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Este ensaio que a Editora Lutas Anticapital aqui publica em forma

de livro de bolso sintetiza muito do pensamento de Darcy Ribeiro. Como


LUTAS ANTICAPITAL

Darcy Ribeiro
o leitor perceberá, ele traz duas questões que marcaram a trajetória desse
mineiro de Montes Claros (MG): 1) por que a classe dominante sempre
vence? 2) por que o Brasil não deu certo ou, como proferido por Darcy nes-
ta palestra que agora se reedita: quais as causas do nosso fraco desempenho
nesse mundo?
O texto caracteriza-se pela linguagem coloquial visto ser resulta-

Sobre
do de uma palestra. Seu ponto de partida é a crítica – construída de forma
bem humorada e até debochada – às teses conservadoras que predomina-
ram sobre a interpretação do fracasso brasileiro para atingir padrões de
desenvolvimento e de estágio civilizatório idênticos aos de outras nações,
inclusive contemporâneas a nós. Teses defendidas por nossas elites e por
parte da intelectualidade local colonizada desde sempre; teses tão óbvias

o óbvio
que se explicariam por si só e que foram sacralizadas, por muito tempo,
como verdades sobre nossa (má) formação.
FERNANDO CÉZAR DE MACEDO | UNICAMP

Darcy Ribeiro (1922-1997), como autor, não pode ser definido


em um único escaninho do conhecimento. Ele foi um produtor incansável
de livros e estudos. Mas não apenas um “estudioso”. A teoria e a prática
estiveram intensamente atadas neste autor tão rico em abordagens. Ele foi
um semeador de universidades, criando o projeto inicial de várias delas em
países da América Latina, inclusive no Brasil, a UnB – Universidade Nacio-
nal de Brasília, um dos motivos de seu exílio. Pela variedade de seus estu-
dos, integrados sempre numa totalidade teórica e histórica, Darcy pode ser
Darcy Ribeiro
considerado um antropólogo – “especialidade” na qual ele talvez seja mais
Sobre o óbvio

conhecido – mas é também um historiador, um sociólogo, um cientista


político, um educador, para dizer o mínimo. Ou seja, melhor não tentar
classificá-lo nestes termos, pois limitaria a compreensão da abundância de
suas qualidades.
ANGÉLICA LOVATTO | UNESP
Sobre o óbvio

Darcy Ribeiro

LUTAS ANTICAPITAL
Darcy Ribeiro

Sobre o óbvio

1ª edição
LUTAS ANTICAPITAL
Marília - 2019
Editora LUTAS ANTICAPITAL

Editor: Julio Okumura

Conselho Editorial: Andrés Ruggeri (Universidad de Buenos


Aires - Argentina), Bruna Vasconcellos (UFABC), Candido
Giraldez Vieitez (UNESP), Dario Azzellini (Cornell University –
Estados Unidos), Édi Benini (UFT), Fabiana de Cássia Rodrigues
(UNICAMP), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Júlio César Torres
(UNESP), Lais Fraga (UNICAMP), Mariana da Rocha Corrêa Silva,
Maurício Sardá de Faria (UFRPE), Neusa Maria Dal Ri (UNESP),
Paulo Alves de Lima Filho (FATEC), Renato Dagnino (UNICAMP),
Rogério Fernandes Macedo (UFVJM).

Projeto Gráfico e Diagramação: Mariana da Rocha Corrêa Silva


e Renata Tahan Novaes

Capa: Mariana da Rocha Corrêa Silva

Impressão: Renovagraf

Ribeiro, Darcy.
R354s Sobre o óbvio/ Darcy Ribeiro. –
Marília: Lutas Anticapital, 2019.
56 p.

ISBN 978-85-53104-12-3

1. Educação - Brasil. 2. Sociologia


3. Educação – Brasil – História. I. Título.

CDD 370
Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno
CBR 8/8211 - FFC – UNESP – Marília

1ª edição: janeiro de 2019


Editora Lutas anticapital
Marília –SP
edlutasanticapital@gmail.com
www.lutasanticapital.com.br
Sumário

Nota.....................................................................7

Apresentação do livro..........................................11
Fernando Macedo

Quem é Darcy Ribeiro?.......................................23


Angélica Lovatto

Sobre o óbvio......................................................33
Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro | 7

Nota

Um espectro ronda o Brasil, o espectro do


anti-intelectualismo. Esse espectro anuncia tem-
pos difíceis, onde direitos e conquistas que
pareciam tão consolidados se desmancham no ar,
como poeira soprada pela ventania. Anuncia
também o temor do pensamento crítico, da busca
da verdade, da ciência e da universidade pública.
Em última instância, este temor pretende “apagar”
a história do Brasil.
Ao lado do anti-intelectualismo do atual
presidente, temos o pragmatismo da esquerda
hegemônica, que ignora a unidade dialética entre
sistematização da realidade e sua radical transfor-
mação prática, isto é, a Revolução.
Há tempos, uma parte importante das
forças progressistas e da esquerda abandonaram a
teoria revolucionária, o estudo da realidade e,
atualmente, se encontram perdidas e fragmentadas
no que fazer.
Combatendo nas trevas, nós, coorde-
nadores do Curso Técnico em Agropecuária
integrado ao Ensino Médio, com ênfase em
Agroecologia e Agrofloresta, optamos por resgatar e
preparar Livros de Bolso adequados ao Ensino
Médio e a todos aqueles que desejam iniciar a
leitura de clássicos do pensamento social latino-
americano.
8|Sobre o óbvio

O curso é um dos frutos do convênio


UNESP-Centro Paula Souza – PRONERA-INCRA.
Preparados para este novo ciclo de lutas
sociais, onde vai vigorar um longo período de
resistência histórica, a Editora Lutas anticapital e
nós – coordenadores do cusro - nos comprome-
temos a publicar livros de qualidade acessíveis ao
público brasileiro, que tem “sede” de conhecimento
crítico.
Somos partidários do estudo da história na
perspectiva materialista e dialética. Temos partido,
o partido da ciência e somos comprometidos com
as lutas emancipatórias da classe trabalhadora.
As classes proprietárias declaram guerra
aos trabalhadores. No caso brasileiro, inter-
romperam as parcas vitórias da “Nova República”,
deram um golpe e enterraram a suposta
possibilidade de conciliar as classes sociais, ao
ejetar o lulismo do poder.
Para inaugurar a série de Livros de Bolso
optamos por selecionar um texto de Darcy Ribeiro
que desnaturaliza, com alto grau de ironia e
deboche, muitos dos mitos que regem a sociedade
brasileira.
Convidamos dois especialistas em Darcy, a
quem agradecemos pelo aceite da empreitada. O
professor Fernando Macedo, que ficou encarregado
de apresentar a palestra “Sobre o óbvio”, e Angélica
Lovatto, que fez uma sintética apresentação da
vida e obra deste intelectual latino-americano,
certamente um dos mais originais e criativos
pensadores do século XX.
Darcy Ribeiro | 9

Temos certeza que este pequeno Livro de


Bolso irá estimular muitos alunos-trabalhadores a
compreender os diversos desafios do Brasil, e lutar
de forma organizada para superação do capital.
Desejamos a todas e todos uma boa leitura
e que possam surgir dela variadas reflexões.

Marília e Iaras, 24 de janeiro de 2019

Angelo Diogo Mazin, Daniela Bittencourt


Blum, Henrique Tahan Novaes, João
Henrique Pires e Joice Aparecida Lopes
Coordenadores do Curso Técnico em
Agropecuária, com ênfase em
agroecologia, integrado ao ensino médio
Convênio UNESP - Centro Paula Souza –
PRONERA (INCRA)
Escola de Educação Popular Rosa
Luxemburgo (MST - SP)

Bruno Mercurio e Natalia Oliveira


Produtores de Material Didático do Curso
Técnico em Agropecuária integrado ao
Ensino Médio
10 | S o b r e o ó b v i o
Darcy Ribeiro | 11

Apresentação do Livro

O texto Sobre o Óbvio é a transcrição da fala do


professor Darcy Ribeiro proferida no Simpósio
sobre Ensino Público, integrante da programação
da 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência - SBPC, ocorrida entre os
dias 6 e 13 de julho de 1977, na Pontifícia
Universidade Católica – PUC na capital paulista.
Foi publicado pela primeira vez em 1979 como
capítulo de abertura do livro Ensaios Insólitos1. O
mesmo onde se encontra reeditado o prefácio que
ele escreveu para a edição venezuelana de Casa
Grande & Senzala de Gilberto Freyre para quem
“nunca ninguém prefaciou, no Brasil ou fora dele,
o livro com tão aguda inteligência e tão abrangente
sensibilidade.”2
“O mais lúcido dos marxistas brasileiros”3, nos
dizeres desse sociólogo pernambucano, Darcy
Ribeiro era um pensador autenticamente nacional
e um verdadeiro cidadão latino-americano que não
se submetia acriticamente a teorias vindas de fora,
mesmo as revolucionárias, como a do Partido

1 RIBEIRO, D. Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM,


1979.
2 FREYRE, G. Um livro brasileiro reeditado em espanhol.

Diário de Pernambuco. Recife, 3 jul. 1977, p. 15.


