem resposta.
Nas zonas ru rais o a m b ien te que cercava o padre era com pletam ente diferente.
N om eado pároco ou co ad ju to r, in p erp etu u m ou a títu lo provisório, ele geralm ente
vivia a centen as ou m esm o m ilh ares de quilôm etros da sede episcopal. A distânci
afrouxava os laços e p o d ia p ro d u zir certa independência, sobretudo quando as visitas
pastorais eram raras, su b stitu íd as por missões de ordens religiosas. Era requente q
o padre de u m a p aró q u ia do in terio r ficasse isolado espiritualm ente, ent g ' -
mesmo, como o cura dc outrora, apesar das conferências cclcsiásr.ca, Além disso o
poder — que ele repartia antes com um chefc local, representante a 'IU,0" ‘
- tinha que ser compartilhado agora com numerosos agentes:
tos, delegados e subdelcgados de Polícia. ‘ ^ n,'“^ 0'sua i n tiga influên-
políticos locais. Nem sempre ele., eram favorável»:. y ■. ^
cia sobre a popuUçáo. Para v e n c e r na L s , arirudes que às
com esse círculo , e isso nao cra fácil. Apar *
vezes não correspondiam aos desejos da k ,crj,<Ju‘a' pavam facilmente às contra-.
Os novos padres, form ados pelos semmi no , ^ ^ conseguiram
dições de seu m eio. Raros foram os párocos rurais q ,
B a h ia , S é c u l o XDÍ
372
As O rdens R e l ig io sa s
373
B a h í a , S é c u l o X IX
TABELA 70
Beneditinos 31 19:000
Franciscanos 36 -
Capuchinhos 13 5:000
Subtotal 120
O rdens F emininas
Subtotal 124
a particulares. O historiador V alen tin C aldcrón afirm a que os c a r in e lir a s deviam hgu
* . n
rar entre os m aiores cinprcstadorcs da cidade, mas não nos dá a prova disso.
O utro destaque eram as religiosas do D esterro, com 21,5% da renda total e 44,7%
da das ordens fem ininas. Estes haveres tinham sido constituídos por doações de particu
lares e pelos dotes das moças que entravam no convento, nem sem pre pagos imedia
tam ente. Por causa da falta dc liquidez que atin gia a m aior parte dos agricultores
com erciantes, era costum e fazer um contrato com o pai ou o tutor da futura religmsa.
concedendo à ordem direito de propriedade sobre um a porção dc terra, uma proprie
L iv ro V - A Ig rk ja 379
dade agríco la ou um im ó v e l.,A in stitu ição religiosa não entrava im ediatam ente na
posse desses bens, m as receb ia ju ro s de 6 ,2 5 % ao ano, ate que the fosse entregue o ca
pital d evido . Se, com o era co m u m , a p ropriedade fosse v en d id a, o com prador assum ia
a d ívid a. Este m étodo tornava m u ito aleató rio o p agam ento do p rin cip al da dívida, que
freqüentem ente era 'esq u ecid a', reduzindo a reserva de capital do convento. Adem ais, no
sécuto XVIII esses d ireito s desap areceram pouco a pouco, e os devedores passaram a
pagar apenas os juros a n u ais, reduzidos a p artir de 1757 a 5% d u ran te 25 ano s.14
O s dados obtidos são coerentes entre si. B eneditinos e irm ãs do Desterro eram,
efetivam ente, as ordens m ais ricas da cidade. Ignoro, com o disse, o patrim ônio im obi
liário dos prim eiro s, m as conheço o das irm ãs, graças a estudo da historiadora Susan
Soeiro, F undado no fim do século X V II, m enos de cem anos depois o convento do
Desterro já possuía u m a fo rtu n a con siderável. E m préstim os a particulares eram um item
de prim eira im p o rtân cia até o fim do século XVIII. D uran te todo o período colonial,
ordens religiosas c alg u m as irm an d ad es leigas, com o a M isericó rdia, desem penharam o
papel de bancos, q ue só com eçam a existir em 1 8 0 8 .15 A partir de 1772, no entanto, os
haveres líq u id o s p erd eram posição, pois as m onjas em prestavam dinheiro sem saber se os
devedores eram solváveis. G randes som as foram assim perdidas. Em 1764, por exemplo,
51 devedores m o rreram , levando con sigo 3 3 :4 3 6 .0 6 7 de réis da o rd em .16 Para resolver
o problem a, o arcebispo da B ah ia crio u no próprio convento um a seção de contabili
dade, d esignando um co m ercian te com o ad m in istrad o r. A ele som aram -se dois juristas,
um para se ocupar de contenciosos ju ríd ico s, o outro para coletar os aluguéis e os juros
dos em préstim os. Em 1 7 7 8 , fin alm en te, o padre Inácio Pinto de A lm eida foi nomeado
ad m in istrad o r dc todos os bens, da in stitu ição e das m onjas.
Em 1 7 7 8 , o p atrim ô n io im o b iliário do D esterro era form ado por oitenta casas
urbanas, “dois pedaços de te rra ” e u m a fazenda, avaliado s em 4 6 :5 5 9 -7 6 6 de réis, que
davam u m a ren d a a n u a l de 2 :4 7 8 .3 2 0 de réis, ou seja, 5,3% do capital (note-se que
estes m esm os dados são fornecidos p ela h isto riad o ra am erican a para o ano de 1771).
M as será verdade que, en tre os conventos d a cid ad e, o do D esterro era o m aior
proprietário, o lea d in g la n d lo r d ? 17 Parece-m e u m a afirm ação precipitada, pelo menos
enquanto os bens dos outros conventos e m onastérios, assim como os das ordens
terceiras e irm andades religio sas, nao tiverem sido estu d ad o s.18 É preciso adm itir, no
entanto , que o D esterro era um dos m ais ricos proprietários de im óveis da Bahia. Em
1859, o convento possuía 104 casas, ad q u irid as por doações, legados ou compras.
De que tipo dc casas se tratava? Segundo Susan Soeiro, a cidade tinha umas cinco
mil casas por volta de 1800. Já vim os que o recenseam ento de 1872 apontou 15.257
casas, das quais 14.631 habitadas. N enhum a das duas fontes fornece um a tipologia
dessas habitações. U tilizan do inform ações dc viajantes e declarações de um funcioná
rio real, a historiadora norte-am ericana afirm a, entretanto, que os imóveis das ordens
religiosas, especialm ente do Desterro, eram casas térreas, sem andares superiores e
habitadas geralm ente por pessoas pobres. Afirm a tam bém que conventos, monasterio ,
irm andades e ordens terceiras não dem onstravam interesse em m elhorar as con içõ
380 B a h ia , S é c u l o XIX
residenciais d a cid ad e, pois as rendas q ue an g ariav am com esses casebres eram suficie^
tes.20 Esse ponto de vista deve correspo nder à rea lid a d e po is, segu n d o m inh a análiSe
na C id ad e A lta — on de se co n cen travam esses bens — as casas eram efetivamçntç
térreas em sua m aio ria. R efen n d o - se ao estado m iseráv el das casas de Salvador, lij^
fu ncio nário real d eclaro u q ue “a p rin c ip a l cau sa d esta d eso rd em é q u e as casas perten_
cem aos conventos e a o u tras corp orações, q ue não p o d em a lie n a r seus bens e não Se
envergo nh am do fato d e q u e suas ren d as p ro v en h am desses m iseráveis casebres”.21
D e q u alq u er form a, a situ ação das o rd en s religio sas era m u ito m elho r quç a
clero secular. Seus m em bros co n tav am com o serviço de escravos e tin h am teto gratui
to, ao passo que os seculares en fren tavam suas o b rigaçõ es apenas com a porção côngrua
rendas de seu p a trim ô n io e d o n ativ o s dos fiéis. Em term o s p e r capita,, essas rendas
eram ; b e n e d itin o s , 6 1 3 .0 0 0 ré is ; c a r m e lita s , 1 2 4 .0 0 0 ; c a p u c h in h o s , 3 8 4 .0 0 0 ;
franciscanos do D esterro, 3 6 4 ,0 0 0 ; franciscanos d a L ap a, 3 1 2 ,0 0 0 ; ursulinas das Mercês,
2 8 0 .0 0 0 ; e u rsu lin as d a S o led ad e, 1 4 3 .0 0 0 . U m a tal situ ação p o d e ter contribuído —
é o que consta — p ara criar ciú m es no clero secu lar, q u e aliás d em o n stro u pouquíssimo
interesse em ap o iar seus irm ão s em re lig iã o , q u a n d o isso se fez necessário (lembremos
q ue o governo p ro p u n h a u tiliz a r os bens dos reg u lares p a ra m elh o rar o ensino nos
sem inário s d io cesan o s).22 Esses d ad o s, d e 1 8 5 4 , fo ram p a rc ia lm e n te confirm ados em
1857, q u an d o in q u érito do M in is té rio d a J u s tiç a rev elo u (p a ra as ordens masculinas)
o núm ero de con ven tos e de religio so s p o r d io cese.
TABELA 7 1
R e s id ê n c ia e N ú m e ro d e R e lig io s o s
p o r D io c e s e , 1 8 5 7 - O r d e n s M a s c u lin a s
T a REI . A 7 1
Bahia
7
Rio ctr Janeiro
9
Pernambuco
5
.Maranhão
1
São Paulo
3
M ariana 4
Rio Grande do Sul 1
Total 30
fonte- Fiolando Azzi íorg.j, A v id a religiosa n o Brasil, p. 92.
O exam e das tab elas 7 0 , 71 e 7 2 torn a possível um a análise com parativa. Nota-se
em p rim eiro lu g ar que, n a B ah ia, o n ú m ero de religiosos aum en to u. Eram 120 em
1854 e, três anos d ep o is, 161. O in q u é rito do M in istério da Ju stiça exam inou dezeno
ve casas de regu lares, esp alh ad as por todo o territó rio da Província. Não tenho infor
m ação sobre o n ú m ero de religio sas, m as na tab ela 72 estão incluídas as irm ãs de São
V icente de P au la, com trés casas in stalad as.
A B ahia tin h a o m aio r n ú m ero de in tegran tes de ordens m asculinas, mas era
ultrapassada pelo R io d e Ja n e iro q u a n to ao n ú m ero dc casas (19 contra 22). Nessa
época, as dioceses dc* G o iás, M a to G rosso e C eará não tin h am conventos, e só lazaristas
e franciscanos estavam in stalad o s nas dioceses de M a rian a e D iam an tin a (M G ). Isso se
explica por u m a a n tig a decisão d a C o ro a, q u e p ro ib iu a instalação de ordens nas
regiões do ouro e dos d ia m a n te s.23 B ahia, R io de Jan eiro , Pernam buco e São Paulo
abrigavam 8 4 ,1 % das instalações e 8 4 ,5 % dos religiosos do pa/s. Sozinha, a Bahia
concentrava 4 1 ,6 % dc todos os religiosos. N ote-se, fin alm en te, que os jesuítas, expul
sos do Brasil cm 1759, in staiaram -se de volta, tim id am en te, no Rio G rande do Sul, e
que a única ordem nova cra a de São V icente de Paula.
O* dados da tabela sobre ordens fem ininas tém erros e lacunas. Para a Bahia, por
exem p lo , as q u a tro casas q ue p erten ciam às fran ciscan as e às ursulinas foram
contabilizadas ju n tas, c não houve m enção aos tres recolhim entos existentes em Salva
dor, N enhum a inform ação aparece sobre o núm ero dc religiosas. Graças às sete pro
priedades das irm ãs dc São V itcn tc dc Paula, a diocese do Rio dc Janeiro detinha 30%
do conjunto das casas religiosas fem ininas, a Bahia vindo cm segundo lugar, com
23,3% . N ote-se que, tendo c hegado ao Brasil em 1849, as religiosas dc São Vicente de
Paula já possuíam , oito a n o s depois, catorze casas dc um total de trinta, o que prova
o vigor dessa ordem , educadora c hospitaleira, Enquanto isso, as ordens tradicionais
brasileiras sc estíolavam entre as paredes dc seus conventos, sem terem objetivo ver a
382 B a h ia , S é c u l o XÍX
d eiram en te apostólico. A exceção ficava por con ta dos reco lh im en to s, que às vezes
tin h am um verdadeiro program a de educação para a ju v en tu d e que lhes era confiada
N o século XIX, porém , estavam tão decaden tes q u an to os conventos. O do Desterro
por exem plo, no século XVIII fu n cio n ava tam bém com o in stitu to de educação, ativi
dade que foi retom ada pelas u rsu lin as no século XIX. E stim u lad as pelo exemplo das
irm ãs de São V icente de P aula e das d o ro téias, elas tran sfo rm aram os conventos em
centros exem plares de educação p ara as jovens b aian as.
Encontrei novos dados sobre as orden s religio sas trad icio n ais em um relatório do
M in istério da A gricu ltu ra, C o m ércio e O bras P ú b licas, datad o de 1 8 7 0 . Só aparecem
resultados de âm b ito n acio n al. O s b en ed itin o s, com 41 religio so s em onze mostei
ros, possuíam sete engenhos, m ais de q u a re n ta fazendas e terreno s, 2 3 0 imóveis,
1.265 escravos (haviam alforriado cerca de três m il...) e duas olarias. Os carmelitas,
com 49 religiosos em catorze conventos, tin h am m ais de q u aren ta fazendas e terrenos,
136 im óveis, quatro engenhos, duas o larias, 1 .0 5 0 escravos e 9 1 0 cabeças de gado. Os
85 franciscanos se d iv id iam por 25 conventos e p o ssu íam q u a re n ta escravos. Os mer-
cidáríos tinh am apenas u m religio so no B rasil, m as eram pro p rietário s de quatro
fazendas e duzentos escravos.24
Os dados do recenseam en to de 1 8 7 2 tam b ém n ão po dem ser utilizados para a
B ahia, pois nessa P ro vín cia a p esq u isa se lim ito u ao clero secular. Em 1885, um
relatório do governador do arceb isp ad o d a B ah ia, m o n sen h o r M an u el dos Santos
Pereira, apresentou o n ú m ero d e 30 religio so s e 3 2 religio sas, repartidos nos diferentes
conventos d a P ro víncia. O relato r a tr ib u iu esse baixo efetivo à p o lític a do governo e
ao com portam ento dos m onges e m o n jas: “N os con ven tos fem in in o s q ue ainda rece
bem m ocinhas para serem educadas, a d iscip lin a regu lar não é m ais que um a pálida
im agem do que foi e, q u an d o se q u er m u d ar esse estado de coisas, n lo se pode fazê-
lo por causa d a ídade avan çada e das en ferm id ad es das religio sas.” Ele denunciou
tam bém a grande d im in u ição h av id a nos p atrim ô n io s de todos os conventos, sobretu
do aqueles de religiosos que desaparecem com u m a rapidez vertiginosa. Os Beneditinos
consom em os seus com um prazer quase ep icu rista. E não sei se o pouco que resta
daquela dos C arm elitas será su ficien te para susten tar o ú ltim o sobrevivente”.*'5 Só os
seis capuchinhos realizavam missões no in terio r da Província.
A Igreja sabia com o cra d ifícil reform ar hábitos arraigados. Tornava-se, porém,
cum plíce do Estado, que tinh a outras razões para querer ex tin gu ir as ordens antigas.
PoÍ preciso esperar o fim do século e a aju d a dc religiosos estrangeiros para que elas
fossem restauradas. A dos beneditinos, por exem plo, que em 1893 tinha apenas um
religioso no m osteiro, foi reform ada entre 1890 c 1910, com auxílio dos monges da
Congregação de B cauron.2f>
H ostil, por motivos econôm icos e políticos, às ordens instaladas há mais tempo no
Brasil, o Império facilitou ativam ente a chegada de novas ordens e congregações,
chegando mesmo a pedir ao governo italiano que não criasse obstáculos à vinda de
m issionários.22 H avia o desejo de dar ao Brasil um a feição mais ‘européia’. Além disso.
L iv r o V - A Igreja
383
o. religiosos estrangeiros entravam aqui sob controle do governo, que tinha a firme
intenção de im pedir a form açao de patrim ônios. Com a abolição de antigos privilé
gios, O Estado se tornara, com o vim os, o único herdeiro dos bens regulares e desejava
tomá-los dò clero. }
Neste aspecto, os desejos do governo co in cid iam com os d a alta hierarquia da
Igreja, pois, para os bispos reform adores, as ordens religiosas já tinh am cum prido sua
tarefa. A v id a dos religio so s e religiosas brasileiros estava, em geral, voltada para dentro
de conventos e m o n asterio s. As exceções eram as ursulinas dos conventos das M ercês e
de Soledade, q ue m a n tin h am escolas para m oças, e os beneditinos, franciscanos e car
melitas, que ■com m enos in ten sid ad e a p artir do século XIX — m inistravam cursos
de filosofia. O s teólogos dessas ordens ensinavam então no Sem inário M aior da diocese.
M as os tem pos tin h am m u d ad o . O pro gram a de reform as precisava de novos
modelos de v id a religio sa p ara poder en fren tar as exigências d a Igreja e da sociedade.
As novas ordens e congregações traziam proposta renovadora, pois sua vinda para o
Brasil era m o tiv ad a p o r u m id eal m issio n ário e apostólico que se exprim ia em missões
populares e em ativ id ad es ed u cacio n ais e de assistência a doentes e pobres, áreas
prioritárias para a a lta h ie ra rq u ia da Igreja. D aí a estreita colaboração que, ainda no
período de dom R o m u ald o A n tô n io , elas estabeleceram com o arcebispado da Bahia.
C apuchinhos, Irm ãs de C a rid a d e e Padres d a M issão tiveram im po rtan te participação
no m ovim ento refo rm ado r.
A fixação dos capuchinhos na B ahia foi tardia. Os prim eiros a chegar no Brasil eram
franceses, que vieram em 1 6 1 2 na e x p e d iç ã o d a La Ravardiere ao M aranhão e foram
expulsos dois anos m ais tarde. Em 1641 outro grupo de franceses veio para o Brasil, mas
também foi expulso, em 1 6 9 9 , quando da guerra entre França e Portugal. Em 1705
chegaram os italianos, que se instalaram na B ahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, de
onde estenderam missões a M inas G erais, Espírito Santo e às províncias do Sul do país.
Quando da ruptura entre o governo do M arquês de Pombal e a Santa Sé (1760), a maior
parte dos capuchinhos italianos foi expulsa do Brasil, embora esta fosse a unica or^ m
que gozava de certa popularidade, pelo menos na Bahia, no final do século XVIII.
Vindos da Itália, conhecidos por seu espírito de pobreza e seu apostolado popular,
os capuchinhos percorreram vastas regiões do Sertão em missões de evangelizaçao de
índios e, além disso, m ostraram -se excelentes guias espirituais para a populaçao urba
na. Sua ação era m uito apreciada pelos habitantes de Salvador, que iam à igreja
convento para ouvir as prédicas, sempre simples e acessíveis, e receber os sacramentos.
Segundo V ilhena, no convento da Piedade havia sempre “m uito povo devoto, nao so
para o exercício da oração, em que aqueles exemplares religiosos o instruem , como
para a freqüência dos sacram entos da penitência e da eucaristia, que todos os dias, com
B a h ia , S é c u l o XIX
384
c a rid a d e e zelo exem plar, lhes su b m in istram , além das freq ü en tes prédicas da doutrina
. , ■ ” 29
evangélica com que incansáveis o exportam .
N um erosos contem porâneos testem u n h am que, d u ran te todo o século XIX, os
capuchinhos m antiveram a preferência p o p u lar. A lém disso , foram os prim eiros a
colaborar efetivam ente com a restauração d a diocese. Em 1 8 3 9 , o arcebispo da Bahia,
dom R om ualdo A n tô n io de Seixas, elo gio u as m issões realizadas por esses religiosos,
sobretudo nas terras do in terio r: “Inúm eros escândalos são resolvidos pelo sacramento
do casam ento; ódios e in im izad es in veterad as ex tin g u em -se; esposos separados voltam
a unir-se; os trib u n ais da p en itên cia são freq ü en tad o s e b an h ad o s por lágrim as de
arrependim en to; a p iedade e a devoção sao p u rifica d as das p ráticas supersticiosas
contrárias à san tid ad e do cu lto ; o respeito e a o b ed iên cia às leis, fo rtem en te inculcados
não com o resultado de sim ples acordos, m as co m o o o rd en a o p róprio D eu s.”30 Quem
eram esses irm ãos? J á m oravam na B ah ia ou tin h a m v in d o d e P ern am b u co , após terem
sido expulsos dessa P ro vín cia em 1832?
D epois de 1840, o con ven to d a B ah ia receb eu , d a Itá lia , reforços extrem am ente
insuficientes, se pensarm os q ue u m p u n h ad o de religio so s tin h a o encargo de adm inis
trar q uarenta aldeias in d ígen as e realizar in ú m e ra s m issões p o p u lares ju n to às popula
ções cristianizadas d a P ro vín cia. D om R o m u a ld o A n tô n io escreveu em suas M em órias
do M arquês d e S anta C ruz ; “B asta lem b ra r o ed ifica n te e m ag n ífico espetáculo apre
sentado por num erosas m issões dos cap u ch in h o s ( . . . ) . Pessoas e clérigo s os reclamam
e esperam com im p aciên cia ( . . . ) . P op ulações in te ira s d eslo cam -se a lugares distantes
para ouvir a palavra d iv in a dos láb ios desses h o m en s, a q u em ven eram com o anjos.”
O quadro pin tado pelo arcebispo é, no en tan to , exagerad o . A pesar de populares,
as missões eram relativ am en te raras no sécu lo XIX . O en tu siasm o q ue despertavam nas
massas e o arrependim en to p rofu ndo q ue d elas se apossava não p o diam resistir às
inúm eras tentações d a v id a c o tid ia n a , já q u e, freq ü en tem en te, passavam -se anos entre
um a e outra m issão. M as não h á d ú v id as de q u e a ob ra ev an g élica desses missionários
foi exem plar. Eles tiveram que lu ta r m ais de u m a vez c o n tra a incom preensão do poder
civil e a resistência dos chefes locais, desejosos de m an ter a tu tela sobre os moradores
da Província. C om o no passado, sua ação ju n to aos h u m ild es d a c id ad e de Salvador foi
m uito positiva: sua igreja co n tin u o u a ser um cen tro de aco lh im en to para m uita gente,
ávida por ouvir palavras sim ples e receber um tratam en to cam arada, que contrastavam
tom as prédicas pom posas c a severa austerid ad e de m u ito s párocos.
p r i m e i r a c o n g r e g a ç ã o f e m i n i n a q u e c h e g o u a o B r a s i l , a d a s I r m ã s d e S ã o V i c e n t e de
a u a , o u i r m ã s d c C a r i d a d e , d c s c n v o l v c u - s c m a i s d o q u e i o d a s as i n s t i t u i ç õ e s r e l i g i o '
as o p e río d o im p e r ia l. S e g u in d o o e x e m p lo d c d o m V iç o s o , b is p o d e M a r ía n a , d o m
L ív r o V - A I g r e ja
gerações de b aian as receberam nesses co légio s u m a só lid a edu cação — talvez demasia
d am en te afastada da realid ad e q ue as cercava — . a lia d a a u m a instru ção religiosa afi
nada com o esp írito da reform a d esejad a pelos bispos. Sem a presença das religiosas
francesas, m u itas dessas m oças não teriam acesso a esse nível de instrução.
As freiras tam bém faziam obras b en eficen tes: cm 18*59, tom aram o e n c a r g o dos
pobres de très p aró q u ias da cid ad e — S an ta n a , C o n ceição da P raia e São P e d ro _
chegan do a socorrer 3*698 deles, tratan d o do en ças e d istrib u in d o roupas e víveres no
próprio esp írito de São V icen te de P a u la .36
clero da F rança c o u tro s p aíses d a E uro pa, q ue os bispos em p en h aram -se em ad o tar em
SUas dioceses, m o v id o pelo ex em p lo d ad o pelo em in en te B ispo de M a ria n a , en carre
gando esses p ad res, fieis d .sc íp u lo s e h erd eiro s d o esp írito de seu im o rtal fu n d ad o r
não som ente d a h in d a ç a o m as ig u a lm e n te d a regên cia das cáted ras de seu sem in ário
com preendi q u e era p reciso ta m b é m to m a r essa m ed id a para prom over a m elho ra dos
Pequeno e G ra n d e se m in á rio s d este A rceb isp ad o , do q u al d ep en dem os futuros d esti
nos da Igreja m e tro p o lita n a . N ão p o rq u e não ho uvesse nessa arq u id io cese padres que
reunissem o sab er, a p ie d a d e e o zelo p a ra ed u ca r o novo clero , m as porque estes, ou
bem tin h am o u tro s en carg o s in c o m p a tív e is com a assíd u a v ig ilâ n c ia q u e exige u m a
in cu m b ên cia tão la b o rio sa e d e lic a d a , o u en tão p o rq u e, apesar d e suas q u alid ad es, não
tinham a a p tid ã o e a e x p e rie n c ia a d q u irid a s pelos L azaristas d u ran te o longo a p re n d i
zado com o q u a l se p re p a ra m p a ra essa e sp e c ia lid a d e p ró p ria de seu in s titu to .”40
Os a rg u m e n to s do arceb isp o m erecem aten ção . S eria v erd ad e q ue os clérigos
baianos q u e e n sin a v a m nos s e m in á rio s o cu p a v a m cargos in co m p atív eis com a direção
destes? O d ire to r d o P e q u e n o S e m in á rio era o irm ão F ran ciscan o A rsên io da N a tiv i
dade M o u ra, p ro fesso r d e h is tó ria e c le siá stic a no G ran d e S em in á rio . A lém dessa d ire
ção e de suas o b rig a çõ es c o n v e n tu a is, o ú n ico cargo assu m id o p o r esse irm ão era o de
exam inador s in o d a l,41 m as ele a b d ic o u “com p raz er” de seu cargo de d ireto r, segundo
dom R o m u ald o A n tô n io . O re ito r do G ran d e S e m in á rio , p ad re Jo sé de Sou za L im a,
tam bém ap re sen to u s u a d e m issã o . P áro co do P ila r, ju iz do T rib u n a l E clesiástico e
exam inador s in o d a l, a té 1 8 5 7 ele só m an tev e u m a cad eira de p rofesso r-sub stítuto no
Sem inário M a io r .42 O s m ú ltip lo s cargo s q u e exerceu, so b retu d o o de pároco, foram
considerados in c o m p a tív e is com a d ireção do sem in ário . M as este não foi o problem a
verdadeiro, p o rq u e os p ró p rio s laz aristas estavam sobrecarregados de trabalh o, com o
capelães das Irm ãs de C a rid a d e e de suas casas, aco m p an h an tes assíduos dos p aro q u ia
nos e p articip an tes d e m issõ es, ao lad o dos cap u ch in h o s.43
Q ual a ex p licação ? A m e u ver, do m R o m u ald o estava convencido de que não era
possível fab ricar o novo com o v elh o . O s religio so s que ensinavam nos sem inários
eram, em sua m a io ria , regu lares ou padres e cônegos form ados em p iricam en te, sem
estudos regu lares, a não ser os realizad o s nos próprio s conventos, com o m onges ou
como ouvintes. F altava a esse clero a cap acid ad e de form ar jovens segundo um a
educação “p ro p riam en te c le ric a l”, con fo rm e ao esp írito da reform a. As cátedras de
•eologia d o gm ática e de teo lo gia m oral, no en tan to , estavam nas mãos de dois francis-
« n o s , A ntônio d a V irgem M aria Itap arica c R aim un do N onato de M adre de Deus
Fontes, que tin h am o títu lo dc predicadorcs im periais e eram conhecidos por seu
« h e r . O p rim eiro en sin o u teolo gia do gm ática por m ais de 30 anos, cercado pela
adm iração dc discíp u lo s c colegas; o segundo, professor de teologia m oral, era consi
derado, cm 1870, o decano das ciências eclesiásticas da diocese.
Dom R om ualdo protestava contra a “guerra in ju sta” travada contra os lazaristas
S°L pretexto dc q u e eram estrangeiros. M as, apesar dos seus esforços, a m udança não
fw aceita. A oposição à presença deles nos sem inários foi tão violenta quanto a que
388 B a h ia , S é c u l o X I X
: *
A so cied ad e b a ia n a d o s é c u lo X I X e r a d a s m e n o s h o m o g ê n e a s . A lé m d a d ife re n c ia ç ã o
em g ru p o s s o c ia is , d o is o u tr o s fa to r e s d e s e m p e n h a v a m p a p e l im p o rta n te : o e sta tu to
ju ríd ic o (liv r e s , a lf o r r ia d o s , e s c r a v o s ) e a c o r d a p e le (n e g r a , m u la ta , b ra n c a ) d e seus
in te g ran te s. N u m a s o c ie d a d e d e s se tip o , d ife r e n te s c r ité r io s d e te r m in a m as cliv ag en
;ens.
E x am in arei a q u i o f a to r c u lt u r a l, f o r te m e n te in f lu e n c ia d o p e la açã o d a Igreja,
A a g r ic u lt u r a d o m in a v a a im e n s a P r o v ín c ia . A p e s a r d o s esfo rço s e m p ree n d id o s
p artir d a I n d e p e n d ê n c ia , a u r b a n iz a ç ã o p e r m a n e c ia m e d ío c re , so b re tu d o n o in te rio r,
cu ja p o p u la ç ã o d e s c e n d ia d o s ín d io s , d o s c o n q u is ta d o r e s p o rtu g u e se s e, em m en o r
grau, dos a fr ic a n o s tr a z id o s à fo r ç a . A e ssa t r ip la h e r a n ç a ra c ia l e c u ltu r a l so m av a-se a
trad ição c a tó lic a . S u r g iu d a í u m a e s p é c ie d e s ín te s e , n a fo rm a d e u m a re lig io sid a d e
p o p u lar o r ig in a l, c u ja s p r á tic a s d if ic u lt a r a m a o b ra re fo rm a d o ra q u e a Ig re ja p re te n d ia
realizar.
D o p o n to d e v is ta s o c ia l, as h ie r a r q u ia s e ra m m a l d e fin id a s . A p o p u laç ã o v iv ia
num siste m a c o m u n it á r io e m q u e se d is t in g u ia u m a e lite d e p ro p rie tá rio s , o riu n d a do
am álgam a d a s trê s ra ç a s e d e te n to r a d o p o d e r p o lític o e e c o n ô m ic o . M a s n ão h av ia
diferen ças se n s ív e is e n tr e a m a s s a d o s liv re s e a lfo rria d o s (ta m b é m fo rm a d a pelas tres
taças) c a d o s e scra v o s, os d o is g r u p o s v iv e n c ia n d o as m esm as ex p e rie n c ias d e p o b reza
e opressão. A c o n d iç ã o d o s ‘ m o ra d o re s ’ e ra m u ito s e m e lh a n te à d o s escravos, e> às
v« c s , p io r. P riv a d o s d a p r o p r ie d a d e d a te rra , p e rm a n e n te m e n te am eaçad o s d e ex p u -
s®°; eles tra b a lh a v a m p a ra u m s e n h o r q u e lh es fo rn e c ia in stru m e n to s de p ro d u ção e
alo jam en to s p ro v isó rio s. , , . ,
A in d a e x is tia m m u ita s a ld e ia s in d íg e n a s , m a s a p a rtir d a ex p u lsão dos je su íta s na
« g u n d a m e tad e d o s é c u lo X V III o p o d e r te m p o ra l re to m o u o co n tro e a a m ints r -
Ção desses povoados, ro m p en d o seu is o la m e n to , so b retu d o no A gresre. In 5
brancos, m u la to s e n eg ro s p ro v o co u e n tã o u m a p erd a g ra d a .tv a na h o m o g e n e ^ de
- ad d - z j r
tiveram -se iso la d a s, p o is a d ifíc il s itu a ç ã o econ ôm ica d a reg
38 9
390 B a h ia , S é c u l o XIX
R e l ig iã o O f ic ia l e R e l ig iã o d o P ovo
O s h isto riad o res d a Igreja d efin em o c a to lic ism o trazid o ao B rasil pela colonização
com o leigo , so cial, fa m ilia r e m ed iev al, Este ú ltim o asp ecto se caracterizava pela crença
na força dos esp írito s do m al (q u e levava a p ráticas d e feitiçaria), o uso da blasíenua
(q u e liberava as pessoas do fo rm alism o d a relig iã o o ficial) e o gosto pelas peregrina
ções. M as, ao lado do cato licism o o ficial, q ue im p u n h a obrigações c deveres aos fiéis,
os portugueses trouxeram para o B rasil u m a religio sid ad e m ais ín tim a, im pregnada de
profunda devoção, que im pressionava as m en talid ad es populares. I olerada pela Igrej*1,
essa dim ensão sen tim en tal abriu espaços para a assim ilação de elem entos provenientes
de outras crenças, especialm en te o ju d aísm o c as religiões indígenas e africanas. Do
prim eiro, os luso-brasilciros adotaram u sabá (por exem plo, vcncrava-se aos sábados o
nom e de N ossa Senh ora), o cu lto dos m ortos e a esperança m essiânica. Dos ameríndios,
o culto da san tid ad e, as artes m ágicas e o sentido de libertação; ser libertado 0
cativeiro por Deus era um desejo dos índios cristianizados, que se assemelhava muito
à esperança m essiânica tran sm itid a pelos ju d eu s. Finalm ente, as religiões africanas
que deram a m aior con tribu ição para a síntese dos elem entos constitutivos dos
versos credos in sp iraram aos brasileiros o gosto neU f
rituais e p ro cissõ es.1 Essa síntese foi vivenciada d * j - CXpresso ern daní as
locais em q ue resid iam os crentes (índios a frir m i! dlfcrente> conforme os
distância q ue os sep arav a d a h ierarq u ia e c le sia l.' ^ P° rtÜSUeses ou brasileiros) ee a
A religião cató lica o ficial, a da Iereia biW Sr„,.- - i
e
controlar as estru tu ras so ciais e im p u n h a obrigações’ a T fiéis ° EStad° 3 m ° d c k r
confessar, fazer a co m u n h ão a n u a ,, descansar nos dom ingos é 0^ “ ^
obrigaçao, p ra t.c a r ab sttn en cta e jeju n s e subm eter-se aos sacramentos do batism o e do
casam ento. N em sem p re esses deveres eram cum pridos com facilidade, pois havia falta
de padres, so b retu d o no cam p o . A ssim , além de participarem da Igreja oficial, os fiéis
tam bém vtviam su a fe c ristã d an d o vazão, no cotidiano , a um profundo sentim ento
religioso.
A religião do p o vo 2 — “m u ita reza e po uca m issa, m uito santo e pouco padre” -
se d iferen ciava d a p ra tic a d a p ela Ig reja C ató lica por seu caráter leigo, fam iliar e social
e pela im p o rtân c ia d a d a aos santos . N o te-se, no entanto , que a devoção a estes últimos
— com seu co rtejo de orações, procissões e peregrinações — não excluía práticas do
catolicism o o ficial. S em p re q u e possível, as pessoas participavam dos sacramentos e da
missa e escu tav am com fervor a p regação dos padres.
A devoção aos san to s, cen tro d a religião do povo, tinh a duplo aspecto. Era celebrada
coletivam ente, nas fa m ílias, nas irm an d ad es e em outras reuniões de fiéis, e era dirigida
tanto a pessoas can o n izad as com o a ou tras, que nao estavam mas se desejava que
estivessem — no p an teão o ficial. Isso corresponde à tradição da Igreja C atólica, sem
pre voltada p ara a v o x p o p u li q u an d o trata de processos de canonização. Ao contrário
do que ad m ite p arte dos h isto riado res da Igreja, os m ilagres feitos e a fama junto ao
povo foram a base do processo de canonização de todos os santos reconhecidos M as,
independentem ente disso, a devoção sem pre se d irigiu tam bém a santos locais e fam i
liares. U m a crian ça cru elm en te assassinada, um a pessoa tragicam ente morta o
leproso piedoso podiam tornar-se santos e desem penhar o papel e mterme tarios
para a obtenção das graças p ed id as.3 .
O utro aspecto era o caráter individual e privado da devoção aos santos No rs-
plrito dos devotos, Deus não era objeto de um culto partteu ar. m o
todo-poderoso, intervinha na vida cotidiana, sendo invocado pelo fie‘
pressão “se Deus quiser", acrescentada a quase todas as frases
futuros. C, povo também^ venerava
Purgatório e os santos anommos, cuj. os supljcantes haviam expen-
nul testam entos q u e estudam os. Isso dem q
tnentado sua eficácia.6
392 B ahia , S écu lo X IX
H avia duas m o dalidades de relação com os santos. A p rim eira era de devoção, qUe
se estabelecia n o batism o d a crian ça (cujo nom e ho m enageava um santo padroeiro)
por tradição fam iliar (quase todas as fam ílias tin h am um orago, ou santo, d o m é s t ic o )
ou para cu m p rir um a prom essa feita pelos pais. Essa relação era d efin itiv a e não podia
ser ro m pida; o fiel tin h a um “p ad rin h o no céu ”, ao q u a l con sagrava sua devoção, p0is
o santo o protegia nesta v id a e facilitav a sua passagem à v id a eterna. Q uase sempre se
encontrava, ao lado do santo, o anjo d a g u a rd a, in v isível protetor e diretor de cons
ciência, ao qual o fiel prestava con tas de seus atos todos os dias.
A segunda relação era d e tip o co n tratu al. Im p líc ita ou exp licitam en te, entre santo
e fiel se estabelecia um co n trato q u e, em p rin cíp io , d evia levar à obtenção de uma
graça ou um benefício. Só m otivos sérios ju stific a v a m prom essas, m uitas vezes feitas
em casos de perigo, tendo em v ista o b ter p ro teção : p ed ia-se, por exem plo, a interven
ção da V irgem M a ria (N ossa S en h o ra d o P arto ) em u m parto d ifícil ou de Santa
B árbara q uando soprava u m a tem p estad e v io le n ta . Se a graça fosse obtida e o fiel
cum prisse o p ro m etid o , co n siderava-se o co n trato cu m p rid o ; mas se a promessa não
fosse honrada, a pessoa co rria o risco de não p o d er su b ir aos céus, tornando-se uma
‘alm a p en ad a’, co n d en ad a a v agar pelo m u n d o até q u e alg u ém pagasse a dívida con
traíd a. Em algun s testam ento s aparecem p ed id o s p ara q ue outros cum prissem uma
prom essa que o testado r não tivera tem po de honrar.
A lgum as vezes o fiel c u m p ria sua p arte do co n trato antes do santo, que se tornava
devedor. C om as novenas, por exem p lo , esperava-se o b ter u m a d eterm in ad a graça ao
fim de certo tem po. Se, no fim , as duas partes tivessem agid o a contento, o contraio
se desfazia e as obrigações cessavam p ara am bas as partes. Fica claro, portanto, que, ao
contrário do que o co rria no p rim eiro tip o de relação, nesse caso a alian ça era provisó
ria, e a proteção p ed id a, tem p o rária.
A liança e con trato tin h am , en tretan to , u m a característica com um : a relação que se
estabelecia era sem pre d ire ta e pessoal, sem in term ed iário s (ain d a hoje sao publicados
nos jornais agradecim en tos aos santos pelas “graças alcan çad as”). Aos olhos do povo,
o santo não era u m a realidade ab strata; estava sem pre encarnado na estátua que o
representava. Q uase todos os lares d a B ah ia, m esm o os m ais m odestos, tinham seus
oratórios cheios de estatuetas de santos fam iliares. Em 6 0% dos inventários p o st mortem
estudados, correspo nden do ao perío do 1 80 1 —1 8 9 0 , figuram oratórios com suas
estatuetas, ou apenas estas últim as.
N o c a m p o e n a c id a d e , a v id a re lig io sa d o fiel e stav a c e n tr a d a em relações diretas,
pessoais, c o m os san to s. Essa in t im id a d e era, aliá s, e n c o r a ja d a p e la fa m ília e por toda
a so cied ad e, q u e via nessas relaçõ es u m a esp écie d e p ro te ção s u p le m e n ta r àquela que
a d v in h a dos sa c ra m e n to s, C o m o já disse, as p rá tic a s religio sas p riv a d a e oficial nao
e ram nem a u tô n o m a s , n e m op ostas, m as sim c o m p le m e n ta r e s .7 Essa situação era
aceita p e la Ig reja o fic ia l, m as a p a rtir d e m e a d o s d o século X IX ela te n to u im p rim ir à
religião p rivad a u m a no va o rie n taç ão .
A re lig io sid ad e do povo ta m b é m se e x p rim ia a t r a v é s 'd e superstições. Para se
L iv r o V - a I g r e ja
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precaver c o n tra a m á so rte, as pessoas u savam colares feitos de contas {de pedras
preciosas, o u ro , p rata, m a d e ira ou peq u en o s cocos), m edalh as, escapulários L e
firas com a m e d id a e x a ta d e u m a e s ta tu e ta de san to (antecessoras das fitas que hoje
são en ro lad as nos p u lso s dos b aian o s e dos tu ristas q u e v isitam o san tu ário do Se
nh o r do B o n fim , e m S a lv a d o r). A v isão de esqu eleto s provocava um santo terror
estim u lad o p ela cren ça de q u e o m u n d o estava povoado de alm as penadas. C o n si
derava-se q u e a v id a dos vivos era m ais in flu e n c ia d a p ela ativ id ad e dos m ortos no
período d a Q u a re sm a , e x ig in d o p ro cissõ es de exo rcism o , seguidas som ente por ho
m ens e a c o m p a n h a d a s de can to s lú g u b res. S o b retu d o no cam po, as encruzilhadas
eram o rn ad as co m cru zes q u e le m b ra v a m a p resen ça d a m orre e a aparição de alm as
d e fu n ta s.8 G ilb e rto F reyre escrev eu q u e "ab aix o dos santos, m as acim a dos vivos,
h avia os m o rto s, q u e d irig ia m e v ela v a m p ela v id a de seus filhos, netos e bisnetos!
Suas fo to g rafias era m co n serv ad as no sa n tu á rio , e n tre as im agens dos santos, com o
m esm o d ire ito q u e estes à lu z d a lâ m p a d a v o tiv a e ao b u q u ê de flores piedosas. Por
vezes, con servavam -se tam b ém tran ças das m u lheres ou m echas de cabelos das crianças
- t ■ > «9 -
que m o rriam an jo s * J -
O m esm o a u to r e n u m e ro u o u tras su p erstiçõ es, algum as das quais presentes tam
bém nos países m e d ite rrân e o s: “D eve-se en rrar n u m a casa com o pé d ireito e sair
pela m esm a p o rta. U m a v asso u ra atrás d a p o rta faz com que a visita, que está de
m o rando, v á em b o ra. N ao se p p d e p ô r o p ão n a m esa às avessas; nem o chinelo;
senão a m ãe d e seu p ro p rie tá rio v a i m o rrer no m esm o ano. N ão se gosta de m orar
num a casa de e s q u in a p o is ‘casa de esq u in a é m o rte e ru ín a 1. A lgum as aves dão azar
quando e n tram na casa o u p o u sam no teto : co ru ja sign ifica m orte, assim como o
colib ri, q u an d o e n tra em casa de m a n h ã cedo. Rãs, gafanhotos, besouros e formigas
aladas têm m á rep u tação . Em co m p en sação , é recom en dado tom ar banho de m ar à ■
m eia-n o ite na vésp era de São Jo ão ou arran car u m galho de arruda neste m om ento
preciso. P ara u m a jo v em recém -casad a, asp irar o perfum e de um a rosa tem efeito
an tico n cep cio n al. P ara q ue as crian ças sejam bem com portadas, os adultos as am e
d ro ntam , am eaçan d o -as com bich os-papõ es q ue correm pelas m atas com o focinho
no chão, po rque suas patas traseiras são m aiores q u e as dianteiras. Há adultos nas
zonas rurais q ue acreditam firm em en te na existên cia de,charretes invisíveis, que ran
gem e can tam pelas estradas nas noites de lu a cheia, puxadas por bois conduzidos
por alguém invisível, ou por m ulns-sem -cabeça que trotam pesadam ente, abrindo e
fechando com portas c u rin an d o nos passantes. As pessoas também acreditam que
existçm porcos negros que vagahu ndeiam , invisíveis, nos corredores das casas
senhores .”10 ■
H avia relações im p lícitas entre essas superstições profanas e as religiosas, na
dida em que o invisível, o ‘outro m undo im aterial, estava presente em todas as c Ç
populares: o além era povoado por santos, anjos e alm as bem-aventuradâs, ota
poderes benéficos, mas tam bém pelo diabo e sua corte de auxiliares, onte e m
de m alefícios q ue precisavam ser neutralizados. Aos espíritos do mal atr.bufam-s
B a h ia , S écu lo X IX
poderes so b ren atu rais, acessíveis por in te rm é d io das b ruxas, tam b ém na B ahia repre
sen tad as pela im agem de u m a m u lh e r velh a, a lta , m agra, en ru g a d a, feia, suja e esfar
rap ad a, carregan d o u m a saco la ch eia dc o b jeto s m isterio so s e an d an d o pela noite
so tu rn a e sin istra. A b ruxa tem d u as fu nçõ es clássicas. A m ais poderosa faz parte do
ciclo da a n g ú stia in fan til e se in te g ra em am eaças n o tu rn as, q u an d o a crian ça fica
aco rd ad a, d eso b ed ecen d o â v o n tad e d a m ãe. P ara os ad u lto s, a bruxa enfeitiça e
a m ald iço a, m as ig u a lm e n te , graças a p o d ero sas orações e filtro s, une ou separa os
n am o rad o s e trata dos d o en tes com rem éd io s cu jo segred o não revela. Segu ndo Câm a
ra C ascu d o , cad a lu g a rejo , cad a a ld e ia , cad a v ila tem sem p re u m a “velha misteriosa
rezad eira, au reo lad a p elo p restíg io de u m a rep u tação de sab er e p o d er”. 11
M as as sup erstiçõ es p ro fan as nem sem p re p reo cu p av am a Igreja de form a espe
c ial, a nao ser com o expressões de u m a m e n ta lid a d e atrasad a do povo. A Igreja se
p ro p u n h a a lu ta r so b retu d o c o n tra su p erstiçõ es q u e en v o lv iam seus próprios santos.
O uçam os d e novo G ilb erto F reyre: “O s g ran d es san to s n acio n ais to rn aram -se aqueles
a q uem a im a g in a ç ão do povo ach o u de a tr ib u ir m ilag ro sa in terv en ção em aproxim ar
os sexos, em fecu n d ar as m u lh eres, em p ro te g e r a m a te rn id a d e : San to A ntônio, São
J o io , São G o nçalo de A m ara n te, S ão P ed ro , o M e n in o D eu s, N ossa Senh ora do ó ,
d a B oa H o ra, d a C o n ceiçã o , do B o m Su cesso, do B om P arto. N em os santos guerrei
ros, com o Sao Jo rg e , nem os p ro teto res das p o p u laçõ es co n tra a peste, como São
Seb astião , ou c o n tra a fo m e, com o S an to O n o fre — san to s c u ja p o p u larid ad e corres
ponde a ex p eriên cias d o lo ro sam en te p o rtu g u esas — elev aram -se n u n ca à im portância
ou ao p restígio . Aos o u tro s, p atro n o s d o am o r h u m a n o e d a fecu n d id ad e agrícola.’ 1*
As funções m ais p o p u lares d e São Jo ão eram as afro d isíacas, e seu cu lto era acompa
nh ado por can tos sen suais e o u tras p ráticas. E le era, p o r ex celên cia, o santo que fazia
os casam entos; na n o ite o u n a m a n h ã d a festa de S ão Jo ã o , eram feitos sorteios que
visavam , “no B rasil com o em P o rtu g a l, à u n ião dos sexos, o casam ento, o am or que
se deseja e não se en co n tro u a in d a ”. 13 “S an to A n tô n io p ro tege outros interesses amo
rosos, por exem p lo as afeições p erd id as. O s noivos, os m arid o s, os am antes desapare
cidos. O s am ores q u e arrefeceram ou m o rre ra m ... A estátu a d aqu ele santo é suspensa,
o m ais freqüentem ente dc cab eça para baixo, n u m a cistern a ou num poço, para que
ele realize suas prom essas o m ais rap id am en te possível. Os m ais im pacientes a colo
cam em velhos u rin ó is.”1'1 O cu lto de São G onçalo do A m arante estava ligado a
práticas m aís livres e desp u do radas, a b rejeirices e obscenidades. A tribuía-se a ele o
poder dc en co n trar m arido para as m ulheres velhas, assim com o São Pedro fazia com
a$ viúvas. Q uase todos os nam orados recorriam a São G onçalo, cantando: c a s a i- m e ,
casai-m c/São G onçalinho/Q ue hei de rezar-vos/Amígo S an tin h o " .15 As pessoas este
reis, sem filhos ou im potentes pediam ajuda a São G onçalo, em cuja festa se dançay
no convento do D esterro c em outras igrejas baianas, mesmo depois da interdição
determ inada pela Igreja.
Esses santos protetores do am or e da fecundidade tam bém protegiam a agricu
tura. Com efeito, São Jo ão e Nossa Senhora do ó , adorada outrora sob a forma e
Lr. Ro V - A Igreja
m
m u lh e r g rav id a , eram am ig o s dos ag ricu lto res, a quem aju d avam tan to quanto aos
nam o rad o s. Q u an d o as pessoas q u eriam ch u va, m ergulh avam Santo A ntônio n á g u a
Q u an d o um in c ê n d io d evo rava as p lan taçõ es de can a, colocava-se a im agem do santo
n u m a ja n e la d a casa do sen h o r até q ue o fogo se apagasse. A noite de São Jo ão tam bém
era a festa da a g ric u ltu ra , so b retu d o do m ilh o , q u e, servido com o can jica, pam onha ou
bolo, g u a rn e c ia as m esas de ricos c p o b re s.16
N as c a n tig a s de n in a r, as m ães não h esitav am em transform ar seus filhos em
irm ãos m ais m oços do M e n in o Jesu s, co n ced en d o a eles os m esm os d ireito s aos c u i
dados de M a ria , às v ig ília s de São Jo sé, aos m im o s de S a n fA n a . São José era encarre
gad o . sem n e n h u m a c e rim ô n ia , de b a lan ç ar o berço ou a rede do bebê; S an fA n a, de
n in á-lo no p eito . T o m a v a m -se tan tas lib e rd a d e s com os santos q ue eles eram encarre
gados até m esm o de p ro te g e r os v id ro s de g e lé ia e doces co n tra a ação das form igas:
"Em h o n ra de São B en to , p a ra q u e as fo rm igas não e n tre m ”, escrevia-se num papel-
zin h o co lo cad o na p o rta d a d e s p e n s a !37
Esse c o m p o rta m e n to re lig io so , ce n tra d o na devo ção aos santos e num a rela
ção com eles s im u lta n e a m e n te in d iv id u a l, fa m ilia r, co letiv a e sup ersticio sa, form ava
a v erd ad e ira re lig iã o do p o vo , q u e se e x p rim ia sob o co n tro le d a Igreja h ierárq uica
ou na fo rm a de u m a p ie d a d e a u tô n o m a , m u ita s vezes situ a d a fora do alcance dessa
m esm a Ig re ja. .
U ma R e l ig iã o n o C o t id ia n o
C a d a tem po litú rg ic o tin h a suas p ró p rias p ráticas. N o N atal, preparavam -se pre
sépios, freq ü en tem en te v erd ad eiras obras dc a rte, rep resen tan d o com realism o o nas
cim en to de C risto ou in serin d o -o em m aq u etes q u e re c o n stitu íam fielm en te S a l v a d o r
com as cid ades B aixa c A lta, as ig reja s e ed ifício s p ú b lico s, as praças, as ruas e até
pessoas. A a u sterid ad e d e q ue era im p reg n a d o o T e m p o do A dven to não im pedia a
aleg re celebração das festas d e S a n ta B árb ara , de N o ssa S en h o ra d a C onceição ou de
S an ta L ú cia, com m u ita b eb id a, c o m id a , d a n ç a e can to s, p ren ú n cio das festas popu
lares e p a ra litú rg ic a s — ch eg an ças, b ailes p a sto ris, b u m b a -m e u -b o i e c u c u m b is qUe
tin h am lu g ar en tre o N a ta l e o D ia de R e is .19
As ch egan ças, o u fan d an g o s, era m e sp etácu lo s ao a r liv re q u e representavam a
ch egad a dos p o rtu gu eses ao B ra sil, a v itó r ia d o c ris tia n is m o sobre o paganism o ou as
batalh as en tre m o uro s e cristão s. O s b a iles p asto ris celeb rav am a m e m ó ria dos pastores
q ue ad o raram Jesu s M e n in o , C a ra c te rís tic o s d a classe m é d ia b a ix a, reu n iam moças e
rapazes q u e, vestido s de b ran co e ao so m de fla u ta s e tam b o res, iam de casa em casa
e can tavam d ia n te dos p resép io s n a n o ite de N a ta l. A s rep resen taçõ es do bum ba-m eu-
boi o co rriam en tre m ead o s d e n o v em b ro e o D ia de R eis. N elas, h av ia um a cena
can tad a, re c itad a e-d an çad a, cu jo s p erso n ag en s (tio M a te u s , tia C a ta rin a , o médico, o
pad re, o b o iad eíro , o c a rn e iro e a ju m e n ta ) e n tra v a m em co m p etição e lutavam entre
si e con tra o bo i, p erso n ag em c e n tra l. S e g u n d o o fo lc lo rista C â m a ra Cascudo, a
representação do b u m b a -m e u -b o i era essen cial à n o ite de R eis. O s cu cu m b is, muito
populares na B ah ia, eram d a n ças g u e rre ira s, ex ecu tad as e can tad a s pelos negros ao som
de in stru m en to s m u sicais african o s. •
E ntre a E p ifan ia e a Q u a re sm a , festas p o p u lares celeb rav am N osso Senhor do
B onfim em ja n e iro e a P u rific aç ã o de N o ssa S en h o ra em fevereiro. D a Q uaresm a a
Páscoa era tem p o de p e n itê n c ia , je ju m e o ração , co m n o ites povoadas de almas
abençoadas e pen adas — q ue p ro vo cav am no s fiéis u m a m istu ra de m edo e proxim ida
de. Era u m a religião ex p ia tó ria : as m an ifestaçõ es do cato licism o do povo baseavam-se
m ais na paixão de C risto q ue em S u a ressu rreição . D aí a im p o rtân cia das procissões da
Sem ana S an ta, aco m p an h ad as de au to flag elaçõ es, so b retu d o nas zonas rurais, e a faha
de b rilh o d a celebração pascoal. E ntre o d o m in go de Pascoela e a festa da Assunção,
as festas d a A scensão, P entecostes (festas do D iv in o ), C o rp u s C h risri, São João e
Apóstolos Pedro c P aulo davam lu g ar a procissões, sem pre aco m panh adas de festejos
po pulares.20
A essas grandes festas coletivas, em q ue o profano e o religioso estavam inter
ligados, acrescentavam -se celebrações m ais ín tim as. C o m efeito, qualqu er circuns
tân cia era pretexto para que houvesse cerim ôn ias de bênçãos: celebrava-se solene
m ente a bênção do engenho no in ício do corte da can a; fazia-se benzer a casa p°r
toda espécie de razões (por exem plo, q uando havia suspeita de que alguém a tives
se am aldiçoado com um ‘m au -o lh ad o ’). Os padres, aliás, não hesitavam em íàzer
esses trabalhos, com os quais reafirm avam sua in fluên cia e recebiam rendas suple
m entares.
L iv ro V - A I greja
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A F e sta R e l ig io s a : N e g ó c io d o s L e ig o s
C o m exceção das celeb raçõ es litú rg ic a s . a festa relig io sa sem p re foi m enos expressão da
Igreja d o q u e d o p ró p rio povo, c u ja re lig iã o con servava um espaço próprio, freq ü en
tem en te c o m a n d a d o p elas c o m u n id a d e s e sem a p articip ação efetiva do clero. No
cam p o , o n d e as d ife re n ç as n a h ie ra rq u ia so cial eram p eq u en as, o povo form ava um
c o n ju n to no q u a l se d esta cav am os ‘ch efes’ , q u ase sem p re oriu ndo s dos m eios m ais
pobres, m ais d eserd ad o s. Eles sab iam c o n d u z ir a devo ção ao san to , a prece dos fiéis, as
p ereg rin açõ es aos s a n tu á rio s . P erceb e-sc n ítid a sep aração en tre a in flu ên cia exercida
pelo re p resen ta n te lo cal d a riq u e z a e do p o d er, m u ita s vezes ao lad o da Igreja oficial,
e a in flu ê n c ia desse ‘c h e fe ’ re lig io so , q u e d e tin h a o consenso d a co m u n id ad e e cujo
p restígio era fre q ü e n te m e n te v isto com d esco n fian ça pelo pároco , se ele existisse, Esses
‘chefes’ relig io so s m a n tin h a m a co esão d o gru p o e serviam m u itas vezes de m ediadores
ju n to aos o u tro s tip o s de ch efes, to le ra d o s m as não esco lh id o s p ela co m u n id ad e. Ao
sacralizarem a tra d iç ã o , o p o n d o -se a q u a lq u e r m u d an ça "do q u e sem pre foi assim ”,
m a n tin h am u m a c o n tin u id a d e q u e era fato r de o rd em e de d o m in aç ã o .21
N as c id ad es, a p o p u la ç ã o estav a d iv id id a e n tre as diversas irm an d ad es religiosas,
reflexos d e u m a h ie ra r q u ia so cial m ais d iv e rsific a d a . C o m efeito , as diferenças entre
elas d iz iam resp eito a c rité rio s de co r, riq u e z a e p restíg io so cial. M as as atribuições dos
d irig en tes dessas irm a n d a d e s eram bem d iferen tes das dos chefes das com unidades
rurais, na m e d id a em q u e as p reo cu p açõ es m a teria is eram eq uivalen tes às preocupa
ções d e o rd em e s p iritu a l. E no esp aço u rb an o , q u a l era o papel dessas irm andades?
C o n f r a r ia s : I r m a n d a d e s e O r d e n s T e r c e ir a s
cap ela. Eram célebres em todo o B rasil as irm an d ad es de escravos, que a d m iti^
alfo rriad o s e tin h am um esp len do r co m p arável ao das irm an d ad es exclusivas de ho
m ens livres e brancos. A lém dessas características, d evid as ao estatu to legal que dividia
a po p u lação , estabeleceu -se m u ito cedo o crité rio — fo rtem en te encorajado pda
ad m in istração e p ela Igreja — d a co r d a pele: branco s com branco s, mestiços com
m estiços, pretos com pretos.
N a C o lô n ia e no Im p ério , as irm an d ad es m ais d ifu n d id a s no B rasil foram as da
M isericó rd ia, do S an tíssim o S acram en to e de N ossa S en h o ra do R osário. A primeira
foi a ú n ica v o ltad a para a carid ad e, q ue v isav a a tin g ir to d a a co m u n id ad e cristã da vi!a
o u cid ad e em q u e estivesse in stala d a, esp ecialm en te pobres, d eficien tes físicos e prisio
neiros. Seus m em b ros p a rticip a v a m m u ito a tiv a m e n te d a v id a d a Igreja e tinham
d ire ito a seus ben efício s esp iritu ais. A p rim e ira irm a n d a d e d a M ise ricó rd ia fora funda
d a, no B rasil, em 1 53 0 por B rás C u b as em S an to s, C a p ita n ia de São V icente, com o
ob jetivo de a ju d a r os colonos q u e m ig rav am p a ra a região . S eu exem p lo foi seguido em
quase todas as cid ad es e vilas im p o rtan te s d a C o lô n ia . N a B ah ia, essa irmandade,
fu n d ad a em 1 5 5 0 , d esem p en h o u im p o rta n te p ap el, assistin d o doentes, prisioneiros,
jovens órfãs e crian ças e n je ita d as, e c u id a n d o p a ra q u e in d ig e n te s e escravos tivessem
sep u ltu ras d ecentes. Sob a d ireção de m em b ro s d a elite lo cal, teve gran de peso finan
ceiro , em p restan d o d in h eiro a senho res de en g en h o e a co m ercian tes da capital.
A segu n d a irm a n d a d e d estin av a-se a p ro m o v er o c u lto do S an tíssim o Sacramento
d a E ucaristia, o que ex igia a p resen ça de u m p ad re p a ra celeb rar m issas e consagrar a
hó stia. M u ito a n tig a e d ifu n d id a d u ra n te os p erío do s co lo n ial e im p erial (1549
1 8 8 9 ), ex istiu em q uase todas as p aró q u ias, m as foi essen cialm en te urbana. Organiza
v a a procissão an u al de C o rp u s C h risti, tam b ém ch a m ad a procissão do Triunfo
E ucarístico. Seus m em b ros co m p ro m etiam -se a assistir a m issa todas as quintas-feiras
e a receber a bênção do S an tíssim o , q ue se segu ia. Por cau sa d a ín tim a relação com o
cu lto d a eu caristia, co n grego u bo a p arte da elite m a scu lin a, q ue se orgulhava de poder
servir à m issa ao lado do padre.
A outra irm an d ad e estava lig a d a à devoção do rosário, in tro d uzid a no Brasil no
fim do século X V I. N o século segu in te su rg iu o h áb ito de construir, nas igrejas
p aroquiais, dois altares laterais ao altar-m o r. O q ue ficava do lado da epístola era
consagrado a São M ig u el, e o q ue ficava do lado do evangelho, a Nossa Senhora do
Rosário. Os irm ãos do rosário cncarregavam -se deste altar e, tam bém , de preparar a
festa, geralm ente celebrada no prim eiro dom in go do mês de outubro. Irmandade
m ista, seus mem bros deviam recitar p u b licam en te o rosário duran te um a celebração
m ensal ou sem anal. Com o tem po, essas irm andades se tornaram exclusivas de negros
e m ulatos, fossem eles livres, alforriados ou escravos. Por vezes, até o capelão era negro.
N ao se conhece nenhum a irm andade do Rosário criada no fim do período colonial c
cujos m embros fossem brancos .22
T endo orientação espiritual das ordens religiosas regulares, como a dos franciscanos
e a dos carm elitas, as ordens terceiras contavam com grande participação leiga. Na
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enranto , m edíocre, com o se pode ver pelo p eq u en o n ú m ero de ben eficiados. Mais de
seten ta anos depois, seus m em bros ju stific a ram a m u d an ça de ob jetivo s da o r d e m ,
alegan d o que, em 1878, era im possível levan rar fundos su ficien tes para comprar a
alfo rria dos escravos. A O rdem T erceira d a S an tíssim a T rin d a d e para a Redenção dos
C ativos co n tin u o u a c u id a r de seu cem ité rio , de sua cap ela e d o asilo q u e havia criado
para seus m em bros."'1
A ssociações religiosas d o tad as de regras esp ecíficas, essas co n frarias exigiam qUe
seus m em bros pagassem d ireito s de en tra d a (jó ias) e co n trib u içõ es m ensais variáveis,
oferecendo a estes, em c o n trap artid a , ao lad o de o b jetivo s e sp iritu a is, assistência du
rante a v id a e na ho ra d a m o rte. Pensões, en cargo de despesas h o sp italares e digna
celebração dos fu n erais eram algu n s b en efício s previsto s. A ssim , além de considerações
de ordem religio sa, pesava o esp írito d e a ju d a m ú tu a , m u ito im p o rtan te num a cidade
em q ue as fo rtun as se faziam e se d esfaziam no esp aço de u m a geração . Ninguém
estava livre do in fo rtú n io . In teg rar u m a irm a n d a d e era prova de p ru d ên cia e garantia
d e p erm an ên cia no m esm o grup o so cial, em caso de em p o b recim en to . As contribui
ções p o d iam ser in v estim en to a fu n do p erd id o , m as sem p re representavam também
u m a espécie de p o u p an ça d ia n te desse fu tu ro in certo .
P ara a Igreja, essas irm an d ad es rep resen tavam , de u m lad o , u m a garan tia de que sua
m ensagem era o u v id a e, de o u tro , um m eio de ex ercer co n tro le sobre pessoas cuja fé
nem sem pre era m u ito a n tig a . N o fin al, todo s tin h am a lu crar, in clu siv e o Estado, que
se poupava p arcialm en te de duas o b rigaçõ es: su sten rar o c u lto e socorrer m aterialm en
te os necessitados. C o m p reen d e-se então q u e tais in ic ia tiv a s ten h am sido encorajadas.
D epois d a fam ília e ju n to com ela, d ep o is do E stado e suas in stitu içõ es, as irman-
dades e as ordens terceiras d esem p en h aram im p o rtan te p ap el na criação e preservação
dos laços sociais que u n íam os b aian o s do século XIX . C o m efeito, se a família, no
sentido m ais am plo do term o , c o n trib u ía p ara as relações en tre pessoas de camadas
diferentes, tan to do ponto de v ista só cio -eco n ô m ico com o ju ríd ic o , as irmandades e
ordens terceiras eram núcleos em torno dos q u ais tam b ém se teciam as relações sociais,
com o, aliás, ocorria com algum as in stitu içõ es do E stado. Nos dois últim os casos, às
relações entre in d ivíd uo s se su p erp u n h am relações en tre grupos, ou cam adas sociais,
num esquem a hicrarq uizado porém sim ples. A o rgan ização de grupos — cujos crité
rios dc vinculação eram baseados na riqueza e na estim a, na cor da pele e no estatuto
legal servia de válvula dc escape para aten u ar antagon ism o s que poderiam s u rg ir do
contato de cam adas econôm ica e ju rid icam en te opostas.
C ria d a s p a ra c o n se rv ar a fé c a t ó lic a e p re s ta r, a seus m e m b ro s , serviços que o
Estado não t in h a m e io s dc g a r a n t ir , as ir m a n d a d e s c as o rd en s terceiras ta m b é m eram
m an ifestaçõ es d c u m s e n tim e n to c o le tiv o . T iv e r a m êxito v e rd a d e iro co m o complemeti
tos desse c o n tro le d u p lo — e x e rc id o p e la Ig reja e o E stado — pelo n icn o s até os anos
1 8 7 0 , q u a n d o e n tra ra m cm d e c a d ê n c ia c p e rd e ra m g r a n d e p arte d c su a significação
social. O s te sta m e n to s d e ram prova disso: no in íc io do sé c u lo XIX, m ais d e 8 5 % da
p o p u laç ão a d u lta liv re dc S a lv a d o r p e rte n c ia m a, p elo m en o s, u m a irm a n d ad e . Noven
L iv r o A I g r e ja
401
. 1
ta anos m ais tardo, esta p o rcen tag em era de apenas 15% . A lém disso, num erosas dessas
irm an d ad es a ca b a ra m p o r fu n d ir-se , com o , p o r exem p lo , a do S an tíssim o Sacram ento
e a de N ossa S e n h o ra d a C o n c e iç ã o , na p a ró q u ia d a C o n ceição da P raia em 1868
N o in íc io d o sécu lo XIX , a c id a d e de S alv ad o r tin h a cerca de cem irm andades em
p rin c íp io e s trita m e n te d iv id id a s en tre bran co s, m u lato s e negros. Essa característica sc
a ten u o u u m p o u co , n a m e d id a em q u e alg u m as irm an d ad es de brancos se tornavam
m ais c o n c ilia d o ra s, os m u lato s su b iam na escala so cial e os negros o b tin h am alfo rria .24
M as, ap esar desses fato res, as d ivisõ es p ersistiram .
H á p o uco s estu d o s sobre irm a n d a d es na B ah ia, esp ecialm en te as que congregavam
hom ens d e co r, ju s ta m e n te as m ais n u m ero sas. B asean d o -m e em testam entos de alfor
riados, p u d e id e n tif ic a r m ais de trin ta , m as seu papel perm anece m al defin id o. Os
v iajan tes dos sécu lo s X V III e X IX ficaram im p ressio n ad o s com o zelo e o entusiasm o
dos negros em relação às m a n ifestaçõ es exterio res d a relig ião cató lica, m as não regis
traram in fo rm açõ es sobre o leg ad o c u ltu ra l african o , q ue se m anifestava na sobrevivên
cia de cu lto s a n im ista s. N o e n ta n to , atrav és dos testam en to s e da tradição oral {ainda
viva h o je em d ia) p u d e d e sco b rir g ra d a tiv a m e n te a im p o rtân cia dessas associações
com o cen tro s de co n serv ação d a h era n ça african a.
P ierre V e rg e r c h a m o u a aten ção p a ra o fato de q u e era preciso evitar qualquer
sim p lificaç ão q u e levasse a co n sid e ra r os negros — todos os negros — do mesmo
po nto d e v ista, e sq u ecen d o q u e e n tre eles h avia m u itas etn ias. Ele deu o exem plo das
p rim eiras irm a n d a d e s d o R o sário , q u e re u n ia apenas negros de A ngo la, ou a de Nosso
S en h o r R e d e n to r d a B ah ia , fu n d a d a em 1 7 5 2 , com p osta u n icam en te por jejes .25 M eu
p ro b lem a é sab er se essas d istin çõ es étn icas co n tin u av am a existir no século XIX,
q u an d o as novas co n d içõ es im p o stas p elo tráfico n egreiro torn aram possível im portar
escravos o riu n d o s de to d o s os m ercad o s african o s, m u ltip lican d o assim etnias e tribos
atin gid as pelo tráfico . R u sse ll-W o o d m o stro u claram en te com o, no século X V Iil, o
exclusivism o das irm a n d a d es do R o sário im p e d iu o surgim en to de irm andades mais
abertas, m ais acessíveis, com o a de S an to A n tô n io de C artageron e, de 1699, e do
Senhor dos M á rtire s, de 1 7 6 4 .
Em m eio a irm an d ad es reservadas a brancos e a negros que m ais um a vez
denotavam o exclu sivism o , q uase a in to lerân cia, desses dois com ponentes raciais
mos da sociedade de S alv ad o r — criaram -se, pouco a pouco, irm andades tardias de
m ulatos, com o a dc Bom Jesus da C ru z e a de Nossa Senhora do Boqueirão, Note se
que esta ú ltim a foi erigid a em ordem terceira em 1848, realizando um a passagem que
Traduzia duas c o is a s : o d e s e j o d o s m ulatos de se erguerem à altura dos brancos,
adm itidos nas ordens trad icio n ais, e um r e c o n h e c i m e n t o , por parte da Igreja, o p^
e da crescente integração dos m ulatos na s o c i e d a d e baiana, sempre em trans orm ç
U m m esm o in d iv íd u o podia fazer parte de várias irm andades. H avia como vunos,
aquelas criadas em função da cor dc seus m einbros (e não de seu estatuto eg e as q ^
agrupavam pessoas que tin h am o m esm o ofício: Santo Antônio da Barra p g
cian tes, São Jorge para os ferreiros, ferrageiros, serralheiros e cal eireiros, ao
402 B a h ia , S é c u l o X IX
para os sapateiros e cu rtid o res.36 T odas en traram em d ecad ên cia no século X IX : fun
dadas por brancos, desejosas de preservar u m a aura eu ro p éia, não conseguiram admitir
a m assa d e negros e m u lato s q u e chegava no p eq u en o com ércio e no artesanato. Seus
m em bros preferiram d eixá-las d esap arecer a p raticar u m a p o lític a de abertura.
Interessa-m e ressaltar um aspecto: com alg u m as exceções, com o a da M isericórdia
e as das ordens terceiras do C arm o e de São F rancisco , esse tip o de associação quase
não levava em con ta h ierarq u ias sociais baseadas na fo rtun a. O u tro s critérios predomi
navam , esp ecialm en te a cor e a etn ia o rig in a l, testem u n h an d o a forte coesão de tipo
corporativo que caracterizava a so cied ad e b aian a. O s co n flito s en tre diferentes grupos
raciais e econôm icos eram aten u ad o s p ela criação de u m a id en tid ad e social que, do
ponto de vista psico ló gico , a ju d a v a a v alo rizar até os m ais caren tes. No seio de uma
irm an d ad e de m u lato s ou de negros, u m escravo se sen tia ig u al a um pequeno comer
cian te e, se gozasse do respeito de seus irm ão s e irm ãs, p o d ia assum ir as mesmas
responsabilidades q u e ele. Por o u tro lad o , negros e m u lato s se sen tiam iguais aos
brancos: tin h am a p o ssib ilid ad e de co n stru ir e o rn am en tar suas próprias igrejas e ter
capelães; ter enterros tão sun tuo so s q u a n to os dos so cialm en te superiores; exibir-se
com brilho e grandeza nas procissões religio sas q ue m arcav am a v id a da cidade.
D o m inado pelos branco s, o co rp o so cial d eu m o stra de m u ito discernim ento ao
p erm itir ig u ald ad e de condições p ara q ue negros e m u lato s, livres, alforriados e escra
vos com p atilh assem da m esm a ex p eriên cia. A través dessas associações, a sociedade
b aian a dem on stro u ser relativ am en te ab erta e po uco in d iv id u a lista . Procurou ofere
cer a todos os seus m em bros a p o ssib ilid ad e de assu m ir resp o n sab ilidades e ter inicia
tivas, ind ep en d en tem en te do lu g ar de cad a um na escala social. A lém de seus objetivos
tip icam en te religiosos, essas associações eram locais em q u e floresciam solidariedades
que po ssibilitavam , por exem p lo , a T esso cialização ’ dos negros em um a sociedade
que aparentem ente lhes era h o stil.27 Isso o co rria graças a to d a espécie de ajuda que as
irm andades p ro p iciavam a seus m em b ros: facilid ad es para a alfo rria, doações de di
nheiro para casar (em casos de m oças sem dote) e, sobretudo, certeza de um enterro
decente. Não m e parece exagerado afirm ar que, d u ran te a p rim eira m etade do século
XIX, quase todos os baianos p erten ciam a, pelo m enos, um a irm andade. Elas entra
ram em decadência m ais tarde, por volta de m eados do século, quando os poderes
locais com eçaram a se interessar seriam ente pelos problem as sociais da cidade, crian
do suas próprias in stituiçõ es de socorro,28 e associações privadas assum iram encargos
suportados outrora pelas irm an d ad es.23
Congregando grupos sociais m uito diferentes, ordens terceiras e irmandades man
tinham contatos freqüentes entre si, duranre as celebrações públicas c as lestas religi°'
sas que marcavam o ano civil c lítúrgico dos baianos. Essas antigas rradiçoes não se
perderam, c ainda hoje os habitantes dc Salvador apreciam as mesmas práticas, com
seus animados cortejos dc festas, procissões c desfiles. Notc-sc, no entanto, que a alta
e média burguesia abandonou completamente essas manifestações, deixando inclusive
de financiá-las.
L ivro V- A Ig r e j a
4 03
que escandalizava os costum es, a m oral e a religião , não tornará a se repetir. Não
verão m ais as m ulheres brancas ou negras vestidas sum ariam en te, com atitudes
pudicas, em briagando-se na tab erna do A donis. N ão terem os m ais que deplorar e5Se
exem plo de nosso atraso, oferecido aos olhos de nossos h abitantes e aos de estrangei
ros. H á vários anos que o venerável prelado d a diocese u tilizav a a palavra e fazja
exortações para desarraigar u m costum e tão bárbaro q u an to inqualificável. Corrio
m uitos podem im aginar, a extinção quase to tal dessa lavagem , cantada em prosa ç
verso, não é coisa fácil: e um a prova p erfeita de que a educação do povo melhorou, qUe
os tempos dos p iq u en iq u es nos adros das igrejas, das canções ao som da viola e das
farras do B onfim acabaram p ara sem pre. É u m a prova p erfeita de que a nossa civilu^
ção vem da E uropa e não d a costa african a, com o d iz ia um ilustre senador de
P ern am b u co ... Q uan do um ho m em d a posição e q u e tem as virtu des de Monsenhor o
C onde de San ta C ru z [tratava-se de d o m R o m u ald o A n tô n io , arcebispo da Bahia] se
ergue contra certos abusos, a au to rid ad e civ il não d ev eria n egar o seu apoio, A lavagem
da Igreja do B onfim , seja na nave ou no adro, d en tro ou fora do tem plo , com seus ares
de bacanal, está m orrendo. Q u an d o no in íc io , eram os p eregrino s e os penitentes que,
por devoção ao Santo P ad ro eiro , iam lavar a Igreja, então sim , era um ato de humilda
de cristã. M as, rap id am en te, a lavagem to rn o u -se u m m otivo de prazer, que teve como
conseqüências a beb edeira e a devassidão; então era preciso clam ar contra ela para não
testem unhar co n tra nós, co n tra nossa ed u cação , co n tra nossos p rin cíp io s m orais.”
O ed ito ríalista co n fu n d ia desejos e realid ad e. N esse m esm o ano de 1860, o teste
m unho de M a x im ilia n o de H absbu rgo , futuro im p erad o r do M éxico, não foi nada
lisonjeiro: depois de co m p arar o co m p o rtam en to do “p o v in h o ”, ou seja, negros e
m ulatos que cercavam a igreja, com o d aq u eles q ue cercavam o tem plo de Salomão na
época de C risto, co n clu iu : “p ara u m cató lico respeitoso, todo esse reboliço é blasfe
m atório, porque nessa festa p o p u lar de negros m istu ram -se, além do que é permitido,
restos de p ag a n ism o ... Festejavam -se as ‘saturnais* dos negros”.33 C elebrada até hoje,
essa festa m anteve suas características tão criticad as, em bora nos tempos atuais a
presença de turistas co n trib u a p ara em b ran q u ecer o “p o vin h o ” e a cerveja tenha subs
tituído a cachaça.
As grandes festas resistiram , m as, por volta do fim do século XIX, as ordens ter
ceiras e as irm andades já estavam ultrapassadas. Foram sub stituídas por novas associa
ções, mais representativas do espírito cató lico de então e das aspirações da hierarquia.
A P a st o r a l e se u s A g e n t e s
rosário e as iitan tas e can tar loas a M a ria . N os lu gares em q u e o padre não podia estlr
presente, a devoção era lid e rad a por u m a sen h o ra m ais v elh a, freq ü en tem en te mãe de
fa m ília n um ero sa e sem pre reco n h ecid a por ter h áb ito s irrep reen sív eis.
A devoção ao S ag rad o C o ração de Jesu s, p ratic ad a so b retu d o na prim eira sexta
feira do m ês, foi in tro d u z id a na d écad a de 1 8 7 0 p ela A sso ciação do Apostolado da
O ração- G anho u adep tos so b retu d o nas cid ad es, po is e x ig ia a celeb ração de um a missa
e a co m u n h ão ou exp o sição do S an tíssim o d u ra n te as nove p rim eira s sextas-feiras do
ano. M u ito se n tim e n ta l, essa devoção tin h a m u ito s traço s d a relig io sid ad e do próprio
povo, estim u lan d o a q u e todos perseverassem no esforço de fazer ju s ao paraíso.
Essas novas devoções não a b o lira m as a n tig a s. A o c o n trá rio . O Sagrado Coração
de Jesus e o m ês de M a ria são cad a vez m en o s lem b rad o s, m as a in d a hoje estão vivos
os cultos prestados a S an to A n tô n io , São Jo ã o , S a n ta B árb ara ou São G onçalo do Ama
rante, q ue ap resen tam asp ecto cad a vez m ais p ro fan o , co m festejos nas ruas. A grande
festa do Sen h o r do B o n fim , p o r ex em p lo , a n u n c ia , em p len o jan e iro , a aproximação
do C arn av al!
As associações religio sas fu n d ad as p ara a p o ia r as novas devoções eram radicalm en
te diferentes das an tig as co n frarias. Em p rim eiro lu g a r, eram d irig id a s pelos párocos e
criadas para os leigo s, não m aís p o r eles. A lém d isso , m u itas festas realizadas outrora
por leigos foram su b stitu íd a s por festas litú rg ic a s lig a d as a essas devoções m ais recen
tes. Por exem plo , a festa da C o ro ação d a V irg e m , q u e d eu fam a à A ssociação das Filhas
de M a ria, foi m u ito e stim u la d a p ela h ie ra rq u ia e c lesiá stica , ao passo q u e outras, como
os bailes pastorais e as festas do m ês de ju n h o , foram co n sid erad as supersticiosas,
encaradas com d esco n fian ça e até co m b atid as.
Estas festas ju n in a s eram freq ü en tem en te abertas com a recitação , nos lares, de
um a trexena em in ten ção de S an to A n tô n io , c u ja im ag em p erm an ecia num altar
florido na sala p rin cip al. As orações eram co n d u zid as p ela d o n a da casa, cercada por
seus filhos, agregados, escravos e vizinh os m enos favo recidos, q u e nao tinham condi'
ções de arcar com os custos dc u m a festa p ró p ria. Para cad a d ia da trezena havia um
padroeiro (um m em bro d a fam ília ou um am igo ab astad o ), q ue fazia o papel dc dono
da festa , oferecendo círios, lico r dc jen ip ap o , can jica, pam onhas c broas dc m ilho para
os convidados, após a recitação. Entre 13 c 23 dc ju n h o , os dias eram consagrados aos
preparativos da festa de Sao Jo ão , celebrada com fogueiras nas ruas, cantos e danças,
acom panhados dc petardos, fogos dc artifício c, por fim , alegres enm cdorias. As coine
rnoraçoes continuavam até o dia de São Pedro c São Paulo, cm 20 de junho.
Todas as m e d id a s d a h ie r a r q u ia , d e s tin a d a s a e x tir p a r as c re n ç as pagãs dos fu-is c
refo rm ar seus c o s tu m e s , só p o d e r ia m ter êx ito sc a h ie r a r q u ia p u d esse c o n ta r com a
co lab o raç ão in c o n d ic io n a l d o c lc ro c c o m a a ju d a dc o u tro s a g e n te s d e sua pastor.il*
M a s era m u ito d e s ig u a l a e fic iê n c ia d a m issã o a p o s tó lic a d e u m cle ro heterogen^0’
5 0 % do q u a l não h a v ia m fre q ü e n ta d o s e m in á r io , c e ra m m u ita s as resistências da
g ran d e m assa d os fiéis e ta m b é m d os chefes lo cais, in q u ie to s co m as m u d a n ç as q L*e
tran sto rn a v am as trad içõ es.
LrvRo V - A Ig r e ja
407
O Padre e a P a sto ra l
A utodidata ou form ado em sem in ário s, a p artir da segunda m etade do século XIX
o clero baiano viveu im erso em u m a refo rm a largam en te inspirada pelas determ ina
ções do C o n cilio de T ren to e os rigorosos posicionam entos da Santa Sé. Exigiam-se
reforma m oral e novos co m p o rtam en to s dos padres, vigor na missão apostólica, uni
dade em torno de u m a lin h a d o u trin á ria e rígo r sobretudo nas relações entre Igreja,
clero e fiéis.
D iretor esp iritu al d a co m u n id ad e, o padre tin h a que ter um com portam ento
social que servisse de m odelo aos p aro q u ian o s. Bons costum es, uso do hábito e d ign i
dade no exercício das funções sacerdotais eram elem entos essenciais para dar credibi
lidade ao exercício de suas funções, ob jetivo m aior de todas as reformas. No exercício
de seu m inistério esp iritu al, o padre tin h a o dever de celebrar a missa, adm inistrar os
sacramentos e explicar os sím bolos da fé e os dogm as da Igreja. Essa missão tinha
aspecto duplo: a Instrução religio sa dos fiéis e o cum prim ento dos aros litúrgicos e
sacram entais. No in ício do século XIX, este ú ltim o aspecto detinha a preferência de
párocos e fiéis, mas as reform as intro duzidas cm meados do século enfatizaram a
im portância do prim eiro.
Em 1839, o padre Feijó dizia: “Em toda a Província (São Paulo) dificilm ente se
encontrará um padre que cum pra seus deveres com o ordena a Igreja, sobretudo no que
tange à instrução das crianças no dia do S e n h o r.’'^ A instrução religiosa, ou catequese,
fazia parte das obrigações do pároco desde a época colonial, mas, salvo nas famílias que
dispunham de um capelão, era m al observada. A formação religiosa cra dada em casa.
As crianças aprendiam com suas mães as orações tradicionais, assim como aJ^*nS
artigos de fé, mas o padre quase nunca exam inava os conhecim entos de seus can i a
tos antes que fizessem a prim eira com unhão. A religiosidade era muito forte, rnas
conhecimentos da d o u trin a eram precários e mal assimilados. O prim eiro livro
Bahia, S é c u lo XIX
408
M is s ó e s e P a s t o r a l
As M ulheres e a P a sto ra l
A lé m do a p o io e sc o la r, a n o v a o r i e n t a ç ã o d a I g r e ja c o n t a v a c o m o c o n cu rso das
m u lh e re s , c u jo p a p e l s o c ia l e r a a n t ig o e r e le v a n te . E las c o m a n d a v a m in s titu iç õ e s reli
gio sas, c o m o esc o la s p a r a a j u v e n t u d e f e m i n i n a e in s t it u iç õ e s d e c a rid a d e , c eram
m a io r ia nas n o vas a s so c ia ç õ e s re lig io s a s . A lé m d is so , d ir ig ia m a v id a ín t im a nos lares.
A Ig reja sc a p o io u n elas p a r a d i m i n u i r a in f lu ê n c i a d as a n tig a s c o n fra ria s, liderad as por
h o m e n s , in filtra d a s p e la m a ç o n a r ia c a u t ô n o m a s em re la ç ã o ao p o d e r eclesiástico. Em
se g u id a , as m u lh e re s sc to r n a r a m m a jo r it á r ia s n a c e le b r a ç ã o d as c e r im ô n ia s litúrgicas
q u e , p a ra e v ita r os ab u so s, e ra m p r a tic a d a s c a d a vez m e n o s à no ite. As mulheres
a c e ita ra m m e lh o r a re fo rm a , q u e , c o m o v im o s , d a v a à re lig ião u m c u n h o n itidam ente
clerical, a c e n tu a v a o peso d a a d m in is t r a ç ã o d os s a c r a m e n to s e e n tre g av a aos clérigos o
c o n tro le so b re as asso ciaçõ es re lig io sa s.4'* A lé m dessas c o n sid e raç õ e s, p arece-m e que a
la rg a u tiliz aç ão das m u lh e re s c o m o in s tru m e n to s d a c a te q u e se d e c o rre u sobretudo do
im p o rta n te p apel q u e elas d e s e m p e n h a v a m n a fa m ília b rasileira.
