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Casablanca é filme de 1942, concebido dentro do espírito de propaganda a

favor da participação dos EUA na Segunda Guerra Mundial na Europa.


Com improvisações de roteiro, resultou em símbolo de romantismo amoroso
e político no cinema. Ganhador de três Oscars, inclusive o de melhor filme.

Casablanca, ou o
renascimento dos deuses
Umberto Eco, 1975 (*)

Há duas semanas todos os parecem astutos achados do diretor e


quarentões estavam diante do televisor arrancam o aplauso por seu inopinado
para rever Casablanca. Não se trata de descaramento são, com efeito, decisões
um normal fenômeno de nostalgia. De tomadas por desespero. E então: como
fato, quando Casablanca é projetado nas podia sair, dessa cadeia de imprevistos,
universidades norte-americanas, os um filme que ainda hoje, revisto pela
jovens de vinte anos sublinham cada segunda, terceira ou quarta vez, arranca
trecho e cada deixa canônica (“mande o aplauso devido à façanha, que se gosta
prender os suspeitos de sempre”, ou de ver bisar, ou o entusiasmo devido à
então “são os canhões ou é o meu descoberta inédita. Há um cast de
coração que bate?”, ou todas as vezes formidáveis canastrões. Mas não é o
que Bogey diz “kid”) com aplausos quase suficiente.
sempre reservados às partidas de Há ele e ela, amargo ele e meiga
beisebol. E o mesmo tive oportunidade ela, românticos, mas já se tinham visto
de ver numa cinemateca italiana outros melhores. Casablanca não é
freqüentada por jovens. Qual é então o Sombras vermelhas, outro filme de
fascínio de Casablanca? retorno cíclico. Sombras vermelhas é
A pergunta é legítima, porque uma obra prima sob todos os aspectos,
Casablanca é esteticamente falando (ou cada trecho dele está inserido no devido
seja, do ponto de vista de uma crítica lugar, os caracteres são justificados passo
rigorosa), um filme modestíssimo. Revista, a passo, e a trama (isso também conta)
pastiche, onde a verossimilhança provém de Maupassant, pelo menos a
psicológica é muito frágil, as reviravoltas primeira parte. E daí? Daí se tem a
concatenam-se sem razões aceitáveis. E tentação de ler Casablanca como Eliot
sabemos também por quê: o filme foi relera Hamlet, cujo fascínio ele atribuía
pensado à medida que ia sendo rodado, e não ao fato de ser uma obra bem-
até o último instante o diretor e os sucedida (aliás, ele a julgava entre as
roteiristas não sabiam se Ilse partiria com menos felizes de Shakespeare), mas
Victor ou com Rick. Portanto aqueles que justamente pela razão oposta: Hamlet
(*) UMBERTO ECO, 1985. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p.263-268
seria o resultado de uma fusão não obtida é o local de uma Passagem, a passagem
entre vários Hamlets precedentes, um em rumo à Terra Prometida (ou a Noroeste,
que o tema era a vingança (com a loucura se quiserem). Para passar, porém, é
como mero estratagema), e o outro cujo necessário submeter-se a uma prova, a
tema era a crise devido à culpa da mãe, Espera (“esperam, esperam, esperam”
com a conseqüente desproporção entre diz a voz em off no começo). Para passar
a tensão de Hamlet e a imprecisão e do vestíbulo da Espera à Terra
inconsistência do crime materno. De Prometida, é preciso uma Chave Mágica:
modo que a crítica e o público o o visto. Em torno da Conquista dessa
consideram belo porque interessante, chave desencadeiam-se as paixões. A
acreditando-o interessante porque belo. mediação à chave parece ser feita pelo
Com Casablanca, em menor Dinheiro (que aparece em diversas
proporção, aconteceu o mesmo: levados tomadas, geralmente sob a forma de Jogo
a inventar uma trama na marra, os autores Mortal, oi roleta: mas por fim se
