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Caso Alyne Pimentel: Uma Análise à Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

CASO ALYNE PIMENTEL: UMA ANÁLISE À LUZ


DA ABORDAGEM BASEADA EM DIREITOS HUMANOS

···················
Aline Albuquerque S. de Oliveira
Pós-Doutora em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Emory;
Doutora em Ciências da Saúde/Bioética pela Universidade Brasília e Visiting Scholar do Instituto de Ética Biomédica
da Universidade de Zurique; Advogada da União na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Julia Barros Schirmer
Assessora da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República; Especialização em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008)
e graduação em Direito pela mesma Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005); Integrante
do Grupo de Pesquisa CNPQ Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina.

1. INTRODUÇÃO exemplo, Cuba, que apresenta 43.1; Canadá, 6.5;


Estados Unidos, 12.7; Argentina, 55; Chile, 16.6
O Caso Alyne Pimentel é a primeira de- (PAHO, 2011). Como se nota, a alta taxa de morta-
núncia sobre mortalidade materna acolhida pelo lidade materna demonstra que os esforços empre-
Comitê para a Eliminação de todas as Formas endidos pelo Estado brasileiro com vistas a evitar a
de Discriminação contra a Mulher, doravante mortalidade derivada da maternidade, o que inclui
denominado Comitê, incumbido de monitorar o acesso a serviços qualificados de parto, atenção
o cumprimento pelos Estados-parte da Conven- obstétrica de emergência, educação e informação
ção relativa aos Direitos das Mulheres, adotada sobre saúde sexual e reprodutiva, além de outros
pelas Nações Unidas em 1979. Além de o tema, (HUNT, 2006), ainda não lograram reverter o qua-
mortalidade materna, ser um elemento diferen- dro situacional de saúde das mulheres no Brasil,
cial do Caso, o fato de ser a única “condenação” embora se reconheça que foi registrada redução da
do Estado brasileiro proveniente de um órgão do morte materna desde 1990 (IPEA, 2010).
Sistema Universal de Direitos Humanos também
Nos últimos anos, foi-se expandindo o en-
demonstra sua especificidade e relevo para a co-
tendimento conceitual da mortalidade derivada
munidade nacional e internacional que lida com
da maternidade como uma expressão dos direitos
a proteção dos direitos humanos. Sendo assim,
humanos, especificamente enquanto conteúdo do
escolheu-se o Caso Alyne Pimentel em virtude de
direito ao desfrute do mais alto nível de saúde fí-
apresentar aspectos particulares que lhe conferem
sica e mental (Hunt, 2006), previsto no art. 12
a qualidade de um caso paradigmático, porquanto
do Pacto Internacional sobre os Direitos Econô-
diz respeito à morte de uma mulher - gestante,
micos, Sociais e Culturais, ratificado e internali-
jovem, afrodescendente, e de baixa renda - decor-
zado pelo Estado brasileiro. Igualmente, a morte
rente de ausência de assistência médica adequada,
materna evitável consiste em violação à dignidade
fato que não foi posteriormente apurado, cujo pro-
humana intrínseca da mulher, assim como fla-
cesso judicial relativo à responsabilização civil do
grante injustiça social (YAMIN; MAINE, 2005).
Estado ainda se encontra em trâmite, decorridos
Tal entendimento impele à integração do direito à
quase dez anos após o episódio.
saúde na formulação de políticas e programas pú-
O Caso Alyne Pimentel trouxe à tona a pro- blicos de enfrentamento à mortalidade materna.
blemática da morte materna, enquanto violação do Nesse sentido, importante destacar a Resolução
direito humano à saúde, que se reflete na razão de n. 11/8, expedida pelo Conselho de Direitos Hu-
mortalidade materna no Brasil: 68.7 por 100.000 manos das Nações Unidas, sobre mortalidade e
nascidos vivos (DATASUS, 2008). Ainda distante morbidade materna evitável1 e direitos humanos,
da razão de 35 por 100.000 nascidos vivos, meta na qual o órgão de direitos humanos afirma que
apontada pelos Objetivos do Desenvolvimento do a alta taxa inaceitável de mortalidade materna e
Milênio (IPEA, 2010), assim como da realidade de morbidade é um desafio de saúde, direitos huma-
outros países do continente Americano, como, por nos e desenvolvimento.

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Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v. 12, n. 12, 2012.
Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

