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CAPÍTULO 1

TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
SUMÁRIO 1. Introdução; 2. Concepções de Constituição; 2.1. Introdução; 2.2. Constituição

sob o prisma sociológico; 2.3. Constituição sob o aspecto político; 2.4. Constituição em sen­
tido jurídico; 2.5. Concepção culturalista da Constituição (a busca por alguma conexão entre
os sentidos anteriormente apresentados); 3. Classificação das Constituições; 3.1. Quanto à
origem; 3.2. Quanto à estabilidade (mutabilidade ou processo de modificação); 3.3. Quanto
à forma; 3.4. Quanto ao modo de elaboração; 3.5. Quanto à extensão; 3.6. Quanto ao con­
teúdo; 3.7. Quanto à finalidade; 3.8. Quanto à interpretação; 3.9. Quanto à correspondência
com a realidade = critério ontológico; 3.10. Quanto à ideologia (ou quanto à dogmática); 3.11.
Quanto à unidade documental (quanto à sistemática); 3.12. Quanto ao sistema; 3.13. Quanto
ao local da decretação; 3.14. Quanto ao papel da Constituição (ou função desempenhada pela
Constituição); 3.15. Quanto ao conteúdo ideológico (ou quanto ao objeto); 3.16. Outras clas­
sificações; 4. Aplicabilidade das normas constitucionais; 4.1. Introdução; 4.2. A classificação
de José Afonso da Silva; 4.3. A classificação de Maria Helena Diniz; 4.4. A classificação de Uadi
Lammêgo Bulos; 4.5. Críticas; 5. Princípios instrumentais de interpretação da Constituição
e das leis; 5.1. Princípio da supremacia da Constituição; 5.2. Princípio da interpretação con­
forme à Constituição; 5.3. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis; 5.4. Prin­
cípio da unidade da Constituição; 5.5. Princípio da força normativa; 5.6. Princípio do efeito
integrador; 5. 7. Princípio da concordância prática ou harmonização; 5.8. Princípio da máxima
efetividade ou da eficiência (intervenção efetiva); 5.9. Princípio da conformidade funcional
ou justeza; 6. Elementos da Constituição; 7. Quadro sinótico; 8. Questões; 8.1. Questões ob­
jetivas; 8.2. Questões discursivas; Gabarito questões objetivas; Gabarito questões discursivas

1. INTRODUÇÁO
O vocábulo "Constituição" tem no verbo latino constituere sua origem etimológica e
sua conformação semântica, vez que o mesmo exterioriza o ideal de constituir, criar, deli­
mitar abalizar, demarcar. O termo exprime, pois, o intuito de organizar e de conformar
seres, entidades, organismos.

É nessa acepção que se pode considerar a Constituição enquanto o conjunto de nor­


mas fundamentais e supremas, que podem ser escritas ou não, responsáveis pela cria­
ção, estruturação e organização político-jurídica de um Estado.

De acordo com Georges Burdeau2, a Constituição é o Estatuto do Poder, garantidora


da cransformação do Estado - até então entidade abstrata - em um poder instituciona­
lizado. É o que permite a mudança de perspectiva que ocasiona o abandono do clássico
pensamento de sujeição absoluta às imposições pessoais de governantes, para a obediência
voltada a uma entidade (Estado), regida por um documento: a Constituição.

1. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 27.
2. BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques. 71 ed. Paris: Générale de Droit et de Jurispru­
dence, 1965.

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NATHAUA MASSON

Torna-se, pois, a Constituição, um documento essencial, imprescindível. Todo Estado


a possui. Porque todo Estado precisa estar devidamente conformado, com seus elementos
essenciais organizados, com o modo de aquisição e o exercício do poder delimitados, com
sua forma de Governo e Estado definidas, seus órgãos estabelecidos, suas limitações fixa­
das, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias asseguradas.
Em suma, a Constituição é a reunião das normas que organizam os elementos cons­
titutivos do Estado}.
Ressalte-se, todavia, estarem o termo "Constituição" e sua conceituação permanen­
temente em crise', já que os estudiosos não acordam quanto à uma definição, existindo
uma pluralidade de concepções que fornecem noções acerca do assunto. Não se espera, no
entanto, que algum dia seja diferente. Como Constituições são organismos vivos\ docu­
mentos receptivos aos influxos da passagem do tempo, em constante diálogo com a dinâ­
mica social, sempre haverá alguma dificuldade em sua delimitação, haja vista sua mutação
constante, seu caráter aberto e comunicativo com outros sistemas.
Quanto ao Direito ConstitucionaL é um dos ramos do Direito Público, a matriz que
fundamenta e orienta todo o ordenamento jurídico. Surgiu com os ideais liberais atentan­
do-se, a princípio, para a organização estrutural do Estado, o exercício e transm issão do
poder e a enumeração de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Atualmente,
preocupa-se não somente com a limitação do poder estatal na esfera particular, mas tam­
bém com a finalidade das ações estatais e a ordem social, democrática e política.
Em uma análise pormenorizada, pode-se estudar o Direito Constitucional tendo por
base três perspectivas distintas: o Direito Constitucional geral, o Direito Constitucional
especial e o Di reito Constitucional comparado.
A primeira atém-se à definição de normas gerais para o Di reito Constitucional, esta­
belecendo, por exemplo, conceitos (significado para locuções essenciais à compreensão da
disciplina, como "Direito Constitucional", "Constituição", "poder constituinte", dentre
outras), classificações e métodos de interpretação das Constituições.
A segunda ocupa-se em escudar a Constituição acuai de um Estado específico. A
terceira é rida como um método descritivo de análise e se subdivide em três categorias de
estudo: critério temporal ou vertical, o qual compara Constituições de um mesmo Esta­
do, elaboradas em épocas diferences (ex: comparação entre a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 com a Constituição do Império de 1824); critério espacial ou
horizontal, que se atém à comparação de Constituições vigentes em Estados distintos, que
podem ou não ser contíguos (ex: comparar a nossa acuai Constituição com as Constitui­
ções de outros países da América Latina ou com a Constituição da Nova Zelândia); por
fim, critério baseado na forma de Estado elegida (ex: comparar as Constituições dos países
que adoram como forma de Estado a federada).

3. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 281 ed. Malheiros, 2006, p. 38.
4. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 27.
5. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 27.

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TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

2. CONCEPÇÕES DE CONSTITUIÇÃO
2.1. lntroduçáo
Partindo da premissa de que a definição precisa do vocábulo "Constituição" é tarefa árdua,
eis que o termo presta-se a mais de um sentido, reconhece-se uma gama variada de concepções
que tencionaram desvendá-lo, cada qual construída a partir de uma distinta forma de entender
e explicar o Direito. Em que pese serem rodas muito diversas e possuírem bases teóricas muitas
vezes opostas, são de grande valia doutrinária, pois foram possivelmente adequadas em algum
momento histórico (ou segundo um específico prisma de análise) e fornecem os elementos para
a síntese dialética que o constitucionalismo contemporâneo oferta hoje.
Far-se-á referência, nos irens seguintes, aos sentidos e as concepções de maior reper­
cussão que disputam a conceituação adequada do termo.

2.2. Constituição sob o prisma sociológico


Ao conceito sociológico associa-se o alemão Ferdinand Lassalle que, em sua obra
"A essência da Constituição", sustentou que esta seria o produto da soma dos fatores
reais de poder que regem a sociedade.
Segundo esta concepção, a Constituição é um reflexo das relações de poder vigentes em
determinada comunidade política. Assemelhada a um sistema de poder, seus contornos são
definidos pelas forças políticas, econômicas e sociais atua ntes e pela maneira como o poder
está distribuído entre os diferentes atores do processo político. Isso significa que Constituição
real (ou efetiva) é, para o auror, o resultado desse embate de forças vigentes no tecido social.
Oposta a esta, tem-se a Constituição escrita (ou jurídica) que, ao i ncorporar num
texto escrito esses fatores reais de poder, os converte em instituições jurídicas. Todavia,
essa Constituição escrita não passa de um mero "pedaço de papel", sem força diante da
Constituição real, que seria a soma dos fatores reais de poder, isto é, das forças que acuam
para conservar as instituições jurídicas vigentes.
Como num eventual embate entre o texto escrito e os fatores reais de poder estes últi­
mos sempre prevalecerão, deverá a Constituição escrita sempre se manter em consonância
com a realidade, pois, do contrário, será esmagada (como uma simples " folha de papel ")
pela sua incompatibilidade com o que vige na sociedade.
O autor exemplifica a essencial consonância entre o texto escrito e a realidade fática
com uma interessante metáfora:
Podem os meus ouvintes planear no seu quintal uma macieira e segurar no seu cronco um
papel que diga: "Esca árvore é uma figueira". Basrar.í esse papel para transformar em figueira
o que é macieira? Não, nacuralmenre E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e
.

conhecidos, por uma ra:z.ão de solidariedade, conflrma!>sem a inscriç.ío existente na árvore


de que o pé planeado era uma figueira, a plama continuaria sendo o que rea.lmeme era e,
quando desse &ucos, demuiriam estes a f.íbula. produ1indo maçãs e não figos '' .

6. FERDINAND, Lassalle. A Essência da Canstituiçãa. 91 ed. Brasília: Lumen Juris, 2009, p. 21.

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NATHALIA MASSON

Por outro lado, quando há inequívoca correspondência entre a Constituição real


e a escrita, estaremos diante de uma situação ideal , em que a Consticuição é compatível
com a realidade que ela pretende normatizar. Deste modo, para Ferdinand Lassale, só é,
pois, eficaz aquela Constituição que corresponda aos valores presentes na sociedade.

2.3. Constituição sob o aspecto político


A percepção de Carl Schmitt , elaborada na clássica obra "Teoria da Consticuição",
ventila um novo olhar sobre o modo de se compreender a Constituição: não mais arraigada
à distribuição de forças na comunidade política, agora a Consticuição corresponde à "de­
cisão política fundamental" que o Poder Constituinte reconhece e pronuncia ao impor
uma nova existência política.

Sob o prisma político, portanto, pouco interessa se a Consticuição corresponde ou


não aos fatores reais de poder, o importante é que ela se apresente enquanto o produto de
uma decisão de vontade que se impõe, que ela resulte de uma decisão política fundamental
oriunda de um Poder Constituinte capaz de criar uma existência política concreta, tendo
por base uma normatividade escolhida.

Para o autor, a compreensão do vocábulo "Consticuição" passa ainda pela aceitação de


que o documento constitucional é um conjunto de normas que não estão conectadas por
nenhuma unidade lógica. Os dispositivos só se assemelham no aspecto formal, pois estão
todos inseridos num mesmo documento e não podem ser alterados por lei ordinária; sob
o ponto de vista material os dispositivos integrantes da Consticuição variam: enquanto
uns são cruciais para a comunidade (porque referem-se à estrucuração do Estado ou aos
direitos fundamentais), outros só estão ali para se protegerem de uma modificação por lei
ordinária, pois não trazem conteúdo de grande relevância jurídica e política.

A leicura que o autor faz dessa diversidade de normas na Constituição cria uma dico­
tomia que as divide em "constitucionais" (aquelas normas vinculadas à decisão política
fundamental) e em "leis constitucionais" (aquelas que muito embora integrem o texto
da Consticuição, sejam absolutamente dispensáveis por não comporem a decisão política
fundamental daquele Estado).

Desta forma, constitucionais são somente aquelas normas que fazem referência
à decisão política fundamental, consticuindo o que hoje denominamos de "normas ma­
terialmente consticucionais". Todos os demais dispositivos inseridos na Consticuição, mas
estranhos a esses temas, são meramente leis consticucionais, isto é, nos dizeres atuais: so­
mente formalmente consticucionais.

2.4. Constituição em sentido jurídico


Na percepção jurídica a Consticuição se apresenta enquanto norma superior, de obe­
diência obrigatória e que fundamenta e dá validade a todo o restante do ordenamento
jurídico.

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TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Esta concepção foi construída a panir das reses do mestre austríaco Hans Kelsen,
que se tornou mundialmente conhecido como o autor da Teoria Pura do Direito. Obser­
ve-se, porém, que a teoria pura não é somente o título de uma obra e sim de um empreen­
dimento que tencionava livrar o Direito de elementos estranhos à uma leitura jurídica de
seu objeto - isco é, visava desconsiderar a influência de outros campos do conhecimento
como o político, o social, o econômico, o ético e o psicológico, uma vez que estes em nada
contribuíam para a descrição das normas jurídicas - possibilitando que o Direito se elevas­
se à posição de verdadeira ciência jurídica.

Kelsen estruturou o ordenamento de forma estritamente jurídica, baseando-se na


constatação de que toda norma retira sua validade de outra que lhe é imediatamente
superior.
Segundo o autor, no mundo das normas jurídicas uma norma só pode receber vali­
dade de outra, de modo que a ordem jurídica sempre se apresente estruturada em normas
superiores fundantes - que regulam a criação das normas inferiores - e normas inferiores
fundadas - aquelas que tiveram a criação regulada por uma norma superior.

Essa relação de validade culmina em um escalonamento hierárquico do sistema


jurídico, uma vez que as normas nunca estarão lado a lado, ao contrário, apresentarão
posicionamentos diferenciados em graus inferiores e superiores.

Para exemplificar sua teoria, Kelsen sugere que pareamos de um fenômeno jurídico
individual, como uma sentença. Acaso se pergunte por que a mesma é obedecida, o autor
soluciona a questão remerendo o questionador ao código que autoriza ao juiz decidir o
caso através da prolação da decisão - já que o código funciona como norma superior fun­
dante que confere validade jurídica à sentença.

Mas a esca pode seguir-se outra pergunta, relativa à razão de o código ser válido. Por
mais uma vez Kelsen nos remete a norma superior que dá validade ao código: o legislador
está devidamente autorizado pela Constituição a editar as leis; desce modo, ao fazê-lo, está
obedecendo a Constituição.

Esta última, todavia, também compõe o sistema normativo e, como rodas as outras
normas, depende que algo lhe confira validade: se uma norma somente adquire cal status
a partir de uma outra norma, será preciso admitir que existe uma norma fundamentando
a Conscicuição'.

Pode ser que a acuai Constituição vigente em determinado Estado renha sido criada
mediante uma lei autorizada pela Constituição anterior, recirando sua validade desce do­
cumento. Mas este último também pode cer sua validade questionada e assim sucessiva­
mente, até se chegar à primeira Conscicuição daquele Estado, provavelmente criada através
da emancipação de um Estado freme a outro - revolução ou declaração de independência.

7. SGARBI, Adrian. Hans Ke/sen. Ensaias Introdutórias. 11 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 13.

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NATHALIA MASSON

Ainda assim, frente a essa primeira Constituição (que não esteja em disputa e seja,
portanto, eficaz8), a questão da validade permaneceria imperiosa, principalmente porque
se não for devidamente resolvida, toda a cadeia de fundamencação deixa de fazer sentido:
afinal, acaso se perca o fundamenco da Constituição, esta não estará apta a validar mais
nada, os códigos perderiam seu suporte e, por conseguince, os atos que nele se fundamen­
tam também. O sistema desmoronaria.
Essa cadeia de validade ou hierarquia do Direito deve, portamo, encontrar um ponco
final sob pena de se chegar ao infinito, já que toda norma dependerá de uma superior e
assim indefinidamente.
A busca por esse último alicerce da ordem normativa levou Kelsen a construir a teoria
da norma fundamental, que irá justificar a validade objetiva de determinada ordem ju­
rídica positiva. Chega-se a esta norma básica quando não se admite um único passo para
trás na cadeia de validade jurídica, pois ela será a norma superior por excelência, única a
não depender de outra que lhe dê suporte.
E esta independência é característica que decorre do próprio sentido que ela possui:
não é um documento factual, mas sim algo pressuposto. Kelsen explica melhor:
A norma que representa o fundamenro de validade de uma ourra norma é, em face
de�ra. uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma nor­
ma não pode, cal como a investigação da causa de um determinado efeiro, perder-se
no inrerminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e
a mais elevada. Como norma mais elevada, ela cem de ser pressuposta, visco que nfo
pode ser posta por uma auroridade, cuja competência reria de se fundar numa norma
ainda mais elevada. [ . ) Uma cal norma, pressuposra como a mais elevada, será aqui
. .

designada como norma íundamenral. [ . ..) Todas as normas cuja validade pode ser
reconduzida a uma e mesma norma fundamenral formam um sisrema de normas,
uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonre comum da validade de rodas
as normas penencenres a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de va­
lidade comum''.

Ao se valer, pois, dessa pressuposição - de que há uma norma básica, através da qual
todas as outras podem ser idencificadas numa sequência de atribuição de validade -, Kel­
sen demonstrou se submeter à inAuência de Kanc no que diz respeito a aceitação de que em
todo ramo do conhecimento haverá de se reconhecer alguma pressuposição10•
Para finalizar a análise da concepção jurídica, deve-se dizer ainda que foram desenvol­
vidos dois sentidos para o vocábulo "Constituição":

8. Para nosso autor a Constituição deixa de ser considerada em disputa e torna-se globalmente eficaz quando as
normas estão sendo obedecidas, isto é, servindo de parâmetro para as condutas, ou quando as normas não são
devidamente observadas, mas os funcionários estão efetivamente punindo, através da aplicação de sanções,
aqueles transgressores
9. KELSEN, Hans . Teoflo Puro do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 217.
10. "Segundo Kant, o trabalho de se encontrar os elementos universais do conhecimento não se dá sem alguma
pressuposição, através da qual todo o resto obtém sentido" (SGARBI, Adrian. Teoflo do Direito. 11 ed. Brasília:
Lumen Juris, 2007, p. 48).

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TEORJA DA CONSTITUIÇÃO

(i) no primeiro, lógico-jurídico , "Constituição" significa a "norma fundamental


hipotética" , que não é posta, mas sim pressuposta, e que positiva apenas o comando "obe­
deçam a Constituição positiva";
(ii) o segundo, jurídico-positivo , traz "Constituição" como norma positiva supre­
ma, que fundamenta e dá validade a todo o ordenamento jur ídico , somente podendo
ser alterada se obedecidos ricos específicos.
Em conclusão, a concepção puramente normativa da Constituição não considera se o
documento constitucional é estabelecido por alguma vontade política, tampouco se reflete
fielmente os fatores reais de poder que regem a sociedade. Ao contrário, vê a Constituição
enquanto um conjunto de normas jurídicas prescritivas de condutas humanas, devidamen­
te estruturadas e hierarquizadas num ordenamento escalonado, que encontra seu funda­
mento de validade definitivo e último na norma fundamental, ponto de convergência de
todas as normas i ntegrantes do sistema jurídico e fundamento de validade transcendental
de roda a estrutura normativa.

2.5. Concepção culturalista da Constituição (a busca por alguma conexão en­


tre os sentidos anteriormente apresentados)
Esta acepção desenvolve-se a partir da consideração de que a Constituição é um pro­
duto da cultura , pois assim como a cultura é o resultado da atividade criativa humana, o
Direito também o é.
Para esta concepção, a Constituição se fundamenta simultaneamente em fatores
sociais, nas decisões políricas fundamentais (frutos da vontade política do poder consti­
tuinte) e também nas normas jurídicas de dever ser cogentes. Com isso, congrega rodas
as concepções anteriores, criando o ambiente jurídico favorável ao surgimento de uma
Constituição total , com aspectos econômicos, morais, sociológicos, filosóficos e jurídicos
reunidos com o firo de construir uma unidade para a Constituição.
Esse conceito de Constituição total agrega, numa mesma e unitária perspectiva,
variados aspectos (econômicos, morais, sociológicos, filosóficos e jurídicos), o que afasta
a visão estreita acarretada pelo isolacionismo das acepções anteriormence escudadas.
Para a teoria culruralista não parece adequado explicar a Constituição como um mero
fato social, como pretenderam os adeptos da concepção sociológica. Isso porque em que
pese as perspectivas social, econômica e história i nfluenciarem, claro, o desenvolvimento
da ordem jurídica, esta última não se reduz a um simples produto das infraestruturas so­
ciais. Também a limitação da Constituição à decisão política fundamencal tem sua impor­
tância - especialmente no que se refere à robustez conferida à doutrina do poder originário
enquanto tradução da vontade polírica da nação - mas não explica satisfatoriamente o
conceito. Por último, a percepção jurídica também não parece, aos partidários da leitura
culturalista, uma acepção completa haja vista se dissociar em demasia das bases empíricas
que a produziram, desconsiderando completamente a realidade social concreta que ela visa
normatizar.

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NATHALIA MASSON

É nesse sentido que alguns aurores têm demonstrado inequívoca predileção pelo cul­
turalismo como forma de entender e explicar o conceito de Constituição. De acordo com
Dirley: "Devemos, porém, confessar que a concepção de Constituição como faro cultural
é a melhor que desponta na teoria da Constituição, pois tem a virtude de explorar o texto
constitucional em rodas as suas potencialidades e aspectos relevantes, reunindo em si ro­
das as concepções - a sociológica, a política e a jurídica - em face das quais se faz possível
compreender o fenômeno constitucional ".11

3. CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES


Não de maneira uníssona, a doutrina, no intuito de classificar as Constituições, apresen­
ta variados critérios tipológicos, alguns meramente formais, outros pretensamente substan­
ciais12. Na tentativa de sistematizar os mais usuais utilizados pelos diversos autores pátrios,
analisaremos, a seguir, os considerados tradicionais e úteis à compreensão adequada do tema.

3. 1 . Quanto à origem
(A) Democrática
Igualmente denominada promulgada, popular ou votada, esta Constituição tem seu
texto construído por intermédio da participação do povo, de modo direto ou indireto (por
meio de representantes eleitos). Homenageia o Princípio Democrático na medida em que
confirma a soberania popular, demonstrando que Governo legítimo é aquele que se cons­
trói afirmando a vontade e os interesses de seus governados.

Nos dizeres de José Afonso da Silva, são promulgadas "as Constituições que se origi­
nam de um órgão constituinte composto de representantes do povo, eleitos para o fim de
as elaborar e estabelecer"13. Como exemplo desta tipologia, podemos citar as Constituições
brasileiras de 1891, 1934, 1946 e 1988.

(B) Outorgada
Considera-se outorgada (ou imposta, ditatorial, autocrática e carta constitucional)
a Constituição que é construída e estabelecida sem qualquer resquício de participação
popular, sendo i mposta aos nacionais como resultado de um aro unilateral do governante.
O povo não participa do seu processo de formação, sequer indiretamente. Nos dizeres de
Kildare "outorgada é a Constituição em que não há colaboração do povo na sua elabora­
ção: o Governo a concede graciosamente"14.

11. CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucionol. 6! ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 95.
12. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Consti­
tucional. S! ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 61.
13. SILVA, José Afonso da. Cursa de Direita Constitucional positivo. 28íl ed. Malheiros, 2006, p. 41.
14. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direita Constitucional: teoria da estada e da Constituição. Direito constitucionol
positivo. 14! ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Dei Rey, 2008, p. 273.

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TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Usualmente são Constituições ditatoriais e, como exemplo, podemos citar a Constitui­


ção francesa de 1814, que Luís XVIII, valendo-se de poderes de monarca absoluto, outorgou
ao país, bem como as Constituições Brasileiras de 1824, 1937, 1967 e a EC nº 1/1969.

H istoricamente, cal tipologia deriva de uma concessão de poder em que o governante


(rei, imperador, ditador), em benefício do povo, se auto limita, desfazendo-se de seu poder,
até então absoluto. Esclarecedora é a lição de Paulo Bonavides:
A Consricuição outorgada represenca, na rela do consricucionalismo, um largo esboço
de limitação da autoridade do governance, o rei, príncipe ou Chefe de Estado, enfeixa
em suas mãos poderes absoluros, mas consente unilateralmente em desfazer-se de uma
parcela de suas prcrrogarivas ilimitadas em proveiro do povo, que entra assim no gozo
de direiros e garancias, ranro jurídicas como políricas, aparencemence por obra apenas
em graça da munificência reaJI�.

(C) Cesarista
Similarmente à outorgada, a Constituição intitulada cesarista cem seu texto elaborado
sem a participação do povo. No encanto, e diferentemente daquela, para entrar em vigor
dependerá de aprovação popular que a ratifique depois de pronta.

Nada obstante a população ser chamada ao processo de formação do documento


conscicucional, não há que se falar em cexco democrático exatamente porque cal integração
se dá apenas formalmente, através da concordância popular a um documento já pronto,
inteiramente formatado, sem nenhuma possibilidade de inserção de conteúdo novo.

No mesmo sentido desces ensinamentos, José Afonso da Silva16 também a fasea o cará­
ter popular dessas Constituições, vez que a participação dos indivíduos, nesses casos, não
é realmente democrática - afinal ocorre no intuito de conferir aparência de legítima (de
roupagem democrática) à tirânica e autoritária vontade do detentor do poder. Nas palavras
do autor, na classificação quanto à origem, pode-se agregar às ordinárias tipologias de
"promulgada" e "outorgada" um
ourro ripo de Constituição, que não é propriamente ourorgada, mas tampouco é democrá­
tica, ainda que criada com a parricipação popular. Podemos chamá-la Consriruição cesarista,
porque formada por plebiscito popular sobre um projeto por um imperador (plebisciro na­
poleônico) ou um ditador (plebiscito de Pinocher, no Chile). A parricipação popular, nesses
casos, não é democrática, pois visa apenas ratificar a vontade do detentor do podcr1".

(D) Dualistas (ou convencionadas)


Também intituladas pactuadas, as Constituições dualistas - absolutamente antiqua­
das em face do conscicucionalismo contemporâneo - são formadas por cexcos constitucio­
nais que nascem do instável compromisso (ou pacto) entre forças opositoras, no caso entre

15. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15' ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 89.
16. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 251 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 42.
17. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 281 ed. Malheiros, 2006, p. 41-42.

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NATHALIA MASSON

o monarca e o Poder Legislativo (representação popular), de forma que o texro constitu­


cional se constitua alicerçado simultaneamente em dois princípios antagônicos: o monár­
quico e o democrático.

De acordo com Paulo Bonavides


A Consciruiçáo pacruada é aquela que exprime um compromisso instável de duas forças
políricas rivais: a realeza absoluta debilitada, de uma pane, e a nobreza e a burguesia, em
franco progresso, doutra. Surge encáo como cermo dessa relação de equilíbrio a forma
insrirucional da monarquia limitada18.

Em resumo, as Constituições dualistas são o produto desse precário diálogo entre a


monarquia enfraquecida de um lado e a burguesia em franca ascensão de outro, represen­
tando um texto que limita o poder do rei - já que o submete aos esquemas constitucio­
nais19 - e acaba por cristalizar as chamadas "monarquias constitucionais" ou "representati­
vas", em claro abandono das "monarquias absolutas".

3.2. Quanto à estabilidade (mutabilidade ou processo de modificação)


(Li) Imutável
Reconhecida também pelos termos "granítica", "intocável" e "permanente" (ou, iro­
nicamente, "utópica", segundo Pontes de Miranda20), é uma Constituição dotada de uma
fantasiosa pretensão à eternidade. Não permite qualquer mudança de seu texto, pois não
prevê procedimento de reforma, e baseia-se na crença de que não há órgão constituído
com legitimidade suficiente para efetivar alterações num texto criado por uma "entidade
suprema e superior" (normalmente considerada divina).

Atualmente escá completamente em desuso e é apenas uma reminiscência histórica


- porquanto inimaginável na atualidade um documento constitucional que ignore, em
absoluto, os influxos sociais e políticos.

Essa é também a posição de José Afonso da Silva, para quem a estabilidade das Cons­
tituições é importante para assegurar certa permanência e durabilidade das instituições,
mas não deve ser absoluta, significando imutabilidade. Na percepção do auror:
Não há Consricuição imucável diance da realidade social cambianre, pois não é ela ape­
nas um inscrumenro de ordem, mas deverá-sê-lo, também, de progresso social. Deve-se
assegurar cerca estabilidade conscirucional, ( . . .) mas 5em prejuízo da consranre, canro
quanro possível, perfeita adaptação das consriruiçóes às exigências do progresso, da evo­
lução e do bem-esrar social" ' 1 •

18. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. lSi ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 89.
19. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 261 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 11.
20. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direita
Constitucional. 5! ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 62.
21. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 28! ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p.
41-42.

36
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

A doutrina enumera as leis fundamentais antigas, como o Código de Hamurabi e a


Lei das XII Tábuas, como exemplos de Constituições imutáveis22•

(B) Transitoriamente imutável


Visando preservar a redação original de seu texto nos primeiros anos de vigência,
determinadas Constituições impedem a reforma de seus dispositivos por cerco período.
Foi o que fez a Constituição Imperial de 1824, que estabeleceu, no are. 1742·1 que seu texto
somente poderia ser modificado após 4 anos de sua vigência.

Em verdade, parece-nos que esta relativa e temporária imutabilidade nada mais é do


que uma mera limitação temporal ao poder de reforma - o que coma desnecessária referida
classificação.

(C) Fixa
Igualmente inciculada silenciosa - já que não há em seu texto o procedimenco de
modi ficação de seus dispositivos -, reconhece a possibilidade de seu texto sofrer refor­
ma, porém apenas pelo órgão que a criou (poder constituinte originário). Hoje tidas
por relíquias históricas, podem ser exemplificadas pelo Escacuco do Reino da Sardenha
de 1 848 (que depois vem a ser a Constituição da Itália) e a Constituição Espanhola
de 187624•

Em reforço ao conceico apresentado, Kildare preceitua serem as Constituições fixas


"aquelas que somente podem ser alteradas por um poder de competência igual àquele que
as criou, isco é, o poder constituinte originário"2�.

(D) Rígida
A alteração desta Constituição é possível, mas exige um processo legislativo mais com­
plexo e solene do que aquele previsco para a elaboração das demais espécies normativas, in­
fraconsticucionais. Tais regras diferenciadas e rigorosas são estabelecidas pela própria Cons­
tituição e comam a alteração do texco constitucional mais complicada do que a feitura das
leis comuns.

Temos como exemplo de Constituição rígida a Constituição Federal de 1988, que


exige o respeico a um procedimento bem mais severo e rigoroso do que aquele estabelecido
para a consrrução da legi�lação ordinária para a aprovação de suas emendas constitucionais

22. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 51 ed. São Paulo: Editora Método, 2011, p. 111.
23. Art. 174, Constituição Imperial de 1824: "Se passados quatro annos, depois de jurada a Constituição do Brazil, se
conhecer, que algum dos seus artigos merece roforma, se fará a proposição por escripto, a qual deve ter origem
na Camara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte delles".
24. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 43.
25. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: teona do estado e do Constituição. Direito constitucional
positivo. 141 ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Dei Rey, 2008, p. 274.

37
NATHALIA MASSON

- conforme dispõe o are. 60, CF/88, há que haver a aprovação em cada Casa do Congresso
Nacional, Câmara dos Deputados e Senado Federal, em dois turnos, em cada qual sendo
necessária a obtenção da maioria de 3/5 dos componentes da Casa respectiva.

Há, todavia, uma leve divergência doutrinária a respeito desta classificação. Alexan­
dre de Moraes emende ser a Constituição de 1988 superrígida, pois, além de suscetível a
processo legislativo diferenciado, possui, segundo o autor, normas imutáveis (as cláusulas
pécreas, constantes do are. 60, § 4°, CF/88). Nos dizeres do aucor "a Constituição Federal
de 1988 pode ser considerada como superrígida, uma vez que em regra poderá ser altera­
da por um processo legislativo diferenciado, mas, excepcionalmente, em alguns pomos é
imutável (CF, are. 60, § 4° - cláusulas pétreas)"26•

Percebe-se, pois, que o autor identifica diferences graus de rigidez, concebendo, pois,
uma rigidez que extrapola o comum. Assim, na sua percepção, já que a Constituição brasi­
leira de 1988 possui, no are. 60, § 4°, cláusulas imodificáveis, intituladas cláusulas pétreas,
teria um cerne fixo que a caracterizaria enquanto superrígida.

Não é este, todavia, o entendimento da doutrina majoritária, que compreende a Cons­


tituição de 1988 enquanto rígida, sob a justificativa de que o que caracteriza a rigidez é
exatamente o procedimento diferenciado de alteração - marcado por quorum de vocação
qualificado, rejeição ao turno único, ampliação das discussões - e não a existência de um
núcleo insuperável, insuscetível à ação restritiva ou aboliciva do poder reformador, que
pode existir ou não nos documentos rígidos.

Por fim, outro exemplo de Constituição notadamence rígida é a dos Estados Unidos
da América, que somente pode ser modificada se a proposta de alteração for aprovada por
2/3 dos componentes das duas Casas do Congresso (Câmara de Representantes e Senado)
e se, depois disso, for ratificada por crês quartos dos Estados da Federação nas Assembleias
Legislativas ou em Convenções estaduais27•

(E) Flexível
Contrapõe-se à rígida, uma vez que pode ser modificada por intermédio de um proce­
dimento legislativo comum, ordinário, não requerendo qualquer processo específico para
sua alteração.

O impacto mais relevante da adoção de um texto classificado como flexível é a


inexistência de supremacia formal da Constituição sobre as demais normas, afinal rodas
são elaboradas, modificadas e revogadas por rito idêntico. Nesse sentido, a própria lei

26. MORAES, Alexandre. Direito Constitucionol. 15! ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 41.
27. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: teoria do estado e do Constituição. Direito constitucionol
positivo. 14! ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Dei Rey, 2008, p. 275.

