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Tópicas na Música Ibérica para instrumentos de tecla do séc.

XVIII

e suas projeções na Ibero-América

Eduardo de Carvalho Ribeiro

Introdução

O estudo da música Ibérica para Instrumentos de tecla do séc. XVIII do ponto de vista
das “tópicas” promete lançar luzes nas pesquisas que relacionam a música antiga
européia com a formação da musicalidade sul e centro-americana. Os compositores
ibéricos oitocentistas eram, em sua maioria, tecladistas e seu repertório era
compartilhado entre o órgão, cravo e posteriormente, o pianoforte. Assim como a
prática da baixo contínuo é atrelada a instrumentos de tecla, a composição de obras
vocais e orquestrais naturalmente compartilha traços estilísticos com o repetório de
teclado de uma maneira ampla e profunda. Podemos considerar que a prática do
teclado atuou como laboratório de composição para que estes compositores
expandissem sua prática composicional a outros gêneros como a ópera e a música
religiosa. O procedimento investigativo que permitiu dimensionar e objetivar o estudo
destes traços estilísticos ou “tópicas” exigiu a leitura minuciosa de diversos textos
musicais ao cravo, de autores centro-europeus e boa parte do repertório ibérico
publicado (e diversos manuscritos digitalizados). A leitura focada nos traços estilísticos
recorrentes encontrados neste material apresentou pistas sobre prováveis relações
com o desenvolvimento de gêneros brasileiros como a modinha e o lundu1 e com a
permanência de traços da ancestralidade ibérica na música nordestina e rural, no
folclore e na música de Elomar2.

Estes traços estilísticos recorrentes, aqui chamados de “tópicas” permitem um


rastreamento dos caminhos percorridos pela música de tecla ibérica do século XVIII,
em especial a “sonata bipartida”. Uma metodologia adequada para rastrear e
identificar estas tópicas deverá lançar luzes sobre a musicalidade desenvolvida no
Brasil colonial, em especial, a suposta música de tecla a solo3.

1
ANDRADE, Mário de. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte. Editora Itatiaia, 1980.
2
ELOMAR Figueira Mello (Vitória da Conquista, 21 de dezembro de 1937) é cantor,
violonista e compositor brasileiro de canções, óperas e outros gêneros eruditos.
3
A música de tecla solista no Brasil colonial e imperial será discutida adiante neste texto.
A Teoria das Tópicas

A Teoria das Tópicas, ou “Topic Theory” foi formulada no livro “Classic Music,
Expression, form and style” de Leonard G. Ratner4. Pertence ao ramo da Retórica e
oferece um desenvolvimento lógico ao estudo da doutrina dos afetos no período
Barroco. Origina-se na noção aristotélica de “topoï”, equivalente à noção de lugar-
comum (loci-communes) na literatura. Sua aplicação na análise musical tem oferecido
soluções e questões de pertinência na recente musicologia. Ratner afirma que:

“Como a música devia ser composta rapidamente, para uso imediato, os


compositores confiavam em fórmulas familiares e universalmente aceitas para
sua organização e controle dos detalhes. Aonde quer que tomemos exemplos
desta música, encontraremos traços destas fórmulas”. (RATNER, op.cit.,
prefácio, p.XIV).5

Segundo Ratner, estas “fórmulas familiares” compartilhadas pelos habitantes de uma


mesma cultura, podem se manifestar em “tipos formais” como as diversas danças
barrocas e clássicas: minueto, sarabande, giga, contradança e muitas outras. As
tópicas também se manifestam nos chamados “estilos”: estilo de minueto, estilo de
caça, estilo brilhante, estilo estrito, estilo galante, etc.
Ratner organiza as tópicas na música clássica em uma longa lista de traços
expressivos cujo manejo possibilita compreender tanto conexões musicais quanto
conexões com as sociedades nas quais foram criadas essas obras, por meio da
decodificação e contextualização das tópicas veiculadas através de exemplos de
determinado estilo.

