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de Herberto Helder
Introdução
Essa pequena investigação abrange a temática da poética e estética através de dois grandes
representantes de ambas: Herberto Helder e Nicolai Hartmann. Tanto a poesia como a
inspiração poética já foram descritas através de diferentes perspectivas ao longo da história do
conhecimento humano. Raymond Bayer em Historia de la Estética afirma que na antiguidade,
Platão concebeu uma teoria de arte que não é bem um sistema, mas nela, ele conseguiu
enumerar todas as formas de arte. A partir dessa teoria, as artes passaram a ser julgadas a
partir de algum objeto e não por elas mesmas.”1 Contudo, nessa teoria Platônica de arte, a
poesia foi considerada como portadora de uma estética reacionária e tida como a mais imoral
das artes, pois enfatiza as paixões humanas e por isso, convida o homem a um não
abrandamento da alma. 2
Por outro lado, Aristóteles, que segundo Bayer, pode ser considerado um lógico da estética, e
não um estético,3 teve como preocupação principal a constituição orgânica dos seres e das
coisas e por isso, seu interesse nas artes tinha como principal intuito chegar a um
entendimento sobre a atividade final do artista. Para Bayer, Aristóteles diferencia as ações e
as criações artísticas de um lado e os objetos da natureza de outro e considera que os atos e as
obras de arte estão submetidos ao mesmo princípio de causalidade da natureza. Na obra
poética, Bayer afirma que Aristóteles faz uma distinção entre história e poesia e infere que o
possível é o objeto único da poesia. É sabido que Aristóteles desenvolve o conceito de poesia
como "imitação de acção", uma arte praticada mediante a linguagem, Em Poética, ele
1
Bayer, Raymond. História de la estetica. Traducción de Jasmin Reuter. Ed. Fondo de cultura
económica. 1965. P. 40
2
Bayer, Raymond. História de la estetica. Traducción de Jasmin Reuter. Ed. Fondo de cultura
económica. 1965. P. 40
3
Bayer, Raymond. História de la estetica. Traducción de Jasmin Reuter. Ed. Fondo de cultura
económica. 1965. P. 44
categoriza os tipos de poesia a partir das qualidades dos indivíduos que praticam a acção
(objecto), do meio por que se imita e do modo como se imita.
Outra perspectiva sobre a poesia que é interessante destacar nessa introdução é a de Hegel.
Márcia Gonçalves explica que segundo ele, a linguagem poética é a linguagem em sua “forma
propriamente estética”4. Ela afirma que ele compara a poesia ao fenômeno da experiência
oracular e o oráculo é “a linguagem própria do deus”5. Nesse sentido, a poesia é para Hegel,
segundo Gonçalves, uma “obra essencialmente espiritual”6, pois ela revela a subjetividade
consciente ou a consciência do espírito, a partir do “reconhecimento de que o divino é
conteúdo, e portanto resultado, da própria criação poética.”7 Contudo, o filósofo de maior
importância neste estudo é Hartmann e nesse sentido, ele compactua, em partes, da
perspectiva da arte poética enquanto fenômeno criado pela inspiração do espírito do artista.
Mas ele não faz uma separação tão acirrada entre o aspecto humano e o aspecto divino como
faz Hegel.
A ideia de associar o poeta à figura de um mago capaz de encantar o mundo segundo os seus
desejos é para Hartmannn, o resultado de um pensamento onde a visão do artista pode
descobrir os segredos da natureza e da vida espiritual em virtude de uma consciência de
reconhecimento de um universo que tem, como plano de fundo, uma mesma essência. Nesse
sentido, Hartmann faz questão de distinguir o ato artístico do ato cognoscitivo, entre a visão
8
do objeto e do trabalho intelectual analítico. Além disso, de acordo com Manuel Pérez
Cornejo, na questão estética e que envolve a criatividade, Hartmann assumiu a consciência do
pensamento da “morte de Deus”9, definindo o homem como o único ente criador de valor que
existe no mundo real. Nesse contexto, a atividade poética seria para ele, uma expressão desse
potencial humano criador. É exatamente a poética enquanto expressão do potencial criador do
homem que é o principal objeto desse estudo, que tem como objetivo fazer uma reflexão
sobre a estética da poesia de Herberto Helder, sob uma perspectiva da filosofia de Nicolai
Hartmann.