38
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

ordinária contrastante com o teor do cexco conscicucional, o alcera28• Por outro lado no­
ra-se, entre o cexco conscicucional e o restante do corpo normativo, supremacia material,
de conteúdo - sendo constitucionais as normas que regulamentam a estrutura política
do Estado.

Tradicionalmente a doutrina aponta a Constituição inglesa como exemplar de cexco


Aexível29. Outros cexcos flexíveis são os da Nova Zelândia, da Finlândia e da África do Sul3°.

(F) Transitoriamenteflexível
Possuidora de Aexibilidade temporária, autoriza durante cerco período a alteração de
seu cexco através de um procedimento mais simples, baseado no rico comum; vencido este
primeiro estágio, passa a somente permitir a modificação de suas normas por intermédio
de um mecanismo diferenciado, quando, então, passa a ser considerada rígida.

Porque cal Constituição não é ao mesmo tempo flexível e rígida (é primeiro flexível,
e depois passa a condição de documento rígido) não pode ser intitulada semirrígida ou
semiflexível (tipologia apresentada no icem seguinte). Conscicui uma forma autônoma,
cunhada doucrinariamence para dar conta de Constituições como a de Baden, de 1947 ou
a da I rlanda de 1937-�1•

(G) Semirrigida
Estamos diante de uma Constituição semirrígida - também conhecida como semi­
flexível - quando o mesmo documento conscicucional pode ser modificado segundo ricos
distintos, a depender de que ripo de norma esteja para ser alterada. Neste ripo de Consci­
cuição, alguns artigos do cexco (os que abrigam os preceitos mais importantes) compõem a
parte rígida, de forma que só possam ser reformados por meio de um procedimento dife­
renciado e rigoroso, enquanto os demais (que compõe a parte flexível) se alteram seguindo
processo menos complexo, menos dificulcoso.

Nossa Constituição Imperial de 1824, em virtude da previsão constante do art. 178u,


era assim considerada, conforme assegura Kildare:

28. SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucionol positivo. 281 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p.
41-42.
29. "Embora se faça referência à Constituição inglesa, trata-se da Constituição do Reino Unido, que vige na Inglater­
ra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte. Com efeito, através dos atos da União (acts of Union), de 1706 a
1800, respectivamente, foram abolidos os parlamentos escocês e irlandês, surgindo o Reino Unido, sendo que
o Parlamento em Westminster é composto de membros que representam os eleitorados de todos esses países,
com competência para elaborar as leis para toda e qualquer parte do Reino Unido". (CARVALHO, Kildare Gonçal­
ves. Direito Constitucional: teoria da estado e da Constituição. Direito constitucional positivo. 141 ed. Rev. Atual.
e ampl. Belo Horizonte: Dei Rey, 2008, p. 274).
30. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 43.
31. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 43.
32. Art. 178, Constituição Imperial de 1824: "É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respec­
tivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Políticos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional,
póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias".

39
NATHALIA MASSON

No Brasil, a Consriruiçáo do Império de 1824 caracrerizava-se pela semi-rigidez. É o


que seu artigo 178 dispunha que se consideravam como constitucionais apenas as ma­
rérias que se referissem aos limices e rribulaçóes do poder polírico e aos direitos políricos
e individuais dos cidadãos. Tudo o mais, embora figurasse na Consriruição por não ser
consrirucional, podia ser alrerada por lei ordinária33•

3.3. Quanto à forma


(A) Escrita
Escrita é a Constituição na qual todos os dispositivos são escritos34 e estão inseridos de
modo sistemático em um único documento, de forma codificada - por isso diz-se que sua
fonte normativa é única. A elaboração do texto pelo órgão constituinte se dá num momen­
to único, "de um jato", conforme o magistério da doutrina35. Segundo o autor português
). ). Gomes Canotilho estas Constituições são instrumentais e conferem ao documento
constitucional vantajosos atributos, tais como o efeito racionalizador, o efeito estabilizante,
a segurança jurídica, a calculabilidade e a publicidade das normas36•

(B) Não escrita


É aquela Constituição na qual as normas e princípios encontram-se em fontes nor­
mativas diversas, todas de natureza constitucional e de mesmo patamar hierárquico, sem
qualquer precedência de uma sobre as demais.
Contrariamente às Constituições escritas - onde todas as normas constitucionais po­
dem ser encontradas em um único documento - nas Constituições não escritas, em razão
de as fontes normativas constitucionais serem múltiplas, as normas constitucionais estão
esparsas e podem ser encontradas canto nos costumes e na jurisprudência dos Tribunais,
como nos acordos, convenções e também nas leis.

Atenção para um equívoco corriqueiro, que deve ser evitado: a Constituição não es­
crita não possui somente normas não escritas. Ao contrário, é formada pela junção destas
com os textos escritos! Como exemplo, além das Constituições de Israel e a da Nova Ze­
lândia, podemos mencionar a Constituição inglesa37•
No mais, sobre a (reduzida) importância da classificação apresentada neste item, pre­
ceitua Gilmar Mendes que quanto à forma,

33. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: teoria do estado e da Constituição. Direito constitucional
positivo. 14! ed. rev. atual e ampl. Belo Horizonte: Dei Rey, 2008, p. 276.
34. José Afonso da Silva reconhece a existência de conexão entre o conceito de Constituição dogmática e o de Cons­
tituição escrita, bem como entre o de Constituição histórica com o de Constituição não escrita. Na percepção
dele a Constituição dogmática é sempre escrita, e a histórica necessariamente não escrita. (SILVA, José Afonso
da. Curso de Direito Constitucional positivo. 28! ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 41.)
35. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 28! ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 41.
36. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucionol. 6! ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 62.
37. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucionol positivo. 28! ed. Malheiros, 2006, p. 41 .

40
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

uma classificação cuja utilidade parece restringir-se a complementar a singularidade da


experiência conscicucional inglesa-, as constituições são escritas ou não escritas, confor­
me se achem consolidadas em texco formal e solene, ou se baseiem em usos e costumes,
convenções e textos esparsos, bem assim na jurisprudência sedimentada em corno desses
elementos de índole conscicucional18•

3.4. Quanto ao modo de elaboração


(A) Dogmática
Também denominada ortodoxa, traduz-se num documento necessariamente escrito,
elaborado em uma ocasião certa, historicamente determinada, por um órgão competente
para tanto. Retrata os valores e os princípios orientadores da sociedade naquele específico
período de produção e os insere em seu texto, fazendo com que ganhem a força jurídica de
dispositivos cogentes, de observância obrigatória.
Percebe-se que a inserção dos valores e princípios que regulam a vida em sociedade em
determinado momento histórico no texto maior os transforma em dogmas - não por ourra
razão as Constituições assim formadas recebem a denominação de dogmáticas.
(B) Histó1·ica
Sempre não escrita, é uma Constituição que se constrói aos poucos, em um lento
processo de filtragem e absorção de ideais por vezes contraditórios; não se forma de uma
só vez como as dogmáticas. Em verdade, é o produto da gradativa evolução jurídica e
histórica de uma sociedade, do vagaroso processo de cristalização dos valores e princípios
comparrilhados pelo grupo social. Corno exemplo contemporâneo de Constituição histó­
rica, temos a inglesa.
Sobre essa classificação (quanto ao modo de elaboração), uma consideração final é per­
tinente: em termos de estabilidade pode-se dizer que a histórica é mais duradoura e sólida,
enquanto a dogmática apresenta sensível tendência à instabilidade. Isso porque enquanto a his­
tórica é resultado de uma paulatina maturação dos diferentes valores que existem na sociedade
- o que resulta num texto demoradamente pensado e acordado pelas distintas forças políticas
atuantes - a dogmática, no mais das vezes, sedimenta valores contingenciais, interesses passa­
geiros, e estes, conforme vá se alterado o tecido social, vão se tornando obsoletos, inadequados,
o que acarreta a necessidade de seguidas modificações do texto para que a indispensável corres­
pondência entre a Constituição e a realidade a ser normatizada seja mantida.

3.5. Quanto à extensão


(A) Analítica
Igualmente apresentada como "prolixa" (ou "longa'', "ampla'', larga", "extensa"), sua con­
fecção se dá de maneira extensa, ampla, detalhada, já que regulamenta rodos os assuntos con­
siderados relevantes para a organização e funcionamento do Estado. Referida Constituição

38. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito
Constitucional. 51 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 62.

41
NAIHALIA \IASSON

não se preocupa em cuidar apenas de matérias constitucionais, essenciais à formação e


organização do aparelho esraral e da vida em sociedade; ao conrrário, descreve os porme­
nores da vida no Estado, através de uma infinidade de normas de conteúdo dispensável
à estruturação estatal. Segundo a doutrina, é uma Constituição que se desdobra "numa
infinidade de normas no afã de constitucionalizar todo o conjunto da vida social"19• Por
resultado, temos uma Constituição inchada, com número sempre volumoso de artigos.
Como exemplo pode-se citar a Constituição do Brasil de 1988, a de Portugal ( 1976)
e a da Espanha (1978).
Já que cada vez mais temos Constituições analíticas em vigor, os autores se debruça­
ram sobre as razões que levam os Estados a construírem documenros constitucionais tão
longos e detalhados. Conforme André Ramos Tavares ensina,
a indiferença, que se cem formado em desconfiança, quanro ao legislador ordinário; a
estacura de cercos direitos subjecivos, que estão a merecer proteção juridicamente di­
ferenciada; a imposição de certos deveres, especialmente aos governances, evirando-se
o desvio de perder e a arbicrariedadc; a necessidade de cercos insticucos sejam perenes,
garantindo, assim, um sentimento de segurança jurídica decorrente da rigidez consti­
cucional.•0

(B) Concisa
Sintética (concisa, sumária ou reduzida) é a Constiruição elaborada de forma breve,
com preocupação t'.1nica de enunciar os princípios básicos para a estruturação estatal, man­
tendo-se restrita aos elementos subsrancialmence constitucionais.
Por ser um documento sucinto, elaborado de modo bastante resumido, seu texto se
encerra após estabelecer os princípios fundamentais de organização do Estado e da socie­
dade. Tem-se como exemplo desse tipo de Constituição a dos Estados Unidos da América,
de 1787, possuidora de apenas sete artigos originais (redigidos em 4.400 palavras, tão
somente!).
Parcela da doutrina vê virtudes nestas Constituições em razão da sua maior duração
ao longo do tempo, "por serem mais facilmente adaptáveis às mudanças da realidade, dado
o seu caráter principiológico, sem que haja necessidade de constante alteração formal do
seu rexto"·11•
Outros juristas42, no entanto, destacam ser corriqueira a exaltação das vantagens das
Constituições sintéticas (como é a dos Estados Unidos) e as críticas às Constiruições ana­
líticas, como a nossa de 1988 e tantas outras, cujo textos, considerados volumosos, e dera­
lhistas, dificultariam as interpretações atualizadoras e obrigariam o constiruince derivado
a sucessivos esforços de revisão. No entanto, conforme adverte Gilmar Mendes "convém

39. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito
Constitucionol. 51 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 63.
40. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucionol. 61 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 73.
41. CARVALHO, Kildare Gonçalves de. Direito Constitucionol. 111 ed. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005, p. 203.
42. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Consti­
tucional. 51 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 63.

42
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

não perdermos de vista que as Constituições - assim como o direico, em geral, e as demais
coisas do espírico - refletem as crenças e as tradições de cada povo, valores que não podem
ser trocados por modelos alienígenas"H.
Nesse sentido, segundo Gisela Maria Bescer a evidente prolixidade e inequívoca ex-
tensão do nosso texto são um reflexo perfeito das
virrudcs e os defeitos do povo brasileiro. E se ela é exccnsa, é porque não somos sutis a pon­
to de termos regras claras e objetivas com paralela economia de palavras. Não, não somos
dados à sutilezas; nós somos explíciros, minudentes e repetitivos, e bem por isso precisamos
inserir e repetir no texto constitucional regras que pareceriam óbvias em outras culruras. Se
a Consriruiçáo é "exagerada", é porque nós brasileiros, somos exatamente assim: exagerados,
expansivos, largos nos sorrisos e nas maneiras. Somos abundantes nas cores, nos decores,
das mesas postas, na volupruosidade da exibição dos corpos masculinos e femininos. Somos
furcos na exposição de nossas vaidades, mas cambém na administração do que vem de fora.
Falamos alro, furamos filas, mas também somos exuberante solidários, acolhedores, hospi­
taleiros, sensíveis, emotivos. Um sem-número de outros defeitos e qualidades poderiam ser
descritos, mas os listados já nos bastam para provarmos uma tese irrefutável: a tese de que
a Constiruiçáo é o nosso retrato. A Consciruição modelo, dos Estados Unidos, enxuta na
forma, breve, objetiva, calvez não nos çirva porque somos de uma exuberante extroversão, daí
que para nós só poderia ser mesmo uma Constituição do tipo generosa.••

3.6. Quanto ao conteúdo


(A.) Material
Definida a partir de critérios que envolvam o conteúdo das normas, em uma Cons­
tituição deste tipo considera-se constitucional coda norma que tratar de matéria constitu­
cional, independentemente de estar cal diploma inserido ou não no texto da Constituição.
A doutrina ainda não pacificou a definição do que seja ou não matéria conscicucional,
entrecanco parece-nos existir acordo no que tange ao reconhecimento de que alguns assun­
tos seriam indispensáveis a um texto constitucional, por serem essenciais à organização e
estruturação do Estado. Este rol mínimo seria formado, ao menos, pelos seguintes temas:
estruturação da forma de Estado, regime, sistema e forma de Governo; repartição de atri­
buições entre os entes escacais; direicos e garantias fundamentais do homem.
(B) Formal
Nesta acepção, constitucional são rodas as normas inseridas no cexco da Constitui­
ção, independentemente de versarem ou não sobre remas tidos por conscirncionais, isco é,
assuntos imprescindíveis à organização política do Estado. Em outros termos, são consti­
tucionais os preceicos que compõe o documento constitucional, ainda que o conteúdo de
alguns desces preceitos não possa ser considerado materialmente constitucional.

43. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Consti­
tucionol. 51 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 63.
44. BE5TER, Gisela Maria. Direito Constitucional -fundamentos teóricos, p. 115-116, opud CARVALHO, Kildare Gon­
çalves de. Direito Constitucional. 111 ed. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005, p. 295.

43
NATHALIA MASSON

Assim, nas Constituições formais teremos alguns dispositivos só formalmente cons­


titucionais (estão inseridos no documento, mas no que se refere ao conteúdo não podem
ser considerados constitucionais), enquanto outros serão formal e materialmente constitu­
cionais, em razão de estarem no texto da Constituição e tratarem de matéria considerada
constitucional.
No mais, as explicações postas acima permitem as seguintes conclusões:
(i) o sentido formal de uma Constituição só é possível se ela for escrita, ou seja, se
possuir todas as suas normas agregadas em um único documento - afinal é justamente
este texto codificado e sistematizado que reunirá a totalidade das normas e princípios
constitucionais;
(ii) na acepção formal, como só podem ser consideradas constitucionais as normas
i ntegradas ao texto da Constituição, rodas as demais normas, independencemence do
conteúdo delas, serão consideradas infraconsticucionais, isto é, inferiores à Constitui­
ção;
(iii) rodas as normas infraconstitucionais, independentemente da matéria que regu­
lem, são inferiores à Constituição, por isso lhe devem respeito e obediência;
(iv) qualquer norma infraconstitucional que contrarie a Constituição será considerada
inconstitucional. Nesse sentido, mesmo que uma norma infraconstitucional de conteúdo
marerialmeme constitucional afronte o previsto numa norma constitucional que não tenha
conteúdo materialmente constitucional (isco é, seja só formalmente constitucional), esta últi­
ma prevalecerá, por ser a Constituição - com todas as suas normas - um documento superior
aos demais.
(v) Por último, não há hierarquia normativa entre as normas constitucionais; todas
possuem o mesmo status, a mesma dignidade normativa, independentemente de qual seja
seu conteúdo.

3.7. Quanto à finalidade


(A) Garantia
Também denominada "Constituição-quadro'', restringe o poder escacai, criando esfe­
ras de não ingerência do poder público na vida dos indivíduos. Por possuir um corpo nor­
mativo repleto de direitos individuais oponíveis ao Estado, diz-se que traz para os sujeitos
liberdades-negativas ou liberdades-impedimentos, que estabelecem espaços de não atuação
e não interferência estacai na vida privada.
A doucrina4� aponta que a Constituição garantia é um documento com "olhar" di­
recionado ao passado, pois se preocupa em garantir os direitos já conquistados outrora,
protegendo-os em face de uma possível (e indesejável) interferência do Estado.

45. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 221 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 12-13.

44
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

(B) Balanço
Igualmente intitulada "Constituição-registro", é própria dos regimes socialistas - as
Constituições de 1924, 1936 e 1977 da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
são exemplos. Esta tipologia constitucional, cujo "olhar" se volta para o presente, procura
explicitar o desenvolvimento acuai da sociedade e ser um espelho fiel capaz de traduzir os
patamares em que se encontram a economia e as inscicuições políticas.
Nos dizeres de Manoel Gonçalves Ferreira Filho
é a Consriruiçáo que descreve e regisrra a organização polírica esrabelecida. Na verdade,
segundo essa dourrina, a Consriru içáo regisrraria um esrágio das relações de poder. Po r
isso é que a URSS, quando alcançado novo esrágio na marcha para o socialismo, adora­
ria nova Consriruiçáo, como o fez em 1 924, a 936 e 1 977. Cada uma de rais Consrirui­
çóes faria o balanço do novo esrágio.16

(C) Dirigente
Contrapondo-se à Constituição-garantia, consagra um documento engendrado a par­
tir de expectativas lançadas ao fucuro, arquitetando um plano de fins e objetivos que serão
perseguidos pelos poderes públicos e pela sociedade .t. marcada, pois, pela presença de
.

programas e projetos voltados à concretização de certos ideais políticos.


Comum em seu cexto é a presença de normas de eficácia programática, destinadas aos
órgãos estatais com a inequívoca finalidade de fixar os programas que irão guiar os poderes
públicos na consecução dos p la nej a me ntos traçados. Tal qual a Constituição de Weimar,
de 1919, e a Constituição da República Portuguesa, de 1976, a nossa acuai Constituição da
República é um dos clássicos exemplos utilizados para apresentar a Constituição dirigente.
Por último, vale informar que o termo "dirigence" foi cunhado pelo autor português
J. ] . Gomes Canotilho, em referência à Constituição Porcuguesa de 1976 que, possuidora
de inúmeros preceitos de caráter programático, visava guiar a ação dos poderes estacais
no intuito de realizar o programa nela comido, voltado para a implantação de um Estado
socialista. Observe-se, no entanto, e de acordo com o que nos informa Kildare, que "a se­
gunda revisão da Constituição de Portugal, promulgada em 7 de julho de 1989, eliminou
do seu texto inúmeros preceicos de caráter socialista e promoveu uma Aexibilização da
"Constituição econômica'"4�.

3.8. Quanto à interpretação


(A) Nominalista
Possuidora de normas tão precisas e inteligíveis que dispensa, para ser compreendida,
qualquer outro mécodo interpretativo que não o gramatical ou literal. Todas as possí­
veis ocorrências constitucionais da vida fática já possuem, previamente, resposta no cexco

46. FERREIRA FILHO, Manoel Gonça lves Curso de Direito Constitucional. 221 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 13.
.

47. CARVALHO, Kildare Gonçalves de. Direito Constitucional. 111 ed. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005, p. 204-205.

45
NAIHALIA MASSON

constitucional: basta aplicar na literalidade a norma jurídica cabível na hipótese que solu­
cionada está a controvérsia.

Atualmente é impensável um documento constitucional com dispositivos de conteú­


do tão exaro e certo que dê conta de abraçar toda a colossal realidade fática (excessivamente
complexa) a ser normatizada. A importância dessa tipologia constitucional hoje é, portan­
to, meramente histórica.

(B) Semântica
Em sentido inverso à nominalista, Constituição semântica é aquela cujo texto exige
a aplicação de uma diversidade de métodos interpretativos para ser realmente entendido.
Nesta tipologia, onde se enquadram os documentos constitucionais atuais, a interpretação
literal (ou gramatical) não é suficiente para a compreensão e deve ser aliada a diversos
outros processos hermenêuticos no intuito de viabilizar uma ampla assimilação do docu­
mento constitucional.

Finalmente, cumpre informar que algumas precauções devem ser romadas no estudo
do tema "classificações", pois diferentes aurores se valem de idênticos vocábulos para obter
conclusões muito particulares. É o que se passa com os termos "nominalista" e "semânti­
ca": utilizados neste irem para dar coma das espécies de Constituições segundo a aplicação
(ou não) de diferentes processos hermenêuticos para o entendimento de seu texro, serão
apresentados no próximo item com outra, e absolutamente, diversa significância - como
termos que, juntamente com o vocábulo "normativa", compõem a classificação das Cons­
tituições segundo a correspondência com a realidade, de Karl Loewenstein. Além dis­
so, a doutrina noticia48 que o professor português J. ]. Gomes Canorilho também utiliza
os termos "semântica" e "normativa" de maneira inusitada e inovadora: "semânticas", na
percepção do autor, são aquelas Constituições "de fachada", não possuidoras de justiça e
bondade em seus conteúdos, meramente formais, e "normativas" são as Constituições que
preveem direitos e garantias fundamentais e limitam o poder do Estado, fazendo-o com
efetiva bondade - um altruísmo e benevolência que materialmente orientam a produção
de rodo o texto.

3.9. Quanto à correspondência com a realidade critério ontológico =

Desenvolvido em meados do século XX pe lo alemão Karl Loewenscein, este critério


pretende avaliar o grau de comunicabilidade entre o texto constitucional e a realidade
a ser normatizada, partindo de uma teoria ontológica das Constituições. Eferivamente
diference das classificações apresentadas até aqui - que se propunham a analisar os disposi­
civos conscicucionais em si mesmos, sem escabclccer qualquer conexão ou correspondência
com o mundo externo - esta classificação se define a partir de um parâmetro extrínseco à

48. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 51 ed. São Paulo: Método, 2011, p. 117.

46
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Constituição, já que o intuito do autor é examinar o documento constitucional conside­


rando sua maior ou menor proximidade com a realidade do processo de poder. Vejamos
quais são as (três) modalidades que surgem a partir dessa tipologia classificarória:

(A) Normativa
Nesta Constituição há perfeita sintonia entre o texto constitucional e a conjuntu­
ra política e social do Estado, de forma que a limitação ao poder dos governantes e a
previsão de direitos à população sejam estritamente observadas e cumpridas. O texto
constitucional é de tal forma eficaz e seguido à risca que, na prática, vê-se claramente
a harmonia entre o que se estabeleceu no plano normativo e o que se efetiva no mundo
fárico49. O resultado é o reconhecimento de que há verdadeira correspondência entre
o que está escrita na Constituição e a realidade, afinal, os processos políticos de poder
se submetem às normas constitucionais, sendo por elas guiados. Um bom exemplo é a
Constituição Americana de 1 787.

(B) Nominativa
Esta já não é capaz de reproduzir com exara congruência a realidade política e social
do Estado, mas anseia chegar a este estágio. Seus dispositivos não são, ainda, dotados de
força normativa capaz de reger os processos de poder na plenitude, mas almeja-se um dia
alcançar a perfeita sintonia entre o texto (Constituição) e o contexto (realidade). Daí :id­
vém a virtude principal desce ripo de Constituição: na sua função prospectiva, de almejar
num futuro próximo a adequação ideal entre normas e realidade fática, é bastante edu­
cativa. Outro ponto de destaque é que, assim como a Constituição normativa, é dotada,
inequivocamente, de valor jurídico.

Nossa Constituição de 1988 (aliás, como roda Constituição nominal) nasceu com
o ideal de ser normativa - isso porque saíamos de uma época ditatorial (Constituição se­
mântica), que somente legitimava o poder autoritário, com o intuito de construir um texto
absolutamente comparível com a nova realidade democrática que se instaurava - mas,
obviamente, não conquistou essa finalidade, pois ainda hoje existem casos de absoluta
ausência de concordância enrre o rexro constitucional e a realidade. É, pois, um exemplo
de Constituição nominal (ou nominalista). Outros exemplos: as Constituições brasileiras
de 1934 e 1946.

49. Uma boa metáfora, apresentada pelo próprio Loewenstein (e citada por Dirley Curso de Direito Constitucio­
-

nol. 6t ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 128) refere-se à vestimenta, pois, nos dizeres do autor, a Constituição
normativa é aquela que tal qual uma roupa que "cai muito bem" e se assenta perfeitamente ao corpo, adorna
precisamente a realidade.

47
NATHALIA MASSON

(C) Semântica
É a Constituição que nunca pretendeu conquistar uma coerência apurada entre o tex­
to e a realidade, mas apenas garantir a situação de dominação estável por parte do poder
autoritário. Típica de estados ditatoriais, sua função única é legitimar o poder usurpado
do povo, estabilizando a intervenção dos ilegítimos dominadores de fato do poder políti­
co. Por essa razão é tida corno um simulacro de Constituição, afinal trai o significado do
vocábulo "Constituição" que é, necessariamente, um documento limitador do poder, com
finalidade garancisca, e não um corpo de normas legitimadoras do arbÍtrio.

Não faltam exemplos na nossa história constitucional de documentos semânticos:


além da Carta de 1937, ternos as de 1967 e a EC nº 1 11969.

Esquematicamente:

. "'
Pretende
avaliar o grou de
comunicabilidade
entre o texto
• constitucional e o
Quanto à correspondAncla com a realidade realidade o ser
(critério ontológico Karl Loewenstein)
• normatizada

NORMATIVA NOMINATIVA SEMÃNTICA

Há perfeita sintonia entre


o texto constitucional e Incapaz de reproduzir Nunca pretendeu
a conjuntura politica e com exata congruência a conquistar uma coerência
social do Estado; o texto realidade política e social apurada entre o texto e
constitucional é de tal forma do Estado, mas anseia a realidade, mas apenas
eficaz e seguido à risca que, chegar a este estágio - garantir a situação de
na prática, vê-se claramente almeja-se um dia alcançar dominação estável por
a harmonia entre o que a perfeita sintonia entre parte do poder autoritário
se estabeleceu no plano o texto (Constituição) e o - trai o significado do
normativo e o que se efetiva contexto (realidade) vocábulo "Constituição"
no mundo tático

3.10. Quanto à ideologia (ou quanto à dogmática)


(A) Eclética (ou hete1·ogênea)
O convívio harmônico entre várias ideologias é a marca central de seu texto. Nesta
tipologia constitucional, por não haver urna única força política prevalente, o texro cons­
titucional é produto de urna composição variada de acordos heterogêneos, que denota
pluralidade de ideologias (muitas vezes colidentes) e sinaliza a ocorrência de possíveis
duelos (judiciais, legislativos e administrativos) entre os diversos grupos políticos, a se­
rem pacificados pelos operadores jurídicos.

48
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Alguns autores50 aproximam a Constituição eclética da compromissória (inclusive


considerando os termos sinônimos), vez que seu texto é formatado a partir dos compro­
m issos constitucionais firmados entre os distintos, e muitas vezes antagônicos, partici­
pantes do processo político, numa tentativa de firmar dispositivos conciliatórios. Nossa
Constituição de 1988, assim como a portuguesa de 1976, é exemplo fiel desse tipo de
texto.

(B) Ortodoxa
Esta Constituição é construída tendo por base um pensamento único, que afasta
o pluralismo na medida em que descarta qualquer possibilidade de convivência entre
diferences grupos políticos e distintas teorias. Só há espaço para uma exclusiva ideologia
- não há espaço para conciliação de doutrinas opostas. São exemplos a Constituição da
China, de 1982, e a da extinta União Soviética, de 1977.

3. 1 1. Quanto à unidade documental (quanto à sistemática)


Esta classificação só tem algum sentido para as Constituições escritas, pois é o tex­
to escrito que será unitextual (dando origem à Constituição orgânica) ou pluritextual
(estabelecendo a Constituição inorgânica). Passemos ao significado de cada uma delas.

(A) Orgânica
Constituição orgânica é aquela disposta em uma estrutura documental única, na
qual todos os dispositivos estão articulados de modo coerence e lógico. Não há espaço
para identificação de normas constitucionais fora da Constituição - esta última exaure
os dispositivos constitucionais, não sendo possível a existência de normas com valor
constitucional que estejam fora de seu texto.

Em resumo, nas Constituições orgânicas temos um documento único que concen­


tra todos os preceitos constitucionais, não existindo normas constitucionais esparsas no
ordenamento jurídico. Pode-se dizer que todas as Constituições brasileiras são exemplos
desta tipologia.

(B) Inorgânica
Em contraposição à unitextual, temos a pluritextual (ou inorgânica) que é formada
por diversas estruturas documentais, ou seja, suas normas estão dispersas em variados
documencos, pois diferences textos irão compor o que denominaremos "Constituição".

A doutrina apresenta como exemplar desta tipologia a Constituição da França de


1875 esta última concebida a partir da reunião de diferences documentos, isto é, não
-

apenas os 89 artigos do texto compõem as normas constitucionais, mas também seu

50. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5t ed. São Paulo: Método, 2011, p. 118.

49
NATHALIA MASSON

preâmbulo, sendo que ele remete para a Declaração dos Direitos de 1789 e ao preâmbulo
da Constituição de 1946.

Como a doutrina nunca é uníssona na utilização dos termos, lembremos que Bo­
navides51 intitula a Constituição orgânica de codificada, distinguindo-a da legal, aqui
nominada inorgânica. Nos dizeres do autor

as Constiruições escritas se apresentam tecnicamente debaixo de duas formas: Cons­


tiruições codificadas, de adoção mais frequente, e Constituições legais, de ocorrência
mais rara. Constiruições codificadas são aquelas que se acham contidas inteiramente
num só texro, com seus princípios e disposições sistematicamente ordenados e arti­
culados em títulos, capítulos e seções, formando em geral um único corpo de lei"�2•

Na sequência, o autor apresenta as Constituições legais como

aquelas Constiruições escricas que se apresentam esparsas ou fragmentadas em vários


rexros. Haja vista, a rírulo ilustrativo, a Constituição francesa de 1 875. Compreen­
dia ela Leis Consrirucionais, elaboradas em ocasiões distintas de atividade legislativa,
como as leis de estabelecimento dos poderes. Tomadas em conjunto passaram a ser
designadas como a Constiruiçáo da Terceira República�1.

Também Pinto Ferreira54 se vale de termos distintos aos aqui usados: para o autor, as
Constituições orgânicas se equivalem às reduzidas e as i norgânicas às variadas.

3. 1 2. Quanto ao sistema
Esta classi ficação, concebida por Diogo de Figueiredo Moreira Neco55, divide os
textos constitucionais em principiológicos e preceituais, a depender da preponderância
de regras ou princípios, vale dizer, do grau de abstração das normas que predominam.

(A) Principiológica
Nesta os princípios ganham relevo, são as normas que preponderam. E como prin­
cípios possuem grau de abstração significativo, para serem concretizados necessitarão de
mediação legislativa ou judicial. A doucrina56 considera nossa acuai Constituição como
representante desta modalidade.

51. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18! ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 87.
52. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18! ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 87.
53. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucionol. 18! ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 88.
54. Conforme Pinto Ferreira, apud CARVALHO, Klldare Gonçalves de. Direito Constitucional. 11 ed. Belo Horizonte:
ª

De1 Re� 2005, p. 202.


55. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2000, p. 81, apud LENZA, Pedro. Di­
reito Constitucional esquematizado. 16! ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 94.
56. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 4! ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 44; MO­
RAES, Guilherme Pena de. Curso de Direito Constitucional. 3! ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 67.

50
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

(B) Preceituai
Constituído conferindo primazia às regras, o texto da Constituição preceituai pos­
sui normas com alto grau de precisão e especificidade, o que permite uma imposição
direta e coercitiva de seus dispositivos. Em virtude da predominância de normas com
grau superior de deccrminabilidade, as Constituições preceituais rendem a ser excessiva­
mente decalhiscas. A Constituição mexicana de 1917 é eirada pela doutrina pátria como
exemplo.

3.1 3. Quanto ao local da decretação


(A) Heteroconstituiçáo (ou Constituição heterônoma)
Raras são as Constituições que não se originam no Estado que irão viger, surgin­
do em Estado diverso daquele em que o documento vai valer, ou então elaboradas por
algum organismo internacional. A heceroconsticuição é, por isso, bastante incomum e
causa justificável perplexidade, afinal o documento constitucional vai ser feiro fora do
Estado onde suas normas produzirão efeitos e regerão normativamente a realidade fácica.

São exemplos de Constituição hecerônoma as de países como Nova Zelândia, Ca­


nadá e Austrália, pois, como integrantes da Commonwea!th, suas Constituições foram
aprovadas por leis do Parlamento Britânico. Igualmente pode ser eirada a Constituição
cipriota, produto de acordos feitos em Zurique, na década de 1960, entre Grécia, Tur­
quia e a Grã-Bretanha.

(B) Autoconstituição
Também intitulada autônoma, é a Constituição elaborada dentro do próprio Estado
que irá estruturar normativamente e reger. Em regra, as Constituições são desce ripo -
inclusive a nossa acuai, de 1988.