L tvroV - A I g r e ja
411
a sério a prática dos sacram entos e os en sin am en to s do clero) e os trad icio n ais (que se
contentavam com os ritu ais do b atism o , do casam ento e das m issas de sétim o dia). Os
prim eiros eram considerados cató licos de fato, e os outros, de nom e. Ignoro em qUe
proporção se d iv id iam e, sobretud o, em q u e m ed id a as velh as crenças e superstições
haviam sido extirpadas — m esm o en tre os ‘p ratican tes ’ — graças à nova catequese.
T ratava-se, afin al, de um a so ciedade q ue recebera diversas h eran ças cu ltu rais e étnicas
constantem en te reelab oradas e sin tetizad as. Essa sín tese n u n ca term in ad a impunha
regras de co m p o rtam en to em q ue a ap arên cia tin h a m ais im p o rtân c ia que o conteúdo,
pois quanto m ais alg u ém se afastava do m o d elo p ropo sto p ela so ciedade, menos pos
sib ilid ad e tin h a de fazer recon hecer seus v ín cu lo s so ciais. Essa form a de assim ilação era
condição prévia p ara todo tip o de êxito . P ara q ue u m in d iv íd u o fosse considerado
cidadão pleno de d ireito s, seu co m p o rtam en to relig io so era m u ito im portante. No
caso dos africanos lib ertad o s, isso era tão im p o rtan te q u a n to os laços q u e conservavam
com seus an tigo s senhores.
A aceitação das novas o rien taçõ es d a Ig reja v a rio u segu n d o a caregoria social e o
grupo étnico. N as zonas ru rais, cm q ue a so cied ad e era m enos d iversificad a e a união
dos pobres e deserdados era m ais fo rte q u e o a n tag o n ism o das raças — aliás, menos
típicas q u e nas cidades — , h av ia u n a n im id a d e q u a n to à ação dos m issio nário s: os fiéis
se curvavam facilm en te a u m a d o u trin a q u e co n servava o asp ecto cen tral de sua devo
ção e não entrava em cho que com sua p ró p ria re lig io sid a d e, cen trad a no sofrimento,
na p en itên cia e na espera de u m a v id a m elh o r. N o coração desses ho m ens e mulheres
em brenhados no m ato , a conversão so lic itad a não era u m a nova opção pelo Evange
lho. Era som ente um m elh o r ap ro fu n d am en to d a fé, através d a p rárica m ais freqüente
dos sacram entos e da assim ilação d e novas devoções. Logo, essa evangelização deixava
a porta aberta para novas sín teses, fazendo co existir h arm o n io sam en te o antigo e o
novo. É d ifícil ju lg a r o grau de conversão das po pu laçõ es ru rais à d o u trin a e às práticas
de um a Igreja ro m an izad a, so b retu do se levarm os em co n ta q u e a presença de um
clérigo era episódica e q ue as m issões não se rep etiam com freqüência.
N a cidade a situ ação era co m p letam en te d iferen te. A estrarificaçao social e a
diversidade racial eram m ais claras, crian d o um am b ien te em que a adesão complem
podia conviver até com u m a séria oposição às novas orientações da Igreja. O papel do
clero secular era fu n d am en tal. Os padres encarregados das paróquias de Salvador
faziam parte da elite da diocese. Por volta do fim do século, os que haviam estudado
nos sem inários tinham um a form ação teológica m ais sólida, aceitando seguir o modelo
rom ano depurado das dou trinas heterodoxas. M as seu apostolado só atin gia um nu
mero lim itado de paroquianos, entre os quais os poucos que pertenciam às novas
congregações leigas. Bem enquadrados pelo clero, esses privilegiados tinham acesso a
um a instrução religiosa con tínua, assim com o à prárica dos sacram entos.
Apesar dos esforços da hierarquia para separar o espiritual e o tem poral e para
transform ar o padre, antes de m aís nada, em diretor de consciências, a ação deste era
obstruída pela subm issão à autoridade do Estado. Funcionário, ele precisava m a n t e r a
o r d « n p u b lica. C o lo c a d a cm PosWao ,n ,e rn ,e d iá ria em re , popul Jo c
rc hgiao d evia ler co m o o h . c v o co n g reg ar c id ad ã o , . fo rialecer l.,ços dc fracernid d
c h arm o nia. d o S q u ais d ep en d ia a P.u social. Segu n d o o arcebispo dom M anoel I
da S ilv e ,r ., "o d e m o do pos o d ep en d e dos bons padres c|ue. convencidos de su , T n u
rmssão. d o m in am os o b s.ae u lo s e l.u e m do p ü lp iu , o b.eal coridiano de d ifu iío das
verdades etern as d a re i,g iao. e o n ,b ate n d o os erros e exortando á prárica das virtudes
do amor ao tra balho e do respeito de todos os direitos e deveres" Vl Discursos c '
esse mostram o q u a n t o era difícil separar ação espiritual e ação le m p o r T Era uma
situação am bígu a, que ob rigava a Igreja a pregar um evangelho de resignação e aceitação
A adesão às refo rm as era, co m o v im o s, sobretudo fem in ina. Em Salvador, não
havia e q u iv alen te m a sc u lin o p ara as associações e in stituto s fundados na segunda
m etade do século X IX . A S o cied ad e das D am as de C arid ad e reunia m ulheres de
cam adas elevadas d a so cied ad e lo c a l, já q ue seus m em bros eram recrurados entre ricos
proprietários de terra, gran d es co m ercian tes, p ro fissio nais liberais e altos funcionários.
Essas m u lh eres eram p recio sas a u x ilía res das Irm ãs de São V icente de Paula, que
d irigiam a m aio r p arte das obras carid o sas fem in in as da cidade, No âm biro da paró
quia, elas co lab o rav am tam b ém com o clero secu lar, do q ual recebiam catecism o e
instrução relig io sa, p a rtic ip a n d o das celeb raçõ es lirú rgicas e dos atos de devoção. Mas
sua presença e a in flu ê n c ia sobre as o u tras m u lh eres se lim itav am sobretudo às paró
quias do C en tro d a cid ad e (São P edro, S a n ta n a e C o n ceição da Praia). Era impensável
que elas socorressem pessoas nas p aró q u ias m ais afastadas e m ais populares.
Q uan tas eram essas m u lh eres? D u ran re a célebre Q uestão dos Bispos, 2.051 delas
— “dam as de a lta po sição e das m ais d is tin ta s ” — assinaram a representação enviada
à im peratriz T eresa C ris tin a em favor dos bispos condenados. N um a população femi
nina livre de 4 5 .1 1 8 pessoas (segun d o o recenseam en to de 1872), esse número repre
sentava 4 ,5 % . É im po ssível sab er se as m u lh eres cató licas da Bahia chegaram a ultra
passar esse p ercen tu al. M as, sem d ú v id a, as q u e assinaram na condição de ‘católicas
seguiam as novas o rien taçõ es d a Igreja e tin h am um a posição social que lhes perm itia
exercer grande in flu ên cia. R estaria saber se essa adesão cra consciente e sincera.
A A ssociação C a tó lica estava cm mãos m asculinas. Seus membros fizeram um
m anifesto sem elh an te ao das dam as, mas colheram apenas 71 assinaturas (0,1 á> da
população m ascu lin a livre da cidade, ain d a segundo o recenseam ento de 1872). o
que m ostra a pequena in flu en cia da Igreja entre os homens da alta sociedade. Iara
eles, religião cra ‘coisa dc m u lh er'. Alem disso, era m uito forte a atração exercida por
outras correntes de pensam ento que estavam na m oda. H avia, aliás, a convicção e
que a europeização do Brasil passava pela adesão da elite aos princípios e con u
propostos por essas novas filosofias. As lojas rnaçõnícas também desempen^
im portante papel, e os hom ens controlavam confrarias religiosas cuja ç
cobiçada pela Igreja hierárquica. Nesses meios, as posições variavam da mdiferenç ,
que „e exp rim i, por ..i.u d c . convencionais e pcl, tolerância à -
ção. como , exercida por Rui Barbosa. Em 1 8 7 1 . o editor da Chron,'* « *
B a h ia , S é c u l o XIX
queixava dessas elites: “Sc o d in h eiro sem pre afastou D eus do coração do rico, hoje é
o Poder que causa essa ru p tu ra. O rico, o alto fu n cio n ário , o Poderoso têm vergonha
de ir à Igreja c a d esd en h am .”51
O cato licism o oficial era um a religião e litista e d irig id a a um a m aioria feminina.
As reform as realizadas pela Igreja p en etraram pouco nas cam adas populares. A grande
m aio ria do povo co n tin u o u en treg u e a si p ró p ria, viv en cian d o u m a religião em que a
prática das devoções so b rep ujava a dos sacram en tos. T alvez a m aio ria do “povo sim
ples" _ segundo a expressão de frei H u g o F ragoso 52 — ain d a estivesse enquadrada
pelas an tigas irm an d ad es. V im o s q u e estas h aviam m udado de figura, perdendo grande
parte de sua função social com o associações de a ju d a m ú tu a e passando a ser dirigidas
pelo clero p aro q u ial. M as, ain d a u m a vez, é d ifíc il av aliar o apostolado desse clero nos
m eios populares. A crescento, para term in a r, q u e a gran d e m assa nunca ficou indife
rente e que sua fé na Igreja p erm an eceu v iv a, m esm o que nem sem pre compreendesse
o sentido das novas orien taçõ es e o afastam en to de um clero que, outrora, comparti
lhava de form a m ais p ró xim a suas alegrias e agruras co tid ian as.
<: A í' f I U J . O 23
T em plo s, M e sq u it as e T e r r e ir o s:
R e l ig iõ e s C o n co rren tes?
415
B ahia . S f c u o XIX
4 “ * • . -v . « * . * . „ h _
O P r o t e s t a n t is m o na B a h ia
O C a t o l ic is m o d o s A f r ic a n o s
O Islã na B a h ia
A lid e ran ç a d a revolta m u ç u lm a n a era com p osta por hom ens letrados, o que lhes
conferia en o rm e v an tag em sobre a m assa de negros in cu lto s, africanos ou nascidos no
B rasil, escravos o u a lte rn a d o s . A m esm a van tagem existia em relaçdo a toda a popu
lação livre da c id a d e , a n alfab eta com o os escravos e os alforriados. Por sua instrução
os m u çu lm an o s estav am m u ito m ais p ró xim o s d o m o delo branco que os n ão -m u çu l’
m anos. Isso a ju d a v a o p ro selitism o , cu jo alcan ce desconheço (os autos do processo
contra os d erro tad o s d e 1 8 3 5 sáo a ú n ic a fonte sobre a h istó ria do islam ism o na
B ah ia). É im p o ssível sab er o co n te ú d o d a fé en sin ad a, o núm ero exato de prosélitos e
a q u a lid ad e das con versões o p erad as pelo Islã cm terra h o stil e cristã.40 N ão se pode
levar m u ito a serio a afirm a çã o de N in a R o d rig u es, q ue preten d e que “a conversão (ao
islam ism o) era tão g ig a n te sc a q u e o n ú m ero de seus fiéis co n stitu íam um a legião”.41
O uso d e o b jeto s sim b ó lico s e a co r d a ro u p a desem penh avam im portante papel,
como sin ais ex terio res de v in c u la ç ã o a u m a c u ltu ra religio sa. C onsiderados poderosos
protetores m ág ico s, os a m u le to s islâm ico s eram p articu larm en te populares na Bahia,
mas isso não deve nos im p ressio n a r, pois n a Á frica eles eram usados tanto por m u çul
m anos q u an to p o r n ã o -m u ç u lm a n o s. C h am a d o s de tira pelos iorubas, eram um saq ui
nho de couro com ex trato s d o C o rão ou orações m u çu lm an as escritas em folhas de
papel d o b rad as se p a ra d a m e n te . O u tro s am u leto s eram feitos com conchinhas dentro
de sacos de tecid o a fric an o , ch am ad o p ano d a costa. P ro tegiam da m á influência dos
hum anos e dos esp írito s do m u n d o so b ren atu ral e eram vendidos pelos mestres m uçul
m anos, cu jo s p o d eres m ític o s ( barak a ) eram tran sferid o s a esses objetos m ágicos bené
ficos. O uso desses a m u leto s v iro u m o d a, não im p lican d o adesão ao islam ism o.
O utro sin al d a p resen ça islâ m ica n a co m u n id a d e african a de Salvador era o uso do
abadá (roupas e tu rb an tes b ran co s), m as n u n ca em p ú b lico , para não cham ar a atenção
das au to rid ad es p o liciais. Esses trajes ritu ais só eram usados nas casas que faziam o
papel de m esq u itas, serv in d o de lo cais para orações e outras celebrações. Para que
fossem reco n h ecido s pelos seus, os islâm ico s d a B ah ia tin h am o costum e de usar anéis
dc ferro em vários dedos. Era o sím b o lo de q ue p erten ciam à sociedade dos malês.
No am b ien te urbano de S alv ad o r, os am uletos eram poderosos auxilíares da difu
são da fé dos m alês. A relativa in d ep en d ên cia dos escravos urbanos e a presença de
num erosos alfo rriado s po ssib ilitavam u m a rede de proselitism o e agitação. Os ensina
m entos dos m estres eram divu lgad o s em lugares publico ? ou nas casas que serviam
m esquitas. R eligião do livro, o Islã exige sim ultan eam en te o aprendizado da escrita e
da leitura c a m em orização dc orações, condição para a plena participação nas re
coletivas e com prom isso do in iciado com sua nova Um a das testemunhas do
processo sobre a Revolta dos M alês, a negra brasileira M an a da Costa Pinto, declarou
que um alforriado nagô reunia outros africanos c sua nação em frente a uma praça
freqüentada por carregadores dc cadcirinhas de arruar, a quem ensinava a es
orações.44 O proselitism o era feito dian te de todos, enquanto esperavam c ien e .
espantoso q J n in g u é m tenha pcrcehido a manobra,
ação dos hom ens de cor era vigiada. O utro exemp ■
426 B a h ia , S é c u l o XIX
do branco era a co n d ição dessa ascensão . D a í a atração pelo cato licism o .”56 Note-se
porém , q u e os culto s a n im ísta s tin h am o m esm o p ro b lem a. E ntão, por que consegui
ram resistir m elhor? Por q u e têm , até h o je, tan to sucesso?
E m bora sub estim e a cap acid ad e relig io sa dos negros e ign o re o funcionam ento
das estru tu ras religio sas african as, N in a R o d rig u es ap resen ta u m a análise que me
parece m ais vero ssím il p ara a adesão ao cato lic ism o . Em p rim eiro lu gar, desapare
ceu g rad u alm en te a proteção iso ían te q u e as lín g u a s african as — geralm ente desco
nhecidas dos negros b rasileiro s — d avam ao Islã. T e n d o ch egad o nos últim os cin
q ü en ta anos antes d a ab o lição do trá fic o , os negros m u çu lm an o s tiveram menos
po ssibilid ad es de a d ap ta r suas p ráticas re lig io sa s ao p o rtu g u ês, ú n ico laço entre as
diferentes etn ias, q ue falavam lín g u a s d iferen tes. P ro p ician d o u m refúgio inacessível
aos senhores e seus rep resen tan tes, as lín g u a s a frican as h av iam favorecido a cateque
se m u çu lm an a, o ferecen do refú g io e s p iritu a l aos african o s (m as não aos negros nas
cidos no B rasil) p ersegu id o s p ela re lig iã o c a tó lic a dos d o m in ad o res, A lém disso, o
cato licism o , com seus san to s e a p o m p a de seu c u lto ex terio r, estava m ais próximo
das m ito lo gias m ais o u m en o s d esen v o lv id as n a Á frica. A p o ssib ilid ad e de estabele
cer eq u iv alên cias e id e n tid a d e s e n tre os san to s cató lico s e as d iv in d ad es ou orixás
nagôs rep resen to u, p ara os n egro s d a B ah ia , u m dos m aio res atrativo s p ara o catoli
cism o, q ue co n tav a a in d a , a seu favo r, co m to d o o a m b ie n te em q u e viviam os ne
gro s.57 N in a R o d rig u es d eu assim a p ró p ria razão d a so b rev ivên cia dos cultos afri
canos, ao n o tar a to le râ n c ia d a Ig re ja C a tó lic a p a ra com a festa african a. O Islã foi
vencido por cau sa de su a in to le râ n c ia e de s u a fa lta de p o d er de adaptação às reais
condições d a so cied ad e b a ia n a .
A H e r a n ç a A f r ic a n a : o s T e r r e ir o s
Foi poderosa a co n co rrên cia feita pelas religiõ es african as à Igreja C ató lica, que as
subestim ou, por desco n h ecer suas estru tu ras e só reco n h ecer, em suas manifestações
exteriores, d iv ertim en to s pagãos. A m esm a a titu d e foi co m p artilh ad a pelos senhores
de escravos: preocupados em m an ter a paz em suas p ro p ried ad es agrícolas, não somem
te ad m itiam , m as en co rajavam , essas m anifestaçõ es. C o n tav a apenas o lucro retirado
do trabalho dos escravos, e isso d ep en d ia d a paz so cial. O s africanos, cham ados bo
çais , ofereciam resistência à cristianízação? E ntão não era ruim ser tolerante. Assim, os
cultos anim ístas eram p raticado s sob olhares benevolentes do senhor e da Igr^ 3*
T enho algum as descrições sobre eles, m as de ordem m u ito geral, pois os observadores
só eram capazes de perceber seus aspectos exteriores. Q uem não crê, ou não se dá ao
trabalho d e v e r, nega q u alq u er valor a outros cultos; toda litu rg ia torna-se brincadeira,
toda prática aparece com o sim ples teatro, toda representação v ira divertim ento. Sobre
tudo porque, nesses prim eiros tem pos e sem d ú vid a até o século XVIII, os cult®5
africanos ain d a não estavam organizados.
L iv r o V - A Ig r e j a
- 429
g ran d e saía p ú b lic a , o n d e sao realizad as as celeb raçõ es ab ertas a todo s; por fim, as
aco m o d açõ es, p erm an en tes ou te m p o rá ria s, dos in ic ia d o s e de suas fam ílias. Entre
este ‘espaço u rb a n o ’ e o ‘m a to ’ h á u m a casa (Ilé -Ib o -A k u ), o n d e são adorados os
m ortos. O ‘espaço m a to ’ , acessível ap en as aos sacerd o tes, o cu p a 2/3 do terreiro, com
d iferen tes árvores e arb u sto s cu jas fo lhas servem p a ra as p ráticas litú rg ic a s .62 Eviden
tem en te, no sécu lo X IX n u m ero so s terreiro s n ão p o d iam ter esta d u p la e s t r u t u r a
pois estavam in stalad o s em casas situ a d a s no C e n tro d e S alv ad o r: o terreiro urbano
neste caso, p o ssu ía u m ‘m a to ’ nos esp aço s v erd es q u e cercav am a cid ad e ( D iá rio da
Bahia, 2 d e ju n h o d e 1 8 5 9 ). A p ó s a A b o liçã o d a e scrav atu ra, os terreiro s buscaram
con d ições id eais de fu n c io n a m e n to , esta b elecen d o -se nas p a ró q u ias sem i-urbanizadas,
com o as de V itó ria e d e B ro tas, p a ra o n d e, a liá s, v ie ra m tam b ém os negros prove
n ien tes do cam p o . : .
O sistem a relig io so io ru b a é d in â m ic o . O c o n te ú d o m ais p recio so de um terreiro
é o ase, a força q u e to rn a p o ssível o processo v ita l e asseg u ra o devir. Sem o ase a
existên cia ficaria p a ra lisa d a , sem p o ss ib ilid a d e d e rea liz açã o . E sta força é transm itida
por m eios m a teria is e sim b ó lic o s, m as ex ig e a lg u m tip o d e co n tato , necessariam ente
v o lu n tário . T o d o s os m a teria is p resen tes n u m terreiro , b em com o os in iciad o s, devem
receber o ase, a c u m u lá -lo , m a n tê -lo e d e sen v o lv ê -lo ,63 N ão v am o s en trar em detalhes
sobre a co m p lex a co m b in a ç ão e o fu n c io n a m e n to dos três elem en to s — ase, orixás e
antepassados — q u e c o n stitu e m os fu n d a m e n to s desse cu lto . R egistrem o s apenas que
a crença n u m a in terv en ção p o d ero sa, cap az d e d a r ao fiel u m a fo rça suficiente para
vencer ad versidades, era m ais atraen te q u e as pro m essas do cato licism o ou do islamismo
para u m a v id a feliz no fu tu ro . O escravo e o alfo rriad o receb iam m elh o r o pragmatism o
dos cu lto s afro -b rasileiro s. A d em ais, e n c o n tra v a m , nos terreiro s, segu ran ça e uma
h iera rq u ia sacerd o tal cap az de g a ra n tir p re stíg io p a ra os q u e se sobressaíssem . O chefe
religioso se to rn av a chefe de to d a a c o m u n id a d e , o rg an iz a d a na form a de uma vasta
fam ília, parecida com a p a tria rc a l, m as sem a in g e rê n c ia dos brancos.
A tudo isso se acrescen tava o caráter p o uco co ercitiv o dessas religiões negras.
N enh um co m p ro m etim en to p a rtic u la r, n en h u m a re n ú n c ia , era im po sta aos assisten
tes dos culto s, nem m esm o no q ue d iz ia resp eito à p articip ação em atividades de outras
religiões. Essa d u p la adesão, m u ito co m u m , se ju sta p u n h a sem problem as ao cotidiano
de escravos c alforriados, de alg u m a fo rm a envolvidos pelo cristian ism o oficial. Prati
cadas sim u ltan eam en te, as duas religiões tin h am , cada um a, suas regras, seus ambien
tes, seus espaços físicos. N as cid ad es, isso era vivenciado tam bém nas confrarias, toda
elas católicas em sua form a, mas freq ü en tem en te perpassadas por esses cultos qtie
lem bravam a Á frica perdida.
N ão se sabe se o culto nagô, tão bem -estruturado, era praticado nas p la n t a ç o c
de cana-de-açúcar, onde, ao que sc supõe, existiam também cultos de origem banto
O s escravos nagôs vieram sobretudo para as cidades. E m meados do século 1
numerosas notas publicadas nos jornais de Salvador relatavam ações policiais em
casas de alforriados, ou mesmo de negros nascidos livres, onde ocorriam celebraçocS
L i v r o V - A I g r e ja
c o n s id e r a d a s im o r a is . P e r c c b e - s c , n o e n t a n t o , q u e e ra m a li e n c o n tra d a s p esso as d e
to d a s as c o re s e to d o s o s e s ta t u t o s ju r íd ic o s , in d ic a n d o u m a c a p a c id a d e d e e sp ra ia -
m e n to q u e , e n t r e o s b r a s ile ir o s , o is la m is m o n ã o te v e .M S e g u n d o o s jo rn a is , esses
lo c a is se m u lt ip lic a r a m d e p o is d a a b o liç ã o d o r r á fic o d e e sc ra v o s, m o v im e n ta n d o
g r a n d e s s o m a s d e d in h e ir o , a p r o p r ia d a s p o r p r e te n s o s ch e fe s re lig io s o s .65 E ra este o
ú n ic o a s p e c to q u e o e s ta b lis h m e n t c o n s e g u ia p e rc e b e r n e ssa r e lig iã o c a p a z d e d esp e r
ta r e s p e r a n ç a n o s p o b r e s .
A p e sar das d e n ú n c ia s da im p re n s a e da perseguição policial, esses cultos resistiram
ao tem p o, m o s tra n d o talvez o q u a n to fo ra ilu sória a cristianizaçao p rom ovid a pelo
c a to lic is m o r o m a n o . O m u n d o q u e se t e n t a r a r o m a n iz a r e s ta v a c h e io d e p o b r e s em
e s p ír ito e e m v e r d a d e s — q u e n a d a t in h a m a v e r c o m te o lo g ia e d o g m a s . Q u e ria m
in te g r a r -s e n a s p r o m e s s a s d e p r o m o ç ã o s o c ia l e d e v id a e te r n a p rese n te s no m o d elo
b ra n c o , m a s p e r m a n e c ia m fié is a s e n t im e n t o s d e p r o f u n d a r e lig io s id a d e e a u m forte
s e n tid o d e m is t é r io . O c o m b a t e d e to d o s os d ia s , e m m e io a p o b re z a e d ific u ld a d e s,
fo rja ra m u m p o v o a b e r to a to d a s as e s p e r a n ç a s , c o ra jo s o , e sp e rto e a p to a d efen d er-se
de to d o tip o d e a g r e s s ã o .
L I V R O V I
O C o t id ia n o d o s H om ens
que P r o d u z ia m e T rocavam
C A P Í T U L O 24
S a lv a d o r : a C id a d e n o S é c u lo XIX
‘ E n tre o B o n f im e o c a b o d e S a n t o A n t ô n io ra s g a -s e u m a fo rm o sa b a ía de d u a s légu as
d e la r g u r a , n o f u n d o d a q u a l a p a r e c e a c id a d e d e S a lv a d o r , e d if ic a d a em a n fite a tro
so b re u m a e n c o s t a m u it o e s c a r p a d a . V á r io s e d if íc io s c o n s id e rá v e is lh e d ão u m a a p a
rê n c ia d e g r a n d e z a e d e m a g n if ic ê n c ia . O g o lp e d e v is ta e n c a n ta d o r q u e a c o n stru ç ã o
em a n f it e a t r o d á à c id a d e p e r d e m u it o d o s e u v a lo r q u a n d o se p õ e p é em terra. A
m o n ta n h a d e s c e tã o b r u s c a m e n t e p a r a o m a r q u e n a p r a ia n ã o h á m a is esp aço do q u e
o n e c e s s á r io p a r a c o n s t r u ir u m a só r u a , c u ja s c a sa s d e u m la d o são b a n h a d a s p elo m a r
e d o o u tr o a p a r a d a s d e e n c o n t r o à m o n t a n h a . ( ...) E sta C id a d e B a ix a é o ce n tro dos
n e g ó c io s; o b s e r v a - s e a li u m a g r a n d e a t iv id a d e : tr a n s p o r te c o n tín u o d e m erc a d o rias,
lo ja s m u it o f r e q ü e n t a d a s , g r it o s d e n e g r o s q u e v ã o e v ê m n esse e sp a ç o tão estreiro , q u e
a in d a m a is a u m e n t a o t u m u lt o . S e é a c o to v e la d o , fic a -s e a to rd o a d o . Q u a n d o n ão se
te m m a is o q u e t r a t a r n e s ta p a r t e d a c id a d e , p r o c u r a -s e d e ix á - la , c o m p ra z e r ta n to m ais
v iv o q u a n t o e la é o b s c u r a e p o u c o a s s e a d a . ( ...) U m a v ez c h e g a d o à C id a d e A lra,
e n c o n tr a m - s e r u a s la r g a s , c a lç a d a s e b e m a lin h a d a s ; as casas são d e c e n te s e d esp id as das
triste s g r a d e s m o u r is c a s q u e se o b s e r v a m c o m g r a n d e fr e q ü ê n c ia em P e rn a m b u c o . 3
A ssim se e x p r e s s a v a , e m 1 8 1 7 , o fr a n c ê s T o lle n a r e . S e u te ste m u n h o é co rro b o rad o
p o r q u a s e to d o s os v ia ja n t e s q u e v ie r a m d e p o is : a e n c a n ta d o r a v isão q u e de S alv ad o r
sc tin h a d o a lt o - m a r d a v a lu g a r à d e c e p ç ã o , n o d e s e m b a r q u e . Em g e ra l, p o rém , a
im p re ssã o m e lh o r a v a q u a n d o se s u b ia a té o p la tô , no a lto d a escarp a. S eja com o for,
S a lv a d o r sc a p r e s e n ta v a a o s o lh o s d e u m e u ro p e u do sé c u lo X IX co m o u m a cid ad e
im p o n e n te c n o tá v e l. , .
N o ssa S a lv a d o r d o s é c u lo X IX c o n se rv a v a os lim ite s q u e a c id a d e tin h a no secu o
a n te r io r , c o m s u a s d e z p a r ó q u ia s (a I I a, d o s M a re s , foi d e sm e m b ra d a em 1871
p a ró q u ia s d o P ila r e d e S a n to A n tô n io A lém d o C a r m o , co m o já v im o s). S egu
a u to re s d a é p o c a , n ã o c ra n e m m u ito , n em p o u co p o v o ad a . N a ú ln m a terça pa ^
sé cu lo , as p a r ó q u ia s m a is p o p u lo s a s e ra m as d a S é , de S a n t A n n a e de S a n to n to n io ,
além d a p a r ó q u ia d o C a r m o .
435
436 B a h ia , S é c u l o X IX
A C idade à B eira - M ar
origem . S e g u n d o Pierre V erg er, sob as arcadas de San ta B árbara ficava o ‘canto' dos
gu ru ncis e. a a lg u n s passos d a li, en tre S an ta B árbara e o H otel das N ações, o dos
haussas. O s n agô s, m ais n u m ero so s, se reu n iam no m ercado e na rua do C om ércio no
lugar ch am ad o 'C o b e rto G ra n d e ’, e em vários pontos d a rua das Princesas, só in au g u
rada em 1 8 6 6 . O s m em b ro s de cad a gru p o o b edeciam às ordens do capitão-do-canto
responsável por sua d is c ip lin a p eran te as au to rid ad es. E nquanto os clientes não apare
ciam , n u n ca ficavam in ativo s: co n feccio n av am ch ap éu s e cestos de palha, correntes de
aram e para p ren d er p ag ag aio s, g aio las, colares e braceletes de contas de origem vegetal
ou an im al.
A ru a era tam b ém lu g ar d e co m er e beber. D esde as prim eiras horas da m anha,
negras ‘g a n h a d e ira s’ co m eçav am a p rep arar c a n jic a , m in g au de tapioca, acaçds bem
quentes de fa rin h a arro z e de m ilh o , arroz com carne-seca, in h am e cozido etc .4A m
bulan tes, por sua vez, o cu p av am to d o e q u a lq u e r espaço livre para oferecer frutas,
peixes fritos e gu lo seim as.
Se acrescen tarm o s a tu d o isto as cad e irin h a s — ou cadeiras de a rr u a r — , os porcos
e os cachorros, os pássaros e n g aio lad o s, os negros a ap rego ar tapetes ou chapéus e as
valetas onde ap o rta v a m , v in d as das lo jas e das casas, todas as im u n d ícies im agináveis,
terem os u m a id é ia do a trav an c a m e n to , dos ru íd o s e dos odores que reinavam nesse
industrioso b airro d a c id a d e .5
M as foi às cores do b airro q ue S ch w ieg er, pasto r protestante que visitou Salvador
em 1897, m o stro u-se p a rtic u la rm e n te sensível: ressaltou as grandes árvores verdes, os
frutos e legu m es m u ltico res, os m acacos co r-d e-ro sa e m arrons, os papagaios de penas
am arelas, azuis e acin zen tad as, as am etistas brancas e os lím pidos cristais de rocha,
desordenadam ente expostos nos co lo rid o s m ercad o s .6C abe observar que, até o fim do
século, esses m ercados d a C id a d e B aixa foram os únicos verdadeiros centros com er
ciais da cid ad e. A ven da de peixes ou de q uarto s de carne na C idade Alta era inclusive
p roibida .7 .
I odos os observadores se im pressionavam , tanto com o conjunto arquitetônico
como com o lab irin to de ruelas tortuosas que desciam do pé da escarpa e cortavam a
com prida rua lo n g itu d in al. M ais tarde, novas superfícies foram conquistadas ao mar
e novas ruas paralelas à p rim eira vieram desafogar um espaço que, não obstante,
continuou repleto.
Assim, se ganhavam alguns metros quadrados de terreno, as paróquias da orla
marítima não perdiam seu caráter industrioso e turbulento, sem falar da sujeira, inde
fcctível nos relatos da época. A inglesa M aria Graham , que conhecera outros países,
afirmou em 1821 jamais ter visitado lugar mais emporcalhado que a Cidade Baixa e
Salvador.* Alguns anos mais tarde, o francês Fcrdinand Denis e o missionário metodista
Daniel P. Kidder, nortc-am cricano, descreveram também a imundfcie das ruas. Mas
foí o cônsul inglês W ethcrell, que residiu na Bahia de 1843 a 1857, que eixo
imagens mais fortes: "D e manhã, ao se passar pelas ruas da Cidade Baixa o ^
transeunte é assaltado por uma profusão de cheiros, que positivamente na a tem
438
B a h ía , S é c u l o XIX
A C id a d e A lta
ed ifício s púb lico s, con ven tos e igrejas e tam b ém m ercad o s. F on tes e poços se espalha*
vam por toda parte, nessa c id ad e o n d e a ág u a d o ce está sem p re ao a lca n ce de quem se
d á ao trabalho de cavar um po uco .
A p aró q u ia d a Sc — p u lm ã o a d m in istra tiv o d a c id a d e c d a P ro v ín cia — concen
trava o m aio r n ú m ero de p réd io s p ú b lico s e relig io so s: em to rn o de su a p raça central
ergu iam -se o p alácio do p resid en te d a P ro v ín c ia , a sede d a P re fe itu ra , a C asa d a M oeda
e o T rib u n a l de In stân cia. M a is a n o rte, a ru a d a M is e r ic ó r d ia — o n d e ficava a Santa
C asa. im p o n en te co n stru ção d o sécu lo X V II — lev av a ao p a lá c io e p isco p al, construído
ao lado da a n tig a cated ral, de 1 5 5 1 , q u e v iría a ser d e m o lid a em 1 9 3 3 p ara ab rir espaço
d ian te d o p alácio arceb isp al .17 E sco lh id o p o r to d as as o rd en s relig io sas p a ra sed iar seus
conventos e igrejas, esse b airro im p ressio n a v a , no sé cu lo X IX , p e la extrao rd in ária
Ijí
riq ueza d e seus m o n u m en to s. -
As co m u n icaçõ es eram re la tiv a m e n te fáceis na C id a d e A lta , ao lo n g o dos vales que
serpenreiam en tre as m u itas co lin as d o horst em q u e se e m p o le ira S alv ad o r. D e 1851
a 1859, fizeram -se obras p a ra c a n a liz a r e c o b rir p a rc ia lm e n te o rio das T rip a s, o que
elim in o u as in co n táv eis p o n tes e p assarelas d a era c o lo n ia l (h o je , esse rio é in te ira m e n
te seco, m as n a época c o rria a no roeste d a c id a d e , atrav essan d o u m v ale em cujos
declives estavam co n stru íd as as casas).
O q uad ro geral era o de u m a c id a d e m u ito v erd e, to d a em su b id as e descidas;
algu m as p aró q u ias, com o as d e V itó ria e B rotas, eram q u ase ru rais, ao passo q ue a de
Nossa Senh ora d a P enh a, ao no rte, passou a c o n c e n tra r u m a in d ú s tria têx til q ue ali
fixou u m a m ão -d e-o b ra b astan te co n sid eráv el. A ssim , e n q u a n to a p a ró q u ia de V itória
se tornava cada vez m ais a risto c rá tic a , a d a P en h a a ssu m ia u m c a rá te r crescentem ente
popular. C o nh ecem os po uco , in fe liz m e n te , d a h istó ria dessa m u taçã o , m as sabem os
que, a p artir de m eados do século X IX , Ita p a jip e , re lativ am e n te d ista n te do centro de
Salvador, já tin h a fácil co m u n icação com o porto p o r tran sp o rtes m a rítim o s e terrestres.
Era na Cidade Alta, que reunia as cinco paróquias ‘centrais’ (Sé, Santo Antônio
Além do Carm o, Santana, São Pedro o V e lh o e Paço), que se concentrava o grosso da
população baiana, vivendo na mais com pleta promiscuidade social: artesãos livres,
alforriados, escravos, funcionários, burgueses e nobres moravam lado a lado, mima
babel dc casas, igrejas, conventos, um em aranhado de caminhos, praças, becos e
travessas que sobem e descem c cujas ligações escapam ao rcccm-chcgado”. , J Ao lado
dc modestas casinholas de taipa, muitas das quais exibiam apenas uma porta c uma
janela, erguiam-sc pretensiosos palacetes nobres, como a ‘Casa dos Sete Candeeiros ,
o paço do Saldanha c o solar do Ferrão, ou ainda prédios dc dois, três ou quatro
pavimentos. Alguns eram inteiramente ocupados por famílias burguesas de senhores
de engenho, grandes comerciantes e profissionais liberais; outros, divididos em aloja
mentos, eram partilhados por toda espécie de gente; dc escravos ‘de ganho* a pequenos
funcionários públicos.
As informações que restaram do recenseamento dc 1 8 5 5 mostram alguns aspectos
dessa promiscuidade social: tomemos por exemplo as casas que ficam atrás da rua da
Ho.MF.NS QUE PBD U Zm E w , .......
441
A,ucb. n , - . _ circunscrição du purdquiu da * . Havia ali serc casas, seis delas hab,ra
das. Desras, c n c o eram rerrcas c a ourra um sobrado, com dois pavimenros N o n " 6
moravam dois m u la,os livrcs c um policial, também mulato; tinham, respectivamente
30, 23 c 24 anos c n e n h u m laço dc parentesco entre si. N o „o 8 , mais m , la[os: # d ’
da casa, L uiza M arta C o n c e iç ã o , 2 7 , so lteira, vivia com os três filhos e um irm ão
M anuel da C u n h a P in h eiro , 2 2 an o s, so lteiro e m arceneiro. No n° 12, o portu u ê ’
Jo aq uim R o d rig u es V id a !, m u lato , 26 anos, viúvo c chapeleiro , m orava c o r n a i
Gervaza P o rtácia J u lia n a , m u la ta , so lte ira, 4 4 anos, c do irm ão de doze anos José
M aria R o d rigu es V id a l. N o n° 14 m o rav am dois portugueses brancos, José A ntônio de
Souza B raga, 4 9 an o s, co m e rc ia n te , e seu caixeiro Jo sé Luiz P into, de dezoito anos.
Com a fa m ília de M a la q u ia s R o d rig u es dos S an to s, que ocupava o n° 13, voltam os aos
m ulatos. O -pai, M a la q u ia s , tin h a 32 anos e era carp in teiro ; sua m ulher, Felícia M aria,
trinta anos, em o rig in á ria de N azaré, no R ecôn cavo; tin h am duas filhas, M aria A ngé
lica e M a ria d a C o n c e iç ã o , com d ezo ito (sic) e seis anos, respectivam ente (há evidente
engano na id ad e d a p rim e ira ).
O n° 18 era u m so b rad o . N o térreo h avia três alo jam en tos: num deles vivia
Jo aq uim A lves d a S ilv a, 3 4 anos, m u lato , so lteiro , torn eiro; em outro, Ignacio Alves
dos San tos, tam b ém m u lato e so lteiro , 25 anos, alfaiate. O terceiro era ocupado pela
fam ília d a m u la ta In o c ê n c ia M a ria R o m an a, trin ta anos, solteira, que vivia com a mãe
e dois filhos. N o seg u n d o p a v im en to v iv ia a fa m ília do em pregado do com ércio José
Lopes d a C u n h a M e llo , p o rtu g u ês; tin h a q u aren ta anos, era viúvo e vivia com os
filhos, A d elaid e, q u in z e an o s, e Jo sé, três anos, u m a p eq u en a escrava (nascida no
Brasil) ch am ad a M a ria , d e sete anos, e três agregad as, todas m ulatas e solteiras: M aria
Leocádia, q u a re n ta anos, U rs u lin a A lves de M ato s, vin te anos, e M aria Agostinha, oito
anos. N a rua D ire ita d a A ju d a , nessa m esm a cirscunscrição , coabitavam no mesmo
prédio ou na m esm a rua: negros e negras livres q ue eram pedreiros, dom ésticas ou
cozinheiras; m u lato s e m u latas livres, en tre os q u ais um a am a-de-leite, um a professora
prim ária ap o sen tad a, um professor de francês, um alfaiate, um sapateiro, um marce
neiro e um estu d an te; african os alfo rriado s q ue con tinuavam a exercer suas ath idades
‘de ganh o’ ou a lavar roupa; e, por fim , brancos que eram pequenos funcionários,
estudantes, caixeiros, lojistas.20 ,
O utro tipo de documentação confirma plenamente essa diversidade socía .
qualificações’ para as eleições. Encontramos as de 1 8 6 2 para esse mesmo quarteirão a
circunscrição da Sé. Rstas eram as profissões dos cidadãos ativos: médicos, a voga ,
músicos, ourives, marceneiros, sapateiros, funcionários públicos, marujos de s
charuteiros, comerciantes, alfaiates, escrivães, pedreiros, caixeiros, pintores, c
pessoas que viviam de rendas etc.21 #
Nesse conjunto, p r e d o m i n a v a m evidentemente as categorias sociais mt
rias, mas o elemento burguês, representado pelas profissões liberais e os comerc
ti nha aí presença expressiva: entre 6 6 cidadãos ativos d o 2 1 ° q u a r t e ir ã o , 2 3 p ^
a essas c a t e g o r ia s .22 C a l d e a m e n r o r a c ia l e so cia ! tã o in te n s o s, q u e é im p o s s ív e l ciass.-
442 B a h ia , S é c u l o XIX
As C a s a s : P r o x im id a d e e Re s e r v a
O que subsiste das casas de m o rad ia do século XIX im pressiona pela pouca variedade
dos m odelos q ue se en fileiram m o n o to n am en te, só ganhando cor e vida graças à
alegria e à diversid ad e dos m oradores, ao passo que os prédios públicos sáo todos
m uito ricos e m esm o variados e op ulen tos.
Rugendas observou isto por volta de 1 8 2 0 e estranhou as casas de três, quatro e at
cinco andares quase sem janelas.40 Canstatt o confirmou, em 1 8 7 1 : “A construção das
casas não oferece nenhuma variedade notável; sáo todas simples c feias, uma raramente
« distinguindo da vizinha pelo estilo; a uniformidade das ruas só>ê atenuada quando
alguma igreja ou algum convento interrompe a fileira das casas. gun. j.
explicaram a altura dos imóveis pela exigí.idade do espaço. Razão váhda, por certo n
paróquias de Conceição da Praia ou do Pilar, na Cidade Baixa ou na par quia ,
onde de fato os prédios de vários andares eram mais n u m e r o . . ninhada de um
Mas a falta dc imaginação, a uniformidade na arquitetum, « e
inconveniente maior: o padrão náo se adapta absolutamente c(,ama de
sempre úmido. Praticamente não existia a verdadeira varan a.
446 Ba h u . S f c n o XIX
varanda". escreve V eth ereiL "c um a peça que tom a roda a largura do imóvel, com
janelas; sim ples galeria que integra a casa [ . .. ] . Os balcões do segundo andar são locais
procurados para m an d n ar; nos dias de procissão ou dc tesra im portante, são forrados
com tecidos adam ascados e. se há algo para ver. as belas elegantes da cidade amontoam-
se neles. V êem -se tam bém alguns balcões com venezianas, cu ja parte superior p o d e
dobrar-se, projetando-se levem ente sobre a balaustrada. Os lados são de m adeira, co m
um a pequena abertura, em geral em form a dc cruz, q ue perm ite ver a ru .i.",;!
Esta descrição se ap lica, é claro, a im óveis de vários pavim en tos, os sobrados, que
podiam abrigar um a ú n ica fam ília, várias pessoas sós ou até várias fam ílias. Como
vim os, porém , ao lado deles havia m u itas casinh as de taip a, com um a porta e um a ou
no m áxim o duas jan elas d an d o para a rua. Sem p re coladas um as às outras, alinhavam -
se em lotes em geral m ais com p ridos q u e largos, o q u e resultava em fachadas estreitas
e m esquinhas.
C onstruções pouco só lid as, essas casas ru íam tão logo deixavam de ser ocupadas .4-1
M u itas posturas m u n icip ais tiveram por o b jeto esses terrenos cheios de escombros,
mas em vão: no século X IX , todo o espaço das p aró q u ias do centro da cidade estava
tom ado por c a s a s... ou ru ín as de casas. O s m ateriais usados nessas construções eram
variados. A lgum as eram de pedra c cal, o u tras de tijo lo s, ou de u m a argila seca ao sol,
espécie de adobe m u ito rú stico , o u tras de taip a. A lgü m as tin h am chão de terra batida,
mas o telhado de todas, ou q uase todas, era feito com as telhas verm elh as abundante
m ente produzidas em M a rag o jip e, no R ecôn cavo, c q u e a d q u iriam com o tem po uma
bela pátina. Paredes, jan elas e portas p in tad as com cores vivas — am arelo, azul, verde,
cor-de-ocre, cor-de-rosa — co n feriam às casas h ab itad as um aspecto alegre e até uma
falsa aparência de solidez. V ale notar q u e, por força de um a postura m u n icip al, portas
e janelas abriam -se sem pre para d en tro .
Casas com belos soalhos ou casebres de chão b atid o , im po nen tes palacetes de
vários andares ou casinholas de u m a ja n e la só, quase todos os im óveis tinham cm
com um um corredor estreito e escuro q ue levava da p o rta d a rua até um a espécie de
pátio interno indispensável — o q u in ta l — cujas dim ensões variavam segundo a
im portância da construção. Em cada q u ad ra, o co n ju n to desses pom ares ou jardins
formava um espaço m ais ou m enos verde. A cozánha dava sem pre para o quintal, e
dependências dc diferentes altu ras, anexos m ais ou m enos fetos, mas práticos, faziam
dessa parte da casa o centro da vida privada dos m oradores.
Em Cenas da vida baiana, A. Rotvzi faz um a eloqüente descrição da vida social que
as paredes das casas ocultavam . íl, aliás, a única que tem os, pois viajantes c transeuntes
nada podiam adivinh ar do que sc passava atrás das portas {muito em bora, pelos
fundos, de quintal para q u in tal, a in tim id ad e dos lares ficasse exposta à curiosidade
dos vizánhos). Vejam os o que ele diz sobre o desconforto das casas: .
Lá se foram muitos meses que morava cu em certa casa m uito mal construída sem
ar e sem luz, e com todos aqueles incôm odos que tão facilm ente olham -se ainda em
m uitas casas por falta de boa construção, e do nenhum cum prim ento das leis da
_ _ U v ^ » V I _ - 0 C o T . D I A . s o D O S H O M E N S Q U E P Rü „ UZI„ ( E T r 0 C * V «,
447
C âm ara a este resp eito D ir-se-ia q ue m u itas casas foram feitas para homens de
outra espccie d a nossa, p a ra não se o cu p arem de satisfazer certas necessidades m dis
pensáveis a to d a a h u m a n id a d e , e q u e devem ser tom adas em consideração, não só por
quem ed ifica; com o p ela a u to rid a d e local cm co n tem p lação dc Saúde pública —
se e
que a saúde m ereça de q u a lq u e r C â m a ra M u n ic ip a l o m aio r desvelo possível ”44
A lguns v ia jan te s co n seg u iram v islu m b ra r (e ch eirar) alg u m a coisa quando MHia
um a
porta se en trea b ria . n ad a de c an aliz ação de ág u a, n ad a de esgoto; os banhos eram de
bacia e cuia. Se a isto so m arm o s o ch eiro do m ofo que, graças à um id ad e, esverdeava
madeiras e couros m al co n serv ad o s, terem o s u m a id éia dos odores e eflúvios que
em anavam d aq u eles escu ro s co rred o res, e n tre a m a e o q u in ta l 45
A m aio r p arte d a classe m é d ia h a b ita v a prédio s de dois, três ou q uatro andares,
com u m a p o rta e d u as o u três ja n e la s d an d o p ara a ru a, só abertas depois que sol se
punha. As peças dos. ap arta m en to s tin h am designações precisas: sala, ‘quarto da sala’,
‘quarto do m e io ’ , ‘q u a rto de d e n tro ’ o u ‘d a sala de ja n ta r ’ , sala de jan tar, às vezes
um a copa, co z in h a e d e p e n d ê n c ia s. O ‘q u a rto d a sala ’, assim cham ado porque se
com unicava co m esta p o r u m a p o rta e n v id raça d a, só era usado para receber hóspe
des ou em g ran d es o casiõ es, com o recepçõ es, d u ran te as q u aís não podiam perm a
necer no salão de festas as v iú v as e as m u lh eres q ue v iviam irregu larm en te com um
hom em . O ‘q u a rto de d e n tro ’ era g e ra lm e n te usado com o dorm itó rio, Nas casas
ricas, sobretudo q u a n d o o cu p av am m ais de um an d ar, h av ia duas salas de jan tar, a
‘de baixo’ e a ‘de c im a ’, sendo a p rim e ira delas o centro da vida fam iliar; lá se com ia,
se costurava, se receb iam os am igo s. A sala do segundo an d ar só era aberta por oca
sião de grandes festas; se, por in fe lic id a d e , m orresse o dono d a casa, ficava fechada
para sem pre.
Nos prédios de v ário s p av im en to s, o segu n d o e o terceiro eram ocupados por
fam ílias de u m m esm o n ível só cío -eco n ô m ico ; os dem ais, a que se tinha acesso por es
cadas abruptas, d e d egrau s a ltíssim o s, se d estin av am a fam ílias m ais pobres ou a
estudantes, N ão ficava bem m o rar n u m m ezan in o do térreo, sobretudo quando não se
era com erciante, nem nos fundos de u m a lo ja, nem em casa de chão batido. De fato,
o prim eiro in d ício d a d ecad ên cia de u m a fa m ília era sua m udan ça para um aloja
térreo. N a oco rrência de taf in fo rtú n io , a fam ília se tornava extrem am ente isc ,
evitando todo convívio so cial; as jan elas q u e davam para a rua ficavam eternam
fechadas e pessoas ‘de co n sid eração ’ não m ais eram recebidas.
Os m oradores do ‘desça’ , com o era cham ado o subsolo, formavam u rerçCiro
à parte. Eram os agregados c escravos das fam ílias que moravam no segu acesso a
pavim entos, ou locatários cu idadosam en te escolhidos, sobretudo qua ^ ruela)
esses porões se fazia pela escada intern a (por vezes tinham saída direta para u
A ‘boa vizinh an ça em que viviam essas pessoas In*u^ va' j h“ pel 0 mero
social. B uscavam gran jear a am izade dos m oradores e cim a > impressão de
prazer de aparecer vez por outra à jan ela de um andar superior,
fazer parte da família.
44* B a h ia , S é c u l o XIX
R evo ltas e M o t in s
Nem só o fogo p u n h a cm risco a tra n q ü ilid a d e dos baianos no século XIX: é rica a
cronologia das su b lcv açó es, m o tin s, d istú rb io s sociais, revoltas arm adas. Foram m uitas
as sublevaçõcs de escravos de 1807 a 1835. E ntre 1808 e 1850, a descolonização e a
instalação d c um novo E stado b rasileiro deram lu g ar a lutas políticas e tensões sociais
entre a p o p u lação livre d a cid ad e. A p artir de 1850 os conflitos tornaram -sc menos
freqüentes, m as não p erd eram a grav id ad e, atestan do a fragilidade das bases econôm i
cas da vida co tid ian a dos baian os. Em todos, os interesses sc superpõem e se embaralham.
Essas tensões, aliás m al estu d ad as e q u e apenas evocarem os aqui, abalavam fortemente
os habitantes de S alv ad o r, c a lem b ran ça desses conflitos ou o medo de novas sedições
está sem pre presente para esse povo, m ais in q u ieto do que parece.
Entre 1 8 0 7 c 1 8 3 5 , quase todos os anos foram marcados por revoltas dc negros na
Bahia, Em maio dc 1 8 0 7 , os escravos da nação haussa que vivia no Rnôncavo plane
jaram unir-sc aos da cidade para matar seus senhores, envenenar as fontes c, aj t ^
do-sc dos navios ancorados no porto, voltar para a Áfiica. Denunciados, os c. ç1
foram condenados à morte, o que não impediu que novas insurreições sc sucedessem,
em dezembro dc 1 8 0 8 c em janeiro dc 1809. Desta vez, os nagôs c o.* .”
uniram c as autoridades tiveram que recorrer ao Exército para atacai o (’ca ''
entrincheiravam, a cinqüenta quilômetros da cidade. Nova revolta em 1810, depois
cm 1 8 1 4 , esta liderada por escravos pescadores que tinham começa o por
contramestres c suas famílias. A infantaria e a cavalaria mataram 56 negros, quase
todos haussas, numa verdadeira batalha campal planejada, travada em Itapoa. pequen
452 B a h ia , S é c u l o XIX
porto bem perto de Salvador. As palavras de ordem dos com batentes negros eram:
‘Liberdade! V iva os negros e seu rei!’ e ‘M o rte aos brancos e aos mulatos!’59
Em ju n h o do m esm o ano, o u tra co n sp iração foi d e n u n c ia d a e rep rim id a , o que
n ã o im p ed iu a eclosão de novos m o vim en to s em 1816 e d ep o is em 1 8 2 2 , 1 8 2 6 , 1827,
1 8 2 8 , 1 8 2 9 , 1 8 3 0 e 1 8 3 5 . A cada um a dessas revoltas, sem d ú vid a favorecidas pela
recente proclamação da Independência do país, os revoltosos tentavam roubar armas,
incendiar entrepostos, libertar seus irmãos do cativeiro.
A revolta de 1835, bem p rep arad a e cercad a de segred o , q u ase lo gro u sucesso.
O rgan izad a por african os d e o rig em m u ç u lm a n a , tin h a a ad esão de m u ito s alforriados.
Ind ictaram -se 2 6 0 ho m ens e 26 m u lh eres, m u ito s dos q u a is fo ram condenados à
m o rte e às galeras ou depo rtado s p ara a Á fric a .60
Os escravos se rev o ltav am p ara se lib e rta r e p a ra v o lta r à Á frica, de o n d e tinham
sido arrancados. S u a h o stilid a d e se v o ltav a c o n tra os b ran co s, m as tam b ém contra os
m u latos, desde q ue fossem ltvres. D e fato, a lib e rd a d e era m ais n ecessária à inserção
social que a b ran cu ra d a pele. M as a v erd ad e é q u e cad a u m a dessas revoltas acabava
por isolar um pouco m ais os escravos n u m c írc u lo fech ad o , com o o a te sta esta sucessão
de m edidas: p ro ib ição de livre c irc u la ç ão de escravos após as no ve horas da noite
(1 8 0 7 ); p ro ib ição de festejos e d an ças, d e d ia ou de n o ite ( 1 8 1 4 ) ;61 p ro ib ição do
trânsito d e escravos pelas ruas, a não ser no c u m p rim e n to de o rd en s dos senhores
(1 8 3 3 ).62 A lém disso, os escravos não p o d iam co m p rar arm as n em in stru m en to s cor
tantes. T od as essas regu lam en taçõ es são u m in d íc io d a in se g u ra n ç a q u e reín ava então
nas ruas d a cid ad e, so b retu d o até a d écad a de 1 8 4 0 , q u a n d o as a u to rid a d e s passaram
a rep rim ir com m ais eficácia q u a lq u e r te n ta tiv a de rev o lta dos escravos.
O perigo n e g ro 5, aliá s, assustava m ais os estran g eiro s resid en tes na B ah ia que
os verdadeiros b aian os. Em 1 8 2 4 , o cô n su l fran cês G u in e b a u d escreveu ao m inistro
da M a rin h a : “E sperem os q u e o im p e ra d o r a b ra en fim os olhos p a ra o enorm e peri
go de ad m itir negros no E xército. A classe n eg ra, livres ou crio u lo s (j/V), é sem pre
objeto de relativo desdém por p arte dos b ran co s. Esta situ ação social inspira-lhes,
pois, um sen tim en to de horror em relação a seus senho res e os leva a u m a oposição
ao sistem a de civilização destes ú ltim o s .”63
Os baianos nao esqueciam que batalhões form ados por homens de cor alforriados
tinham lutado nas guerras da Independência e com batido todo tipo de revolta. A
inexistência de fronteiras raciais nítidas, num a sociedade em que o mestiço estava
presente cm todas as classes sociais, nos !cva a crer que a hostilidade manifestada, pelos
negros, contra brancos e mulatos por ocasião das revoltas era antes a ira do escravo
contra uma população livre c cheia de privilégios que o ódio ao branco ou quase
branco. Se a liberdade c o bem mais precioso entre todos, o ‘branco’ representava o
cidadão pleno, dotado dos privilégios e senhor dc sua vida. Para os baianos, os ‘bran
cos da terra , a avalanche negra, o ‘perigo escravo’, eram temores análogos aos que, na
mesma época, em Paris, as classes abastadas diziam sentir das classes laboriosas, então
chamadas classes perigosas’/1^
- - - 1 - ° £W a m
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jsss^sssstxssss1"-“”* —
descolonização, com ro das as co n trad içõ es q u e suscitou n o ' , ^ » » c ir i T h ^ ' A
fomentou desordens so ciais cm q u e ‘p o rtu gu eses’ e ‘brasileiro s' se opuseram I W
ciava-se a d e p en d ên cia en , q u e se en co n trav a a C asse produtora,ITT™;'
tnenre Por nartvos no liras,I. em relação ao gran de com ércio, quase todo em mãos de
portugueses, de la to os p r tn c p a is b en eficiário s de u m a econom ia voltada para o mer
cado exterior. P ro cla m ad a a In d e p e n d ê n c ia, os produtores brasileiros exigiam que a
nova ad m in istração fin a lm e n te os favorecesse. ' ■
Nas guerras d a In d e p e n d ê n c ia ( 1 8 2 2 - 1 8 2 3 ) , nas revoltas federalistas (1 8 3 1 -1 8 3 2 )
e na S ab in ad a ( 1 8 3 7 - 1 8 3 8 ) estiv eram sem p re em questão esses problem as da liberta
ção do d o m ín io ec o n ô m ic o p o rtu g u ês e da busca de condições que poriam o mercado
baiano a salvo de to d a in g e rê n c ia estran g eira e até n acio n al, pois as elites locais rea
giam às pretensões c e n tra liz a d o ra s do novo go v ern o .65
j á os pobres, as razões q u e os m o viam não eram de ordem po lítica, nem ideoló
gica. A crise ec o n ô m ic a re su lta n te d a desorganização d a produção elevara os preços
dos produtos de su b sistê n c ia, e n q u a n to os salários se m antinh am m uito baixos .66
Quando se a m o tin a v a m , e m p u n h a n d o as b an d eiras da ‘R ep ú b lica’ ou da ‘Federação’,
mal conheciam o sig n ific a d o dessas palavras: era co n tra a falta de pão que protestavam .
De 1822 a 1 8 3 7 , a fo m e foi o m óvel p rin cip a l das revoltas do povo baiano,
embora os rebeldes m al soubessem expressar suas reivindicações. V ivendo no lim ite da
miséria, o povo fa m in to e rev o ltad o não teria sido capaz de dizer contra quem lutava
nem que reform as p ro p u n h a .67 O saque e a p ilh ag em das lojas portuguesas, tão fre
qüentes na ép o ca, fo ram a ex p ressão ev id en te das tensões que, por ocasião da
descolonização, o p u n h a m a elite b a ia n a — nascida no B rasil ou de origem portuguesa
— e as classes p o p u lares. M as p ro d u to res e com erciantes, brasileiros natos e portugue
ses, acabaram por se u n ir. A lu so fo b ia das classes dom inantes logo se transform ou em
luso filia.
A partir de 18 2 8 os cap itais portugueses voltaram a ser bem -vindos e a paz msta-
lou-se entre os abastado s, fosse qual fosse sua origem . Enquanto isso, as tensões entre
classes d irigen tes e as classes populares persistiam , sem que nenhum a tran. ç
dc estrutura viesse aten u á-las. Ao con trário: a partir da década de 1840, um sta o
Nacional forte, dotado dc um eficaz aparelho de vigilân cia c repressão, veio aux.har a
Manutenção do statu qua. As elites estavam tão unidas c bem organiza as pa p
as explosões da plebe que, entre 1850 e 1889, só ocorreram duas sub evaçoes pop
rcs na B ahia. , . Hêmi-
A revolta de 28 de fevereiro de 1858 i n s c r e v c u - s c num ^ e j a ?{ M 9 -
Cas> m isturadas a problem as de abastecim ento da ct a e. , , , .«1 (*1852
> « « ,. seguida pelo cOlcra-morbo ( ,8 5 5 - 1 8 5 6 ) , as chuvas ‘ - ^ ^ L i u t c n t o
c a terrível seca que se seguiu, durando a tí 1858, aca aram p situação era
<la cidade: faltaram carne, farinha de mandioca e outros produtos. A Ç
B a h ia . Sécclo XIX
c a t a s t r ó f ic a e m S a lv a d o r ,6!í c o m o a u m e n t o d o s p r e ç o s , s o b r e tu d o d o s a rtig o s de
p r im e ir a n e c e s s id a d e .60 .
Em 16 d e ja n e ir o d e 1 8 5 8 , a C â m a r a M u n ic ip a l c h e g o u a p r o ib ir a v e n d a de
f a r in h a d e m a n d io c a fo ra d o s n a v io s , a r m a z é n s e c e le ir o s m u n ic ip a is in s ta la d o s nos
d iv e rs o s b a ir r o s . A m e d id a d e s e n c a d e o u v io le n t a s re a ç õ e s d a A s s e m b lé ia M u n ic ip a l. O
d e s fe c h o d a c r is e fo i a s u b le v a ç ã o d i t a d a ‘‘c a r n e s e m o sso e f a r in h a se m c a r o ç o ” . O s
a m o t in a d o s g r it a v a m c o n t r a o s a lt o s p r e ç o s e a m á q u a lid a d e d a s m e r c a d o r ia s à v en d a.
F o i p r e c is o u m d ia in t e ir o e a in t e r v e n ç ã o d o E x é r c ito p a r a a p la c a r o s m a n ife s ta n te s.
N o v a m e n t e , a p a r t ir d o in íc io d e 1 8 7 8 , u m lo n g o p e r ío d o d e s e c a e u m a p ro d u çã o
in s u f ic ie n t e p r o v o c a r a m a a lt a d o s p r e ç o s d o s p r o d u t o s b á s ic o s .70 E m b o r a a c id ad e
tiv e s s e e n o r m e s r e s e rv a s d e f a r in h a d e m a n d io c a , o s p r e ç o s c o n t in u a v a m a su b ir a
p a ta m a r e s q u e t o r n a v a m o s a lim e n t o s in a c e s s ív e is a o s p o b r e s . A c a u s a p r in c ip a l foi
d e n u n c ia d a p e lo p r ó p r io p r e s id e n t e d a P r o v ín c ia , o B a r ã o H o m e m d e M e llo : a fa rin h a
e s ta v a s e n d o e x p o r t a d a . C o m e r c ia n t e s c o n t r a t a v a m a v e n d a d e g r a n d e s q u a n tid a d e s do
p r o d u to e , p a r a r e u n i- la s , e n v ia v a m a g e n t e s a to d o s o s m e r c a d o s d o in t e r io r para
c o m p r a r a q u a lq u e r p r e ç o q u a n t a f a r in h a e n c o n t r a s s e m . C o m p r a v a m ta m b é m ro d a a
f a r in h a q u e c h e g a v a a o p o r t o . A C â m a r a M u n ic ip a l q u is c o n t r o la r e ssa e x p o rtaç ã o ,
m a s o s c o m e r c ia n te s p r o t e s t a r a m , in v o c a n d o o p r in c íp io d o liv r e c o m é r c io . F in a lm e n
te , n a n o it e d e 3 0 d e m a r ç o , u m a m u lt id ã o s e j u n t o u d ia n t e d o p a lá c io d o p re sid e n te ,
e x ig in d o a o s b r a d o s o f im d a q u e la “in f e liz s it u a ç ã o a q u e e s ta v a m re d u z id o s os m ais
d e s f a v o r e c id o s ”.71 A A s s e m b lé ia M u n i c i p a l t o m o u e n t ã o a lg u m a s m e d id a s : c rio u um
im p o s to d e c e m ré is p o r c a d a lit r o d e f a r in h a e x p o r t a d a e a b r iu u m c r é d ito d e cem
c o n to s d e ré is p a r a a c o m p r a d e r e s e rv a s d e f a r in h a , q u e d e v e r ia m s e r v e n d id a s nos
m e r c a d o s a p r e ç o d e c u s t o .77 N a r e a lid a d e , e r a m m e d id a s p a lia tiv a s . A e s tr u tu r a e o
f u n c io n a m e n to d o m e r c a d o d o s p r o d u to s d e s u b s is t ê n c ia p e r m a n e c e r a m in to c a d o s. O
m o tim fo ra a b a f a d o , m a s o s p r o b le m a s c o n t in u a v a m s e m s o lu ç ã o p a ra a m a io r ia dos
h a b ita n te s d e S a lv a d o r , o b r ig a d o s a r e c o r r e r a u m m e r c a d o e m q u e o fe rta e p ro cu ra
e s ta v a m e m p e r p é tu o d e s e q u ilíb r io , e m q u e f a lta v a d in h e ir o , em q u e as a tiv id a d e s
p r o d u tiv a s t in h a m c a d a v ez m e n o s c o n d iç õ e s p a ra se d e s e n v o lv e r.
C A I M T U L O 2 5
As A tiv id a d e s P ro d u tiv a s :
C o n d iç õ e s e D e s e n v o lv im e n to
In fo rm a ç õ e s q u a lit a t iv a s e q u a n t it a t iv a s , e s p a r s a s e in c o m p le ta s , p e n o sa m e n te re u n i
das e a n a lis a d a s a o lo n g o d o s ú lt im o s q u in z e a n o s , in d ic a m q u e a a tiv id a d e a g ríc o la
v o ltad a p a r a a p r o d u ç ã o d e b e n s p r im á r io s p a r a a e x p o rta ç ã o , co m o o a çú c a r e o fu m o ,
tin h a a b s o lu to p r e d o m ín io n a B a h ia d o s é c u lo X IX . C o n tu d o , ao lo n g o do sécu lo ,
esses p r o d u to s t r a d ic io n a is n ã o só f o r a m p e r d e n d o lu g a r n o m e rc a d o in te rn a c io n a l,
com o a in t e g r a ç ã o d a e c o n o m ia b a ia n a n a e c o n o m ia n a c io n a l d im in u iu , em b o ra os
gran d es p o lític o s d a p r o v ín c ia d e s s e m as c a r ta s n a v id a p o lític a d o p a ís .1 Essa elite
p o lític a , a p e s a r d e t a le n t o s a , n u n c a se p r e o c u p o u c o m o d e s tin o ec o n ô m ic o d e sua
p ro v ín c ia , a c e it a n d o a s d e s v e n t u r a s c o m o f a ta lid a d e . N a o fa lta ra m ten ta tiv a s d e d iv e r
sific ar a p r o d u ç ã o a g r íc o la d a P r o v ín c ia , m a s e la fic o u à m a rg e m d a p ro d u çã o d e cafe,
q ue aos p o u c o s in v a d ia o C e n t r o - S u l d o p a ís , f o m e n ta n d o a li o p ro gresso , p o r seus
m u ito s e fe ito s m u lt ip lic a d o r e s . A o d e s e n v o lv im e n to d e p r o v ín c ia s co m o as d o R io de
Ja n e iro , M in a s G e r a is e S ã o P a u lo n o s é c u lo X IX , c o n tra p u n h a -s e a ‘in v o lu ç ã o ’ eco
n ô m ic a d a B a h ia . * >2
N ã o é fá c il e x p lic a r e ste fe n ô m e n o , q u e a lg u n s a té c h a m a m de o en ig m a b aian o .
Pm p r im e ir o lu g a r , u m a a n á lis e e c o n ô m ic a re q u e r d ad o s q u a n tita tiv o s v aria os e
so b retu d o c o n fiá v e is s o b re to d o s o s se to re s. E u m e sm a , no p assad o , ten t
o rg an izar a lg u n s d e sse s d a d o s , m a s a ta r e fa re v e lo u -s e in v iá v e l, d a d a a a t
im p re sc in d ív e is. P o i im p o s s ív e l, d c fa to , r e c o n s titu ir séries relativ as re
à P m d u ção líq u id a to ta l d a P r o v ín c ia . N ú m e ro s referen tes ao m o v im en to os p
e aos o u tro s m e io s d e p a g a m e n to n ã o p u d e ra m se r en c o n tra d o s. D escncoraj ,
nei-m e a p re te n sõ e s m a is m o d e s ta s . rn m n reen -
R m se g u n d o lu g a r , p a ra e x p lic a r é p rec iso tam b ém po er co m p desem pe-
o declínio da econ om ia da Bahia no ,é cu lo X IX imphca cote,
n ho com o d as e c o n o m ia s d as p ro v ín c ia s q u e p ro g re d ira m n . ^ j utos exp 0rta-
apenas co m b ase e m s im p le s c o m p a ra ç õ e s e n tre q u an ci a
455
B a HU. SfCTTO X IX
dos C seu valor. Estas podem in d ica r o rd en s de grande/a. m as nao fu n d ar verd ad ei
ras exp licaçõ es, pois, de um lado e de o u tro , faltam sem pre m u itas variáveis ind is
pensáveis, Por exem plo , o açú car — p ro d u to de ex p o riaçao . m as tam bém de consu
m o local e n acion al — era p ro d u zid o não só no N o rdeste, mas nas provín cias do
R io d e Jan eiro e São Paulo. Por q u e a B ahia nao colocava seu açúcar no mercado
n acio n al, d eix an d o -se sup erar por P ern am b u co , m u ito m ais d istan te dos m ercados
do S u l do p a ís? ; (Esta p ro v ín cia, aliás, exp o rtav a para o m ercado in tern acio n al, a
p artir d c ÍS^O. duas a très vezes m ais a çú car q ue a B ah ia .) S eriam os custos de
prod ução m ais alto s na B ahia? O u os de tran sp o rte? As técn icas d e produção seriam
diferentes? O u será q u e, d esen co rajad o s, os p ro d u to res b aian o s teriam interrom pido
sua ativ id ad e, en q u an to os de P ern am b u co p erseveravam ? S eriam as form as de cré
d ito m ais favoráveis em P ern am b u co , o u te riam seus senho res de engenh o menos
dívidas? São questões q u e a p reca ried ad e de in fo rm açõ es d eix a sem resposta. M as é
hora de in te rro m p er esta d igressão . S e m e d etiv e nestes p o n to s, d eix an d o de lado
outros ig u alm en te im p o rtan tes, foi p ara m o strar os lim ite s im p o sto s pela deficiência
de nossas fontes a u m a ex p licação do d e c lín io d a eco n o m ia d a B ah ia.
A p artir d e 1 9 2 0 , alg u n s b aian o s p ro cu raram co m p reen d er essa situ ação , valendo-
se de estatísticas fragm en tad as c, so b retu d o , de u m a d o cu m en ta ção q u a lita tiv a . A ssim ,
após descrever o co m ércio de S alv ad o r c tra ça r o perfil dos p rin cip a is agentes econô
m icos, Goes C a lm o n propôs u m a ex p licação para a d ecad ên cia d a eco n o m ia baiana no
século an terio r. Para tan to , en u m ero u u m a série de fatores extra-eco n ô m ico s, entre os
quais destacou a m istu ra racial e as m ás co n d içõ es c lim á tic a s rein an tes na Província,
fatalidades a q u e a so cied ad e não fora cap az de reagir. T al exp licação , ain d a que
atrib u a à fatalid ad e o papel de ‘v a riá v e l’, tem o m érito de ch am ar a aten ção para as
secas periódicas. S egu n d o esse au to r, elas o co rriam em todo s os anos q ue term inavam
com os algarism o s três e nove, afetan d o so b retu d o as regiõ es do Sertão , cuja produção
não estava in teg rad a ao c irc u ito ag ro ex p o rtad o r. Ele d e fin iu , assim , um quadro
co n ju n tu ral da eco n o m ia b a ian a com base em ciclo s dccen ais, a p artir de 1823. Esse
recorte cm etapas dc igu al d u ração na v id a eco n ô m ica e fin an ceira da provín cia per*
m itíu -lh e fixar c av aliar as p rin cip ais oco rrências de cada etapa. O esquem a assim
m ontado sugere que os p rim eiro s dezessete anos sub seqüen tes à Independência foram
dc crise, tan to em razão das guerras c das perturbações sociais que se seguiram como,
sobretudo, em decorrên cia da fuga dos grandes negociantes portugueses, com seus
capírais, o que teria desorganizado a produção c as trocas com erciais. A Bahia jam ais
sc teria recuperado dessa perda.^
U m a segunda tentativa de explicar o d eclín io da B ahia pelo estudo da con jun
tura econôm ica foi feita cm. 1930. Eni obra do econom ista Rõm ulo dc A lm eida,
típico representante de um a geração ele in telectu ais baianos desejosos de com preen
der — para dele escapar — o m arasm o da econom ia do Estado. Para eles, todo
desenvolvim ento dependia da com preensão do passado, indispensável para lançar luz
sobre os pontos dc estrangulam ento dc um a dinâm ica regional que chegara a um
457
.■ _ i i . , „ . ’ e
com ercial e a q u e s tã o d o a b a s te c im e n to de S a lv a d o r. D e um exam e lim itad o ao
Recôncavo, p a ssa m o s assim a a v a lia ç õ e s q u e a b ra n g ia m , p o r lo n go s perío dos, o co n
junto das e s tr u tu r a s e c o n ô m ic a s d a P ro v ín c ia . R o m u lo d e A lm e id a c ritic o u ,'a liá s, o
papel da a d m in is tr a ç ã o p r o v in c ia l, m a is in te re ssa d a cm d is trib u ir sin ecuras do que
em in v estir e m a tiv id a d e s p r o d u tiv a s os recu rso s q u e a n g a ria v a com os im postos.
A p a rtir d o q u a d ro g e ra l, o e c o n o m is ta a n a lis o u o p ap el co m ercial de Salvador.
Deu ên fase às re la ç õ e s e n tre a B a h ia e o m e rc a d o in te rn a c io n a l, in d ica n d o as cres
centes d ific u ld a d e s q u e a P ro v ín c ia e n c o n tra v a p a ra co lo c ar seus pro du to s num m er
cado em q u e a d e m a n d a e ra ir r e g u la r . A B a h ia n u n c a c o n se g u iu cap tar m ercados
estáveis. O s e c o n o m is ta s b a ia n o s m e n c io n a m se m p re , a esse resp eito , a irreg u larid a
de d a d e m a n d a , m as n ã o a d a o fe rta . O ra, as crises p o lític a s das décadas de 1820 e
1830, os efeito s d a s e p id e m ia s de feb re a m a re la e de có lera-m o rb o na décad a de
1850, a p ra g a d a c a n a -d e -a ç ú c a r n a d é c a d a d e 1 8 7 0 , as p erió d icas crises clim áticas
nas áreas p r o d u tiv a s — ■ tu d o isso d ev e ter c o n trib u íd o p ara d im in u ir a oferta em
certos m o m e n to s d a c o n ju n tu r a e c o n ô m ic a , so m a n d o -se à in sta b ilid a d e de d em an
da, fa rta m e n te a p o n ta d a .
P ara R ô m u lo d e A lm e id a , as flu tu a ç õ e s nos preço s to rn av am a in d a m ais pre
cária a c irc u la ç ã o das m e rc a d o ria s no e x te rio r. A n a liso u em seg u id a as relações da
B ahia com as p ro v ín c ia s do S u l, c o m as q u a is tin h a u m a b alan ça co m ercial sem pre
desfavorável, p a g a n d o -lh e s u m d u p lo trib u to ; co m p rav a-lh es m ercado rias de preço
m ais alto (te c id o s e p ro d u to s m a n u fa tu ra d o s de São P au lo , q ueijo s de M inas Ge
rais) e fo rn c cia -ih es m ã o -d e -o b ra b a ra ta e c a p ita is para seu desen vo lvim en to. O fe
cho desse e stu d o d a c o n ju n tu r a e c o n ô m ic a d a B ah ia, de apenas dezoito páginas, é
um d iag n ó stico b a s ta n te claro : “N u m a cu rv a de lo n g a d u ração {médias móveis em
períodos lo n g o s), p o d em o s rep resen tar esse p erío d o da h istó ria da B ahia por um a
G e o g r a f ia d a P rodução
. TABELA 73
Z o n a s de P r o d u ç ã o A g r íc o l a n a B a h ia , 1 8 9 0
P r o d u t o s de E x p o r t a ç ã o P r o d u t o s de C o n su m o I nterno
Z ona A
Z ona B
Z o na C
Centro-Oeste açúcar, tabaco, algodão, café, cacau feijão, arroz, mandioca, chá, cereais
(1) Consideramos Agreste I a área a oeste de Salvador. (2) Agreste II corresponde à área ao norte de Salvador. (3) Para efeito
da tabela, Norte inclui Extremo Norte, Extremo Oeste e Extremo Sudoeste,
Fonte: F ra n c isc o Vicente Viana, A íem ótiã sob re o Estado d ã Bühi&j p. 4 19 —560.
C hegou-se mesmo a criar um a rede de trocas que in terligava populações dispersas por
enorm es extensões: no final do século, Brejo G rande, O rohó, Palm eiras e C urralinho
haviam se transform ado em im portantes m ercados regio nais, en q u an to Barreiras tor
nava-se um centro reputado por suas relações com erciais com juazeiro, (e, por seu
interm édio, com Salvador); C asa N ova, vilarejo in sign ifican te em m eados do século,
transform ava-se num grande m ercado graças ao com ércio de sal c de gado com o Piauí.
O esforço foi m ais longe. E conom icam ente isoladas, essas regiões do Sertão bus
cavam produzir, elas m esm as, certos produtos q ue em geral só prosperavam no litoral,
graças a condições clim áticas e geo lógicas m ais propícias. A ssim , can aviais plantados
ao longo de toda a bacia do São F rancisco p erm itiam p ro d u zir açú car m ascavo, m ela
do e aguardente, destinados ao consum o local, A lém disso, o p lan tio de algodão deu
ensejo a um a ativ id ad e artesan aí, de fabricação de tecidos e redes, cujo volum e se
ignora, mas parece ter sido im p o rtan te. O s centro s dessa produção eram os povoados
de A ngical, C am po Largo de C o n ceição do C o ité, Ju c ia p e e S an ta M a ria da V itória,
sendo que se fala até de u m a “in d ú stria de tecidos de alg o d ão ” in sralad a nesta ú ltim a .11
Não podendo chegar ao m ercado de Salv ad o r, o algodão era m an u fatu rad o , conver
tendo-se num im p o rtan te item de com ércio en tre regiões d a p ro vín cia e ralvez até no
âm bito in terp ro vin cial (é possível q ue o algo d ão p ro du zido no centro-oeste e no
extrem o oeste da P rovíncia já fosse exportado para M in as G erais antes do século XIX).
N ão se sabe, porém , q u e proporção do algodão p o d ia ser m an u fatu rad a no local, e por
certo um excedente considerável da m atéria -p rim a ap o d recia ali, não podendo ser
rem etido para o lito ral.
De fato, os transportes terrestres no século X IX eram tão precários quanto na
época colonial: as m ercadorias circu lavam cm lom bo de burro, po r trilh as abertas pela
m archa das boiadas. As d istân cias eram longas e o tran sp o rte do algodão — m ercado
ria de m uito volum e e pouco peso — era esp ecialm en te caro, fatores que elevavam
m uito o custo final do produto no m ercado de Salvado r. M esm o um a região mais
próxim a da cap ital, com o a C h ap ad a D iam an tin a, q u e produzia, além de algodão e
cereais, produtos com o d iam an tes e café, tin h a m ais facilid ad e para com erciar estes
itens que propiciavam lucro m u ito m aio r — que os prim eiro s. Com preende-se,
portanto, por que o intercâm bio da produção agríco la ficava lim itad o aos mercados
locais. Rode-sc supor que o preço do transporte de cereais era m uito elevado.
A produção do Agreste — açúcar, fum o, café e algodão, além dos legum es e cereais
de consum o corrente — encontrava m ais facilm ente seu cam inho para o m ercado de
Salvador, graças à ligação ferroviária im p lan tad a nos anos 1860, ainda que esta fosse
insuficiente.
No Recôncavo, predom inavam as culturas da cana-de-açúcar c do fumo, embora
cidades como M aragojipe, N azaré das Farinhas e Jagu arip e produzissem m andioca,
legum es e cereais. O transporte m arítim o era fácil, mas a produção não atendia à
dem anda da região e da cap ital. O sul do Recôncavo e o do litoral produziam sobre
tudo m andioca c certas legum inosas, com o o feijão, mas tam bém em quantidades
■ C o t i d i a n o DO s^ H o M rN s q u r P r o d u z i a m e T r o c a v a m 461
registraram -se 25 anos secos e onze de chuvas excessivas, e que, no Recôncavo, os solos
argilo-arenosos, q u e precisam de chuvas, predo m inam sobre as terras de massapê li;
S egu nd o problem a: o desgaste dos solos. A can a-de-açúcar, ainda que pouco
danosa para a terra, acaba por d estru ir o húm us fértil. A batidas as florestas, os solos do
R ecôncavo foram explorados com o se fossem m inas: buscava-se extrair o possível com
a m áxim a b revidade. Para saber em q u an to tem po a destruição era íevada a cabo, seria
preciso co m p arar em lab o rató rio solos de m assapê e de ‘silõ es’, cultivados e não cul
tivados. M esm o isro, aliás, p o d eria ser engan o so , fã q ue o am b ien te de outrora foi
d estru íd o . Ao q ue tu d o in d ica, no en tan to , o desgaste do solo foi m aior do que em
geral se a d m ite .16
T erceiro problem a: o desm em bram ento das propriedades. No final do séctiloX V lII,
a B ahia tin h a 2 6 0 engenhos; em 1818, Sp ix e M artiu s con taram 511. N um famoso
ensaio sobre a fabricação do açúcar, o fu tu ro M arqu ês de A brantes arrolou 603 em 1833.
M ais tarde, em 1853, em relató rio à A ssem bléia Provincial, o presidente da Província
falou de 7 5 9 engenhos registrados. F in alm en te, em 1875, M an u el Jesuín o Ferreira citou
8 3 9 engenhos, 2 8 2 dos quais equipados com m áq u in as a vap o r .17 A ssim , entre 1800 e
1875, período de crise na h istó ria dos engenhos, seu núm ero foi m u ltip licado por três.
Em q ue terras o p lan tio da can a-d e-açú car se expandia? N o Recôncavo, zona
trad ic io n al de cu ltu ra , as terras virgens rareavam ; as da p aró q u ia de São Pedro do Rio
Fundo tin h am co m eçado a ser o cu p ad as já no fin al do século X V III. Portanto, foi peio
restante do territó rio da P ro v ín cia q u e a c u ltu ra da can a-d e-açú car se expandiu. Não
sabem os q uan to s engenh os se in stalaram no R ecôncavo, nem nas dem ais regiões. Mas
os 6 0 3 engenh os arro lad o s em 1 8 3 2 -1 8 3 3 pelo M arq u ês de A brantes talvez fossem
apenas os do R ecôncavo e do A greste. O jo go dos desm em bram enros de unidades
m aiores p erm itia a d q u irir terras e nelas in stala r engenh os, graças à lei de 13 de novem
bro de 1827, q u e ab o liu a ex igên cia de perm issão.
O d esm em b ram en to se operava de du as m an eiras. U m a envolvia a venda das
terras, prática com um desde o perío do co lo n ial, e que, na época, perm itira aos produ
tores de can a-d c-açú car p lan tar cm terras de sua p ro p ried ad e .18 A segunda se efetuava
por via de h erança: com o todos os filhos tin h am igu al d ireito ao bens paternos, a
propriedade ten d ia a se su b d iv id ir, fragm en tan do-se de geração em geraçao, a menos
que a fam ília praticasse a en d o gam ia.
É difícil determinar a extensão dessas unidades dc produção, mas há indicações,
embora imperfeitas, no cadastro dc terras organizado por determinação do imperador
(lei dc 18 de setembro de 1 8 5 0 ). Na paróquia de São Tiago do tguape, no Recôncavo,
o engenho dc São João do Açu, lambcrn chamado Engenhoca, pertencente ao tenente-
coronel Francisco Gomes Mnncorvo, tinha 5 .5 9 0 hectares, o que representava a 9 ua1’
ta parte das terras da paróquia. Dois outros proprietários possuíam entie mil e dois mi
hectares, oito tinham entre quinhentos c tnil, unia dezena entre cem e trezentos. Vinte
c cinco tinham menos dc ccm hectares.1<J Onde estavam os grandes latifundiários do
açúcar de que fala a historiografia brasileira? Aliás, na mesma época, e também no
L iv ro V I o C o t i d i a n o d o s H o m e n s q u e P ro d u z ia m e T r o c a v a m 463
Recôncavo, os sete engenhos que com punham a fortuna fundiária da fam ília Rocha
Pita ocupavam 3 .6 2 4 hectares. Portanto, eram engenhos com 518 hectares em mé
d ia, que valiam aos R ocha P ita a fam a de serem os m ais ricos proprietários dé terra
do Recôncavo! Em 1891, q uando a fam ília C osta Pinto vendeu sua usina de açúcar,
as terras dos engenhos Bom Ja rd im e Bom Sucesso, que a integravam , tinham , respec
tivam ente, 174 e 3 2 0 h ectares .21
C abe no tar ain d a que nem todas as terras dos engenhos eram destinadas à cultura
da can a-d e-açúcar. Isto, em parte, por necessidade: algum as terras eram mangues,
im próprios p ara a cu ltu ra, outras serviam de pasto para os anim ais do engenho ou
deviam ser deixadas em descanso. M as, de fato, não eram apenas essas parcelas que
deixavam de ser cu ltiv ad as. A ssim , em 1889, o engenho d ’Á gua, propriedade do
terceiro barão de São F rancisco , tin h a dezessete hectares cultivados, num total de 435;
o engenho Q u ib aca, do barão de C o tejip e, apenas 25 hectares, tam bém em 4 35 ; já o
visconde F erreira B an d eira, dono do engenho M ad ru g a, lim itava-se a cultivar treze
dos seus 522 h ectares .22 É v erd ad e q ue estes dados se referem a um m om ento da
história da B ah ia em q ue o p ro b lem a d a m ão-de-obra — que afetou gravem ente a
agricu ltu ra açu careira a p a rtir de m eados do século — estava especialm ente agudo.
