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ADMINISTRATIVO
Em breve síntese evolutiva pode-se dizer que a cláusula do devido processo legal (o
conceito, não a expressão) teve suas raízes fincadas na Magna Carta (LGL\1988\3)
inglesa de 1215 de João Sem Terra, sob a fórmula da law of the land (art. 39), que
significava que os direitos dos homens livres - barões e proprietários de terra - relativos
à vida, à liberdade e à propriedade só poderiam ser suprimidos segundo as regras
constantes da lei da terra ou do Direito costumeiramente aceito. Naquele momento
histórico em que o Estado era a lei, ou melhor, a lei que o soberano fazia, cumpria,
apareceu o devido processo legal para que o baronato tivesse a proteção da law of the
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land, a lei da terra, contra os abusos da Coroa inglesa. Os senhores feudais deveriam
conhecer qual era a lei a seguir, a se submeter.
A locução hoje consagrada, due process of law, foi utilizada somente em lei inglesa de
1354, sob o reinado de Eduardo III, com o Estatuto das Liberdades de Londres, depois
acolhida pelo constitucionalismo norte-americano, incorporada à Constituição dos
Estados Unidos pelas Emendas V (1791), ao dizer que "nenhuma pessoa pode ser
privada da vida, liberdade e propriedade sem o devido processo legal", e XIV (1868),
que vinculou os Estados da Federação à cláusula e daí irradiada para o sistema
constitucional de inúmeros países.
Foi com essa índole que a garantia vigorou na velha Inglaterra, por imposição da Magna
Carta (LGL\1988\3), e daí ingressou nas Cartas coloniais da América do Norte e, depois,
na 5.ª e 14.ª Emendas da Constituição dos Estados Unidos.
Mais tarde, antes mesmo do fim do século XIX, o conceito se ampliou. A Suprema Corte
dos Estados Unidos, por meio de construção jurisprudencial bastante rica e criativa e
baseando-se em critérios de razoabilidade e racionalidade passou a promover a proteção
substantiva dos direitos fundamentais nas leis e atos estatais em geral contra a ação
irrazoável e arbitrária do Poder Público, primeiramente na área das economic matters,
expandindo-se, ulteriormente, para outros campos, sempre invalidando
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A essa evolução o Brasil não ficou alheio. Mesmo antes da Constituição de 1988 a
doutrina e a jurisprudência já entendiam consagrado o princípio do devido processo
legal.
A Constituição de 1988 consagra pela primeira vez o princípio de forma clara, límpida e
escorreita, no art. 5.º, inc. LIV, garantindo que "ninguém será privado da liberdade ou
de seus bens, sem o devido processo legal".
Pela inscrição do devido processo legal com espaço próprio e autônomo no elenco dos
direitos individuais e coletivos, pelos princípios que a Lei Maior consagra como
fundamentos da República, pelos objetivos que elege e pelo realce atribuído ao controle
da constitucionalidade pelo Poder Judiciário, pode-se assegurar sua acolhida nos dois
aspectos, isto é, em termos processuais e substantivos, como ocorre no Direito
norte-americano.
É certo que o "devido processo legal", pela sua importância e até para a caracterização
da garantia, enseja a formulação de muitas questões, dentre as quais, é de todo
conveniente abordar-se os princípios do contraditório e da ampla defesa no âmbito do
procedimento administrativo.
"Há de se dar larga amplitude ao termo - 'acusados em geral' para abrigar todas as
situações em que haja imputação a alguém de falta ou conduta ilícita e, não apenas no
sentido mais restrito, da possibilidade de já haver acusação formal (ou denúncia no
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processo penal) a deflagrar o inquérito administrativo ou a ação penal. "
Deveras, não pode a Administração suprimir direitos, desconstituir situações, sem que
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ouça o administrado "preliminarmente".
Em outras palavras, somente no caso concreto é que se verá se foi cumprido o due
process of law, que dependerá das circunstâncias, como dizia Holmes.
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3. Princípio do contraditório
Pode-se dizer, com Ada Pellegrini Grinover, que é do contraditório que brota a própria
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defesa. Mas também se pode dizer que a defesa é que garante o contraditório. A
questão tem grandes semelhanças com a história de quem nasceu primeiro: se o ovo ou
a galinha.