3.14. Quanto ao papel da Constituição (ou função desempenhada pela Cons­


tituição)
A função que será desempenhada pela Constituição no ordenamento jurídico dá
origem, segundo Virgílio Afonso da Si lva57, à Conscicuição-lei, à Constituição-moldura
e à Conscicuição-fundamenco (ou Conscicuição-cotal). Estas se diferenciam a partir da
maior ou menor liberdade de atuação atribuída ao legislador ordinário em relação ao
cexco constitucional, isco é, se distanciam frente à capacidade e autonomia que o legisla­
dor possui (ou não) em conformar a ordem jurídica.

57. SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionolização do direito: os direitos fundomentols nos relações entre particulares.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 111-115.

51
NATHALIA MASSON

(Li) Constituição-lei
Inviável em documentos rígidos e consagradores do princípio da supremacia formal
da Constituição - como é o caso do nosso texto de 1988 -, nesta acepção tem-se Cons­
tituições equiparadas às demais leis do ordenamento, desprovidas de status hierárquico
diferenciado. Nesse sentido, como as normas constitucionais estão em idêntico patamar
da legislação ordinária, não possuindo superioridade em relação a estas, não são capazes
de moldar a atuação do legislador e funcionam, unicamente, como diretrizes não vin­
culantes.

Em suma, na Constituição-lei a estrutura constitucional é formada por normas que


se situam no mesmo nível das demais que compõem o ordenamento, de forma que a
Constituição não é vista como parâmetro ordenador do agir legislativo mas, tão somen­
te, como um conjunto de recomendações e orientações indicativas, que não necessaria­
mente serão observadas e cumpridas.

(B) Constituição-moldura
Numa interessante metáfora, nesta concepção a Constituição é só a moldura de
u m quadro vazio, funcionando como limite à atuação do legislador ordinário, que não
poderá atuar fora dos limites previamente estabelecidos. Assim como num quadro a
pintura está restrita aos limites da moldura que o guarnece, também no ordenamento a
atuação legislativa estaria circunscrita ao perímetro estabelecido pela Constituição. Des­
sa forma, a preocupação da jurisdição constitucional seria, tão somente, a de verificar se
o legislador agiu dentro dos contornos da moldura constitucional, isto é, se o "desenho"
legislativo está dentro do quadro ou se extrapolou as bordas definidas. Seguindo com a
representação simbólica, é como se não i mportasse o que o legislador ilustrou no quadro,
ao contrário, o que interessa é saber se ele se manteve dentro dos limites do quadro!

Virgílio aponta58 que esta acepção não é novidade, apesar de recentemente ter sido
fortemente resgatada pela doutrina alemã, especialmente no intuito de fornecer outra
opção à teoria dos princípios de Robert Alexy. É também, e nocadamente, uma modali­
dade i ntermediária entre a apontada no item anterior (Constituição-lei) e a que a seguir
será estudada (Constituição-fundamento).

(C) Constituição-fundamento
Vista enquanto lei fundamental, esta Constituição diferencia as normas constitu­
cionais das demais, na medida em que as situa num plano de superioridade valorativo
que as torna cogentes para legisladores e indivíduos. Nas precisas palavras de Virgílio "a
Constituição é entendida como lei fundamental, não somente de toda a atividade estatal

58. SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: os direitosfundamentais nas relações entre particulares.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 115.

52
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

e das atividades relacionadas ao Estado, mas também a lei fundamental de roda a vida
social "59.

A atuação do legislador, neste caso, torna-se significativamente abreviada, vez que


seu papel está reduzido a interpretar as normas constitucionais e efetivá-las. O espaço
de conformação do ordenamento jurídico do legislador fica, pois, encurtado, na medida
em que sua atividade legislativa resume-se a um "mero instrumento de realização da
Constituição"60.

3.15. Quanto ao conteúdo ideológico (ou quanto ao objeto)


Proposta por André Ramos Tavares61, esta classificação visa identificar o conteúdo
ideológico que permeia a construção do texto constitucional.

(A) Liberal
Tendo como exemplos clássicos a Constituição dos EUA, de 1787 e a francesa, de
179 1 , Constituições liberais são aquelas que correspondem às já mencionadas Constitui­
ção-garantia. Visam, pois, delimitar o exercício do poder estatal, assegurar liberdades
individuais, oponíveis ao Estado, e as garantias que assegurem a realização dos direitos
por pane dos indivíduos. São Constituições que veem o Estado circunscrito às funções
de repressão e proteção, despossuído de políricas de desenvolvimento social e econômi­
co62.

(B) Social
Típicas de um constitucionalismo pós liberal, as Constituições soc1a1s passam a
consagrar em seus textos não só direitos relacionados à liberdade, mas também prerro­
gativas de cunho social, cultural e econômico. A atuação do Estado deixa de ser mera­
mente negativa, como era nas Constituições liberais, para se tornar positiva, na medida
em que fica claro que as políticas estatais são eficientes vetores para o alcance de uma
igualdade material. Como muitas vezes as normas que celebram o agir estatal, na conse­
cução de fins previamente traçados e delineados, são normas programáticas, definidoras
de planos para o futuro, é natural a associação entre a Constituição liberal e a dirigente.

59. SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 112.
60. SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 113.
61. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6! ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 74.
62. MORAES, Guilherme Pena de. Cursa de Direito Constitucional. 3! ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 66.

53
NATHAUA MASS01'\

3. 16. Outras classificações


Ademais das classificações já sistematizadas, os consticucionalistas pátrios apresen­
tam outras que nos parecem úteis ao entendimento do tema.

(Li) Suave
Pensada pelo jurista italiano Gustavo Zagrebelsky6·1, "Costituzione mire" (ou leve,
soft, dúctil) é aquela que, numa sociedade extremamente diversificada e fragmentada
por interesses plurais, não prevê um único modo de vida e o estabelece como parâmetro
exclusivo a ser seguido por seus cidadãos.

Diversamente, a Consticuição dúctil (ou suave) assegura várias opções e escolhas de


formas de vida, pois sua tarefa não é a de definir qual o único projeto de vida cabível
e válido, e sim o de funcionar como u m substrato para o desenvolvimento de distintos
projetos pessoais. O autor, valendo-se de eficiente ilustração metafórica, vê o Direito
Consticucional enquanto um conjunto de matérias primas para a composição de um
edifício, sendo que a Constituição é a fundação dessa construção. O alicerce (base) dessa
obra deverá ser robusto e estável o suficiente para suportar todas as variadas formas de
edificação que emergirão das diferentes combinações dos materiais6•.

(B) Plástica
Aqui falta acordo doutrinário: enquanto Pinto Ferreira65 preceitua ser a Constitui­
ção plástica um sinônimo de Constituição Aexível, os demais66 veem o termo "plástica"
como caractere que confere ao texco constitucional certa maleabilidade, que o permite
acompanhar as oscilações típicas da realidade fática.

Seria, portanto, uma Constituição que permitiria constantes releituras, cujo texto
seria permanentemente reinterpretado para melhor acompanhar as mutações da socie­
dade.

Dois pomos ainda são merecedores de destaque:

(i) a plasticidade do documento constitucional não é característica particular de


textos Aexíveis, afinal, Constituições rígidas podem igualmente estar abertas à novos
inAuxos sociais, políticos, econômicos e culturais que a vida cotidiana oferta. Este é
exatamente o caso da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988;

63. ZAGREBELSKY, Gustavo. li diritto mite: legge, diritti, giustizia. Torino: Einaudi, 1992, p. 10 et seq.
64. Conforme muito bem assinalado por NOVELINO, Marcelo. Direita Constitucional. St ed. São Paulo: Editora Mé­
todo, 2011, p. 111.
65. FERREIRA, Pinto. Cursa de Direito Constitucional. 91 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 12.
66. HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Dei Rey, 1995, p. 240; BULOS, Uadi
Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 43.

54
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

(ii) no direito brasileiro idencifica-se a mobilidade incerpretativa do texto como o


fenômeno da mutação constitucional. Mutação é uma alteração da Constituição que
não incide sobre seu texto e sim opera nas normas que pairam subjacences a ele, de
forma que o texto permaneça intacto, íntegro, enquanto o sentido que dele se extrai (a
incerprecação da norma escrita) é modificada. É , pois, um mecanismo informal de mu­
dança da Constituição, de viés nitidamente hermenêutico, que não atinge o texto e sim
a interpretação que se faz dele.

(C) Expansiva
Com a pretensão de dar conta de textos constitucionais que, comparativamente aos
anteriores que regiam a vida daquele mesmo Estado, têm seu conteúdo ampliado, essa
classificação, indicada por Raul Machado Horca6�, indica Constituições que conferem
juridicidade a novas situações e estendem o tratamento jurídico de diversos outros temas
já presentes nos documentos constitucionais anteriores.

Como exemplo, pode-se citar nossa Constituição da República de 1988: esta, além
do acréscimo feito no tratamenco de alguns assuntos, como os direitos e garamias funda­
mentais - cujo rol foi significativamente incrementado - igualmente trouxe inovações,
tal qual a consagração expressa do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto
fundamento do Estado Democrático de Direito, reconhecendo o legislador constituinte
de 1988 que não é a pessoa humana que existe em fu nção do Estado, e sim o conrdrio.

(D) Em Branco
Nesta Constituição, as alterações no texto são viáveis. No entanto os aspectos pro­
cedimentais que oriencarão as mudanças não estão previstos na Constituição. A reforma,
se for feita, subordinar-se-á ao regramenco imposto pelo órgão revisor, que estipulará ele
mesmo as regras formais e os obstáculos de conteúdo que deverão ser observados quando
da reestruturação do documento. Traçando um paralelo, a Constituição em branco não
possui um artigo cal qual o are. 60 da acuai Constituição brasileira, que direciona o po­
der reformador quando da feitura das emendas constitucionais, explicitando lim itações
que rigorosamente deverão ser acatadas. A doutrina cita as Constituições francesas de
1799 e de 1814 como exemplares de Constituições em branco.

Por fim, vale apresentar um esquema organizacório de todas as classificações apre­


sentadas:

67. HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 41 ed. p. 207-210, apud LENZA, Pedro. Direito Constitucional Es­
quematizada. 131 ed. São Paulo: Método, 2009, p. 47.

55
NATHALIA MASSON

CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES

Quonto à odgem {� Promulgada (CF/88)


Dualista ou Pactuada
Cesarista

••• Outorgada

Rígida (CF/88)

Quanto à
estabilidade
•• Semi-Rígida
Imutável
Transitoriamente I mutável
Fixa

Quanto à forma
•{ •


Flexível
Transitoriamente Flexível

Escrita (CF/88)
Não Escrita

{

Quanto ao modo • Dogmática (CF/88)


de elaboração

Quanto à ••
{
• Histórica

Analítica (CF/88)

•{ ••
extensão Concisa

Quanto ao
conteúdo
{ Formal (CF/88)
Material

Quanto a
f.ma l"d
1 ade
,

•• Dirigente (CF/88)
.
Garantia

{ ••
Ba 1anço

Quanto à Semântica (CF/88)


interpretação

Quanto à
correspondência
{ ••• Nominalista

Nominativa (CF/88)
Normativa

{ ••
com realidade Semântica

Quanto à Eclética (CF/88)

{•
ideologia Ortodoxa

Quanto à unidade Orgânica (CF/88}


documental I norgânica

{•

. • Principiológica (CF/88)
Quanto ao sistema
Preceituai

Quanto ao local {• • Autoconstituição (CF/88)


da decretação

{
clas ificações ••
Outras


Heteroconstituição

Plástica (CF/88)
Suave(CF/88)
Expansiva (CF/88)
Em branco

56
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

4. APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS


4.1. lntroduçáo
Após a apresentação dos diferentes critérios utilizados para classificar as Constitui­
ções, já se pode concluir que a Constituição da República de 1988 possui, como principais,
as seguintes características:
(i) democrática , pois seu texto foi construído com efetiva participação popular;
(ii) rígida , já que a alteração de seu texto é possível e exige a observância de um
processo legislativo mais solene e complexo do que aquele previsto para a elaboração das
demais espécies normativas, infraconstitucionais;
(iii) escrita , uma vez que rodos os dispositivos são escritos e estão inseridos de modo
sistemárico em um único documento;
(iv) dogmática , isco é, elaborada em ocasião certa, historicamente datada, por órgão
com competência para tanto;
(v) formal , de modo que constitucionais sejam rodas as normas inseridas no texto da
Consticuição, independentemente de tratarem, ou não, de temas materialmente tidos por
constitucionais;
(vi) analítica , por ter sido produzida de modo a detalhar desnecessariamente assuntos
dos quais não depende a estruturação do Estado;
(vii) dirigente , porque arquiteta programas (objetivos) a serem perseguidos pelos po­
deres públicos e pela sociedade;
(viii) nominativa , pois apesar de ainda não reproduzir com plena congruência a rea-
lidade política e social do Estado, ao menos anseia alcançar este estágio;
(ix) eclética , pois nela convivem várias ideologias;
(x) orgânica , por esrar organizada em uma estrutura documental única; e
(xi) principiológica , pois nela os princípios são as normas que preponderam.
Caracteres constitucionais conhecidos, a atenção volta-se agora às normas que com-
põem o documento constirucional e sua capacidade de produção de efeitos jurídicos no
ordenamento. Em síntese: avaliar-se-á neste icem a aplicabilidade, isto é, a potencialidade
de realização normativa dos dispositivos constitucionais.
O norte será a doutrina do Professor José Afonso da Silva, que inovou as discussões
doutrinárias ao parrir da premissa de que não há norma constitucional destituída de
eficácia , pois rodas elas são possuidoras de, ao menos, dois efeitos: 1) positivo - capacidade
que roda norma constitucional detém de impedir a recepção das normas anteriores à sua
vigência que com ela não guardem compatibilidade; e 2) negativo - capacidade que roda
norma conscirucional possui de vedar, ainda que implicitamente, ao legislador ordinário, a
edição de normas que a contrariem.

57
NATHALIA \fASSON

4.2. A classificação de José Afonso da Silva


O Professor José Afonso da Silva68 classifica as normas constitucionais em crês grupos,
a saber, normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada.
Esquemacicamence, temos:

Aplicabilidade
direta e imediata

Aplicabilidade
direta e imediata
(sujeita à restrições)

Quanto a princípios
institutivos
Aplicabilidade
reduzida
Declaratória
de princípios
programáticos

As normas de eficácia plena são aquelas capazes de produzir rodos os seus efeitos
essenciais simplesmente com a enrrada em vigor da Constituição, independentemente de
qualquer regulamentação por lei. São, por isso, <locadas de aplicabilidade:
imediata , eis que estão apcas a produzir efeitos imediatamente, com a simples
promulgação da Conscicuição;
direta , pois não dependem de nenhuma norma regulamencadora para a produ­
ção de efeicos; e
integral , porque já produzem seus integrais efeitos, sem sofrer quaisquer limi­
tações ou restrições.
Por seu turno, as normas de eficácia contida69 são aquelas que também estão aptas
para a produção de seus plenos efeitos desde a promulgação da Constituição (aplicabili­
dade imediata), mas que podem vir a ser restringidas. O direito nelas previsto é imediata­
mente exercicável, com a simples promulgação da Constituição. Entretamo, cal exercício
poderá ser rescringido no futuro. São, por isso, dotadas de aplicabilidade:
imediata, por estarem aptas a produzir efeitos imediatamente, com a simples
promulgação da Constituição;
direta , pois não dependem de nenhuma norma regulamentadora para a produ­
ção de efeitos;

68. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6• ed. São Paulo, Malheiros, 2003, p. 88-102.
69. Michel Temer as define como normas constitucionais de aplicabilidade plena e eficácia redutível ou restringível.
(TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 71 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 27.)

58
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

mas, possivelmente, não-integral, eis que sujeiras à imposição de restrições.


Destaca-se que as restrições às normas de eficácia contida poderão ser impostas:

(/:!) por lei (ex.: are. 5°, XIII, da CF/88, que prevê as remições ao exercício de traba­
lho, ofício ou profissão, que poderão ser impostas pela lei que estabelecer as qualificações
profissionais, bem como o disposto no are. 5°, LXXVIII, da CF/88);

{B) por outras normas constitucionais (ex. : are. 1 39 da CF/88, que impõe restrições
ao exercício de certos direitos fundamentais durante o período de estado de sítio);

(C) por conceitos ético-jurídicos geralmente pacificados na comunidade jurídica e,


por isso, acatados (ex.: are. 5°, XXV, da CF/88, em que o conceito de "iminente perigo
público" acua como uma rescrição imposta ao poder do Estado de requisitar propriedade
particular).

As normas de eficácia limitada são aquelas que só produzem seus plenos efeitos de­
pois da exigida regulamentação. Elas asseguram determinado direito, mas este não poderá
ser exercido enquanto não for regulamentado pelo legislador ordinário. Enquanto não
expedida a regulamentação, o exercício do direito permanece impedido. São, por isso,
dotadas de aplicabilidade:

mediata, pois somente produzem seus efeitos essenciais ulteriormente, depois


<la regula1rn:ntaçáo por lei;
indireta, porque não asseguram, diretamente, o exercício do direito, dependen­
do de norma regulamentadora para cal; e
reduzida, eis que com a promulgação da Constituição, sua eficácia é meramen­
te "negativa".
Com efeito, as normas de eficácia limitada foram divididas pelo Professor José Afonso
da Silva em dois grupos: as definidoras de princípios institutivos (organizativos ou or­
gânicos) e as definidoras de princípios programáticos.

As normas de eficácia limitada definidoras de princípios institutivos (organizativos


ou orgânicos) são aquelas pelas quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de
estruturação e atribuições de órgãos ou entidades, para que o legislador ordinário os es­
truture posteriormente, mediante lei. São exemplos: "a lei disporá sobre a organização
adminisrrativa e judiciária dos territórios" (are. 33, CF/88); "a lei disporá sobre a criação,
estruturação e atribuições dos ministérios" (are. 88, CF/88); "a lei regulará a organização e
o funcionamento do conselho de defesa nacional" (are. 91, § 2°, CF/88); "a lei disporá so­
bre a Constituição, investidura, jurisdição, competência, garantias e condições de exercício
dos órgãos da justiça do trabalho" (are. 1 1 3, CF/88).

As normas de eficácia limitada definidoras de princípios programáticos são aquelas


pelas quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados in­
teresses, limitou-se a lhes traçar os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos

59
NATHALJA MASSON

(legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas


atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado. Esse grupo de normas corres­
ponde ao que a doutrina denomina, simplesmente, "normas programáticas", como são
exemplos o arr. 3°; o arr. 7°, XX; o are. 7°, XXVII; o arr. 173, § 4°; o arr. 196, o arr. 205, o
arr. 216, § 3°, o arr. 217; todos da CF/88. Lembremos que, segundo o STF, a circunstância
de serem as normas dotadas de eficácia programática não autoriza a conversão dos precei­
cos nelas consagrados em promessas constitucionais inconsequences, "sob pena de o Poder
Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de
maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável
de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" 7º.

Devemos ter atenção especial para uma questão: de faro, como regra, a Constituição
Federal estabelece que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm
aplicabilidade imediata (are. 5°, § 1°, CF/88). Porém, afirmar que uma norma constitu­
cional é dotada de aplicabilidade imediata não significa dizer que ela dispensa a atuação
positiva por parte dos poderes públicos. Significa dizer, apenas, que o direito nela previsto
poderá ser exigido pelo seu destinatário de imediato, sem necessidade de regulamencação
por lei.

Vejamos um exemplo: o inciso LXXIV do are. 5°, CF/88, estabelece que o Estado
prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de re­
cursos. Trata-se, conforme já decidiu o STF, de norma de aplicabilidade imediata (eficácia
plena), isco é, o indivíduo pode, com a simples promulgação da CF/88, pleitear essa assis­
tência gratuita, sem necessidade de aguardar qualquer regulamencação por lei. Por outro
lado, é norma que exige uma prestação positiva por parte do poder público, que deverá,
por meio das defensorias públicas (are. 134, CF/88), concretizar essa determinação cons­
titucional.

4.3. A classificação de Maria Helena Diniz


Para a aurora Maria Helena Oiniz71, as normas constitucionais, segundo sua eficácia,
dividem-se em:

(A) Normas com eficácia absoluta (ou supereficazes). São consideradas imutáveis, não
podendo ser emendadas; São, enfim, os princípios constitucionais sensíveis72 e as chama­
das cláusulas pécreas'3, a saber:

70. STF, RE 393175/RS.


71. DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 9! ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 101-115.
72. Art. 34, VII, "a" e "b" da CF/88, ou seja, a forma republicana, o sistema representativo, o regime democrático e
os direitos da pessoa humana.
73. Art. 60, § 42, 1 a IV da CF/88: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: 1 a -

forma federativa de Estado; li - o voto direto, secreto, universal e periódico; Ili - a separação dos Poderes; IV-os
direitos e garantias individuais".

60
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

(1) a forma federativa de Estado (arts. 1°, 1 8, 34, Vll , "c", 46, § 1 °, CF/88);
(2) o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 14, CF/88);
(3) a separação dos Poderes (arr. 2°, CF/88); e
(4) os direitos e garantias individuais (art. 5°, I a LXXVIII, CF/88);
(B) Normas com eficácia plena, que equivalem às normas de eficácia plena do Prof
José Afonso da Silva;
(C) Normas com eficácia relariva restringível; que equivalem às normas de eficácia
contida do Prof José Afonso da Silva;
(D) Normas com eficácia relativa complementável ou dependente de complementação
legislativa; que equivalem às normas de eficácia limitada do Prof José Afonso da Silva,
sendo dividas em:
(1) Normas de princípio institutivo;
(2) Normas programáticas.

4.4. A classificação de Uadi Larnmêgo Bulos


O aucor baiano inova'4 ao reconhecer normas com eficácia exaurida (ou esvaída), isto
é, aquelas que já extinguiram a produção de seus efeitos, rendo, portanto, sua aplicabilida­
de esgotada. São próprias do ADCT (Aro das Disposições Constitucionais Transitórias)
- ex.: ares. 2°, 3°, 1 1 , 13, 14 e 15, rodos do ADCT.

4.S. Críticas
Críticas robustas têm sido feitas à teoria da aplicabilidade das normas constitucionais.
A principal delas, apontada pelo professor Gilmar Ferreira Mendes�\ refere-se à inexis­
tência de critérios seguros e balizas objetivas para identificar o grau de aplicabilidade das
normas, o que torna cal teoria insegura e inconsistente. A segunda crítica digna de nota é a
que afirma que a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais cria uma subversão na
estrutura hierárquica do ordenamento jurídico ao dar mais importância à regulamentação
infraconsricucional do que à própria norma constitucional.

S.
PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DE INTERPRETAÇÃO DA CONSTI­
TUIÇÃO E DAS LEIS
A partir do reconhecimento de que a proteção simultânea no ordenamento jurídico de
diversificados direitos e bens propicia um ambiente favorável às possíveis tensões entre os distin­
tos interesses, foram consagrados diversos princípios e métodos voltados à interpretação do
texto constitucional e da legislação infraconstitucional que a ele se subordina .

74. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federo/ onotodo. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 335.
75. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. 4i ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 93-96.

61
NATHALIA MASSON

A i nspiração para a construção desse catálogo é, claro, resguardar a supremacia da


Constituição, pilar do constitucionalismo contemporâneo, o que é feita de duas maneiras:
primeiro procura-se organizar os mandamentos principiológicos aplicáveis às leis, de forma
que estas sejam compreendidas sob a ótica da Constituição, documento central do orde­
namento, e não subsistam validamente se com ela não guardarem compatibilidade. Na
sequência, procura-se conciliar os aparentes confrontos que eventualmente surgem entre
os variados desígnios que são tutelados pela Carta Maior, ofertando soluções capazes de
conferir maior eficácia e efetividade ao conjunto normativo constitucional.
Em decorrência dessa constante necessidade interpretativa, percebe-se o quão relevan­
tes são os princípios que auxiliam essa tarefa. A seguir, os mais importantes:

5.1. Princípio da supremacia da Constituição


Referida premissa interpretativa estabelece que, em virtude de a Constituição ocupar
o ápice da estrutura normativa em nosso ordenamento, todas as demais normas e atos do
Poder Público somente serão considerados válidos quando em conformidade com ela.
De acordo com a doutrina:
de fato, o princípio da supremacia constitucional constirui o alicerce em que se assen­
ra o edifício do moderno Direito Público. Normas constitucionais põem-se acima das
demais normas jurídicas (hierarquia) e essa preeminência é que vai constituir superiori­
dade da Constituição.76

Não por outra razão, em decorrência da supremacia da Constituição e da higidez de


seu texto, é possível questionar a constitucionalidade dos diplomas infraconstitucionais (e
das emendas constitucionais) por intermédio do controle de constitucionalidade.

5.2. Princípio da interpretação conforme a Constituição


Postulado que não se presta à interpretação das normas constitucionais propriamente, e
sim da legislação infraconstitucional, encontra sua morada nas chamadas normas polissêmicas
ou plurissignificativas, isto é, aquelas que podem ser interpretadas de maneiras diversas. Imagi­
nemos que uma norma ''/\.' possua três leituras normativas possíveis: de todas, deve-se escolher
aquela que seja mais conforme à Constituição, que esteja em consonância com o texto da Carta
Maior, pois, dessa forma, mantém-se a norma no ordenamento jurídico, evitando sua declara­
ção de inconstitucionalidade. É, pois, um princípio que prestigia o ideal de presunção relativa
de constitucionalidade das leis e opera a favor da conservação da norma legal, que não deve ser
extirpada do ordenamento se a ela resta um sentido que se coaduna com a Constituição.
Conforme ].] Gomes Canotilho: "a interpretação conforme a Constituição só é legíti­
ma quando existe um espaço de decisão (espaço de interpretação) aberro a várias propostas
interpretativas, umas em conformidade com a Constituição e que devem ser preferidas, e
outras em desconformidade com ela".''

76. PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 145.
77. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. p. 230.

62
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Há, no entanto, regras a serem observadas ante a utilização da interpretação conforme


à Constituição:

(i) primeiro, se o texto do dispositivo é unívoco, isto é, não tolera interpretações múl­
tiplas, não há que se falar em interpretação conforme. Conforme esclareceu o STF, a in­
terpretação conforme só é "utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias
interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o
sentido da norma é unívoco".�8

(ii) segundo, não são aceitáveis violações à literalidade do texto, afinal o intérprete encon­
tra seu limite de atuação no perímetro que envolve as possibilidades hermenêuticas do texto,
não podendo, jamais, atuar como legislador positivo, criando norma nova a partir da tarefa
interpretativa. Tampouco está o inrérprete autorizado a ferir a finalidade inequivocamenre pre­
tendida e desejada pelo legislador, haja vista os objetivos da lei terem de ser considerados. Em
outras palavras: a vontade do juiz-inrérprete não pode simplesmenre substituir a do legislador,
de forma que a inrerpretação funcione como um princípio de autolimitação judiciária79•

Nesse sentido é a síntese do STF: "se a única interpretação possível para compatibilizar a
norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder legislativo pretendeu
dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implica­
ria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo".80

5.3. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis


Como os poderes públicos extraem suas competências da Constituição, por conse­
quência presume-se que eles agem estritamente em consonância com esta. Isso confere às
normas produzidas pelo Poder Legislativo (e também pelos demais poderes, no exercício
da função atÍpica de natureza legislativa) a presunção de serem constitucionais, de terem
sido engendradas em conformidade com o que prescreve a Carta Maior. Acaso não existis­
se essa presunção, não se poderia falar em imperatividade das normas jurídicas, caracterís­
tica necessária para impor a obediência delas a todos.

Ressalte-se que essa presunção é apenas relativa, isto é, admite prova em contrário, o
que autoriza que as normas (infraconstitucionais ou constitucionais derivadas) submetam­
-se ao controle de constitucionalidade, que tem como objetivo precípuo manter a higidez
do ordenamento jurídico e assegurar a supremacia da Carta constitucional.

78. ADI 1.344-ES, STF, Rei. Min. Moreira Alves, noticiada no Informativo n2 17, STF.
79. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 232.
80. Rep. 1.417-DF, Rei. Min. Moreira Alves: "A aplicação desse princípio sofre, porem, restrições, uma vez que, ao
declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF - em sua função de Corte constitucional - atua como
legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da
instituída pelo Poder Legislativo. por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a
Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o
princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que
e privativo do legislador positivo".

63
NATHALIA MASSON

5.4. Princípio da unidade da Constituição


Dotado de acentuada importância, o princípio da unidade da Constituição visa con­
ferir um caráter ordenado e sistematizado para as disposições constitucionais, permitindo
que o texto da Carta Maior seja compreendido como um todo unitário e harmônico,
desprovido de antinomias reais. Muito mais que um conjunto caótico de normas desco­
nectadas e esparsas, o texto constitucional é um agrupamento de preceitos integrados,
alinhavados pelo ideal de unidade.

O princípio em estudo ganha relevo quando estamos perante o texto constitucional


de uma sociedade democrática e plural (tal qual a nossa Carta republicana de 1988), cuja
redação final não se vê como produto de um estável e pacífico acordo, mas sim de pequenas
concessões e instáveis e frágeis consensos. Se a Constituição se forma a partir de diferences
ideologias e pretensões, potencializa-se a possibilidade conflitiva entre suas disposições
normativas, tornando viáveis as tensões e os confrontos entre as diversificadas (e, por vezes,
opostas) ideias consagradas. A solução é reconhecer um sentido global para a Constituição,
de modo que todos os diversos componentes do tecido social, enquanto intérpretes, se em­
penham na difícil, mas possível, tarefa de composição de interesses.

Em decorrência desse princípio interpretativo, pode-se afirmar que não há hierarquia


normativa, tampouco subordinação entre as normas constitucionais; eventuais conflitos
entre as normas originárias serão, pois, sanados por meio da tarefa hermenêutica. É nesse
sentido que no direito pátrio é inviável a declaração de inconstitucionalidade de uma nor­
ma constitucional originária em face de outra.

5.5. Princípio da força normativa


Idealizado por Konrad Hesse, preceitua ser função do intérprete sempre "valorizar as
soluções que possibilitem a atualização normativa, a eficácia e a permanência da Consci­
tuição"81. Descarte, deve o intérprete priorizar a interpretação que dê concrecude à norma­
tividade conscicucional, jamais negando-lhes eficácia.

Nesse contexto, Canocilho leciona que "deve dar-se primazia às soluções hermenêu­
ticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a
actualização normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência82".

5.6. Princípio do efeito integrador


Como a finalidade primordial da Constituição é ordenar a vida em sociedade, in­
tegrando-a a um Estado formalmente constituído, todas as suas normas devem ser in­
terpretadas de maneira a pre stig ia r a unidade política i nstaurada pelo documento cons­
titucional.

81. PAULO, Vicente. Direito constitucionol descomplicado. São Paulo: Método. 2011. p. 75.
82. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6! ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 229.

64
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Segundo Canotilho, "na resolução dos problemas jurídicos-conscirucionais, deve-se


dar primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e
o reforço da unidade polícica"83•
Descarte, quando da interpretação da Constituição, deve-se, necessariamente, buscar
a leitura que reforce o ideal de que a Consciruição é um agrupamento normativo único,
composto por normas conectadas, que devem ser lidas de maneira a reforçar e a reafirmar
a integração política e social engendrada pela Constituição.

5.7. Princípio da concordância prática ou harmonização


Tal qual o princípio da unidade consticucional, o da concordância prática também
visa solver eventuais desacertos entre as normas constirucionais. Enquanco o primeiro, no
entanto, é manejado em abstrato, envolvendo normas que dissociadas das ocorrências fáci­
cas já se põem em rota de colisão, o último acua perante conflitos específicos, que somente
se pronunciam diante de um caso concreto.
Pode-se mencionar, como exemplo, os direitos à liberdade de informação e à priva­
cidade que, abstratamente, não guardam ence si qualquer tensão visível. Perante casos
concretos, entretanto, é plausível supor que colidam quando, imaginemos, a não exibição
de uma reportagem (direito à privacidade) for confrontada com o direito à informação em
se exibir tal matéria jornalística. Para resolver a questão, faz-se necessário conciliá-los, a
fim de desvendar uma resposta normativa que impeça a negação de um em face do outro.
Nesse sencido, Inocêncio Coelho84 nos ensina que
o princípio da harmonização ou da concordância prárica consisce, essencialmence numa
recomendação para que o aplicador das normas conscicucionais, em se deparando com
siruaçóes de concorrência encre bens conscirucionalmence protegidos, adoce a solução
que otimize a realização de rodos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de
nenhum.

Forçoso será, pois, reconhecer que ambos são valores demasiado caros ao ordena­
mento e que ostentam idêntica importância e scarus normativo, de modo que a solução é
salvaguardar ambos, a partir de condicionamentos recíprocos. Sendo possível, o ideal é a
concordância prática, a redução proporcional de cada um deles que não ocasione o sacrifí­
cio de um em detrimento de outro.
Nos dizeres de Canocilho:
"Subjacence a esce princípio escá a ideia do igual valor dos bens conscicucionais (e não
uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação
aos oucros, e impõe o escabelecimenco de limices e condicionamenros recíprocos de for­
ma a conseguir uma harmonização ou concordância prácica enrre esces bens".M

83. CANOTILHO, José Joaqu im Gomes. Direito Constitucional. 6f ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 227.
84. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocênci o Mártires. Curso de Direito Canst1-
tucional. 51 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 174.
85. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6! ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 228.