Estes elem en to s in d ic a m q u e o d eclín io da in d ú stria açucareira m ereceria estudos
m ais aprofun dado s. N eles, h av eria q u e con siderar as questões ligadas ao capital e ao
fin an ciam en to do créd ito , sem esquecer as posições dos senhores de engenho e das
autoridades go v ern am en tais em relação aos problem as financeiros.
A cu ltu ra do fu m o , por sua vez, desenvolveu-se sobretudo a p artir de meados do
século X V II, q u an d o o p ro d u to com eçou a servir de m oeda de troca na com pra de
escravos na costa d a Á frica. As plantações se estenderam na região situada além da
confluência dos rios P arag u açu e Ja cu íp e, em que se destacava a paróquia de São
Gonçalo dos C am p o s. V im o s que, no século XJX, a cu ltu ra do fum o de dissem inou
por todo o territó rio d a p ro vín cia, m as as regiões exportadoras se situavam nas proxi
midades no lito ral e nos m u n icíp io s de C ach o eira, São Félix, C ruz das Alm as, São
Filipe, San to A n tô n io de Jesu s, N azaré, M arag o jip e e São M ig u el das M atas, todos no
sul do R ecôncavo.
Desde o período co lo n ial, a cu ltu ra do fum o era de tipo fam iliar, praticada por
agricultores livres, m u ito s dos quais tin h am a posse da terra que cultivavam . Era
com um tam bém que pro p rietário s alugassem partes de suas terras a pequenos agrícul
tores, o que acabou por criar um grupo heterogêneo de m édios e pequenos proprietá^
rios e de rendeiros (lo catário s), a que se juntavam em pregados, cham ados colonos.
As unidades de produção tinh am de cem a três mil acres, mas 2/3 delas se concentra
vam na faixa entre cem e m il acresM
As propriedades q ue cultivavam o fumo com portavam em geral uma sede —
construção térrea m u ito sim ples, sem qualqu er sem elhança com as belas casas-gran-
des dos engenhos — e exigiam de dois a 25 escravos (segundo a superfície cultiva
da), alojam entos para eles e um barracão para a secagem e estocagem do produto.
464 B a h ia , S é c u l o XIX
O cap ital a investir era, assim , três vezes m enor que o necessário para o cultivo da
can a-d e-açú car.25 A lém disto, o ciclo de produção do fum o é m ais curto que o da
cana (seis a oito m eses, contra 18), o que p erm itia duas colheitas por an o .26 O ren
d im en to m édio por u n id ad e de produção era de cem a 150 arrobas por ano. Em
1788, só no d istrito de C ach o eira, havia oito m il plantadores de fum o; ao que pa
rece, na m aio ria ren d eiro s.27
As m esm as condições prevaleceram no século XIX: os investim entos necessários
co n tin u avam m enores q ue os exigido s para a cu ltu ra da can a, as áreas cultivadas não
passavam em geral de dez hectares e o trab alh o era feito pelo agricu lto r e sua fam ília.
Estes, p aralelam en te, p lan tavam gêneros de su b sistên cia, com o m ilho, m andioca e
feijão. O fum o co n tin u o u sendo u m a c u ltu ra de ho m ens livres, o que evitava o
d ispênd io na com p ra de escravos, cujo s preços elevaram -se co n stan tem en te ao longo
do século. M u itas vezes p lan tava-se em terra a lu g a d a e, entre os em pregados, havia
escravos alfo rriad o s.28
M as o século X IX tro u xe u m a g ran d e no vidade: a im p lan tação das m anufaturas de
fum o. A p rim eira, fu n d ad a em 1819 pelo cid ad ão suíço F rédéric M eu ro n , fabricava
rap é.29 M as foi na segu n d a m etad e do século que p ro liferaram as m anufaturas de
charutos, cigarros e rapé. N a m aio ria, eram p eq u en as fábricas de natureza fam iliar e
artesanal, com um a m ão-de-obra com posta basicam ente por m ulheres e crianças. Poucas
usavam m áqu in as — charuto s e cigarros eram enro lado s a m ão. U m a fábrica conhe
cida, a Juventude , tin h a em 1882 m ais de 150 operários “co n tan do com as m uitas
fam ílias que trab alh am em casa por co n ta d a fáb rica”. Em o u tra, cham ada Fragrância,
dos seten ta operários v in te eram m u lh eres, e dez, crian ças, todos trabalhando sem a
aju d a de m áqu in as. N ão sabem os o n ú m ero dessas fabríquetas que, por sua estrutura
artesanal, d em andavam poucos investim en tos. A lém disso, m uitas delas celebravam
contratos e registravam suas firm as na Ju n ta C o m ercial, m as quase nunca com unica
vam a cessação de suas atividades, o que d ific u lta q u alq u er contagem realista.39 A
literatu ra oficial, com o os relatórios dos presidentes de Província, só m encionam os
grandes estabelecim entos, q u an d o essa p eq u en a produção artesal seria do m aior inte
resse, porquanto em pregava u m a m ão-de-ob ra recrutada na população livre de Salva
dor, Em 1889, a cidade contava q uatro grandes fábricas de fum o voltadas para a
exportação: M euron & C ia, e M o reira & C ia ., fabricantes de rapé, a fábrica de cha
rutos Leite &í Alves, cu ja m atriz ficava no R io de Jan eiro , e a fábrica de charutos
D anem ann, fundada em 1 8 7 3 .31
A P e c u á r ia ,
P rodutos oa A t i v i d a d e E xt r at iva
M in a s e M in e r a is
D iam an tes, ouro e am etistas p o d iam ser en co n trad o s so b retu d o na C h ap ad a D iam an
tin a , no cen tro -o este d a P ro v ín cia, o n d e o o u ro já fora exp lo rad o no perío do colonial.
As jazid as deste ú ltim o m etal, desco bertas na B ah ia na época co lo n ial, eram m edíocres,
e o v o lum e d a p ro d u ção foi in sig n ific a n te , U m a segu n d a região d iam an tífera, m uito
m odesta, era a de Ja c o b in a , U m a m in a foi ali d esco b erta em 1 7 7 5 , m as não pôde ser
exp lo rad a, pois as au to rid ad es p o rtu gu esas p referiram con servar o m onopólio detido
por M in as G erais.41
D escobertos, ou redescobertos, em 1 8 4 2 , os d iam an tes provocaram um a corrida
febril, m as a exploração das m inas d u ro u pouco, pois as pedras baianas foram vencidas
pela co n co rrên cia das q ue v in h am do C ab o . A ativ id ad e reanim ou-se depois com a
extração dos carb o n ato s, de baixo preço na época, m as q ue servia para cortar c lapidar
os d iam an tes, boi seu uso in d u stria l q ue co n feriu depois um real valor aos carbonatos,
sobretudo na ab ertura do túnel de São G orardo e dos canais de Suez e do Panam á. Sua
exploração, m u ito lu crativ a, cra p raticam en te um m o nopólio da B ahia, já que a con
trib u ição dc Bornéu foi sem pre m u ito lim itad a. M as os filões aluviais logo sc esgota
ram c, por volta dc 1900, precisam en te qiutndo a dem an da internacional crescia, os
carbonatos tornaram -se raros.42
As minas eram exploradas por empresas c por ‘ faíscadores’, pessoas que trabalha
vam por conta própria, sós ou com a ajuda de escravos. As empresas que atuavam nesse
campo eram de porte considerável, pois recebiam áreas dc duzentos a cinco mil hecta
res e seu capital nunca era inferior a 5 0 :0 0 0 .0 0 0 de réis. Valiam-se do braço escravo e
. do trabalhador livre. O emprego destes últimos era feito segundo duas modalidades.
L iv ro VI - O C o t i d i a n o d o s H o m e n s q u e P r o d u z ia m f, T r o ç a v a m 467
R elaçõ es e C o m u n ic a ç õ e s
D e sd e a é p o c a c o lo n ia l o p o v o a m e n to d a B a h ia c o n c e n t r o u - s e n o lit o r a l o u n a s m a r
g e n s d o s rio s n a v e g á v e is , d e o n d e s e t in h a f á c il a c e s s o n ã o só a S a lv a d o r , o c e n tr o
a d m in is tr a t iv o , c o m o às d e m a is a g lo m e r a ç õ e s u r b a n a s d o lit o r a l. E n q u a n t o a n a v e g a
ção d e lo n g o c u r s o p u n h a a C o lô n ia e m p e r m a n e n t e c o n t a t o c o m a M e t r ó p o le , c o m
a Á fr ic a , q u e lh e f o r n e c ia o s e s c r a v o s , e a té c o m o E x tr e m o O r ie n t e , d e o n d e lh e
c h e g a v a m p r o d u to s e x ó tic o s , u m a p r ó s p e r a n a v e g a ç ã o d e c a b o t a g e m in t e r lig a v a os
p o rto s d o B r a s il, e m p r e g a n d o m u it o s m a r in h e ir o s e m s u a s t r ip u la ç õ e s e fa z e n d o a
riq u e z a d o s m o r a d o re s d o lit o r a l, c u jo s p r o d u to s t r a n s p o r t a v a . C o m p le t a m e n t e d iv e r
sa e r a a s itu a ç ã o d a p o p u la ç ã o d o in t e r io r , o n d e o s p r im e ir o s n ú c le o s se in s t a la r a m n o
sé c u lo X V II. F o i a p e c u á r ia q u e in d u z iu e s sa in t e r io r iz a ç a o e a b r iu v ia s d e c o m u n ic a
ção q u e a c a b a r a m p o r u ltr a p a s s a r e m m u it o o s lim it e s d a C a p it a n ia .
E str a d a s
468
L iv r o V I - O C o t id ia n o d o s H o m e n s q u e P r o d u z ia m e T r o c a v a m 469
d ireto s e c u rto s, ü m novo eixo lig a v a S alv ad o r, ao m esm o tem po, aos p rin cip ais
n ú cleo s d a c a p ita n ia de S erg ip e d ei R ei, a Ju az e iro e à a tu al cid ad e de L ivram en to do
B ru m a d o . D e u m tro n co co m u m , saiam tres estradas. Esse tronco atravessava u m a
p a rte do R ecô n cav o , a lc a n ç a n d o o v ale do Ita p ic u ru na a ltu ra d a atu al cid ad e de
A la g o in h a s. A li a estrad a se b ifu rca v a , to m a n d o duas d ireçõ es: u m a atravessava a parte
do A greste, a leste d a c a p ita l, lig a n d o -a com as v ilas de L agarto e L aranjeiras, em
S e rg ip e d e i R e i; a se g u n d a to m av a o ru m o n o rd este, levan d o a Ju azeiro m ais d ire ta
m e n te q u e a v elh a tr ilh a do sécu lo X V I. A n tes d e a li ch eg ar, na a ltu ra de Q u eim ad as,
essa e strad a tam b ém d av a o rig em a u m a ra m ific aç ã o q u e segu ia para o centro-oeste,
levan d o até a reg ião do R io das C o n ta s. A oeste d a a tu a l c id ad e de L ivram ento do
B ru m a d o , u m a te rc e ira b ifu rc a ç ão : d irig in d o -s c a in d a m ais a oeste, um novo cam in ho
m arg eav a o rio S ão F ran cisco , a té o N o rd este d a c a p ita n ia d e M in a s G erais; voltan do-
se p a ra o le ste, a o u tra v ia passava po r C a e tité e te rm in a v a tam b ém no N ordeste de
M in a s, n a re g iã o de M in a s N o vas. Era u m a m a lh a v iá ria m u ito d eficien te, q ue não
co rtava n em a m e ta d e do te rritó rio d a C a p ita n ia . .
N o sécu lo X V III n ao h o u v e alteraçõ es, salvo a n o v a estrad a q ue p e rm itia a ligação
das v ila s d e S e rg ip e d e i R ei à v ila d ’A lm as, no extrem o N o rdeste da C a p ita n ia da
B ah ia. Esse novo eix o , p a rtin d o de C a c h o e ira , no R ecô n cav o , d irig ia -se para o C en tro -
O este e o S u d o este d a C a p ita n ia . N a v erd ad e, era u m a v aria n te — m ais cu rta — da
v elh a estrad a a b erta p elas b o iad as no sécu lo X V II, m as teve u m papel essencial no
tra n sp o rte d e escravos, p ro d u to s m a n u fa tu ra d o s e bens de luxo p ara as regiõ es auríferas
de M in a s G erais, em p le n a exp an são .
T a m b é m no sécu lo X IX o d esen v o lv im en to d a red e de estradas foi in sign ifican te.
Só se a b rira m d u as v ias, q u e p e rm itira m a lig a ção das v ilas de C a m a m u e M arau à
região de Je q u ié , q u e, no fim do sécu lo , to rn o u -se p ro d u to ra de borracha.
F er ro vias
de tal em p reitad a. A folha salarial, a instru ção p ú b lica e a P olícia con su m iam ccrca de
6 0 % do m o n tan te arrecadado. A pesar da p erm an en te preocupação com o equilíbrio
fin an ceiro , o o rçam en to estava sem pre em d éficit, forçando a tom ada de em préstim os
O q ue o governo provin cial — com o, aliás, tam bém o cen tral — podia fazer era
rem u n erar com juros an u ais de 7% os cap itais investidos por particulares. N enhum
dado nos p erm ite saber sc, em S alv ad o r, h avia cap itais disp o n íveis para tal investim en
to. Reza a tradição q u e a cessação do tráfico de escravos teria liberado vultosas somas
m as ativid ad es m ais seguras e de m ais ráp id o reto rn o , com o o com ércio, talvez as
atraíssem m ais. Investim en tos de m édio e longo prazos, m esm o com juros g a r a n t i d o s ,
provavelm en te não seduziam o in v estid o r b aian o , h ab itu ad o a práticas altam ente
especulativas.
A liás, outras o p o rtu n id ad es se ofereciam n aq u ele perío do aos q u e tinham algum
cap ital: no setor ban cário , no d a m a n u fa tu ra de tecido s e m esm o no das obras p ú b li
cas, n u m a cid ad e q ue m o d ern izava seus serviços. A d em ais, os cap itais liberados pelo
tráfico, por grandes q ue fossem , tin h am lim ites, sobretudo n u m a praça financeira
onde a produção açu careira, com todo s os riscos q u e envolvia, era ftnanciada pelos
m eios com erciais, com o nos velhos tem po s.
Para m o dernizar a rede de co m u n icaçõ es terrestres im p u n h a-se, portanto, à falta
de cap ital p ú b lico ou privado au tó cto n e, recorrer ao cap ital privado estrangeiro. E isto
foi feito. M as esse cap ital fin an cio u ap en as u m a parte das ferrovias im plantadas na
B ahia no século XIX. D e fato, podem os d istin g u ir duas fases: entre 1856 e 1875,
construíram -se estradas de ferro com cap itais ingleses; de 1875 a 1893, o governo
provincial fin an cio u as novas con struções, associando-se a investidores privados recru
tados nos m eios fin an ceiros d a B ah ia.
A concessão para a con stru ção e a exploração de um a ferrovia dependia dos gover
nos provincial e cen tral. Das concessões feitas entre 1852 e 1893, quinze resultaram
em nada, núm ero igual ao das que foram ad eq u ad am en te exploradas, o que dá uma
boa m edida das d ificu ld ad es que enco ntravam os concessionários para reunir os capi
tais e form ar com panhias. Nesse período in icio u-se a construção de estradas de ferro
em seis direções diferentes.
A Estrada de Ferro Bahia—São Francisco visava ligar Salvador a Juazeiro. Em
18 5 3 , Joaquim Francisco obteve do governo imperial uma concessão que, em 1855,
foi renovada à Bahia and São Francisco Railway Company. Esta, sediada em Londres,
fez a ligação Jequitaia-Aratu-Alagoinhas-Serrinha-Bonfim c finalmente, em 1896, che
gou a Juazeiro. Entre 1 8 5 6 c 18 7 0 , ela implantou 12 3 ,34 quilômetros, ligando Salva
dor a Alagoinhas, Mas os resultados financeiros nao foram encorajadores; a partir de
1860, quando o primeiro rrccho dessa ferrovia começou a ser explorado, a companhia
inglesa sd teve balanço positivo nos exercícios de 1864 e 1870. Não se interessou,
portanto, em renovar a concessão. Até 1887, manteve apenas a construção e a explo
ração do entroncamento Alagoinhas-Timbó. Assim, a partir de 1876, o governo geral
encarregou-se do prolongamento da linha do São Francisco: em 18 8 0 foi inaugurada
L i\-r o M - O C o t id ia n o dos H omens que P r o d u ;7 iam e T ro cavam -ri
T A R E l. A 7 4
R e d e F e r r o v iá r ia da P r o v ín c ia da B a h ia , 1860 - 1 8 9 0 ( em m e tr o s)
Timbó - - - 82.580
a E .F. C e n tra l d a B ah ia. M as não h av ia com o en co n trar investido res privados. Assim
a lei n° 1 .8 1 2 de 11 d e ju lh o de 1878 au to rizo u o governo p ro vin cial a assum ir ele
p róprio a con stru ção . Em 1 8 9 0 , 3 5 ,9 4 q u ilô m etro s d e vias férreas estavam construídos
m as a ob ra só foi co m p letad a em 1 91 7.
A co n stru ção da lin h a de N azaré, q u e lig a ria essa cid ad e — espécie de pequena
c a p ita l do su l do R ecôn cavo — com o in te rio r d a reg ião , en fren to u as m esm as d ificu l
d ad es, q ue p rovaram m ais u m a vez a resistên cia dos b aian o s em in v estir em ferrovias
Em 1872 a T ra m -R o a d N azaré C o m p a n y gasto u em u m ano todo o seu c a p ita l 4 00
con tos de réis — e teve d e in te rro m p e r os trab alh o s. O s 3 4 q uilôm etro s que se
esten d eram en tre N azaré, O n h a e S an to A n tô n io d e Jesus foram construídos por
c o m p an h ias q u e se su ced iam , u m a c o m p ran d o a m assa fa lid a da o utra. Esta lin h a e a
de S an to A m aro eram , no e n ta n to , d a m a io r im p o rtâ n c ia , u m a vez q u e deviam atra
vessar zonas férteis, em q u e se p la n ta v a m can a-d e -a ç ú c a r, café, fum o c cereais.
A in d a no sécu lo X IX , o u tra s três ferrovias fo ram p lan ejad as, m as só foi posta em
execução a B a h ia -M ín a s , lig a n d o C a ra v elas às cid ad es do N o rdeste de M in as Gerais.
F o i, aliás, a lin h a m ais ra p id a m en te c o n c lu íd a : em dois anos (1 8 8 0 -1 8 8 2 ) im p lan ta
ram -se seus 1 42 q u ilô m etro s e in a u g u ro u -se a estação de A im o rés.
TABELA 75
para co n cen trar seus esforços no C en tro -S u l do país, onde o café prom etia resultados
m ais seguros. Os m eios fin an ceiros da P ro vín cia, bem com o os governos provin cial e
geral, não tin h am co n diçõ es d e su b stitu í-lo s, pois suas receitas estavam co m p ro m eti
das em outros setores.
F in a lm e n te, cabe acrescen tar as resistências de um a gente arraigada a velhos h áb i
tos. Q u an d o se p reten deu co n stru ir a lin h a de San to A m aro , por exem plo, houve
protesros dos senhores de en gen h o cujas terras seriam cortadas. A Baronesa de Bom
ja r d im — p ro p rietá ria dos en gen h o s T erra N ova, P erip eri e C aracan h a — , secundada
po r seus h erd eiro s, recusou a q u a n tia o ferecid a p ela P ro vín cia para a expropriação de
algu n s hectares. N ão a co n sid erava o preço ju sto . O governo alego u que, sendo aquelas
terras u m a sesm aria, a a d m in istra ção tin h a o d ireito de exp ro p riá-las, pagando apenas
o co rresp o n d en te à sua v alo rização . A p en d en g a foi p arar no T rib u n a l S u p erio r de
Ju stiç a , q ue d e c id iu em favor dos p ro p rietário s. O caso ilu stra um ponto im po rtan te:
a in d en ização p ro p o sta cra sem d ú v id a m ed ío cre (2 .1 9 0 .1 0 0 réis!), m as o que de fato
im p o rtava era salv ag u a rd ar o d ireito à p ro p ried ad e. Esses recursos à Ju stiça atrasavam
a co n stru ção de ferrovias q u e seriam v itais p ara red u zir o custo do transporte do
açúcar. O s interesses in d iv id u a is im ed iato s so b rep u javam o interesse coletivo.'3
O fracasso de boa p arte das ferrovias e a au sên cia de u m a p o lítica de am pliação e
m elh o ria d a a n tig a m a lh a de estradas — o p rim eiro plan o com esse in tu ito só su rgiria
em 1917 — resu ltavam não só na m á in tegração eco n ô m ica das vastas regiões do
in terio r, com o na sua m á in teg ração ad m in istra tiv a , com a sobrevivência das velhas
estrutu ras, em q ue os chefes locais d etin h am um poder m u ito pouco controlado pelos
governos p ro v in cial ou central.'*
d everia ser feito por navios n a c io n a is).5 O s dados dispon íveis sobre navegação de lon
go curso e dc cab otagem , em bo ra fragm en tário s e por vezes in co n gruen tes, dão uma
id cía do tráfego m arítim o in terco n tin en tal e nacion al e perm item detectar as m ud an
ças oco rridas a p artir da In d ep en d ên cia.
Entre 1798 e 1810, o nú m ero de navios q ue aportavam cm Salvador aum entou
co n sid eravelm en te, apesar das d ificu ld ad es acarretadas pelas guerras.
t T A B I:. L A 7 6
M o v im e n t o de N a v io s
no Porto de Salvad o r, 1 7 9 8 -1 8 1 0
A nos E n tr a d a s S aídas
O que ocorreu depois é ilu strad o por u m a in teressan te com paração: se tom am os o
ano 1821 — Para o qual tem os dados referen tes a em barcações de todas as nacion ali
dades — , vem os q u e, de 52 navios de b an d eira p o rtuguesa que passaram pelo porto de
Salvador, 44 (8 4 ,6 % ) voltaram a portos portugueses, ao passo que, das 95 em barca
ções inglesas que por ali passaram , 41 (4 3 ,1 % ) levaram m ercadorias baianas para
outros portos europeus q ue não os ingleses,
É evídente portanto que, num tem po bastante curto, as com panhias inglesas de
navegação açam barcaram o transporte das m ercadorias baianas, o que é confirm ado
pela im po rtân cia q u e assum iram as im portações diretas de m ercadorias produzidas na
Inglaterra. Em 1810, catorze navios portugueses partiram de Salvador para portos
Ingleses. Já em 1821 nenhum deles teve esse destino. É verdade que 1810 foi um ano
de guerra, e Portugal estava ocupado pelo exército francês. M as dados referentes ao
ano dê 1815 confirm am a perda de im po rtân cia de Portugal no transporte de merca
L iv ro VI - q C o t i d i a n o d o s H o m e n s q u e P r o d u z ia m e T r o c a v a m
475
TABELA 77
Ano E m barcações
B r a s il e ir a s O utras N a c i o n a l id a d e s T o tal
Po rtu g u e sas
1852 22 13 41
41
1853 33
38
1854 27
41
1855 35
42
1856 37
27 25 206
Total 154
Fonte T in ia Penido M o o o éro , P o r t u g u ê s na B ahia na ítgu n d a da Ucuia XIX, p. 108.
476 B a h ia , S é c u l o XIX
TABELA 78
S a íd a de E m ba rc a çõ e s de S a lv a d o r,
com D e s t in o a P o r t o s P o r t u g u e s e s , 1 8 5 2 -1 8 5 6
-------------- -— .
A no Embarcações
Po r t u g u e sa s B r a sil e ir a s O utras N a c io n a lid a d e s T o tal
1852 26 6 3 35
1853 24 6 - 30
1854 23 6 - . 34
1855 35 7 - 42
1856 28 10 - 38
TABELA 7 9
E n t r a d a d e E m b a r c a ç õ e s P o r t u g u e sa s em S a lv a d o r ,
P r o v e n ie n t e s d e P o r t o s E s t r a n g e i r o s , 1 8 5 1 - 1 8 5 6
1851 5 - 1 2 - 8
1852 6 - 1 - - ■ 7 -
1853 4 1 1 - _ 6
1854 8 4 2 - - 14
1855 6 - 2 ■ - - 8
1856 6 - 1 - 1 8
Total 35 5 8 2 I 51
Fonte: T inia Pcnído Monteiro, P ortugueses m i B ahia tm segu n da m eta d e do sécu lo XIX, p. 112.
TABELA 80
S a íd a de E m b a r c a ç õ e s P o r t u g u e sa s de S a lv a d o r,
em D ir e ç ã o a P o r t o s E s t r a n g e i r o s , 1 8 5 1 -1 8 5 6
A no D e s t in o e N üm ero de E m barcaçõ es
- - 15
1851 5 3 6 1 -
- 12
1852 6 3 1 2 - -
1 - 28
1853 6 19 2 - -
4 - 20
1854 9 4 t 1 l
- - 19
1855 13 2 2 2 -
- 1 15
1856 11 2 - 1 -
1 109
Total 50 33 12 7 I 5
H o m e n s q u e P r o d u z ,,
T A B ELA 8 1 '
N a v e g a ç ã o d e L o n g o C u r so n o B r a sil ( em to n elad as ) .
1 8 5 3 - 1 8 5 8 , 1 8 6 2 - 1 8 6 7 , 1 8 7 6 -1 8 7 9 , 1 8 8 5 -1 8 8 8
Anos E n trad as Sa Idas T o tal
TABELA B2
N avegação df Longo C u r so na B a h ia ( f m t o n e i a d a s)
1 8 5 3 - 1 8 5 8 , 1 8 6 2 - 1 8 6 7 , 1 8 7 6 -1 8 7 9 , 1 8 8 5 -1 8 8 8
Anos E n t ra im s S a Id a s % s o b rf, o B r a s ii. T o ta i.
TABELA 83. ■■ _
1850/51 3 4 7 .4 7 1 3 3 4 .1 4 9 6 8 1 .6 2 0
1851/52 3 4 6 .0 1 6 3 1 5 .7 1 6 6 6 1 .7 3 2
1852/53 3 9 7 .9 1 7 3 6 6 .2 3 1 7 6 4 .1 4 8
1853/54 3 9 2 .2 8 3 3 7 6 .6 2 1 6 7 8 .9 0 4
1854/55 3 8 1 .5 0 9 3 7 2 .7 2 0 7 5 4 .2 2 9
1855/56 3 5 8 .0 2 7 3 4 0 .0 8 5 6 9 8 .1 1 2
1856/57 4 1 3 .7 4 1 4 0 3 .4 9 2 8 1 7 .2 3 3
1857/58 4 9 9 .9 7 5 5 0 1 ,5 3 5 1 .0 0 1 .5 1 0
1858/59 9 5 6 .0 1 7 9 5 6 .8 3 7 1 .9 1 2 .8 5 4
1859/60 9 1 7 .5 8 2 1 .0 1 0 .7 7 5 1 .9 2 8 .3 5 7
1860/61 6 5 7 .7 2 8 5 5 6 .3 9 2 1 .2 1 4 .1 2 0
1861/62 6 5 9 .4 2 0 6 1 0 .3 4 5 1 .2 6 9 .7 6 5
1862/63 7 2 6 .3 9 0 7 2 4 .4 8 9 1 .4 5 0 .8 7 9
1863/64 6 4 0 .7 0 5 5 2 0 .9 9 4 1 .1 6 1 .6 9 9
1864/65 6 7 1 .9 6 7 6 1 0 .0 0 2 1 .2 8 1 .6 9 6
1865/66 6 3 8 .7 7 3 ■ 5 4 4 .0 5 0 1 .1 8 2 .8 2 3
1876/77 1 .5 9 2 ,5 8 5 , 1 .5 9 3 .0 7 0 3 .1 8 5 .6 5 5
1877/78 . 2 .1 8 8 .3 7 1 2 .2 0 1 .3 1 9 4 .3 8 9 .6 9 0
1878/79 1 .8 2 9 .7 2 2 1 .4 2 3 .3 0 6 3 .2 5 3 .0 2 8
1885/86 2 .5 9 2 .7 5 2 2 .5 9 8 ,4 5 9 5 .1 9 1 .2 1 1
1886/87 4 .4 6 4 .0 7 4 4 .4 8 4 .1 2 0 8 .9 4 8 .1 9 4
1887/88 1 .8 3 8 .5 7 9 1 .7 7 8 .5 3 2 3 .6 1 7 .1 1 1
F o n te : A i n s e r ç ã o d a B a h ia n a e v o l u ç ã o n a c i o n a l , p . 1 7 5 —1 7 6 (A n ex o e s ta tís tic o ).
TABELA 84
N a v e g a ç a o d e C a b o t a g e m n a B a h ia (em t o n e l a d a s )
1 8 5 0 -1 8 6 6 , 1 8 7 6 -1 8 7 9 , 1 8 8 5 -1 8 8 8
A nos Entradas S a íd a s % so b r e oB r a sil T otal
1850/51 6 7 .3 9 2 7 1 .3 3 9 2 0 ,3 1 3 8 .7 3 1
1851/52 9 4 .7 2 7 7 7 .5 9 9 2 5 ,9 1 7 2 .3 2 6
1852/53 1 1 6 .8 6 8 8 9 .2 2 7 2 7 ,0 2 0 7 .0 9 5
1853/54 8 4 .9 8 1 7 2 .6 9 6 2 3 ,2 1 5 7 .6 7 7
1854/55 7 4 .0 0 0 5 2 .6 3 5 1 6 ,8 1 2 6 .6 3 5
1855/56 6 9 .9 0 8 5 0 .1 8 4 1 7 ,1 120.092
1856/57 5 7 .1 0 4 5 3 .1 7 7 1 3 ,4 1 1 0 .2 8 1
1857/58 4 7 .6 7 3 4 9 .1 4 5 9 ,7 9 6 ,8 1 8
1858/59 1 4 6 .1 2 9 1 4 0 .3 1 6 1 4 ,9 2 8 6 .4 4 0
1859/60 1 0 5 .2 2 1 1 2 2 .5 5 3 11,8 2 2 7 .7 7 4
1860/61 8 5 -7 5 0 4 2 .9 0 7 10,6 1 2 8 .6 5 7
1861/62 9 9 .9 6 8 6 3 ,2 1 1 12,8 1 6 3 .1 7 9
1862/63 1 0 0 .2 6 6 5 9 -9 1 5 11,0 1 6 0 .1 8 1
1863/64 7 4 .9 1 8 5 7 ,0 1 9 1 5 ,6 1 8 1 .9 3 7
1864/65 8 9 .9 5 2 5 0 .3 5 9 1 0 ,9 1 4 0 .3 1 1
1865/66 8 1 .4 6 3 ■ 4 8 .9 6 7 1 0 ,9 1 3 0 .4 3 0
1876/77 2 5 8 .9 9 1 2 7 0 .5 5 5 1 6 ,6 5 2 9 .5 5 2
1877/78 2 5 7 -1 0 0 2 9 0 .9 7 4 12,2 5 4 8 .0 7 4
1878/79 2 5 8 .0 4 8 2 8 0 .7 6 4 1 6 ,5 538.812
3 5 5 .4 3 3 3 9 3 -5 0 7 1 4 ,4 7 4 8 .9 4 0
1885/86
5 8 7 .1 8 0 7 0 8 .0 3 7 1 4 ,4 1 .2 9 5 .2 1 7
1886/87
1 9 1 .9 5 1 1 3 ,3 4 1 0 .4 4 0
1887/88 2 1 8 .4 8 9
T A B i: 1: A Ü S
P r in c ip a is P r o d u t o s N a c io n a is T r a n spo r t a d o s
tara a B a h ia p o r C a b o t a g e m , 1 8 6 7 -1 8 6 8
Produtos Q u a n t id a d f s * O r ig f m
Lindley, o contrabandista inglês que tão bem soube observar a Bahia do início do
século XIX, parece ter pecado uma vez pelo exagero: entre o porto de Santo Antô
nio e a ponta de M ontscrrat com a praia de Itapajipe, disse ele, “fica o ancoradou
ro, bem abrigado de todos os ventos e em lugar desimpedido, havendo espaço para
que se possam reunir sem confusão todas as esquadras do mundo . 14 O que de fato
havia era, como vimos, um porto engarrafado. Desde os primeiros anos do século
as autoridades eram unânimes em clamar por melhorias.
Por volta de 1 8 1 6 , por iniciativa do capitão-gcral, o C onde dos Arcos, cogitou-se
seriamente em construir um canal que atravessaria Itapajipe, pois a ponta de Montscrrat,
com seus recifes, era perigosa para as pequenas embarcações que tentavam dobrá-la em
mar agitado. O canal de Itapajipe permitiria fácil ancoragem, na baía do mesmo
Lm to VI - O C o t id ia n o dos H o m e n s q u e P r o d u z ia m e T r o c a v a m 483
lu cro s cessantes e seriam ex p ro p ríad o s em troca de som as m u ito inferiores ao valor dos
im óveis de en tão . C ab e n o tar q u e esses do n o s de entrep ostos eram tam bém negociantes
ex p o rtan d o e im p o rtan d o m ercad o rias, e a in d a fin an ciav am a ativ id ad e açucareira A
perd a dos trap ich es s ig n ific a v a p a ra eles a p erd a de p arte do co n tro le q u e tinh am sobre
os p ro d u to res de a çú car, bem co m o sobre suas p ró p rias m ercado rias, q u e passariam a ser
arm azen ad as em docas a n ô n im a s , freq ü en tad as por todos.
P ara os m o d e rn iz a d o re s , in te re s sa v a r e tira r d o g ru p o co n serv ad o r o d o m ín io sobre
o p o rto , c o n fia n d o -o a u m a n o v a a d m in is tra ç ã o . N este cam p o , convém d istin g u ir
d u as te n d ê n c ia s . H a v ia os q u e , c o m o os irm ão s F erreira, ap resen tav am projetos de
m o d e rn iz a ç ão g lo b a l d o p o rto e os q u e , co m o Jo sé A n tô n io de A raú jo , se p ro p u n h am
c o n stru ir u m a ú n ic a d o c a e re c o n s tru ir d o is g ran d e s m ercad o s, o de O u ro e o de San ta
B árb ara. N a v e rd a d e , as d u a s p o siçõ es n ao d ife ria m m u ito . O in d iv id u a lism o dem on s
trad o p o r u m Jo sé A n tô n io de A ra ú jo e q ü iv a lia ao de u m P ed ro so de A lb u q u erq u e ou
ao d e u m P e re ira M a r in h o — to d o s d e se ja v a m c o n se rv ar p riv ilé g io s. O s que apresen
ta v a m p ro jeto s so b o p re te x to d a m o d e rn iz a ç ã o n ã o m e p a recem m a is ab n egad o s que
os n e g o c ia n te s q u e a eles se o p u n h a m . N o s d o is caso s, o in te re sse privad o prim ava
so b re o p ú b lic o . A a titu d e dos d o n o s d e tra p ic h e n ão d ife ria d a dos produtores de
a ç ú c a r q u e re c u sa v a m a p assag em de ferro v ia s p o r suas terras. Isto exp lica o insucesso
d e p ro jeto s m a is c o m p le to s , co m o o d a B a h ia D o ck s C o m p a n y L im ite d ou o da B ahia
a n d S ao F ra n cisco R a ilw a y C o m p a n y . A p r im e ir a , a p e sa r do c a p ita l inglês q ue captara,
ja m a is o b tev e a co n cessão ; a s e g u n d a , ta m b é m in g le sa , in te rro m p e u bruscam en te suas
a tiv id a d e s a n tes d e a tin g ir o o b je tiv o : J u a z e iro e o S ão F ran cisco .
A re s p o n sa b ilid a d e d o g o v e rn o n ão fo í m e n o r, m as a in d a ig n o ram o s o papel que
a e lite p o lític a b a ia n a d e se m p e n h o u n esse caso . O estu d o de suas atitu d es nesses
d o m ín io s — v ita is, e m b o ra m u ito esp ecífico s — talv ez p e rm itisse co m p reen d er m e
lh o r po r q u e ta n ta s U nhas fe rro v iá rias n ão fo ram c o n c lu íd a s, p o r q u e novas estradas
não foram ab ertas, p o r q u e , e n fim , o no vo p o rto de S alv ad o r só veio a ser realizado
en tre 1 9 0 6 e 1 9 2 0 — e x a ta m e n te q u a n d o a eco n o m ia b a ia n a chegava ao ponto m ais
baixo d e seu d e c lín io . D e c lín io relativ o , sem d ú v id a , p o rq u e a praça de Salvador
c o n tin u a v a a ser u m cen tro c o m e rc ia l m u ito ativ o .
' - . CAPÍTULO 2 7
S alvador , P raça C o m e r c ia l
487
488 B a h ia , S é c u l o X I X
tantas c tão fugazes esperanças despertaram . Os preços dependiam , obviam ente, das
condições vigentes nos m ercados externos, sobretudo num a época em que a concor
rência se acirrava, em especial para o açúcar.
Os produtos de im po rtação eram os m ais diversos. Por volta de 1875 eram
tecidos de lã, lin h o e seda, objetos de vidro, ouro e prata, perfum aria, todo tipo de
instrum ento m u sical, rem édios, vin ho s, especiarias, farinh a de trigo, óleo de oliva
bacalh au etc. P redom in avam os bens de consum o, sobretudo após a proibição do
tráfico negreiro, pois até então boa p arte das im portações era form ada por escravos,
que eram bens de p ro d u ção .3 Endosso por in teiro a afirm ação de Rôm ulo de Almeida-
“T enho a im pressão de q ue se d everia estu d ar a in flu ên cia que teria tido o 'crédito em
m ercad o rias1 fo rnecido à B ah ia pelo com ércio de im portação, sobretudo inglês, e isto
m esm o antes da ab ertu ra dos portos, a crer no testem unh o do desem bargador Brito,
tanto m ais q u e sua in flu ên cia benéfica, q u an d o se tratava de bens de produção, era
seguid a por u m a in flu ê n c ia talvez m aléfica na m ed id a em que suscitava modelos
sun tuário s de consum o n u m a m in o ria de ‘senhores’ e ‘dou tores’ que gastavam além de
suas po ssibilidades e q u e, assim , torn avam m ais pesado o balanço de pagamentos e
favoreciam a q u ed a das taxas de câm b io . Esses hábitos sun tuários contribuíam ( ...)
para agravar as crises, im p ed in d o a form ação de m elhores reservas nos anos bons.
C o n stitu íam em su m a u m fator de m aio r d escap italização .”4 De fato, produtos como
tecidos, calçados, chapéus, po rcelan a, objetos de ouro e de prata, instrum entos m usi
cais e certos gêneros alim en tício s dispensáveis form avam , em 1 8 7 4 -1 8 7 5 , 81,9% do
valor total das im portações. Exceção feita ao carvão, cobre, aço, papel, pólvora, fósfo
ros e alguns produtos classificados n a rubrica ‘diversos’, todos os dem ais itens de
im portação podem ser considerados de consum o sun tuário.
Os hábitos su n tuário s a que o em in en te econom ista se refere não eram exclusivos
de ‘senhores e dou tores’. D issem in avam -se por todas as cam adas sociais. Nos inventá
rios feitos após a m orte de h u m ild es habitantes de Salvador, e até de alforriados, jóias
de ouro ou prata, ou trajes de seda, são por vezes os únicos bens arrolados, e nao é raro
encontrar o registro de dívidas contraídas para sua com p ra.5
As tentativas de restringir o sistema de ‘crédito em mercadoria’ sempre foram vãs.
Já em 1 8 5 0 o presidente da Província se queixava da situação em que se encontrava a
economia baiana, crise que atribuía “à decisão dos negociantes da Inglaterra e das
outras nações de não vender suas mercadorias ao comércio do país do mesmo modo
que o faziam outrora, porque adotaram uma nova prática que consiste em vender por
carta de crédito a prazo curto c fixo, obrigando assim os compradores a reduzir
igualmente seus débitos anteriores e nao lhes concedendo nenhuma outra possibilida
de de compra se esta nova condição não for satisfeita /’
Seja como for, a maior parte do lucro dos negociantes vinha desses bens importa
dos,7 pois, na época, os produtos primários de exportação, tradicionais ou novos,
sofriam a concorrência estrangeira, além dos efeitos das crises locais de produção, da
degradação dos termos de troca c da inflação que fatalmente a acompanhava. Exami
L iv r o VI Q C o t i d i a n o n o s H o m e n s q u e P r o d u z ia m e T r o c a v a m
489
narei com o esses diferen tes |a tores atuavam sobre os preços de certos gêneros alim en-
tares de p rn n eira necessidade, torn an do crônico o problem a do desabastecim ento.
A ntes porém , devo assin alar „ im po rtan te papel desem penhado pela B ahia como
praça de com ercio regional.
D e fato, com o ja foi d ito , Salvado r não era som ente um grande centro de com ér
cio in tern acio n al; cab ia-lh e red istrib u ir as m ercadorias im portadas pelas regiões do
in terio r da P ro v ín cia, algu m as m u ito distan tes, e isto por m eio dos transportes m arí
tim os e das po ucas e m ás vias terrestres, para chegar ao Sertão. Rios e tropas de m ulas
levavam aos m ais lo n g ín q u o s rincões não só objetos m anufaturados como até alim en
tos. A lém das m ercad o rias v in d as de outros países, Salvador redistribuía as que chega
vam de outras p ro vín cias do país — de A lagoas ao R io G rande do Sul como a
carne-seca q u e, ju n to com a farin h a de m an dio ca, form ava a base da alim entação de
todos os b rasileiro s.
A ssim , graças a m arin h eiro s e tropeiros, hom ens de têm pera forte e coragem
serena, a B ah ia se in seria n u m am plo e m al conhecido m ercado de trocas. Tem os uma
id éia ap ro x im ad a das trocas feitas com outros países, m as sobre as que se faziam entre
as pro vín cias só disp o m o s de dados fragm en tado s, que não perm item qualquer análise.
T am p o u co existem , com o já assin alei, dados sobre o fluxo com ercial entre Salvador e
as diversas regiões d a P ro vín cia. É certo, em todo caso, que no século XIX a Bahia era
a v erd ad eira c a p ita l do N o rdeste, apesar d a forte concorrência de Pernam buco. De
fato, A lagoas e S ergip e p areciam estar m aís bem integradas com a B ahia que com a
v izin h a P ern am b u co , e isto graças às ligações m arítim as desenvolvidas a partir de
m eados do século.
No in terio r, usavam -se as an tigas trilh as abertas pela passagem das boiadas, que
co n tin u av am a ch egar de lo n ge para abastecer de carne os m ercados de Salvador. Esses
cam in ho s, que su b iam até as chapadas e atravessavam os rios por vaus bem conheci
dos, viam passar longas tropas de an im ais, albardados e pesadam ente carregados, em
caravanas bem organ izad as, q ue levavam aos m ais isolados lugarejos rodo tipo de
m ercadoria, trazendo de volta algodão, café, diam antes ou carbonatos. Toda casa
com ercial dc respeito tin h a seus tropeiros; além deles, percorriam as trilhas os vende
dores am b u lan tes, q ue sonhavam um dia, quando tivessem am ealhado um pequeno
capital, instalar-se com o lo jistas nalgum a vila próspera òu até na cap ital.8
Era preciso tam bém su p rir feiras e lojas da própria Salvador e das cidades e vilas
próxim as. Este m ercado local — dc especial interesse porque dele dependia a subsis
tência dos habitantes d a capital — desenvolvia-se sobre bases relativam ente comple
xas, por ser exportador dc m atérias-prim as, sobretudo agrícolas, e im portador de
m anufaturados. C om suas im portações, o mercado de Salvador devia garantir aos
clientes estrangeiros lucros suficientes para rem unerar o capital que investiam . Ora,
como o escoam ento dos produtos im portados dependia da capacidade de absorção do
mercado intern o, este devia estar em constante expansão, pelo menos a longo prazo.
M as de que m aneira aum entar ou elevar o nível do consumo e das necessidades num a
490 B a h ia . S f c n o X IX
O s C o m e rc ia n te s
V ender era, de lon ge, o ofício m ais p raticad o na Salvad o r do século XIX. De alto a
baixo da escala so cial, ho m ens e m u lh eres exerciam alg u m tipo de com ércio: eram
grandes negociantes, co m ercian tes de todos os calib res, caixeiro s-viajantes, am bulan
tes, leiloeiro s, agentes dc câm b io , corretores, pro p rietário s de entrepostos. As realida
des que se ocultavam sob tais ativid ad es sao difíceis de d eslin d ar ou de quantificar. Era
um con jun to q ue só tin h a cm com um a essência da ativ id ad e q ue lhes garantia a
subsistência — a com pra e a venda — , c extrem am ente díspar no tipo, volum e e nível
dos negócios praticados.
No ftm do século XVIII, V ilh cn a m ostrava-se perplexo diante do comércio da
Bahia. Ele confessou que, h f a l t a dc “luzes” para descrcvê-io com coerência, se conten
taria com algum as considerações gerais que perm itissem um a classificação por peso
econôm ico, ainda que os critérios fossem precários e insuficientem ente definidos.
N o topo da organização com ercial, os grandes negociantes tratavam da exportação
de produtos prim ários para os m ercados internacionais, dos quais im portavam m anu
faturados, alim entos e escravos. Eram eles que financiavam a produção agrícola, mesmo
L i v r o V I - O C o t id ia n o i k i s H o m e n s q u e P r o d u z ia m e T r o c a v a m
491
após a criação de órgãos financeiros com essa função precípua. Aliás, o Código Comer
cial brasile.ro de 1 8 5 0 definia os banqueiros como “comerciantes que rêm por profis-
sao h a b itu a l, em seu co m ercio , as operações cham adas de banco”. 10 Segundo V ilhena
esses gran d es co m ercian tes - reservarei a eles a designação de negociantes, p ará
d istin g u t-lo s dos d em ais — p o diam ser divid id o s em dois grandes grupos- os que
tin h am seus p ró p rio s cap itais e os que, em bo ra agin d o em seu próprio nom e, o faziam
com fu n d o s de o u tras pessoas, desejosas d e o cu ltar que co m erciavam ,11 Q uem eram
rais pessoas? M em b ro s d a a d m in istra ção co lo n ial, cu ja função era incom patível com a
ativ id ad e m erca n til? P ro fissio n ais lib erais com ren d im en to s a fazer frutificar? In stitu i
ções religio sas, p ro p rie tá rio s ru rais ou gen te q ue residia fora da C olônia? C ertam ente
u m pouco de tu d o isto , m as de fato a d istin ção entre com ércio praticado com o
p ró p rio d in h e iro ou com o d in h e iro alh eio é fictícia: rodos os negociantes im portavam
e ex p o rtav am co m esses do is tip o s de fin an ciam en to , o que os protegia dos riscos
in eren tes à a tiv id a d e .12
V ilh e n a fala a in d a de u m a terceira catego ria, a dos com issários, negociantes não
registrado s m as q u e , "co m o p o rém todos desp ach am , pagam direitos e carregam efeitos,
d em o s-lh es a co n so lação de ch am ar-lh es co m ercian tes, sejam os gêneros de que forem ”.
Esses outsiders , q u e am eaçav am o m o n o p ó lio dos com erciantes ‘registrados’, eram seve
ram e n te c ritic a d o s p elo austero V ilh e n a , q ue m o strava tê-los em m u ito baixa co n ta.13
A té a a b e rtu ra dos portos os gran d es n ego cian tes eram luso-brasileiros, isto é,
p o rtu gu eses in stalad o s n a B a h ia ou seus filhos; no geral, po rém , quando o pai fazia
fo rtu n a os filh os ab raçav am profissões lib e ra is, ingressando m uitas vezes na ad m in is
tração c o lo n ia l. O g ru p o cra sem p re renovado pela ch egad a de novas pessoas, que com
freq ü ên cia tin h a m p aren tes já estab elecid o s no ram o , com os quais viviam e faziam seu
ap ren d iz ad o . O s m ais afo rtu n ad o s chegavam a suceder ao ex-patrão à frente dos
n egócio s, o u tro s ch eg av am a a d q u irir créd ito su ficien te p ara criar o próprio estabele
cim en to (aliás, p ara isso, era m aís im p o rtan te ter créd ito na praça que cap ital). A partir
de 1808 as co n d içõ es co m erciais se tran sfo rm aram m u ito : os portugueses perderam o
m o n o p ó lio e as gran d es transações com erciais passaram a ser exercidas por gente de
todas as n acio n alid ad es.
Em 1808 foi can celad a tam b ém a real proibição que im pedia o exercício de
q u alq u er a tiv id ad e in d u stria l na C o lô n ia. As m anufaturas que a partir de então se
estabeleceram eram , de fato, um prolon gam ento do trábalho artesanal tradicional,
co n cen tran d o -se na fabricação de cordas e panos de vela. Projetos de criar m anu aturas
de papel c de algodão n u n ca tiveram exito. Francisco Ignácio Siqueira Nobre investiu
pesadam ente na im p lan tação de um a fábrica de vidros, chegando a trazer operar o
A lem an h a, m as cia jam ais prosperou; tam bém não foi à frente sua idéia de introduzir
na B ah ia o cu ltiv o do bicho-da-seda. N a visão do governo, tratava-se de um homem
de boa vontade, m as pouco in telig en te.14 Embora m alogrados, esses esforços atestam
a lucid ez dos negociantes portugueses, prontos a se adaptar às novas condiçocs impos
tas pela perda de seu m onopólio. T entaram inclusive penerrar no comercio direto
492 B a h ia , S é c u l o X I X
anglo -brasileiro , m as, não ob stante os contatos que m an tin h am na G rã-B retanha, os
obstáculos foram excessivos. A h isto riado ra n o rte-am erican a C , Lugar aponta uma
série deles: a rápida chegada, a Salvado r, de com erciantes ingleses, representantes de
casas com gran de exp eriên cia no com ércio an glo -p o rtu gu ês, a im igração de experien
tes com erciantes q ue tran sferiram sua base de operações de Lisboa para a B ahia, o
d im in u to m ercado inglês para os pro du to s baianos (saivo o algo d ão ), a organização do
m ercado de Londres {que, o p eran d o com sistem a de corretagem , exigia contatos
pessoais) e, fin alm en te, o ap o io d ip lo m ático inglês aos com erciantes de seu país.15
Os negociantes ingleses g an h aram en tão , sobre os portugueses, am pla e rápida ascen
dência: em 1815, os recibos alfan d egário s pagos por eles representavam 24% do
co n jun to ; em 1 8 2 5 , ch egav am a 6 9 % . P or ou tro lado, entre os v in te m aiores nego
ciantes em 1815, apenas q u atro eram in gleses. Em 1825 eles eram d o ze.ltí
A ascensão dos ingleses se ex p lica tam bém p ela p artid a apressada dos negociantes
portugueses po r ocasião d a In d ep en d ên cia, v o lu n tá ria em algun s casos, forçada na
m aio ria deles. D e fato, em 1 8 2 3 , certos setores rad icais d a elite b ain a, apoiados pelo
povo, exigiram sua exp u lsão . Q u eriam a ‘n acio n alização ' do com ércio. M as de fato os
portugueses nao foram su b stitu íd o s po r n ego cian tes brasileiros: os cap itais disponíveis
na P ro víncia eram in su ficien tes p ara fin an c iar todas as atividades econôm icas, em
especial a produção. A lgu n s anos depo is os senhores de engenho se deram conta disso
e pediram a v o lta dos q ue tin h am exp u lsado . Por ou tro lado , é evidente que, mesmo
que aqu i tivessem p erm an ecid o , os portugueses nao teriam p o dido conservar a posição
preem in ente de o u tro ra.
N o novo esq u em a q u e se estab eleceu nos anos 1830, os negociantes estrangeiros,
sobretudo ingleses, não assu m iram o m o nop ólio português. L im itaram -se a operações
de im portação e exportação no p róprio porto de Salvado r, deixando aos luso-brasileiros
um am plo espaço de operações com erciais em diferentes setores: eram estes que faziam
a interm ediação entre os exportadores e os produtores agrícolas, financiando e colocando
a produção; red istrib u íam as m ercadorias im po rtadas, m antendo o controle de todo o
com ércio regio nal e in terp ro v in cial em torno do q u al se desenvolvia a navegação de ca
botagem ; finalm ente, eram os luso-brasileiros que faziam o lucrativo tráfico de escravos.
Nesse espaço, consideravelmente ampliado com a criação de um Estado nacional,
muitos negociantes luso-brasileiros prosperaram, como os Pereira Franco, os Cerqueira
Lima, os Pedroso de Albuquerque e os Pereira M arinho. E se, no novo modelo, o
comércio nacional não substituiu o comércio português de outrora, não faltaram aos
meios comerciais baianos oportunidades para enriquecer. As fortunas dos comercian
tes locais são, como se verá, as primeiras fortunas da cidade durante rodo o século XIX.
Até 18 5 0 , cies detiveram o monopólio do tráfico de escravos, considerado muito
lucrativo; tinham o monopólio da importação de produtos alimentares, como a carne-
seca e a farinha de mandioca, igualmente rentáveis; redistribuíam mercadorias impor
tadas e abasteciam todo o comércio varejista da Província. Muitos tinham lojas pró
prias. Finalmente, seu papel de intermediários dos produtos agrícolas, que financiavam,
,If I Í Í Í l ^ £ 0 T ro «N 0 ^ 0MENS QUE P ro d u z 1 am E T r o c a v a m
493
T A R E: [. A 8 6
C o n c e n t r a ç ã o de C a pit a is n a B a h ia ,
1 8 7 9 —1 8 9 9 (e m c o n t o s d e r é is)
Suíços 6 0 :0 0 0
A lem ães 4 0 :0 0 0
Portugueses 3 7 :0 0 0
Italianos 20:000
Franceses 16:000
Brasileiros 16:000
Espanhóis 5:000
Ingleses 4 :0 0 0
A O r g a n iz a ç ã o C o m e r c ia l
Q u alq u e r pessoa, cid ad ão b rasileiro ou não, p o d ia com erciar, desde que dispusesse
liv re m e n te d e sua pessoa e de seus bens. As m ulheres casadas e m enores de idade
p recisavam de au to rização dos m aridos ou dos pais.
E ntre os p riv ilég io s dos co m ercian tes, h av ia um m u ito im p o rtan te, resquício tal
vez dos tem po s co lo n iais: q u a lq u e r u m deles p o d ia dar a um terceiro u m a procuração,
de p ró p rio p u n h o ou não , m as assin ad a por ele, com valo r ig u al ao de u m docum ento
passado em cartó rio . A liás, todos os papéis referentes a transações com erciais dispen
savam o re c o n h ecim en to de u m tab elião , en tre eles os q ue atestavam a concessão de
créd ito s a u m terceiro e a p ro m essa deste de q u ita r a d ív id a no prazo ali fixado.
O c o n ju n to dos a u x ilía r e s do corp o c o m e rc ia l in c lu ía co rreto res, leilo eiro s,
in ten d en tes, co n tad o res e co m erciario s, sem esqu ecer os p ro p rietário s e ad m in istrad o
res dos en trep o sto s, n em os tran sp o rtad o res. N esta ú ltim a categ o ria in clu íam -se bar
q ueiro s, tro p eiro s e “o u tro s co n d u to res de gêneros ou agen tes”. S eriam estes últim os
os ‘atrav essad o res de g ê n e ro s’? D e fato, o C ó d ig o C o m e rc ial os en q u ad rava com o
sim p les tra n sp o rta d o re s.
O c o m e rc ia n te p o d ia exercer d ire ta m e n te sua fu n ção o u d elegá-la a um terceiro,
o q u e e x ig ia u m a p ro c u raç ão , ch a m ad a p elo C ó d ig o C o m ercial de m an d ato m ercan
til. Essa fo rm a de co m ércio p o r p ro cu ração foi m u ito co m u m no período colonial,
pois com fre q ü ê n c ia u m dos sócios estava do o u tro lado do A tlâ n tic o .19 M as co n ti
n u o u send o a m p la m e n te p r a tic a d a no sécu lo XIX , u m a vez q ue as grandes casas
co m erciais tin h a m in teresses ta n to no estran g eiro com o em diversas províncias do
país e em v ila s esp alh ad as p e la B ah ia , p recisan d o ter agentes p o r to d a parte. U m
m esm o a g e n te p o d ia ser m a n d a tá rio de vários co m ercian tes, assim com um com er
c ian te p o d ia n o m e ar d iverso s m a n d a tá rio s p a ra u m m esm o negócio. Em geral, os
com erciantes q ue trab alh av am por procuração de u m confrade recebiam u m a comissão,
c u ja tax a era fix a d a de co m u m aco rd o , a m en o s q ue tivessem p articip ação n a socieda
de co m ercial, caso em q u e receb iam p ro rata, segu n d o o cap ital ou o trabalh o inves
tid o s no n eg ó cio .
A fo rm a m ais d ifu n d id a de associação co m ercial era a sociedade . B astavam duas
pessoas para fo rm ar u m a so cied ad e co m ercial, desde q u e am bas con tribu íssem para a
form ação do c a p ita l, fosse em d in h eiro , títu lo s co m erciais ou outros bens, fosse na
form a de trab alh o ou do exercício de a lg u m a esp ecialid ad e. A associação podia ser
m u ito n u m ero sa, caso em q u e se form ava u m a so ciedade em nom e coletivo, adm i
n istrad a por a lg u n s dos sócios ou por geren tes con tratados.
O s p a rticip a n tes dc u m a so ciedade eram so lid ário s nas eventuais dívidas por ela
co n traíd as, g aran tin d o -as com suas fo rtun as pessoais. As constantes m udanças de
razão so cial m o stram q u e as sociedades costum avam ser efêm eras: os sócios se separa
vam por m ú tu o co n sen tim en to , p ela saíd a de algum , q u e era su b stitu íd o , ou quando,
após a m o n e de u m deles, os herdeiros optavam por se retirar.
B x h ía . S ftv io xrx
O u t r a f o r m a m u i t o d i f u n d i d a d c a s s o c ia ç ã o c o m e r c i a l, s o b r e t u d o a t e m e a d o s d o
s é c u lo X ÍX , é p o c a c m q u e o c o m é r c i o lu s o - b r a s ile ir o a s s u m i a g r a n d e s riscos, era a
c o m a n d i t a . As s o c ie d a d e s d e sse tip o f o r m a v a m - s e c m g e ra l p a ra v ig o r a r e m p e río d o s
m u i t o c u r to s ; p o d ia m ser c r ia d a s , p o r e x e m p l o . p a ra d u r a r o t e m p o d c u m a v ia g e m d e
id a e s o l t a à c o sta a f r ic a n a . S e os ic s u lt a d o s fo ssem b o n s . e s t a n d o os só cio s d e aco rd o
s u a e x is t ê n c ia p o d ia ser p r o l o n g a d a , m a s n a o p o r m u i t o m a is t e m p o q u e o n ecessário
p a r a d u a s o u très v ia g e n s .
C o m a in terd ição do tráfico d c escravos, su rg iram outras po ssibilidades dc inves
tim e n to , se não m ais ren táveis, bem m ais segu ras. D c fato. já nos anos 1840. com eça
ram a ser fo rm ar, tan to em S alv ad o r co m o em p eq u en as cidades do Recôncavo, com
p an h ias d e co m ércio ou 'so cied ad es a n ô n im a s ’. S egu n d o a legislação em vigor na
época, tais c o m p an h ia s d ev iam ser e stab elecid as por um tem po determ inado e ter a
au to rização do g o v ern o , e x ig ê n c ia q u e não se a p licav a nem às sociedades sim ples de
pessoas, nem às c o m a n d ita s.
N as so cied ad es sim p le s, v im o s q u e os sócios g a ra n tiam as dívidas com os pró
prios bens; já os c o m a n d itá rio s só eram respon sáveis por d ívid as da sociedade até o
lim ite d e seu p ró p rio in v e stim e n to ;20 nas so cied ad es an ô n im as — sociedades de ca
p itais, por e x ce lê n c ia — os riscos eram a in d a m eno res: os sócios só eram responsáveis
pelo v alo r das ações e m itid a s , C o m o ho je, não tin h am com p rom isso com dívidas
sociais, c u ja ú n ic a g a ra n tia era o cap ital so cial c o n stitu íd o pelos investim entos e os
lu cros.
Foi essa a fo rm a a ssu m id a pelas co m p an h ias d c segu ros, os bancos, as fábricas dc
tecid o s e as de p restação d c serviços, co m o tran sp o rtes urb an o s, m arítim o s e ferroviá
rios, Esse tip o de asso ciação e x ig ia , co n tu d o , q u e o c a p ita l fosse in teiram en te subscrito
c q ue pelo m enos 1/4 d ele fosse efetiv am en te a p licad o na co n stitu ição e no funciona
m en to d a em p resa. O ra, já se v iu co m o foi d ifíc il, na B ah ia, im p lan tar com panhias
para m elh o rar o porro ou criar u m a rede ferro viária. NSo foi diferenre em relação aos
estab elecim en to s b an cário s, a lg u n s dos q u ais fundados com cap ital variável. A socie
d ad e a n ô n im a só prosperou dc fato nos anos 1890. A té o fim do período im perial, a
m aio r parte dos negócios b aian o s c o n tin u o u a ser co n d u zid a por sociedades com er
ciais, em q ue o co m p ro m isso total dos sócios c a palavra em p en h ada contavam mais
que q u alq u er o u tra co isa no co n tato d ireto e pessoal com a clientela.
As T r o c a s entre o s G randes
N e g o c ia n te s o u c o m e r c ia n t e s e s ta b e le c id o s e s ta v a m h e m e q u ip a d o s p a ra o ex ercício dc
seu o ííc io : a p a r t ir d e 1 8 5 0 , t in h a m u m C ó d i g o C o m e r c ia l e boas leis. C o n ta v a m
ta m b é m c o m a p ro te ç ã o d e s o c ie d a d e s s e g u r a d o r a s 21 c c o m in stitu iç õ e s d e c ré d ito q ue,
e m b o r a u seiras c vezeiras c m falir, s e rv ia m aos in teresses c o m e rc ia is , fo m e n ta n d o a
c ir c u la ç ã o m o n e tá r ia .
L i\R O VI O C o tid ia n o d o s H om ens q u e P r o d u z i a m e T ro c a v a m 497
O s grandes co m ercian tes m an tin h am tam bém sob seu controle a produção a g rí
cola, que c o n tin u av am a fin an ciar. Sobretudo a p artir da Independência, os íuso-
brasileiros perderam o d o m ín io dos m ercados in tern acio n ais para os estrangeiros. M as
até 1850 con servaram a parte do leão no tráfico de escravos. A abertura dos m ercados
in terp ro v in ciais e in ter-reg io n ais p erm itiu que se reorganizassem em condições favo
ráveis. Por ou tro lado , o poder eco n ô m ico q u e representavam num a cidade em que
tudo girava em torno do com ércio p erm itiu -lh es m an ter suas atividades num a estru
tura de o lig o p ó lio , im p o n d o os preços que lhes co n vin h am . Os grandes im portadores
raram en te sc esp ecializav am n a v en d a de u m a ú n ica m ercadoria ou m esm o de um a
série de m ercad o rias sim ilares (tecidos de alg o d ão , lã, lin h o ou seda, por exem plo). Por
questão de estratégia, as operações eram d iversificad as. M as o ú n ico m onopólio de que
se tem n o tíc ia era o d o n eg o cian te Jo a q u im P ereira M a rin h o , acusado de haver m ono
polizado o a b astecim en to de carn e-seca ao m ercado de Salvador. A docum entação
d isp o n ível, no e n ta n to , não p erm ite co n tro lar a v eracid ad e dessa acusação.
E m bora se ap licasse a todo tipo de m ercad o rias, a ação dos oligopólios se eviden
ciava so b retu d o no caso dos alim en to s, d ad a a im p o rtân cia destes na econom ia popu
lar. N a p rática co m ercial dos b aian o s, sem p re p revaleceu o en ten d im en to , o acordo,
im p ed in d o a fo rm ação de u m a v erd ad eira co n co rrên cia, o que pode ser constatado
pela an álise dos preços dos víveres co n su m id o s pelo H o sp ital da M isericó rd ia de
Salvado r. M esm o q u an d o h av ia m u d an ça de fornecedores, os preços nao baixavam .
Era, afin al, u m p eq u en o g ru p o — não m ais q ue u m a v in ten a — que se m an tin h a no
topo da h ie ra rq u ia das ativ id ad es co m erciais, com o poder de d itar a ‘lei do m ercado’.
N a estru tu ra das relações co m erciais, cad a co m ercian te tin h a sua clien tela — ou
‘freguesia’, com o se co stu m av a dizer — de com erciantes varejistas na cap ital, nos
vilarejos e nas cidades d a P ro vín cia. Era u m a c lien tela p raticam en te cativa, presa por
laços de paren tesco , de co m p ad rio e de am izade, p o rq ue n u m a situ ação de oligopólio
há pouco lu gar p ara a tro ca de clien tes. F id elid ad e e so lid aried ad e — ■com patíveis com
a própria etim o lo g ia do term o freguês — eram as chaves do sucesso nesse cam po,
como em todos; faziam a força d a sociedade b aian a, ao m esm o tem po em que faziam ,
como se verá, sua fraqueza. As relações q u e se estabeleciam no seio da classe com ercial
nao diferiam m u ito das q ue eram m an tid as nas fam ílias, nos m eios param ilitares ou
políticos, e o m esm o esquem a se reproduzia nas relações entre com erciantes varejistas
e as centenas de m ercadores am bulantes que povoavam os m ercados, percorriam pra
ças e ruas da cid ad e ou se em brenhavam pelo interio r. E esses am bulantes tinham ,
tam bém eles, sua freguesia certa.
De fato, a palavra ‘freguês* cra das m ais em pregadas do vocabulário baiano. D e
signando tanto quem v en d ia como quem com prava, sub stitu ía os tratam entos mais
pomposos de senhor e senhora. Ser freguês de alguém significava ter optado por laços
que iam da fidelidade e da solidariedade a relações mais íntim as de amizade e compadrio.
M as qual era a situação do com erciante quando, em vez de vender, comprava?
M onopsônio ou oligopsónío? A qui a situação é um pouco m ais com plicada. Antes de
498 B a h ia , S é c u l o X Í X
josas, d isso resu lta u m a d istrib u içã o de m ercadorias entre os indivíduo s que deve
m elh o rar a situ ação dc pelo m enos um deles, m as não deve p reju dicar nin guém ( .. .) .
S u p o n h am o s q u e os in d iv íd u o s, assim com o os grupos de troca, sejam livres para
aco rd ar co n d içõ es dc troca m u tu am en te vantajosas. Suponham os que não estejam
lim itad o s na esco lh a dos p arceiros co m erciais com quem podem organizar trocas
m u ltila tc rais. S u p o n h am o s a in d a q u e cada in d iv íd u o seja livre para aceitar ou recusar
as ofertas, sem p recisar do co n sen tim en to de outros in d iv íd uo s. As trocas que resul
tam dessas co n d içõ es rep resen tam um eq u ilíb rio c o n co rren cial.”22 O ra, é fácil con
c lu ir q ue n en h u m a das co n d içõ es d a co n co rrên cia estip u lad as nesta lon ga citação se
fazia presente em S alv ad o r.
Para co m eçar, o n ú m ero re lativ am en te peq u en o de negociantes e s tra n g e iro s__
em q u e os in g leses tin h a m forte p red o m ín io e cujo s m em bros podiam estar even tual
m ente c o m p ro m etid o s e n tre si ■
— lim ita v a as chances q ue tin h a o com erciante baiano
de esco lh er p arceiro s. D ep o is, com o v en d ed o r de produtos agrícolas dos quais era
tam bém p ro d u to r in d ire to , p recisava até certo ponto do co n sen tim en to dos clientes
que rep resen tava. Por fim , se a p ró p ria n o ção de tro ca im p lica acordo vo lun tário entre
as partes sobre co n d içõ es liv rem en te aceitas por cad a um a, cabe p erg u n tar com o tais
co n d içõ es p o d iam v ig o rar em face das d ificu ld ad es q ue cercavam a colocação dos
pro d u to s lo cais no m ercad o . O essencial é saber q ue p o ssib ilid ad es tin h a o com ercian
te b aian o , n u m a e v e n tu a l n eg o ciação , de im p o r suas próprias condições, o que passo
a an alisar n u m p lan o teó rico e h ip o tético , lev an tan d o problem as sem resolvê-los.
S eria p reciso d isp o r de co rresp o n d ên cias ou das m em ó rias de com erciantes, docu
m entos q u e in ex istem . H á ap en as três estudos sobre as casas com erciais da B ahia, de
au to ria de M á rio A u gu sto da S ilv a San tos, de A rn o ld W ild b erger e d a Casa W estphalen,
Bach e K ro h n ,23 m as todos sao com em o rativos de cen ten ário s, o que im pede que
tenham a im p a rc ialid a d e necessária. M esm o assim , acred ito poder afirm ar que o m er
cado de S alv ad o r era de o lig o p ó lio e oligop sô nio , talvez até oligopsónio b ilateral, já
que com p rado res c vendedores se eq ü iv aliam em núm ero. Era tam bém no quadro do
oligopsónio q u e sc davam as relações entre com erciantes e produtores agrícolas, uns
poucos com p rado res negociavam com m uitos vendedores. M as, neste caso, os produ
tores sc d istrib u íam entre os grandes com erciantes, cada um dos quais tinha a sua
freguesia. Um exem plo é A ristidcs N ovis, q u e veio dc Goiás na segunda m etade do
século XIX e tornou-se um forte in term ed iário — representante — do açúcar, graças
ao apoio das m ais prestigiosas fam ílias do Recôncavo, com o os M oniz de Aragão.
Laços dc interesse, mas tam bém dc am izade c dc com padrio que, cem anos depois,
perm anecem vivos entre os descendentes, seja de um grande com erciante, seja de um
poderoso senhor dc m uitos engenhos. Salvo o fum o, cujos pequenos produtores com
freqüência sc d irigiam diretam ente ao m ercado, criando relações de um outro tipo
com os com pradores — em bora sempre no quadro do oligopsônio — , para todos os
produtos valiam as m e s m a s regras que para o açúcar: entre exportador e produtor,
interpunha-sc o representante.
500 B a h lv S é c u lo XIX
O utras T rocas
U m c o n tr a to dc c o m p r a e v e n d a d e m e r c ã d o r ia s e ra v á lid o q u a n d o as partes c o n c o r
d a v a m q u a n t o à c o is a , ao p re ç o , às c o n d iç õ e s d e e n t r e g a e às p e rc e n ta g e n s. A partir
desse m o m e n t o , n e n h u m a d e la s p o d ia d e n u n c iá - lo , a m e n o s q u e a coisa v e n d id a
ap resen tasse d e fe ito s q u e n ã o t in h a n o m o m e n t o d o ac o rd o . N este caso, cab ia ao
T rib u n a ! d c C o m é r c io d e c i d ir a c o n t e n d a , se u m a c o rd o não fosse o b tid o . A c o m p ra
d e q u a lq u e r b e m c o m e r c ia l izávcl p o d ia sc r e fe r u a d a c o m ativ o s c o m o m o e d a m etálica
ou p a p e l- m o c d a , títu lo s d c fu n d o s p ú b lic o s , ações dc c o m p a n h ia s e todos os papéis de
c ré d ito c o m e r c ia l. A lém d isso , tu d o q u e p u d esse se r c o m p ra d o ou v e n d id o po dia
ta m b é m ser tro c a d o , sem a in te r v e n ç ã o dc q u a lq u e r m e io de p a g a m e n to : as m erca d o
rias tro cad as s e rv ia m de p reç o c c o m p e n s a ç ã o re cíp ro co s.
J j g o V l _ O a n r o L<.NO n o s H o m e n s qle P ro d e -z ia m e T rocavam
501
. . ^ Bah-,a ’ 0 <,UC co,’ ,av:i nas transações com erciais era a palavra, que 'valia ouro'.
Nas operaçoes q u e en v o lv a m atc -100 m i. r é , . a presença dc L c m u n h a s substituía o
con rrato escrtto. Atos n o tar,ais ou privados, noras de correrores, livtos-caixas e mesmo
a correspondência en tre com erciantes podiam provar a existência de contratos « T eo
ricam en te, po rtan to, as relações ■i
, 1 Ç es com crciíiis estavam protegidas por numerosas salva
guardas, mas nao se, se, na p rática, essas regras funcionavam de modo a contentar
todos os p arceiro s, sobretudo q u an d o se tratava de m era troca de m ercadorias Neste
caso. p ro vavelm en te o m ais forte im p u n h a sua lei, em especial em se tratando da troca
d e gêneros perecíveis po r produtos m anufaturados, ou de transações que envolviam
m ercad orias arm azen ad as em regiões d istan tes de Salvador. As dificuldades do trans
porte p o d iam su je ita r o co m ercian te local, apressado em passar as m ercadorias adiante,
às im po siçõ es do co m ercia n te d a cap ital. A lém disto , u m a constante falta de dinheiro
vivo d eterio rav a os term os de tro ca, em prejuízo dos consum idores, sempre na ponta
dessa co m p lex a cad eia de transações.
D u ran te to d o o século X IX , os consum idores de Salvador foram afetados por três
fatores negativos. Em p rim eiro lu gar, a oferta, sobretudo de alim entos básicos, sempre
ficava aq u ém d a d em an d a. N ão m e deterei no tem a do desabastecim ento, já explorado
em cap ítu lo s an terio res, m as a p en ú ria crôn ica de q u e sofria o m ercado de Salvador
resultava tam b ém d a sua estru tu ra o ligo p ó líca. A im portação de gêneros de prim eira
n ecessid ad e, co m o fa rin h a de m an d io ca, carne fresca, carne-seca, feijão e arroz, estava
nas m ãos de p o ucas casas im p o rtad o ras, q u e m onopolizavam determ inados produtos
— Jo a q u im P ereira M a rin h o , por exem plo , con trolava a carne-seca — ou se com bina
vam entre si p ara su p rir o m ercado com p arcim ô n ia, elevando os preços. E tinham
todas as co n d içõ es p ara isso, p o ssuindo depósitos para arm azenar as m ercadorias pelo
tem po q ue lhes con viesse. O po d er p ú b lico , recrutado na elite da cidade, tinha pouca
p o ssib ilid ad e o u desejo d e in terv ir, e eram afinal esses com erciantes que pagavam os
m aís gordos im po sto s, g a ra n tin d o as receitas do E stado.25 A partir de dados fragm en
tados, pode-se c a lc u la r q u e as receitas provenientes das taxas de im portação e exporta
ção rep resen tavam , em 1 8 6 0 -1 8 6 1 , 8 9 ,6 % das receitas ordin árias da Província e
8 5 ,6 % do to tal das receitas. Em 1 8 7 7 -1 8 7 8 , essas percentagens eram , respectivam en
te, de 8 8 ,7 % c 80,1 % .
A escassez de d in h eiro cm circulação tam bém gerava tensão entre vendedores e
com pradores c favorecia a adoção da venda a crédito, que a curto prazo parecia
favorecer os m ais pobres, mas a m édio e longo prazos os arruinava. Por fim a desor
dem rein an te no a ,o dos pesos e das m edidas era m ais um fator de perda para o
con sum id or. , ,
N o atacado ou no varejo, as m ercadorias eram pagas à vista ou a crédito. A com pra
à vista m uitas vcz.es e n v o lv ia d is c u s s ã o . V ilhena j á notara que o preço de certa*i m er
cadorias perecíveis, com o peixe ou carne, baixava com a passagem tfas horas. Nao
raro os vendedores tentavam disfarçar os sinais de degradaçao: vend,a-sc a carne ,á
assada c o peixe frito , contrariando as Posturas M u m c p a is.
B a h i a , S é c u o XIX
troficos a m edio e longo prazos: m agras econom ias porventura am ealhadas em tempos
m elhores eram drenadas para o pagam ento dessas dívidas. M ais grave ainda, o crédito
fácil in citav a ao consum o dc artigos de luxo por um a população que, cm sua grande
parte, nao tin h a com o pagá-los. A concessão de crédito era cercada de precauções
suficientes para o vendedor, e abundam nos inventários post mortem instruções sobre
o leilão a tazer de um escravo ou de um a casinha, para q u itar as dívidas de um defunto
que vivera acim a de suas posses. Em sum a, nas relações entre com prador e vendedor,
este gan h ava q uase sem pre.
Para co m p letar esta an álise, devo falar dos pesos e das m edidas utilizados na época
e que, tam bém eles, p reju d icav am os consum idores. O sistem a m étrico só foi adotado
em 1874. A té lá, e a in d a por m uitos anos, pois hábitos não se m udam do dia para a
n o ite, usavam -se as u n id ad es de peso e com p rim ento herdadas da época colonial:
arroz, farin h a de m an d io ca, feijão e sal, por exem plo, eram vendidos a alqueire (36,27
litro s); a farin h a de trigo v in d a de P o rtu gal, carne fresca, bacalhau, toicinho, açúcar,
café, algo d ão e cacau eram v en d id o s a arroba (1 4 ,7 4 q u ilo s); líquidos, como óleo,
v in agre ou a g u ard en te, eram ven didos em canadas (4 ,1 8 litros). Certos produtos
nobres, com o o ch á e a m an teig a, m ediam -se em libras. O alqueire se subdividia em
m erade, q u arto e o itavo . H avia a in d a o celam im , a 16a parte do alqueire, correspon
d en te p o rtan to a 2 ,2 7 litro s, m as tam bém cham ado de litro . A rrobas e canadas tinham
tam bém suas su b d iv isõ es.28 F o rm alm en te, todos esses pesos e m edidas eram aferidos
pelas au to rid ad es m u n ic ip a is duas vezes por ano, em jan eiro e em ju lh o . As Posturas
M u n ic ip a is d e fin iam q u e pesos superiores a 1/2 arroba só podiam ser usados com
auto rização expressa d a C â m a ra, m ed id a q ue visava m an ter a diferença entre varejistas
e vendedores am b u lan tes ou feiran tes, q ue nem pagavam os im postos.
P eso s c o m o o a l q u e ir e , a a r r o b a o u a c a n a d a só e ra m u tiliz a d o s e m transaçõ es de
v u lto . P o u c a s f a m íl ia s b a ia n a s p o d ia m c o m p r a r a lim e n t o s e m g ra n d e s q u a n tid a d e s,
não só p o r f a lt a d e d i n h e ir o , m a s t a m b é m p o r q u e n a o p o d ia m a rm a z e n á -lo s em suas
casas, p e q u e n a s e a b a r r o t a d a s d e m o r a d o r e s . A lq u e ir e s , a r ro b a s e c a n a d a s e ram , aliás,
m e d id a s d e c a p a c id a d e , e u m m e s m o p r o d u t o p o d ia a p re s e n ta r pesos m u ito diversos,
m e s m o q u e o v e n d e d o r n ã o tivesse o in t u it o de le sar o c o n s u m id o r . Por vezes a
c o m p o s iç ã o d o p r o d u t o a lte r a v a s u a m e d id a : p o r e x e m p lo , a q u a n t id a d e dc farin h a de
m a n d io c a g ro s s e ira n e c e ss á ria p a r a e n c h e r u m a m e d id a é m e n o r q u e a da farinh a fina.
A falta d c e x a t íd á o dos in s tr u m e n to s , as a p ro x im a ç õ e s e m tu d o q u e d iz ia respeiro a
peso c m e d i d a t i n h a m p o r v í t im a m a io r o c o n s u m id o r : fa lta v a m -lh e m eio s d e co n tro
le, ao passo q u e o v e n d e d o r p o d ia fa c ilm e n te trap a ce ar, N o to can te às m ed id as lin e a
res, a c o n fu s ã o e ra a m e s m a . A s u b s t itu iç ã o d a v a ra ( 1 , 1 0 m ) e d o côvad o ( 0 , 6 6 m)
p elo m e tro c a u s o u p e rp le x id a d e , e m u ita g e n te deve ter c o m p ra d o cóvado p o r m etro.
A d e cisão d e in t r o d u z ir o n o vo s is te m a d a ta d e 1 8 6 2 , d e fm in d o -se e n tã o u m prazo de
dez an os p a r a q u e o c o m é r c io m u d a sse seus h áb ito s. Foi preciso, p o rém , u m novo
d e creto , e m 1 8 7 2 , p a ra q u e fin a lm e n te o siste m a m é tric o fosse ad o tad o e m I o de
ja n e iro de 1 9 7 4 . N a s p ro v ín c ia s do N o rd e ste (P araíb a, P e rn a m b u c o , R io G ran d e do
506 B a h ia , S é c u l o X I X
in stitu iç ão d estin ad a a recolher as econom ias dos pequenos poupadores para servir às
necessidades do Estado c fazer em préstim os a esses m esm o poupadores, sob cauções
seguras. A liás, o baixo cap ital subscrito não lhe p erm itiria atuar com o verdadeiro
banco com ercial. N ão o b stan te o cam po restrito de suas operações, a C aixa E conôm ica
foi a ú n ica in stitu ição bancaria fundada antes de 1850 que conseguiu atravessar o
século XIX, e sem m aiores problem as. O ficialm en te reconhecida em 1860, passou a s e
ch am ar B anco E conôm ico da B a h ia ,36
A d écad a de 1 8 4 0 , b astan te favorável para a econ om ia b aian a, trouxe a criação de
bancos capazes de oferecer os in stru m en to s de crédito insistentem ente reclam ados
pelos m eios econ ôm ico s locais. Em 1 8 4 5 , foi fundado o B anco C o m ercial da Provín
cia da B ah ia, com u m cap ital de 2 .0 0 0 :0 0 0 de réis, d irig id o na prim eira fase por
pessoas m u ito co n h ecid as no m u n d o dos grandes negócios da B ahia daquela época,
com o Luiz P au lo de A raú jo B astos (B arão e, m ais tarde, V isconde dos F iais), José
A gostinh o Salles, F ran cisco L an g, Jo a q u im Jo sé R odrigues e Luiz A ntôn io V ían n a. Era
u m a in stitu iç ã o d e d ep ó sito e desconto, com d ireito a e m itir letras e valores pagáveis
ao po rtad o r com prazos de m enos de dez dias e v alo r n o m in al de cem m il réis, desde
que o valo r to tal não superasse 5 0% do cap ital efetivo do banco. T ratava-se portanto,
sem som bra de d ú v id a , de um banco em issor de papeL m oeda. Em 1853 foi transfor
m ado em filia l do B anco do B rasil e com o tal fu n cio n o u até 1 8 6 6 .37
. M as o m al-estar fin an ceiro persistia. Em 1848, três novas instituiçõ es foram cria
das. A S o cied ad e do C o m ércio d a B ah ia, de cap ital variável — o que não tardaria a ser
considerado m au sin al — , tin h a funções m ercan tis e hip otecárias que deviam abranger
toda a P ro víncia. O B anco H ip o tecário do B ah ia, q ue foi autorizado a em itir trin ta m il
ações de 2 0 0 m il réis, o que co m p u n h a um cap ital de seis m ilhões de contos. H ipo
tecas feitas sobre bens im o b iliário s po r 2/3 de seu valor garan tiam seu capital. Para
em itir letras de câm bio e letras à v ista, o banco estava autorizado a trip licar seu capital
e a descontar títu lo s com erciais com ju ro s de 6% ao ano. O principal é que seus
acionistas p o diam u tilizar seus próprios cap itais no desconto de letras de crédito
garantidas por suas ações, até 2/3 do m o ntante que tinh am aplicado no banco. Por
fim , a C aixa C o m ercial d a B ah ia, de capital variável, q ue perm itia aos acionistas
retirarem seus fundos livrem en te. O prim eiro cap ital subscrito somava 8 3 :9 2 0 de réis;
catorze anos depois cra de 2 .1 6 8 :7 5 0 de réis, para finalm ente transform ar-se em
capital fixo dc 2 .5 0 0 :0 0 0 de réis.
Em 1 8 5 3 , n u m novo su rto de in s titu iç õ e s b a n c á ria s, fo ram fu n d ad a s: a C a ix a de
R eserva M e r c a n t il (d e c a p ita l variáv el até 1 8 6 0 , d e p o is fixo até sua liq u id a ç ã o , em
1 9 0 1 ), a C a i x a H ip o te c á r ia d a B a h ia (com c a p ita l d c 1 .2 0 0 :0 0 0 d e réis em doze m il
ações) e a C a ix a d as E c o n o m ias d a C id a d e d a B a h ia . Esta ú ltim a , cujos estatuto s só
foram a p ro v a d o s e m 1 8 6 0 , era u m b a n c o de c a p ita l v a riá v el d e stin ad o ‘ a fornecer a
todas as classes d a so cied ad e m eios fáceis de a c u m u la r c a p ita is”. Foi liq u id a d a em
1 8 7 7 . P o r fim , em 1 8 5 5 , foi f u n d a d a a C a ix a de U n iã o C o m e r c ia l d a C a p ita l d a
B a h ia . V a le d iz e r q u e to d o s estes e stab elecim en to s, q u e se arro g av a m o d ireito de
508 B a h ia , S écl lo X IX
e m itir letras d e créd id o e ordens de p agam en to , fu n cio n avam m ais ou m enos clan d es
tin am en te. A m aio ria desses bancos só teve suas ativ id ad es legalizadas por volta de
1 8 6 0 , q u an d o foi feita a refo rm a b an cária através d a ch am ad a Lei dos E ntraves.38
P ro liferaram assim — até m esm o em povoados do R ecôncavo, com o C acho eira,
N azaré, V alen ça c S an to A m aro — in stitu içõ es b an cárias39 que, em sua m aioria,
tin h am um cap ital flu tu a n te e q u e, a p retexto de ‘prestar assistên cia às classes lab o rio
sas', visavam a tr a ir o d in h e iro de p eq u en o s p o u p ad o res para u tiliz á-lo em operações
esp eculativas. À fren te desses estab elecim en to s en co n trav am -se todos os grandes no
m es da ép o ca: Jo sé A g o stin h o S alles, Jo a q u im Jo sé R o d rig u es, L uiz A n tô n io V ian n a,
Jo aq u im d e C astro G u im arã es, Jo a q u im Jo sé T e ix e ira Leal, F rancisco T eix eira R ibeiro
etc. Essa febre aca b o u p o r ter efeito s perversos. A e n tra d a em circu lação de enorm es
q u a n tid ad e s d e p ap éis fid u c iá rio s, se por u m lad o a liv iav a os m eios com erciais no
tocanre às suas o b rigaçõ es m a is u rg e n te s, p o r o u tro fo m en tav a a inflação, in du zin d o
a a lta dos preços dos p ro d u to s de p rim e ira n ecessid ad e. A s m aio res v ítim as eram com o
sem pre os m ais p o b res, q u e , sem acesso ao créd ito b a n cá rio , estavam excluídos da
esp eculação q u e favo recia os m ais p ro vid o s. P ara eles, desen vo lveu-se um crédito
u su rário , p raticad o por p a rtic u la re s e d e n u n c ia d o pelos co n tem p o rân eo s, com provado
por nu m ero so s in v e n tá rio s post m ortem , q u e in d ic a m g ran d e n ú m ero de devedores
para u m ú n ico cred o r, en v o lv en d o em p réstim o s de som as m ed ío cres.
