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J. Favez-Boutonnier 1
Tais são as regras, não escritas, desta aprendizagem. Não escritas, porque no
Brasil, atualmente, ainda não existe regulamentação específica a respeito. A rigor, o
uso adequado dessas técnicas tem por única garantia a honestidade do usuário.
Esse tipo de formação, no entanto, acarreta outro perigo além da simples
incompetência: estabelece-se em termos de tradição, passada, de modo por assim
dizer artesanal, do mestre para o aprendiz, longe do quadro acadêmico. Desta
maneira, corre-se o risco de perder de vista o referencial científico geral, valorizando
a autoridade do mestre, esquecendo-se das revisões critica. De um treinamento
geralmente bem intencionado, chega-se à transmissão ritualista de uma soma de
receitas.
A infelicidade da psicologia clínica começa pelo nome. Conta a tradição que foi
batizada pelo americano Lightner Wittmer, em 1896. Não parabenizaremos o
padrinho. 2 Pois “clínica” vem do grego , que significa cama. Para os gregos,
era o médico que visitava os doentes acamados e, por extensão,
(a clínica) passou a designar os cuidados prodigados pelo médico ao doente. A
psicologia clínica, de imediato, se associa à idéia de doença. O seu nome está
ligado à prática médica, e nisso se envolve numa ambigüidade que vem onerando,
pesadamente, a atuação do psicólogo. A psicologia clínica descende, em linha
direta, da psicopatologia, e dela se alimenta. Diagnóstico e terapia são suas duas
grandes especialidades. O engenhoso acréscimo que as transformou em
psicodiagnóstico e psicoterapia não conseguem disfarçar a evidência da filiação.
Não haveria problema nisso se a psicologia clínica conseguisse tornar-se autônoma,
se elaborasse os seus próprios conceitos e a sua linguagem específica. O que se
observa, contudo, é o apego irrestrito à linguagem da psicopatologia.
Foge ao nosso objetivo descrever aqui as diversas facetas daquilo que Castel, com
muita propriedade, chamou de psicanalismo.3 Citaremos apenas esse autor quando
afirma que a patologização da fala cotidiana deve ser creditada ao “imperialismo da
psicanálise”. As conseqüências “da capilaridade entre as noções de normal e
patológico” funcionam de maneira dupla. Talvez seja bom despatologizar o discurso
mórbido, mas o inverso? “O prejuízo é de todos, se ninguém jamais poderá escapar
3
da suspeita médica, ou paramédica, nem que seja sob as formas benignas que o
menor palavrório psicanalítico expressa: defesas, resistências, etc.”. 4
Pois o indivíduo não será avaliado em relação a algum “modelo”, este modelo de
“normal” cuja vacuidade se presta a todas as caricaturas. O diagnóstico procurará
dizer em que ponto de sua existência o indivíduo se encontra e que feixe de
significados ele constrói em si e no mundo. Desta maneira, para citar mais uma vez
Goldstein, “cada homem será a medida de sua própria normalidade”. 11
Isto não quer dizer que se vá cair no solipsismo, em protesto contra a normalidade
“normativa”. Pois o processo de criação foi definido como sendo construído dentro
da realidade, logo, dentro do mundo das inter-relações. Existir e coexistir. Não
haverá, portanto, possibilidade de um indivíduo ser normal para si e tornar-se ao
mesmo tempo incomunicável para os demais. Da mesma maneira que o existir, o
coexistir se constrói dialeticamente.
Nas páginas que seguem serão abordados grandes temas da existência. A partir
destes, procurar-se-á deduzir modalidades de compreensão de diversas vivências.
Nada de intrinsecamente novo será mostrado, a não ser o enfoque. (página 16)
Trata-se de dirigir um novo olhar sobre os diversos vetores que compõem a situação
de diagnóstico. Na medida do possível, tentar-se-á relegar as informações já
consagradas que possam vir a constituir-se em visões preconceituosas,
prejudicando a apreensão dos fenômenos. Desta maneira, as técnicas clássicas de
exame serão enfocadas, sob os diversos ângulos fornecidos pelas grandes
temáticas existenciais. Não se tenciona destruir aquilo que já fora considerado como
óbvio, mas sim trazer um enriquecimento, dentro de uma nova perspectiva.
NOTAS DO CAPITULO I
(página 18)