65
NATHALIA MASSON

5.8. Princípio da máxima efetividade ou da eficiência {intervençío efetiva)


Ooutrinariamente aponta-se que a definição desse postulado é muiro semelhante a do
princípio anterior: o que os diferencia é a circunstância de o princípio da força normativa
se referir à Constituição globalmente considerada e o da máxima efetividade relacionar-se,
sobretudo, aos di reitos fundamentais.
O princípio da máxima efetividade (ou da eficiência) apresenta-se, pois, como um
apelo, para que seja realizada a interpretação dos direitos e garantias fundamentais de
modo a alcançar a maior efetividade possível, de maneira a otimizar a norma e dela extrair
rodo o seu potencial proterivo.

5.9. Princípio da conformidade funcional ou justeza


Sabe-se ser tarefa da Constituição fixar a estrutura política organizacional do Estado,
estabelecendo as atribuições dos Poderes. Manrer intacto o panorama de competências ral
qual engendrado pela Carta Maior é imprescindível à própria continuidade do projeto cons­
titucional.
É nesse contexto que o princípio da conformidade funcional ou justeza objetiva im­
pedir que os órgãos encarregados de realizar a interpretação constitucional cheguem a um
resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório funcional estabelecido pela
Constituição, sob pena de usurpação de competência.
Um exemplo que corriqueiramente é trazido à baila como expressão de mau uso do
princípio é a suposta mutação constitucional que atingiria a norma constante do art. 52,
X da CF/88, transformando a atribuição do Senado Federal - de suspender a execução da
lei declarada inconstitucional pelo STF, ampliando os efeitos da decisão de "inter partes"
para "erga omnes" - em competência do Supremo Tribunal Federal, restando ao Senado,
tão somente, a tarefa de conferir publicidade à decisão emanada da Corte.

6. ELEMENTOS DA CONSTITUIÇÃO
A inclinação contemporânea pela construção de documentos constitucionais amplos
e prolixos resulta em um texto que reúne normas que tratam das mais diversificadas maté­
rias e são possuidoras das mais distintas finalidades.
Como a Constituição deve ser compreendida na sua inteireza, enquanto um agrupa­
mento unitário, ordenado e sistematizado de normas, a dourrina86, levando em conta a es­
trutura normativa e o conteúdo das normas constitucionais, estruturou cinco grupos, que
traduzem as principais categorias das normas. Isso facilita, sobremaneira, a visualização da
Constituição enquanto um conjunto harmônico.

86. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28t ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p.
44-45.

66
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Parece-nos que a mais completa organização dos elementos formativos da Consti­


tuição é aquela apresentada pelo Professor José Afonso da Silva87, a seguir apresentada:

(1) elementos orgânicos: contemplam as normas que regulam a estrutura do Estado e dos
Poderes; se concentram, predominantemente, nos Títulos III (Da Organização do Estado), IV
(Da Organização dos Poderes e do Sistema de Governo), Capítulos II e III do Título V (Das
Forças Armadas e da Segurança Pública) e Título VI (Da Tributação e do Orçamento);

(2) elementos limitativos: estão presentes nas normas institutivas do rol de direi­
tos e garantias fundamentais, constantes do Título I I (Dos Direitos e Garantias Fun­
damentais, excetuando-se os Direitos Sociais, que fazem parte da próxima categoria);

(3) elementos sócio-ideológicos: são as normas que explicitam o compromisso social


das Constituições modernas com a proteção dos indivíduos e busca pela efetivação de um
bem estar social, como as do Capículo II do Título II (Direitos Sociais) e as dos Títulos VII
(Da Ordem Econômica e Financeira) e VIII (Da Ordem Social);

(4) elementos de estabilizas:ão constitucional: conjunto representado pela reunião


das normas que objetivam assegurar a solução de conflitos constitucionais, a defesa da
Constituição, do Estado e das instituições democráticas, como as encontradas nos ares.
34 a 36 (Da Intervenção), 59, l, 60 (processo de emendas à Constituição), 102, I, "a"
(ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade), 102 e
103 (consagradores da jurisdição constitucional) e no Título V (Da Defesa do Estado e das
instituições democráticas, especialmente o Capículo l, pois os Capítulos II e III, conforme
vimos, integram os elementos orgânicos);

(5) elementos formais de aplicabilidade: último grupo está representado pelas


normas que instituem regras de aplicação das normas constitucionais; pode-se dizer que
o preâmbulo é um exemplo, bem como normas constitucionais de caráter transitório
(presentes no ADCT) e, ainda, o § 1° do art. 5°, quando determina que "as normas
defin idoras dos d ireitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata".

Em síntese, os elementos podem ser assim organizados:

ELEMENTOS DA CONSTITUIÇÃO
ELEMENTOS DE ELEMENTOS
ELEMENTOS ELEMENTOS ELEMENTOS
ESTABILIZAÇÃO FORMAIS DE
ORGÂNICOS LIMITATIVOS SÓCIO-IDEOLÓGICOS
CONSTITUCIONAL APLICABILIDADE
Buscam a solução
São as normas que dos conflitos cons- Preveem regras de
Tratam da estrutura
instituem o rol de Visam o bem estar titucionais, a defesa aplicação para as
do Estado e dos
direitos e garantias social da Constituição, do normas constitu-
Poderes
fundamentais Estado e das institui- cio na is
ções democráticas

87. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucionol Positivo. 28! ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 44-45.

67
26 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

4. BREVE RESUMO DAS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL

4.1 . A Constituição d o I mpério ( 1 824)

A Constituição do I mpério do Brasi l foi elaborada por um Conselho de


Estado, criado com essa finalidade, depois da dissolução, por D. Pedro 1, da
assembleia constituinte que, antes, havia sido convocada. O texto constitu­
cional foi ou torgado por D. Pedro 1, em 25 de março de 1 824.
O conteúdo da Constituição de 1 824 foi fortemente influenciado pelo
Liberalismo clássico dos séc. XVIII e XIX, de cunho marcadamente indivi­
dualista, em voga na época de sua elaboração.
A orientação liberal mani festava-se claramente na enumeração expressa
de direitos individuais (chamados direitos de primeira geração ou dimensão,
tendo como núcleo o direito de liberdade em sua acepção mais ampla, visan­
do a resguardar, da atuação do Estado, a esfera individual) e na adoção da
separação de poderes. Quanto ao último aspecto, entretanto, impende anotar
que, além dos três poderes propugnados por Montesquieu - Legislativo,
Executivo e Judiciário -, foi acrescentado um poder denominado Moderador,
concentrado nas mãos do I mperador.
Quanto à existência desse quarto poder, propugnado por Benjamin
Constant, observa Celso Bastos que, embora a Constituição, na época, se
pretendesse democrática, o Poder M oderador, "se uti lizado por um monarca
com inc linações autoritárias, levaria a um poder quase absoluto". Essa ca­
racterística de nossa Constituição imperial consubstancia um confl ito com a
noção de soberania popular, com a ideia de titu laridade do poder pelo povo,
tão cara ao Liberalismo inspirador dos primeiros Estados constitucionais.
Outra característica peculiar de nossa Carta de 1 824, uniformemente apon­
tada pelos publicistas pátrios, é sua classificação, quanto aos procedimentos de
modificação de seu texto, como Constituição scmirrígida . Com efeito, o seu
art. 1 78 só exigia um processo especial para modificação da parte do seu texto
que o constituinte entendeu conter disposições substancialmente constitucionais.
A modificação de todas as outras disposições, só formalmente constitucionais,
podia se dar mediante processo legislativo simples, igual ao de elaboração das
demais leis.
A Constituição de 1 824 deu ao Brasil a forma de Estado u n i tário,
dividido em províncias, com forte centralização político-administrativa. Em
razão dessa característica, evitou a fragmentação de nosso território. A forma
de Governo era a monarq u i a hereditária constitucional. As eleições eram
indiretas e censitárias. O Poder Legislativo submetia-se ao regime represen­
tativo, eletivo e temporário, na Câmara dos Deputados, mas, no Senado, os
integrantes eram membros vitalícios, nomeados pelo Imperador.
Cap. 1 DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO
• 27

Foi o texto constitucional de maior longevidade em nossa h istória. Não


obstante isso, foi uma Constituição que se poderia classificar de nominativa,
porque não conseguiu fazer com que a s práticas constitucionais adotadas na
realidade correspondessem às previstas em seu texto.

4.2. A primeira Constituição Republicana ( 1 89 1 )


Em 1 5 de novembro de 1 889, com a edição do Decreto 1 , de 1 5 . l 1 . 1 889,
foi declarada a República. Nos tennos desse decreto, as províncias, agora
como estados integrantes de uma federação, formaram os Estados Unidos
do Brasi l . Foi instaurado um governo provisório, que, em 3 de dezembro,
nomeou uma comissão para e laborar um projeto de Constituição, o qual, em
22.06. 1 890, foi publicado como "Constituição aprovada pelo Executivo". Em
1 5 de setembro de 1 890 foi elei ta a Assembleia-Geral Constituinte, que se
instalou em 1 5 de novembro, e, em 24 de fevereiro de 1 89 1 , p ro m u lgou
a Constitui ção da Repúbl ica dos Estados Unidos do Brasil (democrá tica),
com poucas modificações em relação ao projeto que fora aprovado pelo
Executivo (cujo principal mentor, diga-se, fo i o grande Rui Barbosa).
A Constituição de 1 89 1 institu i , de modo definitivo, a forma federativa
de Estado e a forma republ i cana de governo (o Decreto 1 / 1 8 89 o fi zera em
caráter meramente provi sório). A autonomia dos estados é assegurada, sendo
a e les conferida a denominada "competência remanescente", con forme ins­
piração do modelo norte-americano de federação. Foi estabelecida, também,
a autonomia municipal. O regime é o representativo, com eleições d i retas e
mandatos por prazo certo nos Poderes Executivo e Legis lativo. O sistema
de governo adotado fo i o presidencialista, de inspiração norte-americana
(de cuj as i nstituições Rui Barbosa era um profundo estudioso).
É abol ido o Poder Moderador, voltando-se à fórmula tradicional de se­
paração entre os poderes, propugnada por Montesquieu.
A dec laração de direitos individuais foi fortalecida, com acrésci mo de
importantes garantias, como o habeas corpus.
A Constituição adotou a forma rígida, considerando constitucionais to­
das as suas disposições, as quais somente poderiam ser alteradas mediante
procedi mento especial, mais laborioso do que o exigido para a criação e
modificação do direito ord inário.
Pode-se dizer que foi uma Constituição nominativa, pois suas disposições
não encontraram eco na realidade social, vale dizer, seus comandos não foram
efetivamente cumpridos. Nas palavras do Prof. José Afonso da Silva, "o coro­
nelismo fora o poder real e efetivo, a despeito das normas constitucionais".
Em 1 926, a Constituição sofreu uma profunda reforma, de cunho marca­
damente centralizador e autoritário, que acabou por precipitar a sua derrocada,
ocorrida com a Revolução de 1 930.
28 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

4.3. A Constitu ição de 1 934

A Constituição de 1 934, d e mo crática, decorrente do rompimento da


ordem j urídica ocasionado pela Revolução de 1 930, a qual pôs fi m à era
dos coronéis, à denomi nada Primeira República, costuma ser apontada pela
doutrina como a primeira a preocupar-se em enumerar direitos fundamentais
sociais, ditos direitos de segunda geração ou dimensão. Esses direitos, quase
todos traduzidos em normas constitucionais programáticas, tiveram como
inspiração a Constituição de Weimar, da Alemanha de 1 9 1 9. Com isso, a
Constituição de 1 93 4 é apontada como marco na transição de um regime de
democracia l iberal, de cunho individualista, para a chamada democracia social,
preocupada em assegurar, não apenas uma igualdade formal, mas também a
igualdade material entre os indivíduos (condições de existência compatíveis
com a dignidade da pessoa humana).
É nela, também, que se observa o início do processo, contínuo desde
então, de ampliação do rol de matérias tratadas no texto constitucional, fe­
nômeno descrito corno constitucionalização dos diversos ramos do Direito,
inclusive daqueles antes disciplinados somente no âmbito das normas infra­
constitucionais, como o Direito Civil e o Direito Admin istrativo. Por essa
razão, a Constituição de 1 934 apresentava mais do que o dobro de artigos
que a de 1 89 1 .
A estrutura fundamental do Estado não sofreu mudanças em comparação
com a Constituição de 1 89 1 . Manteve-se a república, a federação, a divisão de
poderes, o presidencialismo e o regime representativo (José Afonso da Silva).
Como teve curtíssima sobrevida, pouco relevantes foram seus reflexos
práticos, uma vez que não houve tempo para que a i mplementação de suas
normas influenciasse a realidade social, se é que isso viria a acontecer, caso
tempo houvesse.

4.4. A Constituição do Estad o Novo ( 1 937)

Em 1 O de novembro de 1 93 7, Getúlio Vargas, no poder, dissolve a Câ­


mara e o Senado, revoga a Constituição de 1 934 e outorga a Carta de 1 93 7,
dando início a o período ditatorial conhecido como "Estado Novo".
Como se vê, foi uma Carta o utorgada, fruto de um golpe de Estado.
Era Carta de inspiração fascista, de caráter marcadamente autoritário e com
forte concentração de poderes nas mãos do Presidente da Repúbl ica.
A Constituição de 1 937, frequentemente chamada "Constituição Polaca"
(alusão à Constituição polonesa de 1 93 5 , que a teria inspirado), embora
contivesse um rol de pretensos direitos fundamentais, não contemplava o
princípio da legalidade, nem o da irretroatividade das leis. Não previ a o
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 29

mandado de segurança. Possibili tava a pena de morte para crimes políticos


e previa a censura prévia da imprensa e demais formas de comunicação e
entretenimento, dentre outras disposições restritivas inteiramente incompatí­
veis com um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
N as palavras d e Celso R i be i ro Bastos, "trata-se, p o rtanto, de docu­
mento destinado exclusivamente a institucional izar u m reg ime autori­
tário. Não havia a d i v i são de poderes, embora existissem o Executivo,
o Legislativo e o Judiciário, visto que estes últimos sofriam n ítidos
ames q u i nhamentos".
Reforçando o sobred ito, José A fonso da S ilva remata:

A Carta de 1 93 7 não teve, porém, apl icação regular. M u i tos


. de seus disposi ti vos permaneceram letra morta. Houve ditadu­
ra pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo
concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava
por via de decretos- leis que ele próprio depois apl icava, como
órgão do Executivo.

É interessante registrar que a Constituição de 1 93 7 previa a necessidade


de ser submetida a um plebiscito, mas este nunca se real izou. Segundo o Prof.
Celso Ribeiro Bastos, por esse motivo, "em termos jurídicos, a Constituição
jamais ganhou vigência".

4.5. A Constitu i ção de 1 946

Com o término da Segunda Guerra M undial, e o fim do Estado N ovo,


ocorre a redemocratização do Brasil. Depois de grande turbulência no quadro
pol ítico interno ocorre a queda de Getúl io Vargas e, finalmente, a instalação
de uma Assembleia Consti tuinte, em 2 de fevereiro de 1 946.
Em 1 8 de setembro de 1 946 foi promulgada a Constituição da Repú­
blica dos Estados Unidos do Brasil (democrá tica), elaborada com base nas
Constituições de 1 89 1 e de 1 934. Segundo o Prof. José Afonso da S i lva,
embora essa "volta ao passado" tenha sido um erro, e a Constituição de
1 946 não tenha conseguido realizar-se plenamente, ela cumpriu sua tarefa
de redemocratização e proporcionou condições para o desenvolvi mento do
País, durante as duas décadas de sua v igência.
A Constituição de 1 946 adota a federação como forma de Estado - com
autonomia política para os estados e, acentuadamente, para os municípios -,
estabelece a repúbl ica como forma de governo, o sistema presidencialista, e o
regime democrático representativo, com eleições diretas. Assegura a divisão
e i ndependência dos poderes.
30 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

O rol de direitos fundamentais retoma o que existia na Constituição de


1 934, com alguns importantes acréscimos, como o do princípio da inafas­
tabilidade de jurisdição, e supressões relevantes, como a exclusão da pena
de morte, do banimento e do confisco. Os direitos dos trabalhadores, mui­
tos surgidos durante o Estado Novo, são constitucionalizados, com alguns
acréscimos, como o do direito de greve. Trata também, pela primeira vez,
dos partidos políticos, instituindo o princípio da l iberdade de criação e or­
ganização partidárias.
Em 1 96 1 , uma emenda constitucional estabelece o parlamentarismo como
sistema de governo, visando a reduzir os poderes do Presidente da Repúbl ica,
João Goulart. O parlamentarismo acabou sendo rejeitado por um plebiscito,
com o que se retomou ao presidencialismo, em 1 963, fato que precipitou o
golpe mil itar de 1 964, inaugurando mais um período de ditadura em nossa
história constitucional .

4.6. A Constituição de 1 967

Depois da vitória do golpe militar de 1 964, outorgou-se, em 24 de


janeiro de 1 967, uma nova Constituição, fortemente inspirada na Carta de
1 93 7 (antidemocrática).
O texto da Constituição de 1 967 mostra grande preocupação com a "segu­
rança nacional", ostentando tendência de centralização político-adm inistrativa
na União e de ampliação dos poderes do Presidente da Repúbl ica.
Apresentava rol de direitos fundamentais, com redução dos direitos indi­
viduais, mas com maior definição dos direitos dos trabalhadores. Limitou o
direito de propriedade, possibilitando a desapropriação para refom1a agrária
com indenização em títulos públ icos.
A Constituição de 1 967 (ou torgada) teve curtíssima duração, porque,
em 1 969, foi editada a EC 1 , de 1 7. 1 0. 1 969, com entrada em vigor em
30. 1 0. 1 969.

4.7. A Constitu ição de 1 969 (Emenda 1 à Constitu ição de 1 967)

A EC 1 / 1 969, embora formal mente seja uma emenda à Constih1i ção


de 1 967, é considerada por muitos constitucionalistas verdadeiramente uma
nova Constituição o u to rgada . Nas palavras do Prof. José Afonso da Si lva,
"a emenda só serviu como mecanismo de outorga" (apesar de ter sido um
texto e laborado e imposto pelos ministros militares, que então estavam no
poder, pretendeu-se, na época, estar promulgando uma emenda à Constituição,
e não outorgando uma nova Constituição).
Cap. 1 DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO
• 31

A Constituição de 1 969 denominou a si mesma "Constituição da Re­


pública Federativa do B rasil" (a de 1 967 era, simplesmente, "Constituição
do Brasil").
Em linhas gerais, embora a Constituição de 1 969 tivesse pretendido man­
ter formalmente nossa estrutura jurídica como a de um Estado Democrático
de Direito, os poderes especiais atribuídos ao Presidente da República e as
hipóteses de suspensão de direitos individuais tornavam letra morta essa
expressão.
A EC 1 / 1 969 aperfeiçoou, porém, algumas instituições, como o processo
de elaboração da lei orçamentária, a fiscalização financeira e orçamentária dos
municípios, modificou o sistema tributário, previu a criação do contencioso
administrativo tributário, vedou a reeleição para o Poder Executivo etc.
A Constituição de 1 969 sofreu diversas emendas, até que, com a EC 26,
de 27 . 1 1 . 1 985, foi convocada a Assembleia Nacional Constituinte, de cuj os
trabalhos resultou a Constituição de 1 988, hoje vigente.6

4.8. A Constituição d e 1 988

Com o fim dos governos militares e a redemocratização do País,7 mostrou­


-se evi dente a necessidade de dotar o País de uma nova Constituição. José
Sarney, o primeiro presidente da fase iniciada com o ocaso do ciclo militar,
denominada "Nova República", encaminhou ao Congresso Nacional a proposta
de emenda à Constituição que resultou na EC 26, de 27 de novembro de
1 985 . Essa emenda, conforme acima apontado, convocava uma Assembleia
Nacional Constituinte, composta, na verdade, pelos próprios deputados fede­
rais e senadores de então. A instalação da Assembleia Nacional Constituinte
ocorreu em 1 .0 de fevereiro de 1 987 e os seus trabalhos foram concluídos
em 5 de outubro de 1 988, com a promulgação da Constituição atual.
Embora boa parte cio trabalho de nosso constituinte originário de 1 98 8
tenha sido desfigurada pela enorme quantidade d e emendas que a Consti-

' O Prof. José Afonso da Silva ensina que a EC 26/1 985 não é tecnicamente uma emenda,
mas sim um ato polltico, uma vez que não tem a finalidade de manter a Constituição
emendada, e sim de destru i-la, possibilitando sua substituição por uma nova.
7
Talvez não se possa falar, no primeiro momento, em uma efetiva redemocratização, porque
a eleição do primeiro Presidente da República civil deu-se por sufrágio indireto, a despei­
to da enorme pressão popular consubstanciada no movimento conhecido como "diretas
já". Nas eleições indiretas de 1 985, que marcam o fim do perlodo de ditadura militar, foi
vencedor Tancredo Neves, que, no entanto, veio a morrer antes da posse. razão pela
qual foi empossado o seu vice, José Sarney, em cujo governo realmente se consolidou a
redemocratização. As primeiras eleições diretas para Presidente da República, depois do
golpe militar de 1 964, somente ocorreram em 1 989, tendo como vencedor Fernando Collor
de Mello, que sucedeu José Sarney na Presidência da República.
32 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

tuição atual sofreu - merecendo especial ênfase a significativa mudança de


orientação no que respeita à ordem econômica -, pode-se, em uma grande
síntese, afirmar que a Constituição de 1 988 pretendeu dar ao Brasi l a feição
de uma social-democracia, de criar um verdadeiro Estado Democrático-Social
de Direito, com a previsão de uma imensa quantidade de obrigações para
o Estado, traduzidas em prestações positivas, passíveis, em tese, de serem
exigidas pela popu lação em geral, muitas como verdadeiros direitos subjeti­
vos. Essa a razão da Carta de 1 98 8 ter recebido o epíteto de "Constituição
Cidadã".
Consoante acentua o Prof. José Afonso da Silva (referindo-se ao texto
originário da Constituição de 1 988):

É um texto moderno, com inovações de relevante importância


para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. Bem exa­
minada, a Constituição Federal, de 1 988, constitui, hoj e, um
documento de grande importância para o constitucionalismo
em geral.

Ao lado da ampliação dos d ireitos fundamentais - sobretudo das garantias


e remédios constitucionais (enfática vedação à censura prévia, surgimento do
habeas data, do mandado de inj unção, do mandado de segurança coletivo,
ampliação do obj eto da ação popular etc.), bem como dos direitos sociais
e direitos de terceira geração ou dimensão (como o direito a um meio am­
biente equ i librado) - é mister mencionar o fortalecimento das instituições
democráticas, dentre elas o M i nistério Público.
Tomou-se mais abrangente, também, o controle de constitucionalidade,
aumentando a importância do controle abstrato, com o surgimento de novas
ações, como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e a arguição
de descumprimento de preceito fundamental, e significativo alargamento da
legitimação ativa, que se tornou muito mais democrática com a quebra do
monopól io do Procurador-Geral da República, antes existente.
O Sistema Tributário Nacional foi em larga medida redesenhado, for­
talecendo-se as receitas dos municípios e aperfeiçoando-se as garantias dos
contribuintes.
Houve preocupação em trazer para o texto constitucional detalhadas
normas acerca da organização e funcionamento da Administração Pública
e dos agentes públicos, observando-se um cuidado especial com a proteção
j urídica da moralidade administrativa e da probidade.
A seguridade social foi significativamente estendida quanto a suas ati­
v idade e serviços, e quanto aos seus benefic iários, sendo essa, sem dúvida,
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 33

uma das maiores fontes do grande aumento da necessidade de obtenção de


recursos pelo Estado.
Foram estabelecidas normas abrangentes de proteção à i n füncia, aos
deficientes, aos índios, ao meio ambiente etc.
Enfim, redesenhou-se amplamente o Estado, em sua estrutura e em
sua atuação como Estado-poder - com a extinção dos Territórios Federais,
a maior autonomia dos municípios, o rígido regramento da Administração
Pública, o fortalecimento do Poder Judiciário e do Legislati vo, inclusive em
sua atividade de fiscalização do Executivo -, e avigorcu-se sobremaneira o
Estado-comun idade, mediante o alargamento dos direitos fundamentais de
todas as d imensões e o robustecimento dos mecanismos de controle, populares
e institucionais, do Poder Público.

5. �
CLASSIFICA ÃO E ESTRUTURA D� CONSTITUIÇÃO ,FEDERAL
DE 1988 · .
. . .
'

A atual Constituição da Repúbl ica Federativa do Bras il, promulgada em


5 de outubro de 1 988, é classificada como escrita cod:ficada, democrática,
dogmática eclética, rígida, formal, analítica, dirigente, normativa, principio­
lógica, social e expansiva.
De conteúdo extenso, prolixo e demasiadamente d�talhado, compõe-se
de mais de trezentos artigos: duzentos e cinquenta integrantes do corpo
permanente da Constituição e os demais inseridos no Ato das D isposições
Constitucionais Transitórias (ADCT).
A Carta vigente é composta de um preâmbulo, uma parte dogmática,
integrada por nove títulos, e um rol de dispositi vos de cunho transitório,
reunidos no A to das Disposições Constitucionais Transitórias ( ADCT).
Apresentamos, a seguir, considerações sumárias acerca das normas que
compõem cada uma dessas três divisões da Constituição Federal de 1 988,
c o m destaque para o exame da relevância j urídica do preâmbulo, bem como
das peculiaridades das normas do ADCT.

5.1 . Preâ mbulo

A Constituição Federal de 1 98 8 apresenta o seguinte preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia


Nacional Constituinte para instituir um Estado D e mocrát i co, des
-
34 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrn
i o

tinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,


a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça corno valores supremos de urna sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na hannonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional , com
a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a pro­
teção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇ ÃO DA REPÚ B LICA
FEDERATIVA DO BRASIL.

Para o constitucionalista Jorge Mi randa, o preâmbulo const1tm uma


"proclamação mais ou menos solene, mais ou menos significante, anteposta
ao articulado constitucional, e não é componente necessário de qualquer
constituição, mas tão somente um elemento natural de constituições feitas em
momentos de ruptura histórica ou de grande transformação político-social".
Muito se discute a respeito da relevância j urídica do preâmbulo de uma
Constituição, .especialmente quanto à sua eficácia j urídica e � possibilidade
de uma lei ser declarada inconstitucional por contrariar o seu texto.
A matéria não é pacífica na doutrina. Jorge Miranda ensina que há três
posições doutrinárias sobre o tema: (a) a tese da irrelevância j urídica, segun­
qo a qual o preâmbulo não se situa no domínio do Direito, mas sim no da
política; (b) a tese da plena eficácia, que reconhece ao preâmbulo a mesma
eficácia jurídica de quaisquer outras disposições constitucionais; e ( c) a tese
da relevância j urídica indireta, segundo a qual o preâmbulo desempenha um ·

papel orientador na identificação das características da Constituição, mas não


se confunde com suas normas.
No Brasil, a questão foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no
j ulgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.076-5, relator M i nistro
Carlos Velloso, em que se discutia a constitucionalidade do preâmbulo da
Constituição do Estado do Acre, pelo fato de haver sido omitida a referência à
proteção de Deus, presente no preâmbulo da Constituição Federal de 1 988.
O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que o preâmbulo
da Constituição Federal de 1 98 8 não constitui norma central, e que a invo­
cação da proteção de Deus não se trata de norma de reprodução obrigatória
na Constituição Estadual, porque não possui força normativa.
Para o Tribunal, o preâmbulo não se situa no âmbito do Direito, mas no
domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte. Não possui
o preâmbulo, portanto, relevância j urídica, não constitui norma central da
Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do estado-membro.
Em outra ação (Mandado de Segurança 24.645/DF), na qual parlamen­
tares requeriam a suspensão da tramitação da proposta que veio a resultar
na Emenda Constitucional 4 1 /2003 ( Reforma da Previdência), por ofensa ao
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 35

texto do preâmbulo da Constituição Federal de 1 988, o M i nistro Celso de


Mello negou a segurança, deixando assente que o conteúdo do preâmbulo não
i mpõe qualquer l i mi tação de ordem material ao poder reformador outorgado
ao Congresso Nacional.
Em síntese, podemos concluir que o preâmbulo da Constituição Fede­
ral de 1 98 8 : (a) não se situa no âmbito do D i reito Constitucional; (b) não
tem força normativa; (c) não é norma de observância obrigatória pelos
estados-membros, D istrito Federal e muni cí pios; (d) não serve de parâme­
tro para a declaração da inconstitucionalidade das leis; (e) não constitui
limitação à atuação do poder constituinte derivado, ao modificar o texto
constitucional.
Sem embargo dessas conclusões, a doutrina pátria costuma reconhe­
cer ao preâmbulo da Constituição Federal de 1 988 a função de diretriz
interpretativa do texto constitucional, por aux i liar na identificação dos
princípios e valores primordiais que orientaram o constituinte originário
na sua elaboração.

5.2. Parte dogmática da Constitu ição de 1 988

A parte dogmática da Constituição de 1 988 constitui o seu corpo prin­


ci pal , ou permanente (esta última expressão, usada em contraposição à parte
que contém as disposições transitórias, o ADCT).
Estruturalmente, a parte dogmática da Constituição de 1 98 8 divide­
-se em nove títulos, a saber: (1) Dos Princípios Fundamentais; ( I I ) Dos
Direitos e Garantias Fundamentais; ( I l i ) Da Organização do Estado; ( I V)
Da Organização dos Poderes; (V ) Da Defesa do Estado e Das I nstitui­
ções Democráticas; (V I ) Da Tributação e do Orçamento (Vil) Da Ordem
Econômica e Financeira; (V I I I ) Da Ordem S ocial; (IX) Das Disposições
Consti tucionais Gerais.
O corpo permanente da Constituição congrega todas as normas essenciais
à organização e ao funcionamento do Estado brasileiro, como as relativas
aos direitos fundamentais, à estrutura do Estado federal e às competências
de cada ente político, à organização dos poderes e da Administração Pública,
à repartição de rendas, aos princípios fundamentais da ordem econômica e
da ordem social etc.
A presenta, também, i númeras nonnas programáticas, mormente no que
concerne a direitos sociais, porquanto se trata de uma Constituição dirigente.
Deve-se lembrar, ainda, que, por ser uma Constituição prolixa, o seu
corpo principal abriga, também, inúmeras regras tidas por apenas formalmente
constitucionais, que nada têm a ver com a organização básica do Estado.
36 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

5.3. Ato das Disposições Constitucionais Tran sitórias (ADCT)

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) reúne dois


grupos distintos de preceitos:

a) os que contêm regras necessárias para assegurar uma harmoniosa transição


do regime constitucional anterior (Constituição de 1 969) para o novo regime
constitucional (Constituição de 1 988);
b) os que estabelecem regras que, embora não sejam relacionadas à transição
de regime constitucional, têm caráter meramente transitório, têm sua eficácia
jurídica exaurida tão logo ocona a situação nelas prevista.

Exemplo da primeira espécie de d is positivo é o art. 1 6 do ADCT,


que fixou competência temporária para o Presidente d a República, com
a aprovação do Senado Federa l , para ind icar o Governador e o Vice­
-Governador do Di strito Federal, até que nele fosse realizada a p rimeira
e leição d i reta.
Um bom exemplo da segunda categoria de disposições é o art. 3.º do
A DCT, que estabeleceu as regras para a realização da revisão constitucional
prevista para ocorrer c inco anos após a promulgação da Constituição de
1 988. Uma vez cumprido esse comando, isto é, realizado o procedimento de
revisão constitucional (em 1 993/1 994 ) o dispositivo perdeu a eficácia, por
,

estar exaurido o seu obj eto.


Em ambos os casos, a característica própria de uma norma integrante
do A DCT é a existência de eficácia j urídica somente até o momento em que
ocorre a situação nela prevista; ocorrida a situação, a norma transitória perde
a sua eficácia j urídica, por exaurimento de seu objeto.
É importante ressaltar que, embora de natureza transitória, os dispo­
sitivos do ADCT são formalmente constitucionais, ou seja, têm o mesmo
status j urídico e idêntica h ierarquia à das demais normas da Constituição.
Por essa razão, sua observância por todas as i nstâncias de poder é obriga­
tória, o que enseja, por exemplo, a declaração de i nconstitucionalidade de
quaisquer normas infraconstitucionais com eles i ncompatíveis. Outrossim, a
modificação de qualquer dispositivo do A DCT somente poderá ser feita por
meio da aprovação de emendas à Constituição, com estrita observância do
art. 60 da Constituição Federal.
Quanto ao último ponto, cabe mencionar que o A DCT tem sido objeto de
reiteradas modificações e acrésci mos mediante emendas à Constituição. Essas
emendas, em sua maioria, introduziram novas matérias de caráter transitório,
como é o caso da E C 68/20 l l, que prorrogou a denominada Desvinculação
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 37

de Receita da U nião ( DRU), a vigorar de ! ." de j aneiro de 20 1 2 até 3 1 de


dezembro de 20 1 5 .8
Ademais, importantes garantias constitucionais continuam provisoriamente
disciplinadas por dispositivos do A DCT, em face da omissão do legislador ordi­
nário quanto ao seu dever de regulamentá-las. É exemplo a proteção à relação
de emprego diante da despedida arbitrária ou sem justa causa, que continua
disciplinada pelo art. 1 O, inciso 1, do A DCT, por não haver sido editada a lei
complementar reclamada pelo art. 7.0, inciso 1, da Constituição Federal.
Concluindo essas breves noções sobre a estrutura tópica da Constituição
de 1 988, consideramos oportuno ressaltar a constatação da existência de duas
categorias de disposições que, embora i ntegrantes de seu texto, são despro­
vidas de força normativa: (a) o preâmbulo constitucional; e (b) as normas
integrantes do ADCT, depois de ocorrida a situação nelas prevista.