Um exemplo de tópica em que uma dança serve como base para uma nova
estruturação, segundo Ratner, é o tema do Andante Cantabile da Sinfonia n. 41
(“Júpiter”) de Mozart:

4
RATNER, Leonard G. Classic Music: Expression, Form and Style. New York. Schirmer
Books,1980.
5
No original: “Since most of this music had to be composed quickly, for immediate use,
composers relied on familiar and universally accepted formulas for its organization and handling
of detail. Wherever we sample this music, we find it runs to type.”
6
Mozart. Sinfonia.n. 41. 2º mov., Andante Cantabile

Ratner observa que se trata de uma sarabanda estilizada, dança barroca que era
considerada antiga na época de Mozart. Neste exemplo, a sarabanda é resignificada
ao surgir em um contexto musical de estilo galante. Seu traço distintivo se manifesta
através do padrão rítmico característico com seu natural acento no 2º tempo
caracterizando esta dança. Segundo Ratner, os ouvintes daquele tempo
compreendiam a sarabanda como uma dança do “alto estilo”, o estilo da corte e da
nobreza e portanto, com uma certa seriedade em sua expressão. Tópicas também se
manifestam em estilos, como por exemplo, o estilo ou tópica pastoral, como na 6ª
sinfonia de Beethoven, que se inicia com os característicos pedais em 5ªs justas que
sugerem amplos espaços para a evolução da alegre contradança que abre o
movimento:

7
Beethoven. Sinfonia No. 6 “Pastoral”

Desenvolvimentos posteriores da “Topic Theory” surgiram com HATTEN8, AGAWU9 e


PIEDADE (2007)10, dentre outros.

6
Wolfgang Amadeus Mozarts Werke, Serie 8: Symphonien. Leipzig. Breitkopf & Härtel, 1880.
7
Ludwig van Beethovens Werke, Serie 1: Symphonien, Nr.6 (pp.3-86). Leipzig. Breitkopf &
Härtel, 1863.
8
HATTEN, Robert S. Interpreting Musical Gestures, Topics and Tropes: Mozart, Beethoven,
Schubert. Bloomington. Indiana University Press, 2004.
9
Agawu, V. Kofi. Playing with Signs, a semiotic interpretation of classic music. New Jersey .
Princeton University Press, 1991.
10
PIEDADE, Acácio Tadeu. Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise
musical. Artigo. Revista Eletrônica de Musicologia. Volume XI. Setembro, 2007.
Agawu propõe uma abordagem ampliada através da união de duas perspectivas, tanto
através do universo das tópicas quanto através da compreensão formal e estrutural da
música. Para ele, “[...] elas não são duas formas disjuntas de pensamento musical,
mas ao invés disso (potencialmente), são uma interseção de perspectivas.”11 (op.cit.
p.23).

Hatten12 contribui com os conceitos de gesto musical e tropo. Sobre o gesto musical,
MATSCHULAT (2011)13 afirma que “consiste no contorno característico que confere a
estes sons seu significado expressivo”. (p.19).

Hatten aprofunda este conceito investigando diversas categorias de gesto como o


gesto prototípico o qual responde ao nível imediato de percepção.

O “tropo” surge da combinação de gestos e tópicas, permitindo um nível superior de


diálogo entre os componentes do discurso musical. Para Hatten, os tropos “[...] podem
ser definidos como a reunião de dois tipos estilísticos outrora incompatíveis em um
ponto específico a fim de produzir um significado expressivo singular a partir de sua
colisão ou fusão”.14 (HATTEN, 2004, p.68).

Os caminhos da música para tecla no Brasil

O estudo da música ibérica para instrumentos de tecla no século XVIII tem como
objetivo contribuir para a questão do repertório instrumental no Brasil colonial. Apenas
duas composições originais para tecla no Brasil colonial são conhecidas: a “Sonata 2ª”
ou “Sonata Sabará”15 (anônimo do séc.XVIII) e o “Método para Pianoforte”16 de José
Maurício Nunes Garcia (1821). As “Lições de Solfejo” de Luís Álvares Pinto (1776)17,
podem ser uma alternativa ao repertório de tecla mas são de fato exercícios de solfejo
e baixo contínuo. Também nas “Cifras de Música para Saltério” de Antônio Vieira dos

11
No original: “[…] these are not two disjunct modes of musical thought, but rather two
(potentially) intersecting perspectives.”
12
(op.cit.).
13
MATSCHULAT, Josias. Gestos Musicais no Ponteio n.49 de Camargo Guarnieri: análise e
comparação de gravações. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre. UFRS, 2011.
14
No original: “[...] may be defined as the bringing together of two otherwise incompatible style
types in a single location to produce a unique expressive meaning from their collision or fusion.”
15
BRANDÃO, Domingos Sávio de Lins (edit.). Sonata 2ª (Sonata Sabará). Belo Horizonte .
Editora Pontes, 2007.
16
FAGERLANDE, Marcelo. Padre José Maurício: o método de pianoforte de José Maurício
Nunes Garcia. Relume-Dumará: Rio de Janeiro. RioArte, 1995.
17
PINTO, Luís Álvares. Lições de solfejo. Edição: Paulo Castagna,1998.
Santos18 se encontra um repertório que pode ter sido transposto para o saltério do
cravo ou da guitarra.
PEREIRA (2005)19, OTTO (2006)20 e KERR (2011)21 desenvolveram estudos sobre os
instrumentos de tecla no Brasil colonial e atestam documentação considerável sobre a
circulação de cravos, pianos e órgãos. Uma espineta do século XVIII é o único
instrumento de teclado cordofone no Brasil que chegou aos dias atuais. Otto diz que:

“[...] essa espineta está atualmente no Museu Imperial de Petrópolis.


