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A estética modal de Nicolai Hartmann na obra poética

de Herberto Helder

«até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza»

Introdução
Essa pequena investigação abrange a temática da poética e estética através de dois grandes
representantes de ambas: Herberto Helder e Nicolai Hartmann. Tanto a poesia como a
inspiração poética já foram descritas através de diferentes perspectivas ao longo da história do
conhecimento humano. Raymond Bayer em ​Historia de la Estética afirma que na antiguidade,
Platão concebeu uma teoria de arte que não é bem um sistema, mas nela, ele conseguiu
enumerar todas as formas de arte. A partir dessa teoria, as artes passaram a ser julgadas a
partir de algum objeto e não por elas mesmas.”1 Contudo, nessa teoria Platônica de arte, a
poesia foi considerada como portadora de uma estética reacionária e tida como a mais imoral
das artes, pois enfatiza as paixões humanas e por isso, convida o homem a um não
abrandamento da alma. 2

Por outro lado, Aristóteles, que segundo Bayer, pode ser considerado um lógico da estética, e
não um estético,3 teve como preocupação principal a constituição orgânica dos seres e das
coisas e por isso, seu interesse nas artes tinha como principal intuito chegar a um
entendimento sobre a atividade final do artista. Para Bayer, Aristóteles diferencia as ações e
as criações artísticas de um lado e os objetos da natureza de outro e considera que os atos e as
obras de arte estão submetidos ao mesmo princípio de causalidade da natureza. Na obra
poética, Bayer afirma que Aristóteles faz uma distinção entre história e poesia e infere que o
possível é o objeto único da poesia. É sabido que Aristóteles desenvolve o conceito de poesia
como "imitação de acção", uma arte praticada mediante a linguagem, Em ​Poética​, ele

1
Bayer, Raymond. História de la estetica. Traducción de Jasmin Reuter. Ed. Fondo de cultura
económica. 1965. P. 40
2
Bayer, Raymond. História de la estetica. Traducción de Jasmin Reuter. Ed. Fondo de cultura
económica. 1965. P. 40
3
Bayer, Raymond. História de la estetica. Traducción de Jasmin Reuter. Ed. Fondo de cultura
económica. 1965. P. 44
categoriza os tipos de poesia a partir das qualidades dos indivíduos que praticam a acção
(objecto), do meio por que se imita e do modo como se imita.

Outra perspectiva sobre a poesia que é interessante destacar nessa introdução é a de Hegel.
Márcia Gonçalves explica que segundo ele, a linguagem poética é a linguagem em sua “forma
propriamente estética”4. Ela afirma que ele compara a poesia ao fenômeno da experiência
oracular e o oráculo é “a linguagem própria do deus”5. Nesse sentido, a poesia é para Hegel,
segundo Gonçalves, uma “obra essencialmente espiritual”6, pois ela revela a subjetividade
consciente ou a consciência do espírito, a partir do “reconhecimento de que o divino é
conteúdo, e portanto resultado, da própria criação poética.”7 Contudo, o filósofo de maior
importância neste estudo é Hartmann e nesse sentido, ele compactua, em partes, da
perspectiva da arte poética enquanto fenômeno criado pela inspiração do espírito do artista.
Mas ele não faz uma separação tão acirrada entre o aspecto humano e o aspecto divino como
faz Hegel.

A ideia de associar o poeta à figura de um mago capaz de encantar o mundo segundo os seus
desejos é para Hartmannn, o resultado de um pensamento onde a visão do artista pode
descobrir os segredos da natureza e da vida espiritual em virtude de uma consciência de
reconhecimento de um universo que tem, como plano de fundo, uma mesma essência. Nesse
sentido, Hartmann faz questão de distinguir o ato artístico do ato cognoscitivo, entre a visão
8
do objeto e do trabalho intelectual analítico. Além disso, de acordo com Manuel Pérez
Cornejo, na questão estética e que envolve a criatividade, Hartmann assumiu a consciência do
pensamento da “morte de Deus”9, definindo o homem como o único ente criador de valor que
existe no mundo real. Nesse contexto, a atividade poética seria para ele, uma expressão desse
potencial humano criador. É exatamente a poética enquanto expressão do potencial criador do
homem que é o principal objeto desse estudo, que tem como objetivo fazer uma reflexão
sobre a estética da poesia de Herberto Helder, sob uma perspectiva da filosofia de Nicolai
Hartmann.

4
Gonçaves, Márcia. Uma concepção dialética da arte a partir da gênese do conceito de trabalho na
fenomenologia do espírito de Hegel. vol.46 no.112 Belo Horizonte Dec. 2005. P. 269. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2005000200010
5
Idem
6
Idem
7
Idem.
8
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 06
9
Cornejo, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Madrid, 2002, p. 5. Disponible en
https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
1
A Ontologia de Nicolai Hartmann: considerações essenciais

De modo geral, é possível afirmar que a obra de Hartmann está centrada em dois
principais aspectos: ser e conhecer, ou seja, ontologia e epistemologia. No aspecto
ontológico, Herbert Spiegelberg afirma que Hartmann tece uma crítica sagaz à tentativa da
metafísica de procurar uma unidade ordenada para o mundo.10 O fato é que para Hartmann, a
ontologia entrou em decadência no final do século XVIII e segundo ele, ela é a doutrina que
trata da modalidade do ser, das características mais universais dos entes ou em outras
palavras, uma doutrina que “otorga finalmente a aquel que quiere apresar el ente la dirección
11
para ello”. Desse modo, ao que concerne à perspectiva ontológica, Carlos Morujão explica
que Hartmann propõe duas distinções: em primeiro lugar, a distinção entre o ser em si e o que
esse ser é, como resultado de um processo de desenvolvimento. Em segundo lugar, está a
distinção entre o ser ideal e o ser real. De modo geral, Morujão acrescenta que as duas
distinções não se sobrepõem, porque tanto para o ser ideal como para o ser real vale a
distinção entre ser em si e o que esse ser é. Para ele, o pensamento de Hartmann tem como
base a ideia que o que esse ser é de um ser real é também um ser real. Veja a transcrição
usada por ele no artigo ​Delfim Santos, Hartmann e Heidegger​: “Se uma árvore é verde, o
verde da árvore é tão real quanto a própria árvore. Por sua vez, o ser em si é sempre ideal ou
12
rea1.” Sendo assim, o que Hartmann denomina como ser real “pode dividir-se em real da
atitude natural, real do conhecimento científico e real do conhecimento filosófico.”13 O ponto
é que Morujão entende que é dessa relação que Hartmann faz entre o ser real e ideal que
resulta a necessidade de uma doutrina das categorias, que constitui o fundamento da ontologia
de Hartmann, onde as categorias estruturam o modo de pensar cada uma destas três regiões do
ser, como lhes poderíamos chamar. Hartmann afirma que as estruturas do ente se deixam

10
SPIEGELBERG, Herbert. The phenomenological movement - a historical introduction. Ed. Srpinger.
Volume I. P. 365. Disponible en:
https://archive.org/details/HerbertSpiegelbergThePhenomenologicalMovement
11
HARTMANN, Nicolai. Estética. Ed. Universidad Autonóma de México. Trad. Elsa Cecília. Mexico.
1977. P. 523
12
MORUJÃO, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Repositório Universidade Católica
Portuguesa. P. 06. Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
13
Idem
2
também aproveitar como categorias e assim, toda ontologia do filósofo se converte em uma
teoria das categorias, onde os graus da modalidade são as categorias mais universais e
fundamentais tanto do ente como também do conhecimento do ente.14 Nas palavras de
Hartmann:

"Se trata, pues, de si el ser posible puede pasar por un "estado" junto a otros estados del
ente, más aún, de si cabe concebir con exactitud los modos de ser como estados del ente - o,
en primera línea, de lo real. Porque pudieran ser también elementos estructurales de la
manera de ser, y entonces no aparecería separados, sino contenidos indisolublemente en
todos y cada uno de los entes para constituir su manera de ser por la forma de estar
vinculados. Su relación no sería entonces exclusiva como la de las maneras de ser
(idealidad y realidad), sino una relación de complemento mutuo, como la de los momentos
del ser ("ser ahí" y "ser así")." 15

Bem, o conteúdo mencionado acima é essencial para introduzir a essência do


pensamento de Hartmann. Além disso, também é importante ressaltar a informação contida na
investigação de Nicolas Tertulian intitulada como ​Sobre o método ontológico-genético em
Filosofia, o​ nde ele aponta que Hartmann foi o primeiro filósofo importante que enfatizou uma
crítica à perspectiva ontológica de Heidegger e no livro ​Zur Grundlegung der Ontologie
(Contribuição à fundação da Ontologia), publicado em 1935, ele questiona a legitimidade com
que Heidegger fixa como objetivo primordial da ontologia a resposta sobre a questão do
“sentido do ser”. Tertulian explica que como Hartmann concordava com os preceitos
aristotélicos, ele discorda de Heidegger e considera que antes de priorizar a questão do
“sentido do ser”, é crucial lembrar que qualquer sentido só pode existir perante a existência de
um sujeito e a perspectiva de Heidegger é para ele, incompatível com a trans-subjetividade do
ser. 16 Essa explicação de Tertulian é importante porque esse mesmo pensamento de Hartmann
estará, de algum modo, presente dentro da sua estética. Ainda dentro do estudo executado por
Tertulian, é possível perceber que Hartmann fez também duras críticas sobre o conceito de
forma substantialis, ​encontrado em Aristóteles ou o conceito de “razão universal”
(Weltvernunft) em Hegel.17 Tertulian ainda complementa que outros alvos da crítica de

14
HARTMANN, Nicolai. Ontologia. II Posibilidad y efectividad. Traducción de José Gaos. Fondo de
Cultura Economica. Mexico - Buenos Aires. 1956.
15
Idem. P 13
16
TERTULIAN, Nicolas. Sobre o método ontológico - genético em filosofia. Revista Perspectiva , nº
(Universidade Federal de Santa Catarina). V . 27 nº 02. 2009. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2009v27n2p375/15286
17
TERTULIAN, Nicolas. Sobre o método ontológico - genético em filosofia. Revista Perspectiva , nº
(Universidade Federal de Santa Catarina). V . 27 nº 02. 2009. P. 08. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2009v27n2p375/15286
3
Hartmann foram as questões sobre determinismo ou necessidade enquanto a absolutização da
categoria de causalidade.18 Tertulian conclui que inclusive, o pensamento de Hartmann foi
fundamental para proporcionar uma outra matiz às perspectivas teleológicas e deterministas
19
do pensamento de Marx, contribuindo com a obra de Lukács. Sobre a questão da
necessidade, Tertulian afirma que Hartmann assumiu que a relativização da necessidade é
justificada no momento em que é possível considerá-la como o primeiro elo de uma cadeia
causal, desde que revestida por um caráter contingente.