Tendo em conta a perspectiva da violação do vida e à saúde da vítima, Alyne Pimentel. Segundo
direito humano à saúde, retratado na ocorrência os peticionários, Alyne Pimentel, grávida de seis
de mortalidade materna, bem como do direito ao meses, aos 11 de novembro de 2002, dirigiu-se
acesso à justiça e a ausência de qualquer respon- à Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória, loca-
sabilização dos agentes no Caso Alyne Pimentel, lizada na cidade de Belford Roxo, apresentando
este artigo tem como escopo analisar, do ponto de náusea grave e dor abdominal. No dia citado, o
vista da Abordagem Baseada em Direitos Huma- médico que lhe atendeu prescreveu medicação de
nos - ABDH, a política mais atual e compreensiva rotina e a liberou. Contudo, seu estado de saúde
endereçada ao enfrentamento da mortalidade ma- piorou, e, no dia 13 de novembro, Alyne Pimentel
terna, enquanto uma das medidas adotadas pelo teria retornado ao mesmo hospital com sua mãe.
Estado brasileiro como resposta às recomendações Na ocasião, outro médico a examinou e não verifi-
do COMITÊ no Caso Alyne Pimentel. Sendo as- cou batimento cardíaco fetal, o que foi confirmado
sim, considerando a limitação de dimensão deste por meio de ultrassonografia. O médico lhe deu
trabalho, optou-se por focar a política de saúde re- medicamento para acelerar o parto, o que ocorreu
produtiva nacional, a intitulada “Rede Cegonha”. horas depois. No dia 14 de novembro, 14 horas
Tal investigação tem como objetivo verificar se o após o parto, Alyne Pimentel teria se submetido a
Estado brasileiro incorporou à referida política o uma curetagem para a retirada de parte da placen-
referencial teórico-normativo dos direitos huma- ta, porém, sua condição de saúde tornou-se cada
nos, mediante o emprego da ABDH, que fornece vez mais grave, com hemorragia, vômito de san-
um elenco de critérios para a verificação de políti- gue, pressão baixa, impossibilidade de ingestão de
cas públicas de saúde pública e sua conformidade alimentos e desorientação prolongada. Em 15 de
com as normas e princípios de direitos humanos. novembro, o quadro de saúde de Alyne Pimentel
Para tanto, foram adotados os seguintes pas- não se alterou, mantendo as mesmas caracterís-
sos metodológicos: i. descrição do Caso a partir ticas do dia anterior. Os médicos fizeram contato
do conteúdo da Comunicação n. 17/2008, e da de com hospitais de referência a fim de transferi-la.
2011, e as opiniões e recomendações elaboradas Apenas o Hospital Geral de Nova Iguaçu tinha
pelo COMITÊ correlatas à denúncia; ii. estudo da disponibilidade para tanto, contudo, não se pron-
ABDH, especificamente no campo da saúde públi- tificando a utilizar sua única ambulância para a
ca, conforme formulação desenvolvida pela Orga- remoção de Alyne Pimentel. A mãe e o marido
nização Mundial de Saúde, e os estudos de Singh da paciente aguardaram por oito horas para que a
(2010), Beracochea, Weinstein e Evans (2011), transferência pudesse ser realizada. Nesse período,
assim como os de Taket (2012), sendo o primeiro Alyne Pimentel já teria apresentado um quadro
importante em razão de ser proveniente da agência de coma. Quando a paciente chegou ao Hospital
das Nações Unidas com mandato para a saúde pú- Geral de Nova Iguaçu, encontrava-se hipotérmica
blica e direitos humanos, e os demais autores assi- e teve que ser ressuscitada em uma maca, pois
nalados, por apresentarem estudos especializados não havia leitos disponíveis. Os peticionários ale-
na aplicação da ABDH à saúde pública; iii. análise, gam que os médicos não enviaram o prontuário
com base nos critérios apresentados pelo referen- de Alyne Pimentel para o hospital de referência.
cial da ABDH de avaliação de políticas e programas No dia 16 de novembro, Alyne Pimentel morreu
públicos de saúde, da “Rede Cegonha”, instituída em decorrência de hemorragia digestiva. Segundo
pela Portaria n. 1.459/GM/MS, de 24 de junho de os médicos, teria falecido em razão do feto morto
2011, no âmbito do Sistema Único de Saúde. não ter sido removido de seu útero. Em fevereiro
de 2003, o viúvo de Alyne Pimentel ajuizou ação
Em seguida, passa-se à descrição do Caso
indenizatória em face do Estado do Rio de Janeiro
Alyne Pimentel, conforme os termos do docu-
(COMITÊ, 2011).
mento do COMITÊ.
Os peticionários, ao formular a apontada
2. O Caso Alyne Pimentel comunicação, fundamentaram-se no Protocolo à
Convenção sobre a Eliminação de Todas as For-
Em 2007, os peticionários do Caso, o Centro mas de Discriminação Contra a Mulher, internali-
para os Direitos Reprodutivos e a Advocacia Ci- zado no ordenamento jurídico nacional em 2002,
dadã pelos Direitos Humanos, representantes de o qual estabelece procedimento de comunicações
Maria de Lourdes da Silva Pimentel, mãe de Alyne individuais ou de grupos de indivíduos, conhecido
Pimentel, apresentaram uma comunicação peran- como “quase judicial”, porquanto não tem a na-
te o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação tureza jurídica vinculante de uma sentença; con-
contra a Mulher, alegando a violação do direito à tudo, apresenta-se vinculativo na medida em que

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Caso Alyne Pimentel: Uma Análise à Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