5 .4. "Elementos da Constituição"

Faremos menção, finalmente, aos chamados "elementos da Constituição".


Vimos que a tendência moderna é de e laboração de Constituições anal íticas
ou prolixas, repletas de normas pormenorizadas, sobre as mais diferentes
matérias. Esse inchamento das Constituições fez com que a doutrina esta­
belecesse uma distinção entre tais normas constitucionais, dividindo-as em
diferentes categorias, levando-se em conta a sua estrutura normativa. Apre­
sentaremos, a seguir, sinteticamente, a classificação elaborada pelo Professor
José A fonso da Silva, que divide os elementos da Constituição Federal de
1 98 8 em c inco categorias, a saber:

a) elementos orgânicos que se contêm nas norn1as que regulam a estrutura


-

do Estado e do poder, que se concentram, predominantemente, nos Títulos


I I I (Da Organização do Estado), IV (Da Organização dos Poderes e do
Sistema de Governo), Capítulos li e I I I do Título V (Das Forças Armadas
e da Segurança Pública) e VI ( Da Tributação e do Orçamento);
b) elementos limitativos que se man i festam nas normas que consagram o
-

elenco dos direitos e garantias fundamentais (Título li da Constituição -


Dos Direitos e Garantias Fundamentais, excetuando-se os D i re i tos Sociais,
que entram na categoria seguinte);
c) elementos socioideológicos consubstanciados nas normas que revelam o
-

caráter de compromisso das Constituições modernas entre o Estado indi­


vidualista e o Estado social, intervencionista, como as do Capítulo li do

• Com essa prorrogação da DRU, 20% (vinte por cento) da arrecadação d e impostos, contri­
buições sociais e de intervenção no domínio econômico da União estarão desvinculados de
qualquer órgão, fundo ou despesa até 3 1 d e dezembro de 201 5, podendo ser livremente
alocados pelo governo federal.
38 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo 6 Marcelo Alexandrino

Título II (Direitos Sociais) e as dos Títulos V I I ( Da Ordem Econômica e


Financeira) e V I I I ( Da Ordem Social);
d) elementos de estabilização constitucional - consagrados nas nonnas
destinadas a assegurar a solução de conflitos con >titucionais, a defesa da
Constituição, do Estado e das instituições democráticas. como os encon­
trados nos arts. 34 a 3 6 (Da Intervenção), 59, 1, 60 ( p ro ce sso de emendas
à Constituição), 1 02, !, "a" (ação direta de i nconstituci onal idade e ação
declaratória de constitucionalidade), 1 02 e 1 03 (j urisd ição constitucional) e
no Título V (Da Defesa do Estado e das I nstituições Democráticas, espe­
cialmente o Capítulo 1 , pois os Capítulos l i e I l i , conforme v i mos, integram
os elementos orgânicos);
e) elementos formais de aplicabilidade - são os que se acham consubs­
tanciados nas nonm.s que estabelecem regras de aplicação das nonnas
constitucionais, assim, o preâmbulo, o dispositivo que contém as cláusulas
de promulgação, as disposições constitucionais trans i tórias e o § 1 .0 do
art. 5 .0, que determir.a que as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata.

6. ENTRADA EM VIGOR DE UMA NOVA CONSTITUIÇÃO

As normas de uma nov:i Constituição projetam-se sobre todo o ordena­


mento jurídico, revogando aquilo que com elas seja incompatível, conferindo
novo fundamento de validade às disposições infraconstitucionais e reorientando
a atuação de todas as i nstâncias de poder, bem como as relações entre os
i ndivíduos ou grupos sociais e o Estado.
A problemática da apl icação de normas constitucionais novas diz res­
peito, especialmente, à aferição da sua relação com o texto constitucional
pretérito, com as normas infraconstitucionais anteriores e à sua eficácia sobre
as relações jurídicas baseadas em fatos passados.
Neste tópico, serão analisadas as principais situações atinentes à entrada
em vigor de uma nova Constituição. Passemos a elas.

6.1 . Vacatio Constitutionis

As Constituições nonna:mente contêm cláusula especial que determina o


momento em que seu texto começará a vigorar. Não havendo essa cláusula
expressa, entende-se que a vigência é imediata, a partii da sua promulgação.
Caso a Constituição contenha cláusula expressa que difira a entrada em
vigor de todo o seu texto. surge a chamada vacatio constitutionis (vacância da
Constituição), que corresponde ao interregno entre a publicação do ato de sua
promulgação e a data estabelecida para a entrada em vigor de seus dispositivos.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 39

Nesse período, embora já promulgada, a nova Constituição não tem vigência,


e a ordem jurídica continua a ser regida pela Constituição que já existia.
A Constituição Federal de 1 98 8 não adotou a vacatio constitutionis,
tampouco trouxe c láusula específica sobre a vigência de seu texto. No en­
tanto, considerando que vários de seus dispositivos, especialmente do ADCT,
estabelecem prazos a serem contados a partir de sua promulgação, conclui-se
que foi na data desta que ela entrou em vigor.
Portanto, a Constituição de 1 98 8 entrou em vigor na data de publicação
do ato de sua promulgação, sem prej uízo da existência de dispositivos para
os quais foi expressamente estipulada uma outra data de início de vigência. É
exemplo a cláusula do caput do art. 34 do A DCT, por força da qual a maior
parte do novo sistema tributário nacional somente entrou em vigor a partir do
primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição.

6.2. Retroatividade mínima

A Constituição é obra do poder constituinte ongmano, que tem como


característica o fato de ser i l imitado ou autônomo. Signi fica dizer, em poucas
palavras, que não está o legislador constituinte originário obrigado a observar
nenhuma nomm jurídica do ordenamento constitucional anterior, tampouco a
respeitar o chamado direito adquirido.
Nada i mpede, dessa forma, que o novo texto constitucional tenha aplicação
retroativa, regulando situações pretéritas, mesmo que em prej uízo de direito
adquirido ou de ato jurídico perfeito. No B rasil, é fi rme o entendimento de
que, havendo d isposição expressa na nova Constituição, pode ocorrer sua
apl icação retroativa, descabendo alegação de existência de eventuais direitos
adquiridos.
É importante questionar, contudo, qual será a eficácia no tempo do novo
texto constitucional quando ele nada estabelece acerca de sua aplicação.
Segundo a j urisprudência do S upremo Tribunal Federal, as novas nonnas
constitucionais, salvo disposição expressa em contrário, se aplicam de ime­
diato, alcançando, sem limitações, os efeitos futuros de fatos passados.9
Essa eficácia especial das normas constitucionais recebe a denominação
de retroatividade m ín ima.
Assim, no Brasil, não havendo norma expressa determinando a retroati­
vidade - caso houvesse, esta sempre seria possível -, o texto constitucional
alcançará apenas os efeitos futuros de negócios celebrados no passado (re­
troatividade mín ima).


RE 242.740/GO. rei. Min. Moreira Alves, 20.03.200 1 .
40 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO · Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

Para melhor compreensão dessa matéria, é mister fixar algumas noções


fundamentais sobre os possíveis graus de retroatividade das normas j urídicas.
Classificam-se as espécies de retroatividade, quanto à graduação por i ntensi­
dade, em três níveis: retroatividade máxima, média e míni ma.
A retroatividade é m ínima quando a lei nova alcança as prestações
futuras (vencíveis a partir da sua entrada em vigor) de negócios celebrados
no passado.
A retroatividade é média quando a norma nova alcança as prestações
pendentes (vencidas e ainda não adimplidas) de negócios celebrados no
passado.
A retroatividade é máxima quando a norma nova alcança fatos já con­
sumados no passado, i nclusive aqueles atingidos pela coisa julgada.
Paralelamente. a esses graus de retroatividade, temos, ainda, a irretroati­
que ocorre quando a lei nova só alcança novos negócios, celebrados
v i d a d e,
após a sua entrada em v igor.
Pois bem, como acima dito, é fi rme a j urisprudência do STF de que,
no Brasi l, os dispositivos de uma Constituição nova têm vigência imediata,
alcançando os e feitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima), salvo
disposição constitucional expressa em contrário.
A fim de i lustrar a aplicação desse entendimento do STF, tome-se o dis­
posto no art. 7.0, i nciso IV, da Constituição Federal, que veda a vinculação
do salário mínimo para qualqµer fim.
Esse preceito impede, por exemplo, que salários e proventos de aposen­
tadoria ou pensão sejam vinculados ao salário mínimo - seria algo como
estabelecer que um aposentado fizesse jus a um provento de, por exemplo,
"seis salários mínimos" -, o que implicaria aumento automático do salário
ou provento, sempre que houvesse majoração do valor do salário mínimo.
Pois bem, com base no entendimento de que as normas constitucionais
são dotadas de retroatividade mínima, o STF fi xou a seguinte orientação a
respeito da aplicabil idade do disposto no art. 7 .º, inciso I V, da Constituição
às situações constituídas em data anterior à sua promulgação: 'º

A vedação da vinculação do salário mínimo, constante do inciso


I V do art. 7.0 da Carta Federal, que v isa a impedir a utilização
do referido parâmetro como fator de indexação para obrigações,
apl ica-se imed iatamente sobre as prestações futuras de pensões
que anteriormente foram estipuladas, não havendo que se falar
em d ireito adquirido.

'º RE 1 43.81 2/GO, rei. Min. limar Galvão, 27.08 . 1 996.


Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 41

Signi fica dizer, em simples palavras, que a vedação de vincu lação


do salário mínimo tem aplicabil idade i mediata, incidindo sobre os e feitos
futuros de fatos consumados no passado. Na hipótese tratada no j ulgado
supratranscrito, os proventos de pensão relativos aos meses posteriores à
data de p romulgação da Constituição de 1 98 8 (efe i tos futuros) deixaram
de estar vi ncu lados ao salário m í nimo, m uito embora a pensão houvesse
sido concedida, com v i nculação dos proventos ao salário m ín imo, em
período anterior à promulgação da Constitu ição de 1 98 8 ( fato consumado
no passado).
Cabe registrar que, não obstante a regra geral de eficácia das normas da
Constituição Federal de 1 98 8 sej a a aplicabilidade imediata ( retroativ idade
mínima), existem dispositivos constitucionais que expressamente dispõem
de forma diversa, estabelecendo outro momento para a eficácia dos seus
comandos.
É exemplo o art. 5 1 do A DCT, que determina a revisão das doações,
vendas e concessões de terras públicas realizadas desde o ano de 1 962. Tem­
-se, aqui, hipótese típica de adoção da denominada ret ro a t i v i d a d e m ú x i m a .
Ressalte-se que se trata de disposição constitucional expressa, caso em que é
perfeitamente possível a previsão de eficácia outra que não a retroatividade
mínima.
Por fim, é importante anotar que o Supremo Tribunal Federal entende
que a regra geral de retroatividade mínima - com possibilidade de adoção
de retroatividade média ou máxima, desde que prevista de forma expressa
- somente se aplica às normas constitucionais fed e r a i s . As Constituições
dos estados, diferentemente, sujeitam-se integralmente à vedação do art. 5 .º,
i nciso XXXVI (proteção ao direito adquirido, ao ato j urídico perfeito e à
coisa j u lgada), vale dizer, não podem retroagir (admitidas certas exceções,
adiante estudadas).
Da mesma forma, a retroatividade mínima não alcança as normas in fra­
constitucionais (leis e atos nomrntivos em geral). Estas também se submetem
à regra da irretroatividade (admitidas certas exceções, adiante estudadas),
prescrita no art. 5.0, XXXVI, da Carta Política.

6.3. Entra d a em v i g o r da nova Constituição e a Constituição


p retérita

A promulgação de uma Constituição revoga i ntegral mente a Constitu i­


ção antiga, i ndependentemente da compati bi l idade entre os seus dispositivos.
Promu lgada a nova Constituição, a anterior é retirada do ordenamento
j urídico, globalmente, sem que caiba cogitar de verificação de compatibilidade
entre os seus dispositivos, isoladamente. A perda de vigência da Constituição
42 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

pretérita é sempre tota l , em b l oco. N ão sào apenas d ispositivos isolados d a


Constitui ção pretérita que perdem v i gência, m a s s i m o seu conj u n to, i nde­
pendentemente de estarem ou não con formes à nova Lei M a i or. Nada d a
Constitui ção anterior sobrevive, razão pela qual é completamente descabido
i n dagar de forma isolada acerca el a compat i b i l i dade o u não de qual quer
norma consti tuc ional anterior com a nova Consti tu i ção. H á uma autêntica
revogação total , ou a b-rogaçào.

Essa é a posição dominante no nosso Pais, perfi l hada, sem controvér­


s i a digna de nota, p e l o Supremo Tri b u n a l Federal ( ST F ) , órgão cio Poder
Judi ciário que d i spõe d a competê n c i a para d i tar a ú l t i m a palavra quando o
assunto é Dire i to Const i tuciona l .

Apenas para e fe i to d e registro, mencionamos que h á uma corrente dou­


tri nária m i noritária que propugna urna orien tação d i ferente, conhecida como
tese d a ckscon s t i t u c i o n a l i za ç ã o , e x p l i cada a segu i r. .

6 . 3. 7. Desconstitucionalização

Segundo os partidários da chamada "clescon s t i tucional izaçào", a pro m u l ­


gação de u m a Consti t u ição n ã o acarre taria, obrigatori amente. a revogação
g l obal da Constituição passada.

Para e les, seria necessário e x a m i n a r cada d i spos i t i v o ela Consti tuição


antiga , a fi m ele veri ficar quais co11 A i tari am com a nova Constitu i ção, e quais
seriam compatíveis com e l a .

C o m base nessa aná l i se, os d i spos i t i vos i ncompatíveis seriam considera­


dos revogados pela nova Constituição, e os d i spos i t i vos compatíveis seriam
considerados por ela recepc ionados. Porém, o seri am n a condi ção de l e i s
comuns, como s e fossem normas i n fraconstituciona i s .

Conc l u i -se que esses prece i tos compatíveis, p o r serem considerados


recepcionados com o status de l e i , poderiam ser m od i fi cados ou revogados,
no novo ordenamento , por outras normas também i nfraconsti tucionais. É
esse o motivo da denomi nação "descon s t i tucio n a l i zação": os d ispos i t i vos d a
Constituição a n t i ga , compatíveis com a nova, ao serem recepc ionados, i n ­
gressariam e s e comportariam no n o v o ordenamento c o m o se fossem meras
normas i n fraconstitucionais.

Por ú l t imo, entendemos oportu n o ponderar que, dada a natureza i l i m i tada


d o poder constitui nte originário, nada i m pede que, no texto ela nova Consti­
tui ção, sej a prev i sto o revigoramento de d i spos i t ivos ela Constitu i ção pretérita,
e a e l es atribuída, no novo ordenamento const itucio n a l , natureza de normas
ord i nári as. Entendemos que isso é possíve l , desde que sej a feito de m o d o
ex p resso, seja para artigos determ i n ados, seja ele forma genérica.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 43
---

Poderia a Constituição Federal de 1 98 8 ter estabelecido, expressamente,


em determinado artigo seu, a recepção, com força de lei , dos disposiiivos
da Constituição Federal de 1 967/ 1 969 que não contrariassem o seu texto.
Seria um exemplo de previsão genérica ou ampla de adoção da desconsti­
tucionalização. Conforme é consabido, não foi essa a opção do legislador
constituinte originário em Í 9 8 8 . A vigente Constituição Federal não adotou
a desconstitucionalização, nem de forma genérica, nem quanto a algum dis­
positivo específico da Constituição passada.

6.4. D i reito ordi n á rio pré-co nstitucional

Examinaremos, neste item, as consequências da promulgação de uma


nova Constituição para as r10nnas jurídicas infraconstitucionais pretéritas.
Trata-se de situação bastante di versa daquela concernente à Consti tuição
antiga, que, como vimos, é globalmente revogada, não i mporta o conteúdo
de seus preceitos.
É fácil perceber que, caso fossem consideradas automaticamente revo­
gadas todas as normas infraconstitucion a is anteriores à nova Constituição,
um verdadeiro caos assolaria o ordenamento jurídico, em razão cio vácuo
normativo que daí decorreria. De um instante a outro, o país deixaria de ter
leis; nada haveria para regular as relações sociais, a não ser os costumes
e um conjunto de normas de alto grau de abstração constantes do texto
constitucional, a maior parte delas dependente de concretização futura pe lo
Poder Legislativo.
Com o intuito de evitar essa insustentável situação de insegurança jurí­
dica, adota-se uma solução pragmática: as leis anteriores são "aproveitadas",
desde que o seu conteúdo não conflite com o novo texto constitucional. É
necessário, portanto, analisar esse direito infraconstitucional pretérito a fim de
determinar quais de suas normas são incompatíveis e quais se harmonizam
com a nova Constituição, conforme detalhamos a seguir.

6.4. 1 . Direito ordinário pré-constitucional incompatível

As normas integrantes cio direito ordinário anterior que sejam incompa­


tíveis com a nova Constitl(ição não poderão ingressar no novo ordenamento
constitucional. A nova Constituição, ápice de todo o ordenamento jurídico, e
fundamento de val idade deste, não pode permitir que leis antigas, contrárias
a seus princípios e regras, continuem a ter vigência sob sua égide. Assim,
todas as leis pretéritas conflitantes com a nova Constituição serão revog a d a s
por esta.
44 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

Esse é o entendimento consagrado na jurisprudência do Supremo Tri­


bunal Federal, e acei to pela doutrina domi nan te no Brasi l . É válido para
todas as espécies normati vas pretéritas i n ti·aconsti tucionais, a lcançando não
só as leis formais, mas decretos, reg i mentos, portarias, atos adm i n i strativos
e m gera1 etc. 1 1
Entretanto, nem todos o s constitucional istas concordam com essa orien­
tação. De fendem alguns autores que revogação obrigatoriamente pressupõe
o confronto entre normas de mesma natureza, de mesma hierarquia. Segundo
eles, uma Constitu ição somente poderia revogar outra Constitu ição, uma lei
só poderia ser revogada por outra lei, u m decreto por outro decreto, e assi m
p o r diante. N ã o seria cabível , p o r essa lógica, cogitar de revogação ele d i reito
in fraconstitucional pela Constituição Federa l, pois as normas respectivas não
têm a mesma natureza, o mesmo n ível h ierárquico.
Dessa forma, prosseguindo nesse racioc ínio - repi ta-se, d iscrepante de
nossa jurisprudência e doutrina majori tária -, a nova Const ituição acarretaria
a denominada i n con s t i t u c i o n a l i d a d e s u p e r n.> n i l'll ll' do direito subconstitu­
c i onal anterior com ela i ncompatíve l .

6.4. 1 . 1 . I n co nstit u c i o n a l idade s u pe rv e n i e nte

Para os defensores da tese da ocorrência da inconstitucional i dade super­


veniente, o d i reito ord i nário ante1:ior incompat ível não seria revogado pela
nova Const i tuição, mas se tomaria i ncon stitucional em face dela.
I nconstitucional idade superven iente é, pois, o fenômeno j u rídico pelo qual
uma norma tornar-se-ia i nconstitucional em momento futuro, depois de sua
e ntrada em v igor, em razão da promulgação de um novo texto consti tucional,
com ela confl i tante.
Exem p l i ficando: uma lei publicada hoje, de acordo com o texto const itu­
cional atual mente cm v i gor, tornar-se-ia inconstitucional no fu turo, em v i rtude
da promulgação de uma nova Constituição. que estabelecesse u m tratamento

" É enfaticamente ilustrativo da posição adotada pelo STF o excerto de ementa abaixo trans­
crito (ADI 2/DF. rei. Min. Paulo Brossard. DJ 2 1 . 1 1 . 1 997):
"O vício d a inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face d a Cons­
tituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional
em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição
futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela coníli­
tantes: revoga-as. Pelo rato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir eleitos
revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental. por ser suprema. não revogasse. ao ser
promulgada. leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. Reafirmação de
antiga jurisprudência do STF. mais que cinquentenária. Ação direta que não se conhece
por impossibilidade juridica do pedido."
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 45

contrúrio à respect i va matéria; essa lei não seria revogada pela Constitu ição
ru t ur a . mas sim se tornaria inconstitucional frente a e l a .
Deve-se ressaltar, corno antes mencionado, q u e , para o STF, há mera
revng;1çàn da lei em uma situação como essa. Segu ndo a j urisprudência da
Corte Suprema, uma lei só pode ser considerada i nconstitucional em confron­
t o c o m a Constituição de sua época, em vigor no momento da p u b l icação
ci<1 l e i . Nenhuma lei pode ser declarada i nconstitucional em confronto com
Const ituição futura . I sso porque não poderia o legislador ord i nário, ao editar
u 111a lei cm 1 980, desrespeitar a Consti t u ição Federal de 1 988, porque esta,
cm 1 980, a i nda não existia. Em 1 980, o legislador só poderia desrespeitar a
Constituição de sua época (Constitu ição de 1 967/ 1 969). Da mesma forma,
não pode o legislador, hoje, ao editar determinada lei, desrespei tar uma
Constitu ição futura, pela razão óbvia de que ela a i nda não existe. Em poucas
p a l a v ras, segundo o entendi mento do STF, o j u ízo de constitucional idade
pressupõe conten1porane idacle entre a lei e a Const itu ição, isto é, pressupõe
q u e a l e i seja confrontada com a Const itu ição sob cuja égide foi editada
( princ ípio ela contemporane i dade).
E 111 s í ntese, ternos o seguinte: (a) uma lei só pode ser considerada in­
constitucional (ou constituciona l ), em confronto com a Consti tu ição de sua
época ( princíp i o da contemporanei dade); (b) o confronto entre uma lei e
Const i t u i ção futura não se resolve pelo j u ízo ele constituciona l i dade, mas
sim pela rl'\'Oga,·iio ( se a lei pretérita for material mente i ncompatível com
a nova Const i t u ição) ou pela rl'c l' p ç à o (se a lei pretérita for material mente

compatível com a nova Const itu ição ).


1\ primeira v i sta, essa disti nção conceituai poderia parecer i rrelevante,
uma vez que. num ou noutro caso ( revogação ou inconstítucional idacle super­
veni ente), é certo que a norma ant iga i ncompat ível com a nova Constitu ição
pcrderú s u a vigênc ia. Porém, há uma consequência j urídica para essa distinção
sobremaneira relevante. É que a Constituição Federa l só perm i te a declara­
ção ela i n c o n s t i t u c i o n a l í d a d l' das leis pelos tribunais do Poder Judic iário
mediante decisão ela maioria absoluta do p lenário ou do órgão especial do
tribunal ( C F, art. 97). Significa di zer, em síntese, que, em regra, os órgãos
rracionfaios dos tribuna i s ( câmaras, turmas ou seções) não podem dec l arar a
i nconsti tuc ional idade das leis ou ato normati vos cio Poder Público. Essa regra
espec ial para a declaração da í 111.:o n s t í t u t i o n a l i d a d c pelos tribunais recebe
o nome ele .. reserva de plenário". " Pois bem, a relevância dessa disti nção
conce ituai - entre revogação e i nconstituciona l i dade superveniente - é que
se o confl i to entre norma pré-consti tucional e Const itu ição futura envolvesse
j u ízo ele const itucional idade, então os tribunais, para dec larare m a invalida-

" A clausula "reserva de plenario" sera objeto de exame ulterior, quando estudarmos o controle
d e constitucionalidade das leis.
46 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

de da nonna antiga, estariam obrigados a obedecer à reserva de plenário


(somente poderiam fazê-lo por decisão de maioria absoluta do p lenário ou
do órgão especial). Entretanto, como o entendimento do Supremo Tri bunal
Federal é de que, nessa situação, não temos caso de i nconstitucional idade,
mas sim de mera rcrn g a \ :i o , os tribunais, na aprec iação da v a l idade do
d i reito pré-constituciona l . não estão obrigados à obediência da reserva de
p lenário (os próprios órg::los fracionários poderão, sem necessidade de sub­
meter a controvérsia ao plcnúrio. reconhecer a revogação ou recepção do
d i reito pré-constitucional )
Ai nda em decorrênc ia desse entendimento - o confl i to entre o direito
pré-constitucional e a nova Constituição resolve-se pela revogação, não se
tratando de i nconst i tucional idade -, o Supremo Tri bunal Federal n ã o admite
a impugnação do dire i to pré-constitucional em ação d i reta de i nconstitucio­
nal idade. D

6.4.2. Direito ordincirio pré· con s titucional compo tivel

Se as leis pré-const i tucionais em vigor no momento da promulgação ela


nova Constituição forem compatíveis com esta, serão rec e p c i o n a d a s .
Significa d i zer que ganharão nova vida no ordenamento constitucional
que se inicia. Essas leis perdem o suporte ele val idade que lhes clava a Cons­
ti tuição anteri or, com a revogação global desta. Entretanto, ao mesmo tempo,
elas recebem da Constituição promulgada novo fundamento de val idade.
Conforme nos ensina o Prof. Celso R i be i ro Bastos, ao abordar o fenô­
meno da recepção, "trata-se ele um processo abreviado ele criação de normas
j ur ídicas, pelo qual a nova Consti tuição adota as leis jú exi stentes, com ela
compatíveis, dando-lhes val iclacle, e ass im evita o traba lho quase imppssível
de elaborar uma nova legislação de um dia para o outro".
M as, nem todo o d i re i to pré-constitucional compatível com a nova Cons­
t i tuição poderá ser por ela recepcionado. Para que a norma pré-constitucional
sej a recepci onada pela nova Constituição, deverú ela cumprir, cumulativa­
mente, três requisitos: ( i ) estar em vigor no momento da promulgação da
nova Constitu ição; ( i i ) ter conteúdo compatível com a nova Constitu ição;
( i i i ) ter sido produzida de modo vál ido (ele acordo com a Consti tuição ele
sua época).
Exam i nemos, separadamen te, esses três requ isitos.

13 Esse aspecto sera pormenorizado posteriormente. quando examinarmos o controle d e


constitucionalidade abstrato.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 47

Pelo primeiro deles é exigido que a nonna esteja em v igor na data ela
promul gação da nova Constituição para que possa ser recepcionada. Yale
d i zer, a recepção n ão alcança normas não v i gentes. Se a norma n :l o estiver
em v i gor no momento da promulgação da nova Constituição, a sua s i tuação
jurídica deverá ser exami nada à luz do inst ituto rep r i sti n a ç ã o (na forma
expli c itada no tópico seguinte), e não pela aplicação d a teoria da recepção.
Com efeito, a juri sprudênc ia do Supremo Tribunal Federal é firme no
sentido ele que a recepção de lei pe la Constituição posterior a ela só ocorre
com relação aos seus d i spos i t i vos L' l l l ,·igor quando da promul gação desta,
não havendo que pretender-se a ocorrência de e feito repristi natório, porque
o nosso sistema j urídico, salvo di sposição expressa em contrário, não adm ite
repristinação (artigo 2 .0, § 3 .", da Lei de I n trodução ao Código Civi l ). 1•1
Consoante o segundo requis ito, a nonna a ser recepcionada deve ter con­
teúdo não confl i tante com o conteúdo da nova Constituição . Como é sabido,
a nova Constituição i naugura uma nova ordem j ur ídica, rompendo com toda
a ordem anterior. Logo, é evidente que a nova Constitu i ção não permitirá
que leis antigas, que contenham d isposições contrárias aos seus comandos,
i ngressem no regime const i tucional que ::;e i n icia. A compat i b i l i dade com a
nova Constitu ição é, portanto, aspecto essencial para o fim de recepção do
d i re i to pré-constitucional.
Finalmente, para que a norma pré-constitucional seja recepc ionada é in­
dispensável que ela tenha sido produ zida de modo válido, isto é, de acordo
com as regras estabelecidas pela Consti tui ção de sua época. Se a norma fói
produzida em d esacordo com a Constitu ição de sua época, n ã o poderá ser
aproveitada ( recepci onada) por Constitu ição futura. Ainda que essa norma,
ed itada em desacordo com a Const ituição de sua época, estej a em vigor no
momento da promulgação da nova Constituição, e seja p lenamente compatível
com esta, não será j uridicamen te possível a sua recepção. Se a lei nasceu
com o vício da i nconstituciona l idade (vício congê n ito , nascido com a lei),
não se adm ite que Carta Po l í ti ca futura a consti tucional ize, vale d i zer, no
nosso ordenamento , n ã o é j uridicamente possível a ocorrênc i a da co 1 1 s t i t 11-
c io 11 a l i d a c l c s u perve n i e n t e .

I sso ass i m é porque a constitucionalidade d e certa l e i d i z respe ito ao


texto constitucional em vigor no momento de sua produção. É desse texto
constitucional que é haurido o fundamento de val idade da lei, quando ela
é produzida. Logo, se a lei é produzida em desarmonia com a Const i tuição
em v i gor na data de sua produção, ela é i nconst ituciona l , nula, írrita, e não
poderá ser aproveitada por um texto constitucional posterior, que, na época,
sequer existia. Conforme afi rmado acima, não se admite a ocorrência da cons-

" AGRAG 235.800/RS, rei. Min. Moreira Alves. DJ 25.06.1999.


48 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO · Vicenre Paulo & Marcelo Alexanclnno

titucional idade superveniente: ou a norma foi produzida em harmonia com a


Constituição de sua época, e, portanto, nasceu vál ida; ou, em caso de confl ito
com a Constituição de sua época, j á nasceu írrita, com o vício insanável da
inconstitucional idade, q ue não poderá ser conval idado por Constitu ição (ou
emenda constitucional) posterior.
Para melhor compreendermos esse i mportante aspecto concernente à
recepção do d i reito pré-constitucional, exami nemos um caso hi potét ico.
Suponhamos uma lei editada em 1 980, em desarmonia com a Constitui­
ção então em vigor (CF/ 1 969). Em 05. 1 0. 1 988, se essa lei j á houvesse sido
retirada do ordenamento j urídico, pela revogação ou mesmo pela dec laração
de sua inconstitucionalidade pelo Poder J udiciário, não haveria dúvida:
ela n ã o seria recepcionada pela Constituição ele 1 988, porque a recepção
só alcança normas e m vigor no momento da promulgação do novo texto
constitucional. Entretanto, caso ela ainda integrasse o ordenamento j urídico
(em virtude da n ão ocorrência de sua revogação nem da declaração de sua
i nconstitucional idade) e fosse compativel com a Constituição de 1 988, po­
deria ela ser recepcionada? A resposta é negativa. Se a lei foi produzida em
desacordo com a Constituição de 1 969, a i nda que presente no ordenamento
j urídico na data da promul gação da Constituição de 1 98 8 , não poderá ser
recepcionada por esta.
Esse entendi mento acima exposto, re feren te à imposs ibilidade j urídica de
recepção, por Constituição futura, do d i reito pré-constitucional produzido em
desacordo com a Consti tu ição de sua · época, é também apl icável à h ipótese
de promulgação de uma emenda const i tuciona l . Assim, uma lei que fosse
editada, hoje, em desarmonia com o texto constitucional em vigor, não po­
deria ser aproveitada posteriorn1ente, por emenda constitucional. Vale dizer,
ainda que emenda constitucional superven iente estabeleça novo tratamento
à matéria, de modo que passe a ser compatível o texto da lei com as novas
disposições constitucionais, não será j uridicamente possível a recepção, pelos
mesmos fundamentos acima expl ic itados.
Cabe ressaltar que esse entendi mento não é pacífico na doutrina e ju­
risprudênc i a pátri as. N a doutrina, embora entendamos ser essa a posição
dominante, há constitucionalistas de renome que perfi lham entendimento
diverso, como, por exemplo, o Professor Celso Ribeiro Bastos. 1 5
N a j urisprudência do Supremo Tri bunal Federal também não há u na­
nimidade. A questão foi amplamente debatida no j u l gamento de recurso

15 Para Celso Ribeiro Bastos, com a substituição do texto constitucional pretérito pela nova
Constituição, desaparece a relação de antinomia, pois "a única exigência para que o direito
ordinário anterior sobreviva debaixo da nova Constituição é que não mantenha com ela
nenhuma contrariedade, não importando que a mantivesse com a anterior, quer do ponto
de vista material, quer formal".
Cap. 1 • D I R E ITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 49

cxtraorcl i núrio11• no qual se discutia a consti tucionalidade da Lei 9 . 7 1 8 , de


n 1 1 . 1 99 8 , que fora edi tada em desarmon i a com o texto originário da
Consti tuição. N o mês seguinte à publicação da Lei 9 . 7 1 8 , de 2 7 . 1 1 . 1 99 8 , a
F 1 m:nda Constitucional 20, de 1 5 . 1 2 . 1 99 8 , mod i ficou o texto consti tucional,
q ue, só então, tornou-se compatíve l com as d isposições legais. Por maioria,
o Tribunal não aceitou a lese da "eonvalidaçào da Lei n ." 9 . 7 1 8/ 1 9 9 8 pela
Emenda Const i t uc ional n ." 20/ 1 998", segui ndo o voto do M i n i stro M a rco
A uré l io, re lator, do qual transcrevemos o segui nte trecho: 1 1

A h i erarq u i a das fontes l egais, a rigi dez da Carta, a revelá-la


documento supremo, conduz á necessidade de as leis h ierar­
q u icamenw i n feriores observarem-na, sob pena de transmudá­
- l a , c o m n e fasta in versão de valores. Ou bem a lei s u rge no
cenário j u r í d i co cm harmonia com a C o n s t i t u ição Federal, ou
com ela c o n ll i ta, e a í allgura-sc i rrita, não sendo possível o
aprovei tamento, consid erado texto cons t i t u c i o n a l posterior e que,
port a nto, ii época não e x i s t i a .