Para exemplificar, vale a pena mencionar a decisão proferida (13.11.1996) pela Juíza de
Direito Maria Fernanda de Toledo Rodovalho Podval, da 9.ª Vara da Fazenda Pública de
São Paulo (Autos n. 1217-95), na "ação declaratória" ajuizada por Paul Israel Singer em
face da Prefeitura Municipal de São Paulo e do Tribunal de Contas do Município de São
Paulo, visando a nulidade da decisão do Tribunal de Contas que, ao rejeitar as contas
municipais do exercício de 1991, relativas à gestão da prefeita Luíza Erundina,
determinou a responsabilidade do ordenador da despesa resultante da contratação de
serviços de pareceres.
4. Desdobramentos do contraditório
A parte tem o direito de saber o que consta do processo, ou seja, à parte deve ser
facultado o exame de toda a documentação constante dos autos.
A Administração raciocina no sentido de que tudo o que se passa do guichê para trás é
segredo.
Deve haver absoluto direito de conhecimento dos pareceres, das razões técnicas, sob
pena, inclusive, de ofensa aos princípios da lealdade e boa-fé.
Por ser pública a atividade da Administração, os processos que ela desenvolve devem
estar abertos ao acesso dos interessados.
O direito de acesso aos elementos do expediente só pode ser restringido por razões de
segurança da sociedade e do Estado, hipótese em que o sigilo deve ser resguardado
(art. 5.º, XXXIII, da CF/1988 (LGL\1988\3)); ainda é possível restringir-se a publicidade
dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem
(art. 5.º, LX, da CF/1988 (LGL\1988\3)).
O interessado tem o direito de ser ouvido. Tal direito não se resume a uma única
manifestação. Donde, significa mais do que ser ouvido apenas inicialmente, podendo
implicar, in concreto, que se deva dar ao administrado oportunidade de volver a
manifestar-se, tendo em vista o próprio desenrolar do procedimento com seus
incidentes.
Convém também ressaltar que a jurisprudência tem entendido que não pode a
Administração anular concurso e desfazer as nomeações de funcionário já no pleno
exercício dos cargos, independente do processo administrativo, com a garantia de ampla
defesa aos interessados. Assim, decidiu o STJ em Recurso em MS 1201. Recorrente: Ana
Clara Coelho Rodrigues e outros. Recorrido: Estado do Maranhão. Rel.: Sr. Min. José de
Jesus Filho.
Pouco importa o fato de não estar a motivação expressa no art. 37, CF/1988
(LGL\1988\3), no cap. VII, referente à Administração Pública. O art. 93, X, da CF/1988
(LGL\1988\3) obriga a motivação das decisões administrativas dos tribunais, portanto,
no exercício de suas funções atípicas.
Todavia, quando se lê o Diário Oficial depara-se com despachos como "indefiro por falta
de amparo legal". Ou, então: indefiro com base na manifestação de fls... e a
manifestação de fls. diz: deve ser indeferido por falta de amparo legal. Onde está a
motivação?
"a) É o que ocorre ao se cogitar do caráter 'prévio' da defesa, quer dizer, de sua
anterioridade em relação ao ato decisório.
"Com isso, não há de se admitir a punição pelo critério da 'verdade sabida', em virtude
do qual se conferia à autoridade o poder de aplicar de imediato penas leves (ex.:
repreensão e suspensão curta), quando tivesse conhecimento direto da falta cometida.
"c) Outro elemento da ampla defesa que, aplicado na esfera administrativa, suscita
controvérsia, situa-se na 'defesa técnica'.
"Por sua vez, a defesa técnica é a defesa realizada pelo representante legal do
interessado, o advogado. Várias justificativas surgem, de regra, quanto à defesa técnica:
equilíbrio entre os sujeitos ou paridade de armas, vinculado à plenitude do contraditório;
o conhecimento especializado do advogado auxilia a tomada de decisão parametrada
pela legalidade e justiça; a presença do advogado evita que o sujeito se deixe nortear
por emoções de momento, por vezes exacerbadas.
Quanto aos demais processos administrativos e aos processos disciplinares por infrações
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leves, deve-se exigir defesa técnica?"
A professora Odete Medauar entende que "a exigência de defesa técnica em todos os
processos administrativos implicaria a obrigatoriedade de defensoria dativa
proporcionada pelo Poder Público a todos os sujeitos sem advogado próprio, o que
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parece inviável. Por isso, deve ser exigida em processos cujos resultados repercutam
com gravidade sobre direitos e atividades dos sujeitos, como p. ex., demissão, cassação
de aposentadoria, interdição de atividades, fechamento de estabelecimentos, cessação
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do exercício profissional. Deve figurar como possibilidade nos demais processos".