o Estado ratificador do tratado deve cumpri-lo de o COMITÊ (2011), a morte de Alyne Pimentel
boa fé, consoante a Convenção de Viena sobre os caracteriza-se como relacionada a complicações
Direitos dos Tratados. Sendo assim, caso o CO- obstétricas vinculadas à gestação, observado que
MITÊ entenda que tenha efetivamente ocorrido o profissional de saúde que realizou seu primei-
violação dos direitos humanos previstos na Con- ro atendimento falhou ao não se certificar ime-
venção referida, emitirá observações e recomen- diatamente da morte do feto, registrando-se que
dações, às quais o Estado deve dar devida conside- os testes de urina e sangue foram realizados dois
ração. Deve, ainda, apresentar ao Comitê, dentro dias depois do primeiro atendimento, e a cureta-
de seis meses, resposta por escrito, incluindo in- gem, 14 horas após o parto. Em suma, conforme
formações sobre quaisquer ações realizadas à luz o COMITÊ, tal morte pode ser classificada como
das observações e recomendações anteriormente materna. Quanto ao fato da Casa de Saúde Nossa
dirigidas ao Estado. Senhora da Glória ser privada, para o COMITÊ
Na comunicação do Caso Alyne Pimentel, os (2011) o Estado é diretamente responsável pelos
peticionários sustentaram que o Estado brasileiro serviços prestados por instituições privadas de
não assegurou o acesso a tratamento médico de saúde, existindo o dever estatal permanente de
qualidade durante o parto, tendo em conta que regular e monitorar as instituições privadas de
a principal causa da morte da vítima teria sido a saúde. Ainda, de acordo com o COMITÊ (2011),
demora evitável no recebimento de atenção obsté- a ausência de serviços apropriados de saúde ma-
trica de urgência e a ausência de atendimento obs- terna, dirigidos ao atendimento de objetivos es-
tétrico qualificado. O fato de Alyne Pimentel, em pecíficos e particulares, demandas em saúde no
seu primeiro atendimento, não ter sido submetida interesse da mulher, constitui, além de violação
a exames mais precisos e tratamento apropriado, ao direito à saúde, discriminação contra a mulher.
e de, no segundo atendimento, o feto e partes da Para o Comitê (2011), além de Alyne Pimentel ter
placenta não terem sido completamente expe- sofrido discriminação por ser mulher, também o
lidos, causaram hemorragia e complicações, e, foi por ser afrodescendente e pertencer à camada
consequentemente, sua morte. Sua transferência da população de baixa renda. Por fim, o COMI-
também foi ineficaz, pois ela foi mantida numa TÊ (2011) reconhece que o Estado brasileiro não
maca sem atendimento qualificado, o que con- assegurou proteção judicial efetiva e remédios ju-
correu para sua morte evitável (COMITÊ, 2011). rídicos apropriados, acentuando que nenhum pro-
Assim, os peticionários alegam que houve falha cedimento foi iniciado contra aqueles que causa-
no sistema de referência dos serviços de saúde; ram diretamente a morte de Alyne Pimentel, bem
ausência de coordenação entre os serviços de pré-
como a ação indenizatória, interposta em 2003,
-natal e de parto; falta de ambulância ou transpor-
ainda não havia sido julgada. Em referência a tal
te apropriado e de leito; e não-apresentação pelos
ponto, o COMITÊ (2011) entendeu que o Estado
médicos de seu prontuário no serviço de referên-
cia (COMITÊ, 2011). brasileiro não cumpriu sua obrigação de assegurar
proteção e ação judicial efetiva.
Ainda, os peticionários sustentam que o Es-
tado brasileiro falhou em assegurar ações judiciais As recomendações feitas pelo COMITÊ
efetivas e de proteção no contexto de violações à (2011) foram sete, sendo uma de natureza com-
saúde reprodutiva. A ausência de responsabiliza- pensatória, na qual prevê que o Estado brasileiro
ção por parte do sistema judicial aponta para uma deve indenizar a mãe e a filha de Alyne Pimentel;
sistemática falha estatal no reconhecimento da três concernentes a políticas públicas de saúde: i.
necessidade de adotar medidas de reparação para assegurar o direito da mulher à maternidade sau-
a mulher que foi tratada de modo discriminatório. dável e o acesso de todas as mulheres a serviços
A demora na prestação jurisdicional teria causado adequados de emergência obstétrica; ii. realizar
dano devastador para a família de Alyne Pimentel, treinamento adequado de profissionais de saúde,
principalmente à sua filha, Alice Pimentel, pois especialmente sobre direito à saúde reprodutiva
foi abandonada pelo pai, e, em consequência, dei- das mulheres; iii. reduzir as mortes maternas evi-
xou de contar com meios materiais dignos para táveis, por meio da implementação do Pacto Na-
sua sobrevivência (COMITÊ, 2011). cional para a Redução da Mortalidade Materna e
Especificamente no presente caso, o COMI- da instituição de comitês de mortalidade materna;
TÊ decidiu que o Estado brasileiro violou o direito três recomendações que dizem respeito à accoun-
ao acesso à saúde; o direito ao acesso à justiça; e tability: i. assegurar o acesso a remédios efetivos
o direito a ter as atividades dos serviços privados nos casos de violação dos direitos reprodutivos
de saúde regulados pelo Estado, conjuntamente das mulheres e prover treinamento adequado para
com o direito a não ser discriminada. Segundo os profissionais do Poder Judiciário e operadores

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Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

do direito; ii. assegurar que os serviços privados de Entendimento Comum das Nações Unidas sobre
saúde sigam padrões nacionais e internacionais a Abordagem Baseada em Direitos Humanos, no
sobre saúde reprodutiva; iii. assegurar que sanções ano de 2003, o qual serve como ponto de referên-
sejam impostas para profissionais de saúde que cia e guia para inúmeros parceiros. Na esfera da
violem os direitos reprodutivos das mulheres. saúde, a ABDH implica, especificamente, a busca
Neste tópico, buscou-se expor o Caso Alyne da realização do direito humano à saúde e dos de-
Pimentel com foco nas alegações dos peticionários mais direitos humanos correlatos, do que se ex-
e no entendimento do COMITÊ, os quais, como trai que política e programas sanitários devem ser
se pode perceber, são convergentes. Os argumen- norteados por padrões de direitos humanos, bem
tos esposados pelo Estado brasileiro não foram como pelo desenvolvimento da capacidade daque-
objeto análise, pois o COMITÊ não os acolheu, les que são obrigados, em decorrência de normas
deliberando nos termos da comunicação dos pe- de direitos humanos, a efetivar suas obrigações e
ticionários. Dessa forma, partiu-se da decisão a concretizar o empoderamento dos titulares de
do COMITÊ de que houve violação de direitos tais direitos (WHO; ORHC, 2012). Com efeito,
humanos e da responsabilidade do Estado brasi- ao se trazer a ABDH especificamente para o cam-
leiro para desenvolver a concepção central deste po da saúde, há que se fazer uma breve referência
estudo, que consiste no exame da adequação da para a interconexão entre saúde pública e direitos
política de saúde materna atual do Brasil e dos humanos. A penetração do referencial dos direitos
remédios e medida de responsabilização com uma humanos na saúde pública é recente, na década de
perspectiva de direitos humanos, a qual será deli- noventa, Jonathan Mann desenvolveu inaugural
neada em seguida. abordagem das condições vivenciadas por pessoas
que viviam com HIV e AIDS sob a ótica do es-
3. ABORDAGEM BASEADA EM DIREI- tigma e discriminação sofridos por elas, demons-
trando que não era apenas uma questão sanitária,
TOS HUMANOS APLICADA À SAÚDE mas, mormente de direitos humanos (BERACO-
A Abordagem baseada em Direitos Huma- CHEA; WEINSTEIN; EVANS, 2011).
nos aplicada à Saúde desenvolvida neste estudo A ABDH enfatiza que o objetivo precípuo das
parte de um marco teórico institucional, constru- políticas, estratégias e programas em saúde é a per-
ído pela Organização Mundial de Saúde e do Alto secução da realização do direito à saúde e outros
Comissariado das Nações Unidas para os Direi- direitos humanos relacionados, com base em nor-
tos Humanos, assim como acadêmico, o qual se mativas de direitos humanos. Os padrões de direi-
fundamenta nas pesquisas das teóricas de Singh tos humanos fornecem um norte para a definição
(apud TAKET, 2012), Beracochea, Weinstein e precisa de elementos constituintes do escopo da
Evans (2011), bem como de Taket (2012). Mesmo atuação estatal no campo da saúde. Sendo assim,
que as autoras não empreguem a denominação se o propósito é a efetivação dos direitos humanos,
“Abordagem Baseada em Direitos Humanos”, mas políticas e programas precisam estar sistematica-
tão somente “Direitos”, o escopo é o mesmo, qual mente integrados com tais direitos. Com efeito, a
seja, a conexão explícita dos direitos humanos ABDH preocupa-se não apenas com o resultado
em questão com os documentos normativos no das ações e serviços de saúde efetivados pelo Es-
campo do Direito Internacional dos Direitos Hu- tado, mas também com o processo, ou seja, com
manos (BERACOCHEA; WEINSTEIN; EVANS, a forma com que os agentes políticos atuarão com
2011), constituindo uma abordagem que auxilia vistas a atingir determinadas metas estabelecidas.
a proteção e a promoção dos direitos humanos na O processo de constituição de políticas e progra-
esfera da saúde pública (TAKET, 2002). mas – diagnóstico, estabelecimento de prioridades,
A ABDH busca conferir suporte mais ro- planejamento do programa e seu desenho, imple-
busto aos resultados buscados pelos Estados por mentação, monitoramento e avaliação – deve estar
meio de políticas públicas, mediante a análise e conectado com os padrões e princípios de direitos
o foco em iniquidades, práticas discriminatórias humanos (WHO; ORCH, 2012).
e relações de poder assimétricas. O suporte refe- A eliminação de todas as formas de discri-
rido se ancora no sistema de direitos humanos, minação é aspecto central da ABDH, nesse sen-
civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e tido, estratégias tendentes a alcançar a igualdade
nas obrigações estatais correlatas (WHO; ORHC, de gênero e a supressão da discriminação base-
2012). Nas Nações Unidas, reconhecendo a ne- ada no sexo são centrais. Além do princípio da
cessidade de adotar perspectivas coerentes no con- não discriminação, a ABDH fundamenta-se nos
texto da colaboração entre agências, acordou-se o princípios da participação, igualdade e accoun-