E s t á consagrado que o v í c i o da cons t i tu c i o n a l i dade há de ser


ass i n a l ado em face dos parâmetros m a i ores, dos parfimetros da
Lei Fu ndamental ex istentes no momento em q ue aperfe i ç oado
o ato normativo. A consti tuciona l i dade de certo d i ploma lega l
d e ve se fazer presente de acordo com a ordem jurídica cm v i gor,
não cabendo reverter a ordem natural das coisas.

Em oport u n i dade mais recente, o STF reiterou esse entendimento, dei­


xando assente que o s i s t e m a b ra s i l e i ro n ii o c o n te m p l a a f i g u ra e l a c o n s­
t i t 1 1 r i o n a l i d a d e s u p c r v c n i L· n t c , vale d i zer, não se adm i te a conval idação de
lei i nconst ituc ional (em face do texto const itucional vigente à época de sua
publ icaçào) por norma cons t i tucional futura . 1 x Assim, se a lei é i nconsti t ucional

'6RE 346.084/PR, rei. Min. Marco Aurélio. 09.11 .2005.


" Embora essa tenha sido a tese jurídica vencedora. merece destaque este trecho do voto
(vencido) do Ministro Eros Grau, em sentido contrário:
"'O § 1 ° do artigo 3.0 da Lei n.0 9.718/98, cuja inconstitucionalidade não foi declarada antes
da vigência da EC 20/98 - logo gozava. até então. da presunção de constitucionalidade -
foi recebido por essa emenda constitucional. A inconstitucionalidade pretérita não declarada
resultou superada pelo recebimento do preceito pela EC 20/98. É certo que o vicio da
inconstitucionalidade é congênito á lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente
ao tempo de sua elaboração. Mas não é disso que aqui se trata. senão do recebimento,
pela emenda constitucional, de lei publicada anteriormente a sua vigência, que não fora
ou ainda não fora declarada inconstitucional. ( ... ) O fenômeno da recepção. no entanto.
conduz á superação de tudo isso. Pois o § 1 .0 do artigo 3.0 da Lei n.0 9.71 8/98 não tendo
sido ainda, no advento da emenda constitucional. retirado do ordenamento jurídico e sendo
adequado a ela. continua a ter existência de modo [re]novado, visto que novo é o seu
fundamento derradeiro de validade: a EC 20/98."
16ADI 2. 1 58/PR. rei. Min. Dias Toffoli, 15.09.201 O.
50 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino
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em face do texto constitucional v i gente na época de sua edição, não se mostra


juridicamente possível que norma consti tucional ulterior a convalide. Nesse
caso, o Tribunal reconhece a i nconstitucionalidade da norma, mesmo em face
do (antigo) texto const itucional parâmetro já alterado ou revogado.
Em l inhas bastante s i m p l i ficadas, constata-se que o d i reito pré-constitucio­
nal ordi nário val idamente produzido e em v igor no momento da promulgação
da nova Constituição: ( a ) no caso de compatibil idade, será rcc c p c i o n aclo
pela nova Const i t u i çfo; (b) no caso de incompatibil idade, será revog a d o
pela nova Constitu ição.
Nos parágrafos segu i ntes pormenori zaremos como se dá o exame dessa
compatihilidade entre o d i re i to pré-constitucional e Constitu ição futura.
O primeiro ponto relevante d i z respeito à identificação dos critérios que
devem ser adotados nesse confronto entre d i reito ordi nário pretérito e novo
texto constituciona l .
Deve-se anotar q u e , n o cotejo entre norma antiga e nova Constituição,
somente se leva cm conta a denomi nada c o m p a l i h i l i d a d e m a t e r i a l o que ,

signi fica que será a norma recepcionada, se o seu conteúdo for compatível
com a nova Const i t u ição, ou será revogada, caso o seu conteúdo seja in­
compatível com a nova Constituição. Em todos os casos, são i nteiramente
i rrelevantes qua isquer aspectos formais da norma antiga. Em resumo, no caso
de compatibil idade material, teremos recepção; no caso de incompatibil idade
material, leremos revogação.
l� i mportante at<.:ntar para o fato de que a recepção ou revogação do or­
denamento i n fraconst itucional passado n ã o p recisa ser e x p ress a . Promulgada
a nova Constituição. mesmo que não haja nenhum dispositivo em seu texto
q ue ass i m disponha. ocorrerão, tacitamente, naquele momento, a revogação
das normas pré-const itucionais com ela materi almente incompatíveis e a
recepção daquelas com ela materialmente compatíveis.
Frise-se. uma vez mais. a i rrel evância, para e feito de anál ise ele eventual
recepção da norma i n fraconstitucional pretérita, ela chamada com p a t i h i l i­
d a d c fo r m a l , concernente ú forma de elaboração da norma e seu status
no ordenamento constitucional pretéri to. Eventual i ncompatibil idade formal
não prejud icará, cm nada, a recepção, desde que a norma antiga tenha sido
val idamente produzida, esteja em vigor e haja compatibi l i dade material entre
e l a e a nova Const ituição.
Assim, não interessa. por exemplo, saber se há ou não correspondência
en tre o processo legislativo da época cm que foi e laborada a norma antiga e
o processo legislativo de e laboração da mesma espécie hoje, na vigência da
nova Constituição. U ma norma pré-consti tucional que tenha sido elaborada
na v igência da Consti tuição I m peri al de 1 824 poderá ser recepcionada pela
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 51

Constitui ção Federal de 1 9 8 8 , ainda que os processos legislativos dessas duas


épocas sej am absolutamente d isti ntos. Trata-se de aspecto meramente formal,
que não interfere no processo de recepção do d i re i to pré-constitucional.
N ão i mporta, tampouco, questionar se existe ou não, na nova Consti tuição,
a espécie normativa antiga, que discipl inava a matéria. Não é por outro motivo
que temos atual mente diversos decretos- leis em p leno v igor, conquanto essa
espécie normativa não mais integre o atual processo legislativo, na v i gência
da Consti tu ição Federal de 1 9 8 8 .
Finalmente, não cabe perquirir se houve (ou não) mudança na determi­
nação da espéci e normativa exigida para disc i p l i nar a matéria. Por exemplo,
o fato de a Constitu ição antiga ex igir lei o rdinária para o tratamento de
determinada matéria e a nova Constituição só permitir que o mesmo assun­
to sej a regulado por meio de lei complementar não prejudicará em nada a
recepção da norma que, sob a Constituição pretérita, tenha sido val idamente
editada como lei ordinária.
O ú l timo ponto, entretanto, é i m portante para determ inar a situação com
que a norma recepcionada ingressa no novo ordenamento constitucional .
Como se verá, o fato de uma norma ter sido editada, por exemplo, como lei
o rd i nária, não signi fica que ela, ao ser recepcionada, terá, no novo ordena­
mento, o status de lei ord i nária. Este será determ inado pela nova Constituição,
conforme a seguir expl icamos.
A força (status ), no novo ordenamento constituc ional, da norma pré­
-constitucional recepcionada será determinada pela nova Constitui ção, de
acordo com a espéc ie normativa por ela exigida para a disciplina da matéria
sobre a qual versa a norma antiga.
Ass i m, caso, na vigência ela Constituição antiga, fosse ex igida lei ordi­
nária para regu lar a matéria, e a nova Const i tu ição tenha passado a exigir
lei complementar para o tratamento do mesmo assunto, a lei ord i nária an­
tiga (val idamente produzida), sendo materialmente compatível com a nova
Consti tuição, será sem dúvida recepcionada, mas o será com o status de lei
complementar. Vale dizer, sob a nova Constitu ição a lei ord i nária recepcionada
terá força de lei complementar. Portanto, no novo ordenamento constitucional,
só poderá ser al terada ou revogada por outra l e i complementar, ou por ato
normativo de superior hierarqu i a, como uma emenda à Constitu i ção (não
é correto afirmar que uma lei só possa ser revogada por outra l e i ; uma lei
- ord i nária, delegada ou complementar - pode, também, ser revogada por
outra norma ele superior h ierarquia, como urna emenda à Consti tuição que
com ela sej a material mente incompatível).
Exemplo concreto ternos n o Código Tri butário Nacional ( Lei
5 . 1 72/ 1 966), que, embora e d i tado como lei ord i nária porque a Consti­
·-

t u i ç ão de 1 94 6 nem mesmo p revia leis complementares em seu processo


52 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexanclrino
--·-----·-�------

legislativo -, possui hoje força de lei complementar. Isso ocorre porque a


Constituição Federal ele 1 988, no seu art. 1 46, exige lei complementar para
dispor sobre normas gerais tributárias, e este é o conteúdo das d isposições
do Código Tributário Nac iona l . Por causa de seu sla/us, para mod i ficar o
texto do Código Tri butário Nacional, na vigência da Constitu ição Federal ele
1 988, é necessária a edição de lei complementar.
O mesmo raciocín io eleve ser adotado na situação inversa. Por exemplo,
se a Constituição pretérita exigia lei complementar para regular a matéria e
a nova Constituição permi te que o mesmo ass unto seja disc i p l i nado por lei
ord i nária, a lei complementar será recepcionada com s/alus de lei ordinária,
podendo, no novo ordenamento constituc ional, ser alterada ou revogada por
leis ordinárias.
É verdade que poderá acontecer ele uma norma pré-const itucional perma­
n ecer com a mesma força (s1at11s) no novo ordenamento const ituciona l . Se,
na vigência da Constitu ição pretérita, determi nada matéria era disc i p l i nada
por lei ordi nária, e a nova Constitui ção continua a exigir lei ordinária para o
seu tratamento, tal norma será recepc ionada como lei ord inária. Mas, frise-se,
permanecerá com status de lei ord inária não pelo fato de ter s ido editada
como lei ordinária no regime consti tuc ional anterior, e sim pelo fato de a
nova Constituição exigir lei ord i nária para a discipl ina da mutéria de que
trata a lei recepcionada.
Poderemos ter, ai nda, mudança do ente federado competente para o
tratamento ela matéria, sem prej uízo para a recepção da l e i . Assi m, se, na
v i gência da Constitu ição pretérita, a competênc ia para tratar de determ inada
matéria pertencia à Un ião, e a nova Constitu ição atri buiu essa com petên cia
aos Estados ou aos Municíp ios, a lei federal pretérita poderú ser recepc i o n a ­
da com força de lei estadual ou mun icipal, con forme o caso. Com e feito, a
s i mples a l teração ele competência do ente federado n ão prej udicará a recepção
da norma antiga, se ela fo i val idamente edi tada e se houver compatibil idade
material entre ela e a nova Constituição. "'
Exe m p l ificando: suponha-se que, na v igência da Constituição pretéri­
ta, a competência para legislar e explorar o gás canal izado pertencesse à
U n i ão, que, por isso, havia edi tado norma federal vúl ida sobre a matéria,

'9 Observe-se que não cabe cogitar a ocorrência de federalização de normas estaduais ou
municipais. tampouco a estadualização de normas municipais. como resultado de alteração
na regra constitucional de competência. Assim. se na Constituição pretérita a matéria era da
competência dos estados ou dos municípios, e a nova Constituição atribui tal competência
à União, não há federalização do direito estadual ou municipal, mas sim revogação desse
d i reito. por força de alteração na regra constitucional de competência . Se a situação fosse
inversa - competência da União n a Constituição pretérita e competência dos estados ou
dos municipios na nova Constituição -, a legislação federal pretérita seria recepcionada
pelo novo ordenamento constitucional, estadualizada ou municipalizada, conforme o caso.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 53

a qual estava em pleno vigor no momento da promulgação da Constitu ição


Federal de 1 98 8 ; nessa situação, como a Constitu ição atual outorgou essa
competência aos estados-membros (CF, art. 25, § 2 . º), a referida lei federal
seria recepcionada com força de lei estadual (para evi tar a descontinu idade
j urídica, os estados-membros conti nuariam apl icando a lei federa l pretérita
até edi tarem suas próprias leis).
Outro ponto que merece comentário d i z respe ito à poss i b i l idade de a
recepção a lcançar apenas partes ele um ato normat ivo. A anál ise q uanto à
compat i b i l idade material deve ser feita de maneira individual izada, d ispos i tivo
por d ispos i t i vo, con forme a disciplina dada à matéria tratada em cada qual.
I� possível, por exemplo, em uma lei pretérita que tivesse quarenta a rtigos,
apenas o i to deles serem recepci onados.
Pode ocorrer, também, recepção de somente parte de um d ispositivo ela
lei antiga q ue foi recepc ionada. Assim, a parte final do caput de u m artigo
ela lei pré-constitucional, ou a lguma expressão desse mesmo caput podem
não ter sido recepcionadas pela nova Constituição Federal de 1 98 8 ; ou, em
um artigo da lei ant iga com d i versos i ncisos, podem al guns incisos ter sido
recepcionados, e outros revogados pela nova Const itu ição.
Da mesma forma, pode acontecer que, na mesma lei pré-consti tucional,
tenhamos d ispositi vos recepcionados com d i ferentes status pela nova Cons­
t i t uição. I magi ne-se uma lei ord inária pré-constitucional com dois art i gos
que versem sobre matérias d i stin tas, tendo a nova Const ituição passado a
exigir lei complementar para o tratamento da matéria regu lada em um deles
e contin uado a perm itir que lei ord i nária disc i p l i ne o assunto constante do

outro . Nessa si tuação h i potética, um dos art igos seria recepc ionado com força
de lei complementar, e o ou tro com status de lei ord i nária.
Conforme afirmamos ac ima, na data da promulgação da nova Const itui­
ção, as normas pré-const itucionais com ela material mente i ncompatíveis são
tac itamente revogadas. afastadas do ordenamento j urídico, enquanto as que,
va 1 idamente produzidas, forem material mente compatíveis são recepcionadas.
Poré m , u l teriormente, di ante de um caso concreto, poderá surg i r dúvida em
re l ação à val idade de determ inada lei pré-constitucional, ou seja, sobre e l a
t e r s i d o (ou n ã o ) recepc ionada p e l a nova Constituição.
Em situações como essa, havendo controvérsi a a respeito ela revogação (ou
ela recepção) ele alguma norma pré-constitucional, caberá ao Poder Judiciário
dec i d i r se a norma foi recepc ionada ou revogada pela nova Constitu ição. De
acordo com a interpretação dada ao texto e aos princ ípios ela nova Consti­
tuição, fi xará o Poder J udiciário o entendimento a respei to da recepção (ou
ela revogação) da norma antiga.
Entretanto, enfatize-se que a recepção ou revogação do d i rei to pré-consti­
tucional ocorre. sempre, na data da promulgação do novo tex to consti tucional.
54 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO · Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

Não importa a data em q u e a recepção ou revogação venha a ser, diante de


uma eventual controvérsia, declarada pelo Poder Judiciário. Se, diante de uma
controvérsia concreta, o S upremo Tribunal Federal fi nna entendimento, hoje,
de que determ i nada nonna pré-constitucional foi revogada pela Constitu ição
Federal de 1 988. não estará essa revogação ocorrendo somente agora, com a
prolação do acórdão pelo Tribunal. A decisão do Poder Judiciário será mera­
mente declaratória, retroativa à data de promulgação da Constituição Federal
(05. 1 0. 1 98 8 ). isto é, o Poder J udiciário estará reconhecendo a revogação da
norma pré-consti tucional desde a promulgação do novo texto constitucional
(05. 1 0. 1 9 8 8 ) . Igual raciocínio aplica-se à decisão do Poder J udici ário que
reconheça, hoje, a recepção de norma pré-consti tuc iona l .
As emendas constitucionais têm o mesmo efeito sobre o dire ito ordiná­
rio a elas anterior, no que concerne à recepção ou à revogação das normas
dele integrantes. Dessarte, quando é promulgada urna emenda constitucional,
são revogadas as leis até então existentes, que sejam com ela materialmente
i ncompatíveis, não cabendo cogitar ele i nconst i tucional idade superveniente
frente à emenda. Na mesma esteira, permanecem em vigor as normas i n ­
fraconstitucionais anteriores à emenda, val idamente produzidas e q u e não
conft i tem materialmente com ela, segundo as mesmas regras descritas quanto
à recepção das normas ordi nárias pretéritas por uma nova Constituição.

6.4.3. Direito ordinário pré- co n s titucional não vigente

Con forme visto antes, a recepção é fenômeno tácito, que ocorre i nde­
pendentemente de dispos ição expressa no texto da nova Consti tu ição. Porém,
só é juridicamente poss ível haver recepção do d i reito pré-constitucional cuja
vigência não tenha cessado a ntes do momento da promulgação da nova Cons­
tituição. Se a norma não mais estiver no ordenamento j urídico no momento
ela promulgação da nova Constituição, não há que se fa lar em recepção.
Seria o caso, por exemplo, de uma lei que, editada cm 1 980, sob a v igên­
cia da Constituição Federal de 1 969, tenha sido declarada inconstitucional em
controle abstrato - portanto, retirada do ordenamento j urídico -- dois dias antes
da promulgação da Constituição Federal de 1 988. por ofensa à Constituição
Federal de 1 969. Seria, também, ainda exemplificando, a si tuação de uma lei
editada na vigência da Consti tu ição de 1 967 que, em razão de i ncompatibilidade
material, não tivesse sido recepcionada pela Constituição de 1 969.
Em ambos os exemplos, seria i rrelevante a eventual constatação de que
essas leis tivessem conteúdo plenamente compatível com a Consti tuição
Federal de 1 98 8 . A nova Constituição n <io restaura, automati camente, taci­
tamente, a vigência das leis que n<lo mais estejam em vigor no momento
de sua promulgação.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITU IÇÃO 55
-·--·-·-··-·-·---· ·-·· ····· ·······--·· · ·····-·-·--·-·---·-·-----··------

Se o legislador constitui nte assim desej ar, a vigência das leis poderá ser
restaurada pela n ova Constitu i ção, mas por meio de d i sposição e x p ressa no
seu texto. Tem-se, nesse caso, a denominada re p r i s t i n a ção, que, como d i to,
forçosamente deve ser ex pressa.
Em síntese, para as leis que não estej a m em vigor no momento de
promu lgação de uma nova Constituição, por terem sido, antes, retiradas do
ordenamento j urídico, tem-se o segu i nte: (a) se a nova Constituição nada
d isser a respeito, não haverá a restauração da vigênc ia ela lei ( não haveró
repris t i n a ç l1 o t ú c i t a ) ; (b) a nova Consti tuição poderá restaurar a v igênci a da
l e i , desde que o faça expressamente (poderá ocorrer re p ri s t i n a ç ã o e x p re s s a ) .
O quadro abaixo si ntetiza as d i ferenças en tre recepção e repristinação
do d irei to pré-constitucional.

Direito pré-conslitucional em vigor Direito pré-constilucional não


no momento da promulgação da mais vigente no momenlo da
nova Constituição. promulgação d a nova Constiluição.

Fenômeno tácito, que ocorre Fenômeno que só ocorre se houver


independenlemente de d isposição disposição expressa na nova
expressa na nova Constituição. Constituição.

6 . 4. 4. Direito orclinr.irio em periodo ele v a c a t i o legis

S i tuação d i versa da estudada no tópico an terior é a da lei que estej a no


período ele vacatio legis no momento da promu lgação de uma nova Cons­
titu ição.
Conforme consabido, cabe ao legislador a fixação do momento de entrada
em vigor da lei que ele edita. Usualmente, no Brasi l , o legislador prevê o
início da vigência da lei na data da sua publicação. Para tanto, i nsere, no
texto da própria lei, um artigo determ i nando: "esta lei entra em v i gor na
data de sua publ i cação".
Nada i m pede, entretanto, que o legisl ador estabeleça outro momento,
posterior à publ icação, para o início da vigência ela lei. I sso costuma acontecer
quando a matéria tratada na lei possu i reflexos muito relevantes nas relações
sociais em gera l . I l ustra essa asserção o Cód igo C í v i l atual, publicado cm
janeiro de 2002, com previsão, c m seu art. 2 .044, ele entrada cm v igor u m
a n o após a s u a publ icação.
O legislador poderá, a i nda, ser omisso, não fi x ando no texto ela lei a
data de i n ício da sua v igên cia. Nesse caso, apl ica-se o di sposto no art. 1 .º
56 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

da Lei de I ntrodução às Normas do Direito Brasileiro (LIN DB), segundo o


qual a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e c inco) dias depois
de oficialmente publicada, e nos Estados estrangeiros depois de 3 (três) meses
da publ icação oficial.
Em todos os casos em que o i n ício da v i gência da lei é posterior à data
de sua publ icação, o período compreendido entre a pub l i cação e a data de
vigência é denominado vacatio legis ( vacância da lei). A lei em vacância já
i ntegra o ordenamento jurídico, mas permanece sem vigência, sem incid i r,
sem força obrigatória para os seus destinatários.
Vejamos, agora, uma situação hipotética. U rna lei foi publicada em setem­
bro de 1 988, sem conter cláusula que dispusesse sobre seu i nício de vigência.
Diante da omissão, essa lei só entraria em vigor no país 45 (quarenta e cinco)
dias depois de sua publicação. Logo, na data da promulgação da Constituição
Federal de 1 988 (05. I 0. 1 988), a lei estaria no período da vaca/ia legis.
Cabe perq u i r i r a poss i b i l idade de essa l e i entrar em v igor no orde­
namento consti tucional que se inicia. Embora não exista consenso a re s­
peito, a posição doutrinária domi nante é q ue a lei vacante não e n t ra r :'I
e m Y i g o r no novo ordenamento const itucional, isto é, n ã o poderá e l a ser
recepc ionada pela nova Constituição. Segundo esse entendi men to, o fa t o
de a recepção cio d i re i to pré-constitucional válido e material mente compa­
tível só alcançar as normas que estej a m em v igor na data da promulgação
do novo texto const itucional impede a recepção de leis que estejam em
vacância, porquanto, a final, não são leis vigentes na data da promulgação
da Constitu ição nova.

6.5. Controle d e constituciona l i d a d e do d i reito p ré -consti t u c i o n a l

Neste item será estudada a forn1a como o Poder J udiciário aprec ia, hoje,
a validade do d i re ito pré-constitucional (anterior a 05 . 1 0. 1 98 8 ) .
As situações q u e ensejam análise são: (a) o controle d e constituciona­
l i dade do d i reito pré-constitucional em face da Constituição antiga (a que
estava em vigor na época em que a norma objeto de controle fo i editada ) ;
e (b) a a ferição de val idade do direito pré-constitucional em confron to com
a Consti tuição futura ( promu lgada em momento posterior ao de edição da
norma controlada e v igente na data de real ização do controle).
A primeira questão concerne à possi b i l idade de se requerer ao Poder
Judiciário, hoje, sob a v i gência da Constituição Federal de 1 98 8 , a decl aração
da inval idade de uma lei antiga em face da Constitu ição antiga, da época em
que tal lei foi editada (por exemplo, discutir a constitucional idade de uma
lei de 1 970, em confronto com a Consti tu ição de sua época, a Constituição
de 1 969).
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 57

Essa poss i b i lidade existe. M esmo quando promulgada uma nova Cons­
tituição, continua sendo cabível a d i scussão da validade das leis antigas em
con fronto com as Constituições antigas, da época ela edição ele tais leis.
Assim, no exemplo acima - discussão acerca ela constitucional idade ele
uma lei de 1 970, em con fronto com a Consti tuição de 1 969 a provocação
-,

ela man i festação do Poder Judiciário é admitida porque o i ndivíduo pode ter
sido a fetado por essa lei no período ele v igênc ia da Constitu ição de 1 969
( até 04 . 1 0. 1 988, véspera da entrada em vigor da Const i tuição atua l). Logo,
ele poderá ter i nteresse em a fastar a apl icação dessa lei naquele período
(de 1 970 até 04 . l 0. 1 988), e, para isso, deverá obter do Poder Judic iário a
declaração da inval idade ela lei referentemente àquele período.
É relevante frisar que, em h ipóteses que tais, conquanto se trate de im­
pugnação ele direito pré-constitucional, a dec isão judicial será uma declaração
ele inconstitucional idade ou de constituc ional idade, e não de revogação ou
recepção. Isso porque a aferição da validade do d i reito questionado é feita
e m face da Constituição da sua época (e não ante a Constituição Federal
ele 1 988).
N o contro le do d i reito pré-constitucional em face da Consti t u ição de sua
época, o Poder J udiciário exami nará a norma objeto da ação em con fronto
com a Carta pretérita quanto à compatibil idade material (de conteúdo) e
também quanto à compa t i b i l idade formal (val idade do procedi mento de ela­
boração e veri ficação se o i nstrumento normativo i m pugnado, por exemplo,
lei ordinária ou lei complementar, é aquele formalmente exigido pela Cons­
titu ição pretérita para tratar da matéria de que ele tratou). E ass i m é porque
uma lei deve ser formal e materia lmente compatível com a Constitu ição
de sua época. M esmo hoje, se for constatada incompati b i l idade material ou
incompatibil idade formal entre a lei pré-constitucional e a Constituição de
sua época, a lei será declarada inconstituciona l .
A fisca l i zação d a v a i idade do direito pré-constitucional em face d a Cons­
tit uição antiga não pode ser realizada mediante controle abstrato perante o
STF, i sto é, não poderá ser objeto de ação d i reta de i nconst i tuciona l idade
( A D I ) , ação declaratória de consti tucional idade ( A DC) ou arguição de des­
cumpri mento de preceito fu ndamental (ADPF).
A razão é que, segundo o STF, o controle abstrato visa a proteger, so­
mente, a Constitu ição vigente no momento em que ele é exercido, i sto é, só
pode ser instaurado, hoje, em face da Const ituição Federal de 1 988, jamais
para fazer valer os termos de Constituições pretéritas.
O i ndiv íduo só poderá d iscutir a val idade do direito pré-constitucional
em face da Const i tuição de sua época no controle difuso, dian te ele um caso
concreto, podendo levar a questão ao conhecimento do STF, por meio do
recurso e xtraord i nário (RE).
SB DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

Vejamos, agora, os pontos relevantes acerca do controle de constitucio­


nal idade do d i reito pré-constitucional em face de Constituição futura, i sto
é, vej amos como o Poder Judiciário fiscal i za, hoje, a validade de uma l e i
pré-constitucional ( publ icada em 1 98 5 , p o r exemplo) em confronto c o m a
Constitu ição Federal de 1 988.
Em primeiro lugar, é i m portante atentar que esse controle de constitu­
ciona l i dade não visa à declaração da inconstitucionalidade da norma pré­
-constituciona l , pois não se pode fa lar em inconstitucionalidade de uma lei
em face de uma Constituição a ela posterior.
O controle que ora apreciamos v i sa à solução de dúvida sobre a recep­
ção ou a revogação de norma pré-constitucional pela nova Consti tu ição. O
Poder Judiciário simplesmente decidirá se a norma antiga foi revogada ou
recepc ionada pela Constituição a ela posterior.
Para essa veri ficação, só é relevante a a ferição ela compatib i l i dade materi al
(ele conteúdo) entre a norma pré-constitucional e a Consti tuição fütura. Não
cabe cogi tar incompati b i l idade formal nesses casos.
Se o Poder Judiciário entender que a lei pré-constituci onal tem o con­
teúdo incompatível com a Constit11 ição atual, deverá declará-la revogada; se
considerar que há compat i b i l i dade material, decidirá pela sua recepção. Não
será perqui rida compati b i l idade formal entre a lei pretérita e a Constitu ição
futura. porque, com a recepção, a lei simplesmente passa a desempenhar,
no ordenamento jurídico que a recebe, o papel cio instrumento normativo
que a nova Constituição exige para a disciplina ela matéri a de que ela, a lei
recepc ionada, trata.
Vejamos, agora, os instrumentos de controle passíveis de serem usados
pelo Poder Judiciário para apreciar o conflito entre lei pré-consti tucional e
Constitu ição futura.
O Poder J udiciário apreci a esse conflito diante de casos concretos sub­
metidos à sua apreciação (controle d i fuso de constitucional idade), ou por
meio de uma ação específica do chamado controle abstrato - arguição de
descumpri mento de precei to fundamental (ADPF) -, proposta por um dos
legiti mados pela Consti tu ição ( C F, art. 1 03 ) perante o Supremo Tri bunal
Federa l .
No controle di fuso, a decisão proferida pelo Poder Judiciário s ó valerá
para as partes cio processo (eficácia inter partes).
No controle abstrato, as decisões proferidas pelo STF nas arguições ele
descumprimento ele preceito fundamental ( A DPF) são dotadas ele eficácia
geral (eficácia e1ga omnes).
O quadro a segui r apresenta uma síntese cios pontos estudados neste
tópico:
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 59
------· ·--- ..
·--------- -·---------·--- -------

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' ' 1 .t
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.. · · C�NTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO P�É·CONSTITUCIONAL: ·;:: __

EM FACE DA CONSTITUIÇÃO EM FACE DE CONSTITUIÇ ÃO


DE SUA É POCA FUTURA
______
___ ___ ,,_________ . ...
1
,
Visa ao reconhecimento da
Visa ao reconhecimento da recepção ou
constitucionalidade ou da
da revogação da lei.
inconstitucionalidade da lei .
- !---
Exame de compatibilidade material e Exame somente da compatibilidade
-·---------------·--·----·----------- · ------ -------

formal. material.

É realizado mediante controle difuso,


Só é realizado no controle difuso,
diante de casos concretos, ou abstrato,
diante de casos concretos submetidos à
mediante arguição de descumprimento de
apreciação do Poder Judiciário.
preceito fundamental - ADPF.

··1. í . . CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUANTO;:.:-.


:..: -.·:
. F
. AO. qRAU DE EF i ACIA E APLICABILIDADE .' . .. : - ..:,·-.:.· , .· · .·,. · ·

As normas const i t u c i o n a i s são dotadas de variados graus de eficácia


jurídica e apl i cabi l i dade, de acordo com a norma t i v i dade que l hes te n h a
s i do o u torgada p e l o const itu inte, fato q u e motivou grandes cloutrinaclores
a e l abora re m d i ferentes propostas ele c l ass i fi cação dessas n o rmas q ua n to a
esse aspecto.

O Const i t ucional ismo moderno refu ta a ideia ela existência ele normas
const i t ucionais desprov idas d e eficácia j u ríd i ca . Reconhece-se que todas as
normas constitucionais possuem e fi cáci a.�º mas se admite que elas se d i fe­
renc i a m quanto ao grau dessa eficácia e quanto a sua a p l icabi l i dade.

Da constatação dessas d i ferenças, R t y Barbosa, i n s p i rado n a doutrina


norte-americana, j á enquadrava as normas constitucionais e m dois grupos:

a) normas "autoexecutáveis" (se(fexecu1i11g; selfenforcing; se/f:ac1i11g), pre­


ceitos constitucionais c o m p l etos, que produzem seus pl enos e fe itos com a
s i m p les entrada em vigor ela Cons t i t u i ção; e

b) normas "não autoexecu t<í veis" (110/ selt:exernting: 1101 self-enforcing pro­
visions ou no/ selfacling), i n d i cadoras de principios, que necessi l a m ele
atuação legislativa posteri or, q u e l hes dê plena apl i cação.

'º Conforme antes visto. na Constituição de 1 988 há duas categorias de disposições que,
embora integrantes de seu texto, são desprovidas de ericácia normativa: (a) o preâmbulo
constitucional: e (b) as normas integrantes do ADCT, depois de ocorrida a situação nelas
prevista. ou seja. depois de exaurido o seu objeto.
60 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO · Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino
-------------·---·-----------·--------------·----------�-··-·-

A lém dessa c lassificação tradicional, apresentamos, a seguir, a consagra­


da c lassificação de José Afonso da Si lva e, por fi m, a elaborada por Maria
Helena D i n iz.

7. 1 . Classificação de José Afonso d a S i lva

O Professor José A fonso da Silva formulou uma c l assificação das nor­


mas constitucionais, que, sem dúvida, é a predominantemente adotada pela
dou tri na e j urisprudência pátrias.
Para José A fonso da Silva, as normas constitucionais não podem ser
classificadas em apenas duas categorias, pois há uma terceira espéc ie que
não se encaixa, propriamente, em nenhum dos dois grupos ideal izados pela
doutrina americana. Dessa forma, o emi nente constitucional i sta pátrio classi f'ica
as normas const i tucionais, quanto ao grau ele eficácia, em:

a) normas constitucionais d e efidic ia plena;


b) normns constitucionais de eficác ia contida;
e) normas constitucionais de eficácia l i m i tada.

7 7. 1. Normas ele eficácia plena

As normas constitucionais de eficúcia plena são aquelas que, desde


a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibil idadt.: dt.:
produzir, todos os e feitos essenciais, relativamente aos i n teresses. compor­
tamen tos e situações que o legislador const ituinte, direta e nomrnti vamente.
quis regu lar.
As normas de eficácia plena não ex igem a elaboração de novas normas
legislativas que l hes completem o alcance e o sentido, ou lhes fixem o con­
teúdo, porque já se apresentam suficientemente explícitas na defi n ição dos
i nteresses nelas regulados. São, por isso, normas ele apl i cabil iclacle d i re t a ,
i m r d i a ta e i n t r g ra l .