Ana Lúcia Berbert Fontes manifeta-se a favor da presença do defensor técnico em todo e
qualquer processo administrativo disciplinar, como conseqüência da própria configuração
de um processo e da democratização na vida social. Mas admite atenuações à exigência
para não se levar às últimas conseqüências e não prejudicar o desenvolvimento das
apurações, propondo o rito sumário especial para penas brandas, para o qual se
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dispensaria, embora não se proibisse, a presença do profissional habilitado. Na lei
federal de processo administrativo norte-americana, o right to counsel se coloca como
possibilidade, não como exigência (atual § 555, alínea b).
Sempre que houver prejuízo à parte, a defesa técnica faz-se imprescindível; apenas no
caso de, efetivamente, não haver prejuízo poder-se-á dela prescindir. Porque considera
que, sem defesa técnica, na verdade, no mais das vezes, sobretudo nos processos
disciplinares, não se tem ampla defesa, defesa realmente eficiente, defesa em que haja
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efetiva possibilidade de amplo contraditório e exaustão das provas.
Nesse sentido já decidiu o STJ em acórdão de 01.12.91, em que por unanimidade foi
dado provimento ao recurso em: MS n. 1.074, Recorrente: Hermes Ferreira da Silva -
Recorrido: Estado do Espírito Santo - Rel.: Sr. Min. Peçanha Martins.
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Ap. 35.725-1 - 3.ª T. - J. 10.11.93 - Rel. Des. João Carlos Brandes Garcia.
6. Observações finais
Cumpre ressaltar ainda que o devido processo legal é o gênero do qual todos os demais
princípios constitucionais do processo são espécies. Pode-se afirmar que, em face do
agigantamento do Estado e do fortalecimento do Executivo, "o instituto do due process
of law encontrou nas searas do Direito administrativo um campo extremamente fértil
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para a sua mais recente afirmação". Indubitavelmente é na adscrição ao devido
processo legal, no modus procedendi, que residem as garantias dos indivíduos e grupos
sociais.
Por derradeiro, o princípio do devido processo legal deve ser completado na prática com
a progressiva acolhida da razoabilidade e da proporcionalidade das leis, na
jurisprudência de nossos tribunais superiores, o que, por sinal, já vem ocorrendo, para
que possa assegurar, efetivamente, o respeito aos direitos e liberdades individuais,
atuando contra o arbítrio e o despotismo.
(2) ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO,
Cândido R. Teoria geral do processo. M. 13. ed., 1997, p. 82.
(3) FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito administrativo. Malheiros, 2. ed., p. 286.
(4) Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Do direito de defesa em inquérito administrativo, RDA.
183: 9-18, p. 10.
(5) Do direito de defesa em inquérito administrativo, RDA 183 - 9-18, 1991, p. 13.
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Registra ainda a jurista: "isso não é casual nem aleatório, mas obedece à profunda
transformação que a Constituição operou no tocante à função da Administração Pública,
no pressuposto de que o caráter democrático do Estado deve influir na configuração da
Administração... Nessa linha, dá-se grande ênfase, no Direito administrativo
contemporâneo, à nova concepção da processualidade no âmbito da função
administrativa, seja para transpor para a atuação administrativa os princípios do 'devido
processo legal', seja para fixar imposições mínimas quanto ao modo de atuar da
administração" ( op. cit., p. 10-11).
(7) FIGUEIREDO, Lúcia Valle . Estado de Direito e devido processo legal, no prelo. Em
seu Curso de direito administrativo, 2. ed., Malheiros, p. 286, salienta a jurista que, nas
situações contempladas no art. 5.º, LV e LXXII, da CF/1988 (LGL\1988\3) - possibilidade
de retificação de dados em processo administrativo - haverá absoluta necessidade de
contraditório; ou, ainda, na aplicação do § 1.º do art. 41, em que também há referência
expressa a ampla defesa.
(19) OAB. Trib. de Ética. Proc. E-1562, rel.: Dr. Carlos Aurélio Mota de Souza. Art. 23 do
Código de Ética: "É defeso ao advogado funcionar no mesmo processo,
simultaneamente, como patrono e preoposto do empregador ou cliente.
(21) Cf. CASTRO FONTES, Ana Lúcia Berbert de. Garantia do devido processo legal -
princípio constitucional da Administração Pública. Salvador : RPGE 14:93-106,
jul./dez./1990, p. 101.
(23) SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. O devido processo legal e a razoabilidade
das leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro : Forense, 1989, p. 319.
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