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Caso Alyne Pimentel: Uma Análise à Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

tability. O princípio da participação significa que direitos. A capacidade aludida inclui competência,
as pessoas são autorizadas a atuar livremente em habilidades, recursos, responsabilidades, autorida-
decisões que diretamente as afetam. A participa- de e motivação. Em relação aos agentes obrigados,
ção aumenta a chance de que políticas e progra- a ABDH enfatiza a capacidade nos três níveis, lo-
mas correspondam às necessidades de seus des- cal, regional e federal, direcionada ao atendimen-
tinatários. O acesso à informação é um aspecto to das obrigações de respeitar, proteger e realizar
essencial do princípio da participação, pois sem os direitos humanos. Na área da saúde, agentes
informação disponível, acessível em linguagens e obrigados são os gestores, diretores de unidades de
formatos variados, bem como sem a garantia do saúde, profissionais de saúde e parlamentares. Por
direito à associação, a exequibilidade da partici- outro lado, a partir da perspectiva dos titulares,
pação torna-se prejudicada (WHO; ORCH, 2012). a ênfase recai sobre seu empoderamento, visando
O princípio da igualdade e da não discrimi- ao entendimento de que são detentores de direitos
nação aponta para a imperiosidade do Estado ado- humanos (WHO; ORCH, 2012).
tar um conjunto de legislação, políticas e progra- Ao se cotejar a Abordagem Baseada em Ne-
mas não discriminatórios, tal como relativamente cessidades – ABN com a ABDH, verifica-se que a
àquelas tendentes a balizar a alocação de recursos primeira foca-se na ajuda que se dá aos que preci-
sanitários. A informação de saúde deve estar es- sam, enquanto a segunda, no empoderamento dos
truturada de modo desagregado, a fim de que per- titulares de direitos, buscando fomentar sua habi-
mita a identificação de iniquidades em saúde dos lidade para exigi-los. A ABN, norteada pelo prin-
grupos mais vulneráveis (WHO; ORCH, 2012). cípio da utilidade, busca priorizar as demandas
No que tange à accountability, esse princí- da maioria, objetivando o maior benefício para o
pio é um componente-chave da ABDH aplicada maior número de pessoas, subjugando as premên-
à saúde pública (BERACOCHEA; WEINSTEIN; cias individuais. A ABDH tem como pressuposto
EVANS, 2011). O princípio traz o comando da a dignidade ontológica da pessoa humana, a qual
transparência para o Estado, o qual deve aplicá- deve ser tratada com igual respeito e consideração,
-lo a todos os processos decisórios e ações, assim o que conduz ao problema de conciliar a universa-
como na adoção de mecanismos de responsabi- lidade dos direitos humanos com a imperiosidade
lização. Há variados meios de se materializar a de restringi-los, em determinados contextos, em
accountability, dentre eles destacam-se: i. ratifi- prol dos interesses coletivos, especialmente quan-
cação dos tratados de direitos humanos e incor- do estão em jogo os direitos humanos de popula-
poração de seus padrões ao ordenamento jurídico ções vulneráveis. A ABN também pode ser empre-
nacional; ii. instituição de mecanismos judiciais gada como meio de justificar políticas públicas de
e quase-judiciais, como comissões de direitos hu- saúde de baixa qualidade, pois quando as necessi-
manos e ombudsman; iii. criação de mecanismos dades excedem os recursos disponíveis justifica-se
administrativos e políticos, por exemplo, a revi- o não atendimento das demandas de saúde das
são de políticas de saúde e estratégias, auditorias populações de baixa renda, o que ocasiona resul-
e avaliação de impacto nos direitos humanos; iv. tados desfavoráveis em suas condições de saúde.
elaboração de relatórios perante organismos in- Do ponto de vista da ABDH, os serviços e bens
ternacionais de direitos humanos, demonstrando sanitários não devem ser acessíveis tão somente
o cumprimento de seus compromissos (WHO; para ricos, destinando-se aos pacientes de baixa
ORCH, 2012). Com efeito, o princípio da accoun- renda caridade e ações assistencialistas; ao revés,
tability requer dos governos e tomadores de deci- consoante a perspectiva da ABDH, o Estado deve
são que sejam transparentes sobre os processos e prover ações e serviços de saúde para todos, in-
ações, bem como justifiquem suas escolhas, o que dependentemente de sua classe econômica, etnia,
significa answerability (WHO, 2011). Contudo, sexo e outros fatores (BERACOCHEA; WEINS-
sabe-se que os profissionais de saúde não estão TEIN; EVANS, 2011).
acostumados a responderem por suas práticas, Os quatro aspectos centrais ou princípios
ademais, as comunidades não estão organizadas da ABDH, identificados por Singh (apud TAKET,
para exigir seus direitos e demandas de accounta- 2012), sintetizam o conteúdo da abordagem: i.
bility dos governos em seus vários níveis (BERA- realização dos direitos humanos sem discrimina-
COCHEA; WEINSTEIN; EVANS, 2011). ção; ii. aplicação do princípio da accountability
A ABDH foca na capacidade dos agentes do aos agentes obrigados; iii. reconhecimento da par-
Estado que detêm o dever de adimplir as obriga- ticipação no processo decisório; iv. adaptação das
ções de direitos humanos e nos titulares desses ações ao contexto local. Igualmente, a proposta da