4
Gonçaves, Márcia. Uma concepção dialética da arte a partir da gênese do conceito de trabalho na
fenomenologia do espírito de Hegel. vol.46 no.112 Belo Horizonte Dec. 2005. P. 269. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2005000200010
5
Idem
6
Idem
7
Idem.
8
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 06
9
Cornejo, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Madrid, 2002, p. 5. Disponible en
https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
1
A Ontologia de Nicolai Hartmann: considerações essenciais
De modo geral, é possível afirmar que a obra de Hartmann está centrada em dois
principais aspectos: ser e conhecer, ou seja, ontologia e epistemologia. No aspecto
ontológico, Herbert Spiegelberg afirma que Hartmann tece uma crítica sagaz à tentativa da
metafísica de procurar uma unidade ordenada para o mundo.10 O fato é que para Hartmann, a
ontologia entrou em decadência no final do século XVIII e segundo ele, ela é a doutrina que
trata da modalidade do ser, das características mais universais dos entes ou em outras
palavras, uma doutrina que “otorga finalmente a aquel que quiere apresar el ente la dirección
11
para ello”. Desse modo, ao que concerne à perspectiva ontológica, Carlos Morujão explica
que Hartmann propõe duas distinções: em primeiro lugar, a distinção entre o ser em si e o que
esse ser é, como resultado de um processo de desenvolvimento. Em segundo lugar, está a
distinção entre o ser ideal e o ser real. De modo geral, Morujão acrescenta que as duas
distinções não se sobrepõem, porque tanto para o ser ideal como para o ser real vale a
distinção entre ser em si e o que esse ser é. Para ele, o pensamento de Hartmann tem como
base a ideia que o que esse ser é de um ser real é também um ser real. Veja a transcrição
usada por ele no artigo Delfim Santos, Hartmann e Heidegger: “Se uma árvore é verde, o
verde da árvore é tão real quanto a própria árvore. Por sua vez, o ser em si é sempre ideal ou
12
rea1.” Sendo assim, o que Hartmann denomina como ser real “pode dividir-se em real da
atitude natural, real do conhecimento científico e real do conhecimento filosófico.”13 O ponto
é que Morujão entende que é dessa relação que Hartmann faz entre o ser real e ideal que
resulta a necessidade de uma doutrina das categorias, que constitui o fundamento da ontologia
de Hartmann, onde as categorias estruturam o modo de pensar cada uma destas três regiões do
ser, como lhes poderíamos chamar. Hartmann afirma que as estruturas do ente se deixam
10
SPIEGELBERG, Herbert. The phenomenological movement - a historical introduction. Ed. Srpinger.
Volume I. P. 365. Disponible en:
https://archive.org/details/HerbertSpiegelbergThePhenomenologicalMovement
11
HARTMANN, Nicolai. Estética. Ed. Universidad Autonóma de México. Trad. Elsa Cecília. Mexico.
1977. P. 523
12
MORUJÃO, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Repositório Universidade Católica
Portuguesa. P. 06. Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
13
Idem
2
também aproveitar como categorias e assim, toda ontologia do filósofo se converte em uma
teoria das categorias, onde os graus da modalidade são as categorias mais universais e
fundamentais tanto do ente como também do conhecimento do ente.14 Nas palavras de
Hartmann:
"Se trata, pues, de si el ser posible puede pasar por un "estado" junto a otros estados del
ente, más aún, de si cabe concebir con exactitud los modos de ser como estados del ente - o,
en primera línea, de lo real. Porque pudieran ser también elementos estructurales de la
manera de ser, y entonces no aparecería separados, sino contenidos indisolublemente en
todos y cada uno de los entes para constituir su manera de ser por la forma de estar
vinculados. Su relación no sería entonces exclusiva como la de las maneras de ser
(idealidad y realidad), sino una relación de complemento mutuo, como la de los momentos
del ser ("ser ahí" y "ser así")." 15
14
HARTMANN, Nicolai. Ontologia. II Posibilidad y efectividad. Traducción de José Gaos. Fondo de
Cultura Economica. Mexico - Buenos Aires. 1956.