N a v erd ad e, essa m u ltip lic a ç ã o de in stitu iç õ e s b an cárias era estim u lad a pelo pró
p rio governo im p e ria l q u e, co m o a u m en to dos agen tes de em issão, su p u n h a forta
lecer a c irc u la ç ão m o n e tária . M a s, a n te o caos criad o p o r esses estab elecim en to s na
circu lação fid u c iá ria , a p a rtir de 1 8 6 0 o E stado a d o to u n o va p o lítica. A faculdade
de e m itir p a p e l-m o e d a g a ra n tid o pelo p o d er p ú b lico ficava reservada a u m a ú nica
in stitu iç ã o regio n al. A ssim , o B an co d a B ah ia , fu n d a d o em 1 8 5 8 , conservou o d i
reito d e e m itir, q u e m an tev e até 1 8 9 8 , q u a n d o a ele ren u n cio u p o r in iciativ a pró
p ria. O ob jetivo p ro clam ad o desse b anco era “aten d er às reclam ações locais e ser
v erd ad eiram en te u m in stru m en to p o p u lar (sic) do d esen vo lvim en to e do progresso
de sua te rra ”.40 Fora fu n d a d o com u m c a p ita l de 8 .0 0 0 :0 0 0 de réis, dos quais
4 .0 0 0 :0 0 0 foram im e d iata m e n te sub scrito s. O decreto q u e o crio u o autorizava a
e m itir bilh etes de valo r su p erio r a dez réis, de m odo q ue suas em issões favoreciam
exclusivam ente as classes p ro d u to ras e m ercan tis. A líás, os ben eficiários dos em prés
tim os do Banco da B ah ia eram o governo p ro vin cial e as grandes firm as com erciais,
pois até a a g ricu ltu ra de exportação era ex clu íd a.
A m á o r g a n iz a ç ã o d o s in s t r u m e n t o s d e c r é d it o fez c o m q u e , a p e s a r de s u a m u l
t ip lic a ç ã o , a p r o v ín c ia d a B a h ia c o n t i n u a s s e a se re s s e n tir d e u m a falta c r ô n ic a de
c a p ita is , s o b r e tu d o nas d u a s d é c a d a s q u e p r e c e d e r a m a p r o c la m a ç ã o d a R e p u b lic a .
G o es C a l m o n , u m b a n q u e ir o , e sc re v e u e m 1 9 2 3 : “I n f e liz m e n te , n o s c e n tro s p r o d u
tivo s esta o b r a m e r it ó r ia d c d if u s ã o d o c r é d it o c o m e r c ia l e a g r íc o la fra ca sso u o
q u e d e m o n s t r a c o m o o c r é d it o a in d a e ra p o u c o d e s e n v o lv id o n a B a h ia d o in íc io d o
século XX.41
J j a r o V I J K : ° t 1d ia x o d o s H o kíems que P ro d u zia m e T r o c av a m
509
M e io s C o m e r c ia is d e P agam ento
O uso da letra de câm bio ou letra de crédito era m uito difundido. Era um meio
de p agam en to côm o do, po r poder ser transferido à ordem ou endossado, o que o
tornava n ego ciável, e p ela g a ra n tia quase plen a de quitação no vencim ento, A letra de
câm bio p o d ia ser à v ista ou estip u lar prazos, de até vários meses. No vencim ento,
todos os sig n atário s (sacado r, endossante, sacado) eram solidariam ente responsáveis
em face do p o rtad o r do títu lo . Este p o dia, aliás, efetuar um a outra operação, o
recam bio , q u e co n sistia em em itir u m a nova letra em nom e do sacador ou de um dos
endo ssan tes, por m eio d a q u a l reem bolsava ao m esm o tem po o prin cipal, os juros e as
despesas legais d a letra, segu n d o a taxa do cam bio no m om ento. Nesse caso, porém,
a letra de cam b io d ev ia ser aco m p an h ad a de um docum ento firm ado por um corretor
ou por dois co m ercian tes, in d ican d o o nom e do sacado e o preço de recam bio a que
o títu lo fora n ego ciad o . Q u an d o o sacado era u m endossante, a letra de recam bio devia
ser aco m p an h ad a tam b ém de um do cu m en to q ue atestasse a taxa do câm bio da praça
em q u e era p agável, a taxa do câm bio no lo cal onde fora sacada e naquele onde se fizera
o reem bolso.
A lém deste, o co m ercian te b rasileiro disp u n h a de três instrum entos de paga
m ento : a ‘le tra d a te rra ’, id ê n tic a à le tra de câm bio, m as com curso restrito aos
lim ites d a p ro v ín cia; as notas prom issó rias, com vencim ento prefixado, e as notas à
o rdem , tam b ém ch am ad as notas de crédito m ercan til e pagáveis em prazo fixo. Es
tes dois ú ltim o s in stru m en to s tam bém só tin h am curso na provín cia em que eram
em itid o s.42
P ara c o m p letar o q u ad ro do fin an ciam en to das operações com erciais, falta m en
cio n ar a p o ssib ilid ad e que tin h am os com erciantes de recorrer aos confrades, fosse por
em préstim os, fosse por cauções. O em préstim o ‘m útuo se dava quando o bem em
prestado p o d ia ser con siderado u m gênero m ercan til ou um objeto destinado ao
com ércio, e nem sem pre a operação envolvia pagam ento de juros. Assim , um comer
cian te a que faltava alg u m a m ercado ria podia facilm ente rom á-la em prestada de um
confrade; podia ain d a, num m om ento de falta de liquidez, tom ar emprestados artigos
facilm ente negociáveis. A caução era tão-som ente um a garantia suplem entar em negó
cios delicado s. Q u alq u er pessoa que tivesse bens podia ser fiador de um com erciante.
Era com um tam bém usar penhoras com o garantia de um a obrigação com ercial: um
com erciante podia hipotecar bens im obiliários ou receber, em depósito, dinheiro que
terceiros lhe c o n fi a v a m para uso em operações com erciais. ^
N u m a econom ia em que a.circulação fidu ciária era deficiente, a moeda escriturai
desem penhava papel essencial. Foi graças a ela que o m undo do comércio pode seguir
MO B a h ia , S é c u l o XIX
prosperando, sem a trib u ir, aliás, gran d e im p o rtân cia às instituiçõ es de credito. Estas
eram reclam adas sobretudo pelas classes produto ras, q ue se ju lgavam lesadas pela
p eren idade de práticas herdadas da época co lo n ial. Dc fato, em bora títulos à ordem ou
d e crédito nao fossem m oedas o ficiais, era com essa m oeda escriturai que os grandes
com erciantes fin an ciavam a produção agríco la. .
Form ou-se assim um circu ito m o n etário não ap aren te, m as de grande im por
tân cia, cuja análise m ostra q u e, no caso do B rasil, as em issões oficiais de moeda
não refletem fielm en te a v id a eco n ô m ica. E n tretan to , a im p o ssib ilid ad e de aferir o
volum e e o ritm o de circu lação dos títu lo s de com ércio não m e perm ite traçar com
nitidez o papel da m o ed a e scritu ra i, nao só nas trocas m ercantis com o no crédito
ao con sum idor.
A M o e d a e su a C ir c u la ç ã o
acusavam de p raticar tráfico de negros e de falsificar moedas. Desta últim a acusação, ele
sc d efen d eu dizendo: “Q uando havia na Bahia cobre bem am oendado, cujo ágio sobre
o cobre d e m a q u alid ad e era de 4 0 % , o suplicante, infringindo as ordens da época,
operou a transferência entre a C orte e esta Província de cerca de 240 contos de réis. M as
rratava-se d a m elhor m oeda do Im pério, e esta foi entregue em mãos próprias à presidên
cia [da P ro vín cia]! Será a isto que se cham a traficar com m oeda falsa? Não, Alteza, jam ais
tal espécie de tráfico m aculo u m in h a probidade.”53 Seja com o for, realizara-se sem
d u vid a u m a operação especulativa, porque os fundos tin h am sido transferidos ilegal
m ente, com o o p róprio Pedroso de A lb u qu erqu e o confessou.
N ão se sabe o v o lu m e d a m o ed a falsa de cobre que circu lo u na B ahia. Segundo
u m a p etição ap resen tad a em 1 8 2 7 pelos com erciantes locais, o valor conjunto das
m oedas v erd ad eiras e falsas se ap ro x im aria de 3 :5 0 0 a 4 :0 0 0 de réis. M as, no fim do
m esm o an o , falav a-d e d e 5 m ilh õ es, talvez m ais, em circu lação .54 M alograram todos
os estratag em as im a g in a d o s para ‘lim p a r’ a circu lação . Em 1 8 3 4 , o governo im perial
se v iu o b rig a d o a p ro m u lg a r u m a lei p ela q u a l a m oeda de cobre da B ahia não teria
m ais curso no Im p ério ; só a m o ed a c u n h ad a no R ío de Jan eiro seria reconhecida
co m o o fic ial. F o ram en tão reco lh ido s 3 1 .2 2 5 :0 0 0 de réis em m oedas de cobre.55
N esse m esm o an o , a T e so u ra ria do M in isté rio da Fazenda d a B ah ia ordenou à A lfân
d e g a q u e só recebesse em m o ed a de cobre a m etad e d a som a devida por aqueles que
p agavam im p o sto s a lfan d eg á rio s, p o r cau sa d a falsificação . D epois dessa lei, nenhum
p ag am en to foi feito nessa m o ed a, o q u e iev a a su p o r q u e to d a a m o eda de cobre em
c irc u la ç ão era fa lsa .56
D esn ecessário d iz er q u e o d in h e iro falso co n tin u o u circu lan d o , para bem dos
esp ecu lad o res e p reju íz o d e g ran d e p arte d a p o p u lação , q u e usava essa m oeda de baixo
v alo r n ão só em suas co m p ras com o p ara fazer suas even tu ais econom ias. O clim a de
d esco n fian ça fico u tão pesado q ue n in g u ém m ais q u eria ven der a créd ito , nem aceitar
o p ag am en to de d ív id a s, o q u e elevava os preços dos artigos de p rim eira necessidade.
O s p ró p rio s co m ercian tes afirm av am : “O s soidos das tropas, dos artífices e dos em pre
gados p ú b lico s em b reve serão m u i in ad eq u ad o s a seu su sten to .”57 Em 1831, na
te n ta tiv a de co m b ater a d esco n fian ça geral, as au to rid ad es m u n icip ais acharam por
bem b aix ar u m a p o stu ra nos segu in tes term os: “T odo aq u ele q ue recusar as m oedas de
cobre d e 8 0 , 4 0 , 2 0 e 10 réis será m u ltad o p rim eira vez na q u a n tia de 3 0 .0 0 0 réis e
sofrerá o ito dias de p risão .” O s rein cid en tes p agariam m u lta de 6 0 .0 0 0 réis, acrescida
d e trin ta d ias de prisão. Pela m esm a postura, só p o diam ser recusadas com o falsas as
peças im p erfeitas em seu cu n h o ou com peso 1/8 m en o r q u e o legal, especificação
q u e d a ria lu g ar a contestações sem co n ta e sem fim .
A ssim , d u ran te seus trin ta p rim eiro s anos com o nação independente, o B rasil
sofreu os efeitos desastrosos dessa circulação ilegal, q u e solapava sobretudo o orçam ento
das classes p o p u lares. D ura v id a a d aq u ela gente, ob rigada a enfrentar, por um lado,
o ab astecim en to precário e, por outro, um sistem a de crédito e um m odo de circulação
d a m o ed a q u e estim u lav am os com erciantes a especular.
B a h ia . S êcato XIX
D a d o s so bre o M o v im e n t o C o m e r c ia l
As poucas séries de in d icad o res eco n ô m ico s d isp o n íveis sobre a B ahia no século XIX
referem -se essen cialm etn e ao co m ércio exterio r e com outras províncias de 1808 a
1 816 e d e 1 85 0 a 1888. E m bora não possam fu n d ar um a análise global da situação
econ ôm ica e fin an ceira da P ro v ín cia, dão um a visão ap ro x im ativa da circulação das
m ercad orias nos m ercados in tern acio n a l e lo cal, revelando os im passes criados pelas
estrutu ras p ro d u tiv as. A co m p aração de d ad o s fragm en tad o s dos dois períodos é tam
bém reveladora.
Os dados sobre as trocas co m erciais d a B ah ia entre 1 80 8 e 1816 abrangem ,
além do in te rcâm b io in te rn a c io n a l, as trocas com o R io G rande do S u l, antigo par
ceiro d a p ro v ín cia, q u e lhe fo rn ecia so b retu d o carn e-seca e farin h a de m andioca.
N esses o ito anos, a b a lan ç a co m ercial d a B ah ia ap resen to u um d éficit constante,
p rin cip alm en te nas trocas com a E uropa — com destaque para Portugal — e a África,
seus p rin cip a is p arceiro s.
TABELA 87
B a la n ç a C o m e r c i a l d a B a h ia , 1 8 0 8 -1 8 1 6 (em c o n t o s d e r è i s )
Goa 9 10 12 26 23 36 13
Fonce: Ca th cri nc Lugar, The M erchant C om m unity o f Salvador, Bahia, 1780-1830, p. 112.
Em 1 8 0 8 , com a ocu p ação do territó rio p o rtuguês pela França, o com ércio da
B ahia com o restante d a E uropa (7 3 5 :0 0 0 de réis em exportações e 8 1 5 :0 0 0 em
im portações) foi bem m aio r do q ue com P ortugal (8 0 :0 0 0 de réis em exportações e
4 7 6 :0 0 0 cm im po rtaçõ es), j á no ano segu in te a M etró p o le foi responsável por 44,5%
das exportações européias para a B ah ia, en q u an to o valor das exportações baianas para
Portugal cra tam bém quase m etade do valor exportado para toda a Europa. M as essa
retom ada foi cu rta: dc 1810 a 1816, as exportações portuguesas foram em média
2 2,6% das exportações da Europa para a B ahia. Esse declínio corrobora o que foi dito
sobre a sub stituição dos negociantes portugueses por estrangeiros, sobretudo ingleses.
A perda sofrida pela praça com ercial de Salvador com a partida dos portugueses
afetou o fin an ciam en to da produção agrícola, mas não reduziu as importações a
Bahía. A lterou-as: ao passo que a balança com ercial com os dem ais países europeus
passou a ser d eficitária a partir de 1808, a Província passou a ter superávit nas trocas
JJ\"R o V I - O C o t id ia n o
com P o rtu gal, exceto em 1808 e 18 00, anos da ocupação francesa. Entre 18 10 e 18 16,
as exportaçocs da B ahia para a M etrópole foram 7 0 ,3 % do total exportado para a
E uropa, sin al do q u an to P ortugal d ep en d ia do Brasil, mas tam bém do pouco interesse
das outras nações européias pelos produtos baianos.
A surp resa nesses dados é o volum e das transações com o Rio G rande do Sul, que,
entre 1S0S e 1 8 1 6 , representaram nada m enos que 14,8 e 1 1,6% do total das expor
tações e im po rtaçõ es b aian as. A b alan ça com ercial baiana era deficitária nesse inter
câm bio, exceto em 1808, em q ue houve um sup erávit de 1 5:000 de réis. Surpreende
tam bém saber q u e, n aq uele in ício do século XIX, a B ahia ainda m antinh a relações
com o E xtrem o O rien te, em bo ra as trocas com G oa fossem insignificantes. Já o
com ércio com a Á frica (C o sta d a M in a , A ngo la, B enguela e São T om é) era deficitário:
a im p o rtação de escravos co n tin u av a pesando m uito na balança com ercial.
C o m relação ao p erío d o 1 8 1 6 -1 8 5 0 , a carên cia de dados é com pleta. Com o teria
evo luíd o a situ ação a p artir do in ício da década de 1820, com a balança com ercial
d e fic itá ria e m aio res im p o rtaçõ es do co n ju n to da E uropa que de Portugal? G uerra,
revoltas, p ro b lem as p o lítico s por certo afetaram gravem ente as trocas com erciais, de
sorganizan do a p ro d u ção de bens de exportação e perturbando m ais ain d a os termos
das trocas. A c o n ju n tu ra eco n ô m ica esrava em depressão, com o indica o estudo da
evolução dos preços dos gêneros alim en tares. M as em 1845 houve um a retom ada que
se p ro lo n go u até 1 8 6 0 .59
Para os anos 1 8 5 0 -1 8 8 8 , tem os um a série elab orada pela Fundação de Pesquisas
d a B ah ia sobre o v alo r das exportações e im portações da p ro vín cia.60 Sem dúvida útil,
ela tem o in co n v en ien te de não in c lu ir dados sobre as quantidades de m ercadorias
exportadas e im p o rtad as. A crescentam os o valor das exportações e im portações em
libras inglesas. C o m dados in co m p leto s, a série deve ser u tilizada com precaução,
com o os próprios autores ad vertem ,61 m as ain d a assim fornece um a idéia geral da
evolução da b alan ça co m ercial da B ahia.
S egu ndo esses dados, em 39 anos a balança com ercial da B ahia só apresentou
superávit em cinco: 1 8 5 8 -1 8 5 9 , 1 8 6 2 -1 8 6 3 , 1 8 6 5 -1 8 6 6 , 1 8 6 7 -1 8 6 8 e 1 87 1 -1 8 7 2 .
Os m elhores anos foram 1 8 5 8 -1 8 5 9 e 1 8 6 7 -1 8 6 8 , quando o valor das exportações
excedeu, respectivam ente, em 60% e 4 5 % o das im portações. Só houve dois anos de
eq uilíb rio cm todo o período: 1 8 6 9 -1 8 7 0 e 1 8 7 0 -1 8 7 1 - Nos dem ais, a Bahia expor
tou cerca de 40% menos do que im portou. ^
Im portava-sc, portanto, m ais do que se exportava, mas a análise fica incompleta
por falta dc dados sobre o balanço dc pagam entos, que provavelmente era ainda mais
desfavorável. Por outro lado, o déficit da balança com ercial da Bahia — no final da
década dc 1880 as im portações chegaram a corresponder a 2/3 do movimento comer
cial — m ostra a im portância que, apesar de tudo, a Província conservava como centro
distribuidor de mercadorias importadas.
Entre 18 5 1 e 1 8 7 1 , o valor das exportações esteve, no conjunto, em alta, exceto
de 18 5 7 a 1 8 6 1 , em que ocorreu sensível baixa. O valor máximo nas exportações foi
B a h ia , S fc n o XIX
Im p o r t a ç õ e s B a ia n a s
T axa de C â m b io
P r in c ip a is P r o d u t o s d e E x p o r t a ç ã o
T A B E L A 88
P r in c ipa is P r o d u t o s E x p o r t a d o s p e l a B a h i a , 1 8 5 0 - 1 8 8 9
( % DA PAUTA DE EXPORTAÇÕES)
187 0 -18 7 1 38,8 28,6 2,0 5,6 ' 9,2 5,1 9,1 98,4
TABELA 89 ’
P reços po r T o n e lad a* de P r o d u t o s de Ex po r t aç ã o
(m é d ias m ó v e is t r ie n a is, 1 8 5 2 = 1 0 0 )
TABELA 90
E x p o r t a ç õ e s B r a s i l e ir a s ( % )
TA.BELA 9 1
18 5 2 -18 5 3 . 46 5 5 1 9 34
18 5 5 -18 5 6 42 7 6 4 13 28
18 6 0 -18 6 1 52 8 2 I 18 19
1 8 6 5 -18 6 6 59 3 13 3 13 10
1 8 6 7 -18 6 8 60 2 12 3 13 10
tan to , em 1 8 8 0 —1881 a B a h ía exp o rtav a sete vezes m ais cacau , três vezes e m eia mais
café e q uase o dobro de a çú car q u e em 1 8 5 0 - 1 8 5 1 . O bserva-se, p o r outro lado , que
foram os novos p ro d u to s — cacau e café — q u e m ais gan h aram im p o rtân cia relativa
nas exportações, e isto n u m a progressão m u íto regu lar. O a çú car e até o fum o sofreram
oscilações bem m ais acen tu ad as, o p rim eiro após 1870 e o segu n d o antes.
Fum o, café e cacau eram cu ltiv ad o s po r m ão -d e-o b ra livre, em geral fam iliar,
não assalariada; já o açúcar d ep en d ia exclu sivam en te da m ão-de-obra escrava. A pro
gressão regular dos volum es exportados de café e cacau (e, após 1 8 6 7 -1 8 6 8 , de fum o),
m ostra que esses produtos tin h am boa penetração no exterior. Por que, então, os
senhores dc engenho não su b stitu íam o açú car por eles, q uando as condições clim áti
cas e pedológicas do R ecôncavo p em itiam seu cu ltivo , pelo m enos em terras que não
fossem dc massapê?
O ra, quando sc discutiram nos anos 1850 os problem as da com ercialização do
açucar, jam ais se cogitou dc diversificar a produção do Recôncavo. O que se defendia
(sem jam ais tentar pôr em prática, depois) era a m ecanização, a form ação de engenhei
ros agrônomos e de operários especializados, e até a substituição da m ão-de-obra
escrava por im igrantes assalariados/’3 A prevalência de idéias antigas e o medo da
m udança pareciam paralisar qualquer projeto.
L iv r o V I - O C o t i d i a n o d o s H o m e n s que P r o d u z ia m e T rocavam
521
M as ha o u tro s asp ecto s a co n sid erar, ligad o s tan to à extensão e à q u a lid ad e das
terras co m o à fo rm a da p ro p rie d a d e . C erto s senhores de en g en h o exp lo ravam u m a só
p ro p rie d a d e : se a terra fosse m assap ê, era im p ró p ria para a c u ltu ra do café e do cacau;
por vezes, a ex te n são d a faz en d a não p e rm itia e x p e rim e n tar as novas cu ltu ras ju n to
com a p ro d u çã o d a c a n a -d e -a ç ú c a r. A d e m ais, o ú n ico créd ito d isp o n ível era o forne
cid o peíos n e g o c ia n te s, q u e d ific ilm e n te esp erariam os três a cinco anos necessários
para q u e u m a rb u sto de c a c a u o u de café co m ecem a p ro d u zir. O utro s senhores de
e n g en h o tin h a m v ária s p ro p rie d a d e s, m as estas eram posse co letiv a de diferentes ra
m os d e u m a m e sm a f a m ília e o n ú m e ro de co -p ro p rietário s não facilitav a a to m ad a
de d ecisõ es d e v u lro . A lém d isto , as g ran d es u n id ad e s p ro d u ziam a custos m enores e
com m a io r r e n ta b ilid a d e , m esm o q u e os lu cro s fossem rep artid o s. M as o q ue atuava
com m ais fo rça so b re to d o s era, p o r u m la d o , a cren ça d e q ue o R ecôncavo só se
p restav a à c u ltu r a d a c a n a -d e -a ç ú c a r e, p o r o u tro , a co n vicção de q ue a m ão-de-ob ra
a ssalariad a, s o b re tu d o e u ro p é ia , lo g o c o n q u ista ria a posse d a terra, p o r força de sua
te n a c id a d e e b o a o rg a n iz a ç ã o no tra b a lh o . O ra, era nessa posse q ue resid iam o poder
e o p restíg io d essa c a te g o ria . O s n e g o cia n tes, g raças às suas p ró p rias lim itaçõ es, refor
çavam essa in é r c ia e a ssim se c o n tin u a v a a p la n ta r can a, apenas can a, sem con siderar
alte rn ativ as.
E x po rta çõ e s para o Ex t e r io r
O C o m é r c io d a B a h ia c o m o E s t r a n g e ir o e a s O u t r a s P r o v ín c ia s
TABELA 9 2
1 8 5 0 -1 8 5 1 1 4 ,5 - . - -
1 8 5 5 -1 8 5 6 1 3 ,6 1 4 ,7 - -
1 8 6 0 -1 8 6 1 6,8 1 1 ,4 - -
1 8 7 0 -1 8 7 1 1 0 ,9 1 4 ,4 8,1 9 ,5
1 8 7 5 -1 8 7 6 8 ,4 12,0 4 ,4 5 ,0
1 8 8 0 -1 8 8 1 6,6 11,6 2 0 ,3 7 ,6
1 8 8 6 -1 8 8 7 4 ,1 1 5 ,9 1 3 ,3 5 ,4
Fonte: Adaptado de A in serçã o d a B ahia n a evolu çã o nacional, p, 35, 40, 45 e 50 (Anexo estatístico).
O D in h e ir o d o s B a ia n o s
C A PÍT U LO 28
O M ercado de T rabalh o
527
52S B ai u a , S é c u l o X I X
o pretexto de que eram incapazes e, com o tem po, poderiam tornar-se exigentes, A
produção só podia ser concebida num a relação de trabalho de tipo escravista, o que já
não era viável.
A aversão do baiano ao trabalho agríco la, sobretudo na can a-d e-açú car, está m uito
ligada a esse tipo de relação. A ssalariado ou m eeiro, o ag ricu lto r, à força de trabalhar
lado a lado com escravos, sen tia-se recon duzido à escravidão. P referia viver na m iséria
que se subm eter a um p ro p rietário de m e n ta lid ad e escravista. Após a A bolição, m uitos
escravos co n tin u aram a trab alh ar com seus ex-senhores, m as n u m novo regim e: traba
lhavam quatro dias da sem an a p ara os patrões e três dias p ara si m esm os, quebrando
um ritm o de trabalho antes co n sid erad o in d isp en sável no cu ltiv o d a cana-de-açúcar.
, Para pagá-los com o trabalh ado res agríco las, os an tigo s senhores só p o d iam contratar
1/3 ou até 1/4 dos seus cx-escravos.
N ão se sabe q u al era o salário dos trab alh ad o res agríco las. A ntes d a A bolição,
porém , nenhum senhor de en gen h o parece ter p raticad o a co n tratação de m ão-de-obra
assalariada. A m an u ten ção de relações de trab alh o dc caráter escravista foi sem dúvida
responsável por p arte dos p ro b lem as en fren tad o s p ela a tiv id a d e açu careira a partir de
m eados do século X IX , N o c o n ju n to d a P ro v ín cia, trab alh o liv re e escravo coexistiam
nas zonas ru rais. M as no R ecôn cavo p red o m in av am relações d e tip o escravista, en
quan to na eco n o m ia p o uco m o n etizad a do S ertão as relações eram diferen tes, ainda
que em gran de p arte d itad as pelos chefes lo cais. S e ja com o for, a gen te das zonas rurais
v ivia m elho r q u e a das cid ad es. Q u ase sem p re p o d ia p ro d u z ir seu p ró p rio alim en to e,
d ian te de flagelos o casio n ais, p o d ia fu g ir. O v erd ad eiro S ertão , m u ito pouco povoado,
tin h a terra d isp o n ível e, nas regiões m ais p ró xim as do lito ra l, u m p ed acin h o de terra
já g aran tia m an d io ca e a lg u m a b an an a p ara o su sten to d a fa m ília.
A D upla E st r u t u r a d o T rabalh o U r b a n o :
M ã o - de- O bra L iv r e , M â o - d e - O b r a E sc r a v a '
Em Salvador, a situ ação p arecia à p rim eira vista d iferen te d a do A greste ou m esm o do
Recôncavo. Q u e m ercado de trab alh o a cap ital oferecia a seus h abitantes? A questão
raram ente aparece nas fontes d a época, pois se tratava de um m ercado não produtivo,
na m edida em que a in d ú stria era in cip ien te e a econ om ia da região era em inen tem en
te agrícola. M as, se a produção in d u strial era m ín im a, a construção civil pública e
privada — freqüentem ente esqu ecida — teve na S alvad o r do século XIX considerável
expansão. Por outro lado, sede de intensa ativ id ad e com ercia! — im portação, expor
tação e red istrib uição regional de m ercadorias — e centro ad m in istrativo da Província,
a cidade tinha m uitos e apreciáveis em pregos a oferecer.
A estrutura e os m ecanism os desse m ercado de trabalho interessam por diversas
razões. Com o na zona rural, mas de m odo m uito m ais acen tuado -— e este é um ponto
essencial , havia na cidade dois m ercados de trabalho: um para brancos, m ulatos e
L i v r o V II - O D i n h e i r o dos B a ia n o s
531
negros ivres, e o u tro exclusivo para escravos. Essa coexistência gerava problem as tanto
^fe oferta com o dc d em an d a dc rnao^de-otara
À p rim eira vista, a oferta de m ão-de-obra em Salvador era sem elhante à de um
m ercado em que nao houvesse trabalho escravo: hom ens livres e escravos ofereciam
igu alm en te sua força de trab alh o , in d iv id u al ou coletiva, negociavam contratos e
eram rem u n erad o s da m esm a m aneira. Q uase sem pre eram contratos verbais, pois,
com o verem os, só se en co n tram atos registrados em cartórios ou outros órgãos com
petentes q u an d o estavam envolvidos trab alh o s de vulto ou contratações de serviços
por longos p erío d o s. H av ia, no en tan to , u m a diferen ça fu n d am en tal entre o trabalho
dos hom ens livres e o trab alh o dos escravos: estes eram obrigados a repassar, a seus
donos, parte su b sta n cial de seus ganh os.
N a re a lid a d e , as coisas não eram sim p les, com o se pode visu alizar a partir de
alguns casos rep resen tativo s. Em caso de co n co rrên cia en tre um grupo de trabalhado
res livres e um sen h o r q ue alu g av a escravos, este não tin h a d ificu ld ad es para se enten
der d ire tam e n te com o em p reg ad o r (co n ven to , h o sp ital, ad m in istração p ú b lica ou um
sim ples p a rtic u la r), co n seg u in d o o trab alh o para seus hom ens, em detrim ento de
trab alh ad o res livres iso lad o s ou recém -alfo rriad o s. T an to m ais que, no caso de traba
lho de certa en v erg a d u ra , o sen h o r de escravos p o d ia atu ar tam bém com o m estre-de-
obras, m e stre-p ed reiro , m estre-m arcen eiro etc.
, Por o u tro lad o , os escravos — e, por extensão, os alforriados — eram proibidos de
exercer alg u m as fu n çõ es a d m in istra tiv a s ou p ú b licas, m esm o as m ais h u m ildes, como
as de so ld ad o ou p o lic ia l (essa in terd ição foi desresp eitad a nas guerras da In d ep en d a
da B ah ia e do P a ra g u a i, m as nesses casos o serviço m ilita r assegurava a alforria). Em
certos p erío d o s, por força d a co n ju n tu ra , o exercício de algun s ofícios era tam bém
p ro ib id o à m ão -d e-o b ra escrava. Em 1 8 5 0 , por exem plo, escravos e estrangeiros foram
proibidos de trip u la r saveiros, usados na navegação de cabotagem . Para in viab ilizar sua
co n tratação , as au to rid ad es p ro vin ciais im p u seram u m a taxa de 1 0 0 .0 0 0 réis anuais
por escravo em b arcad o , o q ue representava p arcela sub stancial do aluguel dos serviços
do escravo (cerca de 3 6 0 .0 0 0 réis por ano) e pelo m enos 10% do seu preço. Em 1861,
os estivadores do porto de Salvad o r protestaram ju n to ao presidente da Província
contra o ingresso de um núm ero crescente de escravos na ativ id ad e, o que considera
vam p reju d icial aos trab alh o s portuários. De fato, isso estava proibido desde 1850,
mas as perturbações ocasionadas pelo cólera-m orbo tinh am provocado um relaxam en
to no cu m p rim en to d a norm a, "de tal m odo que os cidadãos pais de fam ília se viam
sem em prego, q u an d o os senhores poderiam igu alm en te u tilizar seus escravos que
aliás não têm f a m ília — com o dom ésticos ou gan h ado res’ em terra firm e", declara
vam os requeren tes, que foram aten d id o s.10 No m esm o espírito, os poderes locais
d ecid iram , em 1848, não m ais u tilizar escravos nas construções públicas, ficando o
setor, a partir de então, in teiram en te reservado aos trabalhadores livres.11
Esses exem plos m o s tr a m a com plexidade do problem a. Refletem tam bém a luta
surda que sc cravou ao longo dc todo o século entre os trabalhadores livres e os
532 B a h ia , S é c u l o XIX
pro p rietário s de escravos. A an álise dos in v en tário s post mortem m ostra que, até por
volta de 1870, h avia p ro p rietário s de escravos em todas as catego rias da sociedade.
M u ito s ho m ens Üvres e alfo rriad o s v iv iam do a lu g u e l de escravos. O ra, o m ercado de
trabalh o era lim itad o . As m o d ificaçõ es foram len tas. S eria necessário m u ltip licar as
pesquisas, fazendo cortes cro n o ló gico s — antes e depois de 1 8 5 0 , por exem plo — para
ten tar ap reen d ê-las. S eria ú til sab er a p a rtir de q u an d o o trab alh o livre se tornou um
im p erativo para a so cied ad e b a ian a, o u , o q u e d á no m esm o, a p artir de q uand o o
trabalh o escravo d eixo u de ser ren táv el, passan d o a ser g rad ativ am en te su b stitu íd o , de
tal m odo que, em 1 8 8 8 , a A b o lição veio ap en as co n firm ar u m m o vim en to iniciado
várias décadas a n te s .12
T rab alh o liv re e trab alh o escravo ap resen tav am traços co m u n s, m as cada um tin h a
suas características p ró p rias. São essas sem elh an ças e diferen ças q u e m e perm itirão
m elh o r ex p licar o q u e era o m ercad o de trab alh o n a cid ad e de Salvador.
A O f e r t a df. E m p r e g o
N os setores p u b lico e privado, a construção civil oferecia bom núm ero de em pre
gos aos h ab itan tes de Salvado r, sobretudo na segunda m etade do século XIX, quando
a m u n ic ip a lid a d e em p reen d eu m uitas obras. O governo da Província era tam bém um
em p regad o r co n sid e rá v e l.1" M as. a ju lg a r pelas reclam ações constantes da população,
as ofertas de em p rego na con stru ção civil não correspondiam à dem anda, que partia
sobretudo da p o p u lação livre d a cid ad e. Esta enfrentava a concorrência constante da
m ão -d e-o b ra escrava, am p arad a por seus proprietários, que m uitas vezes estavam à
frente de p eq u en as em presas ligad as à construção. Sob a rubrica ‘Artes e ofícios’, o
A lm a n a q u e de 1860 d á u m a lista de m estres artesãos em ativid ad e em Salvador: seis
carp in teiro s, q u atro en talh ad o res de m ad eira, sete entalhadores de pedra, 29 m arce
neiros, cin co p ed reiro s e dezessete pin tores. So m ariam 68 m estres artesãos, m as pro
v avelm en te só estão m en cio n ad o s os m ais im p o rtan tes. N ão há registro do núm ero de
escravos q u e c ad a u m tin h a a seu serviço, m as, recorrendo novam ente aos inventários
post m ortem , vejo q u e seria algo en tre cin co c dez. A ssim , no con jun to dos ofícios
ligados à co n stru ção , os m estres artesãos citad o s no A lm ana que disporiam de um a
m ão -d e-o b ra cativ a de 3 4 0 a 6 8 0 escravos artesãos. Esse n ú m ero , em bora m odesto, era
su ficien te p ara afetar a d e m a n d a de em pregos no setor. Q u an to ao A rsenal da M ari
nh a, q ue até a d écad a de 1 8 3 0 em p regav a cerca de tre-zentos artesãos livres, parece ter
reduzido aos p o uco s su a a tiv id a d e , pois em 1860 tin h a apenas onze mestres contra
tados; nao se sabe q u an to s sim p les artesãos ain d a em p reg av a.17 A decadência dessa
in d ú stria d e co n stru ção n aval, o u tro ra co n sid erável, fez secar u m a boa fonte de em pre
gos, tan to m ais q ue n ela só trab alh av am artesãos livres.
N ão é possível precisar, p o rtan to , quantos operários trabalhavam na construção civil
e naval no século XIX. M as o exam e das listas eleitorais — docum entos privilegiados,
pois trazem a profissão dos votantes — in dica que cerca de 2/5 dos artesãos da cidade,
distrib uído s por todas as paróquias, exerciam ofícios ligados a essas atividades. Tive
acesso a listas de nove paróquias, entre 1848 e 1862, nas quais aparecem 2 .5 9 7 artesãos
ligados à construção (carpinteiros, m arceneiros, pintores, operários de terraplenagem ,
pedreiros e escultores em m adeira ou em pedra), assim distribuídos: 4 2,7% na Sé, 46,5%
na C onceição da Praia, 6 3 ,1 % na Penha, 4 4 ,8 % no Pilar, 4 1 ,0 % em São Pedro, 41,5%
em Santo A ntônio, 5 0 ,3 % em V itória, 4 9 ,0 % em S an fA n n a e 34,5% em Brotas. Com o
a aprendizagem desses ofícios não era regulam entada, o operário se formava trabalhando
com um m estre, com o aprendiz. Em últim a análise, o que distinguia o mestre do
operário eram os anos de experiência, o dinheiro que teria podido am ealhar para se
estabelecer e, sobretudo, o consenso popular, que não hesitava em cham ar de mestre o
artesão verdadeiram ente com petente, mesmo que ainda fosse escravo.18
A lém dos casos não e s p e c i f i c a d o s , havia os ofícios artesanais praticados por m e
nos de vinte pessoas: relojoeiro, serrador de m adeira, fabricante de mastros, tornei
ro, tam anqueiro, caldeireiro , polidor de m adeira ou de m etal, fabricante de colchões,
gravador em m etal, ferrador, fabricante de baús, seleiro, cordoeiro, encaderna
dor, enfiador, chapeleiro, lapidário, pirotécnico, padeiro, bordador, fabricante de
^>4 B a h ia , S é c l t o XIX
arm as, fab rican te de p a ssa m an aria , cin z e lad o r, tecelão , d o u ra d o r, san te iro , carvo eiro ,
ch o co lateiro , fab rican te de iscas e v io leiro .
Q u an to s artesãos h avia em S alv ad o r em m ead o s do sécu lo XIX? M a is u m a vez as
listas eleito rais são de a lg u m a u tilid a d e , pois rev elam o rd en s de gran d eza. C o m o
vim os, en tre as 6 .9 2 9 pessoas recen seadas nas listas q u e c o n su lte i, 2 .5 9 7 eram artesãos,
o q u e co rresp o n d e a 3 7 ,4 % do c o n ju n to dos v o tan tes das nove p a ró q u ias acim a
citad as. Em sua m aio ria esses artesão s e x erciam os o fício s de a lfaia te, c arp in te iro ,
sapateiro, pedreiro e m arcen eiro ; os m enos representados eram os b au leiro s e cordoeiros.
S eriam esses ofícios exercidos tam b ém p o r u m n ú m ero sig n ific a tiv o de escravos? Os
in v en tário s post m ortem arro lam m u ito s escravos artesão s, m as raros esp ecificam seus
ofícios. E ntre os q u e o fazem , os m ais fre q ü e n te m e n te citad o s são os m esm os que
p areciam c o n cen trar m a io r n ú m ero de artesão s liv res. P o r o u tro lad o , os escravos
n u n ca eram o u riv es, co lch o eiro s, fab rican tes de m astro s ou relo jo eiro s — ofícios
prestigiosos — , m as eram num erosos em ativ id ad es m ais h u m ild es, com o as de toneleiro,
cald eireiro , serrado r de m ad eira e calafate. S eja co m o for, nos ofícios m ais usu ais a
co n co rrên cia en tre livres e cativ o s era a cirrad a .
R esta o setor terciário . N u m a c id ad e tão im p o rta n te d o po n to de v ista a d m in istra
tivo com o S alv ad o r, os em p rego s ligad o s à fu n ção p ú b lic a e aos cargo s a d m in istrativ o s
privados m u ltip lic ara m -se ao lo n go do p erío d o . S e g u n d o V ilh e n a , p o r v o lta de 1800
a b u ro cracia go vern am en tal na C a p ita n ia era co m p o sta por m eno s de q u in h en tas
pessoas, in c lu in d o o ficiais m ilitares (1 8 0 ), fu n cio n ário s do T rib u n a l d a R elação (81 ),
funcionários de repartições fazen d árias, ju d ic ia is e a d m in istra tiv a s (1 2 3 ) e eclesiás
ticos (6 6 ). Em listas eleito rais d esco n tín u a s, ap arecem 9 3 9 pessoas q u e recebiam salá
rios do Estado. O A lm a n a qu e de 1 86 2 a p o n to u 7 5 3 servidores do governo, excetu an
do desse cálculo os oficiais (1 8 6 ‘ho m ens de le f , 4 9 4 fu n cio n ário s e 6 3 eclesiásticos).
N ote-se ain d a que, segundo Jo sé F rancisco S ilv a L im a, em 1841 os funcionários
representavam 1/20 do nú m ero existen te em 1 9 0 6 .19
Para ingressar na ad m in istração , po rém , era preciso ter um m ín im o de instrução e
sobretudo ser livre, o que deixava de lad o im p o rtan te parcela d a população. Para esta,
restavam os diversos tipos de com ércio am b u lan te ou outros trabalhos de rua (tran s
porte, estiva ctc.) que dem andavam sobretudo força física. M as essas atividades -—
como tam bém os em pregos públicos — não podiam ser exercidas por um núm ero
indefinido de pessoas. f preciso ter cm m ente, aliás, que, num a sociedade escravocrata,
a dem anda dc em pregos tende a ser m aior que a o lerta, sobretudo quando é fácil
aum entar o num ero dc escravos, corno ocorreu até 1850. E lícito m esm o perguntar se
certos produtores agrícolas, dian te das dificuldades ligadas à cultura da cana-de-açúcar,
não teriam levado alguns dc seus escravos especializados para trabalhar em Salvador.
Seria, para o proprietário, um a lorm a dc tornar rentáveis as capacidades de sua mão-
de-obra cativa, N a ausência de um verdadeiro setor secundário capaz de m ultip licar as
possibilidades de em prego c dian te dc um setor terciário de dinam ism o bastante
relativo, toda pessoa cm busca dc trabalho via-se num a situação difícil.
L p /r o V U - O D in h e ir o d o s B a ia n o s
$35
O M e r c a d o de T rabalh o p a r a H o m e n s L iv res
e este é u m exem p lo ev id en te d i m m . ; , , - ■
trab alh o h o n esto q u e lhes d a ria o pio c o n d i ^ ^ V1VCm’ pre[erin d ° a oci« id a d e ao
i 1 d ian o para suas fam ílias e os prepararia para
s e . t o r n a i m es.res-d e-o h ras;o ll . p o n c W Q u an t0 . m im , prefir0
obras esco lh id o e n tre os m elho res tra h .lh a d o .e s a um hom em que nao conhece seu
o o e nJO e L jPaz’ Por 1SS° m esm o, de co m an d ar os outros operários ”22
N as listas e le ito ra is ap arecem 6 .9 2 9 profissionais assim discrim in ado s: 281 pro
p rietário s, 1 .2 4 4 c o m ercia n tes, 201 em pregado s no com ércio, 2 2 7 profissionais libe
rais, 1 86 p ro fissio n ais in d e p e n d e n te s’, 4 4 em pregados privados, 7 6 hom ens da Igreja,
189 'h o m en s d a le i’, 5 2 7 fu n cio n á rio s, 143 m ilitares, 2 .5 9 7 artesãos, 881 m arinheiros!
195 a g ric u lto re s e 138 p ro fissio n ais não especificados. É evidente que a população
livre, q u a n d o não c o n se g u ia o b ter u m a sin ecu ra ou u m bom ganho no exercício de um
ofício, p refe ria d e d ic a r-se aos p eq u en o s exp ed ien tes do com ércio am b u lan te, livrando-
se das p esad as im p o siçõ es de h o rário e de carga de trab alh o dos em pregos oferecidos
na c o n stru ção . As m u lh eres m u lata s e negras tam b ém preferiam esse tipo de trabalho
e v in h a m en g ro ssar o n ú m ero dos v en dedo res am b u lan tes que an im avam com seus
grito s as ru as estreitas d a c id ad e.
M as e ra ju s ta m e n te nessas ativ id ad es ligad as ao pequen o com ércio que os traba
lhad ores livres e n c o n tra v a m a a cirra d a co n co rrên cia dos escravos, que, gradativam ente
excluíd o s do e x ercício de certas a tiv id ad es, pro curavam nas ruas um espaço de traba
lho. A d em ais, os escravo s, m o vid o s pelo desejo de co m p rar a própria liberdade, não
recusavam n e n h u m tra b alh o , p o r d u ro q ue fosse, q ue lhes perm itisse am ealhar algum
d in h e iro , to rn a n d o m ais p ró x im a a realização do sonho. Sem dúvida, eram , porém , os
livres q u e tin h a m p o ssib ilid a d e s d e em pregos estáveis e lucrativo s, e não os escravos.
O s E sc r a v o s e o M e r c a d o de T rabalho
Por v o lta de 1 8 7 0 , os escravos, hom ens e m ulheres, ain d a eram m uitos. O recensea
m ento de 1 8 7 2 m o stra q ue 1 1,6% d a p o pulação de cid ad e estavam nessa situação, os
dois sexos se eq ü iv alen d o em núm ero . N a falta de dados precisos, supus que essa massa
tivesse as m esm as características presentes em toda a Província e adm iti que a idade
ativa se situava en tre dezesseis e sessenta anos, chegando então a estim ar que 2/3 desses
escravos eram co n stitu íd o s por gente em idade de trabalhar nas residências de seus
senhores ou, alu gad o s, para terceiros. Entre eles havia negros africanos, negros nasci
dos no Brasil e m ulatos. Cirande parte devia trabalhar na casa dos senhores, pois a
consideração social fundava-se no núm ero de escravos que se tinha a seu dispor. Até
hom ens c m ulheres considerados pobres pela A ssem bléia Provincial possuíam alguns,
sendo isentos d a taxa dc 2 .0 0 0 réis, criada em 1835, que incidia sobre quaisquer
escravos de doze a sessenta anos que morassem no perím etro urbano.
M uitos trabalhavam no mercado da cidade, nos s e r v iç o ;i,m a i^ s £ .p ^ d ^ ç o m o _
dc carea ou lim peza. Até 1850, as m ulheres escravas eram em pregadas como rraba-
B a h ia , S é c u l o XIX
cidade, sobretudo à noite? T eriam todos autorizações escritas de seus senhores? Por
que estes corriam o risco de ver seus escravos fu girem , dando-lh es um a m argem de
in d ep en d ên cia q ue co rresp o n dia a u m a lib erd ad e co n d icio n al? H averia aí u m a estra
tégia dos senhores, q ue teriam in v en tad o u m a v álvu la de escape eficaz con tra eventuais
revoltas in d iv id u ais? A hipótese é b astan te p lau sível q u an d o se con sidera q ue, ao longo
de três séculos e m eio de regim e escravocrata, só se registraram du as tentativas de
revolta de certa m o n ta, am bas frustrad as: a dos A lfaiates, em 1798, e a dos M alês, em
1835. M esm o esses dois m o vim en to s in su rrecio n ais, porém , n u n ca q uestionaram as
relações senhor-escravo e, so b retu d o , tiveram p o uca repercussão, por envolverem pou
cos revoltosos.29 A q u a lid a d e das relações in d iv id u a is era tal q ue se tornava por vezes
d ifíc il d istin g u ir entre d o m in ad o r e d o m in ad o : am bos os parceiros eram com freqüên
cia m u ito d ep en den tes u m do o u tro e estavam sub m etid o s às m esm as im posições de
u m a v id a c o tid ia n a ch eia de percalços.
N o to can te aos escravos do m éstico s — q u e m u itas vezes se co n fu n d iam com os
q ue trab alh av am fora — , o m ais im p o rtan te a d estacar é q u e sua presença era regra.
D esde os m ais ricos aos m ais h u m ild es lares b aian o s, era ao escravo que cabiam certos
trabalhos con siderados d egrad an tes, com o carregar o lixo o u fazer faxina. N as fam ílias
m u ito ricas, tarefas precisas eram d istrib u íd a s p ara u m b atalh ão de servidores: cozi-
n h eiro s(as), lacaios, cam areiras, babás e a m as-d e-leite, cocheiros, m ensageiros, borda-
d eiras, costureiras, lavad eiras, passadeiras. As não tão abastadas tin h am dois a três
escravos, em geral m u lh eres, e m esm o as q ue v iv iam no lim ite da pobreza não raro
tin h am um escravo. Ao q u e parece, esses servidores não receb iam rem uneração algu
m a, mas os q u e co n q u istavam a afeição dos seus senhores p o d iam , quando estes
m o rriam , receber um legado ou m esm o a lib erd ad e. A lém disto, m uitas vezes lhes era
p erm itid o p raticar pequenos negócios pessoais nas horas de folga.
Isto não perm ite in ferir, co n tu d o , q u e os escravos dom ésticos eram privilegiados
em relação aos dem ais, pois os atrito s e vexações d a in tim id a d e perm anente com os
senhores não podem ser esquecidos. Se eram talvez m ais bem protegidos m aterialm en
te, careciam por com pleto da lib erd ad e de m o vim en to . Ó dios e resistências explosivas
nasciam e se desenvolviam entre eles. S eria interessante estudar anúncios de jornais
sobre escravos fugitivos e tentar d eterm in ar a proporção de escravos dom ésticos envol
vidos nesses episódios.30
Em sum a, considerar que os trabalhadores escravos eram m ais protegidos que
os trabalhadores livres é com eter um duplo erro. A inda que seus proprietários fos
sem responsáveis por eles perante o conjunto da sociedade, nao se pode esquecer o
doce gosto da plena liberdade, sonho de todo cativo. Os laços de solidariedade en
tre os escravos eram sem dúvida num erosos, mas nao chegavam a igualar os que
ligavam entre si livres e alforriados, am parados por suas família^, favorecidos pelo
estatuto de hom ens livres, interligados por inúm eras cum plicidades, por pertence
rem à mesma paróquia, ao mesmo batalhão da G uarda N acional ou ao mesmo gru
po de eleitores.
■ L iv r o V U _ o D in h e ir o d o s B a ia n o s
D e f a t o , l i v r e o u s e m i , o t r a b a l h o e m S a l v a d o r se e x e r c i a n o s e io d e u m s i s t e
m a e s c r a v is ta , s e m v e r d a d e ir o m e r c a d o d e sa lá rio s , u m a vez q u e os seto res s e c u n d á
rio e t e r c iá r io s ó p o d ia m a b s o r v e r u m a p a r c e la in s ig n if ic a n te d a m a ssa d e tr a b a lh a
d o r e s . N e s s a s c o n d iç o c s , o s a lá r io , q u a n d o e x is tia , a c a b a v a d e sp ro v id o d e se u c a rá te r
d e d a d o e c o n o m i c o e s o c ia l b á s ic o . A f in a l, q u e p o d e o s a lá r io s ig n ific a r n u m a so
c ie d a d e f u n d a d a n a e s c r a v id ã o ? P o r o u t r o la d o , q u a n d o h a v ia sa lá rio , e m q u e m e d i
d a e le a t e n d i a a s n e c e s s id a d e s d o in d iv íd u o e d e s u a f a m ília em su a v id a c o tid ia n a
n a c id a d e ? ....
CAPÍTULO 29
S a l á r io s e P r e ç o s
S44
i ^ VRQ 1/11 ~ O D i n - h f j r o lx s s B a i a n o s
porque
porque aa ^uocum
w i i m cntaçao
c n n ^ 0 e im nrec ^dificilm'" " P - l - * r• « m a b ilia d * . não sé
I er regulam
qualqu t entação. . " fo rque essas situações não obedeciam
w cucciam
P°r OU' r° Ud°' “ S<™ 5 dc sali™ s que P-dc estabelecer referem-se a operários da
construção ou a cmprcBados dc i„s,i,<liçócs públicas ou privada, que não são bons
indicadores do cusro da produção na economia d a Província no século XIX, que era
essencialmente agrícola, utilizava em larga escala a mão-de-obra escrava e se odentava
para a exportaçao. A ssim , os salários que conhecemos refletem m uito parcialmente a
realidade econôm ica de Salvador num a época em que só um a pequena parte da popu
lação tin h a salário fixo.
M esm o esses poucos privilegiados não tinham emprego estável. O mercado de
trabalho era tao irregu lar que as ofertas de em prego eram , quase sempre, duramente
dispu tad as. A con corrên cia entre hom ens livres e escravos, em particular, era acirrada.
A falta de setores secundário e terciário bem estruturados, o aum ento da população e
o increm en to m ais que proporcional das alforrias (entre 1840 e 1880 esnma-se em
2 2 .0 0 0 o n ú m ero de alforriados, na proporção de um homem para duas mulheres)3
tornavam o m ercado relativam ente rígido, engendrando um grave e crônico subemprego,
agravado pelo gran de núm ero de dias santos ou feriados, em que não se trabalhava.
F in alm en te, com o os assalariados se concentravam nas obras públicas e na construção,
o trabalho era in terro m p id o ao sabor das estações: de abril ao final de agosto, meses de
chuvas inten sas, m u itas vezes os canteiros paravam .
D iante deste q u ad ro , pode-se m esm o falar de m ão-de-obra assalariada em Salva
dor? E se falam os de salário, que valor atrib u ir, por exem plo, ao pagam ento por dia de
serviço, que nos interessa particularm ente? De fato, há grande diferença qualitativa
entre o p agam ento de um trabalhador por dia ou por mês, ou ainda por ano, sobre
tudo q u an d o são m uitos os dias em que não há trabalho e em que, porranto, o diarista
não gan h a. A rrisco-m e a um cálculo: som ando os 52 dom ingos, os vinte dias das
m aiores festas religiosas e os oito dos feriados civis, temos oitenta dias; se a isto
acrescentam os os dias em que a chuva im punha a redução ou a cessação das atividades
— 3 5, em m édia — , chegam os a 115 dias; as diárias recebidas não passavam, assim,
de 2 50 por ano. A divisão do total dessas 250 diárias por 365 é que perm ite avaliar a
q u an tia efetivam ente recebida por cada um. Convém portanto ser prudente e atribuir
um valor m uito relativo às cifras dos salários na Bahia. Mesmo assim vale a pena
analisá-las, cm especial porque isto dá uma idéia geral das flutuações que esses paga
mentos sofriam . A dem ais, a com paração dos salários com os preços dos produtos
alim entares de prim eira necessidade c um indicador dos níveis de vida na Salvador do
século XIX, cuja população era, cm grande pane, pobre ou mesmo indigente.
Com o já expus, a oferta dc bens de consum o cm Salvador, controlada por
oligopólios, era d e ficie n te c irregular; a moeda circulante e o crédito eram escassos.
D iante desse quadro, instituiu-sc um sistema oficioso dc crédito privado, que assumia
duas formas principais: venda a prestação pelos varejistas e empréstimos entre pessoas
B a h ia , S é c u l o X IX
físicas, a taxas q u e deviam ser superiores aos 6 ,1 5 % praticados pelos estabelecim entos
oficiais, pois eram q u alificad as de u su rárias pelos contem porâneos. C ertam en te eram
os m ais m al rem unerados que se su b m etiam a tais taxas. V o ltarei a este ponto adiante.
Por ora, quero destacar que, nas catego rias sociais m enos favorecidas, era m uito d ifu n
d id a a prática do en d iv id am en to para en fren tar necessidades prem entes do cotidiano.
A descrição q ue ap resen tei até o m o m en to tem por base dados colh idos na docu
m entação q u alitativ a e na h isto rio g ra fia trad icio n al. Interessa-m e agora verificar até
que ponto ela en co n tra co n firm ação em séries estatísticas. Só posso me apoiar em
dois tipos de série: u m a de salário s e o u tra de preços de algun s gêneros alim entares.
Sobre preços dos a lu g u é is, de iten s de v estu ário e outros bens im p rescin d íveis à exis
tência co tid ian a, v ejo -m e, lam en tav elm en te, sem q u alq u er in d icação . F altam tam
bém séries sobre o v o lu m e d e gên ero s d e su b sistên cia e outros bens de consum o que
circulavam no m ercado de S alv ad o r, assim com o séries dos preços dessas m ercadorias
no atacado e o v o lu m e d a circu lação m o n etária . Essas carên cias se devem não só à
falta de estatísticas p u b licad as m as, so b retu d o , à falta de d o cu m en to s prim ário s. O
h isto riad o r é forçado à m o d éstia: preços de alim en to s e v alo r de salários — dados
econôm icos po r certo fu n d a m en ta is, pois p erm item en trev er as con dições m ateriais
d a v id a d e u m a p arte dos b aian o s, por red u zid a q ue seja — não podem tu d o expli
car. R esta-m e v erificar, com a precisão po ssível, o n ív el dos salário s percebidos por
p a n e dos b aian o s, os preços de alg u n s alim en to s básicos e, po r fim , o com p ortam en
to dos salários em face das flutuações dos preços. Isto talvez p e rm ita delin ear m elhor
a c o n ju n tu ra eco n ô m ica d a cid ad e, até o m o m en to ab o rd ad a de m a n eira puram ente
q u alitativ a. A este respeito, p o rém , tu d o o q ue se p o d e fazer é aven tar hipóteses, e
com extrem a p ru d ên cia.5
Os S a l á r i o s
A p rim eira série de salários, referente ao trab alh o m an u al — especializado e não
especializado — , foi m o ntada a p a rtir de dados co lh id o s nos arquivo s do H ospital da
M isericórdia c do C o légio dos Ó rfãos de São Jo aq u im . E m bora essas instituições
em pregassem artesãos de m ú ltip las esp ecialidades, só pu de estabelecer séries suficien
tem ente longas para seis categorias de operários d a construção: m estres-pedreiros e
pedreiros, m cstres-carpintciros e carp in teiro s e serventes, tan to hom ens como m ulhe
res. Os salários anuais, calculados na base de 2 5 0 dias de trabalho efetivo, aparecem
expressos em mil réis. Encontrei outras profissões discrim in ad as, com o pintor, operá
rio de terraplenagem , entalhador dc pedras, m arceneiro, serralheiro, caldeireiro, col-
choeiro e ferreiro. Os três prim eiros recebiam diárias e os dem ais era pagos por tarefa,
sem que os docum entos as especifiquem suficientem ente. O ganho dos pintores estava
na faixa do dos pedreiros. Q uan to aos operários de terraplenagem e entalhadores de
pedras, sua presença era esporádica dem ais para p erm itir a m ontagem de séries.
L i v r o V I I - O D j n h e i r o d o s B a ia n o s
S a l á r io s A n u a is ( em m il r é is )
M « t t c s p e d r d ros
Mestres-earpinteiros
Carpinteiros
550
B a h ia , S é c u l o X I X
S a l á r io s A n u a is (e m m i l r é is )
Altos funcionários
B aian os 55|
soal da p o lícia tam b ém aum en to u. Seguiu-se u m a fase de estabilidade até 1889, q uan
do o salário do c o m a n d a n te su b iu 2 5 % , o dos capitães 38% e o dos sargentos 2 0% .
Esses aum en to s, m u ito sup eriores aos q ue os artesãos tiveram no mesm o período
explicam -se p ela d ific u ld ad e q ue tin h a o governo para recrutar po liciais, função que
afugentava os jovens, so b retu d o por im p o r freqüentes e penosos deslocam entos para
o in terio r da P ro v ín cia. A cresce q u e o cólera-m orbo d im in u íra o núm ero dos que
teriam co n d içõ es de servir. O ferecer salários era, assim , o único m eio de atrair re
crutas, tan to p ara o co rp o dos o ficiais com o para o dos suboficiais. A estabilização
desses salários após 1861 sugere q u e o p ro b lem a do recrutam ento fora resolvido,
pelo m enos até 1 8 8 9 , q u a n d o oco rreu no va alta. É preciso observar, no entanto,
que, se em 1861 os p o liciais gan h av am m ais q u e fu n cio n ário s civis de nível equiva
lente, no p erío d o seg u in te v iram -se em desvan tagem , o que tam bém ju stifica o a u
m ento recebido em 1 8 8 9 .
T A B ELA 9 3 .
S a l á r io s de P o l ic ia i e F u n c io n á r io s C iv is d e N ív e l
E q u iv a l e n t e em S a l v a d o r {em c o n t o s d e r é is )
Esse grupo de salários do setor privado era n o to riam en te baixo, se com p arado ao
d o pessoal do setor público . O salário do escrevente, cu ja função devia ser m uito
sem elh an te à do p rim eiro -secretário do governo, ou m esm o de um p rim eiro -secretário
da Instrução P ú b lica, era 110% e 2 0 % in ferio r ao deles, respectivam ente. N ão se
pode, co n tu d o , gen eralizar esta co n statação ao co n ju n to dos salários do setor privado:
estes eram d e fato, no co n ju n to , inferiores aos do setor p ú b lico , m as em proporções
m ais m odestas. Q u an to aos salário s d e p o rteiro e en ferm eira, m u ito baixos m esm o
com parados aos dos artesãos, cab e lem b rar q ue eram com p ensado s pelas vantagens do
alo jam en to e d a a lim en tação , p ró p rias desses tip o s de funções.
A té o m o m ento, an alisam o s os m o vim en to s desses salário s, p ro cu ran d o seguir o
ritm o de suas variações no tem p o . A in d a q u e tal ritm o fosse id ên tico , as séries de que
d ispon ho têm durações d iferen tes, o q ue im p ed e co m p araçõ es m ais finas. Podem os,
con tud o , co m p arar o m o vim en to de três desses d ezo ito salário s en tre 1859/61 e 1889.
M e u interesse é v erificar tan to a p ro p o rção em q u e au m en taram com o o grau de
v ariação q u e exib iam .
A progressão m ais a cen tu ad a é a dos salário s dos fu n cio n ário s d a Fazenda. Setor
im p o rtan te do governo — pois d ele d ep en d ia a gestão das fin an ças d a P ro víncia — ,
seus fu n cio n ário s estavam en tre os m ais bem rem u n erad o s em todo o serviço público.
O inspeto r d a F azenda, por exem p lo , to rn o u -se em 1 8 7 6 o m ais bem p ago funcio nário
do governo (até então, gan h av a o m esm o q u e o d ire to r geral d a In stru ção P ú b lica). Por
outro lado, os altos fu n cio n ário s d a a d m in istra ç ão p ro v in cial tin h am em geral cam i
nho aberto p ara a co n q u ista d e cargos p o lítico s d e p rim eiro p lan o , seja no P arlam ento,
seja na p ró p ria p resid ên cia ou v ic e-p resid ên cia d a P ro v ín cia, m u itas vezes ocupadas
por m agistrados de alto n ív el, ju iz es do T rib u n a l de Ju stiç a .
C onstata-se tam bém que, no setor público , foram os salários dos oficiais e suboficiais
da P olícia que m enos a u m en taram . A d em ais, ao co n trário do q ue se po deria prever, os
salários dos oficiais de grau m éd io foram m ais favorecidos q ue os dos suboficiais.
Q uan to às dem ais catego rias de servidores do E stado, os salário s avançaram em
percentuais p raticam en te d a m esm a ordem .
N o tocante aos em pregado s do C o lég io dos ó r fã o s de São Jo aq u im , vim os que os
salários dos escreventes e das enferm eiras ficaram p aralisado s. O s porteiros riveram um
aum ento de 5 0% , m as seu salário em 1861 era m u ito baixo (1 2 0 :0 0 0 de réis anuais,
contra 2 8 0 :0 0 0 de réis pagos ao cozinheiro e ao encarregado das bebidas). Por fim , os
artesaos e serventes tiveram aum en to s salariais d a m esm a ordem que os servidores
públicos. Tanto cm 1861 com o em 1889, nenhum fu n cio n ário pú blico , por modesto
que fosse, ganhava m enos que um artesão, exceto, talvez, o soldado da P olícia, que
trabalhava todos os dias (contra 2 50 días, em m édia, dos artesãos), mas não tinha
despesas de vestuário, com ida e alo jam en to.
Se classifica m o s os salário s e m três faixas o u n ív e is — altos, m é d io s e b aixo s — ,
e n c o n tra m o s g ra n d e s v a ria ç õ e s, in c lu s iv e d e n tro d e c a d a u m d eles. E m 1 8 6 3 o saJário
do d ir e to r d a I n stru ç ã o P ú b lic a e ra tr in ta vezes m a io r q u e o salário m a is b aixo e n tre
jJVTOVII - O D in h e ir o d o s B a ia n o s
555
TABELA 94
Altos funcionários
Comandante de Polícia
c , ■ ^ , 1 8 6 1 -1 8 8 9 25 0
3*;»
r J 1 8 6 1 -1 8 8 9 35,0
Inspetor do Tesouro 18 6 3 -1 8 8 9 fi
Diretor Geral de Instrução Pública 18 6 0 -1 8 8 9 33^0
Funcionários médios "
Primeiro-escrevente (Governo)
1 8 6 1 -1 8 8 9 23.0
Primeiro-escrevente (Tesouraria) 18 6 3 -18 8 9 28.0
Primeiro-escrevente (Instrução Ptíblica) 1 8 6 1 -1 8 8 9 33,3
Capirão de Polícia 1 8 6 1 -1 8 8 9 38,0
Funcionários subalternos
TerceÍro-escrevence (Fazenda) 18 6 3 -18 8 9 64,4
Porteiro (Assembléia Provincial) 18 6 3 -18 8 9 50,0
Primeiro-sargento de Polícia 1 8 6 1 -1 8 8 9 20,0
Seto r P r iv a d o
Artesãos
Pedreiro 18 6 0 -18 8 9 25.0
Carpinteiro 1 8 5 9 -18 8 9 39.0
Serventes ‘ 1 8 6 1 -1 8 8 9 33.0
T A Í H A «A
F«xo N* 1863
TotAi Mfí«\ Totm, Mtisv
SaLifW* 1ÍTO* 7 18:580 2654 24:920 3560
Salários medà» 7 8:400 1:200 10:500 1:500
5tb n » baixos 11 5il36 :428 6,314 :526
P r i ;ç o s f: N f c h s s í i m d k s A u m e n t a r k s
dos d e ou tras partes do país ou m esm o d a A m érica E sp anh ola (gru p o III); e, por fim ,
vinhos, v in h o do P orto , v in ag re, azeirc de o liv a, m a n te ig a e cera, pro du to s im portados
d a E uropa (gru p o IV ). A p lican d o , para a an álise d a flu tu ação dos preços, a fó rm u la de
I. F isher — q u e m e p arece pouco in d ic a d a no caso — , o a u to r m o stra q u e a econ om ia
b rasileira dos séculos X V III e X IX não era fech ad a, o q u e a d is tin g u ia das econom ias
do C h ile e d a A rg en tin a, estu d ad as por R u g g iero R o m a n o .12
O estu d o de E u lá lia M a ria L ah m eyer Lobo, q ue ab arca o p erío d o de 1 8 2 0 a 1930,
tem q u atro o b jetivo s; a n alisar os ev en tu ais asp ecto s cíclico s de u m a eco n o m ia de
transição para u m a so cied ad e c a p ita lista ; u tiliz a r os preços com o in d icad o res para o
estab elecim en to de u m a p erio d ização m ais o b je tiv a ; p recisar a in flu ê n c ia dos m odelos
de exportação sobre os preços do m ercad o in tern o ; v erific ar as relaçõ es en tre os preços
do m ercad o in tern o e o processo d e in d u stria liz a ç ã o .
E scolhendo treze p ro d u to s, a au to ra d e c lara “ter ten ta d o o b ter preços de produtos
hom ogêneos e d a m esm a fo n te g e o g rá fic a ”. 13 N ão fica claro , co n tu d o , o q ue ela
en ten d e por pro du to s h o m o gên eo s; h o m o g ên eo s com relação a quê? Em relação a
séries cro n o ló gicas de ig u a l d u ração o u à q u a lid a d e d o p ro d u to , q ue po de variar
m uito? A s fontes u tiliz a d a s são de do is tip o s: por u m lad o , h o sp itais e irm an d ad es
(S an ta C asa de M ise ricó rd ia e O rd em T e rc e ira de São F ran cisco d a P en itên cia) e, por
o u tro , o J o r n a l do C om m erciô, q u e po de ser co n sid e ra d o u m a fo n te o ficial d a época,
com dados q u e têm as características das tab elas d iv u lg a d as pelas au to rid ad es. D e fato,
an alisan d o estas fontes, a a u to ra d iz: “O s preços das in stitu iç õ e s religio sas são m ais
baixos que os do m ercad o , p o r cau sa das redu ções o ferecid as pelo s fornecedores nas
com pras em grandes q u an tid ad es. O s preços o ficiais p u b licad o s no J o r n a l do Comm ercio
de 1 84 0 a 1 8 7 0 , sob a ru b rica ‘Preços co rren tes d a P ra ç a ’, e de 1 87 0 a 1 9 0 0 na Revista
do M ercado e em Gêneros de Consum o , são m ais baixo s q u e os d a v en d a no varejo e m ais
altos que os da ven da no atacad o . C o in c id e m com os das in stitu içõ es. H á um período
de superposição das diversas fontes, q u e p e rm itiu a co m p aração de suas co n tab ilid a-
des; foí necessário tam bém fazer u m a p esq u isa sobre a co rresp o n d ên cia en tre os diver
sos pesos e m edidas utilizado s no curso desse lon go p e río d o .” 14 D eixando de lado,
nesta lon ga citação, a referência aos pesos e m ed id as, passo a ten ta r en ten d er o resto.
Se bem com preendi, L ahm eyer Lobo u tiliz o u , para o perío do 1820—1840, os
preços consignados nos livros do q ue d en o m in a 'in stitu içõ es religio sas'. O ra, Johnson,
que trabalhou exatam ente com as m esm as fontes en tre 1720 e 1820, afirm a textual
m ente que esses preços “eram preços de m ercado, livres, exceto q u an d o a instituição
fazia um contrato extraordinário, quase sem pre m en cio n ad o ".13 O q u e Lahm eyer
Lobo sustenta é justam ente o con trário . Ela fala de “reduções oferecidas pelos fornece
dores , sugerindo que, nesse período, essas instituiçõ es tin h am m udado de tática e já
não se abasteciam no m ercado varejista. A autora, no entanto , não dá explicação
algum a sobre o fato e parece ignorar a análise desse tipo de fonte feita po r Johnson.
Ficamos portanto na incerteza no tocante atjs o iten ta anos (1 7 6 0 —1840) abrangidos
pela com binação dos estudos de Johnson e de Lahm eyer Lobo. .
L iv r o VII - Q D in h e ir o d o s B a ia n o s
559
A e s c o lh a d o s p r o d u t o s a c o n s i d e r a r foi o r i e n t a d a p o r três c r it é r io s . E m p r im e ir o
lu g a r, já q u e se t r a t a v a d e e s t a b e l e c e r u m a s é r ie c r o n o ló g ic a , e r a p r e c is o d is p o r d e sé ries
an u ais d e d a d o s , c o m p r e ç o s e x p re sso s n a m o e d a c o r r e n t e d a é p o c a , c o m h o m o g e n e id a d e
de pesos e m e d i d a s e d e p r o c e d ê n c i a g e o g r á f ic a . E m s e g u n d o lu g a r , o q u e m e in te r e s
sava e r a m p r e ç o s d e g ê n e r o s b á s ic o s d a a l i m e n t a ç ã o c o t i d i a n a d a p o p u la ç ã o d e S a lv a
dor. E m t e r c e i r o , e r a d e s e já v e l d i s t i n g u i r , e n t r e ta is g ê n e r o s , p r o d u t o s d e im p o r t a ç ã o
e de e x p o r t a ç ã o , i n d i c a n d o q u a i s e r a m os d e c o n s u m o g e r a l. A e s c o lh a r e c a iu e m
d e z o ito p r o d u t o s — q u e c o n s i d e r e i r e p r e s e n t a t iv o s d a p r o d u ç ã o a g r íc o la d a B a h ia , p o r
u m la d o , e d o c o n s u m o b a i a n o , p o r o u t r o — , d i v i d i d o s e m três c a te g o r ia s : p r o d u to s
de e x p o r t a ç ã o ( a ç ú c a r , 1 7 5 0 - 1 9 3 0 ; e c a f é , 1 8 1 0 - 1 9 3 . 1 ) , p r o d u t o s d e im p o r t a ç ã o (fa
r in h a d e tr ig o , a z e it e d e o l i v a , b a c a l h a u , v i n a g r e , m a n t e i g a e c h á ) e p r o d u t o s d e o r ig e m
e c o n s u m o lo c a is ( f a r i n h a d e m a n d i o c a , c a r n e fre s c a , f e ijã o , a r r o z , c a r n e - s e c a , t o u c in h o ,
g a lin h a , ó le o d e b a l e i a e ó l e o d e r í c i n o ) . A l o n g a e x p l i c a ç ã o n e c e s s á r ia so b re as d i f i c u l
d ad e s d e m o n t a g e m d e n o s s a s é r ie e a m e t o d o l o g i a u t i l i z a d a e m c a d a c aso e stá nas
notas d e s te c a p í t u l o .20
E n tr e os p r o d u t o s d e e x p o r t a ç ã o , n ã o i n c l u í o c a c a u , o a l g o d ã o e o f u m o , e x p o r
tados e m g r a n d e s q u a n t i d a d e s , p o r q u e t a is it e n s , p o u ç o , c o n s u m i d o s n a S a n t a C a s a ,
m a l a p a r e c e m n o s d o c u m e n t o s . N o m á x i m o , e n c o n t r a m - s e a q u i e a l i v a g a s a lu sõ e s,
co m o “6 0 ré is p o r f u m o ” o u “ 2 8 0 ré is p o r c h o c o l a t e ” , s e m n e n h u m a m e n ç ã o d a
q u a n tid ad e c o m p ra d a .
A d iv is ã o d o s p r o d u t o s a l í m e n t a r e s e m trê s g r u p o s tã o r i g i d a m e n t e fix a d o s p o d e
p are ce r u m t a n t o a r b i t r á r i a , s o b r e t u d o n o t o c a n t e à d i s t i n ç ã o e n t r e p r o d u t o s i m p o r
tad os e os d e o r i g e m e c o n s u m o lo c a is . A f i n a l ; S a l v a d o r n a o e ra o b r ig a d a a im p o r t a r
q u ase to d o o a l i m e n t o q u e c o n s u m i a ? A s r e g iõ e s a g r í c o la s p r ó x im a s n ã o se d e d ic a
vam q u a s e e x c l u s i v a m e n t e à c u l t u r a d a c a n a - d e - a ç ú c a r ? É v e r d a d e q u e o s jo r n a is d a
ép o ca e stão r e p le to s d e r e f e r ê n c ia s a i m p o r t a ç õ e s d e f e ijã o , a rro z , t o u c in h o e tc. M a s ,
por a r b it r á r ia q u e p a r e ç a , e s s a d i s t i n ç ã o p o d e a j u d a r a d is c e r n ir ate q u e p o n to os
p ro d u to s d e c a d a g r u p o e r a m i n f l u e n c i a d o s p o r fa t o r e s e s p e c ífic o s , a fo ra os q u e d e
te r m in a m o c u r s o g e r a l d o s p r e ç o s . D e f a t o , os d a d o s i n d ic a m q u e isso n ã o o c o rre u .
A lim e n to s p ro d u / .id o s c c o n s u m i d o s l o c a lm e n t e , p r o d u t o s de e x p o r ta ç ã o ou d e i m
p o rtaç ão c to d o s os d e m a is p a r e c e m o b e d e c e r a o m e s m o r i t m o d e v ariaçõ es.
Essa c o e r ê n c ia r e s u lt a c e r t a m e n t e d o fato d e e s t a r e m e m jo g o os preços de m e r c a
do de a rtig o s de c o n s u m o d iá r i o , q u e se in f lu e n c i a v a m e se d is c ip lin a v a m uns aos
o u tros. D e fa to , n ã o se d e v e e s q u e c e r q u e , n u m m e r c a d o e sp e c u la tiv o c o m o o de
S a lv a d o r, o in te re s se e m o b te r o m a io r g a n h o p o ssív el s u p la n t a v a o d e fo rn ecer p ro d u
tos alte rn a tiv o s a p reç o s m a is c m c o m a , o q u e p o d e r ia p r o v o c a r u m a b a ix a dos g en ero s
m ais r e q u is ita d o s . N ã o h a v ia , p o r e x e m p lo , m u i t o in te re s se e m p r o p o r o arroz com o
su b stitu to d a f a r in h a d e m a n d i o c a , ou c a rn e - s c c a (o u m e s m o c a rn e de p o rc o d e o u
carn eiro ) em vez d a c a rn e d e boi fresca.
A m a io r ia d o s p r o d u to s c la s sific a d o s c o m o de p r o d u ç ã o e c o n su m o lo cais
farinh a d c m a n d io c a , c a r n e d e bo i fresca, fe ijã o , arro z , fra n g o , sal, óleo d e b aleia
562 B a h ia , S éc u lo X IX
e r a m p r o d u z id o s n a B a h ia ; a l g u n s , p o r é m , n á o c h e g a v a m à c a p i t a l , e m ra z ão dos
p r o b le m a s d e t r a n s p o r t e . A s s i m , g r a n d e p a r t e d a c a r n e - s e c a e d o t o u c i n h o c o m e r
c ia liz a d o s e m S a lv a d o r v i n h a s o b r e t u d o d a r e g iã o d o P r a t a , d o R io G r a n d e do S u l e,
n o c a s o d o s e g u n d o , a t é d e L is b o a , p o r q u e a p r o d u ç ã o lo c a l e r a in s u f ic ie n t e e d e m á
q u a l i d a d e e p o r q u e os n e g o c i a n t e s q u e d e t i n h a m o o l ig o p ó l i o d o a b a s t e c im e n t o do
m e r c a d o t i n h a m t o d o in te r e s s e e m m a n t e r o statu quo.
P o r t a n t o , a lis t a d o s p r o d u t o s “d e i m p o r t a ç ã o ” p o d e r i a i n c l u i r a c a r n e - s e c a e o
t o u c in h o . M a s e le s e r a m p r o d u z id o s t a m b é m l o c a l m e n t e , e a p a r c e l a i m p o r t a d a v in h a
p r i n c i p a l m e n t e d e o u t r a s p r o v í n c i a s b r a s i le ir a s . C o n s i d e r a m o s , p o r is so , q u e in te g r a
v a m u m c o m é r c i o n a c i o n a l , e n ã o i n t e r n a c i o n a l , c a s o e m q u e o u t r o s fa to re s in te r v i-
r i a m n a fix a ç ã o d e p r e ç o s . N o s s a li s t a r e ú n e p r o d u t o s q u e n ã o e r a m p r o d u z id o s no
p a ís o u o e r a m e m q u a n t i d a d e s í n f i m a s . E o c a s o d a m a n t e i g a , d o v i n a g r e e d o c h á,
c u j a p r o d u ç ã o lo c a l só fo i s u f i c i e n t e p a r a s u b s t i t u i r as i m p o r t a ç õ e s d o e s t r a n g e ir o após
o f im d o n o s s o p e r í o d o . C o m e x c e ç ã o d o c h á — c u j o c o n s u m o n a S a n t a C a s a era
m u i t o p e q u e n o , e m b o r a fo sse p r o v a v e l m e n t e m a i o r q u e o c o n s u m o g e r a l — , os d e
m a is it e n s , c o m o f a r i n h a d e t r ig o , a z e it e d e o l iv a , b a c a l h a u e v i n a g r e , e r a m a m p l a m e n
te c o n s u m i d o s p e lo c o n j u n t o d a p o p u l a ç ã o .
Q u a n t o a o s p r o d u t o s d e e x p o r t a ç ã o — a ç ú c a r e c afé — , s e u s p r e ç o s n o m e r c a d o
in tern o d e p e n d ia m in te ir a m e n te d as co taç õ e s q u e t in h a m n o m e r c a d o ex tern o , que
a b s o r v ia a m a i o r p a r t e d a p r o d u ç ã o .
Esses g ê n e r o s n ã o t i n h a m t o d o s i g u a l p e s o n o c o n s u m o g e r a l e m S a lv a d o r . A
f a r in h a d e m a n d i o c a , a c a r n e d e b o i e o f e ijã o n ã o p o d i a m f a lt a r n a m e s a d o b a ia n o , fosse
q u a l fosse s u a c la s se s o c i a l, m a s os d e m a i s n ã o e r a m d e c o n s u m o t ã o g e r a l, f ic a n d o fora
d o a lc a n c e d o s m e n o s f a v o r e c id o s . A s f lu t u a ç õ e s d e p r e ç o s d e s s e s it e n s a f e t a v a m ap e
nas as c a t e g o r ia s d e m a i o r p o d e r a q u i s i t i v o , q u e p o d i a m c o n s u m i r u m a g a m a m ais
a m p l a d e p r o d u t o s e d iv e r s if i c a r s u a a l i m e n t a ç ã o . P o r o u t r o l a d o , f a l t a m à n o ssa lista
p r o d u t o s a m p l a m e n t e c o n s u m i d o s c o m o as f r u t a s e os l e g u m e s , c u l t i v a d o s e m h o rta s e
p o m a r e s . A c o n t a b i l i d a d e d a S a n t a C a s a r e g is t r a a l g u n s p r e ç o s , m a s c o m o n ã o há
m e n ç ã o d e q u a n t i d a d e s , n ã o p o d e m se r c o n s i d e r a d o s . O s liv r o s n ã o e sc la r e c e m
t a m p o u c o a t é q u e p o n to a b a t a t a - d o c e , o a i p i m o u o i n h a m e e r a m u s a d o s p a r a su b sti
t u ir a f a r in h a d e m a n d i o c a q u a n d o e s ta f a lt a v a o u t i n h a p r e ç o s m u i t o a lto s.
S o b re os h á b ito s a l im e n t a r e s d o s b a ia n o s n o s é c u lo X I X , se o fe ijã o , a c a r n e fresca
e a f a r in h a d e m a n d i o c a e r a m o n ip r e s e n t e s , n ã o se d e v e c o n c l u i r d a í q u e o c a rd á p io
lo c a l fosse p o u c o v a r ia d o . A té os m e n o s a f o r t u n a d o s p o d ia m d iv e r s if ic a r s u a a lim e n
ta ç ã o d iá r ia , s e ja p e la m a n e ir a d e p r e p a r a r os p r a to s , se ja p e lo c o n s u m o d e certos
g e n e ro s q u e h o je já n ã o são a p r e c ia d o s , c o m o a c a r n e d e b a le ia o u d o rascasso (u m tipo
d e p e ix e ). Q u a n d o se c o m p r a v a u m a p e ç a d e c a r n e d e b o i, c o m e ç a v a - s e p o r c o m ê -la
n a f o r m a d e ro sb ife: e ra o p r a t o d o d o m in g o . C o m as so b ra s, p r e p a r a v a m - s e d ois o u
tros p rato s p a r a os d ia s s e g u in te s : o c o z id o , feito c o m le g u m e s , e o e s c a ld a d o , em q u e
a c a rn e e r a p r e p a r a d a c o m q u ia b o , a b ó b o r a e c o u v e . A f a r in h a d e m a n d io c a , e m d i
v ersas a p r e s e n ta ç õ e s — p ir ã o , fa ro fa o u a o n a t u r a l — , e r a o a c o m p a n h a m e n t o
n o s B a ia n o s
563
T A B E L A 9 6
P e r ío d o s d e A lt a e d e B a ix a
n o s P r e ç o s d e A lim e n to s , 1 7 8 6 -1 8 9 0
P ro d lto s K tkrno s A lta B a ix a
F arin h a d e m an d io ca 1 7 9 0 -1 7 9 6 1 7 9 6 -1 8 0 4
1 8 0 4 -1 8 1 7 1 8 1 7 -1 8 2 0
1 8 2 0 -1 8 2 5
1 8 4 5 -1 8 5 8 1 8 5 8 -1 8 6 3
1 8 6 3 -1 8 6 9 1 8 6 9 -1 8 7 3
1 8 7 3 -1 8 7 9 1 8 7 7 -1 8 8 2
C a r n e fresca de boi 1 7 9 2 -1 7 9 8 1 7 9 8 -1 8 1 0
1 8 1 0 -1 8 2 3 1 8 2 3 -1 8 2 5
1 8 4 5 -1 8 5 9 1 8 5 9 -1 8 6 4
1 8 6 4 -1 8 8 1 1 8 8 1 -1 8 8 9
F eijão 1 7 9 0 -1 8 0 1 1 8 0 1 -1 8 1 4
1 8 1 4 -1 8 2 3 1 8 2 3 -1 8 2 7
1 8 4 5 -1 8 4 7 1 8 4 7 -1 8 5 2
1 8 5 2 -1 8 6 1 1 8 6 1 -1 8 6 7
1 8 6 7 -1 8 7 8 1 8 7 8 -1 8 8 7
A rro z 1 7 9 5 -1 7 9 9 1 7 9 9 -1 8 0 8
1 8 0 8 -1 8 2 2 1 8 2 2 -1 8 2 6
1 8 4 5 -1 8 6 6 1 8 6 6 -1 8 7 1
1 8 7 1 -1 8 7 9 1 8 7 9 -1 8 8 7
C arn e -se c a I 8 0 5 —1 81 9 1 8 1 9 -1 8 2 4
1 8 4 5 -1 8 5 8 1 8 5 8 -1 8 6 5
1 8 6 5 -1 8 8 1 1 8 8 1 -1 8 8 8
T o u cin h o 1 7 9 0 -1 7 9 9 1 7 9 9 -1 8 0 6
1 8 0 6 -1 8 1 5 1 8 1 5 -1 8 2 0
1 8 2 0 -1 8 2 5
1 8 4 5 -1 8 5 9 1 8 5 9 -1 8 6 6
1 8 6 6 -1 8 7 1 1 8 7 1 -1 8 7 8 (p atam ar)
1 8 7 8 -1 8 8 6
Aves 1 7 8 9 -1 7 9 9 1 7 9 9 -1 8 1 1
1 8 1 1 -1 8 2 3 1 8 2 3 -1 8 2 9
1 8 4 5 -1 8 5 9 1 8 6 0 -1 8 9 0
Sal ' 1 8 0 1 -1 8 1 0 1 8 1 0 -1 8 1 6
1 8 1 6 -1 8 2 3 1 8 2 3 -1 8 2 7
1 8 4 5 -1 8 5 9 1 8 5 9 -1 8 6 6
1 8 6 6 -1 8 8 0 1 8 8 0 -1 8 8 5
Ó leo de b aleia 1 8 0 1 -1 8 0 1 1 8 0 5 -1 8 1 4
1 8 1 4 -1 8 2 2 1 8 2 2 -1 8 2 4
1 8 2 4 -1 8 3 0
ó le o de rícino IH 45-IH 59 1 8 5 9 -1 8 6 5
P ro d uto s I m po rtad o s
F arinha dc trigo . 1 7 9 0 -1 7 9 7 1 7 9 7 -1 8 0 4
1 8 0 4 -1 8 1 3 1 8 1 3 -1 8 2 2
1 8 2 2 -1 8 2 5 1 8 2 5 -1 8 2 7
1 8 4 5 -1 8 5 6 1856- 1862 .