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Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

Organização Mundial de Saúde (2002) apresenta plementação da política ou programa; iv. se houve
um quadro objetivo cujo conteúdo reflete os “in- instituição de medidas de salvaguarda de popula-
gredientes” da ABDH na esfera da saúde pública. ções mais vulneráveis no contexto de dada polí-
Tais ingredientes são divididos em três blocos: i. tica ou programa; v. se existe garantia do acesso
direito à saúde; gênero; transparência; dignidade à informação concretizada mediante mecanismos
humana; e princípios de Siracusa; ii. indicadores específicos no âmbito da política ou programa.
e benchmarks; salvaguardas; não discriminação e Com base nesses critérios, nos itens subsequen-
igualdade; accountability e desagregação; iii. aten- tes serão realizadas as análises das atuais políticas
ção aos grupos vulneráveis; participação; privaci- de saúde reprodutiva destinada ao enfrentamento
dade; direito à educação; acessibilidade; vincula- da mortalidade materna no Brasil e a efetivação da
ção expressa com os direitos humanos; obrigações accountability no caso Alyne Pimentel.
concretas dos Estados.2 Tendo em conta que al-
guns desses elementos do ABDH são autoexplica- 4. POLÍTICA PÚBLICA DE ENFRENTA-
tivos e que não têm relevância para esta pesquisa, MENTO DA MORTALIDADE MATERNA
busca-se, neste momento, com o escopo de aplicá-
-los subsequentemente neste artigo, a explicitação O COMITÊ estabeleceu, no bojo do Caso
de alguns deles, conforme proposições formuladas Alyne Pimentel, que o Estado brasileiro deve as-
pela OMS. As salvaguardas seriam medidas de segurar que qualquer mulher, independentemente
proteção de grupos vulneráveis, incluindo aque- da raça ou status socioeconômico, tenha acesso
les considerados impopulares por dada sociedade. no tempo adequado a serviços apropriados à saúde
Já a perspectiva de gênero impõe a consideração materna (MESQUITA; KISMÖDI, 2012). Em res-
de fatores sociais e biológicos que interferem na posta à comunicação formulada pelos peticioná-
saúde de homens e mulheres. Em relação à aces- rios no Caso Alyne Pimentel, o Estado informou
sibilidade, serviços e ações de saúde devem ser que a violação do direito humano da vítima não se
acessíveis para todos, principalmente, para os gru- deu em decorrência da falta de compromisso com
pos mais vulneráveis. Quanto à participação, esta o combate à discriminação contra a mulher, mas
implica a integração daqueles que são afetados por sim como consequência de falhas nos serviços de
programas e políticas na criação de seu desenho e saúde, como um todo. O Estado aduziu que os
no bojo de seus processos deliberativos. Os prin- Comitês de Mortalidade Materna3 elaboram um
cípios da transparência e da accountability devem relatório anual que versa sobre estudos de caso e
atravessar todas as fases das políticas e programas medidas preventivas implementadas para reduzir
de saúde. Quanto ao direito à educação, abarca o a mortalidade materna (COMITÊ, 2011).
direito à informação em saúde, essencial para o O Estado brasileiro reconheceu que a mor-
entendimento das condições de saúde individual, talidade materna é um sério problema no Brasil
o que permite ao indivíduo realizar escolhas con- e que a falha no enfrentamento dessas mortes
forme suas concepções de vida, significando res- constitui grave violação dos direitos humanos;
peito à sua dignidade (WHO, 2002). contudo, sustenta que o Caso em comento é uma
Neste estudo tem-se como objetivo a análise exceção causada por negligência profissional e
da aplicação do ABDH à saúde pública, especifi- infraestrutura inadequada. Em contrapartida, o
camente a políticas e programas de saúde repro- COMITÊ entendeu que a contínua alta taxa de
dutiva da mulher e à accountability do sistema de mortalidade materna no Brasil constitui uma fa-
saúde brasileiro. Considerando tal enfoque, im- lência em priorizar os direitos humanos básicos
porta sistematizar a ABDH a partir da exposição das mulheres, sendo a morte de Alyne Pimentel
do marco teórico acima explorado. Sendo assim, um exemplo de tal falência. Com efeito, o Esta-
a análise de determinada política ou da accoun- do brasileiro não assegura acesso de qualidade à
tability referente a determinado sistema de saúde assistência médica durante o parto e emergência
pode ser balizada com fulcro nos seguintes crité- obstétrica a tempo, implicando o não cumprimen-
rios: i. se a política ou programa de saúde partem to do direito a não discriminação, fundamentado
da premissa de que a população afetada é titular na raça e no gênero (COMITÊ, 2011).
de direitos humanos, e o Estado e os agentes são Com o fito de demonstrar seu compromisso
obrigados a respeitar, proteger e realizá-los; ii. se com os direitos à saúde sexual e reprodutiva, bem
existe previsão de meios assecuratórios para a como a eleição da saúde da mulher como priori-
participação da população afetada; iii. se foram dade do Governo Federal brasileiro, o Estado ex-
estabelecidos instrumentos que permitam a ac- pôs uma série de medidas adotadas com vistas à
countability relacionada aos responsáveis pela im- realização dos direitos das mulheres, assim como