Em particular, de acordo com Morujão, ao que se refere à análise gnosiológica sob a


perspectiva de Hartmann, é preciso fazer distinção entre o aparecimento, as formas do
aparecimento e o aparente. Bem, esse aparecimento pode ser do ser-real como do ser-ideal,
uma vez que numa aparência há ainda algo que se mostra. Desse modo, segundo ele,
Hartmann conclui que o conhecimento é apenas um meio de acesso à realidade, um meio que
depende do homem, diferente da realidade, que independe dele.20 O conhecimento estético é,
para Hartmann, um modo de conhecimento. Cabe então evidenciar que essa apreensão do
conhecimento se complementa ao que constitui o "ser así" do ente, que é a principal
modalidade das categorias ontológicas. Veja o que Hartmann tem a dizer sobre isso:

"Todas las categorias que se hallan por encima de la modalidad son categorías constitutivas;
todos los ejemplos en que puede hacerse algo tangible están diferenciados por su contenido,
y las determinaciones que les arrancamos lo son del "ser así", no del "ser ahí" ni de los
modos de éste."

Hartmann complementa que as diferenças de modalidades não são submetidas por ele
(ser ahí) de modo direto, mas sim de uma maneira indireta. O dinamismo entre as categorias
ocorre sempre do particular para o universal. A perspectiva de Merleau-Ponty sobre essa
temática pode contribuir no entendimento do pensamento de Hartmann. Sobre a busca da
essência do ser do mundo, Merleau-Ponty também considera o papel do sujeito e para ele, o
papel da filosofia é este “vínculo umbilical” que liga o ser ao mundo e nele, procurar o
sentido do seu ser para nós. De acordo com Merleau-Ponty, o sentido pode ser considerado
como aquilo que sem o que não haveria mundo. Desse modo, o sentido é para ele essência,
perspectiva que conduz para uma antiga tradição filosófica, onde a essência seria a questão

18
Idem. P. 08
19
Idem.
20
MORUJÃO, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Repositório Universidade Católica
Portuguesa. P. 09. Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
4
última. Desse modo, ele interroga: “Com a essência e o espectador puro que a vê, estaríamos
21
verdadeiramente na fonte? O ponto de convergência entre Hartmann e Merleau-Ponty
ocorre, principalmente, na perspectiva de movimento do ser. Para Merleau, a visão concreta e
encarnada no mundo não se faz de cima para baixo, mas do meio do mundo que rodeia o ser,
que está atrás, acima, abaixo e diante dele. A essência do ser está no que ele define como
configuração concreta e situada que permite esse ser aparecer. Logo, para Merleau, a essência
não aparece de uma “possibilidade de reflexão” que é capacitada para representar um ideal,
mas atua como um “logos do mundo estético” que contorna, configura e se apresenta
escondida por outras. 22. Tal como Merleau, a proposta ontológica de Hartmann envolve esse
descortinamento de camadas. Nas palavras dele:

"Esta manera indirecta hace la consideración de ellas dependiente de otras,


sujetándola a la ley metódica de la perspectiva de términos de dirección
descendente. Esta ley quiere decir que pueden hacerse sensibles desde las
capas superiores del ser las categorías de las inferiores (porque en general se
hallán éstas contenidas en aquéllas), pero no a la inversa."

A apreensão conceitual dos modos não é alcançada dentro da consideração dos


conteúdos, mas sim é algo que se modula num “eixo de equivalências”23 , algo que opera de
modo ativo e Hartmann reconhece o desafio dessa afirmação, assim como também reconhece
a dificuldade metodológica da análise modal, uma vez que a intuição necessária anula
parcialmente a si mesma. Entretanto, como será possível verificar em detalhes num momento
posterior, a solução que Hartmann encontra para essa dificuldade é relacional ou sistêmica:

"El problema más obscuro de la ontología recibe aquí luz: la esencia del ser real y del ser
ideal, que en sí misma no es apresable de ninguna manera, resulta aproximadamente
determinable partiendo de la relación de los modos entre si."

Essa última afirmação de Hartmann será essencial para a compreensão deste trabalho.
De acordo com Hartmann, foi a filosofia de Hegel que proporcionou a possibilidade de
evidenciar o “parecer”, onde a ideia alcança a plenitude do “ser para si”, ou seja, um saber
idêntico sobre si mesma, que Hartmann denomina de conceito. Para ele, é a intuição sensível

21
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira | NÓBREGA, Terezinha Petrucia da Nóbrega. Compêndio
Merleau-Ponty. Editora LiberArs. San Paulo. 2016. P. 106
22
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira | NÓBREGA, Terezinha Petrucia da Nóbrega. Compêndio
Merleau-Ponty. Editora LiberArs. San Paulo. 2016. P. 107
23
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira | NÓBREGA, Terezinha Petrucia da Nóbrega. Compêndio
Merleau-Ponty. Editora LiberArs. San Paulo. 2016. P. 108
5
que proporciona às artes sua superioridade sobre o conceito. Entretanto, Hartmann considera
como um grave erro sustentar que a apreensão estética (também chamada de intuição) é um
tipo de apreender ou que está no mesmo nível do apreender cognoscitivo.

Nicolai Hartmann: introdução a uma ontologia da estética

“O olhar é um pensamento.

Tudo assalta tudo, e eu sou a imagem de tudo.

O dia roda o dorso e mostra as queimaduras,

a luz cambaleia,

a beleza é ameaçadora.

— Não posso escrever mais alto.

Transmitem-se, interiores, as formas.”

Hartmann finalizou a obra intitulada Estética ao final da segunda guerra mundial e ela
foi publicada em 1953.24 Nicolai Hartmann é um fenomenólogo e compartilha da ideia da
compreensão da estética como algo que pertence ao entendimento de um todo.

De modo geral e como uma introdução ao assunto, é importante mencionar que no


referido trabalho, ele considera que a arte existe como um fenômeno no mundo. A partir dessa
perspectiva fenomenológica, o filósofo considera um objeto artístico como uma estrutura
modulada por estratos que estão distribuídos na forma desse objeto que, segundo Joel
Hernandéz Otañez, vai muito além da mera percepção sensorial e respeita uma estratificação
de elementos que se relacionam entre si com coerência interna. A análise de estratos sugerida
por Hartmann não é igual em todos os tipos de arte e variam conforme critérios específicos
para cada gênero artístico. 25

24
JONKUS, Dalius. La fenomenologia de la razón y la experiencia estética. Investigaciones
fenomenológicas, nº 11. Lituania. 2014. P. 140 Disponível em: ​https://vb.vdu.lt/object/elaba:6119732/
25
OTAÑEZ, Joel Hernanández. La obra de arte: fenómeno y estructura. Aportaciones estéticas de
Nicolai Hartmann. Murmullos filosóficos. P. 90. Disponível em:
http://www.revistas.unam.mx/index.php/murmullos/search/search
6
Bem, como dito, Hartmann considera a arte como um fenômeno do mundo e nesse
caso, a estética não pode ser considerada somente um mero prolongamento dela e tampouco
uma etapa superior pela qual a arte passa. Para ele, a estética transita pela esfera do mistério
que as artes procuram guardar. É como se ela tentasse o tempo todo adentrar nessa esfera para
tornar cognoscível as estruturas da arte. Além disso, o objetivo da estética também é captar o
que está ao redor da contemplação do objeto artístico, o ato de prazer que um indivíduo pode
desfrutar ao contemplar uma obra de arte “enquanto o pensamento não o dissolve nem
perturba.”26 Desse modo, a estética é uma ferramenta de conversão: ela olha para o ato de
contemplação e “transforma em objeto o que nesse ato não é e nem muito menos poderia ser”
27
. Diante desse mistério insondável que a arte é, o objeto artístico é para a estética algo
diferente e atua como um objeto de meditação e investigação. Em virtude dessa variedade de
possíveis análises, Hartmann afirma que a atitude do estético não é exatamente a mesma coisa
que uma atitude estética, há portanto, uma diferenciação entre eles.

A poesia, principal objeto artístico de investigação deste estudo, é uma forma de arte e
esta por sua vez, abrange inevitavelmente o âmbito da beleza e inspiração, temas que sempre
foram do interesse do saber filosófico, o que determinou que a estética seja considerada até
hoje um importante desdobramento da filosofia. Por isso, é interessante pensar a linguagem
poética como um fenômeno de manifestação artística que envolve a capacidade humana de
atuar no mundo porque de modo geral, pensar sobre a arte é analisar os valores estéticos. Por
exemplo: o que afinal, é a beleza? Há beleza na poesia? O que mais há além da beleza? Esse
tipo de reflexão é o que, segundo Manuel Pérez Cornejo, permite a descoberta dos princípios
categoriais apresentados por Hartmann e que fazem parte da estrutura fundamental das obras
de arte.

Em “​La Estética de Nicolai Hartmann: una investigación filosófica en tomo al mundo


del arte”​ , Manuel Pérez Cornejo menciona que Platão, Plotino e toda a filosofia neoplatônica
posterior pensaram a beleza como uma ideia que pode ser imitada pelos objetos do mundo
sensível. Portanto, há nesses pensadores a idealização da beleza. Ele acrescenta que por outro
lado, Hegel, o principal representante da fenomenologia, afirmou que o conceito do belo não
teria assim tanta relação com a ideia de beleza, ou um ideal do que é belo, mas seria um

26
HARTMANN, Nicolai. Estética. Ed. Universidad Autonóma de México. Trad. Elsa Cecília. Mexico.
1977. P. 12.
27
Idem
7
elemento representativo do “aparecer sensível da ideia”, ou seja, o belo seria aquilo que
aparece ou deixa-se ver no mundo sensível. A fenomenologia pretende desmontar a dualidade
originada com o platonismo: onde uma coisa é o mundo da materialidade e outra coisa é o
mundo do pensamento.28

De acordo com Cornejo, Hartmann faz uma crítica ao pensamento fenomenológico de


Hegel, crítico da dicotomia sujeito-objeto, e a aplica no âmbito da arte, “afirmando que a
beleza das obras artísticas não reside nem na aparência sensível das mesmas, nem nas ideias
ou valores universais que se manifestam através delas, mas sim no ​aparecer de tais ideias e
valores universais, na forma de um plano de fundo irreal na superfície dessas obras.”29 Em
outras palavras, Hartmann considera que o belo é aquilo que está presente ontologicamente e
pode ser evidenciado na realidade do mundo enquanto objeto que pode ser contemplado, mas
para isso precisa estar em constante relação com aquele que é o sujeito dessa contemplação. A
existência do objeto artístico só é possível através do processo criativo do “espírito
humano”que o projeta no mundo e só pode permanecer como tal ao ser percebido por outro
“espírito humano” que o contempla.