3 Ibidem.
12 | S o b r e o ó b v i o

Comunista Brasileiro, no qual militou por um


tempo. Do mesmo modo, não procedeu como boa
parte da esquerda, sempre a pensar a revolução no
Brasil em abstrato, de cima para baixo, apartada
do cotidiano do povo e influenciada por visões
eurocêntricas de mundo.
Por isso, falava de um “socialismo moreno”,
umbilicalmente ligado à formação brasileira e às
tradições de seu povo; socialismo pensado e
soerguido a partir de dentro e para dentro, capaz
de emancipar e libertar o povo brasileiro em
direção a uma nova, autêntica e revolucionária
civilização autodeterminada nos trópicos. Quanto
às teorias conservadoras, ele considerava sua
assimilação como parte do processo de dominação
dos países imperialistas, para o qual nossas
universidades seriam verdadeiras correias de
transmissão.
Intelectual de grande erudição, foi antropólogo,
etnólogo, educador, ensaísta, romancista e criador
de universidades. Darcy fugiu à obviedade
acadêmica e colocou a mão na massa,
extrapolando suas ideias para além das dezenas de
livros e ensaios que escrevera. Morou dez anos
entre os índios brasileiros para melhor conhecê-los
e foi, no século XX, um de seus maiores defensores
no país. Dentre nossos grandes pensadores foi dos
que deu mais destaque ao papel e à herança
indígena em nossa formação e dos que mais os
defendeu.
No duro período de seu exílio após o golpe de
1964, aprofundou seu conhecimento sobre a
Darcy Ribeiro | 13

realidade dos países latino-americanos. Durante os


quinze anos em que teve seus direitos políticos
cassados – foi anistiado em 1979 – morou e
trabalhou no Uruguai, Chile, Peru e Venezuela.
Vem dessa época seus importantes trabalhos O
processo Civilizatório (1968), A América e a
Civilização (1970) e O Dilema da América Latina
(1978). Neste atual momento, em que nossa
diplomacia alimenta sentimento beligerante contra
alguns países da região, sustentado por um
nacionalismo às avessas, aderente a Washington, a
leitura desses livros ensina sobre o muito que
temos em comum com nossos hermanos y
hermanas do México ao Prata e como todos nós,
latino-americanos, padecemos dos mesmos inimi-
gos: o imperialismo, principalmente americano,
mas não somente, e nossas elites.
Darcy foi ministro, senador, secretário de
estado, vice-governador e chefe da casa civil.
Nesses cargos buscou sempre colocar em ação o
que pensava, enfrentando interesses secularmente
constituídos e fazendo desafetos. Na condição de
pessoa pública, foi responsável pela criação da
Universidade de Brasília – UNB, idealizou os
Centros Integrados de Educação Pública – CIEPS,
implementados nas gestões do governador Leonel
Brizola (1983-1987; 1991-1995) no Rio de Janeiro,
projetou e influenciou decisivamente, junto com os
irmão Villas Boas, a criação do Parque Nacional do
Xingu, criado em 1961, na condição de Senador da
República, foi o relator da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (lei 9394/96), à época
14 | S o b r e o ó b v i o

chamada de Lei Darcy Ribeiro. Estas são algumas


heranças do servidor republicano que ocupou
tantos cargos no Estado brasileiro – eletivos ou
administrativos – por quase cinquenta anos. Mui-
tas outras poderiam ser enumeradas.
Multifacetado, apresentava capacidade criativa
a revelar a inquietação de um espírito em
permanente ebulição que se preocupava – nas
ações e nas ideias – em entender a formação do
Brasil, para sobre ele agir e poder transformá-lo.
Por isso, e pela grandeza de sua obra, foi um dos
nossos mais profícuos intérpretes, combinando seu
método de análise para interpretação da América
Latina, tornando-se, também, um dos mais
importantes estudiosos sobre a região. Poucos
como ele conciliaram tão apaixonadamente o
pensamento criativo e a ação transformadora.
Este ensaio que a Editora Lutas Anticapital
aqui publica em forma de livro de bolso sintetiza
muito do pensamento de Darcy Ribeiro. Como o
leitor perceberá, ele traz duas questões que
marcaram a trajetória desse mineiro de Montes
Claros e que são lembradas por Gilberto Felisberto
Vasconcellos4 na abertura de seu livro sobre nosso
autor: 1) por que a classe dominante sempre
vence?; 2) por que o Brasil não deu certo ou, como
proferido por Darcy nesta palestra que agora se
reedita: quais as causas do nosso fraco
desempenho nesse mundo? É possível afirmar que
a busca por essas respostas foi esforço permanente

4 VASCONCELLOS, G. F. Darcy Ribeiro – a razão


iracunda. Florianópolis: Editora UFSC, 2015.
Darcy Ribeiro | 15

de Darcy, especialmente após o golpe de 1964,


quando a utopia da intelectualidade brasileira de
esquerda foi destroçada pela violência instaurada,
e os sonhos de transformação e justiça social se
mostraram distantes.
O texto caracteriza-se pela linguagem coloquial
visto ser resultado de uma palestra. Seu ponto de
partida é a crítica – construída de forma bem
humorada e até debochada – às teses conser-
vadoras que predominaram sobre a interpretação
do fracasso brasileiro para atingir padrões de
desenvolvimento e de estágio civilizatório idênticos
aos de outras nações, inclusive contemporâneas a
nós. Teses defendidas por nossas elites e por parte
da intelectualidade local colonizada desde sempre;
teses tão óbvias que se explicariam por si só e que
foram sacralizadas, por muito tempo, como
verdades sobre nossa (má)formação.
E dentre as obviedades que em nossa terra
receberam status de verdades seculares está a tese
da inferioridade de nossa população miscigenada,
a nos transformar em um povo de segunda classe
(esta outra obviedade tomada como tese sagrada, o
que significa que o país não vai para frente pelo
povo que tem). Uma outra obviedade: os pobres
precisam dos ricos para viver, pois sem eles não
teriam emprego, renda ou caridade. Logo, deduz-
se, não existiria luta de classes em nossa
sociedade, mas um processo harmônico de
dependência dos pobres às ações benfazejas dos
endinheirados, com o que estes podem lhes cobrar
eterna gratidão. Qualquer rebeldia social deve ser
16 | S o b r e o ó b v i o

reprimida incondicionalmente por inadmissível


quebra dessa harmonia secular. Nossa história tem
inúmeros exemplos, nas cidades e no campo, dessa
repressão aos movimentos sociais reivindicatórios.
Mas se essência e aparência fossem idênticas,
não seria preciso ciência, ensinou-nos um
bicentenário pensador alemão. O papel da ciência é
o de ir além das obviedades e revelar as relações
que estão por de trás de cada fenômeno que não
são perceptíveis a olho nu. Claro que não se trata
da ciência imposta de fora e assimilada por nossas
elites (econômicas e intelectuais) com o pedantismo
a que Darcy sempre negou, razão pela qual fez
uma ciência clara, direta, quase coloquial como
suas falas, mas com grande profundidade,
erudição e compromisso com a realidade social e a
história do país, pensada a partir de dentro sem
negar, não obstante, o conhecimento produzido no
exterior.
E porque essência e aparência não sejam
idênticas, embora estejam articuladas, essas
obviedades, que ganham status de mito, são
descontruídas pelo autor que aponta sua razão de
ser: existem para preservar a estrutura social e
para manter o poder dos ricos. Portanto, não é nos
defeitos do povo que estaria a razão de nosso
atraso, mas na estruturação da sociedade. E, ao
responder aquelas questões, Darcy derruba as
obviedades (ou seriam mitos?) revelando uma
outra obviedade: não é no povo que reside a razão
de nosso atraso, mas em nossa classe dominante:
Darcy Ribeiro | 17

Nesta indagação – vejam como é ruim


questionar! – acabamos por dar uma
virada na roleta da ciência. Ela veio revelar
que aquela obviedade de sermos um povo
de segunda classe não podia mesmo se
manter, porque escondia uma obviedade
mais óbvia ainda. Esta nova verdade nos
assustou muito, levando tempo para
engolir a novidade. Sobretudo nós
universitários, sobretudo nós inteligentes.
Sobretudo nós bonitos. Falo da descoberta
de que a causa real do atraso brasileiro, os
culpados de nosso subdesenvolvimento
somos nós mesmos, ou melhor, a melhor
parte de nós mesmos: nossa classe
dominante e seus comparsas (RIBEIRO,
2019, p. 33)