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Caso Alyne Pimentel: Uma Análise à Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

planos nacionais. Especificamente, o Estado expli- mendações constantes do Caso Alyne Pimentel,
cou que uma das prioridades do Plano Nacional pode-se asseverar que uma das políticas públicas
de Políticas para as Mulheres, referente ao período que o Estado apresentará como resposta ao seu
de 2008-2011, é a promoção da atenção obstétri- dever de redução da mortalidade materna evitável
ca, qualificada e humanizada, visando a reduzir e de acesso a uma maternidade segura e a servi-
a mortalidade materna, especialmente entre as ços de atenção obstétrica de emergência adequa-
mulheres negras e indígenas (PRESIDÊNCIA DA da, consiste na instituição da Rede Cegonha no
REPÚBLICA; SEPM, 2006). Tal Plano contém 18 ano de 2011 pelo Ministério da Saúde. Tal Rede
ações, previstas até 2011, que deveriam ser efe- constitui-se numa política pública cuja finalidade
tivadas pelo Ministério da Saúde, todas relativas é assegurar à mulher o direito ao planejamento re-
à saúde materna. Ainda, o Estado brasileiro in- produtivo e à atenção humanizada à gravidez, ao
formou que, já em 2004, o Ministério da Saúde parto e ao puerpério. A Rede Cegonha apresenta
lançou a Política Nacional de Atenção Integral à três objetivos: i. estimular a adoção de novo mo-
Saúde da Mulher, refletindo o compromisso com a delo de atenção à saúde da mulher e da criança;
implementação de ações de saúde que contribuam ii. organizar a Rede de Atenção à Saúde Mater-
para assegurar os direitos humanos das mulheres na e Infantil; iii. reduzir a mortalidade materna e
e reduzam a morbimortalidade por causas evitá- infantil (BRASIL, 2011). Sendo assim, verifica-se
veis (COMITÊ, 2011). que a instituição da Rede Cegonha por parte do
Consoante se extrai do documento do CO- Ministério da Saúde brasileiro tem como um dos
MITÊ, o Estado brasileiro buscou demonstrar seus escopos o objeto da recomendação feita pelo
que vem desenvolvendo uma série de políticas e COMITÊ no Caso Alyne Pimentel, qual seja, a
programas com foco na saúde da mulher, e, es- redução da mortalidade materna.
pecificamente, na prevenção da mortalidade ma- A Rede Cegonha organiza-se mediante o
terna. A despeito desse esforço por parte do Esta- provimento contínuo de ações de atenção à saúde
do, o COMITÊ constatou que há falta de serviços materna e infantil para a população de determi-
adequados de saúde materna. Da mesma forma, nado território, por meio da articulação de pon-
entende que o Estado brasileiro claramente vem tos de atenção à saúde diferenciados, do sistema
falhando no atendimento das necessidades sanitá- de apoio, do sistema logístico e da governança da
rias femininas, o que constitui violação ao direito rede de atenção à saúde. A sua implementação
à saúde das mulheres. Em decorrência do enten- é gradativa de acordo com critérios epidemioló-
dimento do COMITÊ de que o Estado brasileiro, gicos, tal como a razão de mortalidade materna
além de ter violado os direitos humanos de Alyne (BRASIL, 2011).
Pimentel, não provê serviços adequados de saúde Em sua estrutura, a Rede Cegonha conta
materna, o COMITÊ emitiu uma série de reco- com quatro componentes: pré-natal; parto e nas-
mendações, as quais são ora repisadas: i. assegu- cimento; puerpério e atenção integral à saúde da
rar o direito da mulher à maternidade segura e o criança; e sistema logístico: transporte sanitário e
acesso à atenção obstétrica de emergência adequa- regulação. Cada componente abrange uma série
da; ii. reduzir a mortalidade materna evitável, me- de ações de atenção à saúde, especificamente as
diante a implementação do Pacto Nacional para que interessam a este trabalho são: i. Componen-
a Redução da Mortalidade Materna, inclusive es- te Pré-Natal: realização de pré-natal na Unidade
tabelecendo comitês de mortalidade materna nos Básica de Saúde; acolhimento às intercorrências
locais onde não existem (COMITÊ, 2011). na gestação com avaliação e classificação de risco
Em decorrências das observações e recomen- e vulnerabilidade; acesso ao pré-natal de alto ris-
dações feitas pelo COMITÊ, ao Estado brasileiro co em tempo oportuno; realização dos exames de
foi concedido o prazo de seis meses para transmitir pré-natal de risco habitual e de alto risco e acesso
sua resposta por escrito, a qual deve incluir qual- aos resultados em tempo oportuno; vinculação da
quer informação sobre as medidas adotadas em gestante desde o pré-natal ao local em que será
atendimento às suas observações e recomendações. realizado o parto; apoio às gestantes nos deslo-
Transcorrido o prazo de seis meses, o COMITÊ po- camentos para as consultas de pré-natal e para o
derá convidar o Estado a apresentar informação local em que será realizado o parto, os quais serão
adicional sobre as medidas que adotou em cum- regulamentados em ato normativo específico; ii.
primento às citadas observações e recomendações. Componente Parto e Nascimento: suficiência de
Sendo assim, tendo em conta que o Estado leitos obstétricos e neonatais (UTI, UCI e Can-
brasileiro deve fornecer ao COMITÊ o conjunto guru), de acordo com as necessidades regionais;
de providências relativas às observações e reco- garantia de acompanhante durante o acolhimento