Construída em 1785 por Mathias Bosten (? – 1806), mestre de cravos da Real
Câmara, tendo também servido à coroa portuguesa como afinador de cravos e
cravista, entre 1769 e 1801.” pp.29,30 (op. cit.).

Órgãos do século XVIII22 foram restaurados e se mostram perfeitos para o repertório


ibérico, mas de seu repertório solo, assim como no caso do cravo ou pianoforte, nada
sobreviveu.

A existência de instrumentos de tecla como o cravo e o órgão no Brasil colonial


naturalmente levanta questões sobre a existência de algum repertório solo. Como os
parcos exemplos sobreviventes não constituem corpus suficiente para o
desenvolvimento de estudos mais profundos, um caminho alternativo é o estudo do
repertório para tecla de Portugal e Espanha, fonte de muitas tópicas encontradas na
música brasileira.

O estudo do repertório ibérico para instrumentos de tecla do século XVIII desenvolvido


no escopo da Teoria das Tópicas, ou “Topic Theory” poderá aumentar os
conhecimentos sobre a música de instrumentos de tecla no Brasil colonial. Esta teoria
permite uma forma de análise na qual se considera a música como um discurso de
representações detectáveis em padrões musicais específicos - tópicas, gestos e
tropos - possibilitando a análise comparativa entre os traços estilísticos ibéricos e traços
da música italiana hegemônica no séc. XVIII na Península Ibérica. O estudo das tópicas,
gestos e tropos fornecerá subsídios para a análise tópica em estilos luso-brasileiros como
a modinha e o lundú, sob o mesmo prisma da Teoria das Tópicas.

18
BUDAZS, Rogério. “Cifras de Música para Saltério” / Antônio Vieira dos Santos. Ed.da UFPR.
Curitiba, 2002.
19
PEREIRA, Mayra. Do Cravo ao Pianoforte no Rio de Janeiro: Um estudo documental e
organológico. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro. UFRJ, 2005.
20
OTTO, Maria Eloiza. Instrumentos de Teclado e seu repertório no Brasil Colonial. Monografia
de Bacharelado. Florianópolis. UDESC. Centro de Artes – CEART, 2006.
21
KERR, Dorotéa. Organistas, organeiros e órgãos: crônicas sobre a história da música no
Brasil. São Paulo. Ed.Unesp, 2011.
22
Em Minas Gerais existem três importantes órgãos do século XVIII restaurados: nas cidades
de Mariana, Tiradentes e Diamantina.
A análise tradicional, paramétrica ou estrutural (COOK23) e a metodologia dos Grupos
de Compasso (SWAROWSKY24, SCARABINO25) fornecem as bases para a
compreensão dos aspectos formais, harmônicos e fraseológicos.

A análise tópica, por outro lado, tem seu foco nos aspectos semânticos do discurso
musical e se desenvolve através da investigação das tópicas, gestos e tropos
encontrados no repertório escolhido. O “gesto”, conceito amplamente elaborado por
Hatten, é estudado através de diversas categorias. Uma delas nos importa
principalmente: a categoria chamada gesto prototípico, expresso por meio de curtos
motivos e assim chamado porque responde ao nível perceptivo imediato. Um exemplo
significativo de gesto musical prototípico é a “sucessão de duas notas descendentes
em grau conjunto conectadas por uma ligadura, gesto típico do estilo galante
(HATTEN, 2004, p.140).”
Este gesto é citado por Piedade (2007)26 como um dos componentes da tópica “era do
ouro”, presente nas terminações de frase de modinhas e serestas27. No seguinte
exemplo, o “Andante” de Souza Carvalho, podemos observar este gesto e sua
expressão. A tópica se caracteriza inicialmente como um minueto em 3/8 sobre um
basso alberti, sobre o qual a melodia expressa o gesto citado pelos autores (o grau
conjunto descendente), caracterizado como “gesto feminino”, duplicado e repetido na
frase seguinte:

Souza Carvalho. Toccata em Sol Menor. 2º mov. Andante con gran espressione.