Essa classe dominante “conseguiu estruturar o


país como uma economia extraordinariamente
próspera” (RIBEIRO, 2019, p. 34) que nos colocou
entre os mais ricos países do mundo, mas com
uma profunda desigualdade e injustiça sociais.
Uma riqueza construída moendo gente. Por isso
Darcy disse que nossa sociedade é perfeita para os
que estão em cima. Qualquer tentativa de
mudança e melhoria no quadro social, mesmo que
dentro da ordem burguesa como as que nós
assistimos neste século XXI, esbarra sempre em
reações da classe dominante que tem verdadeiro
pavor ao ascenso das classes oprimidas e não
admite qualquer alteração da ordem vigente.
E como a História parece se repetir como
tragédia ou como farsa, as coisas no Brasil
permanecem exatamente as mesmas, em essência,
ainda que aparentemente mudem (e de fato
18 | S o b r e o ó b v i o

mudam para permanecerem iguais). Isto porque,


em cada momento decisivo de nossa história,
quando o país poderia se rebelar soberanamente
contra seu destino vaticinado desde os tempos
coloniais pelas potências hegemônicas, ele
retrocede para o óbvio curso traçado por sua classe
dominante. E que destino é este? O de ser uma
grande plataforma exportadora de commodities,
uma economia que moi gente e que cria riqueza
para os de fora e para poucos de dentro. Seu povo
e seu território existem não para servir a um
projeto nacional, mas para atender a imposições do
imperialismo e aos interesses da elite nativa.
Foi assim em 1964, quando poderíamos ter feito
as reformas de base e fomos interditados pela dita-
dura militar. Tem sido assim, desde 2016, quando
poderíamos avançar nas conquistas sociais mas
andamos para trás no que tange aos nossos
direitos. A agenda social dos anos sessenta foi
bloqueada pelo golpe que derrubou Jango assim
como os avanços sociais pós 1988, que foram
resultados de lutas do povo e não concessão de
qualquer governo, começaram a retroceder após o
golpe que afastou a presidenta Dilma.
O importante é garantir a valorização da
riqueza privada concentrada na mão de poucos.
Como “os ricos daqui vivem uma vida muito mais
rica do que os ricos de lá” (RIBEIRO, 2019, p. 41),
e para garantir que eles continuem assim, busca-
se superar os percalços de nossa economia em
crise cortando direitos trabalhistas, fazendo
reforma previdenciária e/ou mudando as políticas
Darcy Ribeiro | 19

de cotas e o financiamento das universidades,


desde que não se mexa na riqueza do andar de
cima.
A classe dirigente tem sido extraordinariamente
competente em seu projeto de produzir riqueza,
afirmou Darcy, mas avesso a qualquer repartição
dela. “Só que este projeto para ser implantado
precisa de um povo faminto, chucro e feio”
(RIBEIRO, 2019, p. 34). E o sistema educacional
cumpre um papel decisivo nisso porque não é
pensado para emancipar seu povo, mas para servir
a classe dominante, especialmente a universidade.
Em uma entrevista para o jornal do Brasil, uma
semana após palestrar Sobre o Óbvio, Darcy
afirmou “que a universidade serve às classes
dominantes. Não tem nada a ver com o povo”5.
Era o contexto dos anos setenta. Quarenta anos
depois da frase do Mestre, a universidade pública
ampliou o acesso aos mais pobres, aos estudantes
da rede pública e criou um sistema de cotas
étnicas para diminuir as diferenças e os
preconceitos, ou seja, para dissipar as obviedades.
Mas como a estruturação social deve manter o
“povo faminto, chucro e feio”, os avanços começam
a ser contestados. A recorrência da nossa história,
como tragédia ou como farsa, mantém a atualidade
do texto porque a interpretação por trás dos fatos é
o que faz sua leitura pertinente, embora o contexto
tenha se alterado.
Por isso, as explicações do autor sobre nossa

5 RIBEIRO, D. Educação Brasil/77. Jornal do Brasil. 20


jul. 1977, p.32.
20 | S o b r e o ó b v i o

classe dominante são atualíssimas. Hoje, assim


como ontem, vemos que no país qualquer avanço
que possa alterar a estrutura desigual da
sociedade é interditado. E isso é obra
competentíssima de nossas elites, como veremos
no texto.
Em seu último livro, Darcy voltaria a dizer em
forma de desabafo algo que já estava expresso
dezoito anos antes neste texto Sobre o Óbvio,

o ruim aqui, e efetivo fator causal do


atraso, é o modo de ordenação da
sociedade, estruturada contra os
interesses da população, desde sempre
sangrada para servir a desígnios alheios e
opostos aos seus. Não há, nunca houve,
aqui, um povo livre, regendo seu destino
na busca de sua própria prosperidade. O
que houve e o que há é uma massa de
trabalhadores explorada, humilhada e
ofendida por uma minoria dominante,
espantosamente eficaz na formulação e
manutenção de seu próprio projeto de
prosperidade, sempre pronta para esmagar
qualquer ameaça de reforma da ordem
social vigente.6

Para não continuar adiando o fundamental, e


para mostrar a atualidade do Mestre, uma citação
sua que, escrita há quarenta anos, parece muito
adequada para a reflexão sobre o momento em que
vivemos, no qual a onda reacionária nos pressiona

6 RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro – a formação e o sentido


do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006
[1995], p. 408.
Darcy Ribeiro | 21

a esquecer o passado (ou mesmo negá-lo) e


reivindicar um “Brasil acima de tudo”:

Esqueçamos tudo isso, mas cuidado! Não


nos esqueçamos de enfrentar, agora, a
tarefa que fracassamos ontem e que deu
lugar a tudo isso. Não nos esqueçamos de
organizar a defesa das instituições
democráticas contra novos golpistas
militares e civis para quem em tempo
algum do futuro ninguém tenha outra vez
de enfrentar e sofrer, e depois esquecer os
conspiradores, os torturadores, os
censores e todos os culpados e coniventes
que beberam nosso sangue e pedem nosso
esquecimento.7

Campinas, 15 de janeiro de 2019

Fernando Cézar de Macedo

Professor Livre-Docente do Instituto de


Economia da UNICAMP e pesqui-sador do
Centro de Estudos do Desenvolvimento
Econômico – CEDE.

7 RIBEIRO, 1977, p. 277.


22 | S o b r e o ó b v i o
Darcy Ribeiro | 23

Quem é Darcy Ribeiro?

Portanto, não se iluda comigo, leitor. Além


de antropólogo, sou homem de fé e de
partido. Faço política e faço ciência movido
por razões éticas e por um fundo de
patriotismo. Não procure, aqui, análises
isentas. Este é um livro que quer ser
participante, que aspira a influir sobre as
pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a
encontrar-se a si mesmo.
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro.8

Quem é Darcy Ribeiro? Em primeiro lugar


um brasileiro extraordinário que ainda segue
menos reconhecido no Brasil do que deveria. Mas
absolutamente reconhecido e divulgado em todos
os países da América Latina por seus livros,
estudos e projetos.
Esse foi o destino de muitos pensadores
brasileiros desterrados a partir do golpe militar de
1964, que baniu, prendeu, torturou, matou ou
exilou, por muitos anos, as melhores cabeças deste
país. A injustiça historiográfica que se perpetrou
contra esses autores trouxe um desconhecimento
injustificável no Brasil de suas vidas e obras.

8 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o


sentido do Brasil. 3ª.ed., São Paulo: Global, 2015. 367 p.
24 | S o b r e o ó b v i o

Darcy Ribeiro (1922-1997), como autor,


não pode ser definido em um único escaninho do
conhecimento. Ele foi um produtor incansável de
livros e estudos. Mas não apenas um “estudioso”.
A teoria e a prática estiveram intensamente atadas
neste autor tão rico em abordagens. Ele foi um
semeador de universidades, criando o projeto
inicial de várias delas em países da América
Latina, inclusive no Brasil, a UnB – Universidade
Nacional de Brasília, um dos motivos de seu exílio.
Pela variedade de seus estudos, integrados sempre
numa totalidade teórica e histórica, Darcy pode ser
considerado um antropólogo – “especialidade” na
qual ele talvez seja mais conhecido – mas é
também um historiador, um sociólogo, um
cientista político, um educador, para dizer o
mínimo. Ou seja, melhor não tentar classificá-lo
nestes termos, pois limitaria a compreensão da
abundância de suas qualidades.
Claro que também foi um homem da
política. E um homem de partido. Foi ministro do
governo João Goulart, assessorou governos de
esquerda latino-americanos como Salvador
Allende, no Chile, fomentou universidades no Peru
e Venezuela, foi vice-governador do Rio de Janeiro
no governo Leonel Brizola, foi Senador da
República. Aliás, semeou não só universidades,
mas especialmente o grande projeto de colocar
crianças brasileiras na escola o dia inteiro,
conhecidos como CIEPs – Centros Integrados de
Educação Pública, na experiência do governo do
estado do Rio de Janeiro. E até o final de sua vida
Darcy Ribeiro | 25

sempre questionava publicamente por que a


educação no Estado de São Paulo, considerado o
estado mais desenvolvido da nação e do
continente, tinha índices educacionais que ficavam
abaixo até mesmo do nosso vizinho Paraguai.
Darcy Ribeiro defendeu durante sua vida
inteira uma integração dos povos latino-
americanos, na ideia tão pouco conhecida no
Brasil, da formação de uma Pátria Grande. No livro
lançado em 1986, América Latina: a Pátria Grande,
retrata o subdesenvolvimento latino-americano,
oriundo de nosso passado colonial, mas não só.
Aparecem ali as consequências dos golpes
militares, patrocinados especialmente pelo imperi-
alismo estadunidense, que tentava interceptar por
completo qualquer possibilidade de soberania de
nosso continente. Logo no primeiro bloco do livro
aparece o tema: “A América Latina existe?”, ensaio
onde ele explica a uniformidade sem unidade do
continente e seus antagonismos essenciais.
A expressão Pátria Grande remete ao
sonho bolivariano – que vem da importante figura
histórica de Simon Bolívar, o Libertador – da
formação de uma pátria integrada por todos os
povos que lutavam contra o jugo colonialista que
imperava em nosso continente. Esse
desconhecimento no Brasil sobre o tema da Pátria
Grande e do papel de Simon Bolívar foi fruto –
especialmente no pós golpe de 1964 – de uma
postura de colocar o Brasil de costas para a
América Latina, condição sine qua non para o
isolamento das forças progressistas e
26 | S o b r e o ó b v i o