colocaram dentro dela uma porção de descobrirá que a Chave pode ser dada
coisas. E para colocar tudo era preciso somente através de um Dom (que é o
escolher no repertório do já comprovado. dom do visto, mas é também o dom que
Quando a seleção do já comprovado é Rick faz de seu Desejo, sacrificando-se).
limitada, tem-se o filme maneirista, o Porque esta é também a história de um
seriado, e até mesmo o Kitsch. Mas turbilhão de Desejos, dos quais apenas
quando do já comprovado se coloca tudo, dois acabam sendo satisfeitos: o de
tem-se uma arquitetura como a igreja da Victor Laszlo, o herói puríssimo, e o do
Sagrada Família de Gaudí. Fica-se com casalzinho búlgaro. Todos aqueles que
vertigem, esbarra-se na genialidade. têm paixões impuras fracassam.
Agora esqueçamos como o filme foi E então, outro arquétipo, triunfa a
feito e vejamos o que ele mostra. Já Pureza. Os impuros não chegam à terra
começa num lugar mágico de per si, o prometida, somem antes; no entanto,
Marrocos, o Exótico, inicia com um quê realizam a Pureza através do Sacrifício:
de melodia árabe que se esfuma na é a Redenção. Rick se redime, e também
Marselhesa. Quando se entra no o capitão da polícia francesa. Percebe-
ambiente de Rick, ouve-se Gershwin. se aí, sub-repticiamente, que as Terras
África, França, Estados Unidos. A esta prometidas são duas: uma é a América,
altura entra em cena um emaranhado de mas para muitos é um falso objetivo; a
Arquétipos Eternos. São situações que segunda é a Resistência, ou seja, A
presidiram as histórias de todos os Guerra Santa. Victor vem vindo dela,
tempos. Mas habitualmente para fazer Rick e o capitão da polícia estão indo para
uma boa história basta uma única lá, alcançam De Gaulle. E se o símbolo
situação arquetípica. Por exemplo, o recorrente do avião parece reforçar a
Amor Infeliz. Ou a Fuga. Casablanca cada passo a fuga para a América, a
não se contenta: coloca todas. A cidade Cruz de Lorena, que aparece uma única
vez, prenuncia o outro gesto simbólico do atraído por Rick, e parece que a certa
capitão, que no fim joga fora a garrafa altura cada um deles representa o duelo
de água de Vichy (enquanto o avião do sacrifício para agradar ao outro. Em
decola). Por outro lado, o mito do todo caso, como nas Confissões de
sacrifício atravessa o filme inteiro: o Rousseau, a mulher se põe como Trâmite
sacrifício de Ilse, que em Paris abandona entre os dois homens. A mulher não é
o homem amado para voltar ao herói portadora de valores positivos, apenas os
ferido; o sacrifício da esposa búlgara homens o são.
pronta a entregar-se para ajudar o Sobre o pano de fundo dessas
marido; o sacrifício de Victor, que está ambigüidades encadeadas estão os tipos
disposto a ver Ilse com Rick, contanto de comédia, ou todos bons ou todos maus.
que a soubesse salva. Victor desemenha um papel duplo, agente
Nessa orgia de arquétipos de ambigüidade na relação erótica, e
sacrificiais (acompanhados do tema agente de clareza na relação política: ele
Senhor-Servo, graças à relação entre é a Bela contra a Fera nazista. O tema
Bogey e o negro Dooley Wilson) insere- Civilização versus Barbárie se enreda
se o tema do Amor Infeliz. Infeliz para com os outros, a melancolia do retorno
Rick, que ama Ilse e não pode tê-la, infeliz odisséico se une à intrepidez bélica de
para Ilse, que ama Rick e não pode partir uma Ilíada em campo aberto.
com ele, infeliz para Victor, que sabe que Em torno dessa dança de mitos
realmente acabou perdendo Ilse. O jogo eternos estão os mitos históricos, ou seja,
dos amores infelizes produz vários e os mitos do cinema devidamente
acertados cruzamentos: no início é infeliz revisitados. Bogart personifica pelo