Para Nicolai Hartmann, a Estética é uma categoria de conhecimento que tem uma
tendência para converter-se em ciência, desde que tenha como objeto a entrega e o êxtase que
produzem o belo. Como foi mencionado, ele não considera que a a arte e a estética sejam
somente prolongamentos uma da outra e tampouco a visão do contemplador. Há na estética
algo mais, para Hartmann, a estética é uma ferramenta de desvelamento do mistério que a arte
guarda por todos os meios possíveis e nesse sentido, a sua função envolve o ato de
contemplação, que existe em razão do pensamento. Ora, em virtude do ato de contemplação, a
beleza, enquanto valor intrínseco da arte, possui dentro da filosofia de Hartmann uma função
essencial no estudo da estética, sendo esse o principal conceito dessa ciência que se limita a
duas principais questões: “a análise da estrutura e do modo de ser do objeto estético e a
30
análise do ato contemplativo, do outro”. Assim, a formulação do valor da beleza ou da
“forma bela”, para Hartmann, é abrangente e engloba tanto as nobres proporções de uma

28
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Compêndio Merleau-Ponty.
Editora LiberArs. 1ª edição. São Paulo, 2016. P 354.
29
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 543.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf
30
Kirchof, Edgar Roberto. Estética e semiótica de Baugmgarten e Kant a Umberto Eco. EDIPUCRS,
2003. p. 19
8
escultura, a distribuição dos espaços na arquitetura, o ritmo e a sequência de intervalos em
uma melodia, a construção de toda uma “frase” musical ou da estrutura cênica, muito artística,
de uma obra de teatro, mas também o jogo de linhas de uma paisagem, a majestosa
configuração de uma árvore gigante, a fina nervura de uma folha. 31 “Tal como na formulação
do velho ​eidos aristótelico, a forma Hartmanniana do belo é tida como forma essencial. 32

Entretanto, Hartmann reconhece a dificuldade de aceitar uma concepção de um reino ideal de


essências preexistentes e fazer depender dele o enigma do sentido das formas que surgem de
imediato no contemplador. A partir dessa dificuldade e através de uma análise categorial, ele
aproxima a forma bela da própria ideia de beleza e afirma a necessidade de fazer uma
aproximação entre o conteúdo e a forma e assim, ele comprova a “lei geral-categorial da
matéria” que diz que em todas as regiões de objetos, a matéria codetermina a forma, na
medida em que nem todo tipo de forma é possível em cada matéria, mas sim só um
determinado tipo de forma en una materia determinada.

Portanto, há então as categorias que atuam como princípios ônticos que permitem
apreensão do objeto artístico pela reprodução, que capta a relação dinâmica entre os estratos.
Em suma, se trata de um “ver através de” que abrange a percepção e adentra num poderoso
processo de descortinamento que mira o âmago, que passa pelo externo, pela matéria, pois
está carregada de valores, ainda que transitório, mas sempre contínuo e dinâmico. Nas
palavras de Hartmann: “En la conciencia estética, la percepción no se dirige tampouco a la
conexión objetiva de las cosas, sino a otra conexión que consiste sólo en la relación al sujeto y
33
a su manera de ver.” Nesse ponto, a objetivação do subjetivo atua como uma simulação da
realidade percebida pelo “percipiente” estético. Nela, os estratos não são acessíveis aos
sentidos, mas é todo um mundo interior que tem intrínseca uma disposição de abertura através
da forma à intuição, que é autônoma. Hartmann faz um esforço para deixar clara essa relação,
que define como relação do aparecer, justamente por ser uma relação estrutural que está
contida no objeto. As formas de objetivação são diferentes e a função delas é acolher o
conteúdo apreendido, obedecendo sempre à condição material. É fundamental perceber que na
categorização de Hartmann, o primeiro plano, que é o material, é real. Aquilo que surge
depois na relação do aparecer é, então, o conteúdo irreal:

31
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição.
P. 18
32
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição.
P. 18
33
Idem. P. 63
9
Siempre, sin embargo, fugaz o duraderamente, se cumple la ley de la
objetivación: la imagen total tiene dos estratos y desde luego tiene la
heterogeneidad característica de los estratos, tanto según la estructura como
según el modo de ser. Pues sólo el primer plano, el producto material,
sensible, es real, el trasfondo que aparece, el contenido espiritual, es irreal.
Aquél existe en sí junto con su plasmación, éste, por el contrario, "para" un
espíritu vivo dispuesto a recibir, que pone lo suyo y se convierte en
reproductivo al aprehender.34

A apreensão estética trata-se, em suma, de captar esses dois planos e os estratos


contidos neles. De acordo com Hartmann, a captação desses conteúdos irreais impregnados no
plano de fundo de uma obra de arte não é conceitual, mas acontece de modo intuitivo e assim,
esses conteúdos aparecem ao sujeito contemplador entrelaçados às formas sensíveis da
superfície. Essa percepção proposta por Hartmann acontece, segundo Cornejo, no âmbito da
imaginação ou sentimento e a obra de arte permite a experimentação da visão dos valores
35
categoriais do objeto estético. A partir daí, Hartmann faz diferentes classificações para as
distintas obras de arte e usa como critério para essa diferenciação a matéria do primeiro plano
real que as obras possuem e os estratos que elas contém. Desse modo, as artes podem ser
classificadas em três grupos: artes não representativas ou formais, artes representativas e artes
combinadas.

As artes não representativas (ou formais) se caracterizam pelas ausência de conteúdos


extraídos da realidade, por exemplo, a Ornamentação, a Arquitetura e a Música. No entanto,
as artes representativas, ao contrário, abrangem conteúdos extraídos da realidade, por
exemplo a Escultura, a Pintura e a Literatura. As artes combinadas abrangem elementos
procedentes dos anteriores, como é o caso do Cinema e da Ópera.36 Como é possível perceber,
as artes representativas, mais especificamente a poesia, é o objeto de interesse desta
investigação.

34
Idem. P. 106
35
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 544.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf
36
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 545.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf

10
De modo geral e em resumo, Hartmann considera que as artes representativas possuem
uma estrutura mais complexa, pois nelas, o plano de fundo está dividido em uma
multiplicidade de estratos. De igual forma, Merleau-Ponty afirma que “o reino da ficção,
ligado inevitavelmente com o perceptivo, é mais propício para dar conta da multiplicidade na
qual consiste a nossa realidade e darmos conta de nós mesmos nela.”37 No caso da literatura,
aparecem simultaneamente os sentimentos, as emoções dos personagens, suas características
essenciais, o destino particular de cada um dos protagonistas, a trama vital formada pelo
cruzamento de seus destinos, os conceitos gerais sobre o mundo e a existência que orientam
as ações e valores e desvalores que realizam tais personagens ao atuar no mundo através de
suas decisões. Uma análise detalhada dos estratos na literatura será feita num momento
posterior deste trabalho. Por ora, é importante ainda permanecer na perspectiva geral do
objeto artístico, independente da sua classificação, e na relação de aparecer.

Esta permanência na relação de aparecer é importante para esclarecer a questão sobre


o que Hartmann considera como objeto artístico. De acordo com Delfim Santos, um filósofo
português estudioso de Hartmann, nada pode ser objeto se, antes não for objetado, ou seja,
exposto diante de um sujeito, a partir do que, na linguagem de Hartmann, é chamado de Ser
trans-objetivo; que é simplesmente a capacidade para se tornar objeto.38 Desse modo, para
Hartmann, como já foi mencionado anteriormente, a existência de um objeto artístico só é
possível a partir da participação do sujeito receptor, que permanece fora de qualquer
estratificação posterior que pode ser feita sobre esse objeto. Portanto, ressalta-se que na
ontologia estética proposta por Hartmann, o foco está na relação do aparecer contida no objeto
estético. Em Merleau-Ponty, essa relação envolve uma perspectiva de “circularidade” entre o
sujeito perceptor e o objeto percebido, considerada como um diálogo entre dois momentos de
um mesmo fenômeno, mas que no entanto é tida ainda como enigma, assim como em
39
Hartmann. O belo estético contido no objeto é aquilo que aparece além da oposição ôntica
entre o primeiro plano e o plano de fundo. Em outras palavras, é possível dizer que o objeto
artístico permite um jogo de estratos que atua de modo quase que aporético para o sujeito que

37
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Compêndio Merleau-Ponty.
Editora LiberArs. 1ª edição. São Paulo, 2016. P 354.
38
Morujão, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Universidade Católica Portuguesa. P. 175.
Disponível em
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
39
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Compêndio Merleau-Ponty.
Editora LiberArs. 1ª edição. São Paulo, 2016. P 356
11
o observa e só existe na relação do aparecer para o sujeito da contemplação. Isso acontece
porque há no objeto estético um jogo de diferenças de conteúdo e estrutura entre os estratos.40

Delfim Santos considera que a relação proposta pela Estética de Nicolai Hartmann,
onde a arte e a atitude do artista atuam como objeto de estudo, não permite que o sentimento
ao redor do enigmático contido na arte se desfaça. Assim, a arte contém o enigma e abre um
universo de possibilidades para a investigação filosófica e o filósofo ao contemplar o belo
estético transita pela profundidade de um inconsciente muitas vezes impenetrável. 41 A partir
daqui é possível pensar a proposta de análise categorial na poesia, que é o objeto estético
desse trabalho.

As categorias de estratos na literatura

“A beleza é a ciência cruel, imponderável, sempre fértil, da magia? Então sim, então essa
energia à solta, e conduzida, é a beleza.” (Herberto Helder)

Uma das capacidades da arte é, para Hartmann, proporcionar um perceber e aparecer


da essência moral da personalidade em sua peculiaridade. Para ele, uma obra artística é
sempre um modo de relação entre estratos. A finalidade do pensamento categorial de
Hartmann é, justamente, respeitar as diferenças da arte e ao mesmo tempo, determinar as
categorias que são comuns a todos os níveis da realidade daquelas que são específicas de cada
uma delas, evitando, com isso, o que ele definia como monismo categorial. Carlos Morujão
reforça que Hartmann assumia que ao se estar consciente do alcance e da validade de cada
grupo de categorias, o pensamento evita a confusão entre as identificações parciais e o sentido
da totalidade, reconhecendo que sempre lhe escapa algo a exigir uma nova atividade de
identificação, e assim sucessivamente. 42

Nesse sentido, o estudo de Cornejo complementa e apresenta uma observação


interessante e geral sobre a questão do sistema de categorias:

40
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição. P.
194
41
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição. P.
07
42
Morujão, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Universidade Católica Portuguesa. P. 178.
Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
12
En efecto: no puede negarse el hecho de que todos los grandes constructores
de sistemas conceptuales han sido capaces de intuir principios o categorías
que les permitieron resolver problemas planteados por determinados grupos
de fenómenos; pero, al mismo tiempo, no es menos cierto que, al establecer
sus teorías, cometieron siempre una ‘<transgresión del límite”
(Grenztíberschreitung), consistente en trasladar las categorías descubiertas
en los niveles más altos o más bajos del Ser a dominios de fenómenos
distintos, por considerar que tales principios estaban dotados de un potencial
explicativo más universal del que realmente poseían. 43

Como foi mencionado no capítulo anterior, Hartmann considera que nas artes em
geral, a revelação artística ocorre a partir de um processo de ruptura do plano de fundo através
do jogo dinâmico de estratos. Nas artes representativas, como é o caso da literatura (e poesia),
o que determina essa ruptura é o aparecimento simultâneo dos estratos, numa mesma sucessão
e com a mesma dependência em que devem estar ônticamente.44 Portanto, a relação do
aparecer ocorre da esfera do anímico para a esfera do orgânico para somente assim, chegar ao
material. É assim que a relação transcende o limite e chega na percepção anacrônica do Ser
através dessa organização significativa do objeto artístico É importante frisar que a relação do
aparecer é simplesmente o que Hartmann define como força de objetivação contida em si
mesma numa sucessão de estratos que atua na obra de arte. Basicamente, isso acontece porque
o objeto artístico revela um conteúdo espiritual que inevitavelmente aparece na matéria
sensível, mas esse aparecimento não está no conceito ou pensamento, mas sim no nível da
intuição, razão pela qual ele considera ser uma relação de caráter imediato.