revolucionárias que aqui se acumulavam e que, na


união com os povos hermanos, poderia ter trazido
no contexto da chamada Guerra Fria, uma ruptura
inevitável com os regimes imperialistas dos
Estados Unidos e da Europa Ocidental, à época.
Darcy Ribeiro, em seu retorno do exílio, resgata
este tema, elucidando também – e apresentando da
melhor forma possível – o autor brasileiro Manuel
Bomfim (1868-1932), que ele “descobriu” que
existia como grande pensador das coisas do Brasil,
no exílio, numa biblioteca no Uruguai! Ou seja,
outro grande nome desconhecido ou pouco
valorizado em sua própria terra. Nesse sentido, o
principal livro de Manuel Bomfim, pelo qual
encantou-se foi América Latina: males de origem,
publicado originalmente em março de 1903.
Gilberto Felisberto Vasconcellos,9 grande
conhecedor da vida e obra de Darcy Ribeiro,
defende que o autor é um pensador brasileiro que
pode ser considerado o ponto de ligação da
América Latina, pois escreveu sobre todos os
países latino-americanos.10 Seu exílio e o interesse
germinal em entender a formação do povo brasi-
leiro, a partir de sua experiência com os indígenas,
o teria levado a isso: “De 1964 a 1972 [Darcy] viveu

9 Outro grande pensador brasileiro, que estuda e conhece


o nosso folclore como ninguém e também é daqueles
intelectuais que não pode ser simplesmente classificado
em um único escaninho das ciências sociais. É jornalista,
escritor, sociólogo e muito mais. É, ainda, professor
Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora.
10 Cf. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. Darcy Ribeiro:

a razão iracunda. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.


Darcy Ribeiro | 27

o exílio intelectual mais fecundo na história das


ciências sociais, teve no entanto péssima recepção
no meio acadêmico por ter rompido com a cabeça
colonizada do intelectual brasileiro”11 Essa
diferença de Darcy Ribeiro, em relação aos pensa-
dores que não rompiam com essa condição de
submissão intelectual ao que vinha acriticamente
de fora do país, é seu bem e seu mal. Valoroso pela
atitude corajosa, foi autor perseguido, sobre quem
o Brasil silenciou. Em seu livro, Darcy Ribeiro: a
razão iracunda, Vasconcellos conta que, aos 27
anos, editorialista na Folha de São Paulo, ouviu de
Claudio Abramo: “Você nunca vai entender o Brasil
se não conversar com Darcy”. Mais ou menos na
mesma época o grande cineasta brasileiro Glauber
Rocha – outro herege valoroso praticamente
desconhecido das gerações atuais – deu o mesmo
aviso a Vasconcellos: “Você precisa procurar o
Darcy para entender o que é a colonização”.12
A originalidade de Darcy Ribeiro está na
totalidade de sua produção teórica que, após sua
formação na Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, foi inicialmente impulsionada pelo trabalho
de etnólogo, que o levou a viver em meio aos índios
por longos dez anos. Essa experiência o marcou
profundamente. Ele queria um retrato do Brasil de
corpo inteiro. Percebeu que a questão não era
apenas entender os índios, mas entender a
formação do povo brasileiro como um todo. E a
pergunta que o moveu intelectual e politicamente,

11 VASCONCELLOS, op.cit., p.16.


12 VASCONCELLOS, op.cit., p.15.
28 | S o b r e o ó b v i o

especialmente após a derrota sofrida com o golpe


militar, foi: Por que mais uma vez a classe
dominante vencia? Por que o Brasil não tinha dado
certo?13 Aliás, sem passarmos despercebidos pela
impressionante atualidade desta pergunta, cumpre
destacar que foi no exílio no Peru que ele se
colocou a escrever o livro ao qual se dedicaria ao
longo de 30 anos e que resultou, antes de sua
publicação definitiva em 1995, a um conjunto de
mais de 2 mil páginas escritas, publicadas em
cinco impressionantes livros do autor, a saber:
1968: o processo civilizatório – etapas da evolução
sociocultural; As Américas e a civilização; 1971: o
dilema da América Latina – estruturas de poder e
forças insurgentes; 1972: os brasileiros – teoria do
Brasil e Os índios e a civilização. A partir deste
último livro, ele edita uma Suma etnológica
brasileira, na coleção Antropologia da Civilização.
Tudo isso porque o autor não ficou satisfeito com a
primeira versão de 400 páginas (iniciado no Peru
em 1964) do livro, já citado, que depois veio a ser
conhecido como O povo brasileiro, de 1995.
É possível imaginar o cuidado investigativo
e as minúcias de desenvolvimento etnográfico e
histórico do autor para poder chegar à origina-
lidade de sua tese? Na primeira versão, em 1964,
ele sentiu que faltava uma teoria de base empírica
das classes sociais, no mundo brasileiro e latino-
americano. E que faltava também uma tipologia
das formas de exercício do poder e de militância

13 Cf. RIBEIRO, op.cit., 2015.


Darcy Ribeiro | 29

política, fosse conservadora, reordenadora ou


insurgente. E, finalmente, que faltava ainda uma
teoria da cultura, capaz de dar conta da realidade
brasileira e latino-americana, mobilizando cons-
ciências para movimentos profundos de
reordenação social. E tudo isso, ao mesmo tempo
em que se dedicava ardentemente à pesquisa,
semeando universidades e fazendo projetos de
intervenção prático-política em variados países do
continente. Haja fôlego e energia! E, durante
décadas, esse precioso brasileiro ficou renegado ao
esquecimento da historiografia brasileira? Rene-
gado nos currículos dos cursos da universidade
brasileira? Francamente, resgatá-lo e colocá-lo na
ordem do dia, é missão número um de qualquer
pessoa que se preocupe de fato com os destinos da
vida nacional.
A tese originalíssima decorrente desse
esforço é, em resumo apertado, a seguinte: os
brasileiros se sabem, se sentem e se comportam
como uma só gente. E por isso são uma etnia nova:
o povo brasileiro. Uma entidade nacional distinta
de quantas haja, que fala uma mesma língua, só
diferenciada por sotaques regionais. Mais que uma
simples etnia, o Brasil seria uma etnia nacional,
um povo-nação, assentado num território próprio,
enquadrado dentro de um mesmo Estado, unitário,
para nele viver seu destino. E mudá-lo, se
conseguir. No entanto, o autor alerta que isso não
deve cegar-nos para disparidades, contradições,
antagonismos que subsistam. Defende que, para o
povo brasileiro, não houve outra alternativa do que
30 | S o b r e o ó b v i o

fundir-se numa única etnia, forçada pela


aniquilação quase que completa de cada etnia
anteriormente originada (seja índia, negra
transplantada, branca transplantada). Para
sobreviver, essas etnias se misturaram irreme-
diavelmente. Sob pena de extermínio completo!
Teria ocorrido justamente o contrário no restante
da América espanhola, que resultou – em sua
grande maioria – numa sociedade multiétnica,
dilacerada também, mas pela oposição de
componentes diferenciados e imiscíveis. Mas ele
adverte: então teriam sumido os signos da múltipla
ancestralidade do povo brasileiro? Não! Sobrevi-
veram na fisionomia somática e no espírito dos
brasileiros, mas não se diferenciaram em
antagônicas minorias raciais, culturais ou regio-
nais. No caso da escravidão, por exemplo, ela foi
tão longa que não havia alternativa: não tinham
como preservar-se isoladamente e se reproduzir.
Nesse sentido, as únicas microetnias tribais que
sobreviveram como ilhas, ficaram cercadas pela
polução brasileira e já não podem afetar a
macroetnia. Enfim, Darcy defende que o povo
brasileiro é um povo novo, um novo modelo de
estruturação societária, fundada miseravelmente
num tipo renovado de escravismo e numa servidão
continuada ao mercado mundial. O Brasil emergiu,
portanto, como um “renovo mutante”, remarcado
de características próprias, mas atado
genesicamente à matriz portuguesa.
Sem condições de desdobrar toda a tese de
Darcy Ribeiro aqui, e correndo o risco calculado de
Darcy Ribeiro | 31

ser imprecisa nas mediações necessárias, resta


indicar que esses diversos modos rústicos de ser
dos brasileiros, construídos historicamente, com
exploração continuada e sangue, permitem
distingui-los hoje como sertanejos, caboclos,
crioulos, caipiras, gaúchos, além é claro de ítalo-
brasileiros, teuto-brasileiros e nipo-brasileiros. O
povo brasileiro teria sido, enfim, resultado de
diversos implantes coloniais, viabilizados pela
integração forçada, através de lutas cruentas,
levado a cabo pelas velhas classes dirigentes
brasileiras num processo continuado, violento e
deliberado de supressão de toda identidade étnica
discrepante.
A obra deste autor ainda precisa ser
apreendida, ensinada e repisada para as gerações
contemporâneas. Daí a importância da iniciativa
da Editora Lutas Anticapital em publicar esse livro
de bolso que fará toda a diferença para o
aprendizado sobre a realidade brasileira e latino-
americana, que o generoso Darcy Ribeiro dedicou a
vida para construir e divulgar.