1 8 6 2 -1 8 6 7 1 8 6 7 -1 8 8 9
U - r p V II - o D iNHEl RO n o s Bai a n o s
Ó leo d e o liva
1 7 9 1 -1 7 9 9 1 7 9 9 -1 8 0 3
1 8 0 3 - 1 808
1 8 0 8 -1 8 1 7 (patam ar)
1 8 1 7 -1 8 2 7
18 4 5 -18 6 9
1 8 6 9 -1 8 7 5
1 8 7 5 -1 8 8 0 1 8 8 0 -1 8 8 8
B acalh au 1 7 9 0 -1 8 0 0 1 8 0 0 -1 8 0 8
I8 0 8 -1 8 M 1 8 1 4 -1 8 2 0
1 82 0 -1825
1 8 2 5 -1 8 2 9
1 8 4 5 -1 8 6 8 ' 1 8 6 8 -1 8 7 3
1 8 7 3 -1 8 7 7 1 8 7 7 -1 8 8 6
V in ag re 1 7 8 8 -1 8 0 2 1 8 0 2 -1 8 0 5
1 8 0 5 -1 8 1 3 1 8 1 3 -1 8 3 0
1 8 4 5 -1 8 5 8 1 8 5 8 -1 8 8 8
M a n te ig a 1 8 0 5 -1 8 7 1 1 8 7 1 -1 8 8 9
Chá 1 8 4 5 -1 8 7 5 1 8 7 5 -1 8 8 9
Produtos de E xpo rtação
A çú car 1 7 8 6 -1 7 9 4 1 7 9 4 -1 8 1 0
1 8 1 0 -1 8 1 6 1 8 1 6 -1 8 2 1
1 8 2 1 -1 8 2 9
1 8 4 5 -1 8 5 9 1 8 5 9 -1 8 6 4
1 8 6 4 -1 8 7 0 1 8 7 0 -1 8 7 6
1 8 7 6 -1 8 8 2 1 8 8 2 -1 8 8 9
C afé 1 8 1 1 -1 8 2 1 1 8 2 1 -1 8 2 6
1 8 2 6 -1 8 3 0
■" - 1 8 4 5 -1 8 6 5 1 8 0 5 -1 8 6 8
1 8 6 8 -1 8 7 6 1 8 7 8 -1 8 8 4
d e re c o rr e r a o m e r c a d o d e S a l v a d o r p o r fa lta d c p o d e r d e c o m p ra ? S u b a lim e n t a d a
essa
p o p u la ç a o ta lv e z t e n h a r e s t s u d o m a l ao s a t a q u e s e p id ê m ic o s . C o m o e ta p rovável '
m en te
nessas c a m a d a s s u b a l i m e n t a d a s q u e as e p id e m ia s fa z ia m m a io r n ú m e r o d e v ítim a s a
m a io r m o r t a l i d a d e ta lv e z n a o a lte r a s s e m u i t o o n ív ei d a d e m a n d a . Por o u tro lad o as
e p id e m ia s , a l e m d e m a t a r , d e s o r g a n i z a m a p r o d u ç ã o e o a b a s t e c im e n t o o q u e t fa m r
d e e le v a ç ã o d o s p r e ç o s . V i m o s , p o r e ite m p lo , q u e n a v io s e v ita v a m e n tr a r n a b a ía o u
a t r a c a r n o p o r t o . A s s t m , m e s m o q u e a m o r t a l i d a d e p r o v o c a s s e re d u ç ã o d a d e m a n d a
a o fe rta t a m b é m d i m i n u í a . O s p e r ío d o s d e b a ix a e r a m tã o n u m e r o s o s q u a n to os dê
a lta , m a s , c o m o v e r e m o s , s u a a m p l i t u d e e r a m u i t o m e n o r .
P a r a v e r i f i c a r a t é q u e p o n t o e s ta a n á li s e , b a s e a d a n o s m o v im e n t o s dos preço s de 18
p r o d u to s c o n s i d e r a d o s e m s e p a r a d o , r e f le te o m o v i m e n t o g e r a l d os preço s em S a lv a
d o r, c o n s t r u í m o s d o is í n d i c e s g e r a is : o p r i m e i r o le v a e m c o n t a p reç o s d e 11 p ro d u to s
(arro z, f a r i n h a d e t r i g o , f a r i n h a d e m a n d i o c a , f e ijã o , c a r n e b o v in a fresca, g a lin h a ,
t o u c in h o , ó le o d e o l i v a , a ç ú c a r , sa l e v i n a g r e ) e o a n o b a se é 1 7 5 1 (= 100 ); o se g u n d o
c o r r e s p o n d e a 1 5 p r o d u t o s (o s a n t e r i o r e s m a is c a fé , b a c a lh a u , m a n t e ig a e carn e-seca)
e o a n o b a se é 1 8 0 0 (= 1 0 0 ) . C o m o as t e n d ê n c i a s d e lo n g o p raz o d e stas d u a s curvas
são p r a t i c a m e n t e i d ê n t i c a s , e s c o l h e m o s p a r a n o s s a a n á li s e a s e g u n d a , q u e a b arc a o
p e r ío d o m a is l o n g o ( 1 7 5 1 —1 9 3 0 ) . A l é m d is t o , u t il iz e i os d a d o s d o ín d ic e geral de
p reço s (p r e ç o s n o m i n a i s ) c o m o b a s e d o s p e r í o d o s e c ic lo s q u e a p r e s e n to n a ta b e la 9 7 .
T ABE LA 97
■ Í n d ic e G e r a l NAo P o n d e r a d o (1 7 5 1 = 100)
1 76 8 -1778 22 ,7 1 78 3 -1 78 8 6,7
15 178 3
(10)4 (1 7 6 8 -1 7 7 8 ) (8,2)
(5) (1 7 7 8 -1 7 8 3 )
1799-1804 16,1
16 1799 1 7 8 8 -1 7 9 9 68,5
Í n d ic e s E c o n ô m ic o s (m é d ia s m ó v e is q ü in q ü e n a is )
A = ín d ic t geral dc preçoi — 1 1 produtos {rtio ponderados). 1751 a 100; B = íhdiCC geral de preços - 15 produtos (nao ponderados). tS J l *
100, C = índice de preços (defladonado)* M (média) = 139» D - t it a de câmbio (libras esterlinas, segundo cotação em mil réis). 1811 = 100,
É a c u r v a d o ín d ic e d e f la c io n a d o d o s p re ç o s, p o r é m , q u e p o d e p r o p ic ia r a visão
m a is c o r r e t a d a s t e n d ê n c ia s d e lo n g o p r a z o d a c o n j u n t u r a b a i a n a (c u r v a C n o g ráfico )
A o q u e p a r e c e , h o u v e q u a t r o p e r ío d o s d e r e la t iv a p r o s p e r i d a d e e n t r e 1 8 1 1 e 1929
S u a s d u r a ç õ e s v a r ia r a m ( 9 , 10, 1 1 e 21 a n o s ) , m a s , c o m o se n o t a n a t a b e la 9 8 , as q ue
c o r r e s p o n d e m a o s é c u lo X IX , isto é, ao in t e r v a l o 181 1—1 8 8 1 , t iv e r a m p r a t ic a m e n t e a
m e s m a d u r a ç ã o , o q u e a b s o l u t a m e n t e n ã o o c o r r e u c o m o s p e r ío d o s d e d e p re s s ã o , entre
os q u a is se r e g is tr a u m d e 3 6 a n o s ( 1 8 2 0 - 1 8 5 5 ) e o u t r o d e a p e n a s três ( 1 8 6 7 - 1 8 6 9 ) .
A liá s , a s o m a d o s p e r ío d o s s u p e r i o r e s a p. (+JJ.) e in f e r io r e s a p, ( - p ) m o s t r a q u e , e n tre
1 8 1 1 e 1 8 8 9 , h o u v e m a is d e z e s s e t e a n o s d e b a i x a q u e d e p r o s p e r id a d e . A lo n g a
d e p r e s s ã o q u e se e s t e n d e u d e 1 8 2 0 a 1 8 5 5 — c e r t a m e n t e c o m i m p a c t o m u i t o n e gativ o
s o b re a e c o n o m i a b a i a n a — , m e s m o e n t r e m e a d a d e c u r t o s p e r ío d o s d e p r o s p e rid a d e ,
n a o p e r m i t i u a a c u m u l a ç ã o d e c a p i t a i s , q u e t e r i a p o d i d o e s t i m u l a r a in ic ia t iv a e a
i m a g in a ç ã o d o s d e t e n t o r e s d e v e r d a d e i r a s f o r t u n a s , p r o p i c i a n d o o d e s e n v o lv im e n t o de
a t iv id a d e s p r o d u t iv a s .
F in a lm e n t e , c o m p a r a n d o os m o v im e n t o s d e lo n g a d u r a ç ã o d e s s a c u r v a d e f la c io n a d a
d o s p r e ç o s c o m os m o v i m e n t o s d e l o n g a d u r a ç ã o d e s c r it o s p o r K o n d r a t i e v ,30 verifica-
se q u e as fases e m q u e se in s c r e v e m sã o as m e s m a s .
E ssa c o i n c i d ê n c i a m o s t r a o q u a n t o os p r e ç o s n a B a h i a e r a m c o n d i c i o n a d o s por
fa to re s e x te r n o s . D e f a t o , a m a i o r i a d o s p r o d u t o s q u e c o m p õ e m m e u ín d ic e d e pre
ç o s e r a m e x p o r t a d o s o u i m p o r t a d o s , h a v e n d o p o r t a n t o i n t e r a ç ã o e n t r e a form ação
d o s p reç o s e m S a l v a d o r e a q u e l e s p r a t i c a d o s n o s m e r c a d o s e x te r n o s . P o r o u tr o lado,
TABELA 98
D if e r e n ç a M á x im a / M ín im a e m R e l a ç ã o à M e d ia n a ( 1 3 9 ,0 )
A n o s de P ic o V alo r D if e r e n ç a m Ax i m a
e de V ale M á x im o s A bso lu ta R e l a t iv a ( % )
1829 70,9 -6 8 ,1 -4 9 ,0
1868 133,8 -5 ,2 -3 ,7
1884 116,2 -1 2 , -9 ,2
1889 136,6 -2 .4 - 1 ,7
1929ÍÍ) 127,8 -1 1 ,2 -8 .1
L iv r o V II _ O D in h e ir o d o s B a ia n o s
571
TABELA 99
P e r ío d o s de R e f e r ê n c ia
+ |l D uração
-R D uração
18 11-18 19 9 1820<?)-1855 36
18 5 6 -18 6 6 ' 10 1 8 6 7 -18 6 9 3
1 8 7 0 -1 8 8 1 11 18 8 2 -1 9 0 6 25
1 9 0 7 -1 9 2 8 21 1929-(?) L
Total 51 65
TABELA 10 0
C ic lo s d e K o n d r a t ie v B ah ia
(*) Com exceção dos Estados Unidos, onde o máximo foi em 1865.
não é i m p r o v á v e l q u e os p r e ç o s f ix a d o s d o s p r o d u t o s d e im p o r t a ç ã o in flu e n c ia s s e m
os dos g ê n e r o s p r o d u z i d o s l o c a l m e n t e , e m b o r a n ã o se d e v a s u b e s t im a r o p a p e l d e
s e m p e n h a d o p o r f a t o r e s i n t e r n o s . S ó u m a c o m p a r a ç ã o e n t r e p reç o s de im p o rta ç ã o ,
no a t a c a d o e n o v a r e j o , r e v e l a r i a a i n f l u ê n c i a d o m e r c a d o in t e r n a c io n a l so b re o m o
v im e n to d o s p r e ç o s n a B a h i a . T a l c o m p a r a ç ã o p e r m i t i r i a a i n d a v e r if ic a r q u e g ru p o
de c o m e r c ia n te s o b t i n h a m a io r e s m a r g e n s d e lu c r o , o q u e n o s d a r ia u m q u a d ro m ais
c o m p le to d o s e le m e n t o s e m j o g o n u m m e r c a d o lo c a l m a r c a d o p e lo o lig o p o lio e o
o lig o p s ô n io . a
R e s ta e x p li c a r — c o m m u i t a p r e c a u ç ã o , d a d o o n ú m e r o li m i t a d o das estatísticas
d isp o n ív e is — c a d a u m d o s m o v i m e n t o s d e lo n g a d u r a ç ã o v e rific a d o s n a c o n ju n tu r a
b a ia n a , c o m s u a s p a r t i c u l a r i d a d e s . T o m a r e i fase p o r fase.
F ase A ( 1 7 8 7 - 1 8 2 1 )
A p ro d u ç ã o d e a ç ú c a r , m o t o r d a e c o n o m i a b a ia n a , foi b e n e f ic ia d a p o r fatores '
e ex tern o s. E n tre os p r im e ir o s , d e s ta c a - s e o p a p e l e x e r c id o a p a r tir d a d é c a a e
p ela M e s a d a I n s p e ç ã o d o A ç ú c a r e d o T a b a c o do g o v e rn o p o rtu g u ê s , c u ja p rm c ip ^
fu n ção e r a s u p e r v is io n a r a q u a l i d a d e d os v á rio s tip o s d e a ç ú c a r e x p o rta o
g e n e id a d e d o p eso n a s c a ix a s e m q u e e r a m r e m e tid o s . P o r o u tr o la d o , c o m a su p r^ .
d o m o n o p ó lio c o lo n ia l e a a b e r t u r a dos p o rto s ao c o m é r c io in te r n a c io n a l, c e r ta s t a x
q u e in c id ia m so b re a p r o d u ç ã o e a e x p o r ta ç ã o d o a ç ú c a r fo ram se n siv e lm e n te red u z i
das. N a d é c a d a d e 1 8 1 0 , p r o c u r o u -s e m e lh o r a r a p r o d u ç ã o p e la in tro d u ç ã o d e novas
572 B ahia , S éculo X IX
F ase B ( 1 8 2 1 -1 8 4 2 / 4 5 )
F o i u m lo n g o p e r ío d o d e d e p r e s s ã o a c a r r e t a d o p e la s g u e r r a s d a I n d e p e n d ê n c i a ( 1 8 2 1
1 8 2 3 ) e p o r c o n t u r b a ç õ e s s o c ia is , q u e d e s o r g a n iz a r a m a p r o d u ç ã o . A s itu a ç ã o foi
a g r a v a d a p e la i m p l a n t a ç ã o d e u m n ú m e r o d e s m e s u r a d o d e e n g e n h o s n u m m o m e n to
e m q u e o c r é d it o e r a e scasso e a m o e d a f a ls a d e c o b r e c i r c u l a v a e m g r a n d e s q u a n t i d a
d e s. T a m b é m a im p o r t a ç ã o d e e sc ra v o s c o m p li c o u - s e , p o is tr a t a d o s a s s in a d o s a p artir
d e 1 8 3 0 d if i c u l t a v a m o tr á f ic o (a liá s , t i n h a m p o r o b je t iv o f in a l a c o m p le t a a b o liç ã o
desse tr á f ic o ). O r a , e r a c o m o tr á f ic o n e g r e ir o q u e os c o m e r c i a n t e s b a ia n o s — os
f in a n c ia d o r e s d a s a t iv id a d e s p r o d u t iv a s , s o b r e t u d o n o s e t o r a ç u c a r e ir o — au fe ria m
g r a n d e p a r te d e se u s lu c ro s . P o r o u t r o la d o , a r e p o s iç ã o d a m ã o - d e - o b r a to rn o u -se
d if íc il a p a r t i r d e 1 8 3 5 , s o b r e t u d o e m d e c o r r ê n c ia d a v e n d a d e g r a n d e n ú m e r o de
e sc rav o s b a ia n o s p a r a s e n h o r e s d e o u t r a s p r o v ín c ia s , o n d e a c u l t u r a d o c a fé se a m p lia
v a. A c o n j u n t u r a in t e r n a c io n a l r e f o r ç o u a c ris e , m o s t r a n d o - s e p o u c o r e c e p tiv a à p ro
d u ç ã o a g r íc o la b a ia n a : o a ç ú c a r , p o r e x e m p lo , p a s s o u a se r s u b s t i t u í d o p e lo p r o d u z id o
e m o u tr a s c o lô n ia s , o u p e lo d e b e t e r r a b a .
F ase d e R e c u p e ra ç ã o ( 1 8 4 2 / 4 5 - 1 8 6 0 ) .
N o v a F a se B ( 1 8 6 0 - 1 8 8 7 )
e x p o rta ç õ e s d e a l g o d ã o , q u e t i n h a m c r e s c id o s e n s iv e lm e n t e d u r a n t e a G u e rr a d e Seces
são, c a ír a m a n ív e is m u i r o b a ix o s . P o r f im . a p r o d u ç ã o a ç u c a r e ir a . a d e sp e ito d e u m
esforço c o n s t a n t e p a r a a u m e n t a r a p r o d u ç ã o , v i u - s e p r e j u d i c a d a p e la d e te r io r a ç ã o d os
preços d o p r o d u t o n o m e r c a d o e x t e r n o . N a d é c a d a d e 1 8 7 0 . a c a n a -d e - a ç ú c a r foi
afe ta d a p o r d o e n ç a s e p a r t e d a p r o d u ç ã o foi p e r d id a . P o r o u tr o la d o , os p ro d u to re s d e
aç ú c a r, s e m m e io s d c c r e d i t o d i s p o n í v e i s , m o s t r a v a m - s e d e s a n im a d o s , avessos a in o v a
ções. e p e r m i t i a m q u e c o n t i n u a s s e o ê x o d o d e e sc ra v o s p a r a o u tr o s c e n tro s p ro d u to re s
de a ç ú c a r , e m o u t r a s p r o v í n c i a s . A d e p r e s s ã o e c o n ô m i c a q u e se in s t a lo u n a E u ro p a a
p a rtir de 1 8 7 3 v e io t o r n a r d r a m á t i c o u m q u a d r o já s o m b r io .
E m s u m a , S a l v a d o r — e c o m e l a t o d a a P r o v ín c ia — só c o n h e c e u , e m to d o o
século X IX , u m m o m e n t o d e v e r d a d e i r a p r o s p e r i d a d e : os a n o s d e 1 8 0 0 a 1 8 2 1 , in s
critos n u m p e r í o d o f a v o r á v e l m a is lo n g o , q u e c h a m a m o s d e fase A ( 1 7 8 7 - 1 8 2 1 ) .
A v e lh a c a p i t a l c o l o n i a l a f i r m o u - s e e n t ã o — m a s p o r q u a n t o te m p o ? — c o m o a p r i
m eira P r o v ín c ia , a p e d r a a n g u l a r d o I m p é r io q u e s u r g ia . A lo n g o p razo , a a n tig a e
se m p re e s r r e ir a d e p e n d ê n c i a d a B a h i a e m re la ç ã o a o s m e r c a d o s ex tern o s m o stro u -s e
e x t r e m a m e n t e d e s f a v o r á v e l p a r a a e c o n o m i a d a r e g iã o , c a d a vez m a is re strita ao p ap el
de im p o r t a d o r a d e p r o d u t o s a í i m e n t a r e s e i n d u s t r i a is e e x p o r t a d o r a de p r o d u to s p r i
m ário s. A c o n t í n u a d e p r e c ia ç ã o d a m o e d a b r a s i le ir a a g r a v o u essa d e p e n d ê n c ia e exer
ceu fo rte i m p a c t o s o b r e os p r e ç o s d o m e r c a d o lo c a l. A s v a ria ç õ e s nos preço s das
im p o rta ç õ e s, n u m a b a l a n ç a c o m e r c i a l s e m p r e d e f ic it á r ia , n ã o p o d ia m ser p revistas
nem c o n t r o la d a s . E s ta ta lv e z t e n h a s id o u m a d a s razõ es d a a u s ê n c ia d e c ap italiz aç ão e
de fo r m a ç ã o d e re se rv a s e n t r e o s b a ia n o s , s e m o q u e n a o h a v ia c o m o in v estir em novos
e m p r e e n d im e n t o s , c r ia r as p r e c o n d i ç õ e s d o d e s e n v o lv im e n t o d o se to r in d u s tria l, m e
lh o rar os t r a n s p o r t e s e m e s m o e x p a n d i r e d iv e r s if ic a r a p r o d u ç ã o a g ríc o la , so b retu d o
no c u ltiv o d e p r o d u t o s a í im e n t a r e s , o q u e t e r i a p e r m it i d o m in o r a r o d é fic it d a b a lan ça
c o m e rc ia l. D e fa to , a l é m d o in v e s t im e n t o p r iv a d o , s e m e lh a n t e e m p r e ita d a reria e x ig i
do u m a m u d a n ç a d e m e n t a l i d a d e e a p o io d o E s ta d o . O ra , tal m u d a n ç a de rota era
d ifícil q u a n d o o s g o v e r n o s p r o v in c ia l e n a c io n a l t i n h a m su a p r in c ip a l fon te d e receitas
nas taxas q u e in c i d ia m so b re os p r o d u t o s d e im p o r ta ç ã o .
M a is ta rd e , a in d u s t r ia liz a ç ã o do S u l d o B rasil v e io se la r d e fin itiv a m e n te a sorte
da B ah ia: o m e r c a d o d as im p o r ta ç õ e s e e x p o rta ç õ e s foi s im p le s m e n te deslo cado, sem
ben efício a lg u m p a r a a e c o n o m ia b a ia n a , q u e se tr a n s fo rm o u e m fornecedora dc
m ão -d c -o b ra p a ra o s e stad o s d o S u l, e s p e c ia lm e n te R io d c J a n e ir o , S ão P au lo c M i
nas G erais, d o s q u a is c o m p r a v a a lim e n t o s , tecid o s e p r o d u to s m a n u fatu rad o s. A ssim ,
a B a h ia , a p r im e ir a p r o v ín c ia d a G o ló n ia , p arece ter-se e sp e cializ ad o e m ceder tant
suas elites c o m o su a m ã o - d c -o b r a às p ro v ín cias do C e n tr o e do S u l, p a r e c e n d o esm e
rar-se em v iv er a c im a d e su as p o ssib ilid a d e s, com base em p rática s agrícolas cada vez
■ É-íiJn fr.AjL-ilS
m aís o b soletas. , .
À população, cm constante aumento, n ão restava m u ito mais que tentar sobrevi
ver, cncapsulada numa economia que não soubera imaginar, prever ou se a aptar.
uma sociedade tã o desprovida de homens de iniciativa, verdadeiros em presários, que
B ahia , S êc lx o X IX
a o m e s m o te m p o t in h a t a m b é m p o u c o s v e r d a d e ir o s a s s a la r ia d o s , u m a vez q u e as
relaçõ es e ra m m a r c a d a s p e lo c s c ra v is m o . A a n á lis e d e ssa d u p l a c a r ê n c ia e u m a m elh o r
c o m p r e e n s ã o d e u m i m p o r t a n t e a s p e c to d a m e n t a li d a d e b a ia n a — o s ig n if ic a d o das
h ie r a r q u ia s s o c ia is — e x ig e u m a c o m p a r a ç ã o e n t r e p reço s e sa lário s.
Os S a i A r i o s e o P r e ç o lm F a r i n h a N o s s a d e C a d a D ia .
S e os a s s a la r ia d o s e ra m p o u c o s n e ssa s o c ie d a d e , c o n v é m l e m b r a r q u e a lg u n s escravos
c o n s e g u ia m d in h e ir o p a r a c o m p r a r s u a a l f o r r ia e m p e n h a n d o a lg u n s a n o s de trab a lh o
(e d e s a lá r io ) , e q u e p a r t e d a p o p u la ç ã o m a s c u l i n a a t iv a liv r e o b t in h a , g ra ç a s ao salário,
a c o n d iç ã o d e e le ito r . E m s u m a , o t r a b a lh o a s s a la r ia d o e r a u m p r iv ilé g io q u e situ ava
u m a p e q u e n a p a r c e la d a p o p u la ç ã o ( liv r e e e s c ra v a ) a c i m a d a g r a n d e m a s s a q u e se via
o b r ig a d a a lu t a r d e o u t r a f o r m a p e lo p ã o d e c a d a d ia .
P o r o u t r o la d o , v im o s q u e o s a lá r io m u i t a s v ez es r e p r e s e n t a v a a p e n a s p a n e da
r e m u n e r a ç ã o g lo b a l d e u m t r a b a lh a d o r , s e n d o c o m u m o e x e r c íc io s im u lt â n e o de
o u tr a s fu n ç õ e s c o m o m e i o d e re f o r ç a r o o r ç a m e n t o . A d e m a is , c e rta s c a te g o ria s de
a s s a la r ia d o s r e c e b ia m o u tr o s tip o s d e r e m u n e r a ç ã o , q u e c o m p le t a v a m o sa lário em
d in h e ir o e lh e c o n f e r ia m o u t r a s i g n i f ic a ç ã o . E ra o c a s o d o s e m p r e g a d o s d o c o m é rc io ,
d o s s o ld a d o s e d e a l g u n s e m p r e g a d o s d c in s t it u iç õ e s d e c a r i d a d e , q u e t in h a m d ireito
a c asa e c o m id a . É im p o s s ív e l, a liá s , a v a lia r a té q u e p o n t o essas v a n t a g e n s se e ste n d ia m
a o u tr a s c a te g o r ia s d e tr a b a lh a d o r e s , c o m o o s a r te s ã o s , q u a n d o t r a b a lh a v a m p a ra par
tic u la re s o u p a r a in s t it u iç õ e s s e m i p ú b l ic a s . S e ja c o m o for, as f a m ília s desses assalaria
dos n ã o d e s f r u ta v a m d as m e s m a s v a n t a g e n s : s a lv o e m c aso s e x c e p c io n a is , t in h a m que
ser m a n t id a s c o m o s a lá r io e m d in h e ir o .
A d e s p e ito d e sta s reservas e d a falta d e m u i t a s v a r iá v e is im p o r t a n t e s , creio ser
po ssível c o m p a r a r p reç o s e s a lá r io s , n ã o c o m a p r e te n s ã o d e sc c h e g a r a u m a an á lise do
c u s to d c v id a em S a lv a d o r , m a s a p e n a s d e fo r n e c e r a l g u m a s o r d e n s d e g ra n d e z a sobre
a e v o lu ç ã o do p o d e r d e c o m p r a d o s b a ia n o s . Esse e s t u d o se rá li m i t a d o ta m b é m no
te m p o , a b r a n g e n d o a p e n a s a s e g u n d a m e t a d e do s é c u lo X IX , p e r ío d o a q u e c o rresp o n
d em as séries d c sa lário s q u e p u d e le v a n ta r .
E ntre estas, a do c o rp o d c P o líc ia c a d os e m p r e g a d o s d o se to r p riv a d o c o m eç am ,
re sp e c tiv a m e n te , c m 1 8 3 5 c 1 8 4 0 ; to m a r e i p o r b ase a q u i o a n o d e 1 8 4 5 . Entre esse
an o c 1 8 6 3 , a fr e q ü ê n c ia dos a u m e n t o s s a la r ia is foi ig u a l p a ra to d o s os assalariados
co n sid erad o s.
O p r im e iro o b je tiv o será sa b e r q u a is a ssalariad o s não tiv e ra m reaju stes co rresp o n
d entes ao a u m e n to dos preços dos g ên e ro s d e p r im e ir a n ec essid ad e , ao m en os entre
18 4 5 e 1 8 5 4 , fase m a rc a d a pela elevação ta n to dos preços c o m o dos salários. A credito
q u e a esco lh a deste p e río d o — q u e foi, aliá s, u m a fase d e re c u p eraç ão d a eco nom ia
b a ia n a p e r m itir á alc a n ç a r um se g u n d o o b jetivo : ve rific ar q u a l foí o co m p o rtam en to
específico dos salário s nos an os de elevação m u it o b ru sca d os preços.
L iv ro V II - O D in h e iro d o s B a ia n o s
575
E n tre os p r e ç o s , t o m a r e i u m t r io d e p r o d u t o s a í im e n t a r e s - f a n n h a de m a n d io c a
carn e d e b o i fre sc a e f e ija o — q u e , c o m o v im o s , e r a m in d e fe c tív e is n a m e sa de ricos e
pobres e a p r e s e n t a m a v a n t a g e m a d i c i o n a l d e s e r e m p r o d u z id o s lo c a lm e n te O s salários
c o n s id e r a d o s s e rã o o s d e a l g u n s m e m b r o s d o c o r p o de P o líc ia , e m p r e g a d o s do C o lé g io
dos Ó rfã o s d e S ã o J o a q u i m , a r te s ã o s ( p e d r e ir o , c a r p in t e ir o ) e se rv e n te s h o m e n s
O s p r e ç o s d a f a r i n h a d e m a n d i o c a e d o f e ijã o tiv e r a m a u m e n t o s c o n sid e rá v e is de
18 5 4 a 1 8 6 3 ( 1 3 9 , 6 % e 1 4 3 , 9 % ) ; j á a c a r n e b o v in a , n o m e s m o p e río d o , b a ix o u 3 7 %
após ter s u b i d o 5 % e n t r e 1 8 4 5 e 1 8 5 4 . O s s a lá r io s t a m b é m a u m e n t a r a m , e s p e c ia l’
m e n te e n t r e 1 8 4 5 e 1 8 5 4 , m a s só o c o m a n d a n t e d a P o lí c i a p a r e c e te r tid o u m a u m e n
to q u e c o m p e n s a v a p l e n a m e n t e a a l t a d o p r e ç o d e sse s g ê n e r o s . A lg u n s salário s fic aram
estáveis ( e s c r e v e n t e , p e d r e i r o ) , o u t r o s a t é d i m i n u í r a m ( c a r p in t e ir o , se rv e n te ); j á os
c a p itã e s e p r i m e i r o s - s a r g e n t o s d a P o l í c i a e os p r o fe s s o r e s p r im á r io s d o C o lé g io São
J o a q u i m , se u s s a lá r io s só r e c u p e r a r a m p a r c i a l m e n t e o p o d e r a q u is itiv o
. T A B E L A I 0 1
V a r i a ç õ e s d e P r e ç o s , 1 8 4 5 - 1 8 6 3 (em r é i s )
T A B E L A 1 02
V a r i a ç õ e s d e S a l á r i o s , 1 8 4 5 - 1 8 6 3 (em c o n t o s d e r é i s )
44.0
o
:400 42,8
Carpinteiro :280 :250 -7,1
-1 6 ,6 :250 108,3
Servente :120 ; 100
D e 1 8 5 4 a 1 8 6 3 , to d o s os sa lá rio s s u b ir a m , m a s só o c o m a n d a n te de p o lícia, os
serventes re c ru ta d o s e n t r e os escravo s, os professores p r im á rio s e os escreventes tive
ram a u m e n to s c o r r e s p o n d e n te s à e le v aç ão dos preço s. O s o u tro s fic aram perto disso,
exceto os arte são s, q u e p a re c e m ter atrav essad o u m p e río d o crític o . Para todas essas
catego rias, os a u m e n t o s d e sa lário o c o rrid o s e n tre 1 8 5 4 e 1 8 6 3 p a re c e m ter sido
provocados p e lo a u m e n t o d os preços o c o rrid o an tes de 1853-
576 B a h ia , S é c u l o XIX
O q u a d r o é d e m a s i a d o l i s o n j e i r o e i d í l i c o p a r a q u e se l h e c o n f i r a u m v a l o r a b s o
lu to , ta n to m a is q u e são r e m in is c ê n c ía s d e u m a n c iã o , q u e e v o c a v a o te m p o de sua
j u v e n t u d e , 6 0 a n o s a n t e s . E le a t e s t a , n ã o o b s t a n t e , q u e a t r a d i ç ã o o r a l g u a r d o u u m a
im a g e m o t im is t a d as c o n d iç õ e s d e v id a n o s é c u lo X IX , a p e s a r d e to d a s as c atástro fes.
U m c r e n ç a m u i t o e n r a i z a d a p r e t e n d e q u e , n a q u e l e s b o n s t e m p o s , a v i d a e r a m a i s f á c il,
m a is b a ra ta .
C o m o c h e g a r h o j e a u m a a v a l i a ç ã o j u s t a d e s s e t e m p o , q u a n d o h á tã o p o u c o s
te s te m u n h o s d is p o n ív e is ? A lg u n s a le g a r ia m , a liá s c o m ra z ã o , q u e os p e d re iro s d a é p o
c a , já p r iv ile g ia d o s p o r s e r e m a s s a la r ia d o s , e r a m a d e m a is t r a b a lh a d o r e s q u a lific a d o s .
M a s c o m o e s tim a r a r e n d a d a g r a n d e m a s s a d o s b a ia n o s q u e e x e r c ia m tr a b a lh o não
q u a lific a d o , m a r in h e ir o s , p e sc a d o re s , m ilh a r e s d e v e n d e d o re s a m b u la n te s , carreg ad o
r e s , d e s e m p r e g a d o s m a i s o u m e n o s c r ô n i c o s , b i s c a t e i r o s q u e a l u g a v a m s e u s b r a ç o s p a ra
q u a l q u e r s e r v i ç o ? A d e m a i s , e s s a g e n t e , q u e m u i t a s v e z e s o c u l t a v a s u a m i s é r i a s o b traje s
d e l u x o , s e m p r e p o d i a c o n t a r c o m a s o l i d a r i e d a d e d o s q u e p o s s u í a m u m p o u c o m a is .
M u ito s v iv ia m n a d e p e n d ê n c ia d e o u tro s q u e , p o r s u a vez, tin h a m ap en as u m pouco
m a is q u e o e s t r it a m e n t e n e c e s s á rio p a r a n ã o m o r r e r d e fo m e . T o d a s as e stru tu ra s —
a fa m ília , o E stad o o u a I g r e ja — c o n tr ib u ía m p a r a m a n t e r e s s e t i p o d e r e la ç ã o ,
r e f o r ç a n d o a i d é i a d e q u e o s r i c o s d e v i a m s o c o r r e r o s p o b r e s . N ã o h a v i a f a m í l i a sem
s e u s p r o t e g i d o s , s e u s a g r e g a d o s m a i s o u m e n o s p r ó x i m o s . A p o p u l a ç ã o e r a a s sim
m a n t id a , a d e s p e ito d a p r e c a r ie d a d e d e s u a s c o n d iç õ e s d e v id a , lo n g e d e q u a lq u e r
te n ta ç ã o d e c a rá te r re iv in d ic a tó r io . A h a r m o n ia so c ia l era p re s e rv a d a ao preço de
s u b m i s s õ e s e s e r v i l i s m o s ( q u e , a l i á s , a i n d a h o j e p e r s i s t e m ) . O p r e ç o d o s u c e s s o so cial
era, m u ita s vezes, c u r v a r -s e d ia n t e d as re g ra s d e u m jo g o e s ta b e le c id o h a v ia m u ito , e
q u e n e m a m o d e r n i z a ç ã o d o E s t a d o , n e m a r o m a n i z a ç a o d a I g r e j a p u d e r a m m o d if ic a r .
E m m e i o a t u d o is s o , q u e m a s c e n d i a s o c i a l m e n t e ? Q u a l e r a a f o r t u n a r e a l d o s b a ia n o s
n o sé c u lo X IX ? É o q u e p a sso a c o n s id e r a r .
t' a r I i r i o In
H ihrarquias S ociais
T o d a o r g a n iz a ç ã o e c o n ô m ic a g e r a s u a s p r ó p r ia s h ie r a r q u ia s s o c ia is . E m Salvador e no
R e c ô n c a v o , r e in o u d e s d e m e a d o s d o s é c u lo X V I u m s is te m a a g r o in d ú s tr ia ! m e rc a n til
c u jo e ix o e ra a p r o d u ç ã o q u a s e e x c lu s iv a d a c a n a - d e - a ç ú c a r . A essa c u lt u r a a c re s c e n ta
ra m -se , p o u c o a p o u c o , as d o f u m o c d o s g ê n e r o s a l im e n t íc io s in d is p e n s á v e is à su b sis
tê n c ia d e u m a p o p u l a ç ã o s e m p r e c r e s c e n t e .
A e m p r e it a d a a ç u c a r e ir a e x ig ia m ã o - d c - o b r a a b u n d a n t e . A p o p u la ç ã o in d íg e n a ,
a l é m d c p o u c o n u m e r o s a , r c v c l o u - s c p o u c o a p t a à f i x a ç ã o n a t e r r a , e x i g i d a p e lo t r a b a
lh o a g r í c o l a , a p e s a r d o s e s f o r ç o s f e i t o s p e l o s j e s u í t a s c p o r c o l o n i z a d o r e s le ig o s p a r a
to rn á -la s e d e n t á r ia , 1 C o m c e r c a d c 1 ,5 5 m ilh ã o d e h a b it a n t e s , a p e q u e n a n ação p o r
tu gu esa, la n ç a d a à c o n q u is t a d o m u n d o , n ã o t in h a m u ito s b raço s p ara exp o rrar. A d e
m a is , o p o r t u g u ê s q u e s c d i s p u n h a a e m i g r a r , p o r m i s e r á v e l q u e fo s s e , n ã o a d m i t i a
a l u g a r s u a f o r ç a d e t r a b a l h o p a r a c u l t i v a r u m a t e r r a q u e n ã o l h e p e r t e n c i a . E ra p r e c is o
b u sc a r a lh u r e s a m ã o - d c - o b r a in d is p e n s á v e l. O t r á f ic o d e a f r ic a n o s , c o m os lu c ro s q u e
p ro p ic io u , c o m p le t o u c a u m e n t o u o flu x o c o m e r c ia l q u e se e s ta b e le c e u e m to rn o do
a ç ú c a r e, m a i s t a r d e , d o f u m o e d c o u t r o s p r o d u t o s , c o m o a l g o d ã o e caf<5.
A d i s p o n i b i l i d a d e q u a s e i n e s g o t á v e l d c m ã o - d c - o b r a e s c r a v a i m p r i m i u a essa s o c i e
d a d e c m f o r m a ç ã o , d e s d e s e u s p r i m ó r d i o s , u m c a r á t e r m u i t o p a r t i c u l a r , p o is f a v o r e c e u
a id é ia d e q u e n e l a a c . s t r a t i f i c a ç ã o f u n d a v a - s c e x c l u s i v a m e n t e n a c o r d a p e le c no
e s t a t u t o l e g a l d o s m e m b r o s d a c o m u n i d a d e . S e g u n d o ta l v i s ã o , h a v i a n o B r a s il d o is
segm en to s; d c u m la d o os b r a n c o s , os se n h o re s, q u e c o m a n d a v a m ; d o o u tro a m assa
escrava, q u e p r o d u z ia .
E s ta v a c r i a d a , d e m a n e i r a p e r e m p t ó r i a e d e f i n i t i v a , a m a i s p o b r e d a s v is o e s , a
m a is i m p r e c i s a d a s d e s c r i ç õ e s d c u m a s o c i e d a d e . P n h r c p o r q u e d e s c o n s i d e r a t o d a
m o b i l i d a d e , t o d a e v o l u ç ã o h a v i d a n a s h i e r a r q u i a s s o c i a i s n o B r a s il e n t r e o i n í c i o d a
c o lo n iz a ç ã o c a i n d u s t r i a l i z a ç ã o t n o d e r n a , n o s é c u l o X IX . I m p r e c i s a p o r q u e n ã o le v a
c m c o n t a a i m e n s i d ã o d a s t e r r a s b r a s i l e i r a s , a d i v e r s i d a d e d a s r e a l id a d e s r e g io n a is e
s u a s r e s p e c t iv a s e v o l u ç õ e s .
579
B ah ia , S é c u o X IX
S e r i a a b s u r d o , p o r e x e m p lo , t e n t a r faz e r u m a m e s m a d e s c r iç ã o d a o rg a n iz a ç ã o
s o c ia l d as p o p u la ç õ e s d a c id a d e d e S a lv a d o r , d o R e c ô n c a v o a ç u c a r e ir o e d o Sertão
p e c u á r io , c m t u d o e p o r t u d o d if e r e n te s : p o r s u a o r ig e m , p e lo m o d o c o m o se e sta b e le
c e r a m e e n r a iz a r a m , p o r fo r ç a d a s c a r a c t e r ís t i c a s d o m e i o fís ic o e m q u e v iv e r a m e
e v o lu í r a m ; d if e r e n te s e n f im p e la m e n t a l i d a d e , in c lu s iv e p o r q u e p a r t e d e ssa g e n t e vivia
e m m u n d o s fe c h a d o s , se m c o n t a t o c o m o e x t e r io r , e m q u e e r a p r e c is o a p r e n d e r a
c o n s t r u ir e p r o d u z ir e m c o n j u n t o p a r a s o b r e v iv e r .
C a d a r e g iã o d a P r o v ín c ia d a B a h i a e v o l u i u n u m r i t m o p r ó p r io . A e v o lu ç ã o da
c id a d e d e S a lv a d o r e d o R e c ô n c a v o é m a is b e m c o n h e c i d a , m a s isso se d e v e a q u e a
r iq u e z a d e sse in d is s o c iá v e l c o n j u n t o c i d a d e - c a m p o s e m p r e a t r a i u m a is a c u r io s id a d e
d o s h is t o r ia d o r e s q u e as te r r a s d is t a n t e s , p o b r e s e q u a s e in a c e s s ív e is . M e s m o o c o n h e
c im e n t o so b re S a l v a d o r e o R e c ô n c a v o , a liá s l i m i t a d o e p o u c o s a t is f a t ó r io , ap ó ia -s e o
m a is d as v ezes e m e s c r ito s d e s o c ió lo g o s q u e p e n e t r a r a m n o c a m p o n a h is t ó r ia , sem
c o n t u d o c o n h e c e r e m as im p o s iç õ e s d a h i s t ó r i a s o c ia l. G e r a r a m - s e a s s im g e n e ra liz a ç õ e s
a p r e s s a d a s , e s p e c i a l m e n t e p e r ig o s a s q u a n d o se t r a t a v a d e d e s c r e v e r o q u a d r o so cial não
só d as v e lh a s re g iõ e s a ç u c a r e ir a s c o m o d a s d iv e r s a s s o c i e d a d e s d e t o d o o B r a s il. D o is
d esses a u t o r e s c o n t i n u a m s e n d o t o m a d o s c o m o r e f e r ê n c ia .
U m d e le s, o m a r x i s t a C a i o P r a d o J ú n i o r , j u l g a só se r p o s s ív e l c la s s if ic a r com
p r e c is ã o d o is g r u p o s s o c ia is : os s e n h o r e s e o s e s c ra v o s . “E n t r e essas d u a s catego rias
n i t i d a m e n t e d e f in id a s e e n t r o s a d a s n a o b r a d a c o lo n iz a ç ã o c o m p r i m e - s e o n ú m e r o ,
q u e v a i a v u l t a n d o c o m o t e m p o , d o s d e s c la s s if ic a d o s , d o s i n ú t e i s e in a d a p t a d o s ; in
d iv íd u o s d e o c u p a ç õ e s m a is o u m e n o s in c e r t a s e a l e a t ó r ia s o u s e m o c u p a ç ã o a lg u
m a . ” N o n ív e l m a is b a ix o d e s s a ‘ s u b c a t e g o r i a ’ c o lo n ia l, C a i o P r a d o s i t u o u os v a g a
b u n d o s se m e m p r e g o q u e se t o r n a v a m c r im in o s o s , a q u e m r e s p o n s a b iliz a p o r todas
as co n tu rb açÕ es s o c ia is d a é p o c a d a I n d e p e n d ê n c i a . E ssa c a m a d a in t e r m e d iá r i a c o m '
p u n h a - s e p r i n c ip a lm e n t e , d iz e le , d e “ín d io s , n e g r o s e p a r d o s ”, q u e , n ã o se n d o es
c rav o s e n ã o p o d e n d o se t o r n a r s e n h o r e s , v i a m - s e e x c l u í d o s d e q u a l q u e r situ ação
e s tá v e l .2
A d e s p e ito d e u m e sfo rç o d e p r e c is ã o , u m a v e z q u e l i m i t a o u n iv e r s o d e sc rito ao
N o rd e s te , o p o n to d e v is t a d e F e r n a n d o d e A z e v e d o p o u c o d if e r e d o p r e c e d e n te : “Se
q u is e r m o s te r u m a im a g e m d a d iv e r s id a d e d a e s t r u t u r a s o c ia l e e c o n ô m ic a d a so cied a
d e c o lo n ia l, n o N o r d e s te e n o R e c ô n c a v o , te m o s d e f ig u r a r to d a u m a h ierarq u ia
la n ç a d a so b re a b a se d a e s c r a v id ã o , e m q u e se s u c e d e m d e a lto p a ra b aix o , com o
c a m a d a s s u p e rp o sta s, a a r is t o c r a c ia d a te r r a , a b u r g u e s i a u r b a n a d e c a rá te r m erca n til,
a r isto c ra tiz a d a sob as in f lu e n c ia s d o p a tr ia r c a lís m o , a p e q u e n a b u r g u e s ia m al d e fin id a,
a m assa in fo rm e d o p o vo c a p leb e, in d is c ip lin a d a e t u r b u le n t a , s e m p r e d isp o sta a se
ac e n d e r à reação o u a a b a la r, p e la re v o lta, o e d if íc io s o c ia l .”3
E m b o ra estas an á lise s d as h ie r a r q u ia s e e stra tific a ç õ e s so c ia is n a o se ac o m p a n h e m
de n e n h u m a in d ic a ç ã o d os c ritério s u tiliz a d o s , in fe re -se q u e a m b o s os a u to re s co n si
d e ra r a m u n ic a m e n t e a o rd e m in s t it u c io n a l, q u e se p a ra v a a p o p u la ç ã o e m livres e
escravos. P o r o u tr o la d o , essas d e sc riç õ e s fo ram c e r ta m e n te feitas a p a r tir d e dados
L u -R O V l i ~ ° D [X H K 1R ^ ih is B a ia n o s
581
c ia e c o n ô m ic a . A c la s se p o b re e n g lo b a v a to d o s os q u e v i v ia m d o t r a b a lh o m a n u a l .7
A m a io r ia d o s b r a n c o s e n c o n t r a v a - s e nas d u a s p r im e ir a s c a te g o r ia s , ao passo q u e os
m e m b r o s d a classe p o b re e r a m to d o s n e g r o s e m e s t iç o s . N e s s a a n á lis e , T h a le s de
A z e v e d o c o m b in o u três c r it é r io s : p r e s t íg io e c o n ô m ic o , p r e s tíg io s o c ia l e c o r d a pele.
N a r e a lid a d e , tr a ta - s e d e e s t u d a r u m a e s t r u t u r a s o c ia l d e t e r m i n a d a , n u m p e río d o
t a m b é m d e t e r m i n a d o (e m n o sso c a s o , o s é c u lo X I X ). C o n v é m a i n d a c a p t a r , m esm o
im p e r f e it a m e n t e , as m u d a n ç a s q u e essa e s t r u t u r a s o fre u n e sse la p so d e te m p o . M a lg r a d o
a te n d ê n c ia d as e s t r u t u r a s e c o n ô m ic a s — e, a té c e r to p o n to , d as p o lít ic a s — a p e r m a n e
c er, to d a so c ie d a d e p r o d u z e le m e n to s q u e v ã o p o u c o a p o u c o tr a n s f o r m a n d o o arcab o u ço
p r im it i v o , s e m n o e n t a n r o d e m o l i - l o . P o r o u t r o la d o , se, c o m o a c r e d it o , certas h ie r a r
q u ia s se e x p r e s s a m d e m o d o d if e r e n t e n a s c o m u n i d a d e s r u r a is e u r b a n a s , é preciso
le m b r a r q u e , n o c aso d e S a l v a d o r — d e i n í c i o c a p i t a l d a C o l ô n i a , d e p o is m e tró p o le
r e g io n a l — , h o u v e s e m p r e u m a í n t i m a r e la ç ã o e n t r e a c i d a d e e o R e c ô n c a v o ru ra l.
P o r f im , a o r g a n iz a ç ã o s o c ia l q u e se e s t a b e l e c e u a p a r t i r d e m e a d o s d o s é c u lo XVI
não nasceu ex nihilo\ os p o r t u g u e s e s , se u s a r t íf ic e s , t r o u x e r a m c o n s ig o u m m o d e lo de
s o c ie d a d e . N ã o h á c o m o p e n e t r a r a e s s ê n c ia d a s o c i e d a d e b a i a n a s e m c o n h e c ê - lo e
a n a li s a r o m o d o c o m o se a d a p t o u à r e a l i d a d e d o N o v o M u n d o . É o q u e e m p re e n d o
a s e g u ir , p a r a d e p o is in v e s t ig a r c o m o se o r g a n i z a r a m os g r u p o s s o c ia is e m S a lv a d o r e
n o R e c ô n c a v o n o in íc io d o s é c u lo X IX . F in a lm e n t e , p r o c u r a r e i d e s ta c a r as especificid ad es
d o m o d e lo b a ia n o d e s o c ie d a d e .
O M o d e lo P o r t u g u ê s d e S o c ie d a d e
O s h is t o r ia d o r e s p o r t u g u e s e s s e m p r e a t r i b u í r a m c a r á t e r c o r p o r a t iv o à s u a so cied a d e.
S e u s p o n to s d e p a r t i d a t ê m s id o d o c u m e n t o s le g a is e a d m i n i s t r a t i v o s , s o b re tu d o as
O r d e n a ç õ e s d o R e in o , le is f u n d a m e n t a i s d o E s ta d o p o r t u g u ê s , c o n s t a n t e m e n t e reno
v a d a s p e lo s m o n a r c a s . A s m a is r e c e n te s e m a i s in t e r e s s a n t e s p a r a m i m são as de F ili
p e II (O r d e n a ç õ e s F il ip i n a s , d e 1 6 0 3 ) , p o r q u e p e r m a n e c e r a m e m v ig o r no Brasil até
d e p o is d o p e río d o c o lo n ia l. A s o c ie d a d e p o r t u g u e s a te r ia tid o u m a o r g a n iz a ç ã o trip artite
c lássic a, d iv id in d o - s e e m trê s e s ta d o s : n o b r e z a , c le r o e p o v o . N o in t e r io r d e c a d a u m , a
o rg a n iz a ç ã o so cial s e ria d e c a r á te r c o r p o r a tiv o , c a d a g r u p o so c ia l g o z a n d o d e cerros privi
légios e d c u m e s ta tu to ju r í d ic o e p o lític o p a r t ic u la r . N o m o m e n t o dc su a g r a n d e ex p an
são a lé m - m a r , a s o c ie d a d e p o r t u g u e s a e s ta r ia p o is h í e r a r q u iz a d a d a s e g u in te m an e ira.
E m p r im e ir o lu g a r , os f id a lg o s , os n o b re s. N o s é c u lo X V , d is t in g u ia m - s e e n tre eles
três c a te g o ria s : os ‘v a ssa lo s d o r e i', q u e f o r m a v a m a a lta n o b re z a t it u la d a , os ‘cavaleiros
e os e s c u d e ir o s . D e fato , foi nesse s é c u lo q u e c o m e ç a r a m a ser u sa d a s as palavras
f id a lg o e l i n h a g e m ', esta ú lt i m a t e n d o se t o r n a d o o s ig n o d e u m a a u t ê n t ic a nobreza.
T e o r ic a m e n t e , a n o b re z a re p r e s e n ta v a a c lasse d o s g u e r r e ir o s , te n d o p o r ta n to o e n c a r
g o de p r o te g e r o p a ís e d e v e n d o e star à d is p o s iç ã o d o rei p a r a to d a s as suas e m p re ita d a s
d e c o n q u is ta . E m tr o c a desses serviço s, g o z a v a d e ise n ç õ e s fiscais, d e u m a p o sição
L iv r o M I - O D in h e ir o dos B a ia n o s 585
c o n d u z i a m c o m f r e q ü ê n c ia à o b t e n ç ã o d e t í t u l o s d e e s c u d e i r o , c a v a le ir o o u m e s m o de
fid a lg o -c a v a le iro .n
E m s u m a , essas d u a s c a t e g o r ia s — n e g o c i a n t e s e le t r a d o s — só p e r t e n c i a m ao
p o v o , ao t e r c e ir o e s ta d o , p o r d e f i n i ç ã o e s t a t u t á r i a , p o is s u a h a b i l i d a d e p e s s o a l, seus
c o n h e c im e n t o s , s u a s p r o f is s õ e s e s u a s f o r t u n a s o s s i t u a v a m a c i m a d o s c o m e r c ia n t e s ,
d o s p r o p r ie t á r io s r u r a is e d o s a r t e s ã o s , a p o n t o d e lh e s p e r m i t i r o in g r e s s o n a n o b re z a .
A b a ix o d o s b u r g u e s e s e d o s l e t r a d o s v i n h a m o s ‘c i d a d ã o s ’ , o u ‘h o m e n s b o n s ’,
g ru p o in te g ra d o e m geral p o r p ro p rie tá rio s d e im ó v e is o u d e terras, c o m e rc ia n te s e
m e s t r e s - a r te s ã o s . E sse g r u p o , q u e c o m p u n h a o s c o n s e lh o s m u n i c i p a i s , f a z ia p a r t e da
‘g e n t e l i m p a ’ , is to é, d e ‘ s a n g u e p u r o ’ , s e m m i s t u r a d e s a n g u e m o u r o , j u d a i c o o u
n e g r o . A s v á r ia s c a t e g o r ia s d e c i d a d ã o s t i n h a m r e p r e s e n t a n t e s n a s C o r t e s ( P a r la m e n t o
p o r t u g u ê s ) , ao la d o d a n o b r e z a e d o c le r o , m a s é e v i d e n t e q u e s ó o s m a i s p r e e m in e n t e s
c o n s e g u i a m m a n d a t o s n o s c o n s e lh o s m u n i c i p a i s o u n o P a r l a m e n t o . A e s s a s c a te g o r ia s
c a b e a c r e s c e n t a r o n ú m e r o c o n s i d e r á v e l d e h o m e n s d e d i c a d o s a o s o f íc io s a r t e s a n a is e
os t r a b a lh a d o r e s a g r íc o la s , c o m o c a m p o n e s e s s e m t e r r a e p a s t o r e s , s e m e s q u e c e r os
p e s c a d o r e s e m a r i n h e i r o s , p o is a p e s c a e o u t r a s o c u p a ç õ e s l i g a d a s a o m a r d e s e m p e
n h a m i m p o r t a n t e p a p e l e m P o r t u g a l . P o r h u m i l d e s q u e fo sse m ^ e ssa s a t i v i d a d e s g a r a n
t i a m o in g r e s s o n o â m b i t o d o s q u e t i n h a m u m o f í c i o p a r a g a n h a r a v i d a .
N o n ív e l m a is b a ix o d a e s c a la s o c i a l e s t a v a m o s e m p r e g a d o s d o m é s t i c o s — na
m a i o r i a e s c ra v o s , m o u r o s o u n e g r o s v i n d o s d a Á f r i c a 12 — e o s d e s o c u p a d o s e v a g a b u n
d o s d e t o d a s o rte . E r a m o s r e le g a d o s d e s s a o r g a n i z a ç ã o s o c i a l, o u p e l a c o n d i ç ã o de
e sc rav o s, o u p o r q u e s e u e s t ilo d e v i d a n ã o se e n q u a d r a v a e m n e n h u m d o s trê s estilos
q u e g a ra n tia m c id a d a n ia p le n a .
A n te s d e e n c e r r a r e s ta d e s c r iç ã o d a s o c i e d a d e p o r t u g u e s a , d e v o s u b l i n h a r o u tro s
p r in c íp io s q u e i n f l u e n c i a v a m s u a o r g a n iz a ç ã o . E m 1 4 9 7 , a n u m e r o s a c o m u n id a d e
j u d a i c a d e P o r t u g a l foi o b r i g a d a a e s c o lh e r : c o n v e r t i a - s e à fé c a t ó l i c a o u a b a n d o n a v a
o p a ís. F o r a m a s s im c r ia d a s , n o i n í c i o d o s é c u lo X V I , as c a t e g o r ia s ‘c r is tã o s v e lh o s e
c ris tã o s n o v o s , q u e se m a n t i v e r a m a t é m e a d o s d o s é c u l o X V I I I . O s c r is ta o s -n o v o s e
seus d e s c e n d e n te s c o n t i n u a r a m a s o fr e r m u i t a s l i m i t a ç õ e s , a i n d a q u e s u a co n v e rsão
tivesse sid o p r o f u n d a e v e r d a d e i r a . T a m b é m u m n a s c i m e n t o i l e g í t i m o , so b re ru d o
q u a n d o a c o m p a n h a d o d e u m a tez m a is e s c u r a , p o d i a a c a r r e t a r s é r ia s d if ic u ld a d e s p a ra
o r e c e b im e n t o d e u m a h e r a n ç a o u o in g r e s s o n o s e rv iç o d o rei. D e fa to , a id é ia de
p u r e z a d e s a n g u e a b a r c a v a t a n t o a i l e g i t i m i d a d e c o m o a r e li g i ã o p r o f e s s a d a p e la f a m í
lia* T u d o o q u e se a f a s ta v a d e m a n e i r a p e r c e p tív e l d o p a r a d i g m a — o s a n g u e sem
m is c ig e n a ç ã o , a fé c a t ó lic a s e c u la r — e r a o b je t o d a r e je iç ã o p o r p a r te d e u m a so cie
d a d e e m q u e , n o e n t a n t o , a m is t u r a ra c ia l r e m o n t a v a à c o n q u is t a d o p a ís p e lo s m o u ro s,
e e m q u e o c r is t ia n is m o so fre rá fo rte c o n c o r r ê n c i a d o s c re d o s h e te ro d o x o s m u ç u lm a n o
c h e b r a ic o . A n a lis a r c o m o essa r e p u g n â n c ia foi v i v id a e v e n c id a e m P o r t u g a l e sc ap a ao
n o sso p r o p ó s ito , m a s é c e rto q u e , n a B a h ia , os n a s c im e n t o s ile g ít im o s e r a m bem
to le ra d o s , e n q u a n t o as c re n ç a s h e te ro d o x a s s u s c it a r a m c o m f r e q ü ê n c ia a titu d e s de
r e p u g n â n c ia c re je iç ã o p o r p a r t e d o c o rp o so c ia l. J á e m 1 5 9 2 , d o ze d o s 41 e n g e n h o s
0 x 1 ,0 DlNHtlRO DOS B.UtNOS
e x is te n te s n o R e c ô n c a v o p e r t e n c i a m a 'c r is t ã o s n o v o s ’ - e m ir .is ,
i n q u i s iç ã o m e n c i o n a m 3 4 e n g e n h o , , d o s q u a i s v i n t e nas' m ã o s d e s s ^ ^ n t ^ T i u d c u s
q u e , g r a ç a s a o c a s a m e n t o , o n h a m se m i s t u r a d o às f a m íl ia s d e ‘c rtstáo s v e lh o s ’ 11 P
o u tr o la d o , as r n . s n . n s e n t r e b r a n c o s e p e s s o a s d e c o r e r a m n u m e r o s a s , m a s d ifíce is dé
d e te c ta r, p o is n a o h a v i a p e r s e g u i ç ã o le g a l a essa p r á t ic a .
V o l t e m o s a o n o s s o t e m a . A b r e v e d e s c r iç ã o d a o r g a n iz a ç ã o so cial p o rtu g u e sa
m o s tr a , e m p r i m e i r o l u g a r , q u e a d iv is ã o j u r í d i c a d a p o p u la ç ã o e m três e stad o s era
p u r a m e n t e t e ó r i c a . A m o b i l i d a d e s o c ia l e r a g r a n d e , p e r m i t i n d o a p a ssa g e m d e u m a
o r d e m a o u t r a . A n o b r e z a c o n f i g u r a v a u m id e a l d e v id a , a q u e a s p ir a v a m todos os
m e m b r o s d a s o c i e d a d e , d e s d e o g r a n d e n e g o c i a n t e a o m e s t r e a r te sã o p ró sp e ro , i n c l u i n
do o le t r a d o . A p a s s a g e m e r a u m a q u e s t ã o d e o p o r t u n i d a d e e d e te m p o . O d e s e n v o l
v im e n t o d o c o m é r c i o e a f o r m a ç ã o d o E s t a d o p o r t u g u ê s , e m fin s d o s é c u lo X IV ,
f a v o r e c e r a m m e r c a d o r e s , f u n c i o n á r i o s d o re i e o u t r o s le t r a d o s q u e d e s e ja v a m in gressar
n a n o b r e z a . A p o s s e d e u m a b o a f o r t u n a e a c o n s i d e r a ç ã o s o c ia l e r a m os a t r ib u to s q u e
lhes p e r m i t i a m a s p i r a r a r e c e b e r d o r e i, d e q u e m e r a m p r e c io s o s a u x ilia r e s , a fid a lg u ia ,
o u m e s m o o in g r e s s o i m e d i a t o n o r o l d o s n o b r e s t i t u l a d o s . S e r n o b r e e r a ser se rv id o r
d o re i, m a s e r a t a m b é m se r o s e n h o r d e u m a g r a n d e c a s a — c o m p o s ta d e vasta
p a r e n t e la , s e r v i d o r e s , m u i t o s f r e q ü e n t a d o r e s — , te r i n d e p e n d ê n c i a e c o n ô m ic a e d o m í
n io s e n h o r i a l , m a n t e r u m a t r a d i ç ã o f a m i l i a r e a c a l e n t a r e s p e r a n ç a d e q u e a p ró p ria
d e s c e n d ê n c ia se t r a n s f o r m a r i a , c o m o t e m p o , n u m a li n h a g e m . N a d a im p e d ia , aliás,
q u e os n o b re s d e p r i m e i r o g r a u c h e g a s s e m às f ile ir a s d a m a is a lta n o b re z a, caso aprouvessé
ao rei a s s im r e c o m p e n s a r b o n s s e r v iç o s a e le p r e s t a d o s . P o r o u tr o la d o , m e s m o q u e não
o b tiv e sse a ‘ f i d a l g u i a ’ , u m g r a n d e n e g o c i a n t e o u u m le t r a d o p o d ia e m n a d a d is tin g u ir -
se d o s n o b r e s , t a l a s u a f o r t u n a , e s t il o d e v i d a e f u n ç ã o .
N ã o se s a b e q u a n t a s g e r a ç õ e s e r a m n e c e s s á r ia s p a r a se te r acesso à n o b re z a, m as a
ra p id e z c o m q u e s e f a z i a m f o r t u n a s n o s s é c u lo s X V , X V I e XVTI su g e re q u e a n o b ílitação
p o d ia o c o r r e r n a p r ó p r i a g e r a ç ã o d o r e c é m - e n r i q u e c i d o . J á a asce n sã o dos m e m b ro s de
c a te g o r ia s m e n o s p r e s t ig io s a s d o t e r c e ir o e s t a d o ( p r o p r ie t á r io s d e im ó v e is e d e terras,
artesão s ric o s) e r a m a i s l e n t a . O c a n d i d a t o à f i d a l g u i a , o u m e sm o a u m a íu n ç ao
n o b ilit a n t e — n a a d m i n i s t r a ç ã o r e a l, p o r e x e m p lo — d e v ia p ro v a r q u e seus pais
tin h a m v iv id o d e m a n e i r a n o b r e , se m e x e r c e r o f íc io m a n u a l , p e rte n c e n d o pois à cate
g o ria d c p e sso as q u e v iv ia m "c o m o s e n h o r e s o u p a trõ e s . A s s im , se u n i nego . ^
u m le t r a d o p o d ia m a s c e n d e r d i r e t a m e n t e à n o b re z a , as d e m a is c a te g o ria s do terceiro
e stad o d e v ia m p r im e i r o g u i n d a r - s e — p elo p r e s tíg io e c o n ô m ic o , p o lític o ou soei
ao to p o d e s e u g r u p o o u c o r p o r a ç ã o . O s o n h o d a a sc e n sã o à fid a lg u ia só se rea izava,
nesse c a so , n a g e r a ç ã o d o s filh o s o u n a d o s netos.
Esse e s q u e m a d e m o b i l i d a d e s o c ia l - em q u e , a d e s p e ito d e to d o u m sistem a
categorias sociais no-interior de cada ordem, eram possíveis passagens frequen e
contínuas de uma ordem p ara outra
O M o d e lo B a ia n o d e S o c ie d a d e
A o r g a n iz a ç ã o s o c ia l b a i a n a e n g e n d r o u u m m o d e l o d e s o c i e d a d e q u e , e m b o r a in sp ira
d o n o m o d e lo p o r t u g u ê s , fo i a d a p t a d o às c o n d iç õ e s p r ó p r ia s d a C o l ô n i a . A estru tu ra
s o c ia l c o n t i n u o u h i e r a r q u iz a d a , m a s so b o u t r a b a s e j u r í d i c a . A s e g m e n t a ç ã o nobres-
p le b e u s fo i s u b s t i t u í d a p o r o u t r a , d e m o d o q u e a d i c o t o m i a s o c ia l d o m o d e lo p o r tu
guês, em b o ra m a n tid a , m u d o u de n atu reza.
N o n o v o m o d e lo , os n o b r e s f o r a m s u b s t it u íd o s p e lo s b r a n c o s liv res e os escravos
t o m a r a m o lu g a r d o s p le b e u s . N o n o v o c o n t e x t o c r ia d o p e lo r e g im e e sc rav o crata, o
b r a n c o , fosse q u a l fosse s u a o r ig e m s o c ia l, f u n ç ã o o u r iq u e z a , t i n h a u m a posição
p r e e m in e n t e p elo m e r o fato d e se r liv r e p a r a d i s p o r d e s u a p e s s o a e d e s e u d e stin o . Q u e
u m s im p le s a r te s ã o , f e ito r o u p e q u e n o c o m e r c i a n t e a s s u m is s e ares d e n o b re z a e afetas
se s u p e r io r id a d e n ã o c a u s a v a q u a l q u e r e s p a n t o . M e s m o o s q u e se s itu a v a m e m níveis
m a is a lto s d a e s c a la s o c ia l e v it a v a m c e n s u r a r t a l a t i t u d e , n u m m e io e m q u e os brancos
e ra m u m a m i n o r i a a m e a ç a d a p o r to d o s os la d o s.
C o m o p a s s a r d o t e m p o e a m u d a n ç a d a s c o n d iç õ e s , esse e s q u e m a se alterou.
A n te s d e m a is n a d a , a lg u n s b r a n c o s f iz e r a m f o r t u n a , a té g r a n d e fo r tu n a ; depois, a
m e s tiç a g e m e a p r á t ic a d a a lf o r r ia c r ia r a m u m a n o v a e c a d a vez m a is n u m e r o s a cate
g o ria d e h o m e n s livres e n ã o b r a n c o s , ao s q u a is e r a p re c is o a t r ib u i r u m lu g a r na escala
so cial. P o r f im , n a m e d i d a e m q u e a p o p u la ç ã o liv re d e c o r a u m e n t a v a , certos ofícios
(c u ja té c n ic a a n tes só os b r a n c o s d o m in a v a m ) p a s s a r a m a se r e x ercid o s p e la po pulação
d c cor. C o m isto, b r a n c o s q u e a n te s v in h a m à B a h ia p a ra e x e rc e r u m o fício m anual
p assaram a só a d m it ir fazê-lo c o m a c o n d iç ã o d e p o d e r g u in d a r - s e im e d ia ta m e n te ao
top o d a profissão, de m o d o a p o d e r ex erce r a lg u m p o d e r de c o m a n d o . G aran tiam
assim certa p r e c m in c n c ia em re lação aos d e m a is m e m b r o s d e s u a c ate g o ria profissional
e certa p r o x im id a d e d os b r a n c o s q u e , te n d o e n r iq u e c id o n a a g r ic u lt u r a ou no co m ér
cio, se c o n sid e ra v a m a n a ta d a so cied a d e.
O ra , u m a vez q u e a s o c ie d a d e se e s tru tu ra v a e m bases ju ríd ic a s q u e separavam a
p o p u laç ão em livres e escravos, não seria d e m a s ia d o p rete n sio so p a r a os brancos que
tin h a m feito fo r tu n a e x c lu ir de seu m eto ou tros brancos, c ujas origens sociais eram
L iv r o VII - O D in h e ir o d o s B a ia n o s
m u ir a s v e z es s e m e l h a n t e s às s u a s ? N a v e r d a d e , o s q u c c h e g a r a m p r im e ir o e s ta b e le c e
ram re g ra s d e c o n d u r a q u e d e v i a m s e r o b s e r v a d a s p o r q u e m q u is e s s e v e n c e r s o c i a l m e l
te. Essas re g r a s n a o i m p e d i a m o p r o c e s s o d c a s c e n s ã o s o c i a l se a cnr ; j a
g u e s a e r a a h e r r a , a b a i a n a o e r a a i n d a m a is , u m a ver. q u e , t a n t o d c d ir e it o q J a n m d ê
fato . o p o r t u g u ê s n a o o c u p a v a n e l a u m a o r d e m d e t e r m i n a d a . D e fato a n o b reza
p o r t u g u e s a i g n o r o u o B r a s i l , c o s ‘f i d a l g o s ’ e n v ia d o s a s e rv iç o d o r e i, q u e a q u i fic a ra m
p a r a e n r i q u e c e r , n ã o e r a m n u m e r o s o s o b a s t a n r e p a r a c o n s t i t u i r u m a c lasse n o b iiiá r ia
O s p o r t u g u e s e s q u e se h a v i a m t o r n a d o s e n h o r e s d e e n g e n h o f o r m a v a m se m d ú v id a
u m g r u p o s o c i a i q u e , p e l a r i q u e z a , o p o d e r e o e s t il o d e v i d a , a s s e m e lh a v a - s e à nobreza
p o r t u g u e s a . M a s e s s a n o b r e z a d a t e r r a ' — d e s i g n a ç ã o q u e e la m e s m a se o u to r g o u e
c o n s e g u iu i m p o r — n ã o e r a m a i s q u e u m a a r is t o c r a c ia , n o s e n t id o a n t ig o do te rm o .
F a l t a v a m - l h e o s t í t u l o s ; f a l t a v a m - l h e s o b r e t u d o a s t r a d iç õ e s f a m il ia r e s q u e ao lo n g o d o
te m p o c o n s t i t u e m a l i n h a g e m . A s f a c i l i d a d e s o f e r e c id a s n o B ra sil a to d o s os re c em -
c h e g a d o s d e a l é m - m a r p e r m i t i a m - l h e s e n r i q u e c e r p e l a p r á t i c a d e u m o ficio o u no
c o m é r c io , c o m p r a r t e r r a s o u c a s a r c o m a f i l h a d e u m s e n h o r d e e n g e n h o , até f in a lm e n
te e n c o n t r a r u m l u g a r n o s e io d a ‘ n o b r e z a d a t e r r a ’ . S e , e m 1 7 2 5 , 7 0 % dos sen h o res
d e e n g e n h o e r a m n a s c i d o s n o B r a s i l e 30 .% e r a m f ilh o s d e im ig r a n t e s p o rtu g u e se s, em
1 8 1 8 a p r o p o r ç ã o d e s e n h o r e s d e e n g e n h o d e i m i g r a ç ã o r e c e n t e era a in d a m a io r; em
3 1 6 e n g e n h o s , 9 2 p e r t e n c i a m às v i n t e f a m íl ia s m a is im p o r t a n t e s , q u e h a v ia m c h e g ad o
à B a h ia n o s s é c u lo s X V I e X V I I . 15
O b r a n c o e r a s e m p r e , e m s u m a , u m a r i s t o c r a t a e m p o t e n c ia l, assim c o m o eram
n o b re s e m p o t e n c i a l o s g r a n d e s n e g o c i a n t e s e os le t r a d o s d e P o r t u g a l. A d ife re n ç a é
q u e , d e s t e la d o d o A t l â n t i c o , p r a t i c a m e n t e n i n g u é m p a r e c ia in te r e s s a d o e m in v e stig ar
m u it o a o r i g e m s o c i a l d o s c a n d i d a t o s . S ó q u a n d o n ã o lh e in te r e s s a v a a d m it ir a lg u é m
e m s e u s e io o g r u p o d o m i n a n t e t r a z ia à t o n a a q u e s t ã o d a im p u r e z a d a o r ig e m . 16
Esse g r u p o d o m i n a n t e , a r is t o c r á t i c o e m s u a e s s ê n c ia m as n ã o n o b re e m u ito
m e n o s p o r t a d o r d e l i n h a g e m , t o m a v a p o r m o d e l o a n o b r e z a p o rtu g u e s a , m a is p a rtic u
la r m e n t e , a a l t a n o b r e z a . I m i t a v a s e u e s t ilo d e v id a e te n ta v a a trib u ír-s e poderes
e q u iv a le n t e s ao s d e la , o q u e a liá s n ã o c o n s e g u i a p o r q u e a a d m in is tr a ç ã o real, q u e lhe
d e u c e r ta m a r g e m d e a ç ã o n o s p r im e i r o s c e m a n o s d a c o lo n iz a ç ã o , re to m o u seus
d ir e ito s assim q u e as c o n d iç õ e s o p e r m i t i r a m . P o li t ic a m e n t e forte nos séculos XVI e
X V II, t e n d o m e s m o a s s e g u r a d o a p r o te ç ã o d a C o l ô n i a p elas a rm a s nos prim eiros
séculos d a c o lo n iz a ç ã o , essa e la s se d o m i n a n t e p e r d e u nos fins do século X V II seus ois
a trib u to s e s s e n c ia is — c o m a n d o m ili t a r e p o d e r p o lític o — , q u c lh e teriam p erm iti o
u m a p r o m o ç ã o m a c iç a às fileira s d a n o b re z a . M e s m o o títu lo dc ‘fid a lg o ’ , de tao ci
o b te n ç ã o n a M e t r ó p o l e , a q u i era c o n c e d id o c o m cerra e c o n o m ia , e só para fami ias
q u e t i n h a m , d c u m a m a n e ir a o u d c o u tr a , se rv id o d ir e t a m e n t e ao Estado.
Essa p a r c im ô n i a d o rei r e s u lta r ia d a re sistê n c ia a n o b ilita r pessoas q u e tin h am
a s c e n d id o s o c ia lm e n t e c o m e x cessiva ra p id e z ou d a p re o c u p a ç ã o d e não estan car u m a
ap reciável fon re d e re c u rso s p e la co n cessão d e isenções fiscais? C a b e co n sid erar a m d
u m a te rc e ira r a z ã o : na B a h ia , era o s e n h o r de e n g e n h o q u e m u n ia em su a pesso
B a h ia , S é c u lo X IX
590
A s E s t r u t u r a s S o c ia is R u r a is .
A n te s d e m a is n a d a o s a d v o g a d o s , q u c a t u a v a m m u i t a s v ezes c o m o p r o c u r a d o r e s d o
se n h o r, r e p r e s e n t a n d o - o j u n t o a n e g o c i a n t e s d e S a l v a d o r o u d e f e n d e n d o - o n a o c o r re u
d a d e a l g u m l i t í g i o . E m g e r a l r e s i d i a m n a c a p i t a l o u e m S a n t o A m a r o e r e c e b ia m
sa lá rio s a n u a i s . C o m o p o d i a m s e r p r o c u r a d o r e s d c d iv e r s o s s e n h o r e s , f r e q ü e n t e m e n t e
a c u m u la v a m m u i t o s s a l á r i o s . O u t r a c a t e g o r i a d e a s s a la r ia d o s q u e t a m b é m n á o r e s id ia
nos e n g e n h o s e r a a d o s c h a m a d o s ‘ c a i x e i r o s d a c i d a d e ’ . T i n h a m p o r f u n ç ã o c u id a r d o
re g istro d a s c a ix a s d e a ç ú c a r n o s a r m a z é n s d a p r o p r i e d a d e , d e s e u tr a n s p o r te até o
po rto , d o p a g a m e n t o d a s t a x a s q u e i n c i d i a m s o b r e o p r o d u t o e d a re m e s s a , ao e n g e
n h o , d a s m e r c a d o r i a s , i n s t r u m e n t o s e f e r r a m e n t a s n e c e s s á r io s .
J á os c a p e lã e s e o s m é d i c o s , t a m b é m p a r t e d e s s e p r i m e i r o g r u p o , e m g e ra l m o r a v a m
no e n g e n h o e r e c e b i a m s a l á r i o s a n u a i s . N ã o r a r o t o r n a v a m - s e p la n t a d o r e s d e c a n a , na
c o n d iç ã o d e l a v r a d o r e s d o s e n h o r q u e a l u g a v a se u s s e rv iç o s . N o f in a l d o s é c u lo X V II I ,
p o ré m , o s p a d r e s r e s i d e n t e s c s c a s s e a v a m , e o s v e r d a d e ir o s m é d ic o s e r a m a i n d a m a is raros.
A s a ú d e d a p o p u l a ç ã o d o s e n g e n h o s f i c o u e n t ã o a c a r g o d o s p e r s o n a g e n s m a is v a r ia
dos: c ir u r g iõ e s ( q u e d e f a t o n ã o i a m a l é m d a s a n g r i a ) , e n f e r m e ir o s e e n fe rm e ira s ,
p a rte ir a s , c u r a n d e i r o s e h e r b o r i s t a s r e c r u t a d o s e n t r e a p o p u l a ç ã o liv r e e e sc rav a lo cal.
N o s e g u n d o g r u p o e s t a v a m t r a b a l h a d o r e s a s s a la r ia d o s m e d i a n t e c o n tr a to a n u a l,
e n tre os q u a i s se d e s t a c a v a m os e s p e c i a l i s t a s n a f a b r ic a ç ã o d o a ç ú c a r e os feitores:
m estre s a ç u c a r e i r o s , p u r g a d o r e s , r e s p o n s á v e i s p e la m a d e i r a o u p e lo m o s to , p elas caixas
de e m b a l a g e m , t i m o n e i r o s d a s b a r c a s q u e t r a n s p o r t a v a m o a ç ú c a r , fe ito res q u e s u p e r
v is io n a v a m o t r a b a l h o n a p l a n t a ç ã o e n o e n g e n h o , e a d m in is t r a d o r e s em g e ra l. R e c e
b ia m se u s a lá r io e m d i n h e i r o , m a s h a v i a l u g a r p a r a a ju s t e s q u a n d o t in h a m d ir e ito a
casa e c o m id a .
Esses d o is g r u p o s p a r e c e m t e r s id o o s m a is f a v o r e c id o s n o c o n ju n t o dos tr a b a lh a
dores a s s a la r ia d o s : s e n d o e s p e c i a l iz a d o s e r e l a t i v a m e n t e p o u c o n u m e r o so s , tin h a m
relações p r iv i l e g i a d a s c o m o s e m p r e g a d o r e s , q u e n ã o p o d i a m p r e s c in d ir d e seus se rv i
ços n e m s u b s t i t u í - i o s c o m f a c il id a d e .
R e s ta m d o is o u t r o s g r u p o s , c o m p o s t o s p o r t r a b a lh a d o r e s q u e re c eb iam p o r d ía ou
por serviço : o s a r te s ã o s e o s s e rv e n te s . A r tíf ic e s (c o m o f e rre ir o s, ferrad o res, c a rp in te i
ros, p e d re ir o s , c a la f a t e s , c o n s t r u t o r e s d e e m b a r c a ç õ e s e c a ld e ir e ir o s ) tra b a lh a v a m para
os e n g e n h o s d c m a n e i r a c o n s t a n t e o u e s p o r á d ic a , m a s p e lo m e n o s u m a vez por ano
seus serviço s e r a m s o lic it a d o s . Q u a n d o h a v ia m u it o s tr a b a lh o s de m o n ta a fazer,
p o d iam até g a n h a r m a is q u e os q u c re c e b ia m sa lário s a n u a is . A os ferreiros e caldeireiros,
em e sp e cial, n u n c a fa lta v a s e r v iç o .21 E n tre esses tr a b a lh a d o re s — q u e fo rm av am um a
elite, u m g r u p o tão p r iv ile g ia d o no m u n d o do tr a b a lh o q u a n t o o d os especialistas do
açú car — h a v ia d if e r e n ç a s h ie r á r q u ic a s a c e n tu a d a s . As d is tin ç õ e s e n tre m estre, c o m
p a n h e iro e a p r e n d iz e r a m c u id a d o s a m e n t e c o n se rv ad as, a in d a q u e , c o m o j á tivem os
ocasião d e o b se rv ar, n ã o tiv essem u m s ig n ific a d o ríg id o .
O q u a r t o e ú l t i m o g r u p o , e n tre os assalariad o s, e ra o dos q u c n ã o tin h a m espe
c ia lid a d e o u o f íc io (o s s e r v e n te s ), c u jo s serviço s e ra m d e m a n d a d o s o c a s io n a lm e n te
e por p o u c o t e m p o . A esses h o m e n s liv res e ra m c o n fia d a s tarefas co m o as d e per-
B a h ia , S é c u l o X IX
594
s e g u ir e c a p t u r a r n e g r o s e m fu g a , a b r ir t r i n c h e i r a s , c o r t a r á r v o re s n a m a ta para
a lim e n t a r os fo rn o s e le v a r m e n s a g e n s a p r o p r ie d a d e s v iz in h a s , ta re fa q u e , por razoes
ó b v ia s , c o n s id e r a v a - s e im p o s s ív e l c o n f i a r a e s c r a v o s . R e c r u t a d o s e n t r e os ‘ m o rad o
re s’ d o e n g e n h o , e r a m os t r a b a l h a d o r e s q u c m e n o s r e c e b i a m , f o r m a n d o a classe
r u r a l p o b r e .-4
A rte sã o s, e s p e c ia lis ta s d o a ç ú c a r , s e r v e n te s , e n f e r m e i r o s e e n f e r m e ir a s , cirurgiões
e h e rb o ris ta s e r a m em g e r a l r e c r u t a d o s e n t r e a p o p u la ç ã o liv re d e co r, m as havia
n ít id a p r e f e rê n c ia p e lo s m u l a t o s , c o n s id e r a d o s m a is in t e l ig e n t e s , c ap a z e s d e apren
d e r m a is d e p re ssa . N ã o e r a ra r o , c o n t u d o , o e m p r e g o d e e sc ra v o s c o m o artesãos ou
e sp e c ia lista s d o a ç ú c a r , c o m o o p r o v a m n u m e r o s a s c a r t a s d e a lf o r r ia . Isso p o d ia pôr
o escravo e m p é d e i g u a l d a d e c o m u m t r a b a l h a d o r liv r e , m a s a p e n a s n o tocan te ao
tr a b a lh o .
F in a lm e n t e , n a b a s e d a p i r â m i d e , os e s c ra v o s a f r ic a n o s o u n a s c id o s no Brasil,
d e d iv e rsa s e t n ia s , d iv id ia m - s e e m trê s g r u p o s c o m f u n ç õ e s m u i t o d ife re n c ia d a s: os
escravo s d o m é s tic o s , e s c o lh id o s d e p r e f e r ê n c ia e n t r e m u l a t o s e b r a s ile ir o s ; os escra
vos q u a lif ic a d o s , q u e d o m i n a v a m a l g u m o f íc io , e o s q u e t r a b a l h a v a m n a plantação
o u n o e n g e n h o .25
A c o m u n i d a d e r u r a l n o s e n g e n h o s d o R e c ô n c a v o a p r e s e n t a v a - s e p o rta n to , por
v o lta d e 1 8 0 0 , c o m o u m a s o c ie d a d e d e e s t r u t u r a c e r t a m e n t e p i r a m i d a l , m as de com
p o siç ão d iv e r s if ic a d a : u m a p o p u la ç ã o d e t r a b a lh a d o r e s liv re s m a i o r q u e no prim eiro
sé c u lo d a c o lo n iz a ç ã o , e a g o r a d e c o r , e x e r c i a o fíc io s q u e t i n h a m s id o o u t r o r a apanágio
dos b ra n c o s. Essa p o p u la ç ã o se o r d e n a v a e m c a t e g o r ia s q u e s e g u i a m c rité rio s ligados
ao e sta tu to le g a l, à co r, ao s o fíc io s e x e r c id o s e à r e m u n e r a ç ã o p e r c e b id a , se m esquecer
a c o n sid e r a ç ã o s o c ia l d e q u e g o z a v a o i n d i v í d u o , s e m p r e d e s u m a im p o r t â n c ia . Cabe
le m b r a r , aliá s, q u e essa c o n s id e r a ç ã o p o d ia se r d if e r e n t e , s e g u n d o e m a n a s s e do senhor
e d e s e u c ír c u lo m a is p r ó x im o o u d a c o m u n i d a d e .