É possível ousar dizer que o jogo dinâmico das categorias de estratos proposto por
Hartmann atua metaforicamente de forma semelhante ao labirinto de Ariadne, onde os fios
são os próprios estratos pelos quais o sujeito que contempla e objeto estão conectados. Apesar
da literatura conter uma multiplicidade de estratos e abranger todos os aspectos da vida
humana, Hartmann a considera como a arte com menor capacidade de penetração no sensível,
pois usa a palavra como matéria-prima, que por si dificulta a análise categorial. O filósofo

43
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 19.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf
44
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 202
13
destaca que essa dificuldade decorre do fato da linguagem; enquanto ferramenta para capturar
a palavra; não ser o meio mais adequado para a aparição do inefável. Entretanto, apesar dessa
inalcançabilidade daquilo que não pode ser dito, Hartmann assume que é possível distinguir
traços essenciais dos estratos do objeto na literatura. Esse desafio acontece, segundo ele,
principalmente porque os conceitos costumam contradizer a intuição. E com a próxima
passagem, o referido autor expõe o ponto central do problema sobre a palavra como
matéria-prima:

“Recorde-se: de um lado está a palavra, o conceito, os escritos do


pensamento e do outro a obra do artista. Os primeiros se conservam
trabalhosamente na história; as palavras sofrem mudança de significado, os
conceitos “se fundem”, os escritos científicos estão expostos à má
compreensão, à falsa interpretação. Em especial, o conceito singular
arrancado de seu contexto é difícil de voltar a ser preenchido com a intuição
original: seu destino é estranho: a perda de significado, a submersão na
abstração. Em vez disso, a obra de arte mantém tenazmente firme seu plano
de fundo; o deixa aparecer no decorrer do tempo e das culturas, sempre que
surge um sujeito que vê adequadamente.”45

Hartmann argumenta que ao usar a palavra como matéria, a literatura limita-se ao que
pode ser expresso através dela e assim, arrisca-se a não alcançar a totalidade. Entretanto,
apesar de não atingir essa totalidade, as palavras podem remeter à imagens, sentimentos,
dramas e conflitos que fazem parte da vida humana e é exatamente aí que está o seu valor. A
questão da inalcançabilidade da totalidade se origina, segundo Hartmann, do fato do uso da
linguagem na literatura não envolver necessariamente conceitos, apesar de estar limitada a
fazer uso deles durante o ato da descrição. Por isso, Hartmann reconhece que o uso deles
dentro de uma narrativa sempre foi um obstáculo para a estética. Nas palavras de Hartmann:

“A priori é evidente que nunca poderá atingir. De fato, a descrição não


pretende alcançar um resultado tão alto; mas deve tratar de chegar perto de
sua meta, quer dizer, fazer distinguíveis alguns traços essenciais dos estratos
do objeto quando possível. E este é o ponto em que a obra literária vai ao
encontro da sua exigência.”46

45
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 203
46
Idem. P. 205
14
Sendo assim, a literatura ultrapassa o conceito apesar de fazer uso dele apenas como uma
maneira de criar uma narrativa:

“Ainda quando utilize os conceitos comuns, muda seu significado, faz


surgir as origens plásticas que há neles e, por meio do contexto, põe neles
acentos que não conhecemos usualmente. No entanto, isso não é um
obstáculo para que o escritor expresse o que não sabe expressar na
linguagem cotidiana comum.” 47

O elemento que permite à literatura expressar os estratos é o que Hartmann caracteriza


como plasticidade da linguagem, que é a capacidade de se moldar ao contexto e dentro dele,
assumir novas significações e essa característica é exatamente o que basta para a estética. Nas
palavras de Hartmann:

Nesse sentido, o filósofo afirma que a literatura consegue ir além daquilo que
verdadeiramente se trata. Sendo assim, a arte literária oferece um conteúdo que se apresenta
de forma semelhante ao que ocorre na vida humana: “os destinos, os sofrimentos e o amor, na
conduta externa dos homens.” Na passagem a seguir, Hartmann destaca o valor da linguagem:

(...) “el lenguaje une "revelación" a la representación de develación de algo


que, por lo común, permanece oculto, en especial donde hace ya tiempo que
la fantasía juega presagiosamente con ello. La relación oscuramente
presentida con algo desconocido, que siempre está ya ahí detrás, está
contenida en gran medida en la percepción. En la visión superior se presenta
el determinarse de este indeterminado. Pues se dirige a todo lo que aparece
tras lo dado sensorialmente y empieza a ofrecerse: al estar vivo, a las
excitaciones del alma y trasfondos anímicos, a los secretos de la naturaleza y
del cosmos hasta llegar a los más comunes de hombre y mundo. No se traza
límite alguno. Por ello está desde siempre tan cerca de las cosas religiosas; y
a ello se debe que todo lo válido como revelación divina lleve tan
irresistiblemente a la representación artística.”

Há aqui algo de significativo para Hartmann: a equivalência entre a narrativa e a


conduta humana contribui para a empatia, elemento que atua como agente na relação do

47
Idem. P. 206
15
aparecer. Essa equivalência não está completamente evidenciada, uma vez que é sempre algo
não dito e inefável, mas que capta traços da amplitude da vida humana e é representada
através da dramaticidade.

“O importante não é o que dizem, mas sim como fazem. Em geral, a única
coisa que importa é o imponderável. Não se trata de que tampouco nunca
seja importante o conteúdo do que é discutido; isso é óbvio. Mas não é disso
que se trata. Isto é, sempre algo não dito e inefável.”

A​ntes de adentrar nos estratos, é fundamental aprofundar a explicação sobre o conceito


de empatia na estética de Hartmann e a razão para tal é que ele reforça a existência do que ele
denomina de ​fenômeno da empatia na literatura: “o belo é a qualidade que o objeto atinge em
quem contempla por empatia a este. O gozo do belo é, no entanto, uma última instância, um
gozo de si mesmo, indireto desde então, intermediado pelo objeto em que se há projetado
sentimentalmente.” 48 Há nessa questão uma diferença em relação à noção tradicional, imposta
desde a época de Kant. “Junto a la teoría de la empatía puede ponerse toda una serie de
concepciones que se le asemejan en el punto principal, a saber, que lo bello no estriba en una
modalidad del objeto, ni por la forma ni por el contenido, sino en un comportamiento, hacer o
49
estado del sujeto.” A empatia despertada pela beleza ou qualquer outro valor estético não
está impregnada ônticamente no objeto, pelo contrário, ela está associada à percepção do
sujeito que contempla. Observe a perspectiva de Hartmann na citação a seguir:

“No se afirma aquí la subjetividad de lo bello sino sólo una codependencia


respecto al sujeto, que puede armonizarse con las exigencias objetivas de la
estética de la forma.” 50

A obra de arte desperta a empatia no sujeito contemplador, que se relaciona


emocionalmente com ela e a partir daí, evidencia-se uma relação de codependência. No caso
específico da poesia, Cornejo complementa que para Hartmann, a ideia de que as palavras
causam uma espécie de efeito de “estado de encantamento”, permite ao sujeito contemplador
uma experiência, ainda que imagética, do destino humano e dos valores que intuíram o
sentimento de quem escreveu. Cornejo escreveu que para Hartmann, essa condição empática é
causada pelo efeito do que ele define como “o belo no objeto”, que não está condicionada a

48
Idem. P. 36
49
Idem. P. 36
50
Idem. P 37
16
nenhuma modalidade, forma ou conteúdo, mas sim um comportamento, que ele define como
hacer o estado del sujeto​. Hartmann argumenta que o valor da beleza não está aderido às
coisas como modalidades ônticas, independentes da maneira de ser e da força perceptiva do
sujeito, mas ao contrário, ela está justamente condicionada pela postura interior do sujeito
receptor e é distinta em cada tipo de arte. É por isso que a relação entre artista, objeto artístico
e sujeito contemplador é de codependência e acontece através de um jogo dinâmico,
modulado pelos estratos.

Agora que o conceito de empatia e o problema da captação do inefável diante do


limite da linguagem já foi exposto com clareza, é momento de compreender como Hartmann
diferencia os estratos na obra literária e quais estratos são esses. Para responder a essa
questão, Hartmann, enfatiza a necessidade de detalhá-los e diferenciá-los adequadamente para
somente assim, poder estabelecer uma conexão entre eles, uma vez que é essa conexão que
estabelece a relação do aparecer, ainda que em etapas.

Bem, basicamente, o que Hartmann afirma e já foi exposto aqui é que o objeto
artístico está dividido em dois planos: primeiro plano real e o plano de fundo irreal. Na
literatura, o primeiro estrato do primeiro plano real é a palavra. Segundo Cornejo, a proposta
de Hartmann envolve a ideia de que (...) “as palavras que vão deletreando o leitor,
51
apoiando-se nas categorias do espaço e tempo da intuição” e nesse processo de construção
da estrutura da narrativa, as palavras começam a se integrar ao estrato intermediário, pois a
escrita está fundamentada sobre o sistema de símbolos. No que concerne ao uso da palavra
como matéria, Hartmann afirma que ela se ​convierte en material de plasmación superior e a
imagem escrit​a adquire uma função de retenção que confere consistência, capacidade de
resistência e duração que fazem da literatura um objeto extra artístico.52

Com efeito, para Hartmann, um estrato conduz ao e contém o outro. O jogo é


dinâmico e acontece simultaneamente. Hartmann assume que a matéria é o real e no caso da
literatura, a matéria é a palavra que conduz o leitor para o próximo estrato: (...) “se trata, más
53
bien, por de pronto exclusivamente de ciertos estratos intermedios.” No pensamento de
Hartmann, a palavra é uma chave de acesso para o próximo estrato, onde o contexto da
narrativa é construído: gestos, pequenas ações. Cornejo afirma que na estética de Hartmann,

51
CORNEJO, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Universidad Complutense de
Madrid. Madrid, 2002. P. 164. Disponible en: ​https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
52
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 120 - 121
53
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 208
17
esse estrato intermediário abrange a esfera do movimento, de tudo aquilo que denota uma
visibilidade intermediária e é facilmente perceptível e o estrato posterior, que aparece através
54
desse engloba os sentimentos, as emoções e as “características humanas típicas.” Esse
estrato é perceptível em virtude dos tipos de ações efetuadas pelos personagens. Nesse ponto,
o leitor se depara com as intenções, os conflitos e motivações dos personagens. Aqui a
empatia revela-se como um elemento atuante na relação do aparecer dos estratos. Essa
sucessão é dinâmica, um estrato conduz o leitor a outro e aparece no outro e assim
sucessivamente. Desse modo, começa-se a adentrar num plano mais oculto, profundo da
psique humana, que Hartmann caracteriza como ​formação anímica e que pertence ao caráter
do homem ou, ​el ethos del hombre.​ A forma de atuação dos personagens revela os traços do
caráter, nas palavras de Hartmann:

Esse estrato é perceptível em virtude dos tipos de ações efetuadas pelos personagens.
Nesse ponto, o leitor se depara com as intenções, os conflitos e motivações dos personagens.
Aqui a empatia revela-se como um elemento atuante na relação do aparecer dos estratos. Essa
sucessão é dinâmica, um estrato conduz o leitor a outro e aparece no outro e assim
sucessivamente. Desse modo, começa-se a adentrar num plano mais oculto, profundo da
psique humana, que Hartmann caracteriza como ​formação anímica e que pertence ao caráter
do homem ou, ​el ethos del hombre.​ A forma de atuação dos personagens revela os traços do
caráter, nas palavras de Hartmann:

“Pués sólo a partir de la manera de obrar vemos a través hasta la


peculiaridade moral y el carácter del hombre, hasta aquello que está
anímicamente preformado en él y permanece igual su essencia.”55

É nesse estrato que para Hartmann, os conflitos começam a ser tecidos em


profundidade e onde os valores confrontam-se. Afirma:

“Sólo este estrato - que es ya el cuarto, contados a partir de la palabra (el


tercero dentro del transfondo) - nos revela el ethos del hombre, el mérito y la
culpa, la responsabilidad y la conciencia de ella.”56

54
CORNEJO, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Universidad Complutense de
Madrid. Madrid, 2002. P. 165. Disponible en: ​https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
55
Idem. P. 209
56
Idem
18
Destino é o nome que Hartmann confere a esse estrato. É importante frisar que o
destino a que ele refere-se aqui não é num sentido de uma providência divina que interfere no
dia a dia do homem, mas assume um sentido de uma cadeia de eventos que o homem prepara
(tece) para si mesmo, como um resultado da totalidade das suas ações, assim como é possível
observar nas tragédias gregas. Hartmann considera que a aparição do destino é sempre um
momento crucial na literatura épica e dramática, pois é uma forma da literatura reconstruir e
deixar aparecer essa totalidade que passa imperceptível no cotidiano das pessoas comuns.
Portanto, é função da literatura fazer a conexão do homem com essa totalidade da vida e
provocar então, a reflexão necessária. Assim, a literatura, enquanto objeto artístico, promove
uma autêntica visão ética dos valores ao atuar como uma condição prévia para compreensão
dos conflitos humanos através de uma perspectiva aguda e plástica. Hartmann elabora de
forma objetiva o que ele considera como destino:

“Esta totalidad puede ser llamada el destino, ya sea del individuo o del que
entreteje a muchas personas. Ahora bien, aquí no debe tomarse “destino”
literalmente - como aquello que una providencia superior determina para el
hombre - se trata más bien del destino que el hombre se prepara a sí mismo
y que sólo a él se debe.”57

O destino não é o último dos estratos. Hartmann considera que é possível adentrar
num nível ainda mais profundo dos estratos quando se trata da retratar a condição humana e
assim, mais uma camada vai sendo exposta: o estrato das “ideias gerais”, ou como menciona
Cornejo, ​allgemeine Ideen​.58 É aqui que estão concentrados os valores dos personagens. Nas
palavras de Hartmann:

“Todo hombre realiza en su vida sólo parte de lo que hay en su esencia.


También puede malograrlo por completo —a causa de una educación
equivocada, deformación, imitación de una personalidad ajena, etcétera;
pero algo de ello se conserva y puede seguir siendo visible en él a través de
muchas alteraciones. Cuando se piensa que cada hombre, en cada decisión
que tome en la vida, se corta posibilidades que, originalmente, estaban
abiertas e indeterminadas (desde luego, ónticamente son sólo posibilidades

57
HARTMANN, Nicolai. P. 210
58
CORNEJO, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Universidad Complutense de
Madrid. Madrid, 2002. P. 165. Disponible en: ​https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
19
parciales), se comprende sin más la inmensa distancia a la que puede llegar
a estar el hombre verdadero con respecto a la riqueza potencial de su esencia
original —o quizá debiera decirse ideal.”59

Por fim, esse último estrato tem um caráter mais geral, que Hartmann chama de ideal.
De acordo com ele, o estrato das ideias gerais é formado por características menos concretas e
intuitivas, pois envolve aspectos gerais da própria vida humana. Em síntese, esse estrato
representa a imagem da vida expressa no destino de um indivíduo, porém de um modo mais
generalizado. Dito de outro modo: a identificação com aspectos da vida sem necessariamente
uma razão específica para isso. Trata-se aqui de um estado de compassividade perante a
fortuna ou aos infortúnios da existência, apreendidos nas entrelinhas do que não está dito
claramente no texto. Por isso, envolve o que Hartmann chama de interpretação da moral da
história:

“Lo general no necesita tener tampoco la forma de una ideia moral como en
los ejemplos anteriores; puede tener la forma de una inquietud metafísica,
una angustia vital, una inseguridad inexplicable - quizá el sentimiento de
impotencia frente a las fuerzas numerosas e incalculables que entran en
juego en el proprio destino.”60

Esse estrato, segundo Hartmann, conecta o homem aos âmbitos religioso e político da
existência. O termo ​religioso usado por ele não é num sentido institucional, mas refere-se
aquilo que envolve a sacralidade da vida. Já o termo ​político envolve aspectos sociais da vida
ao fazer uso de temas como justiça, liberdade, igualdade, etc. Assim, Hartmann conclui que a
literatura oferece ao homem a capacidade de reflexão sobre a “riqueza potencial da essência
61
original” através de uma visão plástica dos valores éticos, sem necessariamente, mesclá-los
aos estéticos, ao mesmo tempo em que transforma-os em objetos artísticos. É aqui que os
personagens literários personificam a imagem do herói, do guerreiro, da virgem pura, do
velho sábio e representam ideais do indivíduo.

Para encerrar essa etapa sobre as categorias de estrato na literatura, é importante


mencionar que Hartmann não considera que o autor evidencia esses ideais, mas deixa-os
aparecer de forma diluída na obra e mantém-os de modo velado, como um segredo guardado

59
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 211
60
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 213
61
Idem. P. 211
20
que espera o momento certo para ser desvelado, enquanto faz das imagens reveladas pela
linguagem e limitadas pela palavra, um objeto de arte e portanto, da estética.

Na sequência, segue uma representação gráfica que tem o objetivo de sintetizar a


proposta estética dos estratos de Hartmann:

A partir de agora, o trabalho assume um tom prático e tenta abordar a poética de


Herberto Helder através da proposta estética de Hartmann.

Herberto Helder, sobre uma poética do enigma que transita entre a


Linguagem e o Ser

21
(...) “é por dentro de poemas que transportamos esse estranho alimento de todas as mortes.”

Herberto Helder

Nessa parte, faz-se necessária uma pausa na estética de estratos de Hartmann para
introduzir uma breve apresentação do poeta escolhido para esse estudo: Herberto Helder.
Segundo Carla Delfina Marques Carvalho, Herberto Helder foi um dos autores que mais
fortemente contribuiu para a definição de uma nova linguagem poética portuguesa na segunda
metade do século XX. Nascido em 1938, o poeta vivencia a morte da mãe aos oito anos de
idade. Cursou a Faculdade de Direito de Coimbra e a Faculdade de Letras. Foi no
Arquipélago da Madeira, sua terra Natal que ele publicou os seus primeiros poemas, numa
coletânea chamada ​Arquipélago.​ Ele se destacava pela ruptura com os estereótipos poéticos
que baseavam-se na formalidade e na subjetividade. Participou como membro do grupo Café
Gelo, que era frequentado por diversos e renomados autores da literatura portuguesa e de certa
forma, foi influenciado pelo surrealismo. O seu primeiro livro, ​Amor em Visita,​ foi publicado
em 1958 e além da escrita, Helder também teve outros trabalhos, como operário e delegado de
propaganda médica. O seu quarto livro, Passos em Volta, foi publicado em 1963. Em 1994
recusou o prêmio Pessoa de literatura portuguesa. O poeta optou pelo isolamento e se mostrou
contrário à mediatização dos prêmios literários e qualquer outra forma de glorificação e
glamourização da escrita poética. Carla Delfina Marques Carvalho conta que o seu
afastamento rompeu com a tentativa do público de marginaliza-lo ou até mesmo de tentativas
de manipulação. Esse afastamento consciente de Helder o manteve à margem de críticas e

22
injúrias e além disso, era uma forma de se blindar contra a comercialização banal da literatura,
que ele considerava uma arte. De modo geral, o público tinha um certo distanciamento da
poesia de Helder, que era considerada nomeadamente ilegível, uma vez que resistia aos
discursos dominantes, além de ser também considerada como obscura e acessível somente a
um número pequeno de leitores. Contudo, a falta de adesão do público e as constantes críticas
pelo fato de ser conhecido como o ​poeta do ilegível não era motivo de preocupação para
Helder, para quem qualquer crítica literária é somente uma mera forma de mediação entre a
obra e o leitor. As palavras de Herberto Helder sobre as críticas: 62

A crítica? Bem vê: nas circunstâncias em que me encontro, a crítica não me poderia ajudar.
Ela de resto nunca ajuda um autor. Tende a fazer de mediadora entre uma linguagem e um
entendimento. Ajudará o leitor. Visto que bani das minhas preocupações a ideia de
comunicação, não considero a intervenção desse primeiro decifrador, do mediador. Porque
não estou interessado em que o leitor adira […]. 63

Frequentadores do grupo Café Gelo64

De acordo com Rosa Maria Martelo, a escrita de Herberto Helder articula-se de modo
improvável, um pouco inatual e contemporânea e por isso, ela considera que ele teve um

62
CARVALHO, Carla Delfina Marques. O símbolo na poética de Herberto Helder: uma linguagem
universal de água, fogo, terra e ar. Universidade da Madeira. 2016 / 2017. P. 12 - 16.
63
V. Entrevista, de Fernando Ribeiro de Mello, a Herberto Helder in Jornal de Letras e Artes (N.º 139),
17 de maio de 1964.
64
V. “Herberto Helder: morreu o poeta que nunca se deixou capturar”, in Observador, 24 de março de
2015; Obs.: Caricatura retirada do “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, 16 de outubro de 1958.
23
papel relevante na viragem e renovação da poesia de Portugal, que tiveram elementos que se
misturavam de modo determinante, como o neo-vanguardismo e a tradição modernista. 65

Já que neste trabalho o principal assunto é a poesia, é possível questionar: o que é um


poema? Bem, muitas podem ser as respostas para essa pergunta, mas Herberto Helder diria
que um poema é um “utensílio” sem fim útil; um objeto de “manejo”, um aparelho de
conversão do real a cataclismos permanentes e insondáveis, de onde renasce constantemente
outro. Maria Lúcia Dal Farra, poeta brasileira que trocava cartas com Herberto Helder,
escreveu em “​Herberto Helder, sigilosamente Herberto​” que para ele, o poeta é um indivíduo
movido pela paixão do perigo. Mas não só, é alguém que vivencia na prática, a assiduidade
nos testes e demarcações da linguagem, pois desse modo, a jurisdição do sentido o movem e
assim, ele radicaliza o lírico e implode-o em grandes abalos semântico-rítmicos. Bem, se nem
todos os poetas conseguem essa proeza, Helder pertence ao grupo dos que conseguem.