17
Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

e o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato; genérica acerca da verificação do cumprimento


realização de acolhimento com classificação de das ações de atenção à saúde definidas para cada
risco nos serviços de atenção obstétrica e neonatal Componente da Rede, a qual será realizada anu-
(BRASIL, 2011). Verifica-se que a Rede Cegonha almente pelo Ministério da Saúde, em conjunto
tenciona lidar com questões afetas ao Caso Aly- com Conselhos de Secretários de Saúde. Sabe-se
ne Pimentel, tais como o atendimento às inter- que, consoante o próprio título, a Rede Cegonha
corrências na gestação e realização de exames de se afigura como uma rede de cuidados, que se per-
risco habitual e alto risco, cujos resultados devem fazem mediante ações e serviços de saúde, cuja
estar disponíveis em tempo adequado; ademais, obrigação de prestá-los encontra-se assentada nos
destaca-se que o acolhimento do parto deve base- instrumentos normativos nacionais e interna-
ar-se em classificação de risco, além de garantir a cionais, portanto, a Rede Cegonha deveria prever
presença de acompanhamento, bem como leitos mecanismos de accountability, principalmente
obstétricos suficientes. atrelados às ações constantes dos Componentes
Nas outras passagens da Portaria instituidora que a estruturam, tais como: i. adoção de meca-
da Rede Cegonha, têm-se as fases de sua operacio- nismos de transparência, pelos quais os entes da
nalização: adesão e diagnóstico; desenho regional federação irão demonstrar para a sociedade os re-
da Rede Cegonha; contratualização dos Pontos de sultados alcançados com a política; ii. produção
Atenção; qualificação dos componentes; certifica- de informação específica, como indicadores desa-
ção e sua pormenorização. De igual forma, cons- gregados por região, raça/cor, renda, a fim de expli-
tam dela distintos dispositivos que versam sobre citar os avanços da política, principalmente, en-
os aportes financeiros da Política. tre os grupos mais vulneráveis; iii. instituição de
modos da população afetada pela política externar
Tendo em conta o recorte metodológico ope-
suas falhas, como, por exemplo, a previsão de um
rado neste artigo, tem-se como escopo a análise
ombudsman com tal função; iv. disponibilização
da política pública instituída por meio da Rede
de remédios não judiciais àqueles cujos direitos
Cegonha com fulcro no ABDH. Não se tem como
que a política busca resguardar foram violados.
objetivo examinar a Rede Cegonha do ponto de
vista da saúde pública ou de sua eficácia sanitá- A referida Portaria prevê que a Rede Cego-
ria para a redução da mortalidade materna. Prin- nha deve contar com a instituição do Fórum Rede
cipia-se, assim, reconhecendo que a Rede Cego- Cegonha, cuja finalidade é a construção de espa-
nha tem como princípios: o respeito, a proteção ços coletivos plurais, heterogêneos e múltiplos
e a realização dos direitos humanos; o respeito à para participação cidadã na construção de um
diversidade cultural, étnica e racial; a promoção novo modelo de atenção ao parto e nascimen-
da equidade; o enfoque de gênero, a garantia dos to, mediante o acompanhamento e contribuição
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e a na implementação da Rede Cegonha na Região
participação e a mobilização social. Constata-se, (BRASIL, 2011). O dispositivo normativo que
com base no rol principiológico da Rede Cegonha, objetiva a materialização da participação e mobi-
que o Estado brasileiro buscou construir uma polí- lização social, princípios assentados na Portaria,
tica aproximada do referencial teórico-normativo não faz qualquer referência aos meios efetivos de
dos direitos humanos, fazendo alusão expressa funcionamento do Fórum, bem como não foca na
a tais direitos e às obrigações estatais correlatas, população afetada pela política. O Fórum deveria
bem como incorporando princípios, como o prin- ter como público-alvo as mulheres, à medida que,
cípio da não discriminação, da participação e da segundo o princípio da participação, os instru-
igualdade. Nota-se a ausência do princípio da ac- mentos estatais de participação devem priorizar
countability, cuja falta é corroborada pela lacuna o envolvimento dos grupos mais atingidos pelas
de instrumentos que assegurem a transparência políticas e programas, assim como de organiza-
das ações estatais e mecanismos que promovam ções não governamentais singularmente implica-
e viabilizem a responsabilização efetiva daqueles das. Com efeito, o princípio da participação não
que detêm atribuição para operacionalizar a Rede se cinge ao intitulado “controle social”, o qual
Cegonha, notadamente o Ministério da Saúde, a aponta para um envolvimento difuso da socieda-
Secretaria Estadual de Saúde e a Secretaria Mu- de. Por outro lado, a participação impõe a incor-
nicipal de Saúde. Não se verificam, na Rede Ce- poração dos afetados nos processos de construção,
gonha, quaisquer mecanismos de accountability. operacionalização e monitoramento das políticas
Há a previsão da organização da Rede, as fases e programas. Sendo assim, o Fórum, tal como se
da sua implementação, e, no que tange ao acom- encontra previsto na norma, além de possuir difi-
panhamento e monitoramento, há a disposição culdades para a sua instituição, não contempla o