Santo André, 23 de janeiro de 2019

Angélica Lovatto
Professora do Departamento de Ciências
Políticas e Econômicas da Faculdade de
Filosofia e Ciências da UNESP (Marília).
Coordenadora do Grupo de Pesquisa
(CNPq) “Pensa-mento político brasileiro e
latino-americano”.
E-mail: angel.lovatto@gmail.com.
32 | S o b r e o ó b v i o
Darcy Ribeiro | 33

Sobre o óbvio

Darcy Ribeiro

Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os


cientistas trabalham é com o óbvio. O negócio de-
les – nosso negócio – é lidar com o óbvio. Aparen-
temente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de
forma tão recôndita e disfarçada que se precisa
desta categoria de gente – os cientistas – para ir
tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a
obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é
que parece um jogo sem fim. De fato, só consegui-
mos desmascarar uma obviedade para descobrir
outras, mais óbvias ainda.
Para começar, antes de entrar na obvieda-
de educacional – que é nosso tema – vejamos al-
gumas outras obviedades. É óbvio, por exemplo,
que todo santo dia o sol nasce, se levanta, dá sua
volta pelo céu, e se põe. Sabemos hoje muito bem
que isto não é verdade. Mas foi preciso muita astú-
cia e gana para mostrar que a aurora e o crepúscu-
lo são tretas de Deus. Não é assim? Gerações de
sábios passaram por sacrifícios, recordados por
todos, porque disseram que Deus estava nos enga-
nando com aquele espetáculo diário. Demonstrar
que a coisa não era como parecia, além de muito
difícil, foi penoso, todos sabemos.
Outra obviedade, tão óbvia quanto esta ou
mais óbvia ainda, é que os pobres vivem dos ricos.
34 | S o b r e o ó b v i o

Está na cara? Sem os ricos o que é que seria dos


pobres? Quem é que poderia fazer uma caridade?
Me dá um empreguinho aí! Seria impossível arran-
jar qualquer ajuda. Me dá um dinheirinho aí! Sem
rico o mundo estaria incompleto, os pobres estari-
am perdidos. Mas vieram uns Barbados dizendo
que não, e atrapalharam tudo. Tiraram aquela
obviedade e puseram outra oposta no lugar. Aliás,
uma obviedade subversiva.
Uma terceira obviedade que vocês conhe-
cem bem, por ser patente, é que os negros são
inferiores aos brancos. Basta olhar! Eles fazem um
esforço danado para ganhar a vida, mas não as-
cendem como a gente. Sua situação é de uma infe-
rioridade social e cultural tão visível, tão evidente,
que é óbvia. Pois não é assim, dizem os cientistas.
Não é assim, não. É diferente! Os negros foram
inferiorizados. Foram e continuam sendo postos
nessa posição de inferioridade por tais e quais
razões históricas.
Razões que nada têm a ver com suas capa-
cidades e aptidões inatas mas, sim, tendo que ver
com certos interesses muito concretos.
A quarta obviedade, mais difícil de admitir
– e eu falei das anteriores para vocês se acostuma-
rem com a idéia – a quarta obviedade, é a obvieda-
de doída de que nós, brasileiros, somos um povo
de segunda classe, um povo inferior, chinfrin, va-
gabundo. Mas tá na cara! Basta olhar! Somos 100
anos mais velhos que os estadunidenses, e esta-
mos com meio século de atraso com relação a eles.
A verdade, todos sabemos, é que a colonização da
Darcy Ribeiro | 35

América no Norte começou 100 anos depois da


nossa, mas eles hoje estão muito adiante. Nós,
atrás, trotando na história, trotando na vida. Um
negócio horrível, não é? Durante anos, essa obvie-
dade que foi e continua sendo óbvia para muita
gente nos amargurou. Mas não conseguíamos fugir
dela, ainda não.
A própria ciência, por longo tempo, parecia
existir somente para sustentar essa obviedade. A
Antropologia, minha ciência, por exemplo, por
demasiado tempo não foi mais do que uma doutri-
na racista, sobre a superioridade do homem bran-
co, europeu e cristão, a destinação civilizatória que
pesava sobre seus ombros como um encargo histó-
rico e sagrado. Nem foi menos do que um continu-
ado esforço de erudição para comprovar e demons-
trar que a mistura racial, a mestiçagem, conduzida
a um produto híbrido inferior, produzindo uma
espécie de gente-mula, atrasada e incapaz de pro-
mover o progresso. Os antropólogos, coitados, por
mais de um século estiveram muito preocupados
com isso, e nós, brasileiros, comemos e bebemos
essas tolices deles durante décadas, como a me-
lhor ciência do mundo. O próprio Euclides da Cu-
nha não podia dormir porque dizia que o Brasil ou
progredia ou desaparecia, mas perguntava: como
progredir, com este povo de segunda classe? Dom
Pedro II, imperador dos mulatos brasileiros, sofria
demais nas conversas com seu amigo e afilhado
Gobineau, embaixador da França no Brasil, teórico
europeu competentíssimo da inferioridade dos
pretos e mestiços.
36 | S o b r e o ó b v i o

O mais grave, porém, é que além de ser um


povo mestiço – e, portanto, inferior e inapto para o
progresso – nós somos também um povo tropical.
E tropical não dá! Civilização nos trópicos, não dá!
Tropical, é demais. Mas isto não é tudo. Além de
mestiços e tropical, outra razão de nossa inferiori-
dade evidente – demonstrada pelo desempenho
histórico medíocre dos brasileiros – além dessas
razões, havia a de sermos católicos, de um catoli-
cismo barroco, não é? Um negócio atrasado, extra-
vagante, de rezar em latim e confessar em portu-
guês.
Pois além disso tudo a nos puxar para
trás, havia outras forças, ainda piores, entre elas,
a nossa ancestralidade portuguesa. Estão vendo
que falta de sorte? Em lugar de avós ingleses, ho-
landeses, gente boa, logo portugueses... Lusitanos!
Está na cara que este país não podia ir para frente,
que este povo não prestava mesmo, que esta nação
estava mesmo condenada: mestiços, tropicais,
católicos e lusitanos é dose para elefante.
Bom, estas são as obviedades com que
convivemos alegre ou sofridamente por muito tem-
po. Nos últimos anos, porém, descobrimos meio
assombrados – descoberta que só se generalizou aí
pelos anos 50, mais ou menos – descobrimos real-
mente ou começamos a atuar como quem sabe,
afinal, que aquela óbvia inferioridade racial inata,
climático-telúrica, asnal-lusitana e católico-
barroca do brasileiro, era como a treta diária do sol
que todo dia faz de conta que nasce e se põe. Haví-
amos descoberto, com mais susto do que alegria,
Darcy Ribeiro | 37

que à luz das novas ciências, nenhuma daquelas


teses se mantinha de pé. Desde então, tornando-se
impossível, a partir delas, explicar confortavelmen-
te todo o nosso atraso, atribuindo-o ao povo, saí-
mos em busca de outros fatores ou culpas que
fossem as causas do nosso fraco desempenho nes-
te mundo.
Nesta indagação – vejam como é ruim
questionar! – acabamos por dar uma virada prodi-
giosa na roleta da ciência. Ela veio revelar que
aquela obviedade de sermos um povo de segunda
classe não podia mesmo se manter, porque escon-
dia uma outra obviedade mais óbvia ainda. Esta
nova verdade nos assustou muito, levamos tempo
para engolir a novidade. Sobretudo nós, bonitos.
Falo da descoberta de que a causa real do atraso
brasileiro, os culpados de nosso subdesenvolvi-
mento somos nós mesmos, ou melhor, a melhor
parte de nós mesmos: nossa classe dominante e
seus comparsas. Descobrimos também, com susto,
à luz dessa nova obviedade, que realmente não há
país construído mais racionalmente por uma clas-
se dominante do que o nosso. Nem há sociedade
que corresponda tão precisado aos interesses de
sua classe dominante como o Brasil.
Assim é que, desde então, lamentavelmen-
te, já não há como negar dois fatos que ficaram
ululantemente óbvios. Primeiro, que não é nas
qualidades ou defeitos do povo que está a razão do
nosso atraso, mas nas características de nossas
classes dominantes, no seu setor dirigente e, in-
clusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que
38 | S o b r e o ó b v i o

nossa velha classe tem sido altamente capaz na


formulação e na execução de projeto de sociedade
que melhor corresponde a seus interesses. Só que
este projeto para ser implantado e mantido precisa
de um povo faminto, chucro e feio.
Nunca se viu, em outra parte, ricos tão
capacitados para gerar e desfrutar riquezas, e para
sub-julgar o povo faminto no trabalho, como os
nossos senhores empresários, doutores e coman-
dantes. Quase sempre cordiais uns para com os
outros, sempre duros e implacáveis para com su-
balternos, e insaciáveis na apropriação dos frutos
do trabalho alheio. Eles tramam e retramam, há
séculos, a malha estreita dentro da qual cresce,
deformado, o povo brasileiro. Deformado e cons-
trangido e atrasado. E assim é, sabemos agora,
porque só assim a velha classe pode manter, sem
sobressaltos, este tipo de prosperidade de que ela
desfruta, uma prosperidade jamais generalizável
aos que a produzem com o seu trabalho, mas uma
prosperidade sempre suficiente para reproduzir,
geração após geração, a riqueza, a distinção e a
beleza de nossos ricos, suas mulheres e filhos.
Por esta razão, é que a segunda parte des-
ta minha fala será o elogio da classe dominante
brasileira. O que aspiramos, objetivamente, é retra-
tá-la aqui em toda a sua alta competência. Mais
até do que competente, acho que ela é façanhuda,
porque fez coisas tão admiráveis e únicas ao longo
dos século, que merece não apenas nossa admira-
ção, mas também nosso espanto.
Darcy Ribeiro | 39