Rick, que não entende por que Ilse foge menos três deles: o Aventureiro Ambíguo,
dele; depois é infeliz Victor, que não misto de cinismo e generosidade; o
entende por que Ilse se sente atraída por Asceta por Desilusão Amorosa e ao
Rick; e finalmente é infeliz Ilse, que não mesmo tempo o Alcoólatra Redimido (e
entende por que Rick a deixa partir com para faze-lo redimir-se é necesário
o marido. Esses três amores infelizes (ou embriagá-lo, de repente, quando já era
Impossíveis) dispõem-se em triângulo. Asceta desiludido). Ingrid Bergman é a
Mas no triângulo há um marido Traído e Mulher Enigmática ou Fatal. Em seguida
um Amante Vitorioso. Aqui, ao contrário, há Ouça Querido a Nossa Canção, o
ambos os homens são traídos e Último Dia em Paris, A América, A
perdedores: mas na derrota (e por trás África, Lisboa como Porto Livre, o Posto
dela) joga um elemento adicional, tão sutil de Fronteira ou Último Fortim às
a ponto de escapar a nível de consciência. Margens do Deserto. Há a Legião
É que sub-repticiamente instaura-se Estrangeira (cada personagem possui
(sublimadíssima) uma suspeita de Amor uma nacionalidade e uma história
viril ou Socrático. Porque Rick admira diferente) e finalmente o Grande Hotel
Victor, e Victor sente-se ambiguamente Gente-Que-Vai-Gente-Que-Vem. O
lugar de Rick é um lugar mágico onde isso funciona, a despeito das teorias
pode acontecer (e acontece) de tudo: estéticas e das teorias filmográficas.
amor, morte, perseguições, espionagem, Porque nele se desdobram, por força
jogos de azar, seduções, música, quase telúrica, as Potências da Narrativa
patriotismo (a origem teatral da trama e em estado selvagem, sem que a Arte
a pobreza de meios levaram à admirável intervenha para disciplinar. E então
condensação de eventos num único podemos aceitar que as personagens
lugar). Esse lugar é Hong Kong, Macau mudem de humor, de moralidade, de
Inferno do Jogo, prefiguração de Lisboa psicologia de um momento para o outro,
Paraíso da Espionagem, Barca do que os conspiradores pigarreiem para
Mississipi. interromper a conversa quando se
Mas justamente porque os aproxima um espião, que as mocinhas de
arquétipos estão todos aí, justamente vida fácil chorem ao ouvir a Marselhesa.
porque Casablanca é a citação de mil Quando todos os arquétipos irrompem
outros filmes, e cada ator refaz um papel sem decência, são atingidas
desempenhado outras vezes, joga sobre profundidades homéricas. Dois clichês
o espectador a ressonância da provocam riso. Cem clichês comovem.
intertextualidade. Casablanca traz Porque se percebe obscuramente que os
consigo, como que num rastro de clichês falam entre si e celebram uma
perfume, outras situações que o festa de reencontro. Como o cúmulo da
espectador vai introduzindo nele, tiradas, dor encontra a volúpia e o cúmulo da
sem que perceba, diretamente de outros perversão beira a energia mística, o
filmes que aparecem depois, como Ter cúmulo da banalidade deixa entrever uma
ou não ter, em que Bogart representa o suspeita de sublime. Algo falou no lugar
herói hemingwayano; mas Bogart já do diretor. O fenômeno é digno pelo
galvaniza para si as conotações menos de veneração.
hemingwayanas pelo simples fatos que,
é dito, Rick combateu na Espanha (e
como Malraux ele auxiliou a revolução
chinesa); Peter Lore arrasta atrás de si
as lembranças de Fritz Lang; Conrad
Veidt envolve o seu oficial alemão em
sutis nuanças de Gabinete do Dr.
Caligari, não é um nazista cruel e
tecnológico, é um César noturno e
diabólico. De modo que Casablanca não
é um filme, é muitos filmes, um antologia.
Feito quase ao acaso, provavelmente fez-
se sozinho, se não contra, pelo menos
além da vontade de seus autores. E por

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