15
Idem. P 13
16
TERTULIAN, Nicolas. Sobre o método ontológico - genético em filosofia. Revista Perspectiva , nº
(Universidade Federal de Santa Catarina). V . 27 nº 02. 2009. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2009v27n2p375/15286
17
TERTULIAN, Nicolas. Sobre o método ontológico - genético em filosofia. Revista Perspectiva , nº
(Universidade Federal de Santa Catarina). V . 27 nº 02. 2009. P. 08. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2009v27n2p375/15286
3
Hartmann foram as questões sobre determinismo ou necessidade enquanto a absolutização da
categoria de causalidade.18 Tertulian conclui que inclusive, o pensamento de Hartmann foi
fundamental para proporcionar uma outra matiz às perspectivas teleológicas e deterministas
19
do pensamento de Marx, contribuindo com a obra de Lukács. Sobre a questão da
necessidade, Tertulian afirma que Hartmann assumiu que a relativização da necessidade é
justificada no momento em que é possível considerá-la como o primeiro elo de uma cadeia
causal, desde que revestida por um caráter contingente.
"Todas las categorias que se hallan por encima de la modalidad son categorías constitutivas;
todos los ejemplos en que puede hacerse algo tangible están diferenciados por su contenido,
y las determinaciones que les arrancamos lo son del "ser así", no del "ser ahí" ni de los
modos de éste."
Hartmann complementa que as diferenças de modalidades não são submetidas por ele
(ser ahí) de modo direto, mas sim de uma maneira indireta. O dinamismo entre as categorias
ocorre sempre do particular para o universal. A perspectiva de Merleau-Ponty sobre essa
temática pode contribuir no entendimento do pensamento de Hartmann. Sobre a busca da
essência do ser do mundo, Merleau-Ponty também considera o papel do sujeito e para ele, o
papel da filosofia é este “vínculo umbilical” que liga o ser ao mundo e nele, procurar o
sentido do seu ser para nós. De acordo com Merleau-Ponty, o sentido pode ser considerado
como aquilo que sem o que não haveria mundo. Desse modo, o sentido é para ele essência,
perspectiva que conduz para uma antiga tradição filosófica, onde a essência seria a questão
18
Idem. P. 08
19
Idem.
20
MORUJÃO, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Repositório Universidade Católica
Portuguesa. P. 09. Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
4
última. Desse modo, ele interroga: “Com a essência e o espectador puro que a vê, estaríamos
21
verdadeiramente na fonte? O ponto de convergência entre Hartmann e Merleau-Ponty
ocorre, principalmente, na perspectiva de movimento do ser. Para Merleau, a visão concreta e
encarnada no mundo não se faz de cima para baixo, mas do meio do mundo que rodeia o ser,
que está atrás, acima, abaixo e diante dele. A essência do ser está no que ele define como
configuração concreta e situada que permite esse ser aparecer. Logo, para Merleau, a essência
não aparece de uma “possibilidade de reflexão” que é capacitada para representar um ideal,
mas atua como um “logos do mundo estético” que contorna, configura e se apresenta
escondida por outras. 22. Tal como Merleau, a proposta ontológica de Hartmann envolve esse
descortinamento de camadas. Nas palavras dele:
"El problema más obscuro de la ontología recibe aquí luz: la esencia del ser real y del ser
ideal, que en sí misma no es apresable de ninguna manera, resulta aproximadamente
determinable partiendo de la relación de los modos entre si."
Essa última afirmação de Hartmann será essencial para a compreensão deste trabalho.
De acordo com Hartmann, foi a filosofia de Hegel que proporcionou a possibilidade de
evidenciar o “parecer”, onde a ideia alcança a plenitude do “ser para si”, ou seja, um saber
idêntico sobre