A primeira evidência a ressaltar é que nos-


sa classe dominante conseguiu estruturar o Brasil
como uma sociedade de economia extraordinaria-
mente próspera. Por muito tempo se pensou que
éramos e somos um país pobre, no passado e ago-
ra. Pois não é verdade. Esta é uma falsa obviedade.
Éramos e somos riquíssimos! A renda per capita
dos escravos de Pernambuco, da Bahia e de Minas
Gerais – eles duravam em média uns cinco anos no
trabalho – mas a renda per capita dos nossos es-
cravos era, então, a mais alta do mundo. Nenhum
trabalhador, naqueles séculos, na Europa ou na
Ásia, rendia em libras – que eram os dólares da
época – como um escravo trabalhando num enge-
nho no Recife; ou lavrando ouro em Minas Gerais;
ou, depois, um escravo, ou mesmo um imigrante
italiano, trabalhando num cafezal em São Paulo.
Aqueles empreendimentos foram um sucesso for-
midável. Geraram além de um PIB prodigioso, uma
renda per capita admirável. Então, como agora,
para uso e gozo de nossa sábia classe dominante.
A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil,
se inventou um modelo de economia altamente
próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer,
livre de quaisquer comprometimentos sentimen-
tais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, in-
ventamos e fundamos um sistema social perfeito
para os que estão do lado de cima da vida. Senão,
vejamos. O valor da exportação brasileira no século
XVII foi maior que o da exportação inglesa no
mesmo período. O produto mais nobre da época
era o açúcar. Depois, o produto mais rendoso do
40 | S o b r e o ó b v i o

mundo foi o ouro de Minas Gerais que multiplicou


várias vezes a quantidade de ouro existente no
mundo. Também, então, reinou para os ricos uma
prosperidade imensa. O café, por sua vez, foi o
produto mais importante do mercado mundial até
1913, e nós desfrutamos, por longo tempo, o mo-
nopólio dele. Nestes três casos, que correspondem
a conjunturas quase seculares, nós tivemos e des-
frutamos uma prosperidade enorme. Depois, por
algumas décadas, a borracha e o cacau deram
também surtos invejáveis de prosperidade que
enriqueceram e dignificaram as camadas proprie-
tárias e dirigentes de diversas regiões. O importan-
te a assinalar é que, modéstia à parte, aqui no
Brasil se tinha inventado ou ressuscitado uma
economia especialíssima, fundada num sistema de
trabalho que, compelindo o povo a produzir, o que
ele não consumia – produzir para exportar – permi-
tia gerar uma prosperidade não generosa, ainda
que propensa desde então, a uma redistribuição
preterida.
Enquanto isso se fez debaixo dos sólidos
estatutos da escravidão, não houve problema. De-
pois, porém, o povo trabalhador começou a dar
trabalho, porque tinha de ser convencido na lei ou
na marra, de que seu reino não era para agora,
que ele verdadeiramente não podia nem precisava
comer hoje. Porém o que ele não come hoje, come-
rá acrescido amanhã. Porque só acumulando ago-
ra, sem nada desperdiçar comendo, se poderá pro-
gredir amanhã e sempre. O povão, hoje como on-
tem, sempre andou muito desconfiado de que ja-
Darcy Ribeiro | 41

mais comerá depois de amanhã o feijão que deixou


de comer anteontem. Mas as classes dominantes e
seus competentes auxiliares, aí estão para conven-
cer a todos – com pesquisas, programas e promo-
ções – de que o importante é exportar, de que é
indispensável e patriótico ter paciência, esperem
um pouco, não sejam imediatistas. O bolo precisa
crescer; sem um bolo maior – nos dizem o Delfim lá
de Paris e o daqui – sem um bolo acrescido, este
país estará perdido. É preciso um bolo respeitável,
é indispensável uma poupança ponderável, uma
acumulação milagrosa para que depois se faça,
amanhã, prodigiosamente, a distribuição.
Bem, esta classe dominante promotora da
prosperidade restrita e do progresso contido, reali-
zou verdadeiras façanhas com sua extraordinária
habilidade. A primeira foi a própria Independência
do Brasil, que se deu, de fato, antes de qualquer
outra na América Latina, pois ocorreu no momento
em que Napoleão enxotava a família real de Portu-
gal. Com ela saem de Lisboa 15.000 fâmulos. Ima-
ginem só o que representou isto como empreendi-
mento? Não falo de epopéia de transladar esta
multidão de gentes para além-mar, - afinal, mais
negros se importava todo ano. Falo da invasão do
Brasil por 15.000 pessoas das famílias nobres de
Portugal. Foi como refundar o país, pelo menos o
país dominante.
Com eles nos vinha, de graça, toda aquela
secular sabedoria política lusitana de viver e so-
breviver ao lado dos espanhóis, sem conviver nem
brigar com eles. Toda aquela sagacidade burocráti-
42 | S o b r e o ó b v i o

ca, toda aquela cobiça senhorial com seu espanto-


so apetite de enricar e de mandar. Portugal, em
sua generosidade, nos legava, na hora do declínio,
sua nobreza mais nobre. Aquela cujo luxo já está-
vamos habituados a pagar, para ela aqui continuar
regendo uma sociedade confortável! para si própria
como o fora o velho reino, e até mais próspera.
O resultado imediato desta transladação
da sabedoria classista portuguesa foi a capacidade,
prontamente revelada, pela velha classe dominante
– agora nova e nossa – em episódios fundamentais.
Primeiro o de resguardar a unidade nacional que
foi o seu grande feito. Tanto mais em relação ao
que sucedeu à América Espanhola que, sem-rei-
nem-lei se balcanizou rapidamente. O Brasil, que
estava também dividido em regiões e administra-
ções coloniais igualmente diferenciadas, conse-
guiu, graças a essa sabedoria, preservar sua uni-
dade para surgir ao mundo com as dimensões
gigantescas de que tanto nos orgulhamos hoje.
A outra façanha da velha classe, foi sua
extraordinária capacidade de enfrentar e vencer
todas as revoluções sociais que se desencadearam
no país. Essa eficiência repressiva lhes permitia
esmagar todos os que reclamavam o alargamento
das bases da sociedade, para que mais gente parti-
cipasse do produto do trabalho e, assim, reafirmar
e consolidar sua hegemonia. Posteriormente, coro-
aram tal feito com outro ainda maior, que foi o de
escrever a história dessas lutas sociais como se
elas fossem motins.
Darcy Ribeiro | 43

Recentemente descobrimos, outra vez as-


sustados – desta vez graças às perquirições de José
Honório – que o Brasil não é tão cordial como que-
reria o nosso querido Sérgio. Durante o período
das revoltas sociais anteriores e seguintes à Inde-
pendência, morreram no Brasil mais de 50 mil
pessoas, inclusive uns sete padres enforcados. O
certo é que nossos 50 mil mortos são muitos mais
mortos do que todos que morreram nas lutas de
independência da América Espanhola, tidas como
das mais cruentas da história. Os nossos, porém,
foram surrupiados da história oficial das lutas
sociais por serem vítimas de meros motins, revol-
tas e levantes e, como tal, não merecem entrar na
crônica historiográfica séria da sabedoria classista.
Além destas grandes façanhas, nossa clas-
se dominante acometeu tarefas gigantescas com
uma sabedoria crescente, que eu tenho o dever de
assinalar nesta louvação. Façanha sobremodo
admirável, foi a nossa Lei de Terras, aprovada em
1850, quer dizer, 10 anos antes da América do
Norte estatuir o homestead, que é a lei de terras lá
deles.
A lei brasileira não só foi anterior, como
muito mais sábia. Sua sagacidade se revela inteira
na diferença de conteúdo social com respeito à
legislação da América do Norte, bem demonstrativo
da capacidade da nossa classe dominante para
formular e instituir a racionalidade que mais con-
vém à imposição de seus altos interesses. A classe
dominante brasileira inscreve na Lei de Terras um
juízo muito simples: a forma normal de obtenção
44 | S o b r e o ó b v i o

da prioridade é a compra. Se você quer ser proprie-


tário, deve comprar suas terras do Estado ou de
quem quer que seja, que as possua a título legíti-
mo. Comprar! É certo que estabelece generosamen-
te uma exceção carterial: o chamado usucapião. Se
você puder provar, diante do escrivão competente,
que ocupou continuadamente, por 10 ou 20 anos,
um pedaço de terra, talvez consiga que o cartório o
registre como de sua propriedade legítima. Como
nenhum caboclo vai encontrar esse cartório, quase
ninguém registrou jamais terra nenhuma por esta
via. Em conseqüência, a boa terra não se dispersou
e todas as terras alcançadas pelas fronteiras da
civilização, foram competentemente apropriadas
pelos antigos proprietários que, aquinhoados, pu-
deram fazer de seus filhos e netos outros tantos
fazendeiros latifundiários.
Foi assim, brilhantemente, que a nossa
classe dominante conseguiu duas coisas básicas:
se assegurou a propriedade monopolística da terra
para suas empresas agrárias, e assegurou que a
população trabalharia docilmente para ela, porque
só podia sair de uma fazenda para cair em outra
fazenda igual, uma vez que em lugar nenhum con-
seguiria terras para ocupar e fazer suas pelo traba-
lho.
A classe dominante norte-americana, me-
nos previdente e quiçá mais ingênua, estabeleceu
que a forma normal de obtenção de propriedade
rural era a posse e a ocupação das terras por quem
fosse para o Oeste – como se vê nos filmes de faro-
este. Qualquer pioneiro podia demarcar cento e
Darcy Ribeiro | 45