A s relaçõ es so ciais, e m se u c o n j u n t o , g a n h a r a m e m q u a li d a d e ? S e r ia tentador
a firm a r q u e s im , c o m b ase n o fato d e q u e , e n t r e os s e n h o r e s b r a n c o s e os escravos
negros, v iera in se rir-se u m a p o p u la ç ã o liv r e d e c o r, q u e , fa z e n d o u m a m e d ia ç ã o entre
os p rim e iro s c os s e g u n d o s , e v it a r ia c h o q u e s v io le n to s . M a s as p ro vas in d icam o
c o n trário ; e ram m u ito s os escravo s q u c re c u s a v a m q u a l q u e r r e la ç ã o c o m os brancos, e
isso cra feito pelo is o la m e n to , p e la f u g a o u p e la re sistê n c ia . P o r m a io r q u e pudesse ser
o p o d er m e d ia d o r d a g e n te liv re d e c o r, esse g r u p o , q u e c o n s e g u ir a elevar-se social
m en te, cra c m seu c o n ju n to s o lid á r io c o m os q u e re p r e s e n ta v a m o p o d er branco, dos
q u aís d e p e n d ia sua so b re v iv ê n c ia . T a lv e z ja m a is v e n h a m o s a sa b e r o q u c essa solidarie
d ad e custou em sa crifíc io s e co n cessõ es, m a s u m a c o isa é c la ra : essa p o p u laç ão repre
sentava, p ara os escravos, de c u jo m e io e m e r g ir a , u m a p ro v a d e q u e a lib e rd ad e não era
um so nbo im p o ssív el, d e sd e q u c se a c e ita sse m as n o rm a s d e c o n d u ta im po stas pela
so ciedade branca.
Q u a n t o ao s e n h o r d e e n g e n h o , é p o s s ív e l q u e t e n h a p e r d id o p a r t e d a s o b e r b a q u e
e x ib ia n o s p r ím ó r d io s d a c o lo n iz a ç ã o . A f in a l, v ia s e u s p o d e r e s p o lít ic o s m in g u a r e m
• ■ I i - «V í t.
p r e s tig io q u c c u c o n l t T .a o U < » s a v . „ . „ „ l o ,,o J a rs c l| a ^ P(,,o
R e c ô n c a v o . p o r q u e , u c , J * l c t i n h a d e p a r t i l h a , esse p r e s tíg io c o ra m u ita s ou [ras
c a te g o ria s.
C o m o fa m e n c i o n e i , o e n g e n h o n ã o e ra o ú n ic o m o d e lo d e o r g a n i z a ç ã o ru ral da
B a h ia d o s é c u lo X I X . D e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u lo X V II , a d iv ersifica çã o d a
p r o d u ç ã o a g r í c o l a d e u o r i g e m a n o v o s a g e n c i a m e n t o s d o e sp aço e c o n ô m ic o . Ao c o m
plexo a g r o i n d u s t r i a l d a c a n a - d e - a ç ú c a r , f u n d a d o n a g r a n d e p r o p r ie d a d e — ain d a q u e .
co m o t e m p o , e s t a t e n h a se s u b d i v i d i d o e m u n id a d e s m e n o r e s p a ra o p la n tio d a cana
— , v ie r a m se a c r e s c e n t a r p e q u e n o s e m é d i o s e m p r e e n d i m e n t o s ag ríc o la s . N estes, o
se n h o r p o r q u e s e m p r e os h a v ia , s o b r e t u d o o n d e h a v ia e sc rav o s — re in av a sobre
u m a p e q u e n a g l e b a c u m a m ã o - d e - o b r a r e d u z id a . D e fato, o p e q u e n o p r o d u to r de
fu m o o u d e m a n d i o c a , q u e m u i t a s v e z e s c u l t iv a v a s u a te rra c o m a a ju d a d e dois ou
três e s c ra v o s , e m n a d a se a s s e m e lh a v a a o s e n h o r d e e n g e n h o . N o m á x im o , q u a n d o
su a p l a n t a ç ã o e x i g i a m a i o r n ú m e r o d e b r a ç o s , p o d ia se r c o m p a r a d o ao lavrad o r de
c a n a - d e - a ç ú c a r , O f u m o e o s g ê n e r o s a l i m e n t í c i o s e r a m p r o d u z id o s e m u n id a d es
t i p ic a m e n t e f a m il ia r e s . N ã o fosse p e la p r e s e n ç a d c a lg u n s escravo s e n tre a m ão -d e-
o b ra, e las s e r i a m c o m p a r á v e i s às u n i d a d e s a g r íc o la s fa m ilia r e s do N o rte d e P o rtugal
n a m e s m a é p o c a . 26
T i n h a - s e n e s te c a s o , p o r t a n t o , u m a o r g a n iz a ç ã o so cial sim p le s. O s d ois o u três
escravo s q u e v i v i a m n a p l a n t a ç ã o g o z a v a m m e s m o d e u m a a p a r e n te lib e rd ad e : estando
n a i n t i m i d a d e d o s s e n h o r e s , p a r t i l h a v a m s u a s in q u ie t a ç õ e s e aleg rias e acab av am por
sc in te g r a r à f a m í l i a , u m p o u c o c o m o os ra p az e s e m o ç a s q u e tra b a lh a v a m nas g ran jas
no N o rte d c P o r t u g a l , n e s s a é p o c a , c o m a d if e r e n ç a de q u e estes em geral eram
p aren tes d o p a t r ã o . N o s d o is caso s, p e r m a n e c ia m c e lib a t á r io s .27
Esse tip o d e u n i d a d e p r o d u t iv a a g r íc o la n ã o g e r a v a q u a lq u e r e stru tu ra h ie rai-
q u iz a d a ; n a o d e m a n d a v a m ã o - d e - o b r a e s p e c ia liz a d a c o tr a b a lh o de artesãos (ou dos
in d u s tr ia is , c h a m a d o s ‘ t r a f ic a n t e s ’, q u c f a b ric a v a m ro los de fu m o ) só era contratado
o c a s io n a lm e n te , p a r a fin s e sp e cífic o s. A l i n h a d c d e m a r c a ç ã o so cial p assa v a nesse
caso e n tr e os q u e t in h a m a po sse d a terra c os q u c e ra m m eros a r r e n d a t á r io s , ou
a in d a e n tr e os liv re s e os e scravo s, c o n d iç ã o 110 e n ta n to a m e n iz a d a pela vida
c o m u m .28 .
O c c rto é q u c , e n tr e p a trõ e s, b ran c o s e de cor, só o se n h o r de engen h o reunia os
dois p r in c ip a is a t r ib u to s d a riq u ez a: p restíg io c d o m in a ç ã o . Ê ta m b é m fora de du vid a
quc, no in te r io r re m o to e p r ó x im o , o m o d e lo de o rg a n iz a çã o s o c a ! mais divers,ficado
c m a , rico cm categorias c o n t in u a v a a ser o da região açucareira. Ser.a possível encon
trar traços desse modelo na organização social da cidade?
B a h ia . S é c u lo X I X
E s t r a t if ic a ç à o S o c ia l e m S a l v a d o r
de a lç a d a , d e p u r a d o d a R e a l j u n t a d c A r r e c a d a ç ã o d a R e a l F a z e n d a , se c re tá rio de
Estado e G o v e r n o , i n t e n d e n t e g e r a l d o o u r o , in t e n d e n t e d a M a r i n h a e p ro v e d o r da
A l f â n d e g a ) o h c i a i s d a s p a te n te s m a is e le v a d a s (c o ro n é is, te n e n te s-c o ro n é is , sargen to s-
m o r e s ) . - o a lt o c le r o s e c u l a r ( a r c e b i s p o e m e m b r o s d o a lto c le r o ) ,34 os g ra n d e s n c c o -
c i a n t c V 1 e, p o r f im , os g r a n d e s p r o p r ie t á r i o s d e te rr a s , se n h o re s de e n g e n h o ou
p e c u a ris ta s . E ra a c h a m a d a e l i t e ’ d a s o c i e d a d e b a ia n a , g e n t e á v id a de h o n ra ria s or
g u lh o s a d a ‘ n o b r e z a ’ d e s u a s o r ig e n s , s e m p r e d e m a n d a n d o títu lo s q u e , aliá s, dep o is
d a I n d e p e n d ê n c i a , o g o v e r n o i m p e r i a l c o n c e d e u c o m p r o d ig a l id a d e a o s 'g r a n d e s p r o
p r ie tá r io s r u r a is . E x c l u í m o s d e s s a l i s t a o s la v r a d o r e s d a c a n a e os p r o d u to r e s d e ta b a
co e d e p r o d u t o s d e s u b s i s t ê n c i a , p o is , a p e s a r d e a u f e r i r e m m a is de u m c o n to de réis,
c o m a n d a v a m e x p lo r a ç õ e s d e p o r t e p e q u e n o o u m é d io , s e n d o p o r isso p ro p rie tário s
de s e g u n d o e s c a lã o , e m u i t a s v e z e s s e q u e r e r a m d o n o s d as te rras q u e c u ltiv a v a m ; seu
p re s tíg io s o c i a l e s u a p a r t i c i p a ç ã o n o p o d e r e r a m n i t i d a m e n t e in ferio res.
O s e g u n d o g r u p o é o d o s q u e a u f e r i a m e n t r e 5 0 0 . 0 0 0 réis e u m c o n to d e réis po r
an o. E r a m f u n c i o n á r i o s d e n í v e l m é d i o ( j u i z e p r o c u r a d o r d a C o r o a e F a z e n d a , escrivães
d e a g ra v o s e a p e l a ç õ e s , c o n t a d o r e s d a R e a l J u n t a d e A r r e c a d a ç ã o d a ReaJ F az en d a,
escrivães d a C â m a r a M u n i c i p a l , j u i z e s d e p r i m e i r a in s t â n c i a , ta b e liã e s, a lm o x arife s do
A rs e n a l, d i r e t o r e s d a C a s a d a M o e d a e t c . ) , 36 o f ic ia is d e n ív e l m é d io (c a p itã e s, te n e n te s
e s u b o f ic ia i s ) , m e m b r o s d o b a ix o c le r o ( p á r o c o s , v i g á r io s e c a p e lã e s d e co n frarias
r e lig io s a s ), lo jis t a s ( r e p r e s e n t a n t e s d e c a sa s p o r t u g u e s a s , d is tr ib u id o r e s d e m e rca d o rias
i m p o r t a d a s p o r n e g o c i a n t e s b a ia n o s e o s q u e i n t e r m e d i a v a m o e n v io de p ro d u to s p a ra
o in t e r io r ) , a l g u n s p r o p r i e t á r i o s r u r a is ( p r o d u t o r e s d e c a n a , d e ta b a c o e de a lim e n to s),
p r o f is s io n a is l i b e r a i s ( a d v o g a d o s e m é d i c o s d i p l o m a d o s , p o r é m n ã o o r iu n d o s dos es
trato s m a is e le v a d o s ) , p e s s o a s q u e v i v i a m d e r e n d a s , e m e stre s-a rte sã o s e m ofícios
c o n s id e r a d o s n o b r e s . A s d u a s ú l t i m a s c a t e g o r ia s e x ig e m m e l h o r d e fin iç ã o .
E n tre os q u e V i v i a m d e r e n d a s ’ a r r o l a v a m - s e t a m b é m os ap o se n ta d o s (do servi
ço p ú b lic o o u d a a t i v i d a d e c o m e r c i a l) e os q u e a u f e r i a m a lu g u é is d e im ó veis ou de
serviço s d e e s c r a v o s .37 N e s t a ú l t i m a c a t e g o r ia i n c l u í a m - s e m u it a s v iú v a s e m u lh eres
so lte iras, b e m c o m o h o m e n s d e p r o fis s ã o m a l d e f in i d a , liv re s o u recém -alfo rriad o s,
q u e t i n h a m m u i t o m a is e sc ra v o s q u e o n e c e s s á r io p a r a o se rv iço d o m é stic o . O s 3 9 5
in v e n tá rio s post mortem d o p e r ío d o 1 8 0 0 - 1 8 5 9 q u e e x a m in e i e v id e n c ia m q u c 2 1 ,3 %
dos in v e n t a r ia d o s v iv ia m e x c lu s iv a m e n t e d o tr a b a lh o d e se u s e s c ra v o s .18 A p artir de
1 8 5 0 , a e n o r m e e le v a ç ã o d o p r e ç o d a m ã o - d e - o b r a c a tiv a , c a u s a d a p ela ab o lição do
tráfico, s o m a d a a o a p a r e c im e n t o dc n o vas o p o r tu n id a d e s de in v e s tim e n to (ações b an
cárias, a p ó lic e s d o g o v e r n o , b en s im o b iliá r io s ) , p r o v o c o u nos in vestid o res u m a m u
d a n ç a d e a t it u d e q u c sc re fle te c la r a m e n t e nos in v e n tá r io s post mortem: u m a m aio r
p r e o c u p a ç ã o cm p o u p a r sc m a n if e s ta cm todas as cate g o ria s sociais, e até os pobres
passam a .cr suas apólices ou açócs da Caixa Econômica. Adema,s, cm Salvador
todo dinheiro liquido - renda ou salário, aluguel de .m dves ou de trabalho es
c o ro . lucro em investimentos bancários ou imob.hárms ou ,uros sobre cmpr&r mo
de curro prazo - fazia do possuidor um agiota em po.encait fosse qual fosse a
S98 B a h ia , S é c u l o X IX
q u a n t i d a d e d e d in h e ir o e n v o lv id a , e m p r e s t a v a - s e e t o m a v a - s e e m p r e s t a d o em todas
as c lasses d a s o c ie d a d e .
Q u a n t o aos ‘ m e stre s a r t e s ã o s ’ , t a m b é m e n g l o b a d o s n e sse g r u p o , j á m e n c io n e i a
a m b i g ü i d a d e d a d e s ig n a ç ã o . N e s t e c a s o , t r a t a v a - s e d a q u e l e s q u e e r a m d e fato p eq ue
nos e m p r e it e ir o s e m se u s re s p e c tiv o s o f íc io s , o u m e s t r e s e m o fíc io s c o n s id e r a d o s no
b res p o r su as e x ig ê n c ia s té c n ic a s o u a r t ís t ic a s , c o m o o s o u r i v e s , p in t o r e s , en talh ad o res
d e p e d ra , m a r m o r is t a s , t o r n e a d o r e s e e s c u lt o r e s d e m a d e i r a , f r e q ü e n t e m e n t e q u a lific a
d os d e ‘a r t is t a s ’ n a d o c u m e n t a ç ã o d a é p o c a . E s p e c ia liz a d o s c p o u c o n u m e r o s o s , esses
a rte são s g o z a v a m d e u m a e s t i m a s o c ia l m u i t a s v e z e s ig u a l à d o s o f ic ia is d o E xército .39
O t e r c e ir o g r u p o , o d a q u e l e s c u j o s r e n d i m e n t o s n a o p a s s a v a m d e 5 0 0 . 0 0 0 réis
a n u a is , c o m p r e e n d ia f u n c io n á r i o s p ú b l ic o s e m i l i t a r e s d e b a ix o e s c a lã o , in te g ra n te s de
pro fissõ es lib e r a is s e c u n d á r i a s ( s a n g r a d o r e s , b a r b e ir o s , p ilo t o s d e b a rc o s , músicos,
p rá tic o s d e m e d i c i n a ) , a r te s ã o s e os q u e c o m e r c i a v a m f r u t a s , l e g u m e s e d o c e s nas ruas.
M u it a s v ezes e r a m a m b u l a n t e s , e e n t r e e ste s p r e d o m i n a v a m os a lf o r r ia d o s . In clu íam -se
a in d a neste g r u p o os p e s c a d o r e s e m a r i n h e i r o s d o R e c ô n c a v o e to d o s os q u e gan h avam
se u p ã o e m to r n o d o m a r e d o p o r t o .
O q u a r t o e ú l t i m o g r u p o e r a o d o s e s c ra v o s , d o s m e n d i g o s e d o s v agab u n d o s.
L e g a lm e n t e m a r g in a li z a d o , u m a v e z q u e n ã o t i n h a q u a l q u e r d ir e i t o c iv il, o escravo de
fato d e s e m p e n h a v a u m p a p e l c a p i t a l n a d i n â m i c a e c o n ô m i c a d a c id a d e , o q u e , in clu
sive, m u it a s vezes lh e v a l i a c e r ta i n d e p e n d ê n c i a m a t e r i a l . P o r v o l t a d e 1 8 0 0 já era
po ssível d is t i n g u i r d o is t ip o s d e e s c ra v o s u r b a n o s : os d e u so d o m é s t ic o e os destinados
a tr a b a lh a r fo ra, p a r a g a n h a r d i n h e i r o p a r a o s e n h o r . N o t o c a n t e a essa c ate go ria, as
fo rm as de t r a b a lh o e as re la ç õ e s s o c ia is n ã o se a l t e r a r a m a o lo n g o d o s é c u lo XIX.
N o d e g r a u m a is b a ix o d e sse g r u p o e d a e s c a la s o c ia l u r b a n a , s it u a v a m - s e os vaga
b u n d o s , m e n d ig o s e p r o s titu ta s . A a c r e d it a r n a s d e s c r iç õ e s d o s c o n t e m p o r â n e o s , via
ja n te s e stra n g e iro s o u m e m b r o s d o g o v e r n o m u n i c i p a l , o n ú m e r o desses deserdados
cra c o n s id e r á v e l. M a s a h is t ó r ia d o s m a r g i n a i s b a ia n o s a i n d a n ã o foi c o n ta d a , e, dada
a a u s ê n c ia d e in s tit u iç õ e s d e p r o te ç ã o e r e in t e g r a ç ã o d e in d ig e n t e s , n ã o h á in fo rm a
ções so b re os v e r d a d e ir o s p o b re s d o in íc io d o s é c u lo X IX . É v e r d a d e q u e , a p a rtir de
m e a d o s d o sé c u lo X V II I , f u n d a r a m -se d iv e r s o s ‘ r e c o lh im e n t o s ’ p a r a ‘m u lh e re s peca-
d o r a s . É u m sinal d a p r e o c u p a ç ã o d o s p o d e r e s p ú b lic o s c o m a p ro stitu iç ã o que
g rassava n a q u e la c id a d e - p o r to . M a s só e r a m r e c o lh id a s a essas in s titu iç õ e s algum as
d ezenas de m u lh e re s, c e r ta m e n te u m a p a r c e la ín f im a d a s q u e p r a tic a v a m o m ais ve
lh o oficio do m u n d o .
Entre os m e n d ig o s e os v a g a b u n d o s sem lu g a r n a s o c ie d a d e , en contravam -se
deserd ado s dc to d a so rte — s o ld a d o s, m a r in h e ir o s , escravo s — , d o e n te s e loucos
a b an d o n ad o s pelas fa m ília s o u pelos se n h o re s, fru to s d o su b e m p re g o crô n ic o o u oca
sional, N o fim d o século X V III c a in d a p o r m u it o te m p o , o ú n ic o h o sp ital d a cidade
era o d a S a n ta C a s a , fu n d a d o c m I 5 5 3 . A m o n to a v a m - s e n ele d o e n te s d e estatuto livre
ou escravo, p o rtad o re s d e ro do tip o d c e n fe rm id a d e s , c o n ta g io sas o u n ão , com exceção
dos leprosos, q u e tin h a m d isp e n sário afastad o do C e n tr o d a c id ad e . C rian ç as ab and o
L í y r o V II - O D i n h e i r o n o s B a i a n o s
nadas e lo u c o s s o m a v a m - s e a eles, n u m a te rr ív e l p r o m is c u id a d e , f r e q ü e n t e m e n t e d e
n u n c ia d a p elo s m e m b r o s d a c o n f r a r ia d a M is e r ic ó r d ia .
S e ria m estes os c o m p o n e n t e s d a q u e l a “p le b e i n d is c ip lin a d a e t u r b u le n t a , s e m p r e
pronta a d e r r u b a r a o r d e m e s t a b e l e c i d a ”, dc q u e fa la m a lg u n s a u to re s? A b a n d o n a d o s
pelos p o d e re s p ú b l ic o s , v iv ia m d a c a r i d a d e d o s p a s s a n te s o u d e a l g u m a f a m ília q u e os
acolhia. S u n , p o r q u e to d a f a m íl ia q u e e s c a p a v a d a p e n ú r ia t in h a seus p o b re s, aos q u a is
não só a l im e n t a v a c o m o c o n t e m p l a v a c m t e s t a m e n t o , q u a n d o t in h a o q u e le g a r. S e ja
com o for, essa m a s s a i n d i g e n t e p e s a v a so b re a e c o n o m ia d a c id a d e . P o d e m o s a v a lia r
m elh o r esse p eso se p e n s a r m o s e m t o d a s as m is é r ia s e s c o n d id a s p o r u m a g e n te altiv a
e o rg u lh o sa. Essa c a t e g o r i a f o r m a v a a m a io jú a dos b a ia n o s , m u l t i d ã o de re le g ad o s q u e
viviam ao d e u s - d a r á , o u a o s a b o r d o s c a p r ic h o s d o s m a is a q u in h o a d o s .
C omparações '
r u r a l, m e s m o le t r a d o , n u n c a p a s s a r ia d e m c s t r e - e s c o l a . A ú n i c a s a íd a e r a ir para a
c id a d e , o n d e o a r t e s ã o , o p e q u e n o c o m e r c i a n t e , o t i m o n e i r o d e u m b a r c o p o d iam
a c a l e n t a r a m b i ç õ e s , p a s s ív e is d e c o n c r e t i z a ç ã o p o r m e i o d o t r a b a l h o e d a s relações
m a n t i d a s c o m o s m a is b e m a q u i n h o a d o s . E ra p o s s ív e l f a z e r - s c e m p r e i t e i r o im p o rta n te ,
c o m e r c i a n t e d e p e s o . p r o p r i e t á r i o d e e m b a r c a ç ã o . D e f a r o , a m o b i l i d a d e so cial era
m a io r n a c i d a d e q u e n o c a m p o p o r q u e a l i os h o m e n s e r a m m e n o s d e p e n d e n t e s , Essa
m a io r a u t o n o m i a e ra d e s f r u t a d a a t é p e lo s e s c r a v o s , q u e a l c a n ç a v a m a a lf o r r ia em
n ú m e r o m u i t o m a io r .
S e m d ú v i d a m a is a b e r t a , a e s t r u t u r a s o c i a l d a c i d a d e p e r m i t i a a v io la ç ã o d c lim ites
s u p o s t a m e n t e r í g i d o s e o f e r e c i a u m l e q u e d e o p o r t u n i d a d e s m u í t o m a is a m p lo : este
e r a s e u p r i m e i r o t r a ç o c a r a c t e r í s t i c o . O s e g u n d o , já m e n c i o n a d o , e r a o c a r á t e r plural
d o g r u p o d o m i n a n t e , d a e l i t e u r b a n a . E r a m m u i t o s o s h o m e n s r ic o s e p r e s tig io s o s que,
d e u m a m a n e i r a o u d e o u t r a , e x e r c i a m p o d e r s o b r e o c o n j u n t o d o c o r p o so c ia l. Por
c e r t o n e m t o d o s e r a m c l a r o s , e m b o r a s e ja i m p o s s í v e l e s t a b e l e c e r c o m e x a t id ã o a pro
p o r ç ã o d a s p e s s o a s d e c o r q u e i n t e g r a v a m e s s a e l i t e , j á q u e o s d o c u m e n t o s n ã o m en
c io n a m a c o r d a p e le n e m f a z e m r e f e r ê n c i a a r a ç a . I s to p o d e r i a s e r e x p lic a d o pelo
p u d o r , m a s i n c l i n o - m e a n t e s a p e n s a r q u e a q u e s t ã o e r a e v i t a d a s o b r e t u d o p o r causa
d a a m p l i d ã o d a m e s t i ç a g e m , q u e p e n e t r a r a e m t o d a s as c a m a d a s s o c ia is , m e s m o na
q u e la s q u e o n e g a v a m , a p o n t o d e a t é h o j e se r e c u s a r e m a a d m i t i - l o . E ssas pessoas de
c o r q u e f i g u r a v a m n a e lit e n a o e r a m ‘ b r a n c o s d a t e r r a ’ — e sse s j á e r a m e fetiv am e n te
b r a n c o s , n ã o só p e l a c o m p l e t a a s s i m i l a ç ã o , c o m o p e l a p e le . S e r i a m a n t e s pesso as que,
t o t a l m e n t e a c u l t u r a d a s — p o r t a n t o , n a t u r a l m e n t e v is t a s c o m o b r a n c a s — , g u a rd a v a m
s in a is n o tó r io s d a m e s t i ç a g e m . E r a o c a s o d o V i s c o n d e d e J e q u i t i n h o n h a o u d o m édi
co J o sé L in o C o u t i n h o , q u e f o r a m c h a m a d o s a d e s e m p e n h a r u m p a p e l p o lít ic o im p o r
t a n t e p o r o c a s iã o d a I n d e p e n d ê n c i a . E se a ‘ n e g r i t u d e ’ d e sse s p e r s o n a g e n s foi mais
o b s e r v a d a q u e a d e m u i t o s o u t r o s , é p o r q u e s u a s p o s iç õ e s e c o m p o r t a m e n t o s políticos
c o n t r á r io s às d o g r u p o a q u e p e r t e n c i a m — o s p u s e r a m e m d e s t a q u e .
A líá s , e ssa c a r a c t e r ís t i c a p l u r a l d a e lit e se r e p e t i a e m to d o s o s o u tr o s g ru p o s e
c a te g o r ia s d a e s c a la s o c ia l, q u e s e c r e t a v a m , c a d a u m , s u a s p r ó p r ia s e lite s . E lites d e que
p o u c o sa b e m o s , m as q u e s e m p r e t i n h a m p r e s s a e m a s c e n d e r a o e s c a lã o s u p e r io r ou em
fazer crc r q p c n e le j á e s t a v a m , z e la n d o p e la q u a l i d a d e d e s u a s re la çõ es so ciais, tanto a
m o n t a n t e q u a n t o a ju s a n t e d a p o s iç ã o e m q u e e s t a v a m . P a ra p le it e a r u m n ível social
m a is a lto , era p re c iso a p r e s e n t a r p r o v a s : p r im e ir o , d e q u c se e sta v a d is p o s to a aceitar
n o rm a s c regras im p o s ta s d c c i m a ; d e p o is , d e q u c sc g o z a v a d e a m p l o p r e s tíg io no nível
c m q u e sc estav a; f in a lm e n t e , d e q u e se e x e r c ia p o d e r so b re os q u e e stav am abaixo.
So b essas c o n d iç õ e s sc lo rn ia v n m os laço s q u c p r e s id ia m as relaçõ es sociais. Eram
relações q u c e v id e n c ia v a m as s o lid a r ie d a d e s n o in t e r io r d o g r u p o , m a s superavam
seus lim ite s , fo r m a n d o u m a c a d e ia d c a p a d r i n h a m e n t o s de n a tu re z a h ie r á rq u ic a , ca
paz d e atrav e ssa r o c o n ju n t o d o c o rp o so cial. Esses a p a d r in h a m e n t o s p e r m itia m , p ° r
su a vez, a fo rm a ç ã o de c lie n te la s c u ja f id e lid a d e se a p o ia v a n u m p a c to se m p re rene
g o c iad o e a d a p ta d o às c ir c u n s tâ n c ia s do m o m e n t o . N e sse jo g o c o n t í n u a , feito de
11 Vli - ° _E>:\hu*o ívx Bsuntk
--------- _____— _. •
o b n p ç o c s e c o m p ro n m io s q u e r e n o s .n ,m i n c c ^ n i c m e n t c o p a c t o s o c ia l. « u v a
K m d u w d a o s e g r e d o d a e s t a b i l i d a d e d c . s e , u r p „ h e t e r o g ê n e o . S c h a v ia c m S a lv a d o r
m a io r m o b t h d a u c q u e n a . . o t m . m d a d e s u g r u o U d o I W m e a v » . o s m e s m o s p n V ,
p io s d c a u t o r i d a d e , d c . o h d a n e d . u i e c d e c l i e n t e l a u , , , 1(„ n o s d o is c aso s a w e l a ç é x s
so ciais c f a z i a m d e s s e s o n m m o u d a d e / s a m p n UI„ m , u l c |0 l i n i a i d c em
q u e a* d i f e r e n ç a . n a s r c l a s o c s m k í .u s e r a m m a i s d c g r a u q u e d c q u a l i d a d e
A is t m sc a p r e s e n t a v a a s o c i e d a d e b a i a n a n o f in a l d o s é c u lo X V I I I ; o r ig in a i, d i n â
m ic a . e f ic a z . E n t r e s e u s p ó lo s — a e s t a b i l i d a d e e a p e r m e a b i l i d a d e — to d o s te n ta v a m
n a v e g a r . A p r e o c u p a r ã o m a i o r d o s q u e t i n h a m l o g r a d o a a s c e n s ã o s o c ia l é b e m c o
n h e c id a : t r a t a v a - s e . p a r a e le s . d e p r o v a r s u a n o b r e z a , o q u e , p a r a a m a io r ia , cra esfo r
ço v ã o . V i l h e n a , c o m s e u s e n s o d e o b s e r v a ç ã o e s e u d e s d é m s u p e r io r d c e u r o p e u ,
d e s c r e v e u m u i t o b e m e s s e c a p r i c h o c n ã o sc d e i x o u e n g a n a r p o r n e n h u m a b a s ta r d ia .
n e n h u m a f a l s i f i c a ç ã o d c á r v o r e g e n e a l ó g i c a . A o c o n t r a r i o , z o m b o u d e to d o s a q u e le s
d e s c e n d e n t e s d c c a m p o n e s e s o u c a i x e i r o s p o r t u g u e s e s i m i g r a d o s p a r a fazer fo r tu n a
— q ue, a d e m a is , n ão tin h a m e sc a p a d o à m e stiç a g e m — e q u c , n ã o o b s ta n te , se
a p r o p r ia v a m d e n o m e s i l u s t r e s c p o s a v a m c o m o d e s c e n d e n t e s d e a l g u m g o v e r n a d o r
g eral d c s a n g u e a z u l , q u a n d o n a o b u s c a v a m s im p le s m e n te c o m p ra r na C o rte u m a
n o b re z a n o v a e m f o l h a , q u c o s f a z ia t ã o s u p e r i o r e s q u e "o i m p e r a d o r d a C h in a é
in d ig n o d c s e r s e u c r i a d o " . Ul ■
A s o c i e d a d e b a i a n a c r a a b e r t a a t o d o s . E ssa a b e r t u r a , h e r a n ç a d a p á tr ia - m a e ,
a m p i ia r a - s c c m ra/ ü o d a e s p e c i f i c i d a d e d a s c o n d i ç õ e s lo c a is . I m p ò s - s c a fle x ib iliz a ç ã o
de in t e r d iç õ e s f u n d a d a s c m c o n c e i t o s c o m o o d c p u r e z a d o s a n g u e ou d c le g it im id a d e
d e n a s c i m e n t o , i n c a p a z e s d c p e r m i t i r , n o B r a s i l , o t r a ç a d o d e lin h a s d e d e m a r c a ç ã o
n ítid a s e fix a s e n t r e b r a n c o s c p e s s o a s d c c o r . E r a t a m b é m u m a s o c ie d a d e h ic r a rq u íz a d a ,
m a s os c o n t o r n o s d o s g r u p o s s o c i a i s q u e a c o m p u n h a m n ã o c ra iti r íg id o s n e m
in t r a n s p o n ív e is a o s h o m e n s d c t a l e n t o d is p o s t o s a a c e i t a r s u a s n o r m a s . P o r o u tr o lad o ,
era u m a s o c i e d a d e e m q u c o fo sso e n t r e ric o s e p o b r e s sc a la r g a v a c a d a vez m ais,
faz e n d o d o s p r i m e i r o s u m a m i n o r i a , c m c o n t r a s t e c o m a g r a n d e m assa in d ig e n te ,
f i n a l m e n t e , c r a u m a s o c i e d a d e a m b i v a l e n t e , d i v i d i d a e n t r e o m o d e lo b r a n c o o da
p á t r ia - m ã e , o d a d i s t a n t e c p r e s t ig io s a E u r o p a , q u c r e a liz a v a d e m a n e ir a im p e rf e ita
(à m ín g u a d c n o b r e s c d c s a n g u e p u r o ) — c u m a r e a l id a d e a u t ó c t o n e c u ja d in â m ic a
o r ig in a ! c ra tã o fo r te q u c a c a b a v a p o r se im p o r , m e s m o q u e isso fosse o c u lta d o c
n e g a d o . A o lo n g o d o s é c u lo X IX , e ssa a m b i v a l ê n c i a g e r o u a t it u d e s q u c tra n sfo rm a ra m
o d iá lo g o s o c ia l n u m v e r d a d e i r o d iá lo g o d e s u r d o s , s u s c it a n d o o b s tá c u lo s revelados
por c e rto s c o m p o r t a m e n t o s q u c e x p u s ao fa la r d a f a m ília , d o E stad o c d a ig re ja . Esses
o b stá c u lo s c re s c e r a m q u a n d o , à q u e le s s u s c ita d o s p e la s h ie r a r q u ia s so ciais q u e p a re
c ia m re sistir a sc t r a n s f o r m a r c o m o t e m p o — , a c r c s c c n ta r a m -s c os d e c o rre n te s a
d is tr ib u iç ã o d a r i q u e z a m a t e r ia l. Q u c b a ia n o s t in h a m a l g u m a c o is a de seu? E n tre 1 8 0 0
e 1 8 8 9 , c m q u e c o n s is t ia m as f o r tu n a s n a B a h ia ?
C A P Í T U L O 3 1
A F o r t u n a d o s B a ia n o s
602
J í ^ V H - O D^ hbko o o s b a i a n o s
d e ix asse d e e s t a r r e s e r v a d o a u m a r e s t r it a c a m a d a d o c o rn n ■i
fazia q u e m t i n h a a l g u m a c o is a d e s e u . Cí 5 111113 Vez ^ só °
E s p e lh o s d a h i s t ó r i a m u i t a s v e z e s c o m o v e n t e d e seu s a u t o r a ,1
co m o p a s s a d o e t e m o r e s e m r e la ç ã o a o f u t u r o , os t e s t a m e n t ^ - C P re° CUpações
in s u f ic ie n t e p a r a u m e s t u d o s ó l i d o d a s f o r t u n a s : n a m a i o r i a áol c T o s ^ 1^ 0 ^
m al o u i n c o m p l e t a m e n t e d e s c r i t o s . A s c if r a s , q u e s e r ia m i n d i s p e n X ^ V a n “ °
c em q u a n d o se t r a t a d e e v o c a r s o m a s r e f e r e n t e s a le e a d o s H ív irW . ■’ ’
. • . i - r • •, B ’ a m a a s em ativ o o u pas-
s,vo. OU ainda doaçoes feitas em vid a a filhos e que entravam em colação Mas foi
sobretudo o núm ero incalculável de vezes em que neles aparecem frases como “o
resto d e m e u s b e n s é d o c o n h e c i m e n t o d e m i n h a m u l h e r ” o u “os h^nc „
j j ' ■ 'k i - » ( •\ • j- , , q P ° ssuo
sao d e d o m í n i o p u b l i c o (ric) q u e m e i m p e d i u d e le v a r e m c o n ta esta série, tanto
m a is q u e só p u d e e n c o n t r a r p o u c o s i n v e n t á r i o s post mortem c o rre s p o n d e n te s a esses
testam en to s.
E ssa f a l t a d e c o r r e s p o n d ê n c i a se e x p l i c a , e m p r i m e i r o lu g a r , p e lo fato d e q u e nem
ro do t e s t a m e n t o d a v a l u g a r a i n v e n t á r i o , E s t e só e r a o b r ig a t ó r io e m três casos: q u a n d o
o t e s t a d o r t i n h a , e n t r e o s h e r d e i r o s , c r i a n ç a s m e n o r e s , c u jo s b e n s d e v ia m ser resg u ar
dados; q u a n d o m o r r ia ab intestato e q u a n d o , n a o t e n d o h e r d e ir o s , s u a f o r tu n a passava
às m ã o s d o E s t a d o . A l i á s , u m a l e i d e 1 7 5 4 , a i n d a e m v i g o r n o s é c u lo X IX , prescrevia
q u e os h e r d e i r o s d i r e t o s e n t r a v a m d e i m e d i a t o n a p o s s e d e s u a h e ra n ç a , d e m o d o a
e v ita r p r e t e n s õ e s d e h e r d e i r o s n ã o n e c e s s á r i o s . 1 A d e m a i s , a té 1 8 8 0 , os h e rd e iro s d ire
tos ( a s c e n d e n t e s e d e s c e n d e n t e s ) n ã o p a g a v a m q u a l q u e r ta x a p e lo d ir e ito d e sucessão.
J á os h e r d e ir o s n a o n e c e s s á r i o s p a g a v a m t a x a s q u a n d o e r a m d e s ig n a d o s e m testam ento
o u q u a n d o se b e n e f i c i a v a m d a t e r ç a p a r a f a v o r e c e r p a r e n t e s d is t a n t e s o u o u tras pessoas.
N e ste s d o is c a s o s , e r a o t e s t a m e n t o q u e s e r v i a c o m o d o c u m e n t o p ro b a tó rio para
e s ta b e le c e r o m o n t a n t e d a s t a x a s q u e i n c i d i a m s o b r e a h e r a n ç a d e c a d a c atego ria de
h e r d e ir o s n ã o n e c e s s á r io s .
A l g u n s m o m e n t o s d a h i s t ó r i a d a s ta x a ç õ e s a p lic a d a s p e lo E s ta d o às sucessões
m e r e c e m ser e v o c a d o s . E m 1 8 0 9 , o ‘se lo d e h e r a n ç a ’ — c o m o e r a c h a m a d o o im posto
so hre a s u c e s s ã o — e r a p a g o à ra z ã o d e 1 0 % d o v a lo r d a h e r a n ç a p o r p a re n te s p ró x i
m os d o f a le c id o ( s e g u n d o g r a u c a n ô n ic o ) e d e 2 0 % p o r o u tr o s h e rd e ir o s , parentes
d is ta n te s o u n ã o - p a r e n t e s . A p a r t i r d e 1 8 3 8 , os filh o s n a t u r a i s fo ram ta m b é m obriga
dos a p a g a r u m a ta x a d c 1 0 % , s e n d o a s s im e q u ip a r a d o s aos p a re n te s p ró x im o s. Em
1 8 6 1 , os m e s m o s f ilh o s n a t u r a i s t o r n a r a m - s e is e n to s, r e c e b e n d o d e sd e e n tã o o m esm o
tr a t a m e n t o d c d e s c e n d e n t e s e a s c e n d e n te s le g ítim o s ; m as os filh o s d e u m p rim e iro
c a s a m e n to p a s s a r a m a ter q u c p a g a r o se lo q u a n d o h e r d a v a m d e tios e rias. Essa nova
lei r e a f ir m a v a a i n d a u m d is p o s itiv o a n t e r io r , p e lo q u a l as ap ó lic e s e m itid a s p e io Estado
eram is e n ta s d c q u a l q u e r ta x a ç ã o , fosse q u a l fosse a c a te g o ria do h erd eiro . s lt^ ^
dos filhos naturais voltou a ser alterada em 1877: já não eram considerados herde.ros
oecessirios, mesmo quando reconhecidos pelos pais por aro carronal ou testamento e
deviam pagar uma « a s a d e 2 0 % pelo direito à sucessão parental. igual à que pagavam
os p a re n te s d is t a n t e s do te s ta d o r o u os n ão -p aren tes.
604 B a h i a , S é c u l o X IX
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1,,,,-ta.u lo -* cm ,8 .w , imlo
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a b r a n g e n .a .s d c m e t a d e d o p e r í o d o q u c n o s in t e r e s s a . C o m p r e e n d e 2 0 6 8 in v en tário s'
d o s q u a i s 1 . ^ 6 est.to d c v . d a m c . u c d a t a d o s , m a s a p r e s e n ta la c u n a s e n ão obedece
en ren o s u n ifo r m es: ora os t lo c u m c n to s dão a soma total d a hcranca e as rav.c n„„
I I * *J 1 1 1 l í l Aa a QUC
so b re e la i n c i d e m , o r a , n o c a s o d e le g a d o s , r e g is t r a m a p e n a s a s o m a a eles c o rresp o n
d e n te e as t a x a s p a g a s , s e m m e n c i o n a r o t o t a l d a h e r a n ç a . M a s , se n ã o p o d e ser útil
p a r a u m e s t u d o s o b r e as f o r t u n a s , e s s a f o n te d á u m a b o a p is ta q u a n t o ao n ú m e r o total
dos i n v e n t á r i o s p o s t m o r t e m .
S o m e n t e c o m r e l a ç ã o a d o is a n o s — 1 8 5 5 e 1 8 8 1 — p u d e r e u n ir d ad o s c o m os
r e q u is it o s n e c e s s á r i o s p a r a u m a in v e s t ig a ç ã o : os r e g is tr o s n ã o e x ib ia m la c u n a s, e p u d e
fazer p e s s o a l m e n t e o e x a m e d o s d o c u m e n t o s . O b t i v e a s s im , e m relação a 1 8 5 5 , um
to ta l d e 1 1 9 i n v e n t á r i o s , 5 3 d o s q u a is p e r t e n c e n t e s à sé rie q u e e n g lo b a v a arq u iv o s de
to d o s os c a r t ó r i o s e 6 6 à d o s liv r o s d e r e g is t r o d a s su c e ssõ e s; e m re lação a 1 8 8 1 , obtive
110 in v e n tá rio s, 46 p r o v e n i e n t e s d o s a r q u i v o s d o s c a r tó r io s e 64 dos livro s de registro.
A p ó s e l i m i n a r d u p l i c a t a s , c o n s e r v e i 1 0 5 in v e n t á r io s d e 1 8 5 5 e 9 7 de 1 8 8 1 .
Q u e p e r c e n t a g e m d o c o n j u n t o d a p o p u la ç ã o a d u l t a liv re fa le c id a em Salvad o r
nesse p e r í o d o t e r i a b e n s a i n v e n t a r i a r ? C o m o j á o b s e r v e i,4 é im p o ssív e l re sp o n d e r essa
p e r g u n t a d e m a n e i r a c l a r a e d i r e t a . É p r e c is o p r o c e d e r p o r h ip ó te se s.
J o h i l d o L o p e s d e A t h a y d e c a l c u l o u e m 2 . 7 5 5 o n ú m e r o d e ó b ito s d e 1855 e em
2.664 o d e 1 .8 8 1 , s e m p r e e m S a l v a d o r . S e a d m i t i r m o s q u e 3 0 % d eles co rresp o n d iam
a e sc rav o s, c r ia n ç a s e jo v e n s , t e r e m o s 1 . 9 2 0 a d u l t o s liv res m o rto s e m 1885 e 1.865 em
1 8 8 1 . É u m a h i p ó t e s e , m a s b o a p a r t e d e le s , c o m o sa b e m o s , nao tin h a bens a legar.
F ico p o r a q u i n e sse t e r r e n o d o s a r d is e p a sso a te n t a r v e rific a r q u e resu ltad os é possível
o b te r c o m p a r a n d o o n ú m e r o d e in v e n t á r io s q u e e n c o n t r e i c o m o n ú m e ro estim ad o e
ó b ito s e n t r e a p o p u l a ç ã o a d u l t a liv re :
T A B E L A 103
ToT 1 .9 20 5 .3 »
1 ,8 65 5 .2 %
1881 97
Esse resultado parece bastante coerente. Suponho que n5o se afora m u lto da
realidade da época, embora eu não queira afirmar que sd 5 * da populaçao hvre de
c i , . 1 r n i a He seu o e ru p o p o d e ter sido m aio r, m as nao m enor
S a lv a d o r tiv essem a l g u m a j c ^ á v e l dos in v en tário s envolve heranças
do q u e isto. D e u m la d o , p e rc e n ta g e m
606 B a h ia , S écu lo X IX
m o d e s ta s ; d e o u t r o , m u it o s d e ix a v a m b e n s q u e n u n c a fo ra m in v e n ta r ia d o s . Seja c o m o
for, d o to ta l d c 4 . 6 1 8 in v e n tá r io s q u e e n c o n t r a m o s , só c o n s id e r a m o s e m nossos estu
d o s os in v e n tá r io s post mortem p r o v e n ie n t e s d e a r q u iv o s d e ta b e liã e s . D os 2 . 5 5 0 in ven
tá rio s re fe re n te s a o n o sso p e r ío d o , fo r a m e x a m i n a d o s 1 . 1 1 5 , isto é, 4 3 ,7 % desse
c o n j u n t o e 2 4 , 1 % d o to ta l e n c o n t r a d o . E ssa a m o s t r a m e p a r e c e u estatistica m e n te
c o r r e ta e — n a im p o s s ib ili d a d e , à fa lta d e fo n te s m a is ric a s, d e a v a lia r em cifras a
r iq u e z a e a p o b r e z a d o s b a ia n o s — s u f ic ie n t e p a r a u m a a v a lia ç ã o d a s o rd e n s d e gran
d e z a e m q u e se s i t u a v a m as f o r t u n a s e d o s b e n s q u e a s c o m p u n h a m .
E s ta b e le c i a a m o s t r a t o m a n d o o it o in v e n t á r io s p o r a n o e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 8 9 , já que
p a r a os a n o s d a s três p r im e i r a s d é c a d a s d o s é c u lo n ã o d i s p u n h a d e n ú m e r o maior.
E sco lh i e m s e g u i d a d o is p e r ío d o s — 1 8 5 3 - 1 8 5 7 e 1 8 8 1 —1 8 8 5 , c o m o já referi — para
o s q u a is e x a m i n e i a t o t a l i d a d e d o s in v e n t á r io s , d e m o d o a te r , p a r a a lg u n s an os, uma
q u a n t i d a d e ra z o á v e l d e d o c u m e n t o s , q u e p e r m it i s s e c o m p a r a ç õ e s m a is só lid a s. Para os
a n o s e m q u c e x a m i n a m o s a p e n a s o ito in v e n t á r io s , q u a n d o s e u n ú m e r o to ta l se apro
x im a v a d o s q u a r e n t a , c o n s i d e r a m o s s i s t e m a t i c a m e n t e , n a m e d i d a d o p o ssív el, o últim o
d e c a d a sé rie d e c in c o .
O s d a d o s fo r a m c la s s if ic a d o s e m n o v e r u b r ic a s e, e m s e g u i d a , q u a n d o possível —
po is os in v e n t á r io s n a o a c o m p a n h a d o s d e t e s t a m e n t o r a r a m e n t e m e n c i o n a m a ocupa
ção d o fa le c id o — , os in v e n t á r io s f o r a m a g r u p a d o s e m q u i n z e c a te g o r ia s sócio-econô-
m ic a s q u e n o s p a r e c e r a m r e p r e s e n t a t iv a s d a s ‘o c u p a ç õ e s* d o s b a ia n o s . .
O p r o c e s s a m e n to d e sse s d a d o s e m c o m p u t a d o r te v e d o is o b je tiv o s : classificar a
f o r t u n a d o s b a ia n o s in v e n t a r ia d o s , d e m o d o a d i s t i n g u i r n ív e is o u lim ia r e s , e verificar
c o m o essas fo r tu n a s se d i s t r i b u í a m e n t r e as c a t e g o r ia s s ó c ío - e c o n ô m ic a s q u e havíam os
d is t ín g u id o . I m p o r t a v a a i n d a s a b e r d e q u e se c o m p u n h a m essas fo r tu n a s e com o ti
n h a m e v o lu íd o n o te m p o , u m a ve z q u e , ao lo n g o d o s é c u lo , a lg u n s co m p o n e n te s tinham
s id o s u b s t itu íd o s p o r o u tr o s . I n te r e s s a v a t a m b é m , f in a lm e n t e , c o n h e c e r o peso de cada
c o m p o n e n te n a f o r tu n a d e c a d a c a t e g o r ia s ó c io - e c o n ô m ic a . C o m o a av alia ç ã o era feita
em c o n to s d c réis, m e n o s n o caso d as f o r tu n a s m a is m o d e s ta s , u tiliz a m o s a grafia das
cifras c o rre n te no s é c u lo X I X p a r a f a c ilit a r a le it u r a d o s d a d o s e t o r n a r os com entários
m a is c laro s. A ssim , o c o n to d e réis (u m m ilh ã o d e réis) é s e p a r a d o d o s m il réis restantes
por d o is p o n to s ( 1 :0 0 0 ) . P a ra e v ita r c ifra s d e m a s ia d o lo n g a s , e lim in a m o s quantias
in feriores a esse p a t a m a r , s u p r im in d o as m e n o re s q u e q u in h e n t o s réis e arredondando
as m aio res. .
C l a s s if ic a ç ã o d a s F o r t u n a s
O q u e s a b e m o s s o b re a e s tr a tif ic a ç ã o s ó c io - e c o n ô m ic a d e S a lv a d o r s u g e re q u e o le q u e
d a s fo rtu n a s e r a b a s ta n te e x te n s o , to r n a n d o -s e in d is p e n s á v e l v e r if ic a r s e n o s s a am o stra
é re p re s e n ta tiv a d e to d o s os n ív e is d e r iq u e z a a li e x is te n te s e, em s e g u id a , em q u e
classe s o u c a te g o ria s d e f o r tu n a se c o n c e n tr a v a m o s in v e n tá rio s .
U v r o V 11 - O D in h e ir o n o s B a ia n o s
TABELA 104
C l a sse
F req ü ên cia F reqüência F reqüência
absoluta RELATIVA ACUMULADA
1, até : 100 6 0,5 0,5
2. : 101 a :2 0 0 8 0,7 1,2
3. :201 a :5 0 0 55 4,9 6,1
4. :501 a 1:000 97 8,7 14,8
5, 1 :10 0 a 2:000 128 11,5 26,3
6. 2 :1 0 0 a 5:000 2 33 20,9 47,2
e m p r e g o n o s e to r d e se rv iç o s , e o t r a b a lh o e s c ra v o foi p r o g r e s s iv a m e n t e su b stitu íd o
p e lo t r a b a lh o liv re .
A o c o r r ê n c ia d e p a s s a g e n s d e u m n ív e l d e f o r t u n a a o u t r o , s o b r e t u d o n a s e g u n d a
m e t a d e d o s é c u lo , p a r e c e m a is q u c p r o v á v e l. A liá s , v e r if ic a - s e q u e , c o m o passar dos
a n o s , a p r o p o r ç ã o d a s p e q u e n a s f o r t u n a s se r e d u z iu . F o r t u n a s d e 1 0 : 0 0 0 d e réis eram
m a is s ig n if ic a t iv a s n o in íc io d o s é c u lo q u e n o f in a l, s e ja p o r q u e o n ú m e r o d e grandes
f o r tu n a s e r a m e n o r e o te to m a is b a ix o , s e ja p o r q u e t i n h a m m a io r v a lo r real, pois a
in f la ç ã o o c o r r id a n o p e r í o d o n a o p o d e se r e s q u e c id a .
É v e r d a d e q u e , n o e s p í r it o d o p o v o , o d e v i d o d e s c o n t o n a o e r a f e ito . Q u e m tinha
u m a f o r t u n a d e s s e v a lo r c o n t i n u a v a a se r c o n s i d e r a d o r e m e d i a d o . T e r u m a casa térrea
— q u a n d o ta lv e z se s o n h a s s e c o m u m s o b r a d o — , a l g u n s m ó v e is to sco s e u m dinhei-
r in h o n o b o lso j á c o n f e r i a p r e s t íg io e i n t r o d u z i a a p e s s o a n o r o l d o s a b o n a d o s . Aliás,
n u m a c id a d e o n d e a m a i o r i a v i v ia n a p e n ú r i a , a l g u m a s c e n t e n a s d e m i l réis n o bolso
j á e r a riq u e z a ,
V o l t a r e i aos c o n c e i t o s d e r i q u e z a e p o b r e z a , m a s d e s d e j á q u e r o d e ix a r claro que
n a o p r e t e n d o ir m u i t o lo n g e n a b u s c a d e c r it é r io s p a r a e s s a d e f in i ç ã o : n a B a h ia , a posse
d e q u a l q u e r b e m c o n f i g u r a v a f o r t u n a , e e ste s e r á u m p r e s s u p o s t o d e to d a a m in h a
a n á lis e .
TABELA 105
C l a s s i f i c a ç ã o d a s F o r t u n a s em S a l v a d o r ,
1 8 0 1 - 1 8 8 9 (e m c o n t o s d e r é i s )
R e d u z i a d u a s as q u a t r o p r im e i r a s c a t e g o r ia s d a c la s s if ic a c á o a n te r io r . As fortunas
até 2 0 0 . 0 0 0 réis — q u e f o r m a m a g o r a a p r im e i r a c lasse — lim ita v a m - s e em geral a
b en s de u so p esso al, c o m o ro u p a s c m ó v e is . N e m s e m p re , p o r é m : nos in ven tários de
até 1 8 5 0 e n c o n tr a - s e p o r vezes u m e sc rav o a r r o la d o e n tr e os p o ssu id o res d e bens nessa
faixa. Q u a s e s e m p re e ra id o so , d e p o u c o v a lo r, o u ‘c o a r t a d o ’, isto é, prestes a ser
alfo rria d o , d e v e n d o a p e n a s p a rte de seu p reç o ao se n h o r. N esse caso, ap ós a m orte do
d o n o , ia a le ilã o , e o v a lo r a p u r a d o c a b ia aos h e rd e iro s. O s bens p o d iam co m p o r se
ta m b é m d e c ré d ito p o r e m p r é s tim o feito a u m te rc e iro , d ív id a a ser c o b rad a n a Justiçs»
d o n d e aliás a n e c essid ad e d o in v e n tá rio . O s in v e n tá r io s d a se g u n d a m e ta d e do século
L iv r o V I I - O D in h e i r o d o s B aianos
f r rCf f ' MVam eSS\ em >’r« ' im os- »P «cciam t.m bém ações bancária, co.no as
da C a ,.a F.cononnca. Nesses casos, em geral só esse erédi.o era levado em contT o
b e n s — m o v e is , r o u p a s — r a r a m e n t e e r a m a v a lia d o s .
A s e g u n d a c U s s c . a d a s ' p e q u e n a , f o r t u n a s ’ , a b r a n g e a fa ix a d e 2 0 1 . 0 0 0 réis a
1 :0 0 0 d e rc ,s . O s q u e e s t a v a m p r ó x i m o s d o p is o d e s s a fa ix a p o u c o se d ife re n ç a v a m dos
d a c a t e g o r i a a n t e r i o r , c o m a l g u n s m il ré is a m a i s . T e r i a m u m g u a r d a - r o u p a m en o s
e x íg u o , u m m o b t l t á r m m a is c o m p l e t o , a l g u m a j ó i a m o d e s t a , u m o u d u a s im a g e n s d e
s a n to s , b o m . 5 0 0 . 0 0 0 r é is j i s e p o d i a a t é c o m p r a r u m c a s e b r e e, d e p e n d e n d o d a é p o c a
p o s s u ir u m o u d o i s e s c r a v o s q u e , m e s m o s e m g r a n d e q u a lif ic a ç ã o , s o m a v a m a lg u m a
c o is a a o o r ç a m e n t o f a m i l i a r . E r a t a m b é m f r e q ü e n t e a p r á t i c a d e e m p r é s tim o s e a
c o m p r a d e u m a o u d u a s a ç õ e s , o q u e , n e s t a c la s s e c o m o n a a n t e r io r , e r a u m a m a n e ir a
d e se a l ç a r a u m a c a t e g o r i a m a i s a b a s t a d a . A t é e ste n ív e l d e f o r tu n a , n u n c a se e stav a ao
a b r ig o d e u m r e v é s . U m a d o e n ç a p r o l o n g a d a , u m a fa lta d e t r a b a lh o , e a h e r a n ç a p o d ia
r e d u z ir - s e a d í v i d a s .
A s f o r t u n a s m é d i a s — t e r c e i r a c la s s e — se d i s t i n g u i a m d as d u a s p r im e ir a s p o rq u e ,
e m g e r a l, s e u s d e t e n t o r e s p o d i a m d i v e r s i f i c a r u m p o u c o m a is os se u s b en s, ac re sc e n
ta n d o a o p r i m e i r o c a s e b r e u m s e g u n d o , p a r a a l u g u e l , o u c o m p r a n d o m e lh o r e s m óveis.
N o s i n v e n t á r i o s , a p a r e c e m c a d e i r a s , b a ú s , m a is e m e lh o r e s ro u p a s, u te n sílio s d e cozi
n h a m a is v a r i a d o s , a l g u n s t a lh e r e s . O p r i n c i p a l é q u e , d e sse n ív e l e m d ia n te , já era
p o ssív e l te r u m a c a s a d e v e r d a d e — t é r r e a , c o m ja n e la e p o r t a d a n d o p a ra ru a, dois
q u a r t o s , c o r r e d o r e u m q u i n t a l z i n h o n o s f u n d o s — , isto é, a d q u ir ir p restíg io de
v e r d a d e i r o p r o p r i e t á r i o . A li a s , as c a sa s té rr e a s , c o n s id e r a d a s casas de p o b re, eram
is e n ta s d o i m p o s t o d e lo c a ç ã o q u e i n c i d i a s o b r e o s im ó v e is m a is valo riz ad o s, o que
e x p lic a s e u g r a n d e n ú m e r o , p o r t o d a a c id a d e .
S c a c a sa t é r r e a e s t a v a ao a l c a n c e d e s s a s p e sso as, a in d a pobres em relação aos
v e r d a d e ir o s r ic o s , o s o b r a d o f ig u r a v a q u a s e s e m p r e e n t r e os bens d os q u e tin h am entre
2 : 1 0 0 c 1 0 : 0 0 0 d e ré is — a q u a r t a c lasse . A f a m íl ia a lo ja v a -s c e m geral 110 segu nd o
p a v im e n t o e o p r o p r ie t á r i o u s a v a o té rre o p a r a se u t r a b a lh o d e artesão ou co m ercian te.
Por vezes o té r r e o c ra a l u g a d o a e sc ra v o s, p e q u e n o s c o m e r c ia n te s o u artesãos. Alguns
in v e n tá r io s d e ssa fa ix a a r r o la m u m s e g u n d o s o b ra d o ou u m a casa térrea, c,
A b o liç ã o , q u a s e s e m p r e m e n c i o n a m e sc rav o s, a g r e g a d o s , m óveis e jóias. M as ™
nessa d a s s e os h e r d e ir o s n e m s e m p r e e s ta v a m e c o n o m ic a m e n t e g arantid o s, u o
d e p e n d ia d a g e s tã o d e ssas p e q u e n a s fo rtu n a s, e a a b e r tu ra do in v e n tá rio não t-ir ■
a m a r g a s re v e la ç õ e s: e x ce sso d e d ív id a s o u e m p r é s tim o s c o n c e d id o s sem as 1 cvii
p re c au ç õ e s p o d ia m r e p r e s e n ta r a r u ín a . As p r im e ir a s e ra m c o m u n s, pois um prop™-’
lário tinha crédito fácil; quanto » > empréstimos. conccdé-lo., cra quase obng. .
por u m a o u c.s tão d c p o s i ç ã o c p r e s t í g i o . do
Com l i . dc lo CliO O dc réis
J U O U C r c i.t já sc
^ c
v r. rico.
— especialmente
- , p
- r.m e tra mcr.,dc
. do
z 1 e 1 d a s s e a q u in t a q u e di.stingui, situava-se 1/4 dos quc
sécu lo , c o m o v e re m o s. N esta d a s s e 1^ c|aramentc> u m a característica
tin h a m b e n s. P o r o u tr o la d o , sc < ■ jt QS diferentes com ponentes
das fo rtu n a s dc m a io r v u lto : a rcn d én cm ao c q u ilít
610 B a h ia , S é c u lo XI X
d a r i q u e z a . E m q u a s e t o d o s os in v e n t á r i o s f i g u r a m b e n s im ó v e is , d e p ó s i t o s b a n c á r io s ,
a ç õ e s e a p ó lic e s d o T e s o u r o e, s a lv o e x c e ç õ e s , as d í v i d a s e m a t iv o c o r r e s p o n d e m m ais
o u m e n o s às q u e a p a r e c i a m e m p a s s iv o . I n v e s t i m e n t o s n o c o m é r c i o e r a m t a m b é m
f r e q ü e n t e s ; d e fa to , n e ssa f a ix a se c o n c e n t r a v a m o s lo jis t a s b e m - e s t a b e í e c i d o s , q u e
c o n t r o l a v a m o v a r e jo , a l é m d e f u n c i o n á r i o s e m a g i s t r a d o s , a l g u n s p r o f is s io n a is lib e ra is
e m e m b r o s d o a lt o c le r o . E r a m f o r t u n a s s ó l i d a s , c o r r e s p o n d e n t e s à e lit e d a classe
m é d i a d e S a l v a d o r , c u j o s h e r d e i r o s j a m a i s se v i a m c o n t e m p l a d o s c o m u m s a ld o n e g a
t iv o , c o m o o c o r r i a n a s q u a t r o c a t e g o r ia s a n t e r i o r e s .
A s trê s c la s s e s s u b s e q ü e n t e s r e p r e s e n t a m as g r a n d e s f o r t u n a s b a ia n a s . P a r a d is tin -
g u i - l a s , u s e i s u a f r e q ü ê n c i a . P o r e x e m p l o , f o r t u n a s d e 5 0 : 1 0 0 a 2 0 0 : 0 0 0 d e ré is , a sexta
d a s s e , r e p r e s e n t a v a m 8 , 8 % d o t o t a l d o s i n v e n t á r i o s ; j á a s d a s é t i m a c la s s e , n a f a ix a dos
2 0 0 : 1 0 0 a 5 0 0 : 0 0 0 d e ré is , e r a m a p e n a s 2 % d o t o t a l . C a b e o b s e r v a r a i n d a q u e 9 0 %
dessas g ra n d e s riq u e z a s p e r te n c ia m a n e g o c ia n te s q u e tin h a m a t i v i d a d e s m u it o
d iv e r s if i c a d a s , c o m i n v e s t i m e n t o s q u e a b r a n g i a m t a m b é m b a n c o s , c o m p a n h i a s de
segu ro s e d e tran sp o rte s e e m p re sas in d u s tria is . E m certo s d o c u m e n to s sao cham ados
d e ‘c a p i t a l i s t a s ’ , m a s a d e s i g n a ç ã o é a m b í g u a ; a m e s m a p e s s o a a p a r e c e e m d ife re n te s
p a p é is , o r a c o m o n e g o c i a n t e , o r a c o m o c o m e r c i a n t e , o r a c o m o c a p i t a l i s t a . O s 1 0 %
r e s ta n te s d e s s a d a s s e d e f o r t u n a e r a m p r o f i s s i o n a i s l i b e r a i s e s e n h o r e s d e e n g e n h o .
V e r e m o s q u e e ste s p e r d e r a m s u a p o s iç ã o p o r v o l t a d e m e a d o s d o s é c u l o , d e s c e n d o à
q u i n t a c a t e g o r i a , a d a s ‘b o a s f o r t u n a s ’ .6
F iz r e c o r te s c r o n o l ó g i c o s e m tr ê s p l a n o s . N o p r i m e i r o , d i v i d i e m d o is o p e río d o
1 8 0 1 - 1 8 8 9 , c o m u m c o r t e e m 1 8 5 0 , u m a v e z q u e as a n á li s e s m o s t r a m q u e esse an o
m a r c o u n í t i d a r e v i r a v o lt a n a e v o l u ç ã o d o s p r e ç o s , d o s s a lá r io s e d a s c o n d iç õ e s do
m e r c a d o e m S a l v a d o r . N o s e g u n d o , o m e s m o p e r í o d o f o i r e c o r t a d o e m q u a tr o
s u b p e r ío d o s , s e g u n d o o s m o v i m e n t o s d a c o n j u n t u r a b a i a n a , ta l c o m o s u g e r id o s pelo
estu d o d e preços: 1 8 0 1 - 1 8 2 1 , 1 8 2 2 - 1 8 4 5 , 1 8 4 6 - 1 8 6 0 e 1 8 6 1 - 1 8 8 9 .
O t e r c e ir o r e c o r te , p o r f im , n ã o e s t a b e l e c e u m a p e r i o d i z a ç ã o : s i m p le s m e n t e des
ta c a d o is m o m e n t o s p a r a u m e x a m e c o m p l e t o d o s i n v e n t á r io s : 1 8 5 3 - 1 8 5 7 e 1 8 8 1
1 8 8 5 . 0 p r im e i r o foi e s c o lh i d o p o r q u e n e le a t a x a d e m o r t a l i d a d e a t i n g i u s e u m á x im o ,
o q u e p r o m e t i a u m m a i o r n ú m e r o d e i n v e n t á r io s . A e x p e c t a t iv a se c o n f i r m o u : nesse
in te r v a lo , h á u m a m é d i a d e 4 4 in v e n t á r io s p o r a n o , a o p a sso q u e le v a n ta m e n to s
re fe re n te s ao s a n o s 1 8 6 3 - 1 8 6 5 , 1 8 6 8 - 1 8 6 9 , 1 8 7 3 - 1 8 7 5 e 1 8 7 8 - 1 8 7 9 in d ic a m m é
d ia s a n u a is n u n c a s u p e r io r e s a q u a r e n t a . E u s u p u n h a , a liá s , q u e as leis d e 1861 e 1 8 7 0
c, s o b r e tu d o , a d e 1 8 8 0 , q u e i m p u n h a m n o r m a s m a is e s t r it a s à su c e ss ã o , p o d ia m ter
feito c re sc er o n ú m e r o d e in v e n t á r io s . M a s c o n s t a t e i o c o n t r á r i o : e n tr e 1881 e 1 8 8 5 ,
p o r e x e m p lo , b a ix a r a m a 3 8 p o r a n o . C o n v é m le m b r a r , e n t r e t a n t o , q u e os d o c u m e n
tos e n c o n tr a d o s n o A r q u iv o P ú b lic o d a B a h ia são a p e n a s u m a a m o s t r a : m e s m o no
ac e rv o d essa in s t it u iç ã o p o d e h a v e r o u tr o s in v e n tá r io s n ã o c a ta lo g a d o s .
O s d a d o s d a s ta b e la s 1 0 6 c 1 0 7 , o r d e n a d o s s e g u n d o a d iv is ã o do p e río d o 1 8 0 1 —
1 8 8 9 no a n o d e 1 8 5 0 , são b a s ta n te e lu c id a t iv o s , m o d if ic a n d o a im a g e m s u g e r id a pelas
d u a s ta b elas a n te r io r e s , q u c a b r a n g ia m to d o o sé c u lo .
k
L iv r o VII - Q D in h e ir o d o s Baianos
& be lem brar, porem , antes dc mais nada, que temos um número reduzido de
inventários fe.tos no m tervalo 1 8 0 1 - 1 8 5 0 . É verdade que concentrei minhas investi
gações na segunda m etade desse período, mas 2 1 5 , de um total de 3 95 teoresentam
a totalidade dos inventários dos anos 1 8 0 1 - 1 8 3 0 . Faziam-se menos inventários post
mortem n a p r i m e i r a m e t a d e d o s e c u l o d o q u e n a s e g u n d a ? É p ro v áv e l, p o is p a r a as d u as
ú ltim as d é c a d a s d o s e c u l o X V I I I a p u r a m o s u m a m é d i a a i n d a m e n o r , d e ap e n a s q u a tro
por a n o . D o s in v e n t á r i o s f e ito s a t é 1 8 5 0 , 3 5 , 4 % p e r f a z ia m u m m o n t a n t e m ed ío c re ,
e q u iv a le n te a a p e n a s 1 6 , 4 % d a s o m a d a s f o r t u n a s d o c o n j u n t o d esse p e río d o . '
T A B E L A 106
C la s s if ic a ç ã o d as F o rtu n a s em S alvador,
1 8 0 1 -1 8 5 0 (em c o n t o s d e r é is )
C lasse N1 % T o ta l 2 M édia % r
1 9 2,3 :130 0,0
4 14 7 3 7 ,2 4:950 16,0
7 . 1 0 ,2 3 7 1 :3 2 5 8.2
(1) N = n° d c in ven tário s; (2) T o tal de in ven tário s = 395; (3) £ 1 som a d a s fortunas =
4.534:258 d e réis.
TABELA 107
C la s s ific a ç ã o d a s F o r tu n a s em S a lv a d o r ,
1 8 5 1 -1 8 8 9 ( e m c o n t o s de ré is )
C ia s s e N1 % T o tal 2 M é d ia
1:480 0,4
3 62 8,6
4 3 7 ,0 5:063 5,8
267
325:679 29.5
7 21 2 .9
T a n t o a n t e s c o m o d e p o is d e 1 8 5 0 , e n c o n t r a m o s a s m e s m a s c a te g o r ia s s d c io -
e c o n ò r n ic a s , M a s a d i s t r i b u iç ã o d e s ig u a l d a s g r a n d e s f o r t u n a s in f lu e n c ia v a o to
in v e n t á r io s d a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u lo , s ó 6 , 8 % c o r r e s p o n d ia m a g r a n d e s c o m e r -
612 B a h ia , S eculo XIX
c ia n re s, q u a n d o e n tr e 1 8 5 1 e 1 8 8 9 esse p e r c e n t u a l c h e g o u a 1 1 ,2 % . T o m a d o s is o la
d a m e n t e , t i n h a m as m a io r e s f o r tu n a s d a c id a d e e m a m b o s os p e r ío d o s , m a s n o p r i m e i
ro d e t in h a m 2 3 , 5 % d a f o r t u n a to ta l e n o s e g u n d o essa p a r t i c i p a ç ã o e le v o u - s e a 3 5 , 4 % .
S e ja c o m o for, os d a d o s d a s ta b e la s 1 0 6 e 1 0 7 r e v e la m in e g á v e l e n r i q u e c i m e n t o
dos b a ia n o s n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u lo , o q u e é t a m b é m in d i c a d o p e la d im i n u i ç ã o
n o n ú m e r o d e p e q u e n a s f o r tu n a s e p e la r e d u ç ã o d e s u a p a r t i c i p a ç ã o n o c o n j u n t o . Esse
e n r iq u e c im e n t o se to r n a a i n d a m a is e v id e n t e q u a n d o se c o n s i d e r a q u e a té 185.0 in e-
x is t ia m f o r tu n a s s u p e r io r e s a 5 0 0 : 1 0 0 d e ré is. P o r o u t r o la d o , a u m e n t o u a p e r c e n ta
g e m dos d e te n to r e s d e f o r tu n a s c o n s id e r á v e is .
F in a lm e n t e , c a b e a s s in a la r q u e , n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u lo , os m a is rico s (fo r
tu n a s s u p e rio re s a 1 0 : 1 0 0 d e réis) d e t i n h a m 8 0 , 8 % d a f o r t u n a g lo b a l e e r a m a p e n a s
2 3 , 5 % d os in v e n t a r ia d o s , e n q u a n t o n a s e g u n d a m e t a d e d e t i n h a m 9 3 , 5 % d a f o r tu n a
e c o r r e s p o n d ia m a 4 3 , 6 % d o s in v e n t a r ia d o s . O n ú m e r o d o s m e n o s ric o s (a té 2 : 0 0 0 de
réis) d i m i n u i u d e 3 9 , 4 % n o p r i m e i r o p e r í o d o p a r a 1 9 , 3 % n o s e g u n d o , e a d is t â n c ia
e n tre rico s e p o b re s t o r n o u - s e m a io r : a o p a s s o q u e e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 essas fo rtu n a s
c o r r e s p o n d ia m a q u a s e 2/3 d o s i n v e n t á r i o s e a 3 % d a f o r t u n a g lo b a l, d e 1 8 5 1 a 1 8 8 9
re p r e s e n ta v a m m e n o s d e 1/5 d o s i n v e n t á r i o s e 0 , 6 % d a f o r t u n a g lo b a l,
O n ív e l d as f o r t u n a s b a ia n a s p a r e c e p o r t a n t o t e r a u m e n t a d o n a s e g u n d a m e t a d e
do sé c u lo , m e s m o le v a n d o - s e e m c o n t a a in f la ç ã o , c a l c u l a d a e m 1 1 8 , 7 % p o r M ir c e a
B u e s c u , to m a n d o c o m o b a s e os p r e ç o s d e 1 8 2 6 . O ü v e r O n o d y , p o r s u a v e z , e s tim o u
e m 9 1 % o a u m e n t o d o c u s to d e v i d a e n t r e 1 8 5 0 e 1 8 8 9 . 7 E m q u a l q u e r c a so , a u
m e n to u o n ú m e r o d a s b o a s f o r t u n a s ( m a i s d e 1 0 : 1 0 0 d e ré is ) e d a s g r a n d e s fo r tu n a s
(m a is de 5 0 : 1 0 0 d e ré is). A s f o r t u n a s m é d i a s ( 2 : 1 0 0 a 1 0 : 0 0 0 d e réis) a p r e s e n ta r a m
n o táv e l e s ta b ilid a d e e m t e r m o s d e p a r t i c i p a ç ã o p e r c e n t u a l n o n ú m e r o d e c aso s ( 3 7 , 2 %
até 1 8 5 0 e 3 7 % d e p o is ), m a s s e u p e so n o c o n j u n t o d a r i q u e z a m e n s u r a d a d i m i n u i u
a c e n tu a d a m e n te , p a s s a n d o d e 1 8 % a 5 , 8 % . E s ta c o n s t a t a ç ã o é corroborada p e la a n á
lise d os m e sm o s d a d o s , s e g u n d o o s d o is o u t r o s re c o r te s c r o n o ló g ic o s q u e p r o p u s : um
d e q u a tro p e río d o s, q u e a c o m p a n h a os m o v im e n t o s d a c o n j u n t u r a , e o u t r o e m q u e
destaco d ois m o m e n t o s p a r a u m e x a m e e x a u s tiv o d o s in v e n t á r io s .
R e a g r u p a n d o d a d o s , p u d e m o n t a r a t a b e l a 1 0 8 , q u e c o m p r e e n d e os d a d o s re fe re n
tes às fo rtu n as n a fa ix a d e a té 1 0 : 0 0 0 d e réis. P o d e -s e c o n s id e r a r q u e f o r m a m u m
c o n ju n to c o e re n te , e m q u e A c o r r e s p o n d e às fo r tu n a s d e a té 2 : 0 0 0 d e réis e B às
c am ad as su p e rio re s a essa faix a. A ta b e la 1 0 9 r e a g r u p a as f o r tu n a s q u e p o d e m ser c o n
sid erad as só lid a s, isto é, de v a lo r s u p e r io r a 1 0 :1 0 0 d e réis. A s f o r tu n a s de 1 0 :1 0 0 a
5 0 .0 0 0 de réis c o n s t itu ía m o p r im e ir o sig n o d e v e r d a d e ir a riq u e z a.
Esta no va c lassificacão , e s tu d a d a s e g u n d o recortes c ro n o ló g ic o s d ife re n te s, p e rm ite
c o m p araç õ es e sc larec e d o ra s. A re d u ç ã o do n ú m e r o c do p e r c e n tu a l de p a rtic ip a ç ã o das
p e q u e n a s fo rtu n a s no c o n ju n to sc c o n f ir m a d c fo r m a n ít id a : e n tr e 1801 e 1 8 2 2 elas
rep resen tav am m a is d e m e ta d e dos in v e n tá r io s e c o r r e s p o n d ia m a 4 ,4 % d a fo rtu n a
total; no fim do p e río d o c o rr e s p o n d ia m a 1 8 ,7 % dos in v e n tá r io s e a a p e n as 0 ,4 % d a
riqu eza arro la d a .
i ^ E ^ Í H E m o DOS B a ia n o s
613
T A B E L A i ob
%N A +B
%X %N %X NT %XT
1. 18 0 1 -18 5 0 39.2 3,0 3 7 .2 16,0 76.4
18 5 1-18 8 9 19.3 0,6 3 7,Ô 19,0
5,8 56.3 6.4
2. 18 0 1-18 2 1 52.7 4.4 32.2 15.0 84,9
182 2 -18 4 5 32,0 2.5 19.4
17.0 73.3
1846-1860 21,4 1,1 41.8 19.5
11,3 63,2
18 8 1-18 8 9 18.7 0,4 12,4
3 3.8 4,4 52.5 4,8
3. 18 5 3 -18 5 7 22,3 1,1 41,8 10,3 64,1 31,4
18 8 1-18 8 5 15,6 0,3 34,4 4 ,5 50,0
4,8
A = até 2 :0 0 0 de réis; B = 2 :1 0 0 a 1 0 :0 0 0 de réis; % N = percentagem sobre o número de inventários- % V
sobre a soma dos valores inventariados no período. ' ' pcrccncagem
TABELA 109
Períodos C D E F C +D t E+F
%N %X %N %x %N %X %N %x %NT %XT
1. 18 0 1-18 5 0 19,0 34,0 4,3 38,6 0,2 8,2 _ _ 23,5 80,8
18 5 1-18 8 9 29,0 21,5 11,2 31,6 2,9 29,5 0,4 10,9 43,5 93,5
2. 18 0 1-18 2 1 10,9 19,2 3,4 37,0 0,7 24,2 __
15,0 80,4
182 2-1845 22,3 41,3 4,4 39,2 —
— — — 26,7 80,5
184 6 -18 6 0 28,3 32,0 6,9 29,5 1,6 26,0 — — 36,8 87,5
18 6 1-18 8 9 29,6 18,8 13,7 32,6 3,5 29,7 0,6 14,0 47,4 95,1
T A B E L A 110
Pkriodos A B
A in sig n ifican te progressão dessas m édias explica a clara ten d ên cia a baixa na
participação dessas categorias na fortuna glo b al. C o m p o n d o 8 4 ,9 % dos inventários,
am bas correspondiam a q uase 2 0 % d a fortuna in v en tariad a entre 1801 e 1821; de
L a ? o M I - O DiNTiEmo dos B aianos
p a r t i l h a v a m 8 0 , 4 % d a f o r t u n a g lo b a l; d e 1 8 6 1 a 1 8 8 9 , e r a m 4 7 % , p a r t i lh a n d o 9 5 ,1 %
d a fo rtu n a.
A q u e d a d o v a lo r m é d i o d e ssa s f o r t u n a s é c o r r e l a t o ao a u m e n t o d o n ú m e r o de pro
p r ie t á r io s e i n d i c a m e l h o r d i s t r i b u i ç ã o d a r iq u e z a e n t r e ric o s e a b a s t a d o s . N o in terior
d e ssa s c la s s e s q u e t i n h a m a l g u n s b e n s , s e r i a e n t ã o p o s s ív e l, n u m a p r i m e i r a co n clu são ,
o p o r os m e n o s a b a s t a d o s a o s m a is r ic o s , s e m n o e n t a n t o e s q u e c e r q u e , n o s d o is casos
e s ta v a e m jo g o a p e n a s u m a fra ç ã o p r i v i l e g i a d a d o s b a ia n o s ? E n tr e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 , esses
m e n o s a b a s t a d o s , q u e f o r m a v a m 7 6 , 4 % d o s i n v e n t a r i a d o s , p a r t i l h a v a m 1 9 % d a fortu
n a r e g is t r a d a n o s i n v e n t á r io s ; n o r e s t a n t e d o p e r í o d o , p o r é m , e m b o r a co rresp o n d e sse m
a 5 6 , 3 % d o s i n v e n t a r i a d o s , s u a p a r t i c i p a ç ã o n a r i q u e z a g l o b a l c a i u a 6 , 4 % . S e houve
e n r i q u e c i m e n t o n a B a h i a n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o , ele n ã o a u m e n t o u o n ú m ero
dos q u e tin h a m p o u c as po sses, n e m in c r e m e n to u o n ív e l d e su as fo rtu n as.
TABELA 111
P eríodos C D E F
18 2 2 -18 4 5 2 2 :0 14 106:788 - -
C = 10:100 a 50:000 de r6 s; D = 50:100 a 200:000 dc réis; E - 200:100 a 500:000 dc réis; F - 500:100 a 1.000:000 de réis.
Q u em P o ssu ía ?
N a a u s ê n c ia q u a s e t o t a l d e i n f o r m a ç õ e s p r e c is a s s o b r e as o c u p a ç õ e s , profissionais
o u n ã o , d o s in v e n t a r ia d o s e d i a n t e d e u m a p e r c e n t a g e m r e la t iv a m e n t e e le v ad a de
in v e n t á r io s re fe re n te s a m u l h e r e s ( 3 5 , 2 % ) , n ã o é p o s s ív e l d is t r i b u i r as fortu n as em
c a te g o r ia s e c o n ô m ic a s m u i t o v a r ia d a s . P r o p o n h o a g r u p a m e n t o s q u e re fle te m as de
fic iê n c ia s d o s p r ó p r io s d o c u m e n t o s . A q u a li f ic a ç ã o de 1/3 d o s in v e n ta r ia d o s como
se m o c u p a ç ã o ’ e x e m p lif ic a isto. P u d e e s ta b e le c e r q u i n z e c a te g o ria s : n e go cian te s, in
d u s tr ia is , c o m e r c ia n t e s , se n h o re s d e e n g e n h o , p r o p r ie t á r io s a g ríc o la s , profissionais
lib e rais, c lc to , fu n c io n á r io s p ú b lic o s , o fic ia is g r a d u a d o s , o fic ia is su b a lte rn o s, artesãos,
d o n o s d e b a rc o s, p e s c a d o r e s e m a r ít im o s , pesso as q u e v iv ia m d e ren d as e os ditos
sem o c u p a ç ã o ’.
As fo rtu n as a v a lia d a s e n tr e 1801 c 1 8 8 9 s o m a m 2 7 - 7 1 3 : 9 8 9 d e réis. A m édia das
fo rtu n a s d as várias c a te g o ria s s ó c io - e c o n ô m íc a s serve tã o -s o m e n te p a ra d e fin ir sua
p o sição re la tiv a . T r a t a - s e d c u m q u a d r o m u it o g e ra l, q u e a p a re n te m e n te não traz
su rp resas: n o to p o e sta v a m os n e g o c ia n te s , no d e g r a u m ais bauio os m a r ítim o s e pes
cadores, g e n te c u jo o fício n ã o e x ig ia g ra n d e q u a lif ic a ç ã o e c u jo s re n d im e n to s anuais
e ra m p o r certo in ferio res aos dos artesãos.
VII - O D in h e iro d o s R a ja n o s
C o m m en o s d e 1 0 % dos in v ?n M n »« .
to ta l, o q u e c o n f i r m a t u d o o q u e foi d it o s o b r e c s M c i t c è ” ' e ' ln h í.m . ' /3 d a fo rtu n a
se n h o re s d e e n g c n b u , a d e s p e it o d e se u p o d e r e T ™ T
p r o v in h a a m a i o r p a r t e d o s p o l í t i c o . e le s f ig u r a m a p e n a s em q u a rto lu g a r c Z
* * - i- ** í z
C a b e o b s e r v a r q u e o q u a l i f i c a t i v o ‘ in d u s t r i a l ' é a m b í g u o , so b re tu d o c o n sid e ra n
d o -se a t n c t p i e n c i a d a s a t i v t d a d e s i n d u s t r i a i s n a B a h ia d a ép o c a. D e fato e ra m as
sim q u a l i f i c a d o s o s p r o p r i e t á r i o s d e p e q u e n a s e m p re s a s d e to d o tip o : n u m ú n ic o
caso e r a u m a f á b r i c a d c t e c i d o s , e m d o is t r a t a v a - s e d e m a n u f a t u r a s de c h aru to s e
c ig a rr o s ; o m a i s e r a m o l a r i a s , s a b o a r ia s e d e s t ila r ia s . A té o n d e p u d e av e rig u a r, todos
esses e m p r e s á r i o s , e x c e t o o s d a s o l a r i a s , e r a m t a m b é m c o m e r c ia n te s c u ja ativ id a d e
‘ i n d u s t r i a l ’ s u p l a n t a r a a c o m e r c i a l , s e m c o n t u d o s u p r im i- la .