7 1.2. Normas ele eficácia contida

As normas constitucionais de eficúcia contida são aquelas em que o legis­


lador constitui nte regu lou suficientemente os interesses relati vos a determ inada
matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência
discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos
termos de conceitos gerais nelas enunciados.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 61

As normas de eficáci a contida são, ass i m , normas constitucionais dota­


das de a p l icabi l idade d i re ta, i m e d i a ta, mas não i n t e g r a l , porque suj ei tas a
restrições que l i m item sua eficác i a e a p l icab i l i dade. Essas restrições poderão
ser i mpostas :

a) p e l o legislador i n lraconstituc i onal (e.g. , a r t . 5 .", 111c1sos V I l i e X I 1 1 ):


b) por outras normas const i tucionais (e.g. , arts. 1 36 a 14 1 , q ue , d i ante do estado
de defosa e estado de sítio. i m pôcm rcstriçôes aos d i re i tos fu ndamenta is):
e) como decorrência do uso, na própria norma constitucional, de conce i tos
é t ico-j u rid icos consagrados, que comportam u m variúvcl grau de i ndetenn i ­
nação. tais como ordem públ ica. segurança nacional, i n tegridade nacional.
bons costumes, necess idade o u u t i l i dade públ ica, perigo público i m inente
( a o fi xar esses conc e i tos, o Poder P ú b l i co podcní l i m i ta r o a lcance de nor­
mas const i t uc ionais. como é o caso do a rl. 5 .", i nc isos X X I V e X X V, que
i m põem restriçôes ao d i reito de propriedade, estabelecido no i nciso X X I I
cio mesmo art igo ) .

E x p l i c a o Pro fessor J o s é A fonso da S i l va que a pec u l i aridade das normas


de eficácia contida configura-se nos segu i n tes pontos:

a ) são normas q ue , em regra, s o l i c i ta m a i ntervenção do legis­


lador ord inário, fazendo e:\pressa remissão a uma legislação
fu tura: mas o apelo ao legis lador orcl i n úrio visa a rest ringir- l hes
a plenitude da eficác i a , regu lamentando os d i rei tos subj e t i vos
que delas decorrem para os c i daclílos, i n d i v iduos ou grupos:
b) enquanto o legislador ord i nário não exped i r a normação res­
t r i t i v a , sua eficácia serú plena: n i sso também d i ferem elas normas
de eficácia l i m itada, ele vez q u e a i nterferência do legis lador
ord i mirio. em relação a estas. tem o escopo de lhes conferir
plena eficácia e a p l i c ab i l idade concreta e pos i t i va :
c ) s ã o ele aplicabil idade d i reta e i mediata, v i sto que o legis lador
cons t i t u i nte deu norm a t i v i dade sufi c iente aos i nteresses v i ncu­
l ados à matéria de q u e cogitam:
d ) a l gumas dessas normas j á contêm u m conce i to ético j u r i d i c i za­
do ( bons costumes, ordem pública etc . ) , com valor soci etário ou
pol ítico a preservar, q u e i m p l ica a l i m itação de sua eficác i a ;
e) s u a eficácia pode a i n d a s e r a fastada pela i nc idênc i a ele outras
normas constitu c ion a i s . se ocorrerem certos pressupostos de fato
( estado de sitio, por exemplo).

Em regra, as normas de eficácia contida ex igem a atuação d o l eg i s l ador


ord i nário, fazendo expressa remissão a u m a l e g i s l ação futura. Entretanto, a
62 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO · Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

atuação do legislador ord i nário não será para tomar exerci tável o direito nelas
previsto (este já é exercitável desde a promulgação do texto constitucional),
tampouco para ampliar o âmbito de sua eficácia (que já é plena, desde sua
entrada em vigor), mas sim para res t r i ngir, para impor l i mi tações ao exer­
c ício desse direito.
Um bom exemplo de norma constitucional de eficácia contida é o art.
5 .", XIII:

XIII - é livre o exerc1c10 de qualquer trabalho, oficio ou


profissão, atendidas as qual i ficações profissionais que a lei
estabelecer;

Essa norma assegura, desde logo, o exercício de qualquer trabalho, oficio


ou profissão, ·mas sujeita-se à imposição de restrições por parte do legislador
ordinário, devendo ser interpretada da seguinte maneira: (a) enquanto não es­
tabelecidas em lei as qualificações profissionais necessárias para o exercício de
determinada profissão, o seu exercício será amplo, vale di zer, qualquer pessoa
poderá exercê-la; (b) em um momento seguinte, quando a lei vier a estabelecer
as qualificações profissionais necessárias para o exercício dessa profissão, só po­
derão exercê-la aqueles que atenderem a essas qualificações previstas em lei.
Outro exemplo temos no inciso V I I I do art. 5.0 ela Consti tuição Federal,
segundo o qual:

VIII ninguém será privado de direitos por motivo de crença


-

religiosa ou de convicção fi losófica ou política. salvo se as


invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e
recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Esse dispositivo assegura a liberdade de crença religi osa e de convicção


fi losófica ou política, e deve ser assim interpretado: (a) a princípio, a li ber­
dade rei igiosa ou de convicção filosófica ou política é ampla, sendo certo
que ni nguém será privado de direito por esses motivos; (b) a lei poderá,
entretanto, fixar prestação alternativa àqueles que invocarem alguma crença
ou convicção para ex imir-se de obrigação legal a todos imposta; (c) uma vez
fixada a prestação alternativa em lei, aquele que alegue motivo de crença
rel igiosa ou convicção filosófica ou política, para eximir-se de obrigação legal
a todos imposta, poderá ser privado de direito, caso se recuse, também, a
cumprir a prestação alternativa.
Outro exemplo é o direito de propriedade. O inciso X X I I do art. 5.º da
Constituição garante o d i reito de propriedade, mas os incisos XXlV e X X V
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÀO 63

apresentam os elementos de sua l i mi tação, permitindo a desapropriação


por necessidade ou utilidade públ ica ou por interesse social, bem como a
requ isição de propriedade particular pela autoridade competente no caso de
perigo públ ico i minente. Com e feito, embora a Constituição Federal assegu­
re a i mediata eficácia do ·dire ito de propriedade (art. 5.0, X X I I ), o mesmo
texto constitucional já autoriza a imposição de restrição ao seu gozo, por
meio de conceitos jurídicos de larga aceitação, tais como "necessidade ou
utilidade públ ica" e "i nteresse social" (na hipótese de desapropriação - art.
5 .º, inc iso X X I V ) ou "iminente perigo públ ico" (na hipótese de req uisição
administrativa - art. 5 .º, X X V ) .

7. 1. 3. Normas de eficácia limitada

As normas constituc ionais de eficác ia lim itada são aquelas que não pro­
duzem, com a simp les entrada em v igor, os seus efeitos essenc iais, porque o
legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria,
uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador
ordinário ou a outro órgão do Estado.
São de aplicabil idade i n d i re t a , m c d i a ta e red u z i d a , porque somente
i ncidem totalmente a part i r de uma normação i n fraconstitucional ulterior
que lhes desenvo lva a eficác ia. Enquanto não editada essa legis lação in­
fraconstitucional integrat í va, não têm o condão de produzir todos os seus
e fe i tos.
O Professor José A fonso da Silva ainda c lassifica as normas de eficácia
l i m i tada em dois grupos disti ntos :

a) as definidoras de princípio institutivo ou organizativo;


b ) as definidoras de princípio programático.

As n o r m a s d e fi n i d o ra s ele p r i n cípio i n s t i t u t i vo o u o rga n i z a t i vo são


aquelas pelas quais o legislador constitui nte traça esquemas gerais de es­
truturação e atribuições de ó rgãos, entidades ou institutos, para que, em
um momento posterior, sejam estruturados em definitivo, med iante l e i . São
exemplos: "a lei disporá sobre a organização admi nistrativa e judiciária dos
Territórios" (art. 3 3 ) ; "a lei disporá sobre a criação, estruturação e atribu ições
dos M i nistérios" (art. 88); "a lei regulará a organização e o funcionamento
cio Conselho de De fesa N acional" (art. 9 1 , § 2 ."); "a lei disporá sobre a
constituição, investidura, jurisdição, competência, garantias e condições ele
exercício dos órgãos ela Justiça do Trabal ho" (art. 1 1 3 ) .
Por sua vez, essas normas constitucionais defin idoras de pri ncípio insti­
tutivo ou organizativo podem ser i m po s i t i vas ou fa c u l t a t i v a s .
64 DIRE ITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO · Vicente Paulo & Marcelo Alexanrlnno

São i m positivas aquelas que determinam ao legislador, em termos pe­


remptórios, a emissão de uma legislação integrativa (e.g. , art. 20, � 2 .": a rt.
32, § 4.º; art. 33; art. 88; art. 9 1 , § 2 .0).
São fa c u ltativas ou permissivas quando não i mpõem uma obrigação,
mas se l i m itam a dar ao legisl ador ord inário a poss i b i l idade de institu i r ou
regular a situação nelas delineada (e.g. , art. 22, parúgrafo único; an. 1 25, §
3.0; art. 1 95, § 4.º; art. 2 5 , § 3.º; art. 1 54, ! ) .
A s n o r m a s c o n s t i t u c i o n a is d e fi n i d o r a s d e p r i n c i p i o s p ro g ra m ú t icos
são aquelas em que o constituinte, em vez de reg u lar, d i reta e i rnedia­
tamente, determi n ados i nteresses, l i m i tou-se a lhes traça r os pri ncíp ios
e d i retrizes, para serem c u mpridos pelos órgãos in tegrantes dos poderes
constitu ídos (legislativos, executivos, j urisdicionais e a d m i n istrativos),
como programas das respectivas a t i v idades, v isando à real i zação dos fins
soc iais cio Estado.
Consti tuem programas a serem real izados pelo Poder Públ ico, d isc ipl i ­
nando interesses econômico-sociais, tais como: realização da j ustiça soc i a l :
valorização do traba lho; amparo à famíl ia; combate ao anal fabe t i smo ele.
Esse grupo é composto pelas normas que a doutrina constitucional de n om i n a
n o r m a s p rogra máticas, de que são exemplos o a rt 7 .º, X X e X X V 1 1 : o a rt.
.

1 73, § 4 º; o art. 2 1 6, § 3.0•


Finalizando, sintetizamos, abaixo, as principais distinções e n t re normas
consti tucionais de eficácia c o n t i d a e normas const itucionais ele eficácia l i­
mitada:

a) com a promulgação d a Constituição, a s normas de eficácia cont ida t ê m


aplicação direta e i mediata, isto é , o dire ito nelas previsto é i mediatamente
exercitável; as normas de eficácia l imitada têm apli cação i n d i reta e mcdiata.
o que significa que o exercício do d i reito nelas previsto depende da edição
de regulamentação ordinária;
b) ambas requerem normatização legislat iva. mas a finalidade dessa normat i­
zação ord inária é d istinta - nas normas de eficácia contida, a normatização
ordinária i mporá l i m i tes ao exercício do direito (que, até então. desde a
promulgação da Constitu ição, era amplamente exercitável); nas normas de
eficácia l i m i tada, a regulação ordinária virá para assegurar. para tornar v iável
o pleno exercício do d i reito, até então não efetivo;
c) a ausência de regu l a mentação tem consequências distintas - no caso das
normas ele e ficácia contida, enquanto não houver regu lamentação ord i ­
nária, o exercício cio d i reito é amplo ( a legislação o rd i n ária virá para
i mpor restrições ao exercício desse d i reito); em se tratando de norma de
eficácia l i m i tada, enquanto não houver regu lamentação ord i nária, não há
e fetivo exerc í c i o do d ire ito (a legislação ord inária virá para tornar pleno
o exercício desse d i re i to).
Cap. 1 • DIRE ITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 65

1---·
J ·-··
Eficácia Plena
·

-----·- l-·. ----·--1


· ··- - --- --· - · ····-·-···-·· - " --�--

Eficácia e
Aplicabilidade j . -·· Eficácia Contida

l
...___,,______ _____

-
das Normas
Constitucionais (José
Afonso da Silva)
----·--·--·-·-

e Principio lnstitutivo • lmpositivas

-------J-
·-

ou Organizativo • Facultativas

· -t

- .
ficá ia

_
�: � [ � } --·--- ---

·
--]
- De Principio
Programático

7. 1.4. Eficácia das normas programáticas

Vi mos que as normas constitucionais programáticas são aquel as de di ­


cúcia limitada que requerem dos órgãos estata i s uma determ i n ad a atuação,
na consecução de um objetivo traçado pelo legislador consti t u inte. Como a
própria denomi nação indica, estabelecem um programa, u m rum o i n i c i a l ­
mente traçado p e l a Const i t uição e que deve s e r persegui d o pelos órgãos
·-

estatais ( exemplos: arts. 2 3 , 205, 2 1 1 , 2 1 5 e 2 1 8 da Const ituição).


As normas programáticas não são normas voltadas para o indi v íduo, e
sim para os órgãos estatais, exigindo destes a consecução de determi nados
programas nelas traçados. São as denominadas n o r m a s de efü: á c i a l i m i t a d a
d e fi n i d o ra s d e p ri n c ípios p ro g r a m ú t i cos, características de u m a constitui­
ção do tipo d i rigente, que exigem do Estado certa atuação futura, em um
determ inado rumo predefi n ido.
Essas normas não produzem seus plenos efe i tos com a mera promulgação
ela Constituição. Afinal, como estabelecem programas a serem concretizados
no fu turo, é certo que só produzirão seus p l enos efe itos u l teriormente, quando
esses programas forem, efetivamente, concretizados.
E ntretanto, não se pode afirmar q ue as n o rmas p rogra m át icas se­
jam despro v i das ele e fi c á c i a j ur íd i c a e n q u a n t o não reg u l a m en tadas ou
i m p le m e n tados os respec t i vos p rogramas. A s n o rm a s q u e i ntegra m u m a
C o n s t i t u ição do t i po r í g i d a s ã o j urídicas e, sendo j ur íd i c a s , t ê m n o rm a ­
t i v idade. A firmar que e s s a s n ormas não p roduzem os seus p l enos e fe i tos
c o m a e n trada em vigor da C o n s t i t u i ção, a n tes da e x i g i da regu l a m e n tação
e i mp l em en tação, não s i g n i fica que sej a m elas despro v i d as de q u a lquer
e ficácia j ur ídica.
66 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

O constitucional ismo moderno firma que as normas programáticas, em­


bora não produzam seus plenos efeitos de imediato, são dotadas da chamada
efi c á c i a n egativa, isto é:

a ) revogam as disposições contrárias ou incompatíveis c o m o s seus comandos


(o d i reito í n fraconstitucíonal anterior à norma constitucional programática
não é recepcionado; diz-se que ela tem eficácia para l isante); e
b) i m pedem que sejam produzidas normas ulteriores que contrariem os pro­
gramas por elas estabelecidos (a norma programática é paradigma para
declaração de i nconstituciona l i dade do d i reito ordinário superveniente que
l he sej a contrário; diz-se que ela tem eficácia i mped i tiva).

Além dessa eficác ia negativa (para lisante e impeditiva), a norma programá­


tica também serve de parâmetro para a i n t e r p rctaçii o do texto consti tuc ional,
uma vez que o intérprete da Constituição deve levar em conta todos os seus
comandos, com o fim de harmonizar o conjunto dos valores consti tucionais
corno integrantes de uma unidade.
Com efeito, o Prof. José A fonso da S i lva esclarece que as normas
programáticas têm eficácia j urídica imediata, direta e vinculante quanto aos
segui ntes aspectos:

a) estabelecem um dever para o legislador ord i nilrio;


b) condicionam a legislação futura, com a consequência de serem i nconstitu­
cionais as leis ou atos que as ferirem;
c) i n formam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação
j urídica, mediante a atribuição de fi ns sociais, proteção dos valores da j ustiça
social e revelação dos componentes do bem comum;
d) constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e apl icação
das normas jurídicas;
e) condicionam a atividade discricionária da Administração e do J ud iciário;
f) criam situações j u rídicas subjeti vas, de vantagem ou de desvantagem.

72
. . Classificação de Maria Helena D i n i z

A Professora M aria Helena Diniz propõe urna classifi cação que combina
os critérios da intangibil idade e da produção de e feitos concretos das normas
constitucionais, segundo a qual temos as seguintes categorias de normas na
·

Constituição :

a) normas com efidcia absoluta;


b) normas com eficácia plena;
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 67

c) normas com eficácia relativa restringível;


d) normas com eficácia relativa dependente de complememaçào legislativa.

As no1mas de e ficác i a a b s o l u t a (ou supereficazes) são nonmis constitu­


cionais i ntangíveis, que não poderão ser contrariadas nem mesmo por meio
de emenda constitucional. É o caso das c láusulas pétreas, prev istas no art.
60, § 4.º, da Constituição Federal de 1 988.
As nonnas com efi c á c í a p l e n a são aquelas p lenamente e ficazes desde a
entrada em vigor da Constituição, por conterem todos os e lementos im pres­
c i ndíveis para que haja a produção imediata dos e feitos previ stos. D i ferem
das nom1as de eficácia absoluta porque, ao contrário destas, poderão ser
ati ngidas por emenda consti tuciona l .
As normas com efi c á c i a r e l a t i v a rest r i n gí v e l correspondem. em sua
descrição, às que o Prof. José A fonso da S i l va denomina normas de eficác i a .
contida, e o Prof. M ichel Temer, normas de eficácia redutível ou restringíve l .
Têm aplicabil idade imediata, embora sua eficácia possa s e r reduzida, restrin­
gida nos casos e na forma que a lei estabelecer.
As normas com cficúcia re l a t i v a c o m p l c m c n t{ n·cl ( ou dependente de
complementação legislativa) não têm apl icação i mediata, por dependerem
de norma posterior que l hes desenvolva a eficácia, para então perm i t i r o
exercício do dire i to ou do beneficio nelas consagrado. Sua possibil idade de
produção ele efei tos é mediata, pois, enquanto não for promu lgada a legis­
lação regu lamentadora, não prod uzirão e fe i tos positivos, mas terão eficác i a
p a ra l i s a n t e d e e fei tos de normas precedentes i ncompatíveis e i m p ed i t i va d e
qualquer conduta contníria ao q u e estabelecerem.

l--- Efi���i a e----


Aplicabilidade
.,
- [ -Efic��;:-�;�-n� -

Cons��u5c���%ª�Mana ----�-! EfiRestringível


�é���- Rel;�;ª--j,
Helena Diniz)
- ...... .. - - - ------ .. 1
li , ----
L_ --------
- .- -

. Eficácia Relativa li
______ ______ ·--······ ·· · · ...
· ··

1 Dependente de
----- Complementação
1 Legislaliva J
· ·
··- - --··---··-····· --- ---·-· J
68 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

8. INTERPR.ETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO . : ' .

Interpretar as normas consti tucionais significa compreender, investigar o


conteúdo semântico cios enunc iados l i nguísticos que formam o texto cons­
t i tucional. Trata-se de tarefa não só dos tribunais do Poder Judiciário, mas
também dos Poderes Legislativo e Executivo.
Sabe-se que a Constitu ição protege, simul taneamente, di ferentes bens
e d i reitos (integridade tisica e moral, l i berdade de i mprensa, l i berdade de
crença re ligiosa, propriedade etc.), espel hando valores que poderão conflitar
ou col i d i r em determ inadas relações. Diante ele um caso concreto, poderão
entrar em confronto, por exemplo, o direito à l i berdade de i mprensa e a ga­
rantia da inviolab i l i dade da intimidade cio indivíduo; ou, ainda, a l i berdade
de pensamento e a vedação ao racismo - e assim por d i ante.
Em si tuações como essas, torna-se indispensáve l a apl icação das técnicas
ele i nterpretação consti tucional, não somente para solucionar, no caso concreto,
o conflito entre os bens consti tucional mente protegidos, mas, sobretudo, para
con ferir eficácia e aplicabil idade a todas as normas constitucionais.
A interpretação constitucional não tem natureza substancialmente d i ferente
da que se opera em outras áreas. São, portanto, apl icáveis à interpretação
constitucional os mesmos métodos de interpretação das demais normas ju­
rídicas - gra matical , teleológico, sistemútico, h istórico etc. Ao l a d o destes,
entretanto, como decorrência ela superioridade h ierúrquica elas normas cons­
ti tuciona is, ex i stem alguns princípios e métodos próprios, que norte iam a
interpretação das Constituições.
O Const i tucional ismo moderno refuta a tese in claris cessai i111erpre1a1io , "
que entendia ser desnecessária a interpretação se o conteúdo do d ispositivo
a ser aplicado fosse por demais ev idente. Modernamente, é reconhec ida a
i mpresc i nd i b i l idade da i nterpretação em todos os casos, espec ial mente quando
se trata de leis constitucionais.
Con forme nos ensina o constitucional ista Cano t i l ho, "toda a norma é
significativa, mas o significado não constitui um dado prévio; é, s i m , o re­
sul tado da tarefa interpretativa".

8.1 . Correntes i nterpretativistas e não i n terpretativistas


O Prof. J . J. Gomes Canoti l ho destaca duas correntes que polarizam a
problemática da i n terpretação constituc i onal nos Estados Un idos da A mérica,
quais sejam: a i nterpretativista e a não interpretati v ista.

21 O velho brocardo in claris cessa/ interpreta/ia pressupõe a existência de leis cuja redaçào.
se bem cuidada, impediria dúvidas, obscuridades ou contradições, tornando dispensável a
atividade interpretativa.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 69

As co r ren tes i n t c r p rl' l a t i v i s l a s considt:rarn que os j u ízes, ao i nter­


pretarem a Constitu ição, devem l i m itar-se a captar o sentido dos precei tos
ex pressos na Consti t u ição, ou, pelo menos, n e l a c laramente i m p l í c i tos. O
interpretativis mo, embora não se confu n da com o l i tera l ismo - segundo o
qual a competência i nterpreta tiva dos j u ízes vai apenas até onde o texto
claro da i nterpretação lhes perm i te ·-, aponta conH> l i m i tes de competência
i nterpretat iva a textura semântica e a v o n tmk do legislad o r. Enfim, para os
i nterpretati v i stas, o controle j udicial dos a t os l e g i s l a t i vos tem dois l i m i tes
c laros: o da própria Const i t u i ção escrita c 1l da vontade do poder polí tico
democrático.
As co r re n t es não i n t c rp n· t a t i Y i s t a s clell:: ndern a pos s i b i l idade e a neces­
s idade de os j u ízes invocarem e apl icarem v a l ore s e pri ncípios substan t i vos
- pri ncíp ios da l iberdade e da j ustiça - con t ra atos da responsab i l i dade do
Legislativo em descon form idade com o projeto da Cons t i tu i ção. Deve-se,
porta nto. apelar para os valores s u b s t a n t i v o s j u st iça, igua l dade, l i berdade
- e não apenas ou prevalentemente para o pri 1 K í p i o democrá tico, a fim de
perm i t i r aos j u ízes uma competência i n tcrpre1<1 t i v a .

8.2. M étodos d e i nt e rpretação

Nos dias atuais, a interpretação das normas consti tuc ionais rea l i za-se
pela apl icação ele um conj u nto ele m é t odos desen volvidos pela doutrina e
pela j ur i sprudênc ia com base em critérios ou prem issas d i ferentes, mas, em
geral. rec iprocamente complementares. o que con f i rm a a natureza u n itária
da a t i v i dade interpretat iva.
O constitucional i s ta português J . J . Gomes Canoti l ho, não obstante reco­
nheça o caráter hol íst ico da ativ idade ele i n tcrprctaç<io consti tuciona l . descreve
seis d i ferentes métodos pelos quais ela pode se desenvolver, quais sej a m :
o método j ur íd ico, o método tópico-problemático, o método hermcnêuti co­
-concretizador. o m étodo científico-espi ritual. a metód ica j u rídica normativo-
-estruturante e a interpretação comparativa.
Apresentamos. a seguir, uma s íntese d a l i ção do renomado constitucio­
nal i sta l uso acerca das características dos c1 i l"cn:n tes métodos.

8.2. 1 . o rnetoclo juriclico (método herm enêu tico clássico)

O método j urídico adota a premissa de q u e a Constitu ição é, para todos


os efei tos, uma l e i . Logo, i nte1vretar a Constitu içào é i nterpretar uma l e i .
Para captar o sentido ela lei const itucional devem s e r u t i l i zados os cânones
ou regras trad icionais da hermenêu t ica.
70 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

O sentido das normas constitucionais desvenda-se através da util ização,


como elementos i nterpretativos: (a) do elemento fi lológico (literal, gramati­
cal, textual); (b) do elemento lógico (sistemático); (c) do elemento h istóric o
(análise d o contexto em que s e desenrolaram os trabalhos do constitui nte e
dos registros dos debates então travados); (d) do elemento teleológico (per­
quirição da final idade da norma); (e) do elemento genético ( investigação das
origens dos conceitos empregados no texto constitucional).
Por esse método, atribui-se grande importância ao texto da Constituição,
uma vez que este é adotado como ponto de partida para a tarefa do i ntér­
prete, e, sobretudo, como limite de sua atuação: a função do intérprete é
desvendar o sentido do texto, sem i r além do teor literal dos seus preceitos,
menos ainda contrariá-los.

. 8.2.2. O método tópico-problemático

O método tópico-problemático, no âmbito do direito constitucional, parte


das seguintes premissas: ( 1 ) a interpretação constitucional deve ter um caráter
prático, buscando resolver problemas concretos; (2) as normas constitucionais
têm caráter fragmentário (não abrangem todas as situações passíveis de ocorrer
na real idade social, mas só as mais relevantes) e indeterminado (possuem
elevado grau de abstração e generalidade); (3) as normas constitucionais
são abertas, por isso, não podem ser apl icadas mediante si mples operações
de subsunção (enquadramento direto de casos concretos nas hipóteses nelas
descritas), o que implica deva ser dada preferência à discussão do problema.
Esse método, então, propõe a interpretação da Constituição mediante um
processo aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo
de intérpretes), tentando adaptar ou adequar a norma constitucional ao pro­
blema concreto. Em síntese, procura-se solucionar o problema "encaixando"
em uma norma constitucional, ou conjunto de normas, a solução que se
pretende adotar.
Para J. J . Gomes Canotilho a adoção desse método merece sérias reti­
cências, pois além de poder conduzir a um casuísmo sem lim ites, a inter­
pretação não deveria partir do problema para a norma, mas desta para os
problemas.

8.2.3. O método hermenêutico-concretizador

O método hermenêutico-concretizador reconhece a importância do aspecto


subjetivo da interpretação, ou seja, da pré-compreensão que o intérprete possui
acerca dos elementos envolvidos no texto a ser por ele interpretado.
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 71

Essa pré-compreensão faz com que o i ntérprete, na primeira leitura do


texto, extraia dele um determinado conteúdo, que deve ser comparado com
a realidade existente. Desse confronto, resulta a reformulação, pelo intérpre­
te, de sua própria pré-compreensão, no intuito de harmonizar os conceitos
por ele preconcebidos àquilo que deflui do texto consti tucional, com base
na observação da realidade social. Essa reformulação da pré-compreensão e
consequente releitura do texto, cotejando cada novo conteúdo obtido com a
real idade social, deve repetir-se sucessivamente, até qut.: se c h egue à solução
mais harmoniosa para o problema.
Impõe-se, assim, um "movimento de ir e vir", do subjetivo para o objeti ­
vo - e, deste, de volta para aquele -, mediante comparação entre os diversos
conteúdos que se extraem do texto, decorrentes de sucessivas reformulações
da pré-compreensão do intérprete, e o contexto em que a norma deve ser
aplicada (realidade social). Esse "movimento ele ir e vir" é denominado
"círculo hermenêutico":
Esse método reconhece que a i nterpretação implica um preenchimento
ele sentido juridicamente criador, em que o i ntérprete efetua uma atividade
prático-normativa, concretizando a norma, a partir de uma situação históri­
ca concreta, para a esta aplicá- la. Não autoriza, entretanto, uma criação de
sentido livre, excl usivamente a partir da pré-compreensão ele conceitos que
o intérprete traz consigo. Exige o método que o intérprete, pau lati namente,
encontre o sentido do texto, comparando o resultado que advém de diversas
leituras - cada qual baseada na sua pré-compreensão, sucessivamente refor­
mulada - com a realidade a que ele deve ser apl icado.
No fundo, esse método vem realçar e iluminar vários pressupostos da
tarefa interpretativa: ( 1 ) os pressupostos subjetivos, dado que o in térprete
desempenha um papel criador (pré-compreensão) na tarefo de obtenção do
sentido do texto constituciona l ; (2) os pressupostos objetivos. isto é, o contexto,
atuando o intérprete como operador de mediações entre o texto e a situação
cm que se aplica; ( 3 ) relação entre o texto e o contexto com a mediação
criadora cio intérprete, transformando a interpretação cm "movimento ele ir
e vir" (círculo hermenêutico).
O método hermenêutico-concretizaclor a fasta-se do método tópico-proble­
mático, porque enquanto o ú l timo pressupõe ou admite o primado do problema
sobre a norma, o primeiro reconhece a prevalência do texto constitucional,
ou seja, que se deve patiir da norma constitucional para o problema.

8.2.4. O método cientifico-espiritual

Este método baseia-se na premissa de que o intérprete deve levar em conta


os valores subj acentes ao texto constitucional , integrando o sentido de suas
72 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

normas a partir da "captação espiritual" da rea l idade da comunidade. Adota-se


a ideia de que a i nterpretação visa não tanto a dar resposta ao sentido cios
conceitos do texto constituc ional, mas fundamentalmente a compreender o
sentido e a real i dade da Constituição, em sua articulação com a i ntegração
espiritual real da comunidade.
Em síntese, o método c ientífico-espiritual é um método ele cunho so­
ciológico, que analisa as normas consti tucionais não tanto pelo seu sentido
textual , mas precipuamente a partir ela ordem de valores subjacente ao texto
constitucional, a fim de alcançar a integração da Constitu ição com a real idade
espiritual da comunidade.

8.2.5. O método normativo-estruturante

Este método dá relevância ao fato de não haver identi dade entre norma
j u rídica e texto normativo. A norma consti tucional abrange um "pedaço da
rea l idade social"; ela é conformada não só pela atividade legislativa, mas
também pela j urisdicional e pela adm inistrativa.
Consequentemente, o intérprete eleve identificar o conteúdo da norma
constitucional mediante a anál ise de sua concretização normativa em todos
os níveis. A tarefa de investigação compreende a interpretação do texto ela
norma (elemento l iteral da doutrina clássica), e também a verificação dos
modos de sua concretização na real i dade soc i a l .
Pretende-se que o conteúdo d a norma, assim determinado, exatamente
por levar em conta a concretização da Constituição na real idade soc i a l , sej a
apl icável à tomada de decisões n a resolução ele problemas práticos.

8.2.6. A interpretação comparativa

A interpretação comparativa pretende captar a evolução de i nsti tutos ju­


rídicos, normas e conceitos nos vários ordenamentos juríd icos. identi ficando
suas semel hanças e diferenças, com o i ntuito ele esclarecer o signi ficado
que eleve ser atribu ído a determinados enunciados l inguísticos u t i l i zados na
formulação de normas constitucionais.
Por meio dessa comparação, é possí ve l estabelecer uma comun icação
entre várias Constituições e descobrir critérios apli cáveis na busca da melhor
solução para determi nados problemas concretos.

8.3. Princípios d e i nterpretação

Ao lado cios métodos acima descritos - e como d i retrizes de sua apl i cação
- a doutrina identifica a existência de determinados princípios especí ficos
Cap. 1 • D I R E I TO CONS T I T UCIONAL E CONSTITUIÇÃO 73

de i nterpretação consti tuciona l . M a i s uma vez adotamos como referência a


doutrina cio const i tucional ista l u s i t ano .1. J . Gomes Canoti l ho, para quem os
segui ntes princípios merecem nota : pri n c ípio ela unidade eia Constituição,
princípio do e fe i to integrador, pri n c í p i o da máxima e fetividade, p r i n c í pio da
justeza, princípio ela concordiincia prút ica e pri ncípio da força normativa da
Const ituição.

8. 3. 1. Princípio da unidade do Comtituição

Segundo este princípio, o texto de urna Constitu ição deve ser interpretado
de forma a evi tar contradições ( a n t i nomias) entre suas normas e, sobretudo,
entre os princíp ios consti tucionalmente estabe l ec idos. O princípio d a u nidade
obriga o intérprete a considerar a Const itu ição na sua global idade e a procurar
harmonizar os espaços ele tensão c x i stentcs entre as normas const itucionais
a concreti zar.
En fi m, o i n térprete, os j u í zes e as dema is a utoridades encarregadas de
a p l icar os comandos const i t u c iona i s devem considerar a Const i t u ição na
sua globa l idade, procura ndo harm o n izar suas aparen tes contrad ições. De­
verão sempre tra t a r as normas const i t u c i o n a i s não como normas isoladas
e d ispersas, mas como prece i tos i n tegrados num s i s tema i nterno u n i tário
ele normas e pri n c ípios, cornpreencle nclo-os, na medida do poss í v e l , como
se fossem obra de u m só autor. ex pressão ele u m a u n idade harm ô n i c a e
sem con trad ições.
Como decorrência cio pri n c í p i o ela un idade da Constitu ição, temos que:

a) todas as normas con t idas numa Const i t u i ção formal têm igual d i g n i dade
·- não há h i erarq u ia, re lação de subordinação e n tre os d i spos i t i vos da Lei
M a íor;

b) não e x i stem normas constituc i o n a i s originárias i ncons t i tucionais - devido à


ausênc i a de h i erarq u i a entre os d i ferentes d i spos i t i vos const i tucionais, não
se pode reconhecer a incon s t i t uc i onal idade ele u m a norma constitucional
e m face de outra. a i nda que u m a delas constillla c láusu l a pétrea;

c) não existem a n t i nomias norm a t i vas verdadeiras e n tre os d i spos i t i vos cons­
t ituc ionais - o texto const i tucional clevcrú ser l i do e i n terpretado de modo
harmôn i co e com ponderação de seus pri ncíp ios. c l i m i nnndo-sc com isso
eventua is a n t i nomias apare n tes.