tantos acres e ali se instalar com a família, porque


só o fato de morar e trabalhar a terra fazia proprie-
dade sua. O resultado foi que lá multiplicou um
imenso sistema de pequenas e médias proprieda-
des que criou e generalizou para milhões de mo-
destos granjeiros uma prosperidade geral. Geral
mas medíocre, porque trabalhadas por seus pró-
prios donos, sem nenhuma possibilidade de edifi-
car Casas-grandes & Senzalas grandiosas como as
nossas. É notório que aqui foram melhor preserva-
dos os interesses da classe dominante que graças à
sua previdência, pôde viver e legar com prosperi-
dade e exuberância. Em conseqüência, os ricos
daqui vivem uma vida muito mais rica do que os
ricos de lá, comendo melhor, servidos por uma
famulagem mais ampla e carinhosa. Como se vê,
tudo foi feito com muito mais sabedoria, prevendo-
se até a invenção da mucama que nos amamenta-
ria de leite e de ternura.
O alto estilo da classe dominante brasileira
só se revela, porém, em toda a sua astúcia na
questão da escravidão. A Revolução Industrial que
vinha desabrochando trazia como novidade maior
tornar inútil, obsoleto, o trabalho muscular como
fonte energética. A civilização já não precisava
mais se basear no músculo de asnos e de homens.
Agora tinha o carvão, que podia queimar para dar
energia, depois viriam a eletricidade e, mais tarde,
o petróleo. Isso é o que a Revolução Industrial deu
ao mundo. Mas os senhores brasileiros, sabiamen-
te, ponderaram: - Não! Não é possível, com tanto
negro à toa aqui e na África, podendo trabalhar
46 | S o b r e o ó b v i o

para nós, e assim, ser catequizado e salvo, seria


uma maldade trocá-los por carvão e petróleo. Dito
e feito, o Brasil conseguiu estender tanto o regime
escravocrata, que foi o último país do mundo a
abolir a escravidão.
O mais assinalável, porém, como demons-
tração de agudeza senhorial, é que ao extingui-la, o
fizemos mais sabiamente que qualquer outro país.
Primeiro, libertamos os donos da onerosa obriga-
ção de alimentar os filhos dos escravos que seriam
livres. Hoje festejamos este feito com a Lei do Ven-
tre-Livre. Depois, libertamos os mesmos donos do
encargo inútil de sustentar os negros velhos que
sobreviveram ao desgaste no trabalho, comemo-
rando também este feito como uma conquista li-
bertária. Como se vê, estamos diante de uma clas-
se dirigente armada de uma sabedoria atroz.
Com a própria industrialização, no passa-
do e no presente, conseguimos fazer treta. Nisto
parecemos deuses gregos. A treta, no caso, consis-
tiu em subverter sua propensão natural, para não
desnaturar a sociedade que a acolhia. A industria-
lização, que é sabidamente um processo de trans-
formação da sociedade de caráter libertário, entre
nós se converteu num mecanismo de recoloniza-
ção. Primeiro, com as empresas inglesas, depois
com as yankees e, finalmente, com as ditas multi-
nacionais. O certo é que o processo de industriali-
zação à brasileira consistiu em transformar a clas-
se dominante nacional de uma representação colo-
nial aqui sediada, numa classe dominante gerenci-
al, cuja função agora é recolonizar país, através
Darcy Ribeiro | 47

das multinacionais. Isto é também uma façanha


formidável, que se está levando a cabo enorme
elegância e extraordinária eficácia.
A eficácia total, entretanto, eficácia diante
da qual devemos nos declinar – aquela que é real-
mente o grande feito que nós, brasileiros, podemos
ostentar diante do mundo como único – é a faça-
nha educacional da nossa classe dominante. Esta
é realmente extraordinária! E por isto é que eu não
concordo com aqueles que, olhando a educação
desde outra perspectiva, falam de fracasso brasilei-
ro no esforço por universalizar o ensino. Eu acho
que não houve fracasso algum nesta matéria,
mesmo porque o principal requisito de sobrevivên-
cia e de hegemonia da classe dominante que temos
era precisamente manter o povo chucro. Um povo
chucro, neste mundo que generaliza tonta e ale-
gremente a educação, é, sem dúvida, fenomenal.
Mantido ignorante, ele não estará capacitado a
eleger seus dirigentes com riscos inadmissíveis de
populismo demagógico. Perpetua-se, em conse-
qüência, a sábia tutela que a elite educada, ilus-
trada, elegante, bonita, exerce paternalmente sobre
as massas ignoradas. Tutela cada vez mais neces-
sária porque, com o progresso das comunicações,
aumentam dia-a-dia os riscos do nosso povo se ver
atraído ao engodo comunista ou fascista, ou traba-
lhista, ou sindical, ou outro. Assim se vê o equívo-
co em que recai quem trata como fracasso do Bra-
sil em educar seu povo o que de fato foi uma faça-
nha. Pedro II, por exemplo, nosso preclaro impera-
dor, nunca se equivocou a respeito. Nos dias que a
48 | S o b r e o ó b v i o

Argentina, o Chile e o Uruguai generalizavam a


educação primária dentro do espírito de formar
cidadãos para edificar a nação, naquelas eras,
nosso sábio Pedro criava duas únicas instituições
educacionais: o Instituto de Surdos e Mudos, e o
Instituto Imperial dos Cegos. Aliás, diga-se de pas-
sagem, o segundo deles, mais tarde, por mãos de
outro Pedro monárquico – o Calmon – passou a
servir de sede – é um edifício muito bonito – à rei-
toria da então chamada Universidade do Brasil.
Antes tiraram os cegos de lá, naturalmente.
Duas são as vias históricas de populariza-
ção do ensino elementar. Primeiro, a luterana, que
se dá com a conversão da leitura da Bíblia no su-
premo ato de fé. Disto resulta um tipo de educação
comunitária em que cada população local, munici-
pal, trabalhada pela Reforma, faz da igreja sua
escola e ensina ali a rezar, ou seja, a ler. Esta é a
educação que generalizou na Alemanha e, mais
tarde, nos Estados Unidos, como educação comu-
nitária.
A outra forma de generalização do ensino
primário foi a cívica, napoleônica, promovida pelo
Estado, fruto da Revolução Francesa, que se dis-
pôs a alfabetizar os franceses para deles fazer ci-
dadãos. Aqueles franceses todos, divididos em
bretões, flamengos, occipitães, etc., aquela quanti-
dade de gente provinciana, falando dialetos atra-
vancados, não agravada a Napoleão. Ele inventou,
então, esta coisa formidavelmente simples, que é a
escola pública regida por uma professorinha pri-
mária, preparada num internato, para a tarefa de
Darcy Ribeiro | 49

formar cidadãos. Foi ela, com o giz e o quadro-


negro, que desasnou os franceses, e desasnando,
os faz cidadãos, ao mesmo tempo em que generali-
zava a educação.
Como se vê, temos duas formas básicas de
promover a educação popular: uma, religiosa, que
é comunitária, municipal; outra, cívica, que é esta-
tal e, em conseqüência, federal. O Brasil, com os
dois pedros imperiais, e todos os presidentes civis
e todos os governantes militares e que os sucede-
ram de então até hoje, apesar de católico, adota
forma comunitária luterana. Ou seja, entrega a
educação fundamental exatamente aos menos
interessados em educar o povo, ao governo muni-
cipal e ao estadual.
Pois bem, prestem atenção, e se edifiquem
com a sabedoria que os nossos maiores revelam
neste passo: ao entregar a educação primária exa-
tamente àqueles que não queriam educar ninguém
– porque achavam uma inutilidade ensinar o povo
a ler, escrever e contar – ao entregar exatamente a
eles – ao prefeito e ao governador – a tarefa de ge-
neralizar a educação primária, a condenavam ao
fracasso, tudo isso sem admitir, jamais, que seu
imposto era precisamente este.
O professor Oracy Nogueira nos conta que
a nobre vila de Itapetininga, ilustre cidade de São
Paulo, em meados do século passado, fez um pedi-
do veemente a Pedro Dois: queria uma escola de
primeiras letras. E a queria com fervor, porque ali
– argumentava – havia vários homens bons, paulis-
tas de quatro e até de quarenta costados, e ne-
50 | S o b r e o ó b v i o