TABELA 112
H ie r a r q u ia S ó c i o -E c o n ô m i c a , 1 8 0 1 - 1 8 8 9 ( em c o n t o s de réis )
C ategorias N % N I % £ X
In d u striais 13 1,2 8 8 8 :0 7 6 3 ,2 6 8 :3 1 4
R en tistas 310 2 7 ,8 9 .8 4 1 :8 2 2 3 5 ,5 3 1 :7 4 8
1 .4 7 9 :9 8 6 5,3 20:274
C o m e rc ian te s 73 6 ,5
1 .4 8 6 :7 1 2 5,4 19:060
P ro p rietário s agrfeo las 78 7 ,0
1.1 13:340
Padres 23 2,0 3 0 6 :8 4 3
0,6 12:882
F' U ncionáríos 14 1,2 1 8 0 :3 6 2
0,5 10:749
O ficiais su b altern o s 14 1,2 1 50 :4 8 7
0 ,7 10:315
O ficiais sup erio res 18 1,6 185 :6 6 4
1,0 9:2 49
A rresjos 32 2 ,9 2 9 5 :9 8 4
4.8 3 :5 30
Sem o cupação 378 3 3 ,9 1 .3 3 4 :4 7 5
0,1 3:157
M arítim o s 12 1,0 3 7 :8 8 8
100,0 24:856
T o ial 1. 113 100,0 2 7 .7 1 3 :9 8 9
N - ntlm cio tie in ven iirio »; % N « pctc.ctMüK«Ri s»b rr *• lulm ern de in venci rim. X *
% X - percentagem «ihrc a toma <Í€»* vaforrn invrtitariaclua; X * míMia dtíí vaforw *>i
arrisc a r, em a v e n t u r a s c o m e r c ia is o u b a n c á r ia s o u e m a l g u m o u tr o n e g ó c io da m oda
o d in h e ir o d e q u e d is p u n h a m , h e r d a d o d a f a m ília e a n g a r ia d o n o ex ercício de sua
p ro fissão . Eles n a o v iv ia m d e fato d e s u a a t iv id a d e p r o fis sio n a l: q u a s e todos exerciam
fu n ç ã o p ú b lic a , r e m u n e r a d a c o m s a lá r io o u e m o lu m e n t o s ; e ra m d e p u ta d o s , professo
res (d a F a c u ld a d e d e M e d ic in a , d a E sco la N o r m a l e d o L ic e u P r o v in c ia l), m em b ro s ou
fiscais d o C o n s e lh o d e E d u c a ç ã o , fiscais d e s a ú d e . E sta lis ta n ã o é e x au stiv a. E ncontra
m o s e n tre eles a té u m d ir e t o r d o P asseio P ú b lic o . Esse a c ú m u lo d e u m a v aried ad e de
o c u p a ç õ e s — q u e m e p a re c e ter c o m e ç a d o d u r a n t e o I m p é r io e m d e c o rrê n c ia do
e le v ad o p r e s tíg io a s s o c ia d o ao s a b e r — n ã o c h o c a v a n i n g u é m . D o to p o à base d a escala
d as fo r tu n a s, a s o c ie d a d e e s ta v a h a b it u a d a ao e x e r c íc io d e fu n ç õ e s e o fício s m últiplos,
p r á tic a q u e p e r m it i a a a lg u n s s o b r e v iv e r e a o u t r o s e n r i q u e c e r p a r a m a n t e r su a posição;
e q u e se t r a n s m it iu , c o m o u m a h e r a n ç a n e g a t iv a , p o r m u it a s g eraç õ es de baianos,
d is p e r s a n d o su as c a p a c id a d e s , im p e d i n d o - o s d e d a r s u a p l e n a m e d i d a n u m a só função,
n u m só o fíc io .
M a is d e 2 5 % d os in v e n t á r io s c o r r e s p o n d e m à c a t e g o r ia d o s q u e v iv ia m de rendas.
C a b e a s s in a la r d e s d e já , p o r é m , q u e , sa lv o n o c a so d a s a p ó lic e s d a d ív id a pública
(e m it id a s p elo g o v e r n o c e n t r a l o u p r o v in c i a l) , n ã o se tr a t a v a d e re n d a s constituídas
p e lo E stad o o u v i t a lí c i a s ( q u e a liá s p a r e c e m n a o te r s id o le g a lm e n t e p raticad as na
B a h ia ). D e fato , e r a m s o b r e t u d o r e n d i m e n t o s a n u a is v a r iá v e is , p r o v e n ie n te s fosse do
a lu g u e l d e im ó v e is e e sc rav o s o u d o s ju r o s so b re e m p r é s t im o s fe ito s a terceiros, fosse
de a ç õ e s, a p ó lic e s e d e p ó s ito s b a n c á r io s .
‘ B o a p a r te dos q u e v i v i a m d e r e n d a s e ra f o r m a d a p o r e x -n e g o c ia n te s e co m ercian
tes. D e fato , n ã o é p o ssív el ir m u i t o a lé m d is to n a id e n t if ic a ç ã o dos c o m p o n e n te s desta
c a te g o r ia , à fa lta d e in f o r m a ç õ e s so b re su as id a d e s e p ro fissõ e s. E m 1 .1 1 5 inventários,
a p e n a s d o is a p o s e n ta d o s — u m m a jo r d o E x é rc ito e u m p ro fe sso r p r im á r io — tiveram
su a a t iv id a d e p r in c ip a l re fe rid a . É p o s s ív e l p o r t a n t o q u e h o u v e ss e nesse g ru p o pessoas
q u e , te n d o h e rd a d o f o r tu n a s , v iv ia m d e su as re n d a s . C o m o e ra d e esp e rar, as mulheres
e ra m m u ita s nessa c a t e g o r ia ( 4 4 , 5 % ) , e b o m n ú m e r o d e la s g e r ia bens de valor superior
a várias d e z e n a s d c c o n to s, c h e g a n d o à c e n t e n a .8
A lém d e m u lh e r e s e h o m e n s d e te n to re s d e fo rtu n a s c o n sid e rá v e is — a m aio ria dos
q u e v iv ia m d e re n d a s t in h a m fo r tu n a s d e m a is d e 1 0 :0 0 0 d e réis, d o n d e a média
e lev ad a d e 3 0 :0 0 0 d c réis — , f ig u r a v a m ta m b é m nessa c a te g o ria fortu n as m enores e
até a lg u m a s na faixa d os 1: 0 0 0 a 2 : 0 0 0 d e réis. É q u e o g r u p o a b ra n g ia os q u e viviam
ap en as do tr a b a lh o d c seus escravo s o u d a a g io ta g e m , isto é, h o m e n s e m ulheres que
faziam dessas d u a s a tiv id a d e s v e rd a d e ira s profissões. É in teressan te, aliás, mostrar
co m o essas p rática s e v o lu íra m no te m p o , a c o m p a n h a n d o os cortes cronológicos.
C o m o se vê, 138 m u l h e r e s ( 2 1 % ) c 172 h o m e n s (2 8 % ) d e c lara ra m e x p lic it a m e n te
viver do ju ro sobre e m p ré s tim o s o u do tr a b a lh o dc seus escravos, percentuais que
c o n firm am o q u e já foi d it o sobre a e s tru tu ra d o m ercad o d e Salvad or. Homens^
m ulh eres q u e a lu g a v a m escravos situ a v a m -se n u m a faixa d c fo rtu n a q u e em geral não
u ltrapassava os 1 0 :0 0 0 dc réis. M a s h a v ia m a is m u lh e re s q u e ho m en s entre os que
H omens
M ulh eres
A g io t a g e m A lu g u el
A g io t a g e m A lu g u el
1. 18 0 1-18 8 9 37
2. 18 0 1-18 5 0
1 8 5 1 -1 8 8 9
3. 1 8 0 1 -1 8 2 1
1 8 2 2 -1 8 4 5
1 8 4 6 -1 8 6 0
18 6 1-18 8 9
4. 1 8 5 3 -1 8 5 7
1 8 8 1 -1 8 8 5
C o n t r a í a m - s e e m p r é s t im o s m u it a s vezes p a r a e n f r e n t a r u m a n e c e s s id a d e p r e m e n
te, s e m p r e d e b o a fé, a c r e d it a n d o - s e q u e p o d e r ia m s e r c o b e r to s p e lo s b e n s d isp o n íveis,
o u s u p o n d o q u e se p o d e r ia p a g a r q u a n d o as c o n d iç õ e s m e lh o r a s s e m . M a s q u a n d o os
b e n s e r a m m e d ío c r e s (a b a ix o d e 1 :0 0 0 d e ré is ), isso r e s u lt a v a e m h e r a n ç a n e g a tiv a (nos
p e r ío d o s a n a lis a d o s , e n c o n t r e i d e z e n o v e c aso s d e s s e s ). P o r f im , c a b e o b se rv a r q u e , a
p a r t i r d e 1 8 5 0 , a u m e n t o u o n ú m e r o d e h o m e n s q u e v iv ia m d o s ju r o s d e e m p ré stim o s,
ao p a sso q u e o d e m u lh e r e s b a ix o u . E ssa d if e r e n ç a d e c o m p o r t a m e n t o tr a d u z prova
v e lm e n t e o fato d e q u e , d e m e a d o s d o s é c u lo e m d i a n t e , os risc o s a u m e n t a r a m , sen
tin d o - s e os h o m e n s m a is a p t o s a e n f r e n t á - l o s , m a s n a o h á d a d o s q u e p e r m it a m afirm á-
lo c a t e g o r ic a m e n t e .
A d e sp e ito d o a m p lo le q u e d as f o r tu n a s d e s s a c a t e g o r ia (d e c e n te n a s d e m ilh ares de
réis a várias d e z en as d e c o n to s d e réis) e d a s d if e r e n ç a s n a o r ig e m d os recursos em jogo,
su a p a r tic ip a ç ã o n a f o r t u n a g lo b a l b r u t a e r a d e 3 5 , 5 % , o q u e lh e c o n fe ria in discutível
p r im e ir o lu g a r e n tr e as d e m a is . N e g o c ia n t e s e p e sso as q u e v iv ia m d e re n d a s respondiam
p o is, e m c o n ju n t o , p o r 6 8 , 8 % d a f o r t u n a g lo b a l d o s in v e n t á r io s p e sq u isa d o s,
O fato d e m u i t o s n e g o c i a n t e s a p o s e n t a d o s , c o m g r a n d e s f o r t u n a s (m a is de 5 0 :0 0 0
d e ré is ), o u s u a s v iu v a s , se i n c l u í r e m e n t r e os q u e v i v i a m d e r e n d a s e x p lic a o peso da
f o r tu n a d e ssa c a te g o r ia :
TABELA t 14
N e g o c ia n t e s e Ex -N e g o c ia n t e s, 1 8 0 1-18 8 9
N %N I . X
( 1) Percentagem sobre o som atório das fortunas dos rentístas; (2) percentagem sobre o total dos inventários; (3) percentagem
sobre os inventários dos rentistas.
A s s im , 6 3 , 5 % d a f o r t u n a d o s q u e v iv ia m d e r e n d a s c o r r e s p o n d ia m às fortunas de
n e g o c ia n te s a p o s e n ta d o s o u d e su as v iú v a s , c o m b o m e q u i líb r io e n tr e os sexos: regis
trei 2 5 h o m e n s (c o m 3 . 2 3 9 : 1 1 3 d e réis) p a r a 2 4 m u lh e r e s (c o m 3 - 0 1 1 :6 0 8 de réis).
Em c o n tr a p a r tid a , o q u e os d o is sexos d e ix a v a m a se u s h e rd e ir o s era sensivelm ente
d ife re n te , se s u b tr a ím o s d o to t a l as d ív id a s e m p assiv o q u e in c id ia m sobre as heranças,
e m 2 4 in v e n tá r io s re fe re n te s a m u lh e r e s , seis c o n t i n h a m d ív id a s c u ja m é d ia se situava
e m to rn o d o s 1 0 % d o s h a v eres. R e g is tr e i u m a ú n ic a e x ce çã o : em 1 8 8 4 faleceu
H e r m e lin d a d a C o s ta F crraro , d e ix a n d o u m a h e ra n ç a d e 1 5 9 :1 5 7 d e réis e dívidas
alíás, h e rd a d a s d o m a r id o , L u iz F erraro , fa le c id o e m 1881 — no v a lo r d e 7 5 :9 1 0 de
réis, o q u e s ig n ific a q u c q u a se 4 8 % d a h e ra n ç a se d e s tin a v a m ao p a g a m e n to de d/vi
d a s .10 J á M a r ia L op es A r ia n i, o u tr a rica h e r d e ir a , fa le c id a ta m b é m em 1 8 8 4 , deixou
u m a fo rtu n a d e 2 1 9 : 9 3 6 d e réis c d ív id a s d e 5 :1 1 8 de réis. M a s seu m arid o , Ju sto
A rian i, m o rto c m 1 8 8 3 , lhe d e ix a r a 3 3 7 :2 8 1 d e réis líq u id o s , após o p agam e n to de
5 3 :6 9 7 d e réis d e d ív id a s .11
L iv r o VII - O D in h e ir o dos B a ia n o s
se m m a io r e s e s p e c if ic a ç õ e s . A liá s , a c a t e g o r i a ‘ f u n c i o n á r i o ’ só a p a r e c e n e ssa d o c u m e n
t a ç ã o a p a r t i r d e 1 8 2 1 , e n ã o c o m m u i t a f r e q ü ê n c ia .
N e s s a c a t e g o r i a e n c o n t r e i trê s f o r t u n a s d e m a is 3 0 : 0 0 0 d e réis: a d e B e r n a r d o
R o d r i g u e s F e r r e ir a , e x - m o n g e e e x - p r i o r d o C o n v e n t o d o C a r m o , q u e foi a u x ilia r d e
c a r t ó r io e c a p i t ã o d a s m i l í c i a s , m o r t o e m 1 8 3 1 ; a do d esem b argad o r e dep u tad o
p r o v in c ia l e m v á r ia s le g i s l a t u r a s J o ã o L a d i s l a u J a p i a s s u F i g u e i r e d o e M e l l o , f a l e c i d o
e m 1 8 8 3 ; e a d o f u n c i o n á r i o a l f a n d e g á r i o — a q u e t í t u l o ? — L u iz M a r t i n s Alves,
m o rto em 1 8 8 6 .^
T o d a s as d e m a i s f o r t u n a s v a r i a v a m e n t r e 4 0 0 . 0 0 0 ré is e 1 9 : 2 8 9 d e réis. A s mais
m in g u a d a s e r a m as d o s p r o f e s s o r e s ; u m d e le s , p a i d e f a m í l i a n u m e r o s a , d e ix o u dívidas.
A liá s , p a i d e f a m í l i a n u m e r o s a e r a t a m b é m o f is c a l a l f a n d e g á r i o e c a p i t ã o d a G u a rd a
N a c io n a l, J o s é E g íd i o N a b u c o , c o m s e u s d o z e f i l h o s e d u a s f ilh a s , a m a is n o v a c o m dez
m e se s e a m a is v e l h a c o m d e z e n o v e a n o s ! A v i ú v a e a s e u s c a t o r z e f ilh o s — q u a tr o dos
q u a is fru to s d e u m p r i m e i r o c a s a m e n t o — J o s é E g í d i o d e i x o u b e n s n o v a lo r de 1 9 :2 9 0
d e réis: u m b o m s o b r a d o , a v a l i a d o e m 1 2 : 0 0 0 d e ré is , u m r ic o m o b i liá r io , d e que
c o n s t a v a u m p i a n o P le y e l a v a l i a d o e m 4 2 0 . 0 0 0 r é is , f a q u e ir o s e b a ix e la s d e p ra ta no
v a lo r d e 3 : 6 0 5 d e ré is , s e m c o n t a r 1 : 3 8 5 d e ré is e m d i n h e i r o e trê s e sc rav o s h o m en s
a v a lia d o s e m 2 : 3 0 0 d e ré is . M a s as d í v i d a s s o m a v a m 4 : 8 0 8 d e ré is . C a s a d o e m regim e
d e c o m u n h ã o d e b e n s , d e i x o u à m u l h e r b e n s n o v a l o r d e 7 : 0 5 3 d e réis, a m e ta d e do
t o t a l l í q u i d o . O q u e r e s t o u p a r a c a d a f il h o n ã o p a s s o u , p o r t a n t o , d e 5 0 0 . 0 0 0 réis.15
N ã o sei c o m o e ssa f a m í l i a v i v e u a p ó s a m o r t e d e s e u c h e fe . T e r á s id o a j u d a d a pelas
f a m ília s J u n q u e i r a , C a v a l c a n t i e N a b u c o , q u e t i n h a m b o a p o s iç ã o n a c id a d e ?
E x p u r g a n d o as f o r t u n a s e x c e p c i o n a l m e n t e a lta s o u b a ix a s d a c a t e g o r ia dos fu n c io
n á rio s p ú b l ic o s , c o m o fo i fe ito n o c a s o d o s c lé r ig o s , c h e g a - s e a u m a m é d i a d e 8 :1 2 9 de
ré is , q u a s e i d ê n t i c a à q u e o b t iv e m o s n a q u e l e c a s o .
R e s t a a ú l t i m a c a t e g o r i a d e sse c o n j u n t o d e f u n c i o n á r i o s : a d o s o f ic ia is . N a d a mais
d if íc il d o q u e d i s t i n g u i r os tít u lo s m ili t a r e s c o n f e r id o s p e la G u a r d a N a c io n a l, o Exército
e a M a r i n h a , ra z ã o p e la q u a l só c o n s i d e r e i a q u e l e s h o m e n s c u j a v i n c u l a ç ã o c o m as for
ças a r m a d a s n ã o d a v a m a r g e m a d ú v id a . P o d e s u r p r e e n d e r q u e os o fic ia is su b altern o s
te n h a m s id o c la s sific a d o s a c i m a d o s s u p e r io r e s , q u a n d o as m é d ia s d e su as fo rtu n as eram
p r a t ic a m e n t e ig u a is : 1 0 : 7 1 9 d e ré is p a r a o s s u b a lt e r n o s e 1 0 :3 1 5 p a t a os d e alra pa
te n te . M a s a e x p lic a ç ã o é s im p le s : a n a li s a n d o os in v e n tá r io s re fe re n te s às d u a s categorias
de o fic ia is s e g u n d o os c o rte s c r o n o ló g ic o s e s ta b e le c id o s c o m b a se n a c o n ju iir u r a obser-
va-sc q u e , em p r im e ir o lu g a r , s e g u n d o o p e r ío d o c o n s id e r a d o eles se c o lo c a m d iferen
te m e n te n a e sc a la h ie r á r q u ic a b a s e a d a n a f o r tu n a m é d i a d e c a d a u m a ; e m segundo
lu g a r, nos d iversos p e río d o s os o ficiais s u b a lte rn o s e ra m re c ru ta d o s e m m eio s diferentes.
N o s d o is p r im e ir o s p e río d o s (1 8 0 1 —1821 e 1 8 2 2 —1 8 4 5 ) , os o ficiais d e a lta patente
situ a v a m -s e n ã o só a b a ix o d os s u b a lte r n o s , c o m o ta m b é m n a base dessa escala eco
n ô m ica. E ram todos po rtu gu eses, com a exceção d o m a jo r M a n o e l G om es d e Figueiredo.
N a s c id o e m S a lv a d o r , m a s ta m b é m filh o d e p o rtu g u ê s , e le m o rr e u e m 1 8 2 8 , deixan d o
u m a fo rtu n a a v a lia d a e m 5 :6 2 0 de réis, dos q u l i s 3 : 1 3 7 e sta v a m c o m p ro m e tid o s por
L i v r o V II _ o D in h e ir o d o s B a ia n o s
623
P e re ira , F a lc ã o B r a n d ã o , V ila s B o a s , P ir e s d e C a r v a lh o e ^ b u q u e r q u e , C a ld e ir a B r a n ,
e A rg o lo F e r r a o . A m d a q u e n e m to d a s fo sse m m u it o ric a s , se u s filh o s se m p re p o ssu ía m
a lg u n s b e n s , p o r h e r a n ç a o u g r a ç a s ao c a s a m e n to .
C a s o t íp ic o é o d o B a r ã o d e C a j a íb a , A le x a n d r e G o m e s d e A rg o lo F errão , filh o d e
jo s e J o a q u im d e T e iv e e A r g o lo e d e M a r ia J o a q u in a G o m e s F errão C a s te lo B ran co
am b o s d e s c e n d e n te s d e f a m ília s im p o r t a n t e s d o R e c ô n c a v o . N a s c id o em 1 8 0 0 no
e n g e n h o p a te r n o d e M a t a r ip e , c o m s e te a n o s A r g o lo F e rrã o já era c a d e te do E xército
real. T e n e n t e e m 1 8 2 0 , fo i p r o m o v id o a m a jo r e m 1 8 2 4 e a te n e n te -c o r o n e l em 1 8 2 6
E m 1 8 5 2 r e f o r m o u - s e , c o m a p a t e n t e d e m a r e c h a l. E m 1 8 5 9 , a s sim o d e sc re v ia a
C o n d e s s a d e B a r r a i: “ F a m ília A r g o lo . B a rã o d e C a ja íb a , d is tin t o c a v a lh e iro , n in g u é m
tem m e lh o r e s m a n e ir a s , b o m m ili t a r , p r e s to u r e le v a n te s se rv iç o s d u r a n te a S a b in a d a ,
m as h o m e m m a u , a q u e m se a t r ib u i te r a s s a s s in a d o a s u a m u lh e r e m u ita s o u tras
p e sso as. N ã o q u e r o g r a ç a s c o m e le . T e m u m b e lo e n g e n h o d e fro n te d a v ila de S. F ra n
c is c o .”21 O n d e a C o n d e s s a o u v ir a e sse s m e x e r ic o s q u e fa z ia m d e C a ja íb a o assassin o de
su a e sp o sa? A v e r d a d e é q u e , a o m o r r e r , e le d e ix o u u m filh o le g itim a d o , q u e tin h a
n o m e ig u a l ao s e u , e q u e , g r a ç a s a s e u s fe ito s m ilit a r e s , re c e b e u o títu lo d e V isc o n d e dc
I ta p a ric a , E ste p e r m a n e c e u s o lte ir o e m o r r e u n o m e s m o a n o q u e o p a i, em 1 8 7 0 .22
E ste c aso te m u m a p e c u lia r id a d e : o B a rã o d e C a ja íb a fo i o u n ic o se n h o r de
e n g e n h o q u e c o n t in u o u n a c a r r e ir a m ilit a r a p ó s a I n d e p e n d ê n c ia e fez d e seu filh o
ta m b é m u m m ilit a r . D e fa to , o p o u c o p r e s tíg io d e q u e g o z av a a co rp o ração m ilita r
e n tre a d é c a d a d e 1 8 3 0 e a G u e r r a d o P a r a g u a i fa z ia c o m q u e as e lite s d a B ah ia
p refe risse m o r ie n t a r os filh o s p a r a o e s tu d o d e d ir e ito o u d e m e d ic in a . O s c an d id ato s
às a c a d e m ia s m ilit a r e s p a s s a r a m a s e r r e c r u ta d o s n as classe s m é d ia s a lta s, nas c ate g o
rias d o s lo jis ta s e n o s f u n c io n á r io s d e e s c a lã o m é d ío . O s o fic ia is su b a lte rn o s — g e r a l
m e n te fo r m a d o s n a tr o p a , se m p a s s a g e m p e la s a c a d e m ia s m ilita r e s — v in h a m das
classes m é d ia s , N ã o se e n c o n t r a e n tr e e le s n e n h u m d o s so b re n o m e s p restig io so s das
fa m ília s im p o r ta n te s . S e e s ta a n á lis e é c o r r e ta , h o u v e u m a re v ira v o lta q u e e x p lica p o r
q u e , ap ó s 1 8 4 5 , a c a te g o r ia d o s o fic ia is s u p e rio re s se so b re p ô s e c o n o m ic am e n te à dos
o fic iais s u b a lte r n o s .
F in a lm e n t e , e x p u r g a n d o - s e d a s fo r tu n a s d os o fic ia is su p e rio re s e subalterno s as
m aio res d e 2 0 : 0 0 0 d c réis e as m e n o r e s de 2 : 0 0 0 d e réis, o b te m -se para essas quatro
c atego rias d e f u n c io n á r io s as s e g u in te s f o r tu n a s m é d ia s : fu n c io n ário s, 8 . 1~9 d e ’ ,
padres, 8 :1 0 2 : o fic ia is s u b a lr e r n o s , 6 : 6 8 6 ; o fic ia is su p e rio re s, 6 :6 1 6 . ^
A líg c ir a in f e r io r id a d e d a f o r tu n a m é d ia d os o ficiais su p erio res em r e a ç " ^ ^
su b a lte rn o s, re fle tid a n e ste q u a d r o , sc d eve ao fato d c q u e , d e 1801 a ^18 ,
registrava e n tre os p r im e ir o s n e n h u m a fo rtu n a s u p e rio r a 6.00 0' de réis.
lado, fu n c io n á rio s e p ad res e sta v a m e c o n o m ic a m e n te m ais bem -siruados q
tares, o q u e talvez e x p liq u e 3 p o u ca atração q u e esta carreira exercia.
E ntre as três ú ltim a s c a te g o ria s q u c d ís tin g u i. d u as envolvem pessoas q ^
ciam ofício q u a lif ic a d o : os artesãos e o pessoal lig a d o ao m ar. A seu p ^ -
fazer d u as o b servações im p o rta n te s . A p r im e ira delas diz respeito aos arte ,
626 B a h ia , Sêcuio XIX
Q u e m P o ssu ía o Q u ê ?
TABELA I 15
E l e m e n t o s C o n s t it u in t e s d a s F o r t u n a s , 1 8 0 1 - 1 8 8 9
E lem en to s V alo r ( em c o n t o s d e r é is )
1, Im óveis 8 .0 8 2 :2 4 5
2. T erras 1 .7 9 7 :3 9 2
3. Escravos 2 .0 0 8 :6 4 4
4, D in h eiro líq u id o 4 5 7 :5 2 5
5. D epósitos bancários 4 ,6 2 0 :1 2 9
6. Ações e ap ó lices 3 .4 4 7 :0 4 5
7. D ívidas em ativo 4 .4 5 4 :4 4 3
8, M óveis 5 9 6 :9 6 !
10 . Rendas 3 6 1 :0 6 3
T o tal 2 7 .7 1 3 :8 4 8
urbanos, mas foram tomadas precauções para distinguir os dois casos, quando isso
fosse relevante. D m he.ro l.qu.do era aquele encontrado no domicilio do inventariado
por ocasião de seu falecim ento, enquanto os 'fundos dc comércio' são as raras avalia
çóes que encontre, sobre os bens comerciais. A rubrica 'ações e apólices’ compreende
ta m b é m o s c e r tif ic a d o s d e e m p r é s tim o s d o E sta d o .
C o m o se o b s e r v a , im ó v e is , d e p ó s ito s b a n c á r io s , d ív id a s e m a tiv o , açõ es e ap ó lice s
e ram os e le m e n to s m a is im p o r t a n t e s d e ssa s fo r tu n a s . M a s n ão e sta v a m ig u a lm e n te
p r e s e n te s n o s i n v e n t á r io s ; c o m f r e q ü ê n c ia e s t a v a m in t e ir a m e n t e a u s e n te s , o u
c o rr e s p o n d ia m a p e n a s a u m a p e q u e n a p e r c e n ta g e m d a h e ra n ç a , d e ac o rd o co m a
c a te g o ria s ó c io - e c o n ô m ic a d o in v e n t a r ia d o e o in te r v a lo — p r im e ir a o u se g u n d a m e
tad e d o s é c u lo — c o n s id e r a d o .
M in h a p r im e ir a a n á lis e , d e c a r á t e r g e r a l, a b r a n g e r á to d o o p e río d o 1 8 0 1 - 1 8 8 9 A
ta b e la a b a ix o a p r e s e n ta o s p e r c e n t u a is d e c a d a u m d o s d e z c o m p o n e n te s q u e d is tin g u i-
m os n a f o r tu n a d e c a d a c a t e g o r ia , r e p r e s e n ta d o s p e lo s n ú m e r o s d e 1 a 1 0 , se g u in d o a
o rd em e s t a b e le c id a n a t a b e la 1 1 5 .
TABELA 116
C o m p o s iç ã o d a s Fortun as po r C a t e g o r ia s S ó c io -E c o n ô m ic a s , 1 8 0 1 - 1 8 8 9 {% )
C a t e g o r ia s 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
3 ,7 - —
Oficiais subalternos 3 5 ,5 6 ,4 12,0 0.1 1 5 ,6 - 2 6 .6
1 3 ,6 2.8 0,02
Oficiaii superiores 4 0 ,7 4 ,9 1 4 ,2 0,2 1 1 ,7 11,8 -
2,0 5 .3 0 ,4
Artesão* 3 2 ,2 4 ,4 1 1 ,5 4 ,9 2 3 .6 8,0 7 ,7
4 ,0 - 0 ,3
Sem ocupação 4 2 ,7 1 .4 1 7 ,4 2,6 1 7 .0 10,0 4 .5
4 .2 1 ,4 5 ,2
Marítimos 10,8 0 .5 8 .9 - 2 ,4
2 6 ,3 4 0 ,3
E stes ciados m o stra m o peso d o s ben s im o b iliá rio s n a fo rtu n a dos baianos qu
ex erciam o fício s o u p ro fissõ es q u c p o d e ria m ser q u a lific a d o s co m o tip ic am en te u
nos. R e p re se n ta m m a is d e 1/4 d a fo rtu n a d o s n e g o c ian te s, in d u s tria is , fu n cio n ário
pessoal lig a d o ao m a r, m ais d e 1/3 d a fo rtu n a d a q u e le s q u e viv iam d e ren as,
630 Bahia, S é cu lo X IX
í s r fc s a » * 1 —
652 B a h ia , S éclro XIX
T A B E L A 117
C o m p o s i ç ã o das F o r t u n a s p o r C a t e g o r i a s S ó c i o - E c o n ô m i c a s , 1 8 0 1 - 1 8 8 9 (% )
C a t e c o r ia s * 1 % N 2 % N 3 % N 4 % N % T otal % T o tal - 4
Negociantes (108) 26,9 63,0 2,5 70,0 3 1,2 77,7 17,4 59,2 78,0 60,6
Industriais (13) 26,0 69,2 8,7 76,9 17,4 69,2 7,4 69,2 59,5 52,1
Profissionais liberais (19) 20,4 57,9 3,6 63,1 63,8 89,4 7,0 36,8 94,8 87,8
Senhores de engenho (17) 4,8 41,1 19,1 100,0 5,6 52,9 17,1 47,0 46,6 29,5
Rentistas (310) 37,9 72.6 5,9 67,4 3 1,6 66,7 15,6 53,5 91,0 75,4
Donos de barcos (6) 4,4 33,3 5,1 83,3 5,2 50,0 5,5 33,3 20,2 14,7 '
Comerciantes (73) 16,1 57,5 9,6 75,3 7,0 37,0 44,6 55,0 77,3 32,7
Proprietários agrícolas (78) 9,5 59,0 23,5 82,0 19,9 21,8 8,8 39,7 61,7 ' 52,9
Padres (23) 35,0 60,9 14,3 65,2 23,1 43,5 9,0 47,8 81,4 72,4
Funcionários (14) 25,6 57,1 6,4 57,1 52,1 7 1,4 7,2 35,7 91,3 84,1
Oficiais subalternos (14) 35,5 64,3 12,0 85,7 15,6 50,0 26,6 35,7 89,7 63,1
Oficiais superiores (18) 40,7 61,0 14,2 72,2 23,5 55,5 13,6 44,4 92,0 78,4
Artesãos (32) 32,2 46,8 11,5 75,0 31,6 21,8 7,7 25,0 83,0 75,3
Sem ocupação (378) 42,7 62,4 17,4 54,2 27,0 27,0 4,5 15,6 91,6 87.1
Marítimos (12) 26,3 66,6 40,3 75,0 8,9 33,3 2,4 16,6 77.9 75.5
( ) E n tíe parêntests. número dc inventários; 1 = imóveis ( p e rc e n ta g e m sobre o total das fortunas, em valor); 2 - escravos
(j Cfn)i 3 ■ depósitos bancários e ações/apólices (idem); 4 = dívidas cm ativo (idem); N * rt° de inventários: % N *
percentagem aobre o n 1* dc inventários; % FJ otal = percentagem das quatro rubricas sobre o n ° de inventários; ^ Total - -
o mesmo que o a n te rio r, caduindo-sc as dividas em atívo.
aparc « rr■ em ativo (1 7 .1 % ) „5o ,cm s ig n if i ^ J » rcal. uma vct quc cs,as não foram
c o m p arad as as d o p a ssiv o . ‘ '- « - « i
TA BE LA 118
C o m p o s iç Ao das Fo rtunas de A r te sã o s E l im in a n d o - se a M a io r D e u s
I %N 2 % N 3 %N 4 %N % T o ta l % T o ta l - 4
d e 1 1 ,5 % p a ra 1 9 ,2 % . S e ja c o m o fo r, n e ssa c a te g o r ia a p e r c e n ta g e m re fe re n te a bens
im o b iliá rio s e ra a lta , a in d a q u e m e n o s d e 5 0 % d o s a rte s ã o s tiv e s se m u m a casa.
P a ra to d a s as c a te g o ria s s ó c io -e c o n ô m ic a s q u e e x e r c ia m (o u t in h a m e x e rc id o ) a ti
v id a d e s e c o n ô m ic a s u rb a n a s , as c asas e os h a v e re s e m b a n c o o u e m ações/apólices
c o n s titu ía m , p o is, o e s s e n c ia l d a f o r tu n a . O u tr o s b e n s, c o m o e sc ra v o s, e ra m secu n d á
rio s, a n ao se r q u a n d o in d is p e n s á v e is c o m o m ã o - d e - o b r a , c o m o n a a g r ic u lt u r a ou no
a rte sa n a to . A p re s e n ç a d e e sc rav o s n o s in v e n tá r io s d e 5 4 ,2 % d o s ‘ se m p ro fis sã o ’ (com
p o n d o 1 7 ,4 % d e s u a fo r tu n a ) re fo r ç a a id é ia d e q u e essa c a te g o r ia a b r a n g ia pesso as que
se faz iam a ju d a r e m se u s o fíc io s p o r m ã o - d e -o b r a e s c ra v a o u a a lu g a v a m .
U m a d as q u e stõ e s q u e fo r m u la m o s n o in íc io d e s ta a n á lis e d iz ia re sp e ito à evo lu
ção , ao lo n g o d o s é c u lo , d a p a r tic ip a ç ã o d o s v á rio s c o m p o n e n te s n a fo r tu n a g lo b a l de
c a d a c a te g o ria só c io -e c o n ô m ic a , P a ra re s p o n d ê -la , d is t in g u i d o is p e río d o s: 1 8 0 1 - 1 8 5 0
e 1 8 5 1 - 1 8 8 9 , a p re s e n ta d o s n a s ta b e la s 1 1 9 e 1 2 0 .
TA BE LA 119
C o m p o s i ç ã o d a s F o r t u n a s p o r C a t e g o r i a s S ó c io -E c o n ô m ic a s , 1 8 0 1 - 1 8 5 0 (% )
C ategorias* 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Padres ( 8) ’ 2,6 - -
47,1 10,8 1 7 ,2 - - 14,9 7 ,3
F uncionários (5) - -
3 0,8 4 .6 8 ,9 0 ,4 2 4 ,8 - 22,8 7,7
vmd; o t r e r P^ a t r : í s ’ d o s <£
Na segunda m etade do século esse peso aum entou - embora em percentuais não
m uito elevados - na fortu na dos negociantes, dos industriais, dos oficiais graduados
e d o s a r te s a o s . E m c o n t r a p a r t id a , r e d u z iu - s e — e m p e rc e n tu a is ex p ressivo s - na
f o r tu n a d o s p r o f is s io n a is lib e r a is (p a s s o u d e 4 2 ,8 % a 1 8 ,9 % ), d o s p a d re s (d e 4 7 1%
a 3 2 ,5 % ) e d o s o f ic ia is s u b a lt e r n o s ( 4 8 ,5 % a 1 0 ,5 % ) , Isto se d e v e u so b re tu d o ao
s u r g im e n to d e n o v a s o p o r t u n id a d e s d e in v e s tim e n to a p a r tir d e 1 8 4 0 , c o m a criação
d e b a n c o s e s o c ie d a d e s a n ô n im a s e as p o s s ib ilid a d e s d e e m p re s ta r ao E stad o D e fato
as r u b r ic a s r e la t iv a s a e sse s d o is c o m p o n e n t e s p e r m ite m n o ta r , n o c o n ju n to , u m n ítid o
a u m e n to d o s d e p ó s it o s b a n c á r io s e s o b r e tu d o d o s in v e s tim e n to s n a c o m p ra d e valores,
ao p a sso q u e , n a p r im e i r a m e t a d e d o s é c u lo , só o s q u e v iv ia m d e re n d a s, os p ro p rie
tá r io s d e e m b a r c a ç õ e s e o s p r o p r ie r á r io s a g r íc o la s p o s s u ía m u m a p a rte d e seu s b ens —
a liá s ín f im a — n a s r a r a s s o c ie d a d e s a b e r ta s e x is te n te s . A s s im , p o r e x e m p lo , n a catego -
TABELA 120
C ategorias* 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Negociantes (81) 27,5 •4,3 2,0 0,9 22,7 11,4 15,0 1.6 13,0 1.3
Industriais (12) 7,8 2,2 1,9 15,8 7,4 2,9 33,0 1,9
26,3 0,7
Profissionais liberais (15) - 3,2 1,7 19,2 47,4 6,8 1,6 - 0,1
18,9
- 9,3 7,6 6,9 1,6 - 2.8
Senhores de engenho (10) 4,2 30,2 37,2
16,1 14,7 2.1 - 2,0
Rentistas (224) 37,4 2,4 5,0 2,3 17,8
- - 2,0 96,5
t)onos de barcos ( 1) _ 1,5 - - -
46,6 1,6 1 4 ,4 0,5
Comerciantes (39) 14,1 3,3 9,9 1.0 4.9 3,4
r ia d o s q u e v iv ia m d e re n d a s , as d ív id a s e m a t iv o , q u e re p r e s e n ta v a m 2 1 ,8 % d a fo rtu n a
e n tr e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 , b a ix a r a m a u m p e r c e n tu a l d e 1 4 ,7 % n a s e g u n d a m e ta d e d o sécu lo .
O r a , n o p r im e ir o in te r v a lo , 2 2 % d e ssa c a t e g o r ia v iv ia m d e e m p r é s tim o s fe ito s a te r
c e iro s , ao p a sso q u e n o s e g u n d o se r e d u z ir a m a 1 4 ,7 % . P a r a le la m e n t e , a p a rtic ip a ç ã o
d o s v a lo r e s n a f o r tu n a d e ssa c a te g o r ia s u b iu d e 0 ,9 % a 1 6 ,1 % . S e r ia fá c il m u ltip lic a r
os e x e m p lo s , c ita n d o ta m b é m os p a d re s , o s f u n c io n á r io s e o s o f ic ia is g ra d u a d o s . A
ú n ic a e x c e ç ã o fo ra m os o f ic ia is s u b a lte r n o s , c u ja s d ív id a s e m a tiv o a u m e n ta r a m de
2 1 % p a ra 3 4 ,7 % , p e lo m e n o s n a a m o s tr a e s t u d a d a , o q u e se e x p lic a p o r se u re c ru ta
m e n to e m c a te g o r ia s s o c ia is m a is h u m ild e s .
A o lo n g o d e to d o o s é c u lo X IX , o v a lo r d a s te r r a s fo i u m fa to r im p o r ta n te d a
fo r tu n a d o s p r o d u to r e s a g r íc o la s , in c lu s iv e o s s e n h o re s d e e n g e n h o . N o e n ta n to , na
s e g u n d a m e ta d e d o s é c u lo as te r r a s r e p r e s e n t a v a m a p e n a s 3 0 % d a f o r tu n a d essas duas
c a te g o ria s d e p r o d u to r e s , ao p a sso q u e e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 t in h a m u m p eso d e 5 7 ,6 %
n a fo r tu n a d e s e n h o re s d e e n g e n h o e d e 3 8 % n a d o s p r o p r ie tá r io s a g ríc o la s . Em
c o n tr a p a r tid a , a p a r tic ip a ç ã o d o v a lo r d o s e sc ra v o s n a f o r t u n a d e ssas c a te g o ria s a u
m e n to u s ig n if ic a tiv a m e n te a o lo n g o d o p e r ío d o : p a s s o u d e 1 3 ,1 % a 3 7 ,2 % n o caso
d o s se n h o re s d e e n g e n h o e d e 1 8 ,4 % a 2 5 % n o d o s p r o p r ie tá r io s a g r íc o la s . P a ra todas
as d e m a is c a te g o r ia s — s a lv o o s c o m e r c ia n te s e o p e s s o a l d o m a r , c u ja s ativ id a d e s
g e r a lm e n te e x ig ia m m a is m ã o - d e -o b r a — o p e r c e n t u a l r e la tiv o a esse ite m b aix o u ,
p ro v a d e q u e , c o m a c e s sa ç ã o d o tr á f ic o e a d e c o r r e n te e le v a ç ã o d o p re ç o d o s escravos,
este s já n ão e r a m u m b o m in v e s tim e n to .
E s ig n if ic a tiv o q u e o s e s c ra v o s r e p r e s e n ta s s e m 6 6 ,3 % d a f o r tu n a d o s artesão s na
p r im e ir a m e ta d e d o s é c u lo e n ã o m a is q u e 1 2 ,4 % n a s e g u n d a . A in d a a s s im , n o se g u n
d o in te r v a lo , e m 2/3 d o s in v e n tá r io s d e ssa c a te g o r ia e s ta v a m a r ro la d o s esc rav o s (co n tra
6/7 n o p r im e ir o ); o q u e b a ix o u fo i s o b r e tu d o o n ú m e r o q u e c a d a u m p o ssu ía : a m éd ia
d e escrav o s p o r p r o p r ie tá r io c a iu d e 4 p a r a 1 ,3 , e as e s p e c ific a ç õ e s a p re se n ta d a s nos
in v e n tá rio s in d ic a m q u e os e sc ra v o s e ra m id o s o s , c o m m a is d e c in q ü e n t a an o s.
A c e ssaç ão d o tr á fic o , a e le v a ç ã o d o s p re ç o s d o s e sc ra v o s, a a m e a ç a d e ab o liçã o da
e sc ra v a tu ra e as v e n d a s p a ra as re g iõ e s c a fe e ira s n o C e n t r o - S u l d o p a ís c ertam en te
a fa sta ra m os b a ia n o s d e ssa fo r m a t r a d ic io n a l d e in v e s tim e n to . D e fa to , reto rn an d o
a in d a u m a v ez à c a te g o ria d o s q u e v iv ia m d e re n d a s , o b se rv a -se q u e a m a io r ia dos q ue
a lu g a v a m escravo s v iv e u e m o rr e u n a p r im e ir a m e ta d e d o sé c u lo : c o rresp o n d e m a
d e zo ito in v e n tá rio s a n te r io r e s a 1 8 5 0 e a d e z p o ste rio re s, se n d o q u e , d estes, sete são d a
d é c a d a d e 1 8 5 0 e só trê s p o ste rio re s a 1 8 6 0 .
O s p reço s d a m ã o -d e -o b ra e sc rav a , c o m o já e v o q u e i m u ita s vezes, so freram eleva
ção c o n stan te a p a rtir d c 1 8 1 9 . A tin g ira m seu p ico c m 1 8 5 9 - 1 8 6 0 e, e m b o ra ten h am
d e c lin a d o até a A b o liç ã o , e ram m ais alto s no fin al do p e río d o e sc rav ista do q u e no
in íc io d o sé c u lo , p ro v a d e q u e essa m ã o -d e -o b ra c o n tin u a v a a se r d e m a n d a d a .32
C o m o se o b serv a, o p reço d as escrav as a d u lta s e ra c erca d e 7 5 % do p reço dos ho
m en s. Isto p o u co se a lte ro u co m o te m p o : o p reço d as escravas o sc ilo u en tre 7 1 % c
8 5 % d o preço d o s escravo s. C o m o e stam o s tra ta n d o d e escravo s u rb an o s, o m en o r va-
ÜVRO V II - Q D in h e ir o B m a M )s
637
I A B F. L A 12 1
P reços de
E sc r a v o s L ib e r t a d o s ( f. m m il r e is )
Homens
M “ HFRi-.s M e n in o s
N úm fro P reço
M f.ninas
HUMKKU 1REÇO N cmf. ro P reço
1619-1820 59 214 104 151 11 33 12 36
1825-1826 77 207 153 170 18 63 12 50
1829-1830 70 266 102 197 4 34 10 100
1535-1836 102 292 179 249 27 52 17 47
1839-1840 158 483 194 368 15 108 18 109
1843-1846 156 558 210 417 8 114 15 80
1S 49-1850 161 543 210 407 26 134 19 150
lo r d a m ã o - d e - o b r a f e m i n i n a d e v ia - s e ao fato d e q u e e ra m os h o m e n s sobretudo os
' ■ 33
q u e t i n h a m q u a li f ic a ç ã o o u o f íc io — q u e p o d ia m ser v e n d id o s p a ra o utras províncias.
Isto e x p lic a o g r a n d e n ú m e r o d e m u lh e r e s a lfo rr ia d a s , b e n e fic io d e q u e gozavam
ta m b é m as c r ia n ç a s : d e 1 8 1 9 - 1 8 2 0 a 1 8 6 9 - 1 8 7 0 , u m a m e n in a escrava custava 31%
do p reç o d e u m a e s c r a v a a d u l t a , e u m m e n in o escravo 2 5 % d o preço de um adulto.
A ssim , e n t r e os m a is jo v e n s , os p reç o s d o s d o is sexos e ra m m a is ap ro x im ad o s do quc
e n tr e os a d u lt o s , o q u e é c o n f ir m a d o p e la m a io r ia d as séries de preços d e escravos.
O preço d a s escravas s u b iu m a is r a p id a m e n t e q u e o dos escravos, e a m é ia
preços d as m e n in a s escravas c ra ig u a l c às vezes s u p e rio r à m é d ia do preç ^
nos. S e ria p o r q u e as m e n in a s a m a d u r e c ia m m a is ra p id a m e n te . N áo á c m aioria
der, pois as c artas d c a lf o r r ia ra ra m e n re p re c is a m a id a d e dos escravo^,
e m p re g a fo rm a s v agas, c o m o m e n in o , m e n in a , c rio u lin h o e crioulir) ^ eVC|ha(no
cria n ç as), e ra p az , ra p a r ig a , m o ç o , m o ç a , a in d a m o ço , a in d a m oça ,
caso d os a d u lto s ). _ . dados da
A in d a q u e estas in fo rm a çõ e s não p e rm ita m d isc e rn ir faixas e f ri . n<J
ta b ela d e ix a m c la ra a a c e n tu a d a elev ação dos preços dos escravos, 9 ^ ^ ^ ^
fim d os an o s 1 8 3 0 e, c o m o vim o s, a tin g iu seu m áx im o em habitan-
su b se q ü en te, n ã o m u ito g ra n d e , prova q u e a d e m a n d a p ersistia, as
638 B a h ia , S écu lo X IX
TABELA 122
I n v e n tá r io s p o st m o rte m e E s c r a v o s , 1801 - 1 8 89
N.E. N.I, N.I.S.E. % l.S.E.
1 8 0 1 -1 8 1 0 543 65 6 9 ,2
1 8 1 1 -1 8 2 0 1 .0 8 7 71 10 1 3 ,1
1 8 2 1 -1 8 3 0 ' 947 85 8 9 ,4
1 8 3 1 -1 8 4 0 426 . 88 11 1 2 ,5
1 8 4 3 -1 8 5 0 545 86 17 1 9 ,2
S ue t o t a l 3 .5 4 8 395 52 1 3 ,2
1851-1860 1 .1 5 5 240 55 2 2 ,9
1 8 6 1 -1 8 7 0 501 83 27 3 2 ,5
1 8 7 1 -1 8 8 0 385 159 82 5 1 ,6
1 8 8 1 -1 8 8 9 311 238 171 7 1 ,8
N.E. = núm ero de escravos; N .L = núm ero de inventários; N .I.S.E . = núm ero de inventários
sem escravos; % I.S.E . = percentagem de in ven tário s sem escravos no total.
te s d e S a lv a d o r e la c e r ta m e n te d e c r e s c e u : o s in v e n tá r io s m o s tr a m q u e m e n o r n ú m e ro
d e b a ia n o s p a sso u a p o s s u ir m e n o r n ú m e r o d e e sc ra v o s.
A p a r tir d a d é c a d a d e 1 8 7 0 os e s c ra v o s f ig u r a m e m m e n o s d e m e ta d e d o s in v e n
tá rio s . P r o fis s io n a is lib e r a is , p a d re s e a lto s f u n c io n á r io s j á n ã o o s t in h a m p a r a o serv iço
d o m é s tic o . O q u e r e s ta v a c o m o e sc ra v o s d o m é s tic o s e r a m m u lh e r e s id o s a s , c o n se rv a
d as e m c a sa p o r c o m is e r a ç ã o o u c o s tu m e . S ó p r o p r ie t á r io s a g r íc o la s , s e n h o re s de
e n g e n h o , a lg u n s n e g o c ia n te s e c o m e r c ia n te s c o n t in u a v a m a te r g r a n d e n ú m e r o de
e sc ra v o s, p o r v ezes m a is d e v in t e , e m g e r a l tr a b a lh a n d o e m p la n ta ç õ e s o u c o m o au x i-
lia re s d e c o m é r c io . O p r e s tíg io a n te s a s s o c ia d o à p o sse d e e sc ra v o s e s f u m a v a -s e : p assa
v a a té a ser d e b o m to m n ã o os p o s s u ír , r e c o r r e n d o a e m p r e g a d o s d o m é s tic o s a s sa la
ria d o s o u s im p le s m e n te ao s a g r e g a d o s e a g r e g a d a s q u e p o v o a v a m a s c a sa s a b a sta d a s.
Q u a n to ao s o u tr o s c o m p o n e n te s d a s f o r tu n a s b a ia n a s , d e v e -s e n o ta r u m a q u e d a
d as d ív id a s e m a tiv o . N a v e r d a d e , n o s in v e n tá r io s d o s c o m e r c ia n te s , e sse e le m e n to ,
q u e já e ra fo rte a n te s d e 1 8 5 0 ( 3 7 ,7 % ) , to r n o u - s e a in d a m a io r a p a r t ir d e m e a d o s do
sé c u lo , c h e g a n d o a 4 6 ,6 % . E n tre os n e g o c ia n te s , e n tr e ta n to , o c o r re u u m a n ít id a re d u
ç ã o , p a ssa n d o esse rip o d e ^ a v e r p r o b le m á t ic o ’ d e 3 5 ,8 % a 1 5 % d a fo r tu n a to tal.
I n te rro m p o a q u i estas a n á lise s fu n d a d a s e m d a d o s b ru to s. S e r ía p o r c e rto in te re ssa n
te te n ta r c o m p re e n d e r o q u e r e p r e s e n ta v a m as d ív id a s em p a ssiv o p a ra c a d a c a te g o ria
só c io -e c o n ô m ic a . A s ta b e la s 1 2 3 e 1 2 4 , q u e o b e d e c e m a o c o rte d o p e río d o e m 1 8 5 0 ,
d ão o n u m e ro d e in v e n tá r io s (N ), o p e r c e n tu a l d o s q u e tê m d ív id a s em p assiv o (% N ),
o p e rc e n tu a l d o p assiv o d e c a d a c a te g o r ia so b re o m o n ta n te d o p a ssiv o n o p e río d o , o
p e rc e n tu a l d o p assiv o so b re o m o n ta n te d a fo r tu n a d e c a d a c a te g o ria só c io -e c o n ô m ic a
e o p e rc e n tu a l d as d ív id a s e m a tiv o so b re o to ta l d a fo r tu n a d e c a d a c a te g o ria .
N e n h u m a c a te g o r ia só c io -e c o n ô m ic a e sc a p a v a ao e n d iv id a m e n to , q u e e ra m a io r
o u m e n o r se g u n d o o p e río d o d o sé c u lo e a c a te g o r ia c o n sid e ra d o s . G lo b a lm e n te ,
p o ré m , o e n d iv id a m e n to q u a s e d o b ro u n a s e g u n d a m e ta d e d o sé c u lo : 1 4 ,5 % c o n tra
L iv r o V H - O D in h e ir o d o s B a/an o s
TABELA í 23
D Iv id a s em Pa ss iv o e em A ttvo nos I n v e n t a r ,o s. i k o i o k r .
O.TEGOffiAS N ^ N % P csstvq
% P a ssiv o / T o t* l % \~T,’o / T o r m
N ego cian te* 27 4 8 ,1 1 5 ,6 5 ,2 3 5 ,8
ía d u s tr ía is 1 3 0 0 ,0 -
1 ,7 8 1
P ro fissio n ais lib e ra is 4 7 5 ,5 !,0 4 ,7 10,5
S e n h o r a d e e n g en h o 7 4 2 ,8 1 8 ,4 8,8 2 0 ,5
R m datas 86 3 9 ,5 1 7 ,7 4 ,7 21,8
D ono* d e b arco s 5 8 0 ,0 5 ,5 4 2 ,1 3 5 ,8
C c m e ra a n t« 34 5 4 ,0 5 ,9 5 ,0 3 7 ,7
P ro p rietário * a g ríc o la s 37 6 2 ,1 1 1 ,7 1 2 ,3 153
P adres 8 1 2 ,5 - 0,6 14,9
F u c d o n ir ío * 5 100,0 1,6 1 0 ,9 22,8
O ficiais su b altern o s 4 100,0 10,2 3 6 ,8 21,0
O ficiais su p erio res n 7 2 ,7 1.0 8,6 2 5 ,5
A n e sã m 14 5 0 ,0 2 ,3 3 6 ,8 7 ,6
M arítim o * 5 6 0 ,0 0,2 4 ,5 6 ,7
(*j T o tal das dividas em passivo = 3 5 6 :9 3 1 de réis; to tal das d ív id as em ativo = 1 .0 91 :8 3 3 de réts.
TABELA 124
D ív id a s e m P a s s iv o e em A t iv o n o s I n v e n t á r io s , 1 8 5 1 - 1 8 8 9 *
. T A B F .I.A 125
1801-1850" 1851-1889"
T a m a n h o das F o rtunas'
7 12
at<É 1 : 0 0 0
3 * 4
1: ] 0 0 a 2 : 0 0 0
- 9
2 :1 0 0 a 1 0 :0 0 0
2 10
1 0 :1 0 0 a 5 0 :0 0 0
2
5 0 :1 0 0 a 2 0 0 :0 0 0 -
I g u a lm e n t e n u m e r o s o s fo r a m os in v e n t á r io s c o m s a ld o n e g a tiv o c o rresp o n
d e n te s a fo r tu n a s n a f a ix a d e 2 :0 0 0 e 1 0 :0 0 0 d e ré is . E x a m in e i n o v e d e le s, m as só um
tr a z ia in fo rm a ç õ e s p re c is a s: o d o p o r tu g u ê s E m ilia n o M o r e ir a d e C a rv a lh o e Silva,
q u e , a té 1 8 7 4 , s u s te n ta r a m u lh e r e filh o s c o m a lo c a ç ã o d e se u s o ito e sc rav o s, aliás seus
ú n ic o s b e n s. D e ix o u 7 :4 0 0 d e ré is em e sc ra v o s, m a s ta m b é m d ív id a s n o v a lo r de 9 :4 6 8
d e ré is, d o s q u a is 6 :8 6 8 d e ré is e ra m d e v id o s ao ric o e in f lu e n t e c ô n e g o e p o lítico
H e n r iq u e d e S o u z a B r a n d ã o , q u e lh e e m p r e s ta r a a ju r o s . D o e n te , E m ilia n o foi se
tr a ta r e m P o r tu g a l e lá m o rr e u , d e ix a n d o d e s a m p a r a d a s u a f a m ília b r a s ile ir a .35
P o u co n u m e r o s o s n o c o n ju n t o , o s in v e n t á r io s c o m s a ld o n e g a tiv o têm um a
fre q ü ê n c ia q u e d e ix a c la ro q u e os b a ia n o s p o u c o o u m e d ia n a m e n te a b a sta d o s — cujas
h e ra n ç a s v a ria v a m e n tre a lg u m a s c e n te n a s d e m il ré is e 1 0 :0 0 0 d e r é is — e stav am m ais
ex p o sto s a esse re v é s. E n ã o se p o d e a t r ib u ir ta l d e s fe c h o a m á g e s tã o : q u a n d o a fo rtu n a
era m o d e s ta , os b e n s e ra m n e c e s s a r ia m e n te p o u c o d iv e r s if ic a d o s e m u ita s vezes in su
fic ie n te s p a ra a s s e g u ra r o s u s te n to d e u m a f a m ília o u m e s m o d e u m a p esso a.
A ra iz d o p r o b le m a e stá , a n te s , n u m e s tilo d e v id a . O s b a ia n o s d essas faixas de
fo rtu n a v iv ia m se m se p r e o c u p a r m u it o c o m o a m a n h ã , c o n tr a in d o d ív id a s freq üen tes
e e m p re s ta n d o d in h e ir o c o m p r o d ig a lid a d e . P o r m o d e s to s q u e fo ssem os bens, eles
situ a v a m o p r o p r ie tá r io a c im a d o s q u e n a d a t in h a m . B a s ta v a e n tã o u m a d o e n ç a para
q u e as d ív id a s se m u ltip lic a s s e m , c o m as d e sp e sa s d e m é d ic o e fa r m á c ia . A liá s , dívidas
d e ú ltim a h o ra c o n s ta m d e 6 6 % d e sse s in v e n tá r io s , a o p a sso q u e n o s d e faix as d e m aior
fo rtu n a , se m re g is tr o d e o u tr a s d ív id a s , n a o p e s a m ta n to .
A d e s p re o c u p a ç ã o c o m o f u tu ro n ã o e r a , a liá s , e x c lu s iv id a d e d o s m e n o s afo rtu n a
do s o u d o s q u e d e ix a v a m h e ra n ç a s n e g a tiv a s . E ra u m a a t it u d e d ía n te d a v id a que
m a rc a v a to d o s os b a ia n o s , fosse q u a l fo sse s u a c a te g o r ia s o c ia l o u n ív e l d e fo rtu n a. Os
in v e n tá rio s n e g a tiv o s só fa z e m r e v e lá -la , v e r d a d e ir a e p if a n ia q u e tra z à to n a u m traço
a rra ig a d o q u e , a liá s , a f ó r m u la ‘D e u s d a r á ’ — d it a n u m to m e n tre a o rd e m e a prece,
ja m a is c o m o in te r ro g a ç ã o — e x p re ssa la p id a r m e n te . E sse ‘D e u s d a r á ’ e stav a nas bocas
de to d o s os b a ia n o s. D e u s ‘ d a r ia ’ ao ric o p a ra fa z ê -lo m a is ric o ; d a r ia ta m b é m ao pobre
o seu q u in h ã o , m as n ão d ir e t a m e n t e : e le p r e c is a v a d e u m p a tro n o , u m m ed iad o r. As
riq u ezas q u e D eu s d a r ia n a o e ra m n e c e s s a ria m e n te m a te r ia is : q u a lq u e r no vo laço de
p are n te sc o , re la ç ã o so c ia l o u d e tr a b a lh o e s ta b e le c id o e ra v isto co m o d o m precioso,
su sc ita n d o a e sp e ra n ç a d e g a n h o s m a te r ia is . É p re c iso te r c o n v iv id o com esse traço
sa lie n te d a m e n ta lid a d e b a ia n a p a ra c o m p re e n d e r o p a p e l re la tiv o d a riq u e z a m aterial
co m o c rité rio d e c la ssific a ç ã o so c ia l.
R iq u e z a s e P o b rezas
m u d a m o s d e m e io s o c ia l e d e fa ix a d c f o r tu n a O n r lm ,; m -
S a lv a d o r e m 1 7 9 6 , e ra f ilh o d e J o á o d e O liv e ir a e A lm e id a
Ribeiro, bolre.ro, em seu resramenro, escriro ..lguns dias anres de sua morte e m T ssT
nomeou se.s resram enre.ros: sua prima e comadre Inês de Castro e Abreu Coelho (oue
aceitou o encargo) as duas .rmãs solteiras, Umbelina e Ângela do Bonfim, o pá oco
V.cente F errara O I,ve,ra, e do.s amigos, jo sé Pedro de Souza Parafzo e Consranrino
L u cas P e sso a d a S ilv a . E ra m e m b r o d a ir m a n d a d e d o S a n tís s im o S a c ra m e n to d a R u a
d o P asso e t a m b e m d a S a n t a C a s a , o q u e in d ic a p o s iç ã o so c ia l e le v a d a . E n carreg o u a
p r im a In ê s d e C a s t r o d e e n t e r r á - lo c o m o b e m lh e p a re c e sse e n ão p e d iu m issas p a ra o
re p o u so d e s u a a lm a . T a m p o u c o in v o c o u sa n to s m e d ia n e ir o s n o in íc io d e seu te sta
m e n to : só a S a n t ís s im a T r in d a d e . J o ã o F r a n c is c o , q u e e ra d ir e t o r d a E sco la d e M e d i
c in a , d e ix o u a s e g u in t e f o r t u n a : u m s o b r a d o ( 1 4 :0 0 0 d e ré is ), açõ es d a C a ix a E conô
m ic a ( 3 9 :7 0 0 d e r é is ), d in h e ir o líq u id o ( 1 :2 4 0 d e ré is ), sa lá rio c o m o d ire to r d a faculdade
( 1 :2 0 0 d e r é is ), d iv id e n d o s d a C a i x a E c o n ô m ic a ( 8 0 1 .0 0 0 ré is ), a lu g u e l d a lo ja que
f u n c io n a v a n o s o b r a d o ( 1 4 0 .0 0 0 r é is ), e s c ra v o s ( 4 :4 5 0 d e ré is ), m ó v e is (4 4 8 .0 0 0 réis),
jó ia s ( 1 7 0 .0 0 0 ré is ) e o b je to s ( 5 4 . 0 0 0 r é is ). N o to t a l, 6 2 :2 0 3 d e réis.
N ã o h a v ia d ív id a s a s u b t r a ir . D e s p e s a s re fe re n te s a g asto s c o m a h o sp italiz aç ão de
d o is e sc ra v o s ( 1 0 6 .5 6 0 r é is ) , o e n te r r o d e u m d e le s ( 4 ,8 0 0 ré is ), o e n te rro do p ró p rio
J o ã o F r a n c is c o ( 7 9 2 .6 2 0 r é is ) e o in v e n t á r io ( 4 7 3 .0 0 0 ré is) so m a ra m 1 :3 7 7 d e réis.
R e s ta ra m , p a r a h e r d e ir o s e le g a t á r io s , 6 0 :8 2 6 d e ré is . C o m o fo ram d istrib u íd o s?
J o ã o F r a n c is c o t in h a o n z e e s c ra v o s (tr ê s h o m e n s e o ito m u lh e re s ). L ib erto u três
(d u a s m u lh e r e s e u m h o m e m ) , n a o só g r a t u it a m e n t e , c o m o d e ix a n d o 4 0 0 .0 0 0 réis a
c ad a u m . D u a s ir m ã s c a s a d a s r e c e b e r a m le g a d o s d e 8 :0 0 0 d e ré is e o restan te d a h e
ra n ç a fo i p a r t ilh a d o e n t r e as ir m ã s s o lte ir a s , q u e m o ra v a m co m ele, e a p rim a Inês de
C a s tro , v iú v a e mãe d e tr ê s f ilh o s . A s ir m ã s s o lte ira s re c e b e ram 2 0 :0 0 0 de réis e a
m e ta d e d o s e sc ra v o s, e a p r im a h e r d o u a c a s a , co m to d o s os m ó v e is, jo ía s e ob jetos de
p rata, a s sim c o m o a m e ta d e d o s e sc ra v o s, 3 :7 0 0 d e ré is em açõ es e 2 :0 0 0 de réís em
d in h e iro líq u id o . F ic a v a , p o ré m , c o m o e n c a rg o d e a b r ig a r sob seu teto as d u as irm ãs,
até q u e m o r r e s s e m .42 A ,
C o m B e n t o J o s é d e A l m e i d a r e e n c o n t r a m o s u m g r a n d e n ego cian te. Português e
n a s c im e n t o , d a r e g iã o d o P o rto , t i n h a 7 2 a n o s e m 1 8 5 6 , q u a n d o escreveu seu
m e n to , p o u c o a n te s d e m o r r e r . Era s ó c io d o ir m ã o , Jo s é P in to R o d rigu es da os ^
cra este o n o m e d c f a m íl ia d o p a i, e n ã o se sa b e p o r q u e B e n to Josc se rrarj^ ^
n u m A lm e id a — n u m n e g ó c io d c fe rra g e n s. M a s a so c ie d a d e possuía ta ^ ^
barcos e escravo s, c n e n h u m desses ite n s foi in v e n ta r ia d o : j á v i m o s q u e nao rar■
p a rte d a fo r tu n a e n tr a v a no in v e n tá r io . S o lte ir o , B en to Jo sé tin h a tres /~nnrei-
— L u ís G o n z a g a d e A lm e id a , B e n to Jo sé d c A lm e id a e A m á lia Leopo m a a ^
Ção — , q u e d e c la ro u seus h e rd e ir o s u n iv ersais. O n e g o c ian te era ® 'T,erceira de
m e m b r o d a p r e s t i g i o s a c o n f r a r i a d a S a n t a C a s a d e M ise ric ó rd ia , a r . nedíu
São F ran cisc o e d e p e lo m e n o s dez o u tra s irm a n d a d e s religiosas. ui ^ « y j rgein
em seu te s ta m e n to — e sc rito a liá s em estilo u m ta n to c o m ercia q
646 B a h ia , S éc u lo X IX
M a r ia e to d o s o s S a n to s e S a n t a s d a C o r t e C e le s t e ” se d ig n a s s e m a “g e r ir e d e fe n d e r”
se u s " in te r e s s e s p e r a n te o T r ib u n a l D iv in o ” e q u e s e u “A n jo d a G u a r d a ” se d ig n a sse
a a s s is t i- lo e a c o m p a n h á - lo “ n a h o r a f in a l d e s e u tr e s p a s s e ” . A s m is s a s a re z a r eram
m u it a s : q u in h e n t a s , c e m d a s q u a is p e la a lm a d e s e u s ir m ã o s e ir m ã s , as d e m a is p e lo re
p o u s o d a s u a p r ó p r ia . D e v ia s e r e n t e r r a d o n a ig r e ja d e S ã o D o m in g o s , c o m o tra je da
O r d e m T e r c e ir a d o m e s m o n o m e . S e u s b e n s c o m p r e e n d ia m : im ó v e is ( 3 7 :4 0 0 d e réis),
aç õ e s b a n c á r ia s ( 1 1 1 :3 0 5 d e r é is ), d ív id a s e m a t iv o ( 1 3 4 : 2 9 5 d e r é is ) , e sc ra v o s (9 :7 0 0
d e r é is ), m ó v e is ( 4 4 2 .0 0 0 r é is ) , jó ia s ( 1 5 0 .0 0 0 r é is ) e o b je to s ( 1 8 7 .0 0 0 r é is ). T o ta l,
2 9 3 :4 7 0 d e ré is .
P r o p r ie tá r io d e q u in z e e s c r a v o s , e le lib e r t o u q u a t r o g r a t u it a m e n t e e u tiliz o u os
re c u rso s d is p o n ív e is p a r a fa z e r n u m e r o s a s d o a ç õ e s : 1 :2 0 0 d e r é is p a r a d u a s m o ças
a lf o r r ia d a s , 9 0 0 . 0 0 0 r é is (v a lo r d e d u a s c a s a s ) p a r a d o is e s c r a v o s n a m e s m a situ a ç ã o ,
8 0 0 .0 0 0 ré is p a ra d o is g ê m e o s , 1 0 0 .0 0 0 r é is p a r a o f ilh o d o c o m p a d r e B a rb o s a funileiro,
1 :0 0 0 d e ré is a u m a a f ilh a d a q u e v iv ia c o m e le , 1 :2 0 0 d e ré is a c a d a a f ilh a d o , 5 0 0 .0 0 0
ré is a se u c a ix e ir o A n t ô n io A lv e s , 4 0 0 . 0 0 0 r é is a s e u s o b r in h o J o s é d e S á P in t o , 1 :2 0 0
d e ré is a to d o s os q u e t r a b a lh a v a m h á m a is d e d o is a n o s e m s u a lo ja , 3 :0 0 0 d e réis a
se u ir m ã o e s ó c io , 1 :2 0 0 d e ré is a s e u o u t r o ir m ã o e 5 0 0 . 0 0 0 ré is a se u p r im o A n tô n io
R o d r ig u e s , n u m t o t a l d e 1 4 :4 0 0 d e ré is .
A e ste s le g a d o s p r o f a n o s a c r e s c e n t a v a m - s e o s p ie d o s o s : 1 :0 0 0 d e ré is a o C o lé g io
d o s ó r f ã o s d e S ã o J o a q u im , 5 0 0 . 0 0 0 ré is a o C o lé g io d o s Ó r fã o s d o S a g r a d o C o ra ç ã o
d e Je s u s , 1 :0 0 0 d e ré is à S a n t a C a s a d e M is e r ic ó r d ia , 1 :0 0 0 d e r é is à I r m a n d a d e do
S a n to S a c r a m e n to d a I g r e ja d a C o n c e iç ã o d a P r a ia , 1 :0 0 0 d e ré is à V e n e r á v e l O rd em
T e r c e ir a d e S ã o D o m in g o s , 5 0 0 .0 0 0 ré is à I g r e ja M a t r iz d e N . S r a . d e B ro ta s , 1 :6 0 0
d e réis p a ra o d o te d e q u a t r o m o ç a s p o b r e s e h o n e s ta s e , f in a lm e n t e , 1 2 0 .0 0 0 ré is para
os p o b res d o C o n v e n to d e S ã o F r a n c is c o , p e r f a z e n d o u m t o t a l d e 6 :7 2 0 d e réis.
O re sta n te d a te rç a d e q u e p o d ia d is p o r — 7 6 :7 0 6 d e ré is — d e v ia ser d is tr i
b u íd o a se u s ir m ã o s q u e v iv ia m e m P o r t u g a l.43 T o d o m u n d o re c e b e r ia a s u a p arte,
p o rta n to , d a fo r tu n a q u e D e u s p e r m it ir a J o s é B e n to a c u m u la r : filh o s n a tu ra is , em
p r im e iro lu g a r , d e p o is ir m ã o s , p r im o s e s o b r in h o s , n a o p o r q u e e ste s estiv essem em
d ific u ld a d e s , m as p o rq u e a s s im g u a r d a r ia m v iv a a le m b r a n ç a d o f a le c id o e os laços de
f a m ília se e s tr e ita r ia m . N ã o fo ra m e s q u e c id o s os q u e tin h a m tr a b a lh a d o ou ain d a
tra b a lh a v a m p a ra o su c esso d o s n o g ó c io s d o f in a d o : g e sto d e re c o n h e c im e n to e, ao
m esm o te m p o , fo rm a d c re fo rç a r os laço s d e f id e lid a d e q u e d e v ia m u n ir p atrõ es e
e m p re g a d o s. Em s e g u id a v in h a m os a f ilh a d o s , n u m e r o s o s , p o rq u e Jo sé B en to já não
se le m b ra v a d o n o m e d c b o m n ú m e r o d e le s (to d o b a ia n o , ric o ou p o b re , tin h a afi
lh a d o s, m a n e ir a d e a m p lia r as re la çõ es so c ia is e a c lie n te la p ro n ta a se rv ir e a ser ú til,
m as q u e im p u n h a ta m b é m d e v e re s ). P o r fim , e x p re sso u su a g ra tid ã o ao s escravos quc
o tín h a m se rv id o , c o n te m p la n d o in c lu s iv e os filh o s d e le s. P e d iu às ex -escrav as q u e
p e rm an ec esse m fié is a seu s filh o s n a tu ra is c os ‘v is ita s s e m ’ se m p re , p o is sa b ia q u e tal
p e d id o te ria re sso n â n c ia e q u e ta is v isita s se ria m o casiõ es se m p re re n o v ad as d e trocas
dc serviços.
L1V H 0 V q i^ ^ D i n h f i r o d o s B a ia n o s m ?
Esta evocação contínua dos laços quc unem pessoas de condições tão diferentes
esta presente em m u,tos testamentos, pois nessa sociedade na qual L homens v nh m
de toda parte e de ugar nenhum , na qual a riqueza era muitas vezes efêmera e ”
amanha .m prev.stvel, o que contava, afinai de contas, eram justamente os laços que se
te c ia m em to d a s as o c a s iõ e s e q u e se d e s e ja v a fo ssem im p e re c ív e is
N a e s c a la d e v a lo r e s , a r iq u e z a d e s e m p e n h a v a u m p a p e ] im p o rta n te , m as não
e sse n c ia l. E n tre u m n e g o c ia n te q u e d e ix a v a v á ria s c e n te n a s d e c o n to s d e réis e alg u é m
q u e n ã o p o d ia le g a r m a is q u e a lg u m a s d e z e n a s d e m ilh a r e s d e ré is h a v ia u m a im e n sa
d is tâ n c ia . M a s u m m é d ic o , u m f u n c io n á r io , u m p a d r e , u m s e n h o r d e e n g e n h o , q ue
m o rria m d e ix a n d o a lg u m a s d e z e n a s d e c o n to s d e ré is , g o z a v a m d e u m p re stíg io so cial
s u p e rio r a o d o ric o n e g o c ia n t e . P o rq u e s e r m e m b ro d e u m a p ro fissão lib e ra l, serv ir ao
E stad o o u à I g r e ja , p e r t e n c e r à c la s se d o s s e n h o re s d e e n g e n h o a u re o la d o s p o r p restíg io
a n tig o e d u r a d o u r o e r a , a o s o lh o s d e to d o s , s in a l d e g ra n d e z a e d e e le v aç ão . Era preciso
‘sa b e r’ p a r a se r m é d ic o , f u n c io n á r io o u p a d re , e e ra p re c iso te r c e rta tra d iç ã o p a ra ser
se n h o r d e e n g e n h o . A liá s , ao c o n f e r ir t ítu lo s d e n o b re z a e re c ru ta r p o lític o s nessas
c a te g o ria s , o m o n a r c a m a r c a v a b e m a p r e f e r ê n c ia q u e lh e s c o n c e d ia , a h o n ra q u e lh es
e ra d e v id a .
S e m d ú v id a o d in h e ir o p e r m it ia ‘ in tr o d u z ir - s e ’ n a s o c ie d a d e , a d q u ir ir u m a p o si
ç ão , m as a p o b re z a n a o e r a u m o b s tá c u lo in tr a n s p o n ív e l, d e sd e q u e se fosse h u m ild e ,
h o n e sto , fie l e s e r v íç a l. E stes q u a tr o p r e d ic a d o s p o d ia m g u in d a r , a u m a p o sição eleva
d a n a e s tim a s o c ia l, g e n t e p o b re e m e n o s p o b re , b ra n c o s, n e g ro s ou m u la to s, livres ou
a lfo rria d o s . E sta p o s iç ã o c o n f e r ia p r e s tíg io , e ta l p r e s tíg io , p o r su a vez, era in stru m en to
p a ra a a q u is iç ã o d a r iq u e z a q u e p e r m ite c o n s o lid a r a p o siç ã o so c ia l. F oi este o segredo
do ê x ito — à p r im e ir a v is ta , in c o m p r e e n s ív e l — d e c e rta s c a rre ira s, U m desses casos
é o d e u m a f r ic a n o , r e c é m - a íf o r r ia d o , q u e c o n s e g u iu fo rm a r u m a p e q u e n a fo rtu n a de
m ais d e 1 0 :0 0 0 d e ré is . Q u e m sa b e d e q u e re d e d c re la ç õ e s, d e q u e laço s d e p aren tesco ,
d e e le iç ã o o u d e c o n s id e r a ç ã o , d e q u e se rv iç o s p re s ta d o s e ta m b é m d e q u e co ragem no
tra b a lh o c o tid ia n o essas a sc e n sõ e s so c ia is e ra m fru to ?
Essa s o c ie d a d e b a ia n a , e m q u e r iq u e z a s e p o b re z a s n ã o sig n ific av a m apenas d i
n h eiro e falta d e d in h e ir o , o n d e os c a m in h o s q u e le v a v a m d a in d ig ê n c ia à ab astança
o u v ic e -v e rsa — d iv a g a v a m p o r m i! c u rv a s a d m ir á v e is , era tão barro ca q u an to as
igrejas d e S a lv a d o r , re v e stid a s d e o u r o p o r g e n te p o b re. Ser rico n a B ahia do século
XIX era, e v id e n t e m e n t e , n a sc e r b r a n c o c d e s c e n d e n te de p o rtu gu ê s q ue, chegado ao
B rasil em te m p o s lo n g ín q u o s c glo rio so s, o c u p a r a u m a terra fértil e sc dedicara a
produzár e e x p o rta r a ç ú c a r. M u it o m a is n u m e ro so s, p o ré m , eram os portugueses q^
tin h a m im ig r a d o re c e n te m e n te , sem to stão , p ara tra b a lh a r n u m a lo ja ate q u e li
seus d e sc e n d e n te s (c o m e r c ia n te ou n e g o c ia n te ) con seg uisse co m p rar u m a terra ou^
casar co m a filha de uni se n h o r d e e n g e n h o . M a s , d ad o este passo, até d in e
p o d ia faltar: to d o se n h o r d e e n g e n h o cra c o n sid e rad o rico, m esm o se estivesse
d a ru ín a. Era visto c o m o rico e c o m o tal d evia ag ir, p rotegend o ou até su
toda u m a c lie n te la , c u ja e x istê n c ia e ra pro va de sua riqu eza e dela depen ta.
648 Bahia, S écilo XIX
v ic io s o p a r a q u e m n ã o c o n s e g u ia m a n t e r u m a f o r tu n a , p o r q u e n a B a h ia n in g u é m
g o s ta v a d e n e g a r u m p e d id o , d e ix a r d c s o c o r re r a u m p o b r e , r e n u n c ia r a se u s h áb ito s
C o m o p e r m a n e c e r ric o o u c o m o e s c a p a r d a p o b re z a : e ra m e ste s os p ro b lem as
c r u c ia is q u e se c o lo c a v a m p a r a o s b a ia n o s , c o m m u it o p o u c a s e x c e ç õ e s , a ju lg a r p e]a
a n á lis e d a s fo r tu n a s . E ram in s tá v e is e f r á g e is o s b e n s a d q u ir id o s , e h a v ia d ific u ld a d e s
p a ra a d q u ir i- lo s . V e n c e r e m a n t e r a p o s iç ã o e x ig ia m ig u a is e sfo rç o s d e fid e lid a d e aos
c o m p r o m is s o s , à c lie n t e la , à f a m ília . O E s ta d o já n ã o s a b ia r e c r u t a r se u s se rv id o re s sem
u m a r e c o m e n d a ç ã o , o c lie n t e n ã o t in h a c o r a g e m d e m u d a r se u s h á b ito s c o m e rc ia is . A
im a g in a ç ã o se r e f u g ia v a e m u n s p o u c o s h o m e n s e m u lh e r e s q u e , e m b o r a p reserv an d o
o s la ç o s te c id o s p e la v id a a s s o c ia tiv a o u d e f a m ília , o u s a v a m n o v a s a v e n tu r a s . Estes
p a s s a v a m d a p o b re z a à a b a s ta n ç a , e r a m r e c o n h e c id o s c o m o ric o s e c o m eç av a m a
d a n ç a r n a c o r d a b a m b a q u e e r a s e m p r e , p a r a o s b a ia n o s , a p o s s e d e u m a fo rtu n a : por
re a l e s u b s t a n c io s a q u e fo sse , n u n c a e ra s e g u r a . _
N a B a h ia , r iq u e z a s e p o b re z a s se p e r d ia m e se g a n h a v a m , m e s m o q u e o d e c lín io de
q u e m e m p o b re c e s s e p o r fo r ç a d e d ív id a s , d e m á g e s tã o d o p a t r im ô n io o u excesso de
filh o s p a ra c r ia r p u d e s s e se m a n t e r n ã o só in c o m p r e e n s ív e l c o m o in v is ív e l p a ra o m eio
s o c ia l. P a ss a r p o r ric o n a o e r a se r r ic o : e r a m u it a s v e z es te r s id o , o u se r p a re n te de
q u e m já t in h a s id o . U m a f a m ília e m p o b r e c id a p o d ia c o r ta r n a c a r n e p a r a a ju d a r seus
p o b re s, n ã o p o r o s te n ta ç ã o , m a s p o r o b r ig a ç ã o m o r a l, p o r h á b ito , p o r v e rd a d e ira
p ie d a d e . E, m e s m o e m p o b r e c id a , o b t in h a f a c ilm e n t e p a te n te s n o E x é rc ito o u postos
n o se rv iç o p ú b lic o q u e lh e p e r m it ia m , m a l o u b e m , s o b re v iv e r. C o n tin u a v a a passar
p o r ric a , c o m a c u m p lic id a d e d e to d o o m e io s o c ia l.
E sta d if ic u ld a d e q u e h a v ia e m c o n s e r v a r u m a f o r tu n a n a B a h ia d e v la -se sem
d ú v id a ao c re s c e n te e s m o r e c im e n to d a c o m b a tiv id a d e , p r e s a n a s m a lh a s d as redes e
d o s laço s q u e a ju d a v a m ta n to s p o b re s a s o b re v iv e r. P o r q u e ta n to s a lfo rria d o s conse
g u ia m fazer fo rtu n a ? P o r c e r to p o r q u e e ra m c o ra jo s o s , o b s tin a d o s , h u m ild e s e eficazes.
T in h a m sa b id o lu t a r p o r s u a lib e r d a d e , c o n tin u a v a m lu ta n d o e m su as v id in h a s m odes
tas. A lg u n s c o n s e g u ia m v e n c e r o u p ro m o v e r os filh o s . A s o c ie d a d e b a ia n a era a um sé
te m p o a b e rta e fe c h a d a , a r iq u e z a e a a sc e n sã o s o c ia l e ra m in te ir a m e n te possíveis no
sé c u lo X IX . M a s e ra ta m b é m u m a s o c ie d a d e q u e p o d ia f a c ilm e n te e m b a la r seu s filhos
no c o n fo rto d as red es d c a ju d a m ú tu a . F in a lm e n te , tu d o o q u e o e stu d o q u a lita tiv o das
h ie ra rq u ia s so c ia is b a ia n a s re v e la ra e n c o n tro u c o n firm a ç ã o em m ín h a s te n ta tiv a s de
e stu d o q u a n tita tiv o d as fo rtu n a s q u c , ao m o rre r, os b a ia n o s d e ix a v a m : g en te q u e, para
a lé m d a m o rte , te n ta v a d o lo ro sa m e n te c o n tin u a r h u m ild e p e ra n te D eu s e os ho m ens,
h o n e sta , p a g a n d o to d a s as su as d ív id a s , fie l p a ra co m to d o s os q u c so u b eram am á-la e
d a r-lh e u m a se g u ra n ç a c u m re c o n h e c im e n to so c ia l, q u c co n sid erav am o bem suprem o.
N a m e d id a em q u e fu n c io n o u b e m , o siste m a ac ab o u p o r se esclero sar, se ens
ta liz a r. S u a fle x ib ilid a d e sc c o n v e rte u cm rig id e z , seus e q u ilíb rio s se tran sfo rm aram
em falta d e a m b iç ã o , c o m o b em o d e m o n stra a c o m p araç ão e n tre o d esenvolvim en
to de o u tras p ro v ín c ias b ra sile ira s e o m arasm o em q u e , le n ta m e n te , m ergu lh o u , no
século X IX , a o p u le n ta B a h ia do sécu lo X V III.
C o n c lu sã o
a r g i lo s o s . . . . R frô n cav o — d a s q u a is .n o
O m i t o d a r iq u e z a r e p r e s e n t a d a p e la s p r o p r i e d a d e s a u e se r o m p ia q u a n d o
e n t a n t o , 2 / 3 d e v i a m f i c a r s e m c u l t i v o — e r a m a i s u m a i u s' , q
649
B a h u . S fc o -o X JX
N otas
N otas da In trodução
3- I d e m , ib id c m , p . 7 - 8 .
4 . I d e m , ib id c m , p . 3 8 1 - 3 9 0 . ,
5. I d e m , íb id e m , p . 2 7 0 - 2 7 1 .
6. C om o lem brança, cito ainda dc C aio Prado J r , Evolução poU tica do B rasil e m tro3 t 3tudoS
rtistona economica do Brasil e A revolução brasileira.
é u m b o m e x e m p lo d e s s a c o r r e n te : Formação histórica do Brasil
7 . N e lso n W e r n e c k S o d r é
História da burguesia brasileira-, As razões da Independência e tc .
Casa-grande & senzala. D o m e s m o a u to r : Nordeste, Sobrados e mocambos
8 . G ilb e r to F r c y r e ,
- Decadencia do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano-, Vida social no Brasil nos
meados do século XIX e tc .
9 . C h a r le s W a g le y , A revolução brasileira-, Introduction to Brazil; Races et classes dans le Brésil
rural. M e J v ille J . H c r s k o v it s , “T h e s o c ia l o r g a n iz a tio n o f th e c a n d o m b lé " ; Pesquisas etno
lógicas na Bahia. R o g e r B a s t id e , As religiões africanas no Brasil; O candomblé da Bahia —
Rito Nagô.
O algodão em São Paulo, 186l~!875\ O comércio português no
19. A lic e P jffc r C a n a b r a v a ,
Rio da Prata: }580—1640 e tc . C e ls o F u r ta d o , A formação econômica do Brasil etc. M ircea
B u e sc u , História econômica do Brasil—Pesquisas e análises-, Evolução econômica do Brasilac.
11 ■ A i n s t i t u i r ã o u n iv e r s it á r ia 6 r c c c n t c n o B r a s il. F a c u ld a d e s e escolas su p erio res tinham sido
f u n d a d a s n a B a h ia , n o R ío d e j a n e i r o , e m P e r n a m b u c o e e m S ão P au lo desde o princfpío
d o s é c u lo X IX , m a s sés fo r a m r e u n id a s p a r a f o r m a r u n iv e r s id a d e s no século XX. A prim eira
foi a d o R io d c J a n e i r o , f u n d a d a cm 1 9 2 8 , c a s e g u n d a foi a d c S ão Paulo, quc festejou seu
c in q ü e n t e n á r i o c m 1 9 8 3 . C o m a f u n d a ç ã o d a s u n iv e r s id a d e s , n asceram as faculda es e
f il o s o f ia , C i ê n c i a s c J x t r a s , c u jo p r in c ip a l o b je tiv o cra fo r m a r professores p ara o ensino
s e c u n d á rio .
História da fundação da cidade do Salvador. Pedro Calmon, Histé *
12. 1 h c o d o ro S a m p a i o ,
da fundação da Bahia. K dson C a r n e i r o , A cidade do Salvador. T h ales d e Azeve o, f v0^
■ tnento da cidade do Salvador. A fo n so R u y d e S o u z a , História política e administrativa
653
654 B a h ia , S éculo X IX
cid a d e d o S alvador, A rnold W ild b erge r, Os p resid en tes da P rov ín cia da Bahia. Edgard de
C e rq u e ira Falcáo, A fu n d a çã o d a cid a d e d o S a lva d or em 1549. C arlos B. O tt, Form ação e
evo lu çã o étn ica d a cid a d e do Salvador.