8.3.2. Principio do efeito integrodor

Corolário do princípio da u n idade da Const i tu ição, o pri n c í p i o i ntegrador


sign i fica que, na resol ução cios probl emas jurídico-constitucionais, deve-se dar
74 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a i ntegração política


e social e o reforço da unidade pol ítica.

8.3.3. Princípio da máxima efetividade

O princípio da máxima efetividade (ou princípio da eficiência, ou prin­


cípio da i nterpretação efetiva) reza que o i ntérprete deve atribuir à norma
constituci onal o sentido que lhe dê maior eficácia, mais ampla efetividade
social.
Embora sua origem estej a l igada à eficác ia das normas programáticas,
é hoje princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas consti­
tucionais, sendo, sobretudo, invocado no âmbito dos direitos fundamentais
(em caso de dúvida, deve-se preferir a interpretação que l hes reconheça
maior eficácia).

8.3.4. Princípio da justeza

O princípio da justeza (ou da conformidade funcional) estabelece que o


órgão encarregado de interpretar a Constituição não pode chegar a um resul­
tado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional estabelecido
pelo legislador constituinte.
Ass i m , a apl icação das normas constitucionais proposta pelo intérprete
não pode impl icar al teração na estrutura de repartição de poderes e exercí­
cio das competênc ias consti tucionais estabelecidas pelo poder constituinte
originário .

8.3.5. Princípio da harmonização

Este princípio é decorrência lógica do princípio da uni dade da Cons­


titu i ção, exigindo que os bens j urídicos constitucional mente protegidos
possam coex istir harmon iosamente, sem predomínio, em abstrato, de uns
sobre outros.
O princípio da harmonização (ou da concordância prática) impõe a
coordenação e combi nação dos bens j urídicos - quando se verifique conflito
ou concorrência entre eles - de forma a evitar o sacrificio (total) de uns em
relação aos outros.
Fundamenta-se na ideia de igualdade de valor dos bens constitucionais
(ausência de hierarquia entre dispositivos constitucionais) que, no caso de
conflito ou concorrência, impede, como sol ução, a aniqui lação de uns pela
apl icação de outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 75

recíprocos de forma a consegu ir uma harmonização ou concordância prática


entre esses dispositivos.

8.3.6. Princípio da força normativa da Constituição

Concebido por Konrad Hesse, esse princípio impõe que, na i nterpretação


constitucional, seja dada prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta
os pressupostos da Constituição (normativa), possam contribuir para uma
eficácia ótima da Lei Fundamental .
Segundo esse postulado, o intérprete deve valorizar as soluções que
possibil item a atualização normativa, a eficácia e a permanência da Cons­
tituição.
Enfim, o intérprete não deve negar eficácia ao texto constitucional, mas
sim lhe conferir a máxima aplicabilidade.

8.3.1 In terpretação conforme a Constituição

O princípio da interpretação conforme a Constituição impõe que, no


caso de normas polissêmicas ou plurissignificativas (que admitem mais de
uma interpretação), dê-se preferência à interpretação que lhes compatibilize
o sentido com o conteúdo da Constituição.
Como decorrência desse princípio, temos que:

a) dentre as várias possibilidades de interpretação, deve-se escolher a que não


sej a contrária ao texto da Constituição;
b) a regra é a conservação da val idade da lei, e não a declaração de sua
inconstitucionalidade; uma lei não deve ser declarada inconstitucional quan­
do for possível conferir a ela uma interpretação em conformidade com a
Constituição.

Porém, a doutrina e a j ur i sprudência apontam limites à uti lização da


interpretação conforme a Constituição:

a) o intérprete não pode contrariar o texto l iteral e o sentido da nonna i nter­


pretada, a fi m de obter concordância da lei com a Constituição;
b) a i nterpretação conforme a Constituição só é admitida quando existe, de
fato, um espaço de decisão (espaço de interpretação) em que sejam admis­
síveis várias propostas i nterpretativas, estando pelo menos uma delas em
conformidade com a Constituição, que deve ser preferida às outras, em
desconformidade com ela;
76 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Pauto & Marcelo Alexandrino

e) no caso de se chegar a um resultado interpretativo de uma lei inequivoca­


mente em contradição com a Constituição, não se pode utilizar a interpre­
tação conforme a Constituição; nessa hipótese, impõe-se a declaração da
inconstitucional idade da norma;
d) deve o intérprete zelar pela manutenção da vontade do legislador, devendo
ser afastada a interpretação conforme a Constituição, quando dela resu ltar
uma regulação distinta daquela originariamente almejada pelo legislador. Se
o resultado interpretativo conduz a uma regra em manifesta dissintonia com
os objetivos pretendidos pelo legislador, há que ser a fastada a interpretação
conforme a Constituição, sob pena de transformar o intérprete cm ilegítimo
legislador positivo.

8.4. Teoria dos pod eres i m plícitos

Para finalizar o assunto "interpretação da Constituição", cabe mencionar,


brevemente, a denominada "teoria dos poderes implícitos" (imp/ied powers).
Essa doutrina, desenvolvida pelo constitucionalismo norte-americano,
adota a premissa de que a atribuição, pela Constitu ição, de uma determi­
nada competência a u m órgão, ou o estabeleci mento de um fi m a ser por
e l e atingido, implici tamente confere os poderes necessários à execução
dessa competência ou à consecução desse fim (se a Constituição preten­
d e o fim, entende-se que tenha assegurado os meios para a satisfação
desse fi m).
Segundo esse postulado, a atribuição de competências constitucionais
i mplica a correspondente atribuição de capacidade para o seu exercício. Dessa
forma, na interpretação da abrangência ou do conteúdo de um poder consti­
tucionalmente atribuído, todos os meios ordinários e apropriados a executá-lo
devem ser vistos como parte desse próprio poder. Yale dizer, sempre que a
Constituição outorga um poder, uma competência, ou indica um fim a ser
atingido, incluídos estão, implicitamente, todos os meios necessários à sua
efetivação, desde que guardada uma relação ele adequação entre os meios e
o fim (princípio da proporcionalidade).
Em resumo, para os que propugnam essa doutrina, a outorga constitu­
cional de uma competência, ou a indicação de um obj etivo a ser atingido,
deve ser interpretada presumindo-se que às autoridades públicas foram,
simultânea e implicitamente, conferidos os poderes necessários e suficientes
para o desempenho daquela competência ou para a concretização material
daquele objetivo.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, em
i mportantes julgados, a aplicabilidade da teoria dos poderes implícitos no
Brasil. Com fundamento nessa teoria, por exemplo, nossa Corte Suprema
reconheceu ao Tribunal de Contas da União competência para a concessão
Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 77
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de med i d as ca u t e l a res no desempenho de suas atribuições constitucionais,


estabel ecidas no art. 7 1 da Carta da República_ Conforme o entendimento
do STF, vale frisar, o fato de o art. 7 1 da Constituição Federal outorgar
explicitamente diversas atribuições ao Tri bunal de Contas da U nião impl ica
reconhecer a outorga i m p l íc i t a dos meios necessários à integral e eficiente
real ização de tais atribuições, dentre os quais a concessão de medidas cau­
telares, quando tal providência for indispensável para garantir a e fetividade
de suas decisões de mérito.
Capítu lo 2

PODER CONSTITUINTE

1. CONCEITO · . .

Nos Estados que adotam Constituição do tipo rígida, há uma n ítida dis­
tinção entre o processo legislativo de elaboração de normas constitucionais
e o processo legislativo de elaboração das demais normas do ordenamento.
Nesses Estados, identificam-se duas categorias de legisladores, a saber:
o legislador constituinte, com competência para elaborar normas constitu­
cionais, e o legislador ordinário, com competência para elaborar as normas
i n fraconstitucionais do ordenamento.
O poder constituinte é aquele exercido pelo primeiro dos legisladores
mencionados, ou seja, é o poder de elaborar e modificar normas constitu­
cionais. É, assim, o poder de estabelecer a Constituição de um Estado, ou
de modificar a Constituição já existente.
A teoria do poder constituinte foi inicialmente esboçada pelo abade
francês Emmanuel Sieyês, alguns meses antes da Revolução Francesa, em
sua obra "Qu 'est-ce que le Tiers- État?" ("O que é o Terceiro Estado?").
I nspirou-se nas ideias iluministas em voga no século XVI I I , e foi aperfeiço­
ada pelos constitucionalistas franceses posteriores, com destaque para Carré
de Malberg (que incorporou a ela a ideia de soberania popular, preconizada
por Rousseau).
O ponto fundamental dessa teoria - que explica a afirmação de que ela
somente se aplica a Estados que adotam Constituição escrita e rígida, e faz
com que ela al icerce o princípio da supremacia constitucional - é a distin­
ção entre poder constituinte e poderes constituídos. O poder constituinte é o
80 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO · Vicente Paulo & Marca/o Alexandrino

poder que cria a Constituição. Os poderes constituídos são o resultado dessa


criação, isto é, são os poderes estabelecidos pela Constituição.

2.
·
TITULARIDADE

A teoria do poder constituinte está relacionada com a legitimidade do


poder, com a soberania nacional e a soberania popular em um dado Estado.
Nasceu do fortalecimento do racionalismo, em oposição ao poder absoluto
das monarquias de direito divino, com a substituição de Deus pela naçiio,
como titular da soberania. Para Sieyes, o titular legítimo do poder constituinte
seria unicamente a N ação.
Contemporaneamente, porém, é hegemônico o entendimento de que o
titular do poder constituinte é o povo (e . não mais a nação), pois só este
tem legitimidade para determinar quando e como deve ser elaborada uma
nova Constituição, ou modificada a já existente. A soberania popular, que é,
na essência, o poder constituinte do povo, é a fonte única de que procedem
todos os poderes públicos do Estado. Mesmo nos regimes ditatoriais é o povo
o único e legítimo titular do poder constituinte (o que se dá, nesse caso,
conforme será expl icado no item seguinte, é a usurpação desse poder).

3. FORMAS DE EXERCÍCIO .
. ·
.
·

O poder constituinte ongmano pode mani festar-se na criação de um


novo Estado (por exemplo, as desintegrações do Império Otomano, da União
Soviética, da Iugoslávia deram origem a vários novos Estados), ou na re­
fundação de um Estado, com a substituição de uma Constituição por outra,
como ocorre no caso de golpe, revolução, desagregação social, ou mesmo,
se assim desejar o povo, em períodos de normalidade social. No primeiro
caso - criação do Estado -, temos o denominado poder constituinte h i s t ó r i co
e, nos demais, o poder constituinte rrv o l u c ion ú río.
Conquanto na atualidade haja um consenso teórico em afirmar que é o povo
o t i t u l a r do poder constituinte, o seu exercício nem sempre tem se realizado
democraticamente. De fato, em diversos países o poder constituinte tem sido
exercido por ditadores ou por grupos que se alçam ao poder mediante a rup­
tura da ordem democrática, resultando na criação autocrática da Constituição.
Trata-se de uma forma de exercício do poder constituinte pela única vontade do
detentor do poder, sem nenhuma representação nem participação do povo.
Observa-se, assim, que, não obstante a titularidade do poder constituinte
sej a sempre do povo, temos duas formas distintas para o seu e x ercício: ele-
Cap. 2 • PODER CONSTITUINTE 81

mocrática (poder constituinte legítimo) ou a u to c r ú t i c a (poder constituinte


usurpado).
O exercício autocrático do poder constituinte caracteriza-se pela deno­
minada o u t orga : estabelecimento da Constitu ição pelo indivíduo, ou grupo,
líder do movimento revolucionário que o alçou ao poder, sem a participação
popular. É ato unilateral do governante, que autolimita o seu poder e impõe
as normas constitucionais ao povo (e, teoricamente, a si mesmo).
A outorga constitui, portanto, a criação autocrática da Constituição, um
exerc ício do poder constituinte pela única vontade do detentor do poder,
sem a representação nem participação dos governados, do povo, destinatários
do poder. Temos, nesse caso, o que a doutrina chama de poder constituinte
usurpado (Jorge Miranda; Paulo Bonavides).
O exercício democrático do poder constituinte ocorre pela asse m b l e i a
n a c i o n a l c o n s t i t u i n t e ou c o n v e n ç ã o : o povo escolhe seus representantes
(democracia representativa), que formam o órgão constituinte, i ncumbido de
elaborar a Constituição do tipo p ro m u l ga d a .
A atuação d o poder constitui nte por meio d e uma assembleia nacional
constituinte ou convenção composta de representantes do povo democratica­
mente eleitos é a forma típica de exercício democrático do poder constituinte,
desde as origens do constitucionalismo (Convenção de Filadélfia de 1 787 e
Assembleia Nacional Francesa de 1 789). Com a uti lização desse sistema, o
povo, legítimo titular do poder constituinte, democraticamente, confere poderes
a seus representantes especialmente eleitos para a elaboração e promulgação
da Constituição.
No exercício democrático do poder constituinte pode, ainda, haver maior
participação popular do que a verificada na mera eleição de representantes
para compor o órgão constituinte (democracia representativa).
Com efeito, é possível a participação direta do povo no processo de
elaboração ou de aprovação da Constituição (democracia participativa), por
meio de p lebiscito ou referendo, ou mediante apresentação, ao órgão cons­
tituinte, de propostas populares de dispositivos constitucionais para serem
apreciadas e, se aprovadas (com ou sem modificações), incorporadas ao texto
da Constituição (uma espécie de "iniciativa popular constitucional").
H istoricamente, tem sido mais frequente a democracia participativa traduzir­
-se na sujeição do texto constitucional à aprovação do povo: a Constituição é
elaborada pela assembleia constituinte ou convenção e, ulteriormente, submetida
a aprovação ou rejeição pelo povo, em sufrágio - referendo popular.
Na h istória constitucional do Brasi l , o poder constituinte nem sempre
se exercitou segundo o princípio da legitimidade democrática. A lém disso,
nenhuma de nossas Constituições teve seu texto, elaborado pelo órgão cons-
82 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

tituinte formalmente incumbido dessa tarefa, aprovado em referendo popular


(somente a Constituição de 1 937, autoritária, outorgada, previa um plebiscito
para a aprovação de seu texto, mas esse plebiscito nunca chegou a ser con­
vocado - caso tivesse ocorrido, teria sido um caso típico de Constitu ição
cesarista). Todas as nossas Constituições democráticas foram promulgadas
diretamente pela assembleia constituinte, sem qualquer participação popular
direta no ato de promulgação.
Apesar disso, podemos apontar como resultantes do exercício legítimo
(democrático) do poder constituinte as Constituições de 1 89 1 , de 1 934, de
1 946, e a vigente, de 1 988. Foram outorgadas, resultando de usurpação do
poder constituinte, as Cartas de 1 824, 1 93 7, 1 967 e 1 969.
Seja qual for a forma de exercício do poder constituinte - legítima ou
mediante usurpação - um ponto deve ficar claro: sempre que houver ruptura
da ordem constitucional estabelecida, e sua substituição por uma outra, ocor­
re manifestiu;ão do pod er constit u i n te, ou seja, a nova Constituição será
sempre obra do poder constituinte, mesmo que imposta mediante exercício
ilegítimo desse poder.
O fato de residir no povo a titularidade do poder constituinte não tem
relevância para determinar quando há manifestação do poder constituinte,
vale dizer, mesmo nos casos em que há usurpação desse poder, e uma nova
Constituição é outorgada por um ato autoritário, não democrático, o só fato
de substituir-se o ordenamento constitucional vigente por um outro consubs­
tancia manifestação do poder constituinte; essa criação e imposição de uma
nova ordem constitucional é obra do poder constituinte originário.

4. . ESPÉCIES

São duas as clássicas espec1es de poder constituinte identificadas pela


doutrina: o originário e o derivado.
Embora pouco estudados pela doutrina pátria, alguns autores têm destaca­
do, também, a existência do poder constituinte d i fuso e do poder constituinte
s u p ranacional .

4. 1 . Poder constitui nte ori g inário

Poder constituinte originário (i naugural, fundacional, primogênito, ge­


nuíno, primário, de primeiro grau ou ini cial) é o poder de elaborar uma
Constituição.
No procedimento de elaboração de uma nova Constituição, podemos
identificar dois momentos de atuação do poder constituinte originário, que
Cap. 2 • PODER CONSTITUINTE 83

se sucedem: um momento material e um momento formal, de onde decorrem


as noções de poder con s t i t u i n te material e poder co n s ti t u i n te fo r m a l ,
concebidas pelo constitucionalista português Jorge Miranda.
Num primeiro momento, temos o poder constitu i n te m a terial, que é
o poder de autoconformação do Estado, segundo certa ideia de Direito. É a
decisão política de criação de um novo Estado.
Posteriormente, temos o poder co nstitu i n te fo rmal, que transforma
essa "ideia de Direito" (momento material) em "regra de Direito", dotada
de forma e força jurídica, mediante a elaboração da Constituição (momento
formal) . O poder constituinte formal , portanto, é responsável pela elaboração
da Constituição em si, momento em que se dá j uridicidade e forma à ideia
de Direito.
Enfim, há sempre dois momentos no processo constituinte: o do triunfo de
certa ideia de D ireito ou do nascimento de certo regime (momento material)
e o da formalização dessa ideia ou desse regime no texto da Consti tuição
(momento formal).
Na l ição de Jorge Mi randa,

são dois momentos que se sucedem e completam, o primeiro


em que o poder constituinte é só material, o segundo em que
é, simultaneamente, material e formal. Ou ainda: primeiro, há
um poder constituinte material não fomial; depois, um poder
constituinte material formal. ( . . . ) Não somente o poder consti­
tuinte formal complementa e especifica a ideia de Direito como
é, sobretudo, através dele que se declara e firma a legitim idade
em que agora assenta a ordem constitucional. Confere, em con­
trapartida, o poder constituinte formal estabilidade e garantia
de permanência e ele supremacia hierárquica ou sistemática ao
princípio normativo i nerente à Constituição material. Confere
estabilidade, visto que a certeza do Direito exige o estatuto da
regra. Confere garantia, visto que só a Constituição formal coloca
o poder constituinte material (ou o resultado ela sua acção) ao
abrigo das vicissitudes da legislação e da prática quotidiana do
Estado e das forças políticas.

São cinco as tradicionais características apontadas pela doutrina para o


poder constituinte originário: trata-se de um poder político, inicial, i ncondi­
cionado, permanente e ilimitado (ou autônomo).
É um poder essencialmente político, fático, metaj urídico, extraj urídico
ou pré-j urídico, pois faz nascer a ordem jurídica, isto é, a ordem jurídica
começa com ele, e não antes dele. É o poder de criar uma Constituição,
quando o Estado é novo (poder constituinte originário histú rico), ou quando
84 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • VicentB Paulo & Marcelo Al&xandrino
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uma Constituição é substituída por outra, em um Estado j á existente (poder


constituinte originário revo l ucionário).
É um poder i n icial, porque representa a base da ordem jurídica, pois cria
u m novo Estado, rompendo completamente com a ordem anterior. Logo, não
tem ele como referência nenhuma norma j urídica precedente; ao contrário,
todo o ordenamento j urídico nasce a partir do momento em que ele cria a
Constituição.
É um poder i ncondicionado porque não está sujeito a qualquer fonna
prefixada para manifestar sua vontade, isto é, não está obrigado a seguir
qualquer procedimento predeterminado para realizar a sua obra. Não sabe­
mos, hoje, por exemplo, por meio de que processo legislativo seria elaborada
eventual Constituição brasileira futura, que viesse a substituir a atual.
É permanente, pois não se esgota no momento do seu exercício, isto
é, na elaboração da Constituição. Ele subsiste fora da Constituição e está
apto para manifestar-se novamente a qualquer tempo, quando convocado pelo
povo. Mesmo depois de elaborada uma nova Constituição, o poder consti­
tuinte permanece em estado de dormência, de latência, na titularidade do
povo, aguardando um momento ulterior oportuno para nova manifestação, por
meio de um movimento revolucionário, que convoque uma nova assembleia
nacional constituinte ou outorgue uma nova Carta Pol ítica.
O poder constituinte originário é também um poder ilimitado ou au tô­
nomo porque não tem que respeitar limites postos pelo direito anterior, isto
é, a ordem jurídica anterior não limita a sua atividade de criar uma nova
Constituição.
Quando se afirma que o poder constituinte originário é i l i m i tado (ou
autônomo), tal natureza diz respeito ao aspecto j u rídico, isto é, à l i berdade
de atuação do poder constituinte originário em relação a imposições da
ordem jurídica que existia anteriormente. Assim, por exemplo, na eventual
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para elaborar nova
Constituição Federal, em substituição à atual, de 1 988, o poder consti tuin­
te originário poderia mudar completamente a estrutura constitucional do
Estado brasileiro, em seus aspectos mais elementares, sem necessidade de
obediência a qualquer l imite imposto pelo atual ordenamento constitucio­
nal. Poderia o poder constitu inte originário abolir até mesmo as cláusulas
pétreas hoje existentes (art. 60, § 4 .0), haja vista que estas constituem
l imitação, apenas, à atuação do poder constituinte derivado, ao modificar
o atual texto constitucional.
O caráter ilimitado do poder constituinte originário faz com que, entre
nós, não seja juridicamente possível fiscalizar a validade de sua obra, vale
d izer, não é juridicamente possível ao Poder Judiciário fiscalizar a validade
Cap. 2 • PODER CONSTITUINTE 85

das normas inseridas na Constituição, no momento de sua elaboração, pelo


poder constituinte originário. A j urisprudência do Supremo Tribunal Federal
é mansa a respeito, visto que o poder constituinte não se encontra sujeito a
quaisquer l imites impostos pela ordem j urídica interna, tampouco a limitações
de ordem suprapositiva.
A lguns constitucionalistas fazem a ressalva de que o poder constituinte
originário deve ser v isto como i limitado e incondicionado somente no âmbito
do ordenamento jurídico pátrio, porque, no plano externo, não estaria legiti­
mado a violar regras mínimas de convivência com outros Estados soberanos,
estabelecidas no Direito Internacional. O Direito I nternacional funcionaria,
pois, como uma limitação ao poder constituinte originário, visto que seria
j uridicamente inaceitável, contemporaneamente, por exemplo, a elaboração
de uma Constituição que contivesse normas frontalmente contrárias às regras
internacionais de proteção aos direitos humanos.
A lém da observância aos princípios de direito internacional (princípios da
independência, da autodeterminação e da observância de direitos humanos),
o Prof. Gomes Canoti lho anota que o poder constituinte originário deve
obediência, também, a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais,
éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e,
nesta medida, considerados como "vontade do povo".
Na mesma linha, há autores que propugnam a existência de limites im­
postos pelo direito natural à atuação do poder constituinte originário. Para
eles, imperativos de direito suprapositivo, de valores éticos superiores, de
uma consciência jurídica coletiva imporiam limi tes ao conteúdo das normas
constitucionais postas pelo constituinte originário.
Existe, a inda, uma terceira espéc ie de obj eção, de ordem lógica, ao
caráter i l im itado do poder constitui nte originário. I mportantes constitu­
c i onal i stas afirmam que não poderiam ser estabelecidas na Constituição
n ormas que impliquem a aniqui lação ou o desapareci mento do Estado,
a abdicação à sua soberania ou à sua identidade (seria inválido, por
exemplo, dispositivo constitucional que previsse a anexação do Estado
por outro).
Em que pesem essas ressalvas - algumas, como a última, inegavelmente
congruentes com a própria natureza do poder constituinte - no Brasil pre­
domina a doutrina positivista, segundo a qual não há l imites à atuação do
poder constituinte originário. Com isso, pode-se dizer que, teoricamente, o
poder constituinte originário, em nosso País, é i l imitado na sua função de
iniciar a ordem jurídica do novo Estado, não devendo obediência ao direito
internacional, tampouco a considerações de ordem suprapositiva, advindas
do direito natural, ou a quaisquer outras.
86 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

4.2. Poder constituinte derivado

O poder consti t u i n te d erivado (instituído, constituído, secundário ou


de segundo grau) é o poder de modificar a Constituição Federal e, também,
de elaborar as Constituições estaduais.
Esse poder é criado pelo poder constituinte originário, está previsto e regula­
do no texto da própria Constituição, conhece limitações constitucionais expressas
e implícitas e, por isso, é passível de controle de constitucionalidade.
Tem como características ser um poder jurídico, derivado, limitado (ou
subordinado) e condicionado.
É um poder j u rídico porque integra o Direito, está presente e regulado
no texto da Constituição Federal. Na Constituição Federal de 1 988, por
exemplo, o poder de emenda está expressamente indicado e regrado no art.
60 do texto constitucional.
É derivado porque é instituído pelo poder constituinte originário, para
modificar e complementar a sua obra.
É li mitado ou s u bord inado porque encontra limitações constitucionais
expressas e implícitas, não podendo desrespeitá-las, sob pena de inconstitu­
cionalidade. É por força dessa característica que identificamos, na vigente
Constituição Federal de 1 988, a presença de cláusulas pétreas, expressas e
implícitas (núcleo inabolível da Constituição, adiante estudado nesta obra).
É condicionado porque a sua atuação deve observar fielmente as regras
predeterminadas pelo texto constitucional. Na aprovação de uma emenda
à Constituição Federal, por exemplo, deverá ser estritamente observado o
procedimento estabelecido no art. 60 da Constituição Federal, sob pena de
i nconstitucionalidade.
O poder constituinte derivado subdivide-se em poder constituinte refor­
mador e poder constituinte decorrente.
O poder constitu i n te derivado reformador é o poder de modificar a
Constituição Federal de 1 98 8, desde que respeitadas as regras e limitações
impostas pelo poder constituinte originário. Esse poder de modificação do
texto constitucional baseia-se na ideia de que o povo tem sempre o direito
de rever e reformar a Constituição.
Na Constituição Federal de 1 988, o exercício do poder constituinte
derivado foi atribuído ao Congresso Nacional para alteração do texto cons­
titucional mediante dois procedimentos distintos: procedimentos de emenda
(art. 60) e de revisão constitucional (ADCT, art. 3 .0).
Com efeito, o poder constituinte originário estabeleceu dois procedimentos
distintos para modificação do texto constitucional pelo poder constituinte de-
Cap. 2 • PODER CONSTITUINTE 87
-----------·----------- -
--- -..· ·----

rivado reformador, a saber: o procedimento rígido de emenda c o n s t i tu cio n a l,


previsto no art. 60 da Constituição, e o procedimento simplificado de revisão
constitucion al, previsto no art. 3.º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias - ADCT (esses procedi mentos e limitações serão exami nados em
momento futuro, no estudo das regras de modificação da CF/ 1 988).
A doutrina classifica as limitações que podem ser i mpostas pelo poder
constituinte originário à atuação do poder constituinte derivado reformador,
ao modificar o texto constitucional, em quatro grupos, a saber:

a) temporais quando a Constituição estabelece um período durante o qual


-

o seu texto não pode ser modificado;


b) circunstanciais quando a Constituição veda a sua modificação durante
-

certas circunstâncias excepcionais, de conturbação da vida do Estado;


c) materiais quando a Constituição enumera certas matérias que não poderão
-

ser abolidas do seu texto. pelo refonnador;


d) processuais ou formais quando a Constituição estabelece certas exigên­
-

cias no processo legislativo de aprovação de sua modificação, tornando este


distinto e mais laborioso do que aquele estabelecido para a elaboração das
demais leis do ordenamento (é a existência dessas limitações que caracteriza
uma Constituição como rígida).

O poder constit u i n te derivado decorrente é o poder que a Constituição


Federal de 1 988 atribui aos estados-membros para se auto-organizarem, por
meio da elaboração de suas próprias Constituições (CF, art. 25 c/c ADCT, art.
1 1 ) . É, portanto, a competência atribuída pelo poder consti tuinte originário
aos estados-membros para criarem suas próprias Constituições, desde que
observadas as regras e limitações impostas pela Constituição Federal.
Entendemos que a Constituição Federal também atribui ao Distrito Fe­
deral o poder constituinte derivado decorrente, consistente na competência
para elaborar sua Lei Orgânica.
Com efeito, considerando que o Distrito Federal é ente federado dotado
de autonomia política (CF, art. 1 8), titular de competências legislativas dos
estados-membros (CF, art. 32, § l .º), e, especialmente, que a sua competência
para elaborar a Lei Orgânica deriva diretamente da Constituição Federal (art.
32), não vemos razões para lhe negar a titularidade do poder constituinte
derivado decorrente.
A demais, corroborando o entendimento acima exposto, cabe ressaltar que
o Supremo Tribunal Federal tem se pronunciado em reiterados julgados no
sentido de que a Lei Orgânica do Distrito Federal é norma equiparada à Cons­
tituição estadual, possuindo natureza de "verdadeira Constituição local".1

' RE 577.025, rei. Min. Ricardo Lewandowski. 1 1 . 1 2.2008.


88 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO • Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino

Já os municípios, embora dotados de autonomia política, administrativa e


financeira, com competência para elaborar suas próprias Leis Orgânicas (CF,
art. 29), n ã o dispõem de poder constituinte derivado decorrente.
Assim entendemos porque a competência que foi outorgada aos muni­
cípios para elaboração de suas Leis Orgânicas é condicionada à observância
não só da Constituição Federal, mas também da Constituição do respectivo
estado-membro ("respeitado o disposto na Constituição Federal e na Cons­
tituição Estadual'', estabelece o art. 1 1 do ADCT), com o que temos que
sua capacidade de auto-organização não deriva direta e exclusivamente do
constituinte originário federal.
Enfim, feitas essas considerações, podemos concluir que o poder cons­
tituinte derivado decorrente é aquele atribuído aos estados-membros para
e laboração de suas próprias Constituições (CF, art. 25 ), bem como ao Dis­
trito Federal, para elaboração de sua Lei Orgânica (CF, art. 32). Esse poder,
porém, não foi estendido aos municípios.

4.3. Pod er constitui nte d ifuso

Poder constituinte difuso é o poder de fato que atua na etapa da m u tação


constitucional, meio informal de alteração da Constituição. Cabe a ele, portanto,
a lterar o conteúdo, o alcance e o sentido das normas constitucionais, mas de
modo informal, sem qualquer modificação na literalidade do texto da Constituição.
É chamado de d i fuso porque não vem formal izado (positivado) no texto
das Constituições. É um poder de fato porque nascido do fato social, polí­
tico e econômico. É meio i n fo r m a l porque se man ifesta por intermédio das
mutações constitucionais, modificando o sentido das Constituições, mas sem
nenhuma alteração do seu texto expresso.
Nas precisas palavras do Professor Uadi Lammêgo Bulos, "enquanto o
poder originário é a potência, que faz a Constituição, e o poder d e r i va d o ,
a c o m p e t ê n c i a , que a reformula, o poder d i fuso é a força invisível que a
a ltera, mas sem mudar-lhe uma vírgula sequer".
As mutações constitucionais (vicissitudes constitucionais tácitas, mudanças
silenciosas da Constituição, transições constitucionais, processos de fato, proces­
sos indiretos, processos não formais, processos informais, processos oblíquos)
serão objeto de estudo mais aprofundado no Capítulo 9 desta obra, no qual
abordamos os processos de modificação da Constituição Federal de 1 988.

4.4. Poder constituinte supranacional

Poder constituinte supranacional (transnacional ou global) é o poder


de fato encarregado de fazer e reformular as Constituições transnacionais,
supranacionais ou globais.
Cap. 2 • PODER CONSTITUINTE 89

O poder constituinte supranacional tem sua fonte de validade na ci­


dadania un iversal, na multiplicidade de ordenamentos j urídicos, no desejo
dos povos de se i ntegrarem e interagirem, propondo um red i mensionamento
no conceito clássico de soberania, com o fim de elaborar Constitu ições
que ultrapassem frontei ras domésticas de um Estado, em nome de uma
i ntegração maior, com vistas a alcançar uma comunidade de nações (Uadi
Larnmêgo Bulos).
O exemplo prático do intento de concretização do poder constituinte
supranacional é o que se prenuncia na Europa, em que os diferentes Esta­
dos soberanos i ntegrantes da União Europeia têm analisado a viabilidade da
adoção de uma Constituição transnacional democrática.2

Originário
[
··· 1
Material

Formal

�---�
Caracteristicas:

· Político
· Inicial
• Incondicionado
• Permanente
• Ilimitado ou Autônomo

[·[ m""
P
(M 00(

····· _
Reformador

·�De Revisão (ADCT. Art. 3. º)

Poder Decorrente

1-
Constituinte {ADCT. Art. 1 1 )

Derivado

Caracterlsticas:

• Jurldico
· Derivado
• Limitado ou Subordinado
• Condicionado

·-1 Difuso

·· Supranacional

' O projeto da chamada 'Constítuíção Europeia", entretanto, foi rejeitado em 2005.

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