nhum deles podia servir na Câmara Municipal,


porque não sabiam assinar o nome. Queria uma
escola de alfabetização para fazer vereador, não
uma escola para ensinar todo o povo a ler, escrever
e contar. Vejam a diferença que há entre a nossa
orientação educacional e as outras tradições. Aqui,
sabiamente, uma vila quer e pede escola, mas não
quer rezar, nem democratizar, o que deseja é for-
mar a sua liderança política, é capacitar a sua
classe dominante sem nenhuma idéia de generali-
zar a educação.
Como não admirar a classe desta nossa
velha classe que no caso da terra, adota uma solu-
ção oposta à granjeira norte-americana; e no caso
da educação, adota exatamente a solução comuni-
tária yankee... Varia nos dois casos para não vari-
ar. Isto é, para continuar atendendo aos seus dois
interesses cruciais: a apropriação latifundiária da
terra e a santa ignorância popular.
Mas a amplitude de critérios não pára aí,
visto que para o ensino superior se fez o contrário.
A escola superior, e não a primária, é que foi estru-
turada no Brasil segundo uma orientação napoleô-
nica. Como os franceses, criamos uma universida-
de que não era universidade, mas um conglomera-
do de escolas autárquicas. Napoleão precisou fazer
isto, talvez, para liquidar a vetustez da universida-
de medieval, porque ela estava dominada, conta-
minada, impregnada da teologia de então. Era
preciso romper aquele quadro medieval para pro-
gredir. Para isto, a burguesia criou as grandes
escolas nacionais, formadoras de profissionais,
Darcy Ribeiro | 51

advogados, médicos, engenheiros, assépticos de


qualquer teologismo.
O Brasil não tinha tido uma universidade.
Começa pelas grandes escolas. Recorde-se que as
dezenas de universidades do mundo hispano-
americano foram criadas a partir de 1.550, for-
mando ( ) . No Brasil, quem tinha dinheiro para
educar o filho em nível superior, mandava-o para
Coimbra. Como eram poucos os abastados, em
todo o período colonial, apenas conseguimos for-
mar uns 2.800 bacharéis e médicos. Isto significa
que, por ocasião da Independência, devia haver, se
tanto, uns 2.000 brasileiros com formação superi-
or, aspirando a cargos e mordomias. Havia, por
conseqüência, um vasto lugar para aqueles 15.000
fâmulos reais que caíram sobre o Rio de Janeiro, a
Bahia e o Recife, convertendo-se, rapidamente, no
setor hegemônico da classe dominante, classe diri-
gente, do país, logo aquinhoada com sesmarias
latifundiárias e vasta escravista.
O Brasil cria as suas primeiras escolas
depois do desembarque da Corte. E as cria para
formar um famulário local. Mas as organiza se-
gundo o modelo napoleônico, federal e não munici-
palmente. Elas nascem como criações do governo
central, estruturadas em escolas superiores autár-
quicas que não queriam ser aglutinadas em uni-
versidades. Nossa primeira universidade, só se ( )
em 1.923. E se cria por decreto, por uma razão
muito importante, ainda que extra-educacional: o
rei da Bélgica visitava o Brasil, e o Itamarati devia
dar a ele o título de Doutor Honoris causa. Não
52 | S o b r e o ó b v i o

podendo honrar ao reizinho como o protocolo re-


comendava, porque não tínhamos uma universida-
de, criou-se para isto a Universidade do Brasil.
Assim, Leopoldo se fez doutor aqui também. Assim
foi criada a primeira universidade brasileira. Uma
universidade que, desde então, se vem estruturan-
do e desestruturando, como se sabe.
Mas o modelo se multiplicou prodigiosa-
mente como os peixes do Senhor. Hoje contamos
com mais centena de universidade e milhares de
cursos superiores onde já estuda mais de um mi-
lhão de jovens. São tantos, que já há quem diga
que nossas universidades enfrentam uma verda-
deira crise de crescimento, asseverando mesmo
que seu problema decorre de haver matriculado
gente demais. Teriam elas crescido com tanta de-
masia que, agora, não podendo digerir o que têm
na barriga, jibóiam. Eu acho que o conceito de
crise-de-crescimento não expressa bem o fenôme-
no. Nosso caso é outro. O que ocorre com a univer-
sidade no Brasil é mais ou menos o que sucederia
com uma vaca se, quando bezerra, ela fosse encer-
rada numa jaula pequenina. A vaca mesmo está
crescendo naturalmente, mas a jaula de ferro aí
está, contendo, constringindo. Então o que cresce é
um bicho raro, estranho. Este bicho nunca visto é
o produto, é o fruto, é a flor acadêmica dessa clas-
se dominante sábia, preclara, admirável que te-
mos, que nos serve e a que servimos patriotica-
mente contritos. Cremos haver demonstrado até
aqui que no campo da educação é que melhor se
concretiza a sabedoria das nossas classes domi-
Darcy Ribeiro | 53

nantes e sua extraordinária astúcia na defesa de


seus interesses. De fato, uma minoria tão insignifi-
cante e tão claramente voltada contra os interesses
da maioria, só pode sobreviver e prosperar contan-
do com enorme sagacidade, enorme sabedoria, que
é preciso compreender e proclamar.
Sua última façanha neste terreno, sobre a
qual, aliás muito se comenta – às vezes, até de
forma negativa – foi a mobralização da nossa edu-
cação elementar. A nosso ver, o MOBRAL é uma
obra maravilhosa de previdência e sabedoria. Com
efeito, é a solução perfeita. Quem se ocupe em
pensar um minuto que seja sobre o tema, verá que
é óbvio que quem acaba com o analfabetismo adul-
to é a morte. Esta é a solução natural. Não se pre-
cisa matar ninguém, não se assustem! Quem mata
é a própria vida, que traz em si o germe da morte.
Todos sabem que a maior parte dos analfabetos
está concentrada nas camadas mais velhas e mais
pobres da população. Sabe-se, também, que esse
pessoal vive pouco, porque come pouco. Sendo
assim, basta esperar alguns anos e se acaba com o
analfabetismo. Mas só se acaba com a condição de
que não se produzem novos analfabetos. Para tan-
to, tem-se que dar prioridade total, federal, à não-
produção de analfabetos. Pegar, caçar (com e cedi-
lha) todos os meninos de sete anos para matricular
na escola primária, aos cuidados de professores
capazes e devotados, a fim de não mais produzir
analfabetos. Porém, se se escolarizasse a criançada
toda, e se o sistema continuasse matando os velhi-
nhos analfabetos com que contamos, aí pelo ano
54 | S o b r e o ó b v i o

2.000 não teríamos mais um só analfabeto. Perce-


bem agora onde está o nó da questão?
Graças ao MOBRAL estamos salvos! Sem
ele a classe dominante estaria talvez perdida. Ima-
gine-se o ano 2.000, sem analfabetos no Brasil!
Seria um absurdo! Não, graças à previdência de
criar para alfabetizar um órgão que não alfabetiza,
de não gastar os escassos recursos destinados à
educação onde se deveria gastar, de não investir
onde se deveria investir – se o propósito fosse gene-
ralizar a educação primária – podemos contar com
a garantia plena de que manteremos crescente o
número absoluto de analfabetos de nosso país.
Também edificante, no caso do MOBRAL, é
ele se haver convertido numa das maiores editoras
do mundo. Com efeito, a tiragem de suas edições
se conta por centenas de milhões. É espantoso,
mas verdadeiro: neste nosso Brasil, se não são os
analfabetos os que mais lêem, é a eles que se des-
tina a maior parte dos livros, folhetins, livrinhos
coloridos que se publica oficialmente, maravilhoso,
em quantidades astronômicas. Pode-se mesmo
afirmar que o maior empreendimento eleitoral –
eleitoral, não editorial – do país é o MOBRAL, como
instituição educativa e como co-editora.
Naturalmente que há nisto implicações.
Uma delas, a originalidade ou o contraste que fa-
remos no ano 2.000. Então, todas as nações orga-
nizadas para si mesma s e que vivem como socie-
dades autônomas, estarão levando a quase totali-
dade da sua juventude às escolas de nível superi-
or. Neste momento, nos estados Unidos, mais de
Darcy Ribeiro | 55

70% dos jovens já estão ingressando nos cursos


universitários. Cuba, mesmo, - os cubanos são
muito pretenciosos – está prometendo matricular
toda a sua juventude nas universidades. Primeiro,
eles tentaram generalizar o ensino primário. Con-
seguiram. Generalizaram, depois, o secundário.
Agora, ameaçam universalizar o superior. Parece
que já no próximo ano [1978] todos os jovens que
terminam os seis anos de secundário entrarão para
a universidade. É claro para isso, a universidade
teve de ser totalmente transformada. Desenclaus-
trada.
Meditem um pouco sobre este tema e
imaginem o efeito turístico que terá, num mundo
em que todos tenham feito curso superior, um
Brasil com milhões de analfabetos... Pode ser um
negócio muito interessante, não é? Sobretudo se
eles continuarem com essas caras tristonhas que
tem, com esse ar subnutrito que exibem e que não
existirá mais neste mundo. O Brasil poderá então
ser de fato, o país do turismo, o único lugar do
mundo onde se poderá ver coisas assim, de outros
tempos, coisas raras, fenomenais, extravagantes.
Em conseqüência, a crise educacional do Brasil da
qual tanto se fala, não é uma crise, é um
programa. Um programa em curso, cujos frutos,
amanhã, falarão por si mesmos.
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Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em


agroecologia, integrado ao Ensino Médio.
Parceria UNESP – Centro Paula Souza – PRONERA.

Escola de Educação Popular Rosa Luxemburgo


(MST – Iaras – SP)

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