23
COOK, Nicholas. A Guide to Musical Analysis. Oxford. Oxford University Press, 1994.
24
SWAROWSKY, Hans. Dirección de Orquesta. Defensa de la obra. Madrid. Real Musical
Madrid, 1989.
25
SCARABINO, Guillermo. El Agrupamiento de Compasses. Contribuición al estúdio de sus
fundamentos y aplicaciones. Artigo, in: Revista del Instituto de Investigación Musicológica
Carlos Vega. N.12. Buenos Aires. Facultad de Artes Y Ciências Musicales, 1992.
26
(op.cit.).
27
“[...] (escala cromática descendente atingindo a terça do acorde em tempo forte) que estão
fortemente presentes no mundo do choro e em vários outros repertórios de música brasileira
[...]” p.5 (op.cit)
O “gesto feminino”, também chamado de cadência feminina28 se associa ao repouso
harmônico nas cadências, intensificando sua expressão através da resolução da
dissonância.

Gestos e tópicas podem combinar-se e formar o que é chamado de “tropo”,


produzindo “[...] um significado expressivo singular a partir de sua colisão ou fusão”.29
(HATTEN, 2004, p.68).

Para exemplificar os tropos, vejamos a Sonata em Dó menor30 do compositor


português Carlos Seixas (1704-1742). Nesta sonata, domina a tópica “bolero”, em
andamento moderado (3/8) e com muitas diminuições. Nesta passagem, um tropo é
criado com a conexão entre as tópicas “cadência frígia” e “rasgueado”:

Carlos Seixas. Sonata em Dó menor. c.48-51.

Na 2ª parte da mesma sonata, as tópicas “passus duriusculus”31 e “rasgueado” se


combinam em um longo tropo:

Carlos Seixas. Sonata em Dó menor. c.69-74.

28
Cadência feminina: “Tipo de cadência em que a resolução no acorde final de tônica se dá no
tempo fraco de um compasso, bastante comum no clacissismo.” DOURADO, Henrique Autran.
Dicionário de Termos e Expressões da Música. São Paulo. Editora 34, 2004. p.62.
29
No original: “[...] a unique expressive meaning from their collision or fusion.”
30
KASTNER, Macario Santiago (edit.). Cravistas Portuguezes, vol. 2, Mainz. Schott, 1978.
(pp.42 a 47).
31
Passus duriusculus (passos dolorosos): alteração cromática ascendente ou descendente da
linha melódica. In: BARTEL, Dietrich. Musica Poetica, Musical-Rhetorical Figures in German
Baroque Music. Lincoln and London. University of Nebraska Press, 1997. (p.442)
A análise tópica produzirá uma lista de gestos e tópicas ibéricas que deverão ser
utilizadas para a análise comparativa e para a análise dos tropos. A tópica “passus
duriusculus”, por exemplo, muito comum no repertório barroco e clássico europeu é
encontrada com muita frequência no repertório ibérico e existem muitos tropos criados
ao redor dessa tópica. Outra tópica, o “toque abandolao”32 pode ser considerada
nativa da Península Ibérica e surge eventualmente como citação em outros estilos.

A pré-listagem de tópicas apresentada a seguir é uma amostra do universo de tópicas


no repertório ibérico para tecla do século XVIII:

Tópicas melódicas

baixos saltitantes, estilo pasodoble, gesto feminino (sensível descendente –


IV/III), gesto masculino (sensível ascendente – VII/I), intervalos aumentados,
gesto escapada (apogiatura descendente de 6ª, 7ª, 8ª), motivo campana (duas
notas rápidas e uma nota longa oitava - derivado da guitarra), oitavas
melódicas, passus duriusculus;

Tópicas harmônicas

cadência frígia (andaluza ou flamenca)33, cachos (dissonâncias agregadas),


alternância maior/menor;

Tópicas rítmicas

estilo castanhola, hemiolia, motivo campana, toque abandolao;

Tópicas texturais

fanfarra, gracejos (troca de mãos, apogiaturas e trilos em profusão), harpejos


(estilo de harpa), rasgueado (estilo de guitarra), terças paralelas;

Tópicas de fraseado

cadências repetidas, frases de chacona (cadência frígia), quadraturas


irregulares;

32
Toque abandolao: célula rítmica característica do bolero e outras danças ibéricas:

In: MORALES,Luisa. Domenico Scarlatti in Spain. Almeria. Ediciones Leal, 2009. (pp. 313 a
325).
33
Cadência frígia – também chamada de ‘cadenza andaluza’ ou ‘cadência flamenca’. É
baseada no modo frígio (tetracorde frígio lá-sol-fá-mi, iv III II i). Sua particularidade é a terça
elevada (terça maior) sobre o primeiro grau, formando o primeiro grau da escala de um acorde
perfeito maior: iv III II I. O modo Flamenco é caracterizado pelo acorde perfeito maior
encontrado sobre o primeiro grau da escala do modo frígio”. (ZANIN, 2008, p.5).
Tópicas “tipos de danças”

bolero, canário, folia, fandango, sevilhana, sarabanda;

Tópica Bizzaria34

bizarrias melódicas, harmônicas, rímicas, formais.

Projeções na Ibero-América

A Teoria da Tópicas aponta vestígios de tópicas européias e ibéricas em diversos


repertórios sulamericanos, como por exemplo, a modinha e o lundu no Brasil, e estilos
populares como a Guarânia e Chamamé, na Bolívia e Uruguai. Também no folclore
brasileiro encontramos traços que apontam a permanência de algumas tópicas
européias e ibéricas.

O seguinte exemplo, “A Cabocolinha” (RN), apresenta um padrão de giga ou canário


e linha melódica com terças em cascata:

Paz, Ermelinda Azevedo. 500 Canções Brasileiras, 1989. A Cabocolinha, n.80, p.52

Na mesma região surge uma variante desta dança, “Burrinha” ou “Zabelinha” (RN), em
padrão de contradança e com as terças em cascata associadas a notas repetidas:

34
Bizarria. S.f.: que tem caráter, condição, comportamento ou aspecto excêntrico, esquisito;
excentricidade, esquisitice. Aspecto ou modo elegante ou belo; belo, ataviamento. Gentileza de
comportamento; fidalguia. in: http://www.dicionarioinformal.com.br/bizarria/
Paz, Ermelinda Azevedo. 500 Canções Brasileiras, 1989. Burrinha ou Zabelinha, n.89, p.54

A comparação com a Sonata n.14 do compositor espanhol Sebastián Albero35 (1722-


1756) mostra as terças em cascata em um padrão de giga/canário com contorno
melódico bastante semelhante (exceto pela anacruse):

Sebastián Albero. Sonata n.14. c. 1-33.

No exemplo anterior, do c.18 em diante, a melodia se combina em um tropo quando o


padrão da dança produz uma sequência entremeada com o passus duriusculus.

As terças em cascata aparecem também em Domenico Scarlatti36 (1685-1757),


suscitando questões sobre a origem ibérica ou italiana desse gesto:

35
DÍAZ, Raúl Angulo (edit.). Sebastián Albero: Sonatas para clavicordio. Santo Domingo de la
Calzada, España. Ars Hispana, 2010. (p. 67)
Domenico Scarlatti, Sonata em Lá Maior, K.405. c. 4-7.

Uma modinha em estilo de valsa do folclore de São Paulo apresenta a tópica “passus
duriusculus” em sua penúltima frase. Aqui esta tópica é utilizada com esmero poético
ao ser associada à palavra “vaidosa”.

Paz, Ermelinda Azevedo. 500 Canções Brasileiras, 1989. Nas horas mortas da noite. Modinha.
p.124.

É notável o processo pelo qual traços estilísticos europeus e principalmente ibéricos


penetraram profundamente na musicalidade brasileira, amalgamando-se com outros
traços de origem indígena e/ou africana. O compositor brasileiro Elomar Figueira de
Mello, em seu cancioneiro e em suas óperas, é um exemplo marcante do intenso
diálogo entre traços considerados nacionais e traços ibéricos. Entretanto, para nossa
estranheza, tudo indica que existe uma rejeição do repertório ibérico nos meios
musicais brasileiros. Seixas, Soler, Lidon, Carvalho, Baptista e muitos outros... são
compositores que, salvo exceção, não constam em nenhum programa de piano ou

36
KIRKPATRICK, Ralph (edit.). Domenico Scarlatti / complete keyboard works. New York and
London. Johnson Reprint Corporation, 1972. 18 vols.
órgão em conservatórios ou universidades brasileiras. Talvez nos cursos de cravo
sejam encontrados eventualmente.

Tocar e ouvir o repertório ibérico barroco e clássico nos permite perceber o movimento
da história de nossa música e será de grande valor o incremento dos estudos e da
divulgação sobre a música para tecla ibérica, cujo repertório imenso, maravilhoso e
expressivo, como dissemos, é pouco tocado no Brasil. Frequentemente surgem novas
edições e muitos manuscritos tem sido descobertos. A música ibérica nos revela elos
de uma corrente de influências bastante extensa, que inclui a força dos estilos centro-
europeus e da ópera italiana, a herança árabe que marcou a península ibérica e as
transformações sofridas com a expansão da cultura ibérica nas colônias americanas
com a mescla entre culturas indígenas e africanas.

Bibliografia de referência

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