Vous êtes sur la page 1sur 16

Literatura e feminismo: representações da liberdade das mulheres em

Alina Paim
Resumo: Através dos romances de Alina Paim (1919-2011), nossa finalidade é nos aproximarmos
dos discursos feministas elaborados por uma mulher que viveu parte de sua trajetória política e
intelectual como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual se filiou em 1945.
Natural de Estância, interior de Sergipe, Alina Andrade Leite – que após o casamento adotou o
Leite Paim – publicou dez romances, além de atuar como militante partidária. Arte e política se
entrecruzam em sua vida. Os seus espaços de experiência – família, maternidade, escola, religião
e militância política – se tornaram cenários para as suas invenções. Característica que já aparece
eu seu primeiro romance, Estrada da Liberdade, publicado em 1944. A trama do seu segundo
romance, Simão Dias (1949), também acontece em um espaço bastante conhecido pela autora, a
cidade de Simão Dias, onde Alina viveu grande parte de sua infância. A Sombra do Patriarca
(1950), escrito antes de Simão Dias, mas publicado um ano depois, também revela um ambiente
familiar para a autora. Alina, assim como a personagem principal, era sobrinha de um latifundiário
sergipano. A mesma regra é seguida em Sol do Meio Dia, que narra as experiências de uma jovem
comunista nordestina que, morando em uma pensão no Rio de Janeiro, vive os dilemas daquela
realidade, além de se ver às voltas com o Partido Comunista quando defendia a liberdade das
mulheres. Os romances que compõem a trilogia de Catarina seguem o roteiro, ao falar, entre
outras coisas, do drama de uma mulher que após o casamento esperou nove anos para realizar o
sonho da maternidade – o mesmo tempo esperado pela romancista. Em resumo, a maioria de seus
romances teve como protagonistas mulheres que questionavam as normas sociais estabelecidas.
Dois deles circularam internacionalmente – A Hora próxima, publicado na Rússia em 1957 e na
China em 1959, e Sol do Meio Dia, lançado na Bulgária em 1963 e na Alemanha em 1968. A
autora foi duas vezes premiada. Em 1961 recebeu o prêmio Manoel Antônio de Almeida da
Associação Brasileira do Livro, pelo romance Sol do Meio Dia; e em 1965 a trilogia de Catarina,
composta pelos livros: O sino e a Rosa, A chave do mundo e O Círculo, foi agraciada com o
Especial Walmap. Em suma, nosso objetivo é analisar as demandas feministas que aparecem em
sua obra, evidenciando como a autora idealizou a liberdade das mulheres e, em que medida, suas
interpretações se relacionam tanto com as elaborações dos movimentos feministas do período,
quanto com leituras elaboradas pelo PCB.

Vinte e oito de fevereiro de 2011, uma casa localizada à Rua Espírito Santo, no
bairro de Vila Célia, na cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul testemunhou, por
volta das 10h:13min, a última respiração de Alina Paim. Vítima de uma insuficiência
cardíaca e arterial crônica, aos 91 anos, ela se despedia de uma vida marcada por agitações
políticas e vasta produção literária. Hoje, seus restos mortais jazem no Jardim das
Palmeiras, na cidade de Campo Grande.1
Silenciosamente, sem nenhuma nota de pesar nos jornais de grande circulação
nacional, tampouco nos programas de televisão de grande audiência, o Brasil perdia uma
importante escritora da literatura nacional – quiçá internacional. Nascida em 10 de
outubro de 1919, na cidade de Estância, interior de Sergipe, Alina publicou seu primeiro

1
Certidão de Óbito de Alina Leite Paim, nº 062000155 2011 4 00108 22 0032362 27. Documento
consultado no acervo particular do pesquisador Gilfrancisco.
romance, Estrada da Liberdade, em 1944; ao longo do século XX publicaria mais sete2,
sem falar nos cinco livros infantis3 e nas fabulações criadas, entre 1945 e 1956, para o
programa infantil no Reino da Alegria, da Rádio do Ministério da Educação e Cultura,
dirigido por Geni Marcontes (1916-2011).
Foi-se o a matéria, ficou o espírito, imortalizado em sua obra. Hoje ela anda meio
esquecida, é verdade. Seus livros circulam apenas em restritos campos acadêmicos,
mesmo assim sem provocar grandes interesses. Os exemplares que sobreviveram às traças
e ao tempo são vendidos em sebos a preços altíssimos, pois são raros. Diferente dos seus
contemporâneos e amigos, como Jorge Amado e Graciliano Ramos, seus romances não
foram editados e reeditados, atingindo grande público.4 Mas na época em que circularam,
ao que parece, não caíram no ostracismo. Os críticos se imiscuíram em registrar suas
impressões na imprensa.5 E hoje fica a interrogação: por que o esquecimento (ou
silêncio)? Por que não há nenhum sinal de comemoração do seu centenário que, se viva,
aconteceria neste ano de 2019?
Mas não é dessa questão que falaremos agora. Aqui nosso interesse é outro. No
momento, queremos fazer jus a memória de Alina Paim falando de um tema muito
presente em suas narrativas e em sua trajetória política: o feminismo. Falaremos sobre o
tom feminista de sua literatura, mais especificamente dos seus três primeiros romances:
Estrada da Liberdade (1944), Simão Dias (1949) e A Sombra do Patriarca (1950).6
As três narrativas têm personagens que gritam em alto e bom som que as mulheres
precisam de um mundo em que não sejam oprimidas apenas por serem mulheres.
Personagens que defendem com paixão uma sociedade em que homens e mulheres
tenham os mesmos direitos (Marina, Estrada da Liberdade; Luísa e Maria do Carmo,
Simão Dias e Raquel, A Sombra do Patriarca); personagens que contrariam o ideal de
femilidade corrente e mostram que também sentem prazer sexual, inclusive se
masturbando, e que isso não é pecado (Luísa, Simão Dias); personagens que se atrevem
à aventuras extraconjugais e não se penitenciam por isso (Luísa, Simão Dias);
personagens empáticas com as mulheres que, levadas pelas circunstâncias, precisaram
pôr fim a uma gravidez não planejada, colocando a própria vida em risco (Marina de
Estrada da Liberdade foi extremamente solidária com a madrinha Edite que foi induzida

2
3
4
Nota comprovando a relação que ela manteve com esses intelectuais
5
Inserir algumas matérias que comprovam a informação
6
ao abordo pelo marido que não aceitava outro filho); personagens que não se acomodam
ao lugar imposto às mulheres e decidem ir à luta por um mundo sem desigualdades de
classe e sem hierarquias de gênero (Marina, Estrada da Liberdade; Luísa, Simão Dias,
Raquel e Leonor, A Sombra do Patriarca). Personagens que, aos nossos olhos, transpiram
feminismo em todos os poros e que foram ao encontro do comunismo como alternativa
possível para construção de uma sociedade igualitária em termos de classe, gênero e raça.
*
No entanto, até onde se sabe, Alina Paim, criadora de tantas mulheres rebeldes,
nunca se assumiu feminista. Em 1979, quando perguntada se era feminista, respondeu: “–
Claro que sou favorável à afirmação da mulher, mas não em contraposição ao homem. O
problema da mulher não é isolado, como nenhum outro”7. Embora não tenha negado, ela
também não afirmou. Preferiu dizer que defendia a “afirmação da mulher” e que não era
a favor da guerra de sexos, característica frequentemente atribuída ao feminismo, como
forma de desqualificá-lo.
Ao que parece, Alina Paim tinha certo receio em ser enquadrada em “um
movimento de mulheres contra homens”8. Sua formação política aconteceu em uma época
em que o feminismo não era entendido como qualquer movimento em defesa da
autonomia e liberdade das mulheres e do fim das hierarquias de gênero. Na década de
1940, quando publicou os seus três primeiros romances, o feminismo, no geral, designava
as mulheres de tendências liberais de classe média. Ou seja, mulheres que na maior parte
das vezes não aprofundaram na discussão acerca das estruturas sociais de dominação
masculina.9
À época, as mulheres da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino10 se
assumiam feministas e o termo frequentemente era associado ao grupo. A federação era
formada majoritariamente por mulheres das camadas altas e médias da sociedade e ao
longo de sua trajetória defendeu principalmente os seus próprios interesses, por vezes,
desconsiderando as especificidades das mulheres pobres e negras. Mesmo assim, tiveram
de lidar com todos os rótulos negativos, provavelmente formulados por uma sociedade
que se assustava com qualquer movimento que apresentasse qualquer risco, mínimo que

7
BONFIM, Beatriz. Com Alina Paim voltam ao romance os temas do subúrbio carioca: A Correnteza.
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 jun., 1979, p. 1 (Livro: Guia semanal de ideias e publicações).
8
Usar a fala de Marighuella e contextualizá-la
9
RAGO, Margareth. Entre a História e a liberdade: Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo. São
Paulo: UNESP, 2001. p. 219.
10
Fundada em 1922...
fosse, à organização familiar das classes abastadas, que ideologicamente relegava às
mulheres à esfera privada e ao lugar de subordinação aos homens (pais, irmãos ou
maridos).
Como observou Cláudia Vieira, ao se assumirem feministas e reivindicarem
espaços na política formal e direito de exercer profissões atribuídas apenas aos homens,
elas enfrentaram dificuldades, por não terem sido educadas para tamanhos desafios.
Portanto, tiveram de forjar estratégias para enfrentar uma exposição pública e um tipo de
crítica, censura e reprovação pelos lugares que decidiram ocupar que se distanciavam
daqueles pensados para as mulheres das camadas sociais em que estavam inseridas11.
Tiverem de enfrentar os rótulos pejorativos direcionados às feministas que
impregnaram o imaginário social. Elas eras constantemente representadas como mulheres
mal amadas, masculinizadas, violentas, feias, “histéricas”, entre outros adjetivos.12 No
século XX essas imagens foram invocadas inclusive por homens progressistas e grupos
de mulheres que defendiam a “emancipação feminina”13. Ao analisar as páginas do jornal
O Pasquim, Rachel Soihet descobriu que, apesar do compromisso do periódico com o
combate ao autoritarismo da Ditadura Militar brasileira, manteve uma postura misógina,
“voltando sua mordacidade igualmente para as mulheres que se decidiram pela luta com
vistas a atingir direitos e/ou que no seu cotidiano assumiam atitudes consideradas
inadequadas à feminilidade e às relações entre os gêneros”.14 No que diz respeito às
mulheres, encontramos discursos que ora se referiam às feministas como mulheres
insatisfeitas por terem nascido mulher15; ora como mulheres violentas e espalhafatosas,
protagonistas de um movimento inócuo16.
Alina Paim construiu sua trajetória nesse universo. Além disso, foi militante do
Partido Comunista do Brasil – que em 1961 tornou-se Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Até 1975 o partido defendia que o feminismo era um movimento pequeno-
burguês (de classe média), povoado por mulheres que olhavam apenas para o próprio
umbigo. Para o partido, a defesa da liberdade das mulheres isolada da luta de classes era
divisionista e atrasaria a revolução social.17 Ademais, até, pelo menos, a década de 1960
existia uma espécie de cultura comunista que, na definição de Pandolfi significa “uma

11
Ibid. p. 167.
12
13
14
Feminismos e antifeminismos...p. 169
15
FIGUEIREDO, Nice. Os direitos da mulher. Momento Feminino, Rio de Janeiro, 03 set., 1948, p. 4.
16
BASTOS, Lygia Maria Lessa. A mulher venceu... Momento Feminino, Rio de Janeiro, 23 jul., 1948, p. 3.
17
Nota explicativa informando que fiz essa análise no artigo de tempos históricos
determinada visão de mundo, compartilhada por todos aqueles vinculados a uma tradição
que se consolidou com a vitória da Revolução Russa de 1917 e se identificou com o
modelo de sociedade que foi implantado na URSS”18. O sentimento de pertencer a um
partido comunista era tão forte que todos os demais pertencimentos se tornavam
secundários. Desse modo, embora algumas militantes do PCB tenham se dedicado à luta
pela emancipação das mulheres, elas tiveram dificuldades em assumir outra identidade,
que não a comunista.
Mas a partir da década de 1970 um número crescente de mulheres se assumiram
feministas, especialmente após o ano 1975 consagrado pela Organização das Nações
Unidas como Ano Internacional da Mulher. No contexto, o próprio PCB, que na época
Alina já se encontrava afastada, legitimou o feminismo.19 Mesmo assim, ao que parece,
todas essas variáveis podem ter contribuído para que as imagens negativas sobre o
movimento ainda povoasse a subjetividade de Alina, o que explica sua cautela em manter-
se “neutra” diante do adjetivo, ainda que não deixasse de enfatizar suas expectativas sobre
a emancipação das mulheres. Embora não tenha se identificado com o feminismo, é
inegável que sua obra tem um tom feminista, especialmente as três primeiras.
Deixamos claro, em respeito ao tempo autora e das suas concepções, que ao pensar
a obra de Alina Paim como feminista o fazemos a partir dos sentidos que a palavra têm
no presente. Portanto, o ato de definir sua obra como feminista é nossa e não dela. O
fazemos a fim de tornar a comunicação legível, bem como enfatizar que a história do
conceito está imbricada a história social, tal qual proposto por Reinhart Koselleck.
Segundo o autor, a forma como os grupos se apropriam das palavras diz muito, tanto sobre
a história do conceito, quanto sobre a história social. Neste sentido, as variações
conceituais podem refletir os conflitos sociais e políticos dos diferentes contextos.
Portanto, as palavras podem até permanecer as mesmas, mas não indicam
necessariamente a permanência do mesmo conteúdo ou significado por ela designado.20
Como ensina Sérgio Buarque de Holanda, enjaular as palavras em significados
estáticos e categorias rígidas e abstratas, empobrece as análises historiográficas.
Obviamente, precisamos nos preocupar com a terminologia, traçando sua precisão através
da historicização da palavra ou do conceito, observando como adquirem sentidos distintos
em diferentes épocas.

18
p. 35
19
20
P. 105-106
É talvez lastimável, mas é inevitável, a contingência em que nos vemos
de ter de lidar sempre com vocábulos de sentido equívoco, ou sujeito a
variações, mormente quando destacados do seu contexto originário.
Digo inevitável, porque até agora não se descobriu o modo de evitar, e
não só na História, a presença sempre incômoda dessas multivocidades
[...]. A linguagem é radicalmente impotente para defender-se dos
fatores que deslocam, a todo momento, no espaço e no tempo, as
relações de significado e do significante, em consequência da
arbitrariedade do signo.21

No Brasil, a noção de feminismo não ficou imune de deslocamentos. Se no início


do século XX era lido como um movimento de mulheres liberais e de classe média, hoje
entendemos por movimentos feministas todos aqueles que reconhecem que as mulheres
são oprimidas e que as relações entre homens e mulheres não são inscritas na natureza e,
portanto, se transformam. A partir desse reconhecimento, explicam a subordinação das
mulheres localizando seus sentidos históricos, sociais e culturais.22 Desse modo, não se
restringem aos movimentos organizados que se autodenominam feministas. Se referem
também às práticas sociais, culturais, políticas e linguísticas que atuam com o objetivo de
liberar as mulheres de uma cultura misógina e da imposição de um modo de ser construído
pela lógica masculina nos marcos da heterossexualidade.23
Aqui não entraremos no mérito dos conflitos que permearam o conceito de
feminismo ao longo da história, mais especificamente dos seus deslocamentos no Brasil.
A ressalva foi feita para evidenciar que à palavra foram atribuídos diversos sentidos que
variavam no tempo. Só assim compreendemos porque, no século XX, muitas mulheres
não se identificavam como feministas mesmo mergulhadas até o último fio de cabelo na
luta pela emancipação/libertação24 das mulheres, entre elas, Alina Paim. Outro fator que
certamente comprometeu a formação de um consenso e uma incorporação maior de
mulheres aos grupos que se assumiam feministas, foi o elitismo e o racismo presente em
muitos deles.25

21
HOLANDA, Sérgio Buarque. Sobre uma doença infantil da historiografia. In: Costa, Marcos (Org).
Escritos Coligidos - Livro II, 1950-1979. São Paulo: Editora Unespe; Editora Fundação Perseu Abramo,
2011. p. 422-423.

22
PEDRO, Joana Maria; Wolff, Cristina Scheibe. As dores e as delícias de lembrar a ditadura no Brasil:
uma questão de gênero,..... nota de rodapé n.7, p. 400; PEDRO, Joana. Traduzindo o debate: o uso da
categoria gênero na pesquisa histórica, p. 79....; RAGO,,,
23
P. 219
24
Nota sobre os termos emancipação/libertação. Pegar na tese
25
Citar a fala de Edith Mendes e o trecho da ata de educação doméstica para mulheres pobres
Mas, voltando a Alina Paim, hoje, a leitura que fazemos dos seus romances nos
remete a caracterizá-los como feministas, mas quando os pensamos dentro do tempo em
que foram escritos, em que os sentidos da palavra eram outros, o adjetivo perde sentido.
Mas nossa escrita/análise está sendo feita hoje, e é a partir dos sentidos atualmente
compartilhados que analisaremos seus romances. Entendemos que a escrita de Alina Paim
não deve ser apartada da história do feminismo no Brasil. Sua obra literária traz elementos
que nos remete a analisar sua contribuição para o pensamento/movimento feminista do
país.

1. Ficção feminista: um olhar sobre Estrada da Liberdade, A Sombra do


Patriarca e Simão Dias.

Publicado em 1944 pela editora Leitura, localizada no Rio de Janeiro e dirigida


por José Barbosa de Mello, membro do PCB, Estrada da Liberdade narra a trajetória de
Marina, uma mulher com formação religiosa que se tornou professora primária. Ao sair
do convento, onde estudou como aluna interna, a protagonista tomou um choque de
realidade ao se deparar com um universo marcado por profundas desigualdades sociais e
de gênero. O título do romance é bastante sugestivo e, possivelmente, faz referência às
duas estradas percorridas por Marina. Uma objetiva, o bairro pobre da Estrada da
Liberdade. Na zona pobre de Salvador a jovem professora conheceu uma realidade
marcada por desigualdades sociais. A outra, mais subjetiva, se refere aos caminhos
trilhados pela personagem principal. Este caminhar, cheio de obstáculos e contratempos,
contribuiu para que Marina se tornasse uma pessoa consciente da necessidade de
mudanças profundas na organização social e nas relações entre homens e mulheres.
O seu segundo romance, considerando a ordem da escrita, foi A Sombra do
Patriarca, publicado pela editora Globo em 1950.26 A narrativa se concentra nas
experiências de Raquel na fazenda do seu tio Ramiro, latifundiário, dono de uma usina
de Açúcar. Narrado por Rachel, nos apresenta uma realidade profundamente desigual do
interior do Nordeste, onde uns poucos usufruem de riqueza, conforto e poder, enquanto
uma maioria trabalha e vive de forma miserável para manter os privilégios dos poderosos.
Ela se opõe de forma contundente ao modelo de sociedade ao qual está inserida e
apresenta o universo que idealizava. Para ela, um mundo ideal não teria miséria e opressão

26
Citar a referência que prova essa ordem: as assinaturas ao final da narrativa e texto (procurar)
dos pobres pelos ricos, as mulheres teriam autonomia para fazer suas escolhas pessoais e
profissionais e as pessoas não seriam inferiorizadas pela sua cor. Os personagens são
divididos em dois grupos impermeáveis: os maus, ligados ao patriarca, representando a
classe dominante; e os bons, ligados ao ideário comunista, com predisposição para se
unirem na luta por um mundo cujos trabalhadores, as mulheres, as crianças, os jovens e
os negros pudessem desfrutar de liberdade e felicidade.
Seu terceiro romance, Simão Dias, foi publicado em 1949 pela Livraria-Editora
Casa do Estudante. Escrito no Rio de Janeiro, de agosto a dezembro de 1946,27 o enredo
se desenvolve na pequena cidade de Simão Dias, interior de Sergipe. Diferente dos outros
dois, o romance não tem apenas uma protagonista, mas duas: Luísa e Maria do Carmo, a
primeira expõe as angústias da vida adulta de uma mulher; a segunda os medos e
expectativas de uma adolescente. As duas fundem-se na insatisfação em relação as
limitações sociais impostas as mulheres. Na obra, como observou Ilka Maria de Oliveira,
o coletivo se sobrepõe ao individual.28 O romance conta várias históricas de mulheres,
apresentadas sob diferentes pontos de vista, tanto daquelas que observam quanto daquelas
que vivem a experiência. Outras mulheres povoam o livro, cujo espaço – a pequena cidade
de Simão Dias – parece reduzir suas potencialidades. Todas elas são atravessadas por
angústias decorrentes, especialmente, da submissão ao elemento masculino, seja no
casamento, na solteirice ou na educação recebida e incorporada como dogma. “A temática
da condição feminina, que se esboçara em Estrada da Liberdade [e A Sombra do
Patriarca] [foi] perseguida pela autora com mais vigor e em estilo mais amadurecido com
toques de intimismo”29.

As suas personagens são criaturas que fizeram [a autora] padecer na infância


ou lhe deram alguns momentos de alegria em cidadezinhas do interior.
Nenhum excesso de imaginação. Em geral os homens são vistos à distância,
não se fixam. A escritora julga talvez não conhecê-los bem e receia apresentá-
los deformados; limita-se quase sempre a fazer referência a eles ou, quando é
indispensável, a metê-los na ação em diálogos curtos, em rápidas passagens.
[...] O que surge com intensidade é a existência das mulheres – complicações,
desarranjos, pequeninos problemas. Há umas admiráveis tias velhas, rendeiras,
beatas, calejadas nos mexericos. E há também a criança atormentada, a melhor
criação de Alina. Vê-se bem que a romancista cochilou nas orações compridas,
trocou bilros na almofada e aguentou muito puxão de orelha. Essas desventuras
lhe fornecem hoje excelente matéria.30

27
A informação aparece no próprio romance. Ao final da narrative, a autora costumava sinalizar o
período de escrita do romance. PAIM, Alina. Simão Dias. 2ª ed. Rio de Janeiro/Brasília: Cátedra/INL,
1979. p. 184
28
29
OLIVEIRA, Ilka Maria de. Op. Cit. p. 19.
30
RAMOS, Graciliano. Apresentação. In: PAIM, Alina. Simão Dias. Op. Cit.
Assim como Simão Dias, os outros dois romances também possuem personagens
inspiradas em pessoas com as quais Alina Paim conviveu e fatos que se embaralham com
a vida da autora. Portanto, consideramos que os três livros são autobiografias
romanceadas. Como sugeriu Eliana Batista, neste tipo de escrita há projeções de
experiências pessoais em personagens de romance.31 Característica que marca a obra de
Alina Paim, especialmente em seus três primeiros romances. Neles, a vida das
personagens se embaralham com as experiências vividas por Alina Paim. Marina,
protagonista de Estrada da Liberdade, tal qual Alina Paim, ficou órfã de mãe na infância,
foi aluna interna em colégio de freiras em Salvador e passou em um concurso do Estado
da Bahia com a nota 9,33, nota que lhe garantiu boa colocação e lotação em uma escola
da capital, localizada em bairro periférico.32 Raquel, de A sombra do Patriarca, assim
como Alina, possuía um tio – irmão do seu pai – latifundiário, dono de uma usina de
açúcar no interior de Sergipe, onde ela passava férias. Maria do Carmo e Luísa, de Simão
Dias, também possuem trajetórias que parecem se confundir com a vida da autora,
especialmente Maria do Carmo que, semelhante a Alina, passou os primeiros anos da
infância, após a morte da mãe, morando com os avós maternos e mais três dias
“solteironas”33.
O tom autobiográfico que os enredos assumem, certamente se relaciona ao desejo
da autora de expressar sua perspectiva feminista em forma de ficção. Em outros canais de
comunicação, talvez ela se sentisse menos à vontade. Mas apesar das semelhanças, a vida
das personagens e das autoras nunca se confundem. As personagens, provavelmente,
representam desejos e aspirações da autora, que é livre para inventar e dar contornos a
elas, sem necessariamente ser fiel à verdade do mundo das experiências vividas. Como
evidencia Antônio Cândido, as substâncias que compõem uma personagem não se
relacionam diretamente com o mundo empírico, pois toda personagem de romance é um
ser fictício. O mundo fictício ou mimético, frequentemente, reflete momentos
selecionados e transfigurados da realidade empírica, exterior à obra.34 O romance possui

31
BATISTA, Eliana Evangelista. A normalista como interseção: Escola, Literatura, Imprensa e estratégias
políticas no Estado Novo (Alagoinhas/1937-1945). Dissertação (Mestrado em História). Departamento
de Ciências Humanas, UNEB, Santo Antônio de Jesus...
32
Marina ensinou num colégio na Estrada da Liberdade, tal qual Alina Paim, que foi professora do
Almirante Barroso, localizando no mesmo bairro. A nota do concurso de Marina aparece na página x do
romance, a de Alina foi publicada no Diário Oficial.
33
Explicar a expressão solteirona
34
CÂNDIDO, Antônio; et. al. A personagem de ficção. 5ª ed. São Paulo: perspectiva, 1976. p. 15.
uma linguagem cujo elemento vital é justamente o poder de fabular e enredar o leitor em
sua trama. Quanto mais poder de persuasão tiver, mais verdadeira a narrativa romanesca.
A obra-de-arte literária é o lugar onde nos defrontamos com personagens de
contornos bem definidos e definitivos na plena concreção do ser humano individual. No
romance, as personagens vivem momentos supremos, perfeitos à sua maneira. Por outro
lado, na vida empírica, no seu fluir cinzento e cotidiano, as pessoas “de carne e osso” não
se apresentam de modo tão nítido e coerente, nem de forma tão transparente e seletiva.35
Deste modo, o que nos interessa na obra de Alina Paim não é a transposição da realidade
que ela possivelmente faz em suas narrativas, mas a forma como ela percebeu, selecionou
e organizou determinados elementos da realidade, bem como o seu horizonte de
expectativas.
Ao dar um tom autobiográfico em suas narrativas, entendemos que Alina Paim
exerceu a chamada “escrita de si”, uma prática de liberdade em que, em algum grau,
rompe-se com as práticas disciplinares. Na “escrita de si” há um trabalho de construção
subjetiva na experiência da escrita. Neste processo, abre-se a possibilidade do devir, de
ser outro. (RAGO, 2013). O romance torna-se uma forma privilegiada para este exercício,
já que é um tipo de escrita onde a autora, através das suas personagens, pôde experimentar
a liberdade de ser outra.
Portanto, ao mergulhamos na escrita literária de Alina Paim o fazemos com a
consciência de que ela comunica verdades fugazes que escapam das descrições científicas
da realidade. A obra de ficção triunfa por si mesma, não por seu testemunho sobre o
mundo real. A comparação entre ambas as realidades é dispensável na avaliação sobre o
valor artístico de um romance. “É seu intrínseco poder de persuasão, não seu interesse
documental, que determina o valor artístico de uma obra de ficção (LLOSA, 2004, p. 64).
Mas a literatura não é apenas um produto artístico, é também uma forma de
interpretação da realidade, um meio de construção de saberes. Por isso, torna-se uma
importante fonte de investigação histórica. Embora não represente um atestado que
reproduz as experiências vividas, e nenhuma fonte é capaz de fazê-lo, a Literatura nos
aproxima das agruras e desejos de uma época, dando brechas para pensarmos como os
indivíduos transitaram entre o vivido e o imaginado, entre o que eram e o que desejavam
ser. O romance não nos apresenta necessariamente fatos, mas o espírito de uma época.

35
Ibid. p. 45-46.
Neste sentido, as protagonistas feministas de Alina Paim materializam o mundo
que ela desejava para as mulheres. Na década de 1940, através da ficção, Alina Paim
desmontava castelos, denunciando que o casamento tradicional, tão romantizado pelas
camadas médias, relegava às mulheres lugares de subalternidade. Nas três narrativas, a
família tradicional de classe média ofuscava o brilho das mulheres na medida em que
roubava sua autonomia.
Marcados pela polissemia que caracteriza a literatura, os romances de Alina Paim
trazem diversos elementos para pensarmos a sociedade brasileira da década de 1940,
tempo da escrita. Neles encontramos representações das desigualdades sociais que
permeavam a sociedade brasileira na década de 1940, o debate sobre educação escolar e
precariedade das escolas públicas, referências ao mundo rural e urbano, denúncia do
racismo, além dos temas centrais que permeavam a política do PCB. Portanto, mais do
que nos ajudar a pensar o debate feminista na década de 1940, Alina Paim nos ajuda a
pensar a sociedade brasileira no tempo de suas narrativas.
Mas, como dissemos linhas acima, aqui nos concentraremos em suas perspectivas
feministas. Nos três romances a instituição familiar, o casamento, a educação e a religião
são apresentados como elementos que condicionam às mulheres lugares de
subalternidade. Estas instituições incrustavam nas mentalidades a ideia da inferioridade
feminina. As mulheres eram educadas para a subserviência. Por isso, aceitavam
resignadas as humilhações vividas cotidianamente e suportavam uma vida monótona, sem
fazer nada para alterar a lógica da “dominação masculina”.
Marina, ao observar o cotidiano da casa da madrinha, d. Edite, observou que, ao
casar, uma mulher de classe média via-se diante de uma vida monótona, de trabalhos
repetitivos e pouco reconhecidos. Durante seus doze anos de casada, todos os dias ela
esperava, na janela, achegada do marido, seu Augusto. O encontro era marcado por
rusgas, quando não era porque ele chegava tarde, era outro motivo qualquer. Todas as
noites, silenciosa, fazia crochê ou costurava alguma peça para a casa. Provavelmente,
seus pensamentos seguiam um determinado rumo; “analisava os atos de seu Augusto
desculpando-o, achando-o justo, e observando as mutações de sua fisionomia escolhia a
atitude a adotar nas horas seguintes.”36

No princípio das quinzenas traçava planos de economia e no fim


procurava compreender porque fora impossível permanecer no

36
Ibid. p. 105-106.
orçamento fixado. E os meses se escoavam, os anos, sem que esta
ordem se alterasse; apenas uma ou outra questão passageira decorrente
de algum mexerico da vizinhança agitava momentaneamente a
superfície das coisas. [...] Será que depois do casamento a mulher vai
aos poucos caindo nesta rotina?37

Esmagando as mulheres em uma rotina que limitava o desenvolvimento de sua


autonomia e personalidade, segundo Marina, o casamento não teria nada de sagrado.

O matrimônio, o grande sacramento que abençoa os filhos e assegura a


felicidade dos cônjuges era apenas uma mistificação, uma prostituição
santificada, selada com orações e gestos ridículos, onde a mulher se
comprometia diante de um altar a entregar seu corpo, em troca de casa,
de comida e de roupa, a um homem que não a entendia e que a
considerava apenas como uma fêmea. A mulher seria uma arrumadeira,
uma cozinheira, trabalhando da manhã à noite, sem merecer
consideração alguma, e, na cama, deveria prestar-se à satisfação dos
desejos do senhor que gozaria sem se preocupar em saber se aquilo
agradava-a, trazia-lhe prazer, ou causava-lhe repugnância. Esse
casamento era apenas uma escravidão reconhecida pela religião e pelas
leis.38 (Negrito no original).

Marina observava que nas camadas populares a rotina era diversa. Ao contrário
da madrinha, as mulheres pobres tinham um cotidiano marcado pelo trabalho pesado,
muitas vezes lavando roupa nos diques para manter o sustento da família. Na Estrada da
Liberdade, as casas eram pequenas e abrigavam famílias numerosas, muitas delas
chefiadas por mulheres. “Os meninos eram criados na rua porque a casa não os
comportava, e à noite, amontoavam-se para dormir. O telhado baixo, cômodos estreitos,
chão batido, paredes de sopapo, portas fechadas. Que ambiente para o sono de uma
criança!”39
Raquel, protagonista de A Sombra do Patriarca, também observava criticamente
o cotidiano da família do patriarca, demonstrando total desacordo com a ordem de gênero.
Se opondo aos valores tradicionalmente difundidos, ela defendeu que “a mulher pode ter
personalidade e não precisa apagar-se diante do marido [...] e, neste caso, além das
relações conjugais existirá um poderoso laço de camaradagem cimentando a união”.40

A mulher tem possibilidades iguais às do homem, a educação é que a


atrofia, dando um valor exagerado a seus sentimentos e neutralizando
suas energias intelectuais. Repete-lhe a todo instante que é a mais fraca

37
Ibid. p. 106.
38
Ibid. p. 140.
39
Ibid. p. 32
40
p. 39
e, sem uma vontade masculina a seu lado, nada poderá fazer. Incute-lhe
a ideia falsa de que sozinha terá apenas de escolher a prostituição.41

Luísa e Maria do Carmo, personagens emblemáticas de Simão Dias não


desejavam para si o mesmo destino da maioria das mulheres daquela cidade do interior
nordestino. Adolescente, Maria do Carmo sentia uma necessidade constante de
compreender a vida, “ter visão do mundo, enfim, saber por que as coisas aconteciam de
um modo e não de outro.”42 Desejava um dia poder abandonar aquela cidade. “Se fosse
embora, não voltaria nunca”43. Contrariando o ideal de feminilidade, Do Carmo não é
uma menina doce que sonha com o casamento. Ao contrário, constantemente se
interrogava: “Casar traria mesmo vantagens? Esfregar fundo de panela, pregar botão em
roupa, ter filho, mudar fraldas mijadas, ouvir berros: nisto se resumia a sorte de vovó
Carolina e de Comadre Mariana.”44 A menina sonhava em conquistar a vida fora de Simão
Dias, ganhar seu próprio dinheiro, ser independente e “falar grosso”.
Luísa, por sua vez, era casada e infeliz no casamento. Mas, diferente das outras
mulheres da cidade, não se resignou com a situação. Ao longo da vida conjugal infeliz,
experimentou uma ventura extraconjugal a fim de se sentir feliz; quando não era possível
encontrar o amante, costumava se masturbar para garantir o prazer sexual que não tinha
quando se relacionava com o marido. Só depois do trágico acidente que a deixou viúva,
ela conseguiu analisar a situação de forma profunda. Emblematicamente a morte do
homem, que simbolizava a opressão, foi fator decisivo para que a mulher renascesse,
“abrindo os compartimentos da alma”. Logo após a tragédia, seu pai, o velho
Bernardinho, apareceu para tentar imprimir-lhe a direção.

Ouvindo as palavras autoritárias do pai, na compreensão dele irrefutáveis, não


existindo contra elas argumentos nem recusa, sentiu acordar dentro de si
mesma força não suspeitada, desejo de medir-se, de lutar contra o sentido
daquilo tudo, o determinismo em que se firmava a criatura para reconduzi-la à
sujeição. [...] Resistira. A voz do homem crescera em rugidos e apagara-se,
ordem e mando esbateram-se feridos pela desobediência fria e consciente.
Jazia por terra o símbolo da escravidão, e jamais havia de consentir que outra
mão a erguesse em sua frente, atravancando-lhe o caminho.45

41
p. 40
42
Ibid. p. 31.
43
100-101
44
Ibid. p. 110
45
Ibid. p. 179.
Após derrubar a autoridade paterna, Luísa resolveu apoderar-se, gerir seus
negócios e sua vida. Decidiu nunca mais abrir mão de si para satisfazer os desejos de um
homem; e foi derrubando uma após outra “as colunas em que se apoiava o homem para
submetê-la e manter-se na dianteira”46. Decidiu morar sozinha e cuidar da sobrinha, Maria
do Carmo, à despeito do julgamento dos vizinhos. O choque ocasionado pela morte do
marido foi fundamental para que ela compreendesse que o marido, Terêncio, era um
homem simples, bom. Uma criatura medíocre que precisava de pouco para ser feliz, mas
mesmo assim exercia poder sobre ela, pois as mulheres recebiam uma educação
equivocada.

Resignação e passividade no cativeiro vinham de longe, sucedendo-se através


de gerações que se perdiam no passado. Para que discutir se estava na bíblia,
se Deus já havia dito milênios atrás, à primeira fêmea: – “Multiplicai-vos
grandemente a tua dor e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo
será para o teu marido e ele te dominará”. De cabeça baixa, culpada e servil, a
mulher vem se arrastando como bicho manso, coração cheio de vergonha,
olhos sem esperança fitando um homem à sua frente.

Analisando os motivos que a levaram a aceitar a “herança esmagadora”, Luísa


refletia porque ela, mulher escolarizada e economicamente independente, mantinha
posição subserviente diante do marido. Assim, concluiu que independência econômica e
acesso à educação não eram suficientes para que as mulheres conquistassem a liberdade;
outro elemento fundamental era a independência afetiva.

No último período da Escola Normal, discutira muito com as colegas sobre a


liberdade da mulher; naquela época seus planos de independência reduziam-se
à luta econômica, à posse do dinheiro; algumas vezes avançava também no
domínio intelectual, procurando ter percepção lúcida de problemas humanos.
Com surpresa Luísa certificara-se que vencer nos terrenos econômicos e
intelectual não constituía tudo para a mulher, falta muito para que seja
inteiramente livre, senhora de seu destino. [...] Para quebrar cadeias, fora
sacudida pelo sofrimento, atirada no espaço ao sabor de conflitos, ferira e
ensanguentara as mãos. Velho Bernardinho partira derrubando a cadeira,
despedaçara-se o derradeiro fio. Pela primeira vez, experimentara
independência, tinha consciência de liberdade agora que rompera com a
escravidão afetiva, abandonara as lentes falsas herdadas da mãe Carolina,
partira a continuidade de submissão mantida pelas mulheres da família através
de gerações. Escolhera o caminho, dirigia o voo mesmo contra o vento, era
livre e, sem apoio, começava a conhecer segurança, compreendia que ela
estava dentro de si mesma, nascia da confiança nas próprias forças. Poderia
viver em Simão Dias, em qualquer parte do mundo, e permanecer
independente, mantendo a liberdade conquistada.47

46
47
Ibid. p. 181-182.
Após essa constatação, percebeu que as aventuras extraconjugais não era paixão,
mas um sentimento alimentado pela ideia de que as mulheres precisavam
obrigatoriamente de um homem para e se sentirem felizes. Devido a esta falsa noção,
Luísa, ao se deparar com os conflitos matrimoniais, buscou em outro homem o conforto
para as suas inquietações, quando a segurança deveria ser buscada dentro dela mesma.

O hábito do cativeiro tinhas profundas raízes inconscientes, também havia


aceitado a obrigação de submeter-se ao homem: pai ou marido, sem examinar
de frente quem dava ordens, nem investigar o direito que lhe conferia o manejo
das rédeas. Transmitiram-lhe a tradição de inferioridade, conformara-se com
ela. Se quase todas as mulheres atravessavam a vida trotado mansamente, num
compasso monótono, por que fora sofrer, desencadear o inferno dentro de si,
perigar o desejo de suicídio e o terror da loucura? Sua liberdade ainda estava
úmida de lágrimas, liberdade integral. Despedaçara as amarras afetivas com
raízes no passado, nos preconceitos de educação, nos mandamentos religiosos,
nos ecos da voz de Jeová. [...] Era preciso começar do princípio, reconstruir a
vida nos alicerces cavados com a análise de si mesma, levantados sobre a
compreensão de uma igualdade real entre os sexos.48

Muito embora reconhecesse que o machismo imperava na sociedade, Luísa não


afastou a possibilidade de encontrar um companheiro. “Em seu projeto de felicidade havia
lugar para o homem.”49 Porém, não estava disposta a conquistar a harmonia com
renúncias humilhantes. Desejava um homem “que andasse lado a lado com ela, sem a
tentação de adiantar-se no caminho para ser seguido.”50 Após a morte de Terêncio,
começou a compreender que o amor só era possível quando construído “na igualdade
entre homem e mulher.”51

Na personagem Luísa, vemos emergir uma mulher de forte personalidade e


bastante crítica aos modelos das relações entre mulheres e homens. Imbuída de
consciência histórico-social, sabia que embora tivesse adquirido consciência das
desigualdades sexuais, seria obrigada a conviver em uma sociedade marcada por uma
tradição que inferiorizava as mulheres. Ela sabia que a convivência não seria fácil, mesmo
assim não abriria mão de seus ideais.
Em Luísa, Alina Paim embutiu uma consciência de gênero pouco comum à época,
inclusive entre as pecebistas. Na década de 1940, geralmente atribuía-se a subjugação das

48
Ibid. p. 183.
49
Ibid.
50
Ibid.
51
Ibid. p. 184
mulheres aos fatores econômicos, educacionais e jurídicos. Através de Luísa, Alina Paim
levantou uma problemática singular: a dependência afetiva como condicionante da
opressão das mulheres. Esta questão, aparentemente, está vinculada às teorias da
psicanálise. Inclusive, a narrativa apresenta a expressão “raízes inconscientes” para
explicar a subjugação das mulheres. Lembremos que Alina Paim foi casada com um
médico psiquiatra. Por isso, é possível que tenha tido acesso as teorias psicanalíticas que
podem ter influenciado suas análises.
O final do romance é emblemático. Luísa vai ao encontro de Maria do Carmo para
juntas abandonarem Simão Dias. Neste momento, fundem-se as duas personagens que
“longe daquelas serras”, encontrariam “o segredo da liberdade da mulher”. Maria do
Carmo, representação do futuro desejado, não teria as mãos despedaçadas pelas “amarras
do balão cativo” como as outras mulheres da pequena cidade.
*
Quando comparamos as três narrativas, percebemos como se desenvolveu o
pensamento feminista em Alina Paim. Se em Estrada da Liberdade Marina considerou
que as relações desiguais entre mulheres e homens podiam ser explicadas pela
dependência econômica e intelectual das mulheres, em A Sombra do Patriarca Rachel
traz um elemento a mais: a tradição que ensina as mulheres o lugar de subserviência. Mas,
sem dúvida, em Simão Dias ela aprofunda a análise. Através da voz de Luísa, entendemos
que além da dependência econômica e da cultura, havia a dependência afetiva, que não
deixava de ser uma herança cultural, mas que afetava o psicológico das mulheres,
dificultando suas tomadas de decisão ao longo da vida. Não por acaso, mesmo consciente
de sua opressão, por muito tempo Luísa não conseguiu se livrar das amarras que lhes
traziam infelicidade.

Vous aimerez peut-être aussi