13. José W an d e rley de A raújo P inho, H istória d e um en g en h o d o R ecôn ca vo . Este estudo foi
com plem entado pelo excelente trabalho do historiado r norte-am ericano, professor da
U niversidade de M in n eso ta, S tu art B. Schw artz, S egredos in tern os. E ngenhos e escravos na
so cied a d e colon ia l. B ahia, 1550—1835.
14. Francisco M arq u es de Goes C a lm o n , Vida eco n ô m ico -fin a n ceira da B ahia (elem entos para
a h istória ) d e 1808 a 1899.
15. A expressão é de um outro eco n o m ista b a ian o , P in to de A g u iar, q u e oferece também uma
tentativa de interpretação e m seu livro N otas so b re o en ig m a baiano.
16. R ôm ulo de A lm eid a, T raços d a h istória e co n ô m ica d a B a hia n o ú ltim o sécu lo e meio.
17. Cf. Katia M . de Q ueiró s M atto so e István Jancso, “C o m o e stu d ar a história quantitativa
d a Bahia no século X IX ”.
18. Francisco M arq u es de Goes C a lm o n , Fala à Assembléia Legislativa, 1 924 , p. 30.
19. R ôm ulo de A lm e id a , T raços d a h istória e co n ô m ica d a B a hia ..., p. 15.
20. R egistros eclesiá sticos d e terra s (1852—1860).
21. Johildo Lopes de A thayde, La v ille d e S a lva d or a u XIXe stècle. A spects d ém og r aphiq ues (daprès
les registres paroissiaux ).
22. Essa d ocu m entação estatística, essen cialm en te co m p o sta de d ado s relativos aos intercâm
bios com erciais e à navegação nos anos d e 1 8 5 0 - 1 8 8 9 , está in crem e n tad a por numerosas
variáveis para o período d ito rep u b lican o ( 1 8 9 0 - 1 9 7 8 ) .
23- C ath erine Lugar, T he M erch a n t C o m m u n ity o f S alvador, B ahia, 1780—1830.
2 4 . Os m étodos utilizados para a elaboração dessas séries estão indicados no decorrer deste
trabalho, no próprio texto ou em notas.
25- Destaco especialm ente os livros B ahia: a cid a d e d o S a lva d or e seu m erca d o no sécu lo XIX e
S er escravo n o Brasil.
N o ta s d o C a p ít u lo 1
1. Sobre os problem as dos lim ites adm in istrativos, cf. Livro II, capítulo 7. As fronteiras da
cidade correspondem àquelas do an tigo ‘term o da c id ad e ’. C f Katia M. de Queirós
Mattoso, B ahia: a cid a d e d o S a lvad or e seu m erca d o no sécu lo XIX, p. 5 —88. Aí estão mais
am plam ente desenvolvidos alguns dados geográficos m encionados neste capítulo.
2. Eram capitanias gerais: G rão-Pará, M aran h ão , Pernam buco, Bahia, Rio, Minas, São Pau
lo, Rio Cirande dc São Pedro, Goiás e M ato Grosso. Além delas, tornaram-se províncias
do Império as antigas capitanias subalternas: Rio Negro, Piauí, Ceará, Rio Grande d°
Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe dcl Rcy, Espírito Santo e Santa Catarina. Com a Repu
blíca, transformaram-se cm estados federados as províncias imperiais e o Paraná.
3. Luís H e n r iq u e D ias T av ares, H istória d a Bahia, p. 51.
4. Luiz dos Santos V ilh e n a , A B ahia no sécu lo XVIII, v. 2, carta XVI, p. 55 1 —5 7 5
5. Luís H en riq u e D ias Tavares, H istória da Bahia, p. 5 1 —58 e 9 5 —96. F .W .O . M orron, The
■ C onservative R evolution o f In d ep en d en ce: E conomy, S ociety a n d P olttics tn Bahia> 17
1 8 4 0 , m ap a p. 4 1 2 , '
655
N o ta s d o C a p it u lo 2 .
N otas do C a p ít u l o 3
7. André João A ntonil, C ultura e op u lên cia do B rasil p o r suas m inas e drogas , p. 150.
8. Estudos básicos p a ra o p ro jeto a grop ecu á rio do R ecôncavo, p. 2 6 - 3 5 . Sobre os solos, foram
realizados cinco levantam entos pela Seplantec entre 1945 e 1970. O primeiro em Cruz das
A lm as (grande altitude); o segundo em Itaparica (região m arítim a); o terceiro em Santo
A ntônio de Jesus (no lim ite do Recôncavo); o quarto em Salvador; o quinto em São
Francisco do C onde, sobre o q ual nos derivemos porque o m un icíp io é exemplar, dada a
sua situação geográfica.
9. Certas reflexões deste parágrafo m e foram sugeridas oralm ente pelo Sr. Perraud, pedólogo
do Office de Recherches Scientifiques et T ech n iq u es d ’O utre-M er, hoje Institut Français
de Recherches Scientifiques pour le D éveloppem ent en C oopération.
10. Luiz dos Santos V ilh en a d á u m a descrição m agnífica do massapê em A Babia no século
XVIII, v. 1, p. 175.
11. Cf. o exemplo de Iguape, no Livro VT, capítulo 2 5 , consagrado às estruturas econômicas.
N otas do C a p ít u l o 4
1. Sobre as estradas de ferro e seu desenvolvim ento na Província d a Bahta, cf. Joaquim
W an d e rley de A raújo Pinho, “A v ia ç ã o na B a h ia”.
2. Cf. Rôm ulo de A lm eida, T raços d a história eco n ô m ica d a Bahia...
3. Cf. Jo aq u im W an d e rley de A raújo Pinho, “A viação n a B a h ia”, p. 1 3 2 -1 4 3 .
4. Arquivo do Estado da Bahia, Seção Histórica/Avulsos, Livro de m atrícula dos engenhos da
Bahia, 1 8 0 7 -1 8 7 4 .
5- Katia M . de Q ueirós M attoso e A n g elin a N obre R o lim Garcez, “Fontes para o estudo da
propriedade rural: o Recôncavo baiano, 1 7 6 4 - 1 8 8 9 ”.
6. Cf. João Capistrano de Abreu, C am inhos e p o v o a m e n to do Brasil, p. 88.
7. Cf. Jean T ricard e T eresa Cardoso da Silva, Estudos d e geom orfologia d a Bahia e Sergipe,
p. 75. '
8. Cf. Euclides da C u n h a, Os sertões, p. 54.
9. Cf. Katia M . de Queirós M attoso, B ahia: a cid a d e d e S alvador e seu m ercado no século XIX
p. 2 0 - 2 8 ; Euclides da C unha, Os sertões; Conselho N acional de Geografia, Atlas do Brasil,
sobretudo os artigos de Nelson M oreira da Silva e de P. von Luetzelburg.
10. João Capistrano de Abreu, C am inhos ep o v o a m en to do Brasil, p. 8 8 —102.
1 1 . C f. L ivro V I , c a p ítu lo 2 5 ,
12. M anuel Jesuíno Ferreira escreveu em 1875; “Por causa da falta de comunicações rápidas
com os centros povoados e ricos do interior, perdem-se muitos produtos de valor que
poderiam ser utilizados com proveito, em benefício de toda a Província.’ (A P r o v i n c t a
Bahia: apontam entos, p. 7 7 - 8 2 )
13. Cf. Livro VI, capítulo 25, quanto aos esforços efetuados em favor da unificação das
diferentes regiões da Província da Bahia.
14. Euclides da Cunha, Os sertões , p. 46.
1 5 . F .W .O . M o rto n , The C onservative R evolution.,., p. 168.
16. Sylvestre H o n ó rio , “O sul da Bahia”, p. 2 5 j- 2 9 .
17. F .W .O . Morton, The C onservative R evolution..., p. 70.
18. Cf. Stuart B. Schw artz, B u ro c r a c ia , / i ,
' - M », ~ '" * * ~ •+•<* a .v,v , „ w , w * * *
4. Edson C a r n e iro , A cid a d e d o S alvador, p. 59; T h eodo ro Sam paio, História da fu n da ção da
cid a d e d o S a lvad or, p. 185 c 2 5 6 (planos da cidade).
5. T h eo d o ro S a m p a io , História da fundação da cidade do Salvador, p. 255.
6. Idem, ib id e m , p. 2 6 1 .
7. S e g u n d o G an d avo ( T ratado d a P rovíncia do B r a s il..), havia dezoito engenhos em 1572;
doze anos d ep o is, G abriel Soares dc Souza contou mais de trinta; nos anos de 1620, frei
V icen te do Salv ad o r in d ic o u o núm ero de cinqüenta; em 1663, de acordo com o padre
Sim ão de V asco ncellos, h a v ia 69. C em anos depois (1759), segundo o engenheiro José
A n tô n io C a ld a s, e x istiam 126 engenhos. No fim do século XVIII, Vilhena incluiu 260 no
recen seam ento . .
8. José W a n d e r le y de A raújo Pinho, H istó ria social d a cidade do Salvador, p. 7 - 6 9 . Para o
engenh o jesu íta d e S e rg ip e do C o n d e , cf. Frédéric M auro, Le Portugal et lAtlantique,
p. 2 1 3 - 2 2 5 , m as so bretud o o estudo m agistral de Stuart B. Schwartz, Segredos internos...
9. Sobre as diferenças entre lavradores livres e ‘obrigados’, cf. Livro VII, capítulo 30.
10. João C ap istran o dc A breu , Cam inhos epovoam ento do Brasil, p. 193. Sobre a população
indígena d a Bahia, cf. Luís H .D . Tavares, H istória da B ahia , p. 2 5 - 3 1 .
11. Luís M .I). Tavares, H istória d a B ahia, p. 9 4 - 9 5 .
12. bernand Braudcl, Vida m a te ria l e capitalism o (séculos XV—X\ IH), p. 40 41.
19. Stuart B. Schw artz, B u rocra cia e so cied a d e n o B ra sil colon ia l, D avid G . S m ith , The M ercam ile
Class o f P o rtu ga l a n d B razil in th e S ev en tccn th C en tu ry: A S ocio-E con orn ic S tudy o f the
M erch a n ts o fL isb o n a n d Bahia-, A n ita N o v in sk y , C ristã os-n ovos n a B a h ia .
20. A .J.R . R ussel-W o o d , F idalgos a n d P hilan thropists. T he S anta Casa d e M isericórd ia o f Bahia,
1550-1755', R .J.D . Flory, B a hia n S ociety in th e M id -C o lo n ia l P eriod , Su zan A. Soeiro,
A B a rroq u e N u n n cry . .
2 1 . N estor G ou lart Reis Filho, E volu ção u rb a n a d o B rasil, 1 5 0 0 -1 7 2 0 , p. 7 3 .
2 2 . J.R . A m aral L ap a , A B a hia e a ca rreira d a ín d ia , p. 5 - 9 3 ; F réd éric M a u r o , Le B résilduX V *
a u X \ m ie siècle, p. 8 7 - 9 0 ; F ern an d o A. N o v ais, P o rtu g a l e B ra sil na crise do a n tigo sistema
colon ial, 1 7 7 7 -1 8 0 8 , p. 5 7 - 9 2 .
2 3 . Katia M . de Q ueiró s M atto so , “Des B a h ia n aís c o m m e les autres? 2 0 N o u v ea u x Chrétiens
d u d éb u t d u X V II I e siècle”, p. 3 1 3 - 3 3 2 .
2 4 . Katia M . d e Q ueirós M a tto so , “Parã u m a m e to d o lo g ia e m h istó ria so cial: a história social
de Salvador no século X IX ”. ,
25- M ilto n Santos, O cen tro d a cid a d e d o S a lva d or . '
2 6 . Frédéric M a u ro , Le B rêsil d u XVe a u XVIIIe siècle, p. 1 5 1 —157.
2 7 . Katia M . de Q ueirós M atto so , “C o n jo n c tu re et société au Brésil à la Fin d u XVIIIe siècle.
Prix et salaires à la veille de la R é v o lu tio n des A lfaiates - B ah ia 1 7 9 8 ”. ■
28 . M ilto n Santos, O cen tro d a cid a d e d o S alvador, p. 3 0 - 4 0 .
29. C f. Livro V I.
30. N a décad a de 1 9 5 0 , 4 5 % da ativ id ad e in d u strial d a cid ad e g ira v am em torno de produtos
aíim entares, correspondendo o setor têxtil a apenas 1 5 % dessa ativ id ad e. M ilto n Santos,
“O papel m etropo litano d a cid ad e de S a lv a d o r”, p. 188.
31. A história dos transportes d a P rovíncia (m ais tarde Estado) da B ahia está por fazer-se,
sobretudo no quc diz respeito às ferrovias. Esse desenvolvim en to relativam ente precoce
nunca se traduziu em u m a p o lítica constante (cf. Livro V I). F altam tam bém estudos sobre
a política rodoviária. A B ahia, q u e no século X IX o cu pava um bom lugar em matéria de
transportes m arítim os, possuía no século X IX u m a frota insignificante. Cf. M ilto n Santos,
“O papel m etro p o litan o ...”, p. 190.
32. Idem, ibidcm , p, 188,
33. Idem, O cen tro d a cid a d e do Salvador, p. 42. V erem os nos capítulos 25 e 26 do Livro VI
como o esforço dc m odernização concretizado pela criação de engenhos centrais não
conseguiu tirar a Bahia de sua letargia.
34. Idem, ibidcm, p, 43.
35. Idem, “O pape! m etropolitano...”, p. 189.
N o t a s d o C a iM tu lo 6
1 . É interessante notar quc existe uma docum entação ampla c variada — constituída por
listas nominais, rcccnscatnentos c registros paroquiais — relativa às capitanias de São
Paulo e Minas Gerais. H á ccrca dc quinze anos cia vetn servindo a estudos que têm
ajudado a esclarecer os comportamentos c a dinâm ica da população brasileira nos séculos
XVIII e XIX. Citarei os excelentes trabalhos de Maria Luiza Marcílio, La v ille d e S ã o P a u lo ,
p e u p le m e rtt e t p o p u la t io n , 1750-1850 (cd. brasileira: A c id a d e d e S ã o P a u lo , p o v o a m e n to e
p op u lu çS o, 1750-1850)-. Iraci dcl N cro d l C m ,-, Vilu ff.v ,
p u tã ço cs m in eira s. S ch r r cstm tu r.t />„»„/,„ „„„,/ J r , (!7 1 9 -1 8 2 6 ) e P„-
tc c u lo AV.Y; F . n c i s c o V id .,1 Í/ L
p o p u L ta o n .,! c e co n ô m ica d c a lg u m cen tro t m in cra tâ rw s (1 7 1 8 -1 8 0 4 ? f ' W " ' ^
**"? f ' « » » « » « <•W r f , P a ra o S £ x ^
tese de do u to rad o ( m e d iu ) de Robert W Slcnec T i» n , ” secul° AX, a notável
S la r cn . 1 8 5 0 -1 8 8 8 . ’ ^ ^ ^ “P b n n d E cu n u m ictofB ru tiiia n
2. Jo h ild o Lopes d e A th a y d c , La v ille d e S a lva d or a u XlXf siècle.
3. C f. Livro I, c a p ítu lo I.
N otas do C a p it u l o 7
28. Katia M . dc Q u e iró s M a tto s o & Jo h ild o Lopes dc A thayde, “Epidemias e flutuações de
p reç o s...”, p. 1 8 5 - 1 8 6 .
N o ta s d o C a H tu i.o 8
1. N o m eio ru ral, os ag ric u lto re s pohrcs, tam b ém conhecidos como ‘ moradores’, trabalha
vam co m o ren d eiro s nas terras do senho r sem nen h u m a garantia, podendo ser expulsos a
q u a lq u e r m o m e n to . C h a m a v a m -s e ‘ lavradores livres* quando tinham a possibilidade de
m oer sua c a n a -d c -a ç ú c a r em m o in h o q u c nao pertencesse ao senhor dc engenho dc quem
arren d av am as terras. Eram ‘ lavradores o b rig ad o s’ q uando seu contrato os forçava a moer
sua cana no m o in h o do p ro p rietário das terras. Essa distinção entre lavrador livre e
‘o b rig a d o ’ já não existia no século XIX. O s lavradores dc antanho haviam sido substituídos
por cu ltivad o res (q u e eram proprietários ou alugavam suas terras) e por moradores.
C u rio so conrraste: no cam p o , m esm o q uan d o não eram proprietários da terra, os a\ra o
res, suas fam ílias ç seus escravos eram contabilizados cm fogos separados. Como aca
de ver, o m esm o não ocorria nas cidades com os agregados. Cf. Stuart B. Schwartz. re
labor ín a slavc ecortoiny: Lhe ‘lavradores dc cana o f colonial Bahia .
2. Katia M . flc Q u eiró s M attoso, S tr escra vo n o Brasil ( p. 6 5 - 6 7 .
5. H enrique Jorge B u ckin g h am I.yra, C o l o n o s e colônias, p. 12—13.
4. T h o mas Lím lley, N arrativa d e um a via gem ao Brasil,, p. 171.
5. Aniadc E.B, Mouchc/., Les còtes d u Brésil, p. 52.
6. A in serçã o da B ahia na evo lu çã o nacional, p. 2 0 7
7. Amade E.B. M o uchez, Les côtts du Bréstl, p. 50.
8 . Sobre as m entalidades religiosas, cf. adiante, no Livro V deste ' ^ io«;n
9. Cf., por exem plo, Fala do p resid en te da P ro vín cia (F rancisco G onçalves artms ,
p. 1 1 - 1 2 , na época da ep id em ia dc febre amarela. Livro VI. .
J 0. Sohrc o desenvolvim ento das estradas de ferro que modificaram esse qua ro, c . .
664 B ahla , S éc u lo X IX
N o ta s d o C a p ít u lo 9
1 0 . E k k v ü - , . . po r c « m , . U "O , , , , a v „ „ l , v « - . . . P„ r
G r.H o . d e A t c v i i u l f i i u l ú l w i g c V i.m , , , m u (i ' , ' n, c nnr H e n ilia de S o u r ,
p u d o e ,c o p o r » « « . . . ■ . A r ,,u iv o d „ k I jd o d j ™ ' 1 ™ 1" " M i m , ™ que
Livro» de N o tas c hac m u r a s , Livro 7 6 0 (1 8 8 5 ), fl 4 4 ’ Ç 0 J udlciária, Serie
11. Idem . ib id e m . Livro 4 0 3 (1 8 7 0 ) , 0. 741 José M i n , \f -
H-sp.rito . W ' ™ M o u r “ ™ " " a M « « Senho,inha do
^ " 1 ' v i v QUeirÓS M a t t “ ° - ; p " » “ ">» •>««<**> social seriada da cidade do Salvado, no
> cc Io XIX: os c es,am em o s e m v c n iir io s co m o fom e dc csmdo da es,rutura Mcial c d t
m e m a iid a d e s . *uc
14. C f. Livro VII.
15. Este foi o caso, por e x e m p lo , d a fam ília Sodré Pereira, cujo morgadio tinha sido instituído
com bens p red iais situ ad o s c m P ortugal e no Brasil. U m representante do ramo brasileiro,
J e ró n im o S o d ré P ereira, foi seu ú ltim o adm in istrad o r. M ario Torres, “Os M o ra d o s do
Sodré". ■
, •’ •*u , w u , , h ' u “ » 1 '•*>"<» « m c u l i n m c 455 “i t- rLn in' i,f i o s , 's tP- m H " 'm «
dd cc cc m
in uq uuccnnttja aa rnmo*S. o r r A _____ ^ p r c d c p c ^ co"
mau
r . K a m M . d c Q u e iró s M atto so . “A c a r n de -df
c u d o da rentabilidade .la m i o ^ - . d . r a ' . ^ , ^ °
IS. A .H . d c O liv e ira M a rq u es, A iociedaíie m ídirvalportugursa. p | „
19. Cd. Livro VII, c a p ítu lo 31.
20. Jo h ild o Lopes d c Athayde. “ F ilh o . iU-e /,im n, c c rian ça. rap o sl„ . ,
2 1 . C f. Livro VII, c a p ítu lo 3 1 , c c ap ítu lo 1 1 deste Livro.
22. Jo h ild o L op es d e A th a y d e . “F ilhos ilegítim o s e crianças expostas".
23- T h a le s d c A zevedo , Povoamento da cidade do Salvador, p. 2 0 5 -2 0 7
24. Jo h ild o Lopes de A th a yd e , Filhos ilegítim o s c crianças expostas”, p. 15,
25- Idem , ib id c m .
51. O apadrinhamento espiritual é um desses numerosos laços que teeem a rrama das relações
sociais no Brasil. O padrinho pode ser 'de barismo' ou 'de crisma'. Além disso, as m Z u
podem ser madrinhas quando consagram a criança a Nossa Senhora, cerimônia que tem
lugar apos o batismo e exige uma madrinha diferente da de batismo. Não era raro quc pais
muno abastados escolhessem entre seus alforriados a 'madrinha de apresentação a Nossa
Senhora , quc desempenhava o papel de Simeão, personagem que, outrora, levou Cristo ao
Templo de Jerusalém.
52. É sig n ific ativ o q u e o recen sead o r ten h a an otado o nom e de M aria Jo aq uin a dos Passos,
chefe do g ru p o fa m ilia r, sem q u a lific á -la de ‘d o n a ’. M as a agregada, porque é branca e
C e r q u e ir a (f a m ília m u ito c o n h e c id a ), foi assim qualificada, apesar de ser mãe solteira. O
tratam e n to d e ‘d o n a ’ o u d e ‘se n h o r’ não p o d ia ser dado aos alforriados.
53. C o n s id e re i casos p a rtic u la re s três grupos de ‘estrutura in d eterm in ada’. Seus membros
tin h a m laços de p a ren tesco , m as é d ifícil inseri-los nas categorias que eu quis distinguir. O
p rim eiro era o g ru p o de d o n a M a r ia dos Prazeres, m u lata de 70 anos, mãe solteira de três
filhos: H e n r iq u e t a J o a n a d e N e p o m u c e n o (50 anos, m ulata, solteira), M aria Constança da
Silva (m u la ta , m ãe so lteira d e q u a tro filhos) e Epifânio Francisco Ramos (35 anos, mulato,
escrevente p ú b lic o ). N o te -se q u e c a d a u m tin h a um sobrenome diferente. No sobrado,
não h a v ia ag regad o s o u escravos, m as vivia e m concubinato José Alberto Ramos, 40 anos,
branco, solteiro, escrivão do T r ib u n a l. Im possível saber se havia laço de parentesco entre
os dois g ru pos, m a s o n o m e R am o s (que não era com um na Salvador de então) pode ser
co n sid erad o um in d íc io n este sen tid o .
O u trò g ru p o com p lex o era o do italian o Rafael Gastet, 4 4 anos, solteiro, tintureiro, q
vivia co m três agregados: C a m illa R afaella (14 anos, solteira, mulata), anue
anos, m ulato ) e d o n a M a ria Jo a q u in a do Sacram ento (20 anos, branca, so tetra
com eles o escravo A ndré (1 2 anos, crioulo). Tratava-se de um pai so tetro q l c_
filhos com u m a m u lh e r de cor e lhes dera seu próprio prenome. rarn t os
cidos? Q ual o lugar dc d o n a M a ria Jo a q u in a junto ao nosso italiano.
O terceiro e ú ltim o grupo nessa situação era o de dona M ariana da Silva ( t>ranca) e
branca) e de suas duas filhas: U m b elin a A delaide de Souza (30 an° s’ fíjho os
M aria M arq u es de Souza (2 6 anos. solteira, branca). U m belm a tmh,« t r « hihos
com menos de 13 anos. O grupo não possuía nem agrega os,
N otas do C a p it u l o 11
rnrulher
t N-‘r 1^ —
ct h e g a ra m coXmMo sm rples rm .g ran rcs c, no B rasil. 5C in su la ra m s i £ r £d a TK
Longe p ic ll H
m e n c o n e , co m o . n c * c pars d c m n gran res. a m cn réria gen calh gica se m a n i l r a com força
na m esm a p ro p o rção d a sed e d e no breza. O s filhos dc G aspar dc A raúin , a r ° rçf'
G óis foram : A n tô n io d e P ád u a ( 1 5 6 1 - 1 6 4 3 ) , Sim eSo dc Araúfo^
M a n a A na (q u e m o rreu c e lib a tá r ia ), C la ra e Jo rg e (? - 1 6 5 7 ). ’ ancisca’
19. O g e n e alo g ista da fa m ília foi B u lc ão S o b rin h o , “F am ílias baian as: A raújo G óis”.
:0 . L im itare i m eu e stu d o aos casam en to s celeb rad o s ain d a no século XIX. Escolhi esta fam ília
sim p le sm e n te p o rq u e d esejav a c o n h e c er o peso das práticas endogâm icas nos prim órdíos
da c o lo n iz ação , q u a n d o as o p o rtu n id a d e s d e casam en to s exógam os eram m ais escassas que
no sécu lo X IX . Se h o u v e ev o lu ção , p a ra q u e lad o foi? As d atasd im ltes para cada genealogia
foram fix ad as a p a rtir dos n asc im en to s do fu n d ad o r do ram o e do ú ltim o descendente. Nas
g en ealo g ias do sécu lo X IX , a ú ltim a d a ta co rresp o n d ia ao nascim ento de um descendente,
que e v e n tu a lm e n te p o d e ria ter sc casad o no século XIX . O s barões de A raújo Góis e de
C a m a ç a rí d e sc e n d ia m d e S im e ão de A raú jo G óis.
21. Das 124 pessoas q u e se casaram sem q u e o gen ealo g ista fornecesse a descendência, 41
c o n traíram m a trim ô n io s estéreis, ou su p o stam en te estéreis. M as, por causa da endogam ia,
na realid ad e so m e n te 193 casam en to s foram celeb rad o s. E ncontrei citadas duas vezes 24
das 2 1 7 pessoas q u e se casaram , po r cau sa do jo go dos casam entos endógenos.
22. E ul-Soo P an g , 0 Engenho Central ele BomJardim na economia baiana.
23. “Lá onde filh o s d e d o is s i b l i n g s podem casar-se e onde im p era um id e a l n u c l e a r da fa
m ília, ob serva-se g eralm e n te u m a co n trad ição flagran te en tre teoria e prática: as fam ílias
observadas n a ép o ca dos recen seam en to s, em geral não são sim plesm ente compostas de
pais e dc filh o s c elib a tário s. C a d a gru p o dom éstico agrega indivíduo s adultos suplem enta
re s e, fre q ü e n tem en te, vário s casais. A coab itação entre pais e filhos casados é freqüente e
se estabelece a m aio r parte do tem po através das m ulheres. M as essa forma nunca é tida
com o id eal, m esm o q u an d o d o m in a do ponto de vista e statístic o ... T rata-se de um sistema
nuclear q u e não con segue sep arar os m em bros da fam ília quando os filhos atingem a ida e
ad u lta”. E m m an u el T o d d , La troisième planète, p, 3 3 - 3 4 .
2 4 . O s fatores q u c p erm itiram o estab elecim en to de co m erciantes portugueses como senhores
de engenho no fim do século XVII e no p rim eiro quarto do século XVIII foram estudados
por Flory. C f. R .J.D . F lory, Bahian Society..., p. 2 1 7 -2 8 0 .
25. K atia M . de Q ueirós M atto so , “C o n jo n c iu r e et société au Brésil... : Sociedade e conju
tu ra na B a h ia ...’*. * ,
26. A.A.A. B ulcão S o b rin h o , “ F am ílias baianas: B u lc ão ”, p. 2 -3 T am b é m as
fam ília Bulcão foram descritas dc form a pouco convincente- Ela teria um an
flam engo, o b u rgu ês G rott Bulseam nu Rulscam p, qu c teria integra o ° „ .
flamengo de Jobst van H cu tc n , colonizador da ilha du Faial, a pedi u ° rel ° ‘
P o rtu g u al. .
27. M ario T orres, “O s Sodrés". .
28. Os B ittencourt afirm a m scr descendentes da fam ília norm anda dos ® ^ e n nome
alguns m em b ro s teriam em igrado para M ad eira n o início do s cu o ,
672 B a h ia , S é c u lo X IX
te ria sid o alte rad o p ara B c te n c o u rt 011 B itte n c o u rt. O g en e alo g ista não fornece prova
a lg u m a de taí afirm aç ão . N a re a lid a d e , ho uve u n i Jcan d c B cth en co u rt, n avegado r nor-
m an d o , n ascid o em G ra n v ille -la -T e in tu ric rc , em C a u x , po r v o lta de 1 3 6 0 , q u e m orreu em
1425* M as e s te je a n d c B e th e n c o u rt, c u ja fa m ília tin h a sid o a rru in a d a pefa G uerra dc Cem
A nos, foi à c ata d c fo rtu n a p ara as ilh as C a n á ria s, o n d e se fez reconhecer senhor do
a rq u ip é lag o por H e n riq u e II d e C a s tilh a ; c o n q u isto u d ep o is as ilh as do Ferro c dc Palma
Q u an to aos B cren gu er, su a ú n ic a p reten são é d e d escen d er d e u m a fam íiia o rig in ária dos
velho s rein o s d e V a lê n c ia e C a ta lu n h a q u e se e stab elec e u cm F u n ch al (ilh a d a M adeira)
29. A .A .A . B u lcão S o b rin h o , “F a m ília s b a ia n a s: B e th e n c o u rt" , p, 2 9 - 3 0 .
30. A .A .A . B u lcão S o b rin h o , “F a m ília s b a ia n a s: B e re n g u e r”, p . 5 7 - 5 8 .
31. Este resu ltad o se ap ro x im a d a q u e le e n c o n tra d o p o r Jo h ild o L opes d e A th ayd e para a
c id ad e de S alv ad o r (cerca d e 8 % em to rn o d e m ead o s do sécu lo X IX , co n fo rm e in form a
ção c o m u n ic a d a v e rb a lm e n te ).
3 2 . E ul-Soo P an g , O E n gen h o C e n tra l d e B om J a r d im ..., p. 1 8 5 —2 2 2 .
33- C f. T â n ia P en id o M o n te iro , Portugueses na Bahia... C f. ta m b é m no L ivro V I, cap ítu lo 27.
3 4 . E ntre 1851 e 1 8 8 9 , 5 7 ,0 % do c a p ita l d as em p resas c o m e rc iais estav am nas m ãos dos
p o rtu gu eses e 3 2 ,0 % nas dos b ra sile iro s; 11 ,0 % ' p e rm an e c ia m nas m ãos de estrangeiros.
N a re alid ad e, esse recen seam en to ig n o ro u c o m p le ta m e n te as n u m ero sas casas de com ércio
in glesas e alem ãs, sobre as q u a is não possuo n e n h u m estu d o . C f. T â n ia P en id o M onteiro,
Portugueses na Bahia.., p. 105.
3 5 . C f. L ivro V I, c a p ítu lo 2 7 .
3 6 . T â n ia P en id o M o n te iro , Portugueses na Bahia..., p. 7 5 - 9 5 ; M á rio A u gu sto da Silva San
tos, O comércio português na Bahia, 1870-1970.
3 7 . C ita d o por J .J . R eis, Rebelião escrava no Brasil, p . 1 .0 2 4 .
3 8 . A rquivo do E stado d a B ah ia, Seção Ju d ic iá r ia , S é rie T e sta m e n to s, Livro 5 (3/6/1815
24/ 11 / 1815), fl. 2 0 6 v - 2 10.
3 9 . Ib id em , Livro 9 (2 / 7 / 1 8 1 7 -1 8 / 5 / 1 8 1 8 ), fl. 5 9 - 6 2 v .
40. Ib id em , Livro 2 3 (1 2 / 1 1 / 1 8 3 4 -2 5 / 1 / 1 8 3 6 ), fl. 7 v - 1 0 .
41. Ib id cm , Livro 23 (1 2 / 1 1 / 1 8 3 4 -2 5 / 1 / 1 8 3 6 ), fl. 2 0 - 3 0 .
42. Ib id em , Livro 8 (2 5 / 6 / 1 8 1 6 -5 / 1 0 / 1 8 1 6 ), fl. 2 0 0 v -2 0 3 -
4 3 . Ib id em , Livro 13 (2 / 5 / 1 8 2 6 -2 5 / 9 / 1 8 2 6 ), fl. 2 5 - 3 0 . Infelizm ente náo encontrei o inven
tário correspondente, quc teria tornad o possível av aliar as casas citadas.
4 4 . Ibidcm , Livro 3 (9/ 1/ 1 811-6/ 3/ 1811), fl. 3 1 v - 3 4 .
4 5 . Ib id em , Livro 16 (6 / 3 / 1 8 2 8 -2 8 / 6 / 1 8 2 8 ), fl. 1 0 0 - 1 0 4 .
4 6 . D o m Sebastião M o n te ir o dc V id e (A rceb ispo d a B ah ia), C o n s titu iç õ e s p r im e ir a s d o A rc e
b is p a d o d a B a h ia , Livro I, títu lo 6 7 , artig o 2 8 5 , p. 1 2 4 - 1 2 6 .
19. H elo ísa R o d rig u e s F ern an d es, Política e segurança. Força pública do Estado de São Paulo.
Tundamentos histórico-sociais, p. 3 6 - 6 1 .
20 . Eis a lista dos m em b ro s e d o s fu n c io n ário s do Sen ad o da C âm ara de Salvador em 1800:
ju iz d e fo ra (p re sid e n re ), v eread o r m ais velh o , segu n d o vereador, terceiro vereador (prove
do r d a sa ú d e ), p ro c u rad o r do S e n ad o , escrivão do Senado, síndico do Senado, tesoureiro,
escrivão da A lm o ta ç a ria , escrivão das E xecuções, p rim eiro oficial da Secretaria, segundo
oficial d a S e c re ta ria , so lic ita d o r das cau sas, su p erin ten d en te da feira, aferidor das m edidas
redondas, afe rid o r das m e d id a s q u a d ra d as, con traste d a p rata e aferidor de pesos, m edidor
das ob ras de p ed ra, m e d id o r das obras de m ad eira, m édico da C âm ara, cirurgião da
C âm ara , c arcereiro das cad eias, alca id e d a C âm ara, escrivão da V ara do alcaide, m eirinho
do cam p o , escrivão do m e irin h o , m eirin h o da freguesia de Santo Antônio Além do Carmo,
escrivão d a V ara d o m esm o, segu n d o escrivão d a V ara do dito m eirinho, escrivão da
freguesia de S an to A n tô n io , m eirin h o d a freguesia de San t A nna, escrivão da Vara do
m esm o, m eirin h o d a freguesia de San to A m aro de Ipitanga, escrivão da Vara do meirinho
da V itó ria, p rim eiro p o rteiro do C o n selh o e segundo porteiro do Conselho. Luiz dos
Santos V ilh e n a, A Bahia no século XVIII, v. 2 , p. 3 3 9
21. Luís H en riq u e D ias T avares, História da Bahia, p. 6 2 —63; M ax Fleiuss, Históiui admt
n i i t r a t i v a d o B r a s il, V ic to r N unes L eal, C o r o n e lis tn o , e n x a d a e voto.
22. Katia M . dc Q ueirós M atto so , “U ahia op ulen ta. U m a capital portuguesa no Novo
{ 1 5 4 9 - 1 7 6 3 ) ”.
23. V itor N unes Kcal, C o r o n e lis m o , e n x a d a e voto, p. 6 5 - 7 6 , 137, 133, 230 231.
24. Idem , ibid em , p. 139,
*i ] 18 -1 1 9
25 . N cstor D u a r t e , O r d e m p r i v a d a e o r g a n iz a ç ã o p o lít ic a n a c io n a l, cspccia ment p . Q jj0
c 167; K aym u n d o Faoro, O s d o n o s d o p o d e r. F o r m a ç ã o do p a t r o n a t o p o tteo r ã
IVado J r., F o r m a ç ã o d o B r a s il co n tem p o rân eo-, M aria Isaura Pereira de Queiroz, nu q
lo c a l...- F ern an d o U rico cch ca, O M in o t a u r o I m p e r ia l, Sim on Schwartzman, ao
Estado N ac io n al.
26. Richard Morse, “T he Herirage of Latín America , p. 157.
B a h ia , S écu lo X IX
N otas do C a p ít u l o 14
::: “ : 7 « r *■ - - ■ ' - * -« .
20. id e m , ib íd e m , p. 104.
21. Idem , ib id e m , p. 1 1 7 - 1 1 8 .
P* l6 9 ' • -6 7
33. A lberto Sallcs Paraíso Borges (o rg.), 150 anos d a P olícia M ilitar da Bahia, p ^
34. Para 1835: Lei n° 2 9 , dc 23 de ju n h o ; para 1 8 3 8 -1 8 4 9 : Lei Provincial de 7 de jun o
1846.
35. Eul-Soo P ang, Coronelismo e oligarquias (1889—
1940).
N otas do C a p it u l o 15 u
1. Q uando, por caenrplo. o presiden.e José Egídio Gordüho Barbuda, W scnnfc e j ™ ™ ;
foi assassinado
Província, r,ue tm 1 8 3 0 . re dsueessivamenre
foi confiado ro R odrigues Bandeira « * ““ Joao Gonçalves
aos conselhe-os Gonç Cezimbra
678 Bahia, S éculo X IX
N otas do C a pítu lo 1 7
15. C aio Prado Jr. ad m ite u m certo conflito entre o q u e cie c h am o u de burguesia reacionária,
representada pelos proprietários de terras escravocratas, e a burguesia dita progressista,
rep resen tad a p elo c o m e ,c ,o c p ela fin an ç a. M „ . sc su n d o ele, as duas cQ
n ° ! d ” ‘> — * * » . * “ " > * « " » p referen cia dos reacio n ário s pelo Partido C o „ e "
vador. M a r,a Is u ra IV re.ra d c Q u e ,ro a e N esror D uarre co n sid eram os dois pa,ridos -
C o n serv ad o r c U b c ra l - os rep resen tan tes dos interesses agrários que, segundo
esses dots autores, dominaram a política imperial.
16. C a io P rado |r„ "E v o lu ção p o lític a do B rasil", p. 8 2 ; M a ria Isaura Pereira de Q ueiroz
O mandomsmo local..., p. 3 1 - 5 4 ; N esror Duarte, Ordem privada..., p. 183. ’
17. Raymumio Faoro, Os donos do poder, p. 2 3 1 - 2 3 5 .
IS, A zevedo A m a ra l, O Estado autoritário e a realidade nacional, p. 33ss
19. A fonso A. d e M e ilo F ran co , História e teoria dos partido políticos no Brasil, p.35ss
20. F ern an d o d e A zeved o , Canaviais e engenhos na vida política do Brasil, p. 127-134* João
C a m illo de O liv e ira T o rre s, Os construtores do Império, p. 131—134,
N otas do C a p ít u l o 18 £síado
1. H i.iiria da Igreja no Hra.il, t. 2, p. 162 172; Roberto B
J^ ^ u V rZ d Z ra ZZo
(C ritica ao populitmo católico), p. 8 1 ; I liaJes c Kve ^ , 16 ; Sérgio Buarque
in stru m ento p olítico , p. 8 1 - 87; Albcrt Bourdon, H istoire du P ortu gal P■ ^ ^ ^
dc H olanda (di r .). História g e r a l da civilização brasileira, tomo Á r,/t^ o
2. C aio Prado Jr.. F orm ação do Brasil contem porâneo, p. 3 3 °; cs ;
civ il brasileira com o in stru m en to p olítico, p. 8 .
Bahia, S éc u lo X IX
N otas do C a p ít u l o 19
1 . Roberto R om ano, Brasil: Igreja contra Estado, p. 8 1 ; T h ales de Azevedo, A religião civil
brasileira como instrumento político, p. 8.
2 . C f “A pêndice para d em o nstrar q u e a constituição do A rcebispado da Bahia se acha
alterada, revogada pelas Leis do Im pério e m o d ificad a fin alm ente pelos usos e costumes",
publicado pelo Dr. Ildefonso Xavier Ferreira, cônego prebendado e lente de teologia
dogm ática, in Constituições primeiras (Apêndice).
3. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p, 13,
4. C f M o nsenho r Eugênio de A ndrade V eiga, Ospárocos no Brasil noperíodo colonial, 1500-
1822, p. 49.
5- História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 13.
6 . C f Luís H enrique Dias Tavares, História da Bahia, p. 65; Thales de Azevedo, Igreja eEstado
em tensão e crise, p. 179; Ignácio de C e rq u e ira e Silva Accioli, Memórias históricas epolí
ticas,,,, v, 5, p. 117.
7- Adriano C am panhole & H ik o n Lobo C am p an h o le, Todas as constituições do Brasil, p. 581
8 . Roque Spencer M aciel de Barros, “V id a religiosa”, p. 320.
9. C f História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 80.
10. Ana Maria M oog Rodrigues (org.), A Igreja na República, p. 3.
11. Oscar d e Figueiredo Lustosa (O .P .), “R eform istas na Igreja do Brasil Im pério , p- 20—22.
12. Diogo Antônio Fcijó ( 1 7 8 4 - 1 8 4 3 ) nasceu na cidade de São Paulo, de país desconhecidos*
Após estudos dc latim , retórica, filosofia e iniciação teológica, ordenou-sc padre em
F„m paralelo às atividades sacerdotais, foi professor de português c de latim na atu
C am p in as (SP) entre 1804 c 18 08 c fazendeiro nas vizinhanças de São Paulo entre
c 1818. V igário cm Itu (SP) entre 1818 c 1821, no ano seguinte foi eleito deputado ^
Cortes dc Lisboa c, depois tia Independência, cm 1826, dep utado à Assembléia er .
m embro do C onselho da Província de São Paulo (1 8 2 8 —1832), senador pe o o ^
Janeiro (1 8 3 5 ) e regente do Império entre 1835 e 1837. Indicado para bispo e
(M G), recusou o posto. Lm 18 42, em Sorocoba, aderiu à R evolução Liberal de áo a *
se n J o preso e e x ila d o cm V itó ria (FS) IM i
m orreu . Su.i« o b r j , p r in d p .iis (W m jlf f l,” ? ” Vnl' " “ a S5° PiUl|o. onde
Realc (S.io P.iulo: C nj,l!,„. i •>(,-) , , h.nwnl “ «< uuroduç*.enote * Miguel
drrii.ll. .iprcrnu.il j A , I r j , , d f lilT d - l f ' J" «Mifão do ctlihmo
< *« d<J— T ipogrr.fi» K t N ^ M 8 ^ " W
M am iel Jo a q u im do A m aral G u m c l ( 1 7 9 7 - 1 N f,/ a , v , i . .
67. Idem , ib id e m , p. 3 4 3 - 3 4 8 .
6 8 . Idem , ib id c m , p. 3 4 8 - 3 3 1 ; H istória tia Igreja n o B rasil', t. II/2, p. 1 8 7 -1 8 8 .
6 9 . R oque S p en cer M a ciel de B arros, WA q u e stão re lig io sa”, p. 3 5 1 - 3 5 3 e 3 5 9 - 3 6 4 .
70. Idem . ib id e m , p. 3 5 3 .
71. Idem , ib id e m , p. 3 5 6 . ■.
72. Idem , ib id e m , p. 3 5 6 - 3 5 9
73. Je a n -M a rie M a y e u r, D es p a r tis ca th o liq u es à la d em o cr a tie ch rêtien n e, XIXe~XXe siecles
p. 1 7 - 8 1 . ’
74. R am os de O liv e ira , 0 co n flito m a çô n ico -r elig io so d e 1872, p. 14.
7 5 . H istória d a Ig reja n o B rasil, t. II/2 , p. 1 8 9 - 1 9 0 .
7 6 . O scar d e F ig u eired o L u sto sa (O .P .), P o lítica e Igreja , p. 1 0 2 .
7 7 . B asílio de M a g a lh ã es, E studos d a H istória d o B rasil, p. 133.
7 8 . E. V ilh e n a d e M o ra is, 0 G a b in ete Caxias e a a n istia d os bispos d a questão religiosa.
A a titu d e p esso a l d ô Im p era d or.
7 9 . O scar de F ig u eired o L u sto sa (O .P .), P o lítica e Igreja , p. 115 —116.
80. Je a n -M a rie M a y e u r, D e s p a r tis ca th oliq u es..., p. 4 9 .
81. E sm eraldo R oberto de F aría, R eflexos d a q u estã o religio sa na Bahia.
82. O scar de F igu eired o L u sto sa (O .P .), P o lítica e Igreja , p. 123—155.
83. K atia M . de Q u eiró s M a tto so , E tre esc la v e a u B résil, p. 128—134 {ed. brasileira: S e r escravo
n o Brasil)-, H istória d a Ig reja n o B rasil, t. II/2, p . 5 7 - 5 9 , 1 2 0 —1 2 2 , 2 5 9 —2 6 2 e 365-367 .
84. C f. S iív eiro G om es P im en ta, Vida d e D. A n tôn io F erreira Viçoso, p. 4 7 - 4 9
85. C hronica R eligiosa, an o II, n° 2 2 , p. 1 7 4 - 1 7 5
86. H istória d a Igreja n o Brasil, t. II/2, p . 159—1 6 0 ; P erd igão M a lh e iro , A escravidão no BrastL
Ensaio h istó rico, ju r íd ic o , social, v. 2, p. 7 7 .
87. H istória da Igreja n o Brasil, t. 11/2, p . 161; E m ilia V io tti d a C osta, Da senzala à co lô n ia,
p. 2 4 9 - 2 5 3 .
88. H istória d a Igreja no Brasil, t. II/2 , p. 161.
89. P erdigão M alh eiro , A escra v id ã o no B rasil..., v. 2 , p. 92; E m ilia V io tti da C osta, Da s e n z a la
à colôn ia, p. 3 8 1 - 3 8 5
9 0 . E m ilia V io tti da C o sta, D a senzala à colôn ia, p. 3 8 5 - 4 2 7
9 1 . H istória d a Igreja no Brasil, t. II/2 , p. 1 6 2 .
92. C hronica R eligiosa, ano II, nw 4 7 , p. 370,
9 3 . Esm eraldo R oberto dc Faria, R e fle x o s da q u e s tã o r e lig io s a na Bahia , p. 24.
94. C hronica Religiosa, ano II, h° 4 7 , p. 3 7 3 -3 7 6 .
9 5. Idem , ib id em , ano II, n° 51, p. 4 0 2 -4 0 3 .
9 6 . Idem , ib idem , ano 111, n° 2, p. 9—11.
9 7 . Idem , ib idem , ano II, n° 4 7 , p. 3 7 3 - 3 7 6 .
98. H istória d a Ig reja n o B r a s il t. II/ 2 , p. 2 7 7 .
99- C h ron ica R eligiosa, an o II, n ° 4 7 , p. 3 7 1 .
100. Id em , ib id e m , an o III, n ° 3 , p. 2 2 .
N o tas d o C a p ít u l o 20 ' .
1. A h n an a ch p a r a a c id a d e d a B a h ia - A nno 1812, p. 9 2 - 9 6 .
2. L uiz dos S an to s V ilh e n a , A B a h ia n o sécu lo XVIII, v. 2 , p. 4 4 0 - 4 4 1 e 4 5 3 . C ândido da
C o sta e S ilv a e stá re d ig in d o (1 9 9 1 ) u m estu d o sobre o c ap ítu lo -cated ral da B ahia no
século X IX .
3. M o n se n h o r E u g ên io d e A n d ra d e V e ig a, Os p á r o co s n o B rasil..., p, 3 5 - 4 9 ; H istória da
Ig reja n o B rasil, t. 2 , p . 2 8 3
4. J u lita S c a ra n o , D ev o çã o e escr a v id ã o : a ir m a n d a d e d e N ossa S enhora do R osário dos Pretos
n o D istrito D ia m a n tin o n o s é cu lo XVIII, E d u ard o H o o rn aert, F orm ação d o catolicism o
b ra sileiro (1 5 0 0 —1800), p. 8 8 - 9 7 .
5- H istória d a Ig reja n o B r a sil p. 2 8 2 .
6 . A n d ré Jo ão A n to n il, C u ltu ra e o p u lên cia d o B rasil..., p. 105.
7. Id em , ib id e m .
8 . Idem , ib id e m .
51. Em In q u isiçã o e cristã os novos, p. 9 8 , o h isto riad o r português A ntônio José Saraiva escreve-
"N a so cied ad e p o rtu g u e sa dessa época, a noção de pureza de sangue é utópica mas nem
por isso d e ix a de ser u m v a lo r in s tru m e n ta l.” Era esse o caso da Bahia. ’ ’
32. Fala do p resid e n te d a P ro v ín c ia (João C ap istran o B an d eira de M ello ), 1 8 6 7 , p 54
53. Fala do p resid e n te d a P ro v ín c ia (João L u stosa d a C u n h a P aranaguá), 1881, p 82
54. Luiz dos S an to s V ilh e n a , A B a h ia n o sécu lo XVIII, v, 2, p, 4 6 2 .
55- K atia M . d e Q u e iró s M a tto so , B a h ta : a cid a d e d o S a lvad or e seu m ercado no século XIX
p. 3 5 4 - 3 5 5 . . ’
56. Luiz dos S an to s V ilh e n a , A B a h ia n o sécu lo XVIII, v. 2, p. 4 6 2 - 4 6 3 .
57. M o n se n h o r E u g ên io de A n d rad e V e ig a , Os p á r o co s n o B rasil,.,, p. 9 6 .
58. Idem , ib id e m , p . 9 4 .
59. Idem , ib id e m , p. 114.
60. A ndré Jo ã o A n to n il, C u ltu ra e o p u lên cia d o B rasil..., p. 150. .
6 1. Idem , ib id e m , p . 148.
62. M o n se n h o r E u gên io d e A n d rad e V e ig a, Os p á r o co s no B rasil..,, p. 103.
63- C f. K atia M . d e Q u eiró s M a tto so , B a hia : a cid a d e d o S a lvad or e seu m ercado no século XIX,
p. 3 4 4 - 3 5 1 .
64. Fala do p resid e n te d a P ro v ín cia (C o n selh eiro P edro L uiz P ereira de Souza), 1883, p* 14.
65. Fala do p resid en te d a P ro v ín cia (B arão de São L ouren ço), 1871: Relatório do Arcebispo,
C o n d e de São S alv ad o r, de 8 de dezem bro de 1 8 7 1 , p. 4 (relatório anexado ao discurso do
p residen te d a P ro v ín cia).
6 6 . “P rovíncia d a B ah ia: O rçam en to e despesas, 183 5—1 8 3 6 ”. In Leis e resoluções da Assembléia
P ro v in cia l d a B ahia, v. 1 (1 8 3 5 —1 8 37 ).
67. C o n stitu içõ es P rim eiras, livro IV , título X XX VIII, § 7 7 4 -7 7 8 , p. 2 9 4 -2 9 5 .
6 8 . A rquivo do Estado da B ah ia, Seção Ju d ic iá ria , Livro de N otas e Escrituras n 197 ( )
fl. 2 1 7 , e n° 3 8 9 (1 8 6 6 ), fl. 35.
69. Katia M . de Q ueiró s M attoso, B ahia: a cid a d e do S alvador e seu m ercado no sêcu o >
p. 3 6 7 - 3 7 3 . C f. tam bém Livro VI, cap ítu lo 25.
70. A rquivo do Estado da B ahia, Seção Ju d ic iária, Livro dc N otas e Escrituras n° 222 (18 ,
fl. 1 3 7 - 1 37v, n° 230 (1 8 3 0 ), fl. 8 4 v -8 5 c n" 196 (1 81 1), fl. 42.
71. Esses dados foram extraídos de séries anuais compostas por m vem áric«. « c o j ^
n o v e
aleatoriam ente. Para o período de 1 8 2 1 - 1850, temos 253 mventános, dos quais 151 le
por hom ens livres, 82 por m ulheres livres c oito por a orria os
7 2 . A m a d id » d a , foriunas c o n d d c a d a , - m i d W j f o i L d i a daa
76. No N ordeste, pode-se m en cio n ar a ação filan tró p ic a d esen vo lvid a pelo capuchinho Cae
tano de M essin a no in te rio r de P ern am b u co , assim com o a ação do padre José Antônio
r M a ria P ereira, co n h ecid o com o p ad re M a ria Ib iap in a, q u e fu n d o u colégios e hospitais nas
provín cias do C eará e d a P araíb a, n a se g u n d a m etad e do século XIX. C hronica Religiosa,
ano IV , n° 2, p. 161; C elso M a riz , Ib ia p in a . Um a p óstolo d o N ordeste.
N otas do C a p ít u lo 21
11. hrancisco Pinheiro L im a Jr. c D inorah d 'A raú jo B erbert de C astro, P adre M e s tr e Cons. D r.
A ntônio Jo a q u im das M ercês (I 7 8 6 -J 8 5 4 ), M estre d e Filosofia. O cônego d a s Mercês não
f o i , aliás, o único a pedir sccularização. Entre os padres cujos inventários c o n s u l t a m o s ,
3 2 . Ibidcm , p. 4 8 —49.
3 3 . R io lan d o A zzi, “D. R o m u ald o A n tô n io de Seixas, arcebispo da B ah ia...”, p. 32.
34. Idem , ib id em ,
35. Fala do p resid en te d a P ro v ín cia (Barão de São Lourenço), 1871, p
3 6 . Fala á a p residen te da P rovíncia (H ercu lano Ferreira Penna), 1 ,P j- .u
37. R iolando Azzt, “Padres da M issão e m ovim ento brasileiro de reforma cat íca no
XIX”.
38. José O scar Beozzo. “D ecadência c m orte... , p. 89. 337-338.
39. D om R o m u a ld o A n tô n io dc Seixas, M em órias do M arquês d e Santa ruz,
40. Idem , ib id cm , p. 166.
4 1 . A lm anaque, an o 1 8 5 7 , p. 1 2 3 - 1 2 5 .
4 2 . Idem , ib id em , p- 1 2 3 -1 2 7 - 1^ 7 ,
43. Dotn Romualdo AntAnio dc Seixa,. Memória, do Marqub de a
B a h ia * S éc u lo X IX
N o t a s n o C a p í i v i o 22
1. R iolando A zzi. “Form ação h istó rica do cato licism o p o p u lar b rasile iro ”.
2 . A expressão 're lig io sid ad e p o p u lar’, de co n o tação p ejo rativ a, preferim o s ‘ religião do povo’
su gerid a por Pedro A. R ibeiro de O liv eira , que rep resen ta m elhor a realidade religiosa
b rasileira e en glo b a todas as classes so ciais. Ao p esq u isar o culto dos santos, sua expansão
e sua função nos países latin o s cristãos nos séculos IV e V , P eter Brow n observa com razão
quc nos estudos q u e tratam o sen tim en to religio so com o “religião po pu lar" (destaque do
au to r) aparece quase sem p re um m odelo “em d o is níveis", q u e opõe concepções e práticas
de um a suposta elite esclarecid a às do v u lg o , o povo, lim ita d o em suas capacidades inte
lectu ais e c u ltu rais. Esse en fo q u e co n sid era o c u lto dos santos co m o u m a capitu lação da
h ierarq u ia da Igreja aos m odos d e p en sam en to até en tão lim itad o s ao “vulgo". As conver
sões teriam forçado as au to rid a d es e clesiásticas a ac e ita re m p ráticas pagãs, sobretudo no
que díz resp eito ao cu lto dos santos. A d e b ilid a d e fu n d am e n tal do m o d elo em dois níveis
— acrescen ta B row n — “é de não p o d er, a não ser raram e n te ou talvez n u n ca, recuperar
as transform ações religio sas o co rrid as fora das elites As crenças populares ( ... ) cons
titu iriam um resíd u o , d esp ro vid o d e elab o ração e de elevação , de crenças d ifu n d id as nas
classes ign o ran tes c sem in stru ç ão , isto é, toda a h u m a n id a d e , com raras exceções." Brown
m ostra co m o , ao co n rrário , o po der dos santos foi o rig in a lm e n te m onopolizado pelos
bispos ou pelas g ran d es fa m ília s, q u e d e lim ita ra m seu cu lto em san tu ário s, transform an
do-o em v erd ad eira in stitu iç ã o . A p reo cu p ação d e fu n d o , c o n h ecid a por todos — elite e
“vulgo" — , seria com a segu ran ça e a ju stiç a. P eter B row n, Le cu lte des saints, son essor et
sa fo n c tio n d a n s la ch r é tie n té la tin e, p, 3 0 - 3 2 .
3- Pedro A. R ib eiro de O liv eira, “O c ato lic ism o do p o vo ", p. 7 7 .
4 . Idem , ib id em , p. 7 7 - 8 0 .
5- A rquivo do Estado d a B ah ia, Seção Ju d ic iá ria , S érie T estam en to s (1 8 0 5 -1 8 9 0 ).
6 . Seguim o s aq u i a exposição de P edro A . R ib eiro d e O liv eira . As an álises de Peter Brown
sobre o cristian ism o no século IV são freq ü en tem en te ap licáv eis ao B rasil. C f. Le cu lte des
saints..., p. 7 1 —9 3 , c ap ítu lo “O co m p an h eiro in v isív e l”. O nom e cristão refletia a necessi
dade dc ligar a id en tid ad e do in d iv íd u o a u m san to . U m novo nascim ento se ligava, pelo
batism o, a um a nova id e n tid ad e . H o m en s q u e, por seu m artírio ou pela santidade de sua
vida, m ostraram ser verdadeiro s servidores de D eus p o d iam ligar Deus a outros homens,
tornar-sc guardiães dc sua id e n tid ad e , am igos protetores cm um p iun d o em quc qualquer
proteção é b em -vin d a c d esejad a. O m esm o aco n tecia com o anjo da guard a, tratado como
parente ou am igo, “co m panh eiro in v isív e l” do in d iv íd u o , q u e lhe era confiado por roda a
íu a vida terrestre, pois a "id en tid ad e eterna do ego" estava sob a guard a desse anjo.
7 . Pedro A. R ibeiro de O liv eira, “O cato licism o do povo", p. 7 4 - 7 9 .
8. H istória d a Igreja rto B ra sil t. 11/2, p. 117.
9 . G ilberto Frcyrc, Maítres et esclaves, p. 395 (cd. brasileira: Casa-grande ô* senzala).
10. G ilberto Freyre, Sobrados e m ocam bos, p, 247*
11. LuÍj da C âm ara C ascudo, D icionário d o fo lc lo r e brasileiro, p. 191 —192.
12. G ilberto Freyre, Maítres et tsclaves, p. 215 (cd. brasileira: Casa-grande & senzala}.
13. Idem . ib id e m , p. 2 1 6 ,
14. Idem , ib id e m ,
15. Idem , ib id e m .
í6. Idem , ib id e m , p. 2 1 8 .
17. Id em , ib id e m , p. 3 9 4 .
18. H istória d a Igreja n o B rasil , t. II/2, p. 1 0 0 -1 0 2 . -
: 1 . H istória d a I g r eja na B rasil, t. II/2, p. 117. A h istó ria das relações entre esses chefes locais
o c le ro e o s fié is a in d a está p o r escrever, sobretudo no tocante ao período dc introdução
das reform as ro m an izan te s.
22. A J .R . R u sse l-W o o d , F id a lgos a n d P hilanthropisps; L uiz C astanho de A lm eida, São Paulo,
filh o d a Igreja , p. 3 1ss; J u lira Scaran o , D evoçã o e escravidão; João C am illo de O liveira Torres,
H istó ria d as id é ia s religio sas no B rasil, p. 7 4 .
23. C f. M a r ia d o So co rro T a rg in o M a rtin e z , O rdens T erceiras, ideologia e arquitetura ; M arie-
ta A lves, H istória d a v e n e r á v e l O rd em 3 a d a P en itên cia d o S eráfico Pe. São Francisco
d a C o n greg a çã o d a Bahia\ F ran cisco Borges de Barros, À m argem da história da Bahia,
p. 1 2 9 - 1 3 0 .
2 4 . A J .R . R u sse l-W o o d , “A spectos d a vid a so cial das írm andades leigas da Bahia no século
X V III".
25- P ierre V erg er, Fluxo e reflux o d o trá fego d e escravos..., p. 524—525.
26. A .J.R , R u ssel-W o o d , “A spectos d a v id a so c ia l...”, p. 151; R J-D . Flory, Bahian Society...,
p. 2 9 3 .
27- K atia M . d e Q u e iró s M atto so , S er escra vo no B ra sil p. 1 4 5 -1 5 2 .
2 8 . A fonso R u y de S o uza, H istória p o lítica e a d m in istra tiva d a cid a d e do Salvador, p. 5 59-594;
H istória d a C âm ara M u n icip a l d a cid a d e d e Salvador, p. 3 0 6 -3 0 7 .
29. Katia M . de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador c seu mercado no s/eulo XIX.
p. 2 2 4 - 2 2 8 . .
3 0 . José da S ilv a C am p o s, P rocissões tra d icion a is da Bahta, p. 7 8 -8 2 .
31. Idem , ib id e m , p. 8 9 - 9 0 . „
3 2 . K atia M . dc Q ueiró s M atto so , “Párocos c vigários em Salvador no s cu o ... *
14, 4 1 - 4 2 .
33. M a x im ilian o dc H absburgo, Bahia, 1860. Esboços d e viagem , p. 128-130.
3 4 . H istória d a Igreja n o B ra sil t, II/2 , p. 217.
35. Idem , ib id em , p. 218,
36. C hronica Religiosa, n° 4 4 , p- 3 4 8 -3 5 1 . *
37. Idem , ib id em , ano II, n° 14, p. 107
3 8. H istória da Igreja n o B ra sil II/2. p- 104‘
39. Idem , ib id em , p, 102.
Bahia. Século XIX
50. Esm eraldo R oberto de F aria, Reflexos d a q uestão religiosa na B ahia , p. 19.
51. C hronica R eligiosa , ano 11, n° 2 , p. 9 0 - 9 1 .
52. H istória da Igreja no Brasil, t. II/2 , p, 22 2.
N otas do C a pít u lo 23
f . p .m . . 1, 11, ,1 ,|at J .
50 Jdf rn. if t n l r i n , p. J 4 7 .
S.' I V . „ ■ V r , , . r , . /-/«r n , r f l m , d r h , m „ J „ « V m . . .
u . i j r y n t l r r\< . , ’ rl ‘ ■ílu y .o r rtflu/.ti
5t Id e m , ilu d e m , p. 3 3 6 .
56. R o g e r B a s tid e , A s r r l i y j ó r s a f r i c a n a s n o B r a s i l, v. 1, p, 2 ) 7 - 2 1 8 .
57. N in a R o d r ig u e s , O s a f r ic a n o s n o B r a s i l, p. 6 0 - 6 1 ,
N í/ i a s im i C ai -í t i j i o 24
1. I.dò d c T o llc n a rc , N o ta s d o m in ic a is ..,, p. 2 8 1 - 2 8 2 .
2. T h o m a s L in d lc y , N a r r a t i v a d e u m a v ia g e m a o B r a s i l p- 128.
"00 B a h ia , S ec u lo X IX
8 . M a ria G rah am , n ascid a em 1 7 8 5 , era filh a do a lm ira n te in glês G corge D un das. Em 1808,
aco m p an h o u o pai às ín d ia s , o n de escreveu su a p rim e ira n a rra tiv a de viagem , C asada com
T h o m as G rah am , cap itão d a M a rin h a , v isito u d ep o is a Itália e veio ao B rasil com o navio*
escola D oris, co m an d ad o po r seu m arid o , co m o professora dos ap rend izes de m arinheiro.
A pud: M o em a P aren te A u g e l, V isitantes e s t r a n g e i r o s p. 6 2 - 6 4 .
9 . J. W eth e re ll, Brasil. A p on ta m en tos so b re a B a hia ..., p . 9 9 - 1 0 0 . N ascid o em 1822, o inglês
W eth erell veio para a B ah ia co m o c o m ercian te . G raças à am izad e com o cônsul inglês da
época, foi no m eado v ice -cô n su l h o n o rá rio . E m 1 8 5 7 , d e v o lta à In g laterra, en tro u para o
corpo d ip lo m ático , m as p o r p o uco tem p o . N o m ead o v ice -cô n su l n a P ro v ín cia da Paraíba,
m orreu no ano segu in te. A p u d : M o e m a P aren te A u g e l, V isitantes estran geiros..., p. 8 2; Léon
B ourdon, L ettres fa m iliè r e s e t fia g m e n t s d u jo u r n a l in tim e. M es sottises q uotidiennes, de
F erd in a n d D enis à B ahia (1 8 1 6 -1 8 1 9 ), p. 17; D an iel P. K id d er, R em in iscên cia s d e viagem
e p erm a n ên cia n o B ra sil co m p reen d en d o n o tícia s h istó rica s e g eo g rá fica s d o Im p ério e das
d iversa s p r o v ín cia s , v. II, p. 7.
10. A rquivo M u n ic ip a l de S alv ad o r, L ivro de P osturas M u n ic ip a is , po stu ras 3 1 , 4 6 e 4 8 , fl. 22
e seguintes.
11. Dr. L atteau x , A tra v ers le B résil. Au p a y s d e For e t d es d ia m a n ts, p. 82.
12. Afonso R u y d e So uza, “A im p o rtâ n c ia do b airro d a C o n ceição d a P raia no século X V I ir .
13. C f. M o em a P aren te A u g e l, Visitantes estrangeiros.,., p. 147.
14. M an o el Q u e rin o , c a d e írin h a d e a rru a r”, p. 1 0 2 —104; F rederico G. Edelweiss, ”A ser
p e n tin a e a c ad e írin h a de arru ar”,
15- X avier M arq u es, O feitice ir o , p. 6 1 .
16. Idem , ib id em , p. 7 0 . C f. tam bém W a ld ir F reitas de O liv eira, Antônio de Lacerda, p. 47
17. D iógencs R ebouças & G odofredo F ilho, Salvador da Bahia de Todos os Santos no século
XIX.
18. K atia M . de Q ueiró s M atto so , Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX,
p- 1 6 9 -1 7 9 .
19. R obcrt A vé-L allcm an t, Viagem p elo N orte do Brasil.,., v. 1 , p. 20,
20. A rquivo do Estado da B ahia, P residência da P rovíncia, Série Recenseam entos, Quadro dc
população do 21° q u arteirão do C u rato d a Sé, 1855. Inspetor Eduardo Firm ino Silva.
21. A rquivo do Estado da B ahia, P residência da P rovíncia, Série Q ualificação de Votantes,
maço 2 .80 8 (C u rato da Sé, 1862).
2 2 . Em 1862, a paróquia da Sé estava d iv id id a em 25 circunscrições e abrigava 1.329
dáos com direito a voto. D eixando-sc de lado os 2 1 7 negociantes, os 25 que viviam e
rendas e os 71 "‘proprietários”, restavam 346 pessoas (26% ), ligadas às profissões liberais,
ao iuncionaiismo e aos empregos püblicos. Os artesãos ren
JtlYOS.
• 0S " P r' s'" « v a m 50,4% dos cidadãos
:.V Arquivo M unicipa. de Salvador, Livro de Posturas Municipais
dá. J. Wetherell, B rasil. A p on tn m rn tos so h re „ ^ p
30 . Jo sé Á lvares d o A m a ra l, R esum o cro n o ló g ico c n oticioso d a P rovín cia da Bahta desde o seu
d es co b rim en to em 1500.
31. A fonso R u y d e S o u za, H istória p o lític a e a d m in istra tiva da cid a d e do Salvador, p. 582.
32. C f. Livro IV , c a p ítu lo 14.
N otas do C a p It u i .o 25 ■
1. C f Livro IV, capítulos 16 c 17.
2 . Pinto de A guiar, Notas sobre o en igm a baiano.
3. Peter Eisem berg, M odernização sem m udança. A in d ú s t r ia a ç u c a r e ir a em P ern am b u co , 1840
1910 , p. 51 (tabeU 9).
4 . Francisco M arques de Goes C alm o n , Vida e c o n ô m ic o -fin a n c e ira da Bahia. N a s c id o c
S a lv a d o r em ] 8 7 4 , o au to r p erten cia a - r
.I m ir a m ç A n lô n io C a lm o ,, d u P in e A lm e id a ^ d T ^ a r Í Fi' h° do
so b rin h o -n c to d o m arq u ê s dc A b ran tes, foi ed ucad o G “ s G ‘ 1" '° n ,
q u e , d c A ra ú jo G oes, c u jo so b ren o m e adorou Estudou T ™ m a Dm ° ' M ar'
vo lro u à B a h ia , o n d e foi professor no g in is io do Estado , lt° , em R' c ' fe (1 8 9 0 -1 8 9 4 ) e
o e sc ritó rio d e ad v o c a c ia d e seu tio . E n tre as funções m ib r ' ' 8 0 Pr° vi" a a !) e herdou
as d e c o n tro la d o r do B anco d a B a h ia e do Banco A gríco la Em m i T " " 11' dtStaCaram-K
E co n ô m ico d a B a h ia , do q u a l foi p resid en te E ra 1912 foi j ret;rganizou ° Ba" “
p ara p re s id ir o C o n s e lh o F iscal d a C a ix a E con ô m ica
2 2 . Idem , ib id e m , p. 51.
23 . R .J.D . F lo ry, B ahian S ociety..., p. 1 7 4 - 1 7 5 .
24 . Idem , ib id e m , p. 172.
25- Idem , ib id c m , p. 181.
26 . A ndré Jo ão A n ro n il, C u ltu ra e o p u lên cia d o B ra sil.., p. 1 8 2 -1 8 5 .
2 7 . R .J.D . F lo ry, B ahian S ociety..., p. 1 7 5 - 1 7 6 e 1 9 1 - 1 9 2 .
2 8 . Silza Fraga C o sta B orba, In d u stria liz a çã o e ex portação d o fu m o na Bahia, 1870-1930
p . 1 2 -1 6 . 5
N otas do C a p ít u l o 26 - .
19. Id em , ib id e m , p. 4 9 - 5 3 .
2 0 . C f. Livro IV , c ap ítu lo s 16 e 17.
21. R ita de C ássia S a n ta n a de C arvalh o R osado, O p orto d e Salvador, p. 116.
2 2 . Id em , ib id e m , p. 115. , ,
2 3 . C ik ü g o c o m ercial do Im pério do B rasil (1 8 5 0 ), T ítu lo III, “ P ^ A V A 2 4 9 - 2 5 0 .
F rancisco M arq u es d c C o es C alm o n , Vida econ â m iea -fim n er.ra da B a h y - 249 9
2 4 . R im d e C ássia S a n ta n a de C arvalh o R osado, O f o r t o d e S alvtdcr, p. 41 .
25- Idem , ib id em , p. 65.
N otas do C a p ít u l o 28 ■
N o tas i >o C a p ít u l o 2 9
1. P ierre V ilar, “R em arq u es sur 1’h isto ire des p rix”, p. 1 1 0 -1 1 1 .
. 2. N um estudo an terio r, sugeri quc os assalariados correspondessem a Bahia: a
5% c 15% do m ercado dc trabalho de Salvador. Katia M . de Q ueir s |ordagem.
cid a d e d o S a lvad or e seu m erca d o no sécu lo XIX, p. 290. T rata-se, agora M e nova oag
3. K atia M . dc Q ueirós M atto so , "A carta de alforria...", p. 152 e l5 7 _ l5 S ‘
4. C arlos B. O tt, F orm ação e evolu çã o étn ica da cid ad e do ^ ^ ^ o i ^ u i o sobre história
5. Segui, neste caso, as recom endações feitas por Jean M arcz T‘Histoíre quantitative
q u an titativ a do B rasil, realizado cm Paris em outubro de 1 9 7 1 . Ver A r*
du B résil d e 1800 â 1930, p. 201- 202.
T IO B a h ia , S éc u lo X IX
1810. « n s u m id o a p a „ ir de
em q uilo s. T in h a, sem d ú v id a , origem estran geira. M as talvez viesse tam bém do Sul do
B rasil, onde ele era cu ltivad o n a segunda m etad e do século XIX.
D esde a época co lo n ial a farin h a de m an d io ca tin h a diversas q u alid ad es, o que evidente
m ente d eterm in av a diferentes preços. T u d o in d ic a, no en tan to , que a San ta C asa consu
m ia apenas dois tipos de farin h a, a fina e a grossa (tam b ém ch am ad a ‘de guerra’, por ser
m ais resistente ao tem p o). R icos e pobres g eralm en te co n su m iam os dois tipos, acom pa
nhando outros pratos ou na form a de pirão . C o m o a do cu m en tação m uitas vezes não
registra a q u alid ad e da farinh a co m p rad a, calcu lam o s u m a m éd ia que leva em conta todas
as com pras feitas p ela San ta C asa. C o m ercializ ad a em alq u eires (até 1 8 7 4 ), em litros e em
sacos (cada um com 80 litro s), foi o ú n ico p ro d u to cujo peso conservam os em litros, por
falta de in form ação precisa sobre a conversão em q u ilo s. Em alg u n s m ercados de Salvador
essa m ed id a co n tin u a a ser u sad a, co rresp o n d en d o ao co n su m o de um adulto em cada
período de dois dias. .
A té 1 7 9 6 , a carn e fresca tin h a seu preço fixado p elas au to rid ad es, m as isso não im pediu
grandes oscilações. N ão h av ia critério p ara d e fin ir a q u a lid ad e , pois se considerava carne
boa aq u ela que não tin h a osso. Ign o ram o s com o ela era v e n d id a ao p ú b lico , mas a Santa
C asa com prava peças in teiras, co tad as em arrob as até 1875 e, d epois, em quilos.
Existem diversas q u alid ad es dc feijão , m as o m u la tin h o era (c é) o m ais consum ido, A
docum entação da San ta C asa raram en te fo rn ecia a q u a lid a d e do feijão com prado (essa
inform ação não ap areceu n e n h u m a vez an tes d e 1 8 7 3 ). D ecid i, por isso, tirar um a média
dos preços dessa m ercad o ria. A té 1 8 7 9 , o peso do feijão era expresso em alqueire; depois
passou para litro (cerca de 8 0 0 g ram as) e q u ilo . C o n v e rti tu d o para q uilo .
N en h u m a referência existe sobre a q u a lid a d e do arroz an tes de 1 86 2 . D esde então, e até
1868, há o ‘arroz do M a ra n h ã o ’, co m p rad o p ela San ra C asa, em m éd ia, 35% m ais barato
que os dem ais. E ntre 1870 e 1 8 9 0 , en co n tram -se d u as o u tras q u alid ad es, o arroz pilado e
0 arroz com casca. C o m o o preço d o p rim eiro estava m ais pró xim o dos dem ais preços, não
levam os em co n ta, em nossa m éd ia, o arro z com casca. O s pesos eram expressos em
alqueire até ju n h o de 1 8 7 4 e, desde en tão , em sacos (6 0 q uilo s) ou em quilos.
A carne-seca (ou carn e do Sertão) era m u ito pouco co n su m id a no h o sp ital da M isericórdia
antes de 1801 . E n tretan to , a p a rtir d e 1802 o consum o dessa m ercadoria se tornou
regular, sem que encontrássem os a razão. O peso era expresso em arrobas aré 1874 e em
quilos depois. So m ente em 1 9 1 9 , 1920 e 1921 ap arece um a carne-seca ‘de p rim eira,
mesmo assim de form a m uito esporádica. De gran d e consum o p o p u lar, cia era oriunda da
região do rio da Prata c do R io G rande do S u l.
O toucinho, quc su b stitu ía m uitas vezes a m an teiga na confecção de num erosos pratos, era
regularm ente consum ido na S an ta C asa desde 1750 . A té 1862 não apareceu nenhuma
referência sobre as diferentes q ualid ad es do produto, m as depois surgiu o toucinho da
terra , 1 0 % m ais barato que os dem ais. N ão o levam os em consideração em nossos cálcu
los. O s pesos eram expressos cm arrobas até 1874 c depois em quilos.
O hospital da Santa C asa cra grande consum idor dc galinhas, alim ento de todos os
1 doentes, inclusive os escravos. Era o produto que apresentava a m aior variedade de preços
; num mesmo mês. N a época (1 7 5 0 -1 9 3 0 ), as galinhas eram vendidas por unidade, como
acontecia com as frutas e legum es.
O preço do sal era fixado pelas autoridades. M esm o assim , não escapava a o s c i l a ç õ e s ,
em bora menores do que as quc atingiam os dem ais produtos. Até 1874, o sal era comer
c ializad o po r alq u e ire , depois por litro (19101 í* f l
tudo para quilo, nu base de um quilo por litrò C om id'C, |>0r ^ ^ 8° litr° S- Conv" [i
ú n ic a q u a lid a d e co n stan te en tre 1750 e 1 9 3 0 . ’ ° pfeÇ0 do sal e ro« o ,
ú le o d e b a le ia e ó leo d e rírim i - ..
n o tu rn a . O p rim e iro lig u ta r e g u i u r m e n T ^ r il t n s d e c o “ 8 ” ” P™ * ilu m in iÇí°
lo i su b stitu íd o H o seg u n d o , emjo c o .t s u m o le a m r t i Z C e d " ? V * “* •
C a*a ad o to u e n tão a ilu m in aç ão a gás em b ora cnnrin C^OIS 1 8 ^0. A Santa
n u ,to s uso s. a ,d 1 9 2 8 . N o s L c L ' L r íd " ° '
2 8 . F ran cisco M a rq u e s d e G oes C alm o n , Vida eco n ôm ico-fin a n ceira da Bahia , p. 6 0 -7 3 ; Rômulo
de A lm e id a , T raços d a h istó ria eco n ô m ica d a B ahia,.., p. 17.
2 9 . C f L ivro V I, c a p ítu lo 2 7 .
3 0 . G asto n Im b e rt, D es m o u v em en ts d e lo n gu e d u r éc K on d ra tieff, p. 5 4 -6 1 .
3 1 . Jo sé F ran cisco d a S ilv a L im a , A B a hia d e h á 66 anos, p. 103.
N o tas do C a pítu lo 3 0
3 7 . K atia M . d e Q u e iró s M a tto s o , “A c a rta d e alfo rria ...", p. 1 4 9 -1 6 3 e Etre esclave au B résil
p. 2 0 8 - 2 2 7 (ed . b ra sile ira : S e r escra v o n o B rasil). C f. tam bém Livro V II, capítulo 31.
3 8 . J .J . R eis, S la v e R eb ellio n in B razil..., p. 2 1 e 25 (cd. b rasileira: R ebelião escrava no Brasil...).
3 9 . M a ria H e le n a F lex o r, O ficia is m ecâ n ico s d a cid a d e d o Salvador, p. 31.
4 0 . L u iz d o s S a n to s V ilh e n a , A B a hia n o sécu lo XVIII, v. 1 , p. 3 3 4 - 3 4 4 ,
N otas d o C a pítu lo 3 1
com 1 2 6 :3 5 8 (1 8 5 5 : 1/892); C aro lin a L uísa jM onteiro C artead o , com 7 3 ’753 (IR/"^
4 / 715 0); C ath arin a T uvo, com 9 9 :7 7 8 (1 8 7 4 : 4/ 101 9); Elisa Pinto da Silva Gomes com
1 3 7 :4 6 8 (1 8 8 2 : 6 / 472 2); Josefa M a ria L eite, com 3 0 3 :8 9 7 (1 8 8 5 : 11/7221) *
9. K atia M . de Q ueirós M atto so , B ahia; a cid a d e da S a lva d or e seu m ercado no século XIX
p. 2 8 6 . ' ’
1 0 . A rquivo do Estado da B ah ia, Seção Ju d ic iá ria , Série Inventário s (m aços), Luiz Ferrar
(1 8 8 1 : 1/1096) e H crm elin a da C osta F erraro (1 8 8 4 : 7/ 214 5),
1 1 . Ibidem , ju s to A rian i (1 8 8 3 : 3/ 47 3 5) e M a ria Lopes A rian i (1 8 8 4 : 7/2145).
12. Ibidem , C o elh o M essed er (1 8 6 9 : 4 / 4 6 1 5 ).
13. C ódigo C o m ercial do Im p ério do B rasil (1 8 5 0 ), cap. V I, art. 99 a 118, p. 2 5 1 -2 5 3
14. Arquivo do Estado da B ahia, Seção Ju d ic iá ria , Série Inventários (m aços), Bernardo Rodrigues
F erreira (1 8 3 1 : 3 / 7 7 1 ), Jo ã o L ad isla u Ja p ia ssu F igu eired o e M ello ( 1 8 8 5 : 1/4745) e l u i z
M artin s A lves (1 8 8 6 : 1/1092). '
15. Ibidem , Jo sé E gídio N ab u co (1 8 7 6 : 5 / 1 0 3 3 ).
16. Ibidem , M a n o e l G om es d e F ig u e ired o (1 8 2 8 : 1/761).
17. Ib id em , F ran cisco Jo sé d a S ilv a (1 8 1 5 : 6/ 694 ),
18. Ibidem , M a n o e l C arlo s G om es (1 8 0 3 : 8 / 664 ).
19. Ib id em , F ran cisco Sim õ es O novo (1 8 4 0 : 7 / 812 ).
2 0 . Ib id em , A n tô n io G il G arcia P acheco (1 8 4 5 : 11/831).
2 1 . C o n d essa d e B arrai (L u iza M a ria P o rtu g al de B arro s), C artas a Suas M ajestades, 1859
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22. A .A .A . B ulcão S o b rin h o , T itulares b a ia n o s—B arão de C a ja íb a (A lexandre Gomes de Argolo
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de O liv eira N eves (1 8 8 3 : 2 / 7 2 1 6 ). •
24. Ibidem , Jo ão N un es (1 8 0 8 : 5/673).
2 5. Ibidem , João D o rm en te A n tu n es (1 8 0 5 : 4/668).
2 6. Ibidem , Francisco D ias d a S ilv a (1 8 3 0 : 6/767).
2 7 . Ibidcm , M anoel da P aixão F avilla (1 8 4 1 : 6/ 818).
2 8 . Ibidcm , M ig u d Affonso R o drigues (1 8 4 5 , 10/919}.
29. Ibidem , M anoel T im ó teo P ereira (1 8 5 7 : 2/896). ‘
30. Ibidem , Inoccncio M anoel da P urificação (1 8 8 2 : 3/ 3820). .
31. Ibidem , José Pereira dc A lm eida (1 8 1 1 : 1/684) e José Fernandes G rillo (1817: 8/699).
32. O s dados e com entários quc sc seguem são extraídos de K atia M . de Q ueirós M att
H erbert S. K lein e Stan ley L. E ngcrm an, “T ren ds and patterns in the prices o f m anum
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N otas
719
Bahia, S eculo XIX
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rior) ( 1 8 2 4 - 1 8 8 9 ), I J J 9 - 3 I 7 a I J J 9 - 3 5 5
M in istério do Im p ério (d ep o is do In te rio r): graças h o n o ríficas, requerim en to s e propostas,
d o cu m en to s b io gráfico s (1 8 0 8 - 1 8 9 1 )
G u ard a N ac io n al ( 1 8 6 9 - 1 9 1 0 ) , IG 13
Eleições ( 1 8 2 3 - 1 8 3 7 ), IJJ 5
J o r n a is
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ê
K atia de Q ueirós Mattoso é professora
titu lar de H istória do Brasil na Universi
dade de Paris IV - Sorbonne. Foi pro
fessora jnas universidades Católica e Fe
deral da Bahia e professora visitante nas
u n iv ersid a d es de Minnesota e Colunt-
biai nos r f f c lo - Unidos. Além de nu
merosos a rtig U é autora de vários li
vros, em rc os^Uais Presen.a francesa no
m ovtm ek * dem ocrático basano de 17SJ
(1969)* Bàbúi: a cidade do Salvador e seu
m e r c a d o * o s é e u b XIX ( \ m \ ' S er es
cra vo n o (publicado originalmente
em francês em 1979, cm terceira ed.çSo
no Brasil e èm segunda ediçío em língua
‘-' ■
inclesa). : :
AI
I r í g i n a r ia m e n le te s e d e D o u to r a d o dr* R a ta d o ,
:a:
V/ a p r e s e n t a d a em 1 9 8 6 à U n iv e r s id a d e d e
P a r i s IV - S o r lm n n e , e s t e te x to te v e a o p o r t u n id a d e
d e s e r a n a lis a d o p o r u m a b a n c a n a ig u a l c o n s t a v a m
a lg u n s d o s m a is il u s t r e s h i s t o r ia d o r e s d a T r a n ç a ,
c o m o P i e r r e C li a u n u , E m m a n u e l L e R o y L a d u r i e ,
J ^ a n - M a r ie M a y e u r e F r a n ç o is C r n u z e t . ( . . . )
C o u b e -m e , e m b o ra m o d e sta m e n te , a h o n ra de
p a r t i c i p a r d e s s a c o m is s ã o . ( . . . ) E a q u i p r e s t o o m eu
d e p o im e n to : a te s e d e K a t ia M a tto s o fo i
m in u c io s a m e n t e e x a m i n a d a , d u r a n t e c in c o h o r a s , e
a c la m a d a , p o r u n a n im id a d e , c o m o u m t r a b a lh o .
m a g is t r a l, d a d o o s e u r a r o n ív e l d e e x c e lê n c ia . \ - -
C o m o c o r o lá r io , e n u m a d e m o n s t r a ç ã o d e q u e
c a b e à U n iv e r s id a d e a b s o r v e r os v a lo r e s e x p o n e n e ia is
q u e a e la s e r e v e la m , fo i c r i a d a a c á t e d r a d e
H is t ó r ia d o B r a s i l em P a r i s IV — S o r b o n n e ,
c a b e n d o a K a t ia d e Q u e ir ó s M a tto s o o c u p a r y
a s u a p r im e ir a r e g ê n c ia corno t i t u l a r . -i':- . r» t
J- -
líiirífl Y r t l t i a /sjn/iffres
I m fe ü M irii ( - a l n l r i l t i r u í|p t lis lo r ia M tx lc ritii r. C n it im ip o r á n r a
l t o fr tM ir o iM iifriia lin U n iv e rü ir lo tli 1 K r t t r r a l d o ftio r ir J j in e ir o
A k.
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nova-
fro n teira
sempre
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