“Esse é o exercício da “inocência”, desse “estado clandestino na ditadura do


mundo”, embora se saiba que as “coisas ludibriam-nos” e que
“ludibriámo-nos nas coisas”. Mas é por aí que o poeta bebe nas “noites
ocultas” e penetra no “recôndito dos tempos”, [1] possíveis vias de
recondução ao mito e ao primitivo Orpheu: maneira de alcançar (por outro
viés) o limiar da utopia? 66

A obra de Herberto Helder é, segundo Juliet Perkins, ​um labirinto de imagens, temas e
67
estilos e uma das características presentes na obra do poeta é que ele tenta instaurar
simultaneamente uma esfera mágica e tecnológica.​ 68

“Uma visão da passagem do tempo como interacção dos conceitos linear e


cíclico pode ter analogia na linguagem, onde a ideia do tempo linear e
histórico se refere a qualquer coisa “fora” ou “além”, o que, por seu turno,
requer uma metáfora explicativa. E, embora o tempo cíclico e mítico se

65
MARTELO, Rosa Maria. Os nomes da obra - Herberto Helder ou o Poema Contínuo. Ed. Sistema
Solar (Documenta). Lisboa. Abril 2016. P. 25 - 26. Disponível em:
https://issuu.com/sistemasolar/docs/rosa_maria_martelo_os_nomes_da_obra
66
FARRA, Maria Lúcia Dal. Herberto Helder, sigilosamente Herberto. Agulha Revista de Cultura. Nº
100 | Julho de 2017. Disponível em:
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2017/08/maria-lucia-dal-farra-herberto-helder.html
67
PERKINS, Juliet. Análise de um poema de Herberto Helder. Fundação Calouste Gulbenkian |
Revista Colóquio. Nº 65 | Janeiro de 1982. P. 14. Disponível em:
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=65&p=14&o=p
68
Idem
24
relacione com a metáfora, também rejeita uma polarização nítida entre
pontos de partida e de chegada. A transferência desta analogia para a
linguagem permite a sugestão de que os próprios elementos (sons, palavras,
frases) sofrem uma metamorfose ao girarem em torno do círculo de
significação. Sem um ponto de referência exterior e fixo, mas sim a
contiguidade dentro do círculo, os elementos linguísticos acumulam uma
sucessão de associações metafóricas que resultam dum processo
essencialmente metonímico, ou seja, de combinação e justaposição.” 69

A escrita poética de Herberto Helder conduz para uma vivência de experimentação do


mundo: a imagem do cosmos parece surgir no meio das palavras. Nela, o leitor sai da sua
individualidade e adentra num labirinto poético de enigmas, onde morte e existência se
encontram e se confrontam todo o tempo. De acordo com Carla Carvalho em ​O Símbolo na
Poética de Herberto Helder - Uma linguagem universal de água, fogo, terra e ar​, a poética de
Helder usa a linguagem para transformar e criar um discurso próprio que reinventa-se ao
longo do tempo e desobedece principalmente, às normas discursivas gerais.70

A narrativa de Helder é ontológica, envolve o Ser, transita pelo estatuto da existência e


ao adentrar em contato com ela, o leitor chega ao âmago da existência. Na obra de Helder, é
possível enxergar com clareza a perspectiva principal da estética de Nicolai Hartmann: a
beleza é revelada a partir da empatia, num jogo dinâmico de estratos que vão se desvelando
conforme o leitor comete a ousadia de trilhar o labirinto de palavras, dispostas pelo estilo ​—
em parte surreal e em parte simbólico, e conforme vai chegando ao centro, o ser em si vai
sendo revelado e a uniformidade do mundo, antes revestida de multiplicidade, fica exposta.

Nicolai Hartmann encontra Herberto Helder: entre poesias e estratos


«A literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que terá
emudecido, encarniçar-se com a própria virtude, enamorar-se da sua
dissolução e encontrar o fim»
Herberto Helder

69
Idem. P14 -15
70
CARVALHO, Carla Delfina Marques. O símbolo na poética de Herberto Helder. Uma linguagem
universal de água, fogo, terra e ar. Dissertação de Mestrado da Universidade da Madeira. Outubro de
2017. Disponível em: ​https://digituma.uma.pt/bitstream/10400.13/1906/1/MestradoCarlaCarvalho.pdf
25
Esse é o momento da investigação em que a obra de Helder encontra a estética de
Hartmann. Se para o primeiro, o poeta é alguém que vivencia na prática as demarcações da
linguagem, para o segundo, de acordo com Nuno Júdice, o poeta é um ​vidente​, um
clarividente, um descobridor, aquele que transita pela vida com os olhos abertos para tudo e
que, por ele mesmo, retira as paixões e as figuras do cenário da vida até diante da distância
dos objetos estéticos. Para Hartmann, é na poesia que a linguagem se cria e se recria, por
isso, ele considera o poeta como um ​descobridor do humano.​ 71
Para Herberto Helder, a
linguagem é o tema central da poesia e Nuno Júdice afirma que para esse poeta não é o
mundo mas sim a língua que constrói a ordem da matéria e dos objetos que integram o poema
– “e essa língua é, ambiguamente, quer a língua que se fala quer, por sinédoque, o objecto que
72
é a língua”. Um ponto comum entre eles é o fato da poesia ser um meio de intervenção da
linguagem, onde ela assume uma postura de ferramenta de criação e uma forma de
transcender as fronteiras da racionalidade, tendo na figura do poeta o sujeito dessa potência
criativa.

De acordo com Márcia Gonçalves, o filósofo Hegel - principal representante do


fenomenalismo - considera que a linguagem poética é a representação da linguagem em sua
“forma propriamente estética”73 e a compara ao fenômeno da experiência oracular e segundo
ele, o oráculo é “a linguagem própria do deus”74. Nesse sentido, ela afirma que a poesia é para
Hegel, uma “obra essencialmente espiritual”75, pois ela revela a subjetividade consciente ou a
consciência do espírito, a partir do “reconhecimento de que o divino é conteúdo, e portanto
resultado, da própria criação poética.”76 De acordo com Merleau-Ponty, “a poesia é algo que
77
faz arder a linguagem ordinária” e em “A prosa do mundo”, ele afirma que o “escritor é ele
mesmo um novo idioma que se constrói, que inventa meios de expressão e se diversifica
segundo seu próprio sentido” e que é na poesia que a autonomia do autor pode ser afirmada

71
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 178
72
JÚDICE, Nuno. As fronteiras do poético na poesia de Herberto Helder. Diacrítica | Centro de
estudos Humanísticos da universidade do Minho. Nº 03 | Vol. 23 | Janeiro de 2009. Disponível em:
https://puredev.unl.pt/portal/en/publications/as-fronteiras-do-poetico-na-poesia-de-herberto-helder(9c8
3d57f-5221-4275-a05f-64f4480a71b7).html
73
Gonçaves, Márcia. Uma concepção dialética da arte a partir da gênese do conceito de trabalho na
fenomenologia do espírito de Hegel. vol.46 no.112 Belo Horizonte Dec. 2005. P. 269. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2005000200010
74
Idem
75
Idem
76
Idem.
77
Ponty, Maurice Merleau. A prosa do mundo. Tradução de Paulo Neves. Ed. Cosac Naify. P. 60.
26
com ostentação.78 Em “Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty também fala da poesia
como uma modulação da existência, pois a linguagem particular utilizada num poema tenta se
moldar a existência através de um aparato material e poético que permite que ela seja
79
eternizada.

Em concordância com os dois filósofos mencionados, em Hartmann esse processo de


retenção do eterno na poesia também está presente, uma vez que ele considera a escritura e a
arte como as objetivações mais duradouras do homem, capazes de permanência na história e
verdadeiras representantes do espírito objetivado. No seu estudo sobre Hartmann, Cornejo
reafirma a posição de Hartmann sobre a relação entre o primeiro plano real e o plano de fundo
irreal como não arbitrária e muito menos convencional, mas sim como expressão de um
vínculo interno que só é possível de ser captado pelo sujeito contemplador através da intuição.
Como já foi mencionado, a poesia é considerada por Hartmann uma arte representativa, o que
significa que nela - assim como em todas as artes representativas - o plano de fundo irreal
expõe traços essenciais do mundo real, da vida humana e dos valores que são correspondentes
a esse mundo. Porém, no caso da poesia, há algumas variações relativas à aplicação que foi
mencionada no capítulo sobre os estratos na literatura.

Hartmann argumenta que ao tecer a forma da obra que aparece no primeiro plano
linguístico real, a poesia acaba por adquirir uma importância superior em relação às outras
literaturas. Na prática, isso acontece porque o efeito de versificação e do jogo dinâmico
contido na poesia fazem com que ela salte a etapa do estrato intermediário contido no
primeiro plano real e penetre diretamente no plano de fundo irreal a partir do estrato dos
sentimentos, paixões, afetos e valores. Na obra de Herberto Helder, o salto entre estratos e o
dinamismo existente entre eles são extremamente evidentes. Entretanto, esse salto é para
Hartmann, segundo Cornejo, um efeito metafísico sem aparente solução. A dinâmica de
formas versificada pelas palavras da poesia conduz o leitor para o universo dos sentimentos,
dos destinos humanos e valores ideais da obra. Na sequência é apresentado um esquema
gráfico para que seja possível assimilar melhor o salto entre as etapas dos estratos na poesia:

78
Idem, P. 06
79
Ponty, Maurice Merleau. Fenomenologia da percepção. Tradução de Alberto Ribeiro de Moura. Ed.
Martins Fontes. 2ª edição. 1999. P. 209.
27
Como é possível perceber através da ilustração, Hartmann assume a existência de um
salto entre um estrato e outro e isso indica uma diferenciação da poesia em relação às outras
artes representativas. É exatamente esse salto que esse trabalho pretende explorar na obra de
Helder, assim como a identificação das outras categorias de estratos. Essa análise será feita a
partir de um dos poemas de Herberto Helder.

Ana Lúcia Guerreiro escreveu que a poética de Herberto Helder invalida qualquer
hipótese da poesia ser vista como meramente como uma arte mimética80, mas que as imagens
verbais que ele cria a partir da palavra sustentam a matéria da poesia em uma analogia com
aquilo que é possível definir como real. A combinação de palavras liberam um conteúdo
emocional arquetípico e arcaico, onde o ser é colocado em imanência e eminência. A poesia
de Herberto Helder descortina verdades metafóricas com palavras que produzem imagens em
movimentos, a partir do jogo de estratos proposto por Hartmann, revela beleza, provoca
empatia e preserva a natureza enigmática da estética. A poesia de Helder assume a
multiplicidade ôntica proposta por Hartmann.

80
GUERREIRO, Ana Lúcia "A “antropófaga festa”. Metáfora para uma ideia de poesia em Herberto
Helder"
Diacrítica - Revista do Centro de Estudos Humanísticos, nº 23/3, Série Ciências da Literatura, Centro
de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2009, pp. 9-22. Disponível em:
http://cecbase.letras.ulisboa.pt/pesquisas/?task=tax&view=detail&rid=90162&tax=keywords&tid=4468
&rel&relid&subbase
28
Delfim Santos escreveu que a palavra é significativa de um mundo que pretende
sempre desvendar, encobrindo outro ao mesmo tempo. Mostra para esconder e o que esconde
é muito mais importante do que mostra. Logo, há beleza contida nesse processo. Segundo ele,
essa “tensão problemática” entre a palavra e o pensamento é algo que tem origem na
antiguidade, estando presente, inclusive, em Platão e Aristóteles. Nesse sentido, Delfim
Santos afirma:

“A palavra pretende sempre determinar, termo é sinônimo de palavra, o que no pensamento


surge como indeterminado quanto à sua própria expressão que depende da palavra. A
palavra determina sempre alguma coisa que, se não fosse ela, não existiria, isto é, não teria
expressão verbal. É este um dos seus méritos, uma das suas virtudes. Isto leva-nos ao
seguinte: quando o pensamento pretende afirmar o que é, a palavra apenas permite que esse
que é resulte impreciso do que não é. Afirmar é negar, ou, de outra maneira, toda afirmação
do pensamento é expressa pela negatividade da linguagem que assim sempre o condiciona.
Por isso mesmo, para além do conhecimento das palavras com que certo autor se exprime,
precisamos de descobrir o seu próprio pensamento que por elas não foi traduzido. Um dos
exercícios mais difíceis mas também mais fecundo da pedagogia consiste nisto mesmo:
descobrir o sentido, isto é, o pensamento que as palavras de certo autor pretendem exprimir.
E isto nem sempre é fácil, como todos sabem.”81

O objetivo de usar a citação de Delfim aqui não é adentrar numa discussão sobre o que
é ou não é a linguagem, mas sim apontar o potencial criativo do poeta ao usá-la ao selecionar
qual palavra usar. Ao fazer isso, o poeta ascende ao domínio do uso da linguagem e ali, no
instante da criação do poema, ele pode tudo. A palavra é então o primeiro estrato do primeiro
plano real proposto por Hartmann. Na poesia, é nela que tudo começa e através dela que
Helder pode tudo ao escrever. Antes de prosseguir, é importante ressaltar que seria impossível
fazer uma análise completa da obra de Herberto Helder - que é bem extensa - neste trabalho,
mesmo porque o objetivo principal aqui é captar a dinâmica de estratos da proposta estética de
Nicolai Hartmann. Para isso, o poema escolhido é ​Antropofagias​, que pode ser encontrado no
final, logo após a parte da análise. O poema mencionado foi extraído da obra ​Ou o poema
contínuo.​

Como foi dito, Hartmann afirma que a palavra é a matéria-prima do poema. De modo
geral, em seus poemas, Herberto Helder esculpe a sua obra e organiza as palavras de um
modo nada convencional (ou lógico), mas a composição (ou disposição das palavras) segue

81
SANTOS, Delfim. Da Filosofia do Homem. Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª edição. Lisboa. P.
134 -135
29
um caminho diferenciado, como bem apontou Eunice Ribeiro no artigo ​O sombrio trabalho
da beleza (notas sobre o barroco em Herberto Helder).​ Segundo ela, a composição do poema
segue em direção a um ​processo de deflagração e de suspensão formal como condição de
ingresso no não-saber poético no fulgor calcinante e inenarrável da sua matéria tremenda 82.
Dentro dessa estrutura, a composição metapoética de Helder conecta de imediato o leitor ao
assombro e assim, seus poemas quase sempre remetem o leitor ao caos, promovem o encontro
com o carnal e enquanto tudo parece confuso, o leitor é conduzido para uma experiência
estética onde tem início o jogo dinâmico de estratos proposto por Hartmann.

Na obra ​Ou o poema contínuo​, o poema intitulado como ​Antropofagias é dividido em


[doze fragmentos] de textos. A capa da primeira edição do livro reproduz a imagem da figura
mítica de Saturno devorando um filho, retratada pelo pintor Goya. Entretanto, o detalhe mais
interessante desta primeira edição está no título do livro ​Ou o poema contínuo.​ De acordo
com Manuel Gusmão, o fato do nome da obra começar com “​Ou​” provoca uma curiosidade
imediata no leitor que pergunta-se: o que veio antes? Isso acontece porque o ​Ou no início soa
estranho, afinal, ​Ou é uma conjunção que indica alternativa. Como o nome do autor é a
informação que está anterior ao ​Ou,​ supõe-se que a alternativa não tão evidente é o próprio
autor, logo, Manuel Gusmão afirma que Helder “emigra da sua condição de nome de autor
(que reenvia para um indivíduo humano concreto) para a condição de texto, de fragmento
textual de um título.”83 Nesse sentido, o título retrata um poeta em seu exercício contínuo de
construção da própria poesia e talvez, da própria existência. Poeta e poesia assumem uma
condição de fusão no processo criativo e transformam-se em um único objeto de estética.

82
RIBEIRO, Eunice. O sombrio trabalho da beleza (notas sobre o Barroco em Herberto Helder).
Universidade do Minho. Disponível em:
https://uniandrade.br/revistauniandrade/index.php/ScriptaUniandrade/article/view/1074
83
GUSMÃO, Manuel. Herberto Helder: o poema contínuo na primeira década de 2º milênio. Página
131. Disponível em: ​http://cehum.ilch.uminho.pt/cehum/static/publications/diacritica_23-3.pdf
30
Portanto, de acordo com Hartmann, as palavras são o que de real há no poema e assim,
guiam o leitor para os estratos e o primeiro estrato do real faz um salto para o primeiro estrato
do irreal: o das características humanas gerais, onde evidencia-se as emoções, os sentimentos.
Não há na obra de Helder nenhum contexto, nenhum personagem tecendo diálogos e
inserindo o leitor em um universo diferenciado. As palavras revelam de imediato o estrato das
emoções e sentimentos. De acordo com Ana Lúcia Guerreiro, o título ​Antropofagias - que
84
remete claramente à ideia de morte - expõe a ideia da finitude implícita no poema.
Entretanto, o título do poema não aponta para uma morte qualquer, mas conecta, a princípio, o
leitor à imagem de nutrição de carne humana. Logo, a ideia central do título é reproduzir um
comportamento em que o homem consome o homem, coisa que por si só pode no primeiro
momento, gerar certa repulsa. Sendo assim, a primeira impressão ao estabelecer-se um
contato com o título do poema pode ser o estranhamento. Porém, Ana Lúcia Guerreiro
menciona que ao longo do mesmo, o poeta trava uma conversa com o leitor, no sentido de
querer instigá-lo ao conhecimento. O primeiro texto começa com os dizeres: ​Todo discurso é
apenas o símbolo de uma inflexão da voz [...], a partir daí o leitor experimenta uma
intensidade de emoções, como se estivesse a um passo de uma descoberta única. A ansiedade
da descoberta revela-se a partir da equivalência com a ansiedade contida na própria
existência, no sentido de existir ser ansiar, seja por algo, por alguém. Diálogos são revelados:

84
GUERREIRO, Ana Lúcia. A antropófaga festa. Metáforas para uma ideia de poesia em Herberto
Helder. P. 09. Disponível em: ​http://cehum.ilch.uminho.pt/cehum/static/publications/diacritica_23-3.pdf
31
um conciliábulo entre poeta e leitor e Helder faz a primeira pergunta: “​Estão a criar moldes​?”
Ansiedade, curiosidade e a sensação de se transitar no mundo sem dele nada saber. A relação
do aparecer revela ao leitor um mundo em constante mutação ou em outras palavras,
depara-se com o próprio ​devir​ da existência.

Ao prosseguir na leitura, o leitor depara-se com palavras como: ​discurso, símbolo,


linguagem, escrever, escrita, escritura, ler, leitura, caligráficas, ortográficos, gramaticais,
palavras, vocabulário, dicionário, diálogo, comunicação e alfabeto e elas parecem compor a
coluna vertebral do poema e podem ser encontradas espalhadas ao longo dele. A composição
poética de Herberto Helder é, ao mesmo tempo, marcada pela intensidade e pelo dinamismo
do jogo de estratos da estética de Hartmann e cada etapa é um passo a mais na relação do
aparecer. As palavras não parecem estar organizadas numa lógica que sugere necessariamente
começo, meio e fim, mas sim num movimento circular que acompanha o leitor ao longo de
toda a narrativa.

Segundo Hartmann, depois do primeiro plano real - que é o estrato das emoções e
sentimentos humanos, aparece o estrato que ele chama de destino e que assume como um
estrato revelador de conflitos, feitos e tudo aquilo que faz parte do destino dos homens. Em
Antropofagias,​ o destino é perpetuado pela busca de significado da existência. Ao longo do
poema, Helder cria uma simulação da realidade que atinge o âmago da intuição autônoma do
sujeito. O poeta leva o leitor para o estrato dos conflitos humanos e nesse estrato ele encontra
a comunicação e a imagem central revelada parece ser aquilo que pode ou não pode ser dito,
as razões por trás do verbo, dos versos, das falas do cotidiano. Como já foi mencionado,
Hartmann afirma que qualquer sentido só pode existir perante a existência de um sujeito e na
obra de Helder, o leitor pode, pela empatia despertada pelo poema, estabelecer paralelos com
a própria existência.

No texto 2, Herberto Helder escreveu: ​[...] “​mas desiste-se porque «a mão» vem
depressa”​ ​[...] e em outro momento ​[...] ​“​agora estamos a fazer força para afastar o excesso |
de planos multiplicidades antropofagias para os lados todos que andam.​ ”​[...] No poema, o
destino do homem revela uma interioridade de desistências e esforços de ​planos
multiplicidades antropofagias,​ num sentido em que o homem consome (ou nutre-se) daquilo
que é criação da própria humanidade ou em outras palavras, o homem alimenta-se do homem.
Em outro momento do poema, especificamente no texto 3, ele escreve: “​somos obrigados «a
ver isso»| que faz o pé forte no sítio forte o pé leve no sítio leve | o sítio rítmico no pé rítmico?

32
e digo assim porque se trata do princípio «de cima para baixo | de baixo para cima» | que
​ este trecho, é possível perceber o confronto inevitável com as situações da
faz? que fazem?” N
vida que surgem e que induzem o indivíduo à reflexões mais profundas da própria existência.
A narrativa coloca o leitor com aquilo tudo que parece inusitado, pois esse estrato do destino
expõe realidades não tão imediatas: há o pensamento de morte. ​“o «problema» do bailarino é
coisa que não interessa por aí além | mas são chegados os tempos de agonia | estamos
«exaltados» com esse pensamento de morte”​.

É nesse ponto que o jogo avança e mais uma nova cartada é colocada na mesa e então
o poema passa a transitar por um estrato ainda mais profundo. Como foi mencionado, muitas
das palavras presentes na obra de Helder remetem à representação e linguagem. Dessa forma,
adentra-se na ideia de um universo ôntico de ser-linguagem-criação, onde tudo parece ser
possível, onde a existência é contestada sob a ótica do enigma: ninguém sabe de onde veio e
nem para onde vai, tudo permanece protegido por um manto de um mistério impenetrável.
Transita-se pela transdimensionalidade ontológica: “​Eu podia abrir um mapa: ​«o corpo» com
relevos crepitantes | e depressões e veias hidrográficas e tudo o mais | morosas linhas e
gravações um pouco obscuras | quando s se fendia nalguma parte um buraco | que chegava
repentinamente de dentro | a clareira arremessada pelo sono acima | insónia vulcânica sala
contendo toda a febre «táctil», | furibunda maneira | essa era então uma espécie de «lugar
interno»” [​ ...] ​e o leitor transita por lugares internos ou como diria Hartmann, o possível
como um semi-ente dentro do real. Poeta, poesia e leitor acessam o espaço intangível entre a
aporia do ser e do não ser. O valor da beleza está nesse enigma e o sentimento ao redor do
enigmático contido na arte (e na vida) permanecem na esfera do indissolúvel. A questão que
Hartmann coloca sobre a transubjetividade está aberta à experimentação da visão de valores
subjetivos do sujeito que a lê. Como é possível perceber, chega-se então ao estrato das ideias
gerais do poema. No poema que é objeto desse estudo, elas estão espalhadas pelas linhas dos
doze textos de ​Antropofágias e abordam a perspectiva da soberania da linguagem, onde
segundo Manuel Gusmão, ​o sublime excede o estético.​ O inefável criado através da linguagem
é a principal ideia do poema.

33
Outro detalhe interessante para observar é que de acordo com Eunice Ribeiro, a
palavra ​corpo está presente em grande parte da obra de Helder. Segundo ela, o uso que ele faz
dessa palavra não é uma mera referência ao (a um) corpo humano, mas uma referência sutil à
obra poética, o corpo é (o da) obra, a obra é corpo no que a ambos se faz comportar de
errância​. O último trecho mencionado anteriormente já continha a menção a esse termo, ainda
no mesmo texto podemos encontrar: ​[...] “​e o apuramento do mel com a labareda inclusa o
corpo na prancheta para a lisura sentada onde se risca a posição mortal «um papel» apenas
a branca tensão do néon” ​[...] ​Quando usada num poema, a palavra ​corpo atua como uma
estrutura de representação, uma referência a uma existência onde a imagem e linguagem estão
presentes. Ao longo de ​Antropofagias,​ o poeta ainda faz uso dela das seguintes formas: “o
corpo” [...] com relevos crepitantes; corpo que se faltava em tempo “fotografia”. Em todas as
menções, a palavra corpo está associada com objetos que remetem à linguagem ou semiótica e
apontam para o que Eunice Ribeiro chama de ​uma relação performativa persistente entre
texto e destinatário​. Assim, temos a ideia geral de um corpo que se movimenta através da
linguagem.

Fica claro que a obra de Helder evoca o movimento e as possibilidades de um mundo


irreal que evidenciam angústias existenciais do mundo real. Nesse sentido, Hartmann
considera que o aparecer do movimento, vida, espaço irreal e as paixões do mundo em todas
as formas são essenciais para a relação do aparecer e só assim o sujeito que contempla pode
ser arrastada até elas. Para ele, conservar a consciência do primeiro plano real - que é a
matéria-prima de qualquer obra artística -e perceber a relação do aparecer desabrochar é o que
transforma um indivíduo em um contemplador estético. Isso acontece porque somente ao ser
um contemplador estético o objeto estético pode “estar” presente como um todo e é nessa
totalidade que ele possui mais existência do que para o simples ato de contemplação. O
contemplador conhece a vida própria do objeto artístico.

Antropofagias

Texto 1

Todo el discurso es apenas el símbolo de una inflexión

de la voz

34
a la insinuación de un gesto una temperatura

a la su extraordinaria desorden preside un pensamiento

mejor diria “un esfuerzo” no coordenador (de modo alguno)

pero de “moldes” preguntaban “estan a crear moldes?”

no señores para eso tendría que preexistir un “modelo”

una idea organizada un canon

queremos sugerir cosas como “imagen de respiración”

“imagen de digestion”

“imagen de dilatación”

“imagen de movimentación”

“con las palabras?” preguntaban ellos y debo decir que era

una pregunta perigosa un alarma colocando para siempre

algo como el confesado amor de las palabras

en el centro

no intentamos crear calabazas con la palabra “calabazas”

no es un sentido propiciatorio del lenguaje

introducimos furtivamente planos que ocasionales

ocupaciones (“des-sintonizar” abierto el camino

para antigas explicaciones “discursos de discursos de discursos” etc.)

fijemos esa idea de “planos”

podemos los admitir como una “especie de casas”

o “una especie de campos”

y entonces evidente para seren habitados recorridos gastos

35
será que se pretende aún identificar “lenguaje” y “vida”?

una vez se designó mano para que la mano fuese

una vez el discurso fuera la mano

se partiera siempre de un entusiasmo arbitrario

era ese el “espíritu” el “destino” del lenguaje

ahora estamos a ver las palabras como posibilidades

de respiración digestión dilatación movimentación

experimentamos la pequeña posibilidad de una inflexión caliente

“ellas estan andando por si mismas!” exclama alguien

estan a hablar a andar unas con las otras

a hablar unas con las otras

estan lanzadas por fuera a abrir y cerrar el ojo a ter inteligencia

para todos los lados

sugiriendo oblicuamente que se reportan

a un nuevo universo al cual es posible asistir

“ver”

como se ve lo que comporta una cierta inflexión

de voz

es una especie de cine de las palabras

o una forma de vida asustadoramente juvenil

quizá van a destruir bajo el titulo

“los automatos invaden” pero invaden qué?

36
Texto 2

No se vaya entregar a los varios “motores” la fabricación del verano

el susurro de la noche apresentada pormenores

para un “estilo de silencio” o inclinaciones graves

esperando “instantes iluminadores” es cierto que el escenario

ganaria una cualidad apasionante

pero se desiste porque “la mano” viene muy rápidamente

indagan: qué mano? que dirección? que posición?

indagan que “ación de sorpresa y sacralidad” (se hay)

lo que hubierse “y se ve por la prisa” es una

especie de vivacidad o una turbulencia intima

y al mismo tiempo cautela poder serena destreza

de “llamar” de dentro del pavor y “unir” por encima

del pavor

ahora estamos a hacer fuerza para afastar el exceso

de planos multiplicidades antropofagias para los lados todos

que andan

“procuran un centro?” si “una razón de razones”

una zona suficiente leve fija una como que

“interminabilidad”

sirve el cabello sirve una piedra redonda - la submisión

de un animal colocado sobre su propio sangre ingenuo

temas de días consumidos o consumados teatros para salidas

37
altas entradas altas salidas bajas entradas bajas “movimientos”

ahí mismo es que se deforesta el sitio excepcional

el acaso de la ocasión por se

mano para “escribir” un propósito inherente a la naturaleza compacta

de un “peso movido” hasta se encontrar como

“peso propio”

esta dulzura que es el escandalo de los “muertos usando

cabezas de oro o terror de la riqueza”

mano apenas en dedicatoria a plantaciones desconocidas

de la “fiesta”

ella misma a su fiesta inferida de ahí estar

sobre el rostro que se imprime de dentro la “rotación”

irresistible mientras baja mientras los labios

herven de su “lepra” y tinieblas y luces se combinam

en una tensión interna

“escritura y escritura” desarrolladas por lo silencio

que no las amenaza sino las libera de si como una

mariposa ávida una titular del espacio

visible propietaria de la luz y su extensión

“señal” de lo que se abrió por su misma energía

y ninguno escalafrío de horror siquiera un “transe”

hiere el flanco ofrecido al mundo

apenas un “nacimiento” el ritmo trabajado en otro y trabajando

38
otro ritmo como el tejido de las arterias

un mapa una flor muy caliente en fondo de atmósfera

Texto 3

A fin de cuentas la idea es siempre la misma el bailarín a por el pie

en el sitio una cosa muy fuerte

en la cabeza en el corazón en los intestinos en nuestro propio pie

puede se imaginar la ventania quer decir

“lo que ocurre al aire” es la danza

pues vejan lo que está a hacer el bailarín que desata por ahí fuera

(por “ahí dentro” sería mejor) él barre el espacio

si me permiten lo barre con mucha evidencia

somos obrigados a “ver” eso

que hace el pie fuerte en el sitio fuerte el pie leve en el sitio leve

el sitio rítmico en el pie rítmico?

y digo así porque se trata del principio “de arriba hacia abajo

abajo hacia arriba

que hace? que hacen? oh, apenas un poco de geometría

en términos de tiempo un poco de velocidad

en términos de espacio dentro del tiempo

“vamos a encher el tiempo con rapidez de espacio”

pensan sus piés cuando el aire está listo

el “problema” del bailarín es cosa que no interesa por ahí más allá

39
pero son llegados los tiempos de la agonia

estamos “exaltados” con ese pensamiento de muerte

es preciso pensar en el “ritmo”es una de nuestras ideas exaltadas

en la realidad algo se transformó desde que él empezó a danzar

sin cualquier ayuda excepto

no tener aún nombres para eso y tener los ingredientes

del espetáculo i.e.la cualidad “fuerte” del sitio

y pies

esperen por la apertura de negociaciones entre “no” y “sí”

verán como cosas de esas se pasan

no va a ser fácil los recursos de designación a las varias acomodaciones

ya no se encuentran a las órdenes de vuecelencia

empiezen a darse cuenta de la “energía” como “instrumento”

de crear “situaciones llenas de novedad”

vaya tener mucha niebla en esas cabezas

y aún “el corazón lo cayó a los pies” lo banal

las cuentas com el inesperado tal vez entonce se tenga la idea de murmurar

“los pies subieron por el corazón”

pues van diciendo que exageración luego se verá

también Jorge Luis Borges escribió esta cosa un poco nada espantosa

“la luna de la cual ha caído un león” nunca se puede saber

manzanas caen Newton cae en la trampa

caídas no faltan unas por causa de las otras

40
los imperios caen etc. el asunto del bailarín cae

pero siempre hacia arriba de la cabeza y estamos para ver

Cristo a andar sobre las aguas es aún el caso de el bailarín

“el estilo”

claro que “eso” apavora

la danza hace parte del miedo se así me puedo exprimir

Texto 4

Yo podía abrir un mapa: “el cuerpo” con relevos crepitantes

y depresiones y venas hidrográficas y todo más

lentas líneas y grabaciones un poco oscuras

cuando “ler” se ranuraba en alguna parte un agujero

que llegaba repentinamente de dentro

el claro lanzada por el sueño encima

insonia volcánica sala conteniendo toda la fiebre “táctil”

furiosa manera

ese era entonces una especie de “local interno”

áspera geología alcalina y barrida y cruda

exposta así a la lectura que se ha olvidado de su “miedo”

el cuerpo con todas las “incursiones” caligráficas

“referéncias” florales “desviaciones”ortográficas de la familia de los carnívoros

“antropofagía” gramaticales y “pegada”

aún fervientes

41
o minas con el frío bater y el ruido escurriendo

“un mapa” donde se leía completamente el sangre y sus franjas

de oro el irado desregulación de la “traza

primera” y el apuramiento del miel con la llama

incluída l cuerpo en la tabla

para la lisura sentada donde se tacha la posición mortal

“un papel” apenas la blanca tensión del neón

en el techo el chorro de arriba “declarando” cualquier aspereza

la suavidad toda una bastarda

gracia

de infiltración en la somnolencia o explosiva

“vigilancia” combustión de las masas al largo

del “dibujo” irregular

y solo entonces así desterrado del ruido en los suburbios

él apenas ahora “composición” fuerte y atada de los elementos

escarpas rapidamente

desarrollando

cuerpo que se faltaba en tiempo “fotografia”

de un “estudio” para siempre

como le bastaba ser posible tan solo una cierta

temperatura

grutas abiertas minerales palpitaciones en el subsuelo

temblores

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sinuosidades esponjas donde pulsaban canais dolorosos

y la palpitante materia irrumpiendo en las pantallas

con el susto leve de las “manchas” que se unían

esa energía sin espacio súbita “geometría” a coser de fuera

mordeduras veloces delicadezas

nervaduras vivas

para seguir hasta el fin “com los ojos”

como una paisaje de espinos chispeantes

“el contorno” que quema de una lámpara encendida

toda la noche en la oficina del cartógrafo

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Conclusão

xxxxxx

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