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Caso Alyne Pimentel: Uma Análise à Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

princípio da participação, a despeito de revelar-se nos, a fim de que, efetivamente, seja uma política
iniciativa louvável por parte dos formuladores da pública baseada em tais direitos, objetivando res-
política em questão. peitá-los, protegê-los e realizá-los. A Rede Cego-
Não há qualquer preceito na Portaria insti- nha, que apresenta como um dos seus objetivos a
tuidora da Rede Cegonha que preveja a proteção redução da mortalidade materna, deveria contem-
dos grupos vulneráveis, principalmente de mulhe- plar, além de todos os mecanismos operacionais
res afrodescendentes ou de baixa renda. Conforme que viabilizam sua existência, meios de efetivação
Martins (2006), “o risco de mortalidade materna dos direitos humanos das mulheres, como sua
é maior entre as mulheres negras, o que inclui as participação nas fases de operacionalização; ações
pretas e pardas, configurando-se em importante dos Componentes que abarquem o acesso à infor-
expressão de desigualdade social”. Sendo assim, mação; instrumentos de accountability e medidas
uma política que pretende enfrentar o problema específicas para grupos de mulheres vulneráveis.
da mortalidade materna deve, imperiosamen-
te, levar em conta as especificidades de grupos 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
de mulheres vulneráveis, buscando, por meio de O Caso Alyne Pimentel é a primeira denún-
mecanismos particulares que tencionem atender cia aceita pelo COMITÊ que versa sobre morta-
às demandas diferenciadas de mulheres de etnias lidade materna. A mortalidade materna evitável
diferentes, de baixa renda ou residentes de certas é uma violação flagrante dos direitos humanos
regiões do país. Com efeito, o princípio da não das mulheres, as suas elevadas taxas expõem a
discriminação impõe aos Estados a adoção de po- falência dos Estados em cumprir suas obrigações
líticas e programas destinados a assegurar o aces- de direitos humanos, notadamente a de realizar
so a serviços de saúde reprodutiva e materna, no- o direito ao desfrute do mais alto nível de saúde
tadamente a emergências obstétricas, mormente física e mental. Sendo evitável, a mortalidade ma-
por mulheres afrodescendentes e de baixa renda, terna pode ser enfrentada mediante a adoção de
que dependem tão somente dos serviços públicos. políticas e programas sérios e comprometidos, os
Por fim, quanto ao direito ao acesso à in- quais, uma vez operacionalizados devidamente,
formação, não se vê no âmbito da Rede Cegonha irão prevenir mortes absolutamente inaceitáveis
medidas peculiares destinadas a assegurar às mu- de mulheres. No Brasil, há dados que indicam que
lheres envolvidas o acesso à informação, notada- as mulheres afrodescendentes e de baixa renda
mente àquelas que envolvem o planejamento fa- são as que mais morrem em decorrência de com-
miliar, os meios efetivos de exercício dos direitos plicações ocorridas durante a gestação ou dentro
sexuais e reprodutivos, e a assistência à concepção de período determinado após seu término, pois
e contracepção. O acesso à informação é essencial dependem unicamente dos serviços de saúde ma-
para que as mulheres possam ter controle sobre terna e reprodutiva providos pelo Estado, os quais
suas próprias vidas e realizar suas escolhas pesso- muitas vezes não são adequados, como no Caso
ais. O referido acesso à informação compreende o Alyne Pimentel. No caso do Brasil, reconhece-se
direito de solicitar, receber e difundir informações que a Rede Cegonha é um esforço do Estado brasi-
e ideias, assim como o direito dos pacientes de te- leiro para reversão do quadro atual de mortalidade
rem seus dados pessoais relativos à saúde tratados materna no país, política que pode ser enquadrada
com confidencialidade (CDESC, 2000). como uma das providências adotadas pelo Esta-
Conforme assinalado por Mesquita e Kis- do em resposta às recomendações do COMITÊ.
mödi (2012), a ocorrência da mortalidade mater- Entretanto, com fundamento na Abordagem Ba-
na evitável encontra-se concentrada nos grupos seada nos Direitos Humanos, conclui-se que o
de mulheres marginalizadas e são marcadas pela Estado brasileiro ainda tem um largo percurso a
falta de accountability. As recomendações do CO- ser percorrido, visando à incorporação do referen-
MITÊ no sentido de assegurar o direito da mu- cial de direitos humanos a suas políticas públicas
lher à maternidade segura e o acesso à atenção de enfrentamento da mortalidade materna. Como
obstétrica de emergência adequada, assim como exemplo, a Rede Cegonha não conta com instru-
da redução da mortalidade materna evitável, po- mentos de accountability, meios efetivos de par-
dem vir a ser adimplidas por meio da implemen- ticipação das mulheres, recorte de etnia e renda,
tação da Rede Cegonha e outras políticas públicas bem como não assegura o acesso à informação
de saúde da mulher. Contudo, a despeito de tal para as destinatárias da política. Assim, consta-
avanço, entende-se que a Rede Cegonha deve ser ta-se que a associação entre o enfrentamento da
aprimorada para que incorpore, de acordo com a mortalidade materna e o referencial dos direitos
ABDH, princípios e comandos de direitos huma- humanos ainda não foi acolhida pelos órgãos go-

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Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

vernamentais brasileiros, em consequência, sus- é paradigmático, consiste num ponto de inflexão


tenta-se que a política pública de saúde, resposta no cenário internacional e nacional, expondo a
ao Caso Alyne Pimentel, não é suficiente para al- ferida social, traduzida no baixo grau de compro-
cançar mudanças estruturais no sistema de saúde metimento da cultura sanitária brasileira com os
público do Brasil, o que pressupõe a inserção do direitos humanos, principalmente dos direitos das
referencial teórico-normativo dos direitos huma- mulheres afrodescendentes e pobres.
nos em sua configuração. O Caso Alyne Pimentel

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Caso Alyne Pimentel: Uma Análise à Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

REFERÊNCIAS

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Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

NOTAS

1. “A mortalidade materna é uma das mais graves 3. “Os comitês de morte materna são organismos
violações dos direitos humanos das mulheres, de natureza interinstitucional, multiprofissio-
por ser uma tragédia evitável em 92% dos ca- nal e confidencial que visam analisar todos os
sos.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007). óbitos maternos e apontar medidas de inter-
2. Não foi incluído o elemento referente à har- venção para a sua redução na região de abran-
monização entre direitos humanos e interes- gência. Representam, também, um importante
ses de saúde publica por se entender que já es- instrumento de acompanhamento e avaliação
tão contemplados nos Princípios de Siracusa. permanente das políticas de atenção à saúde da
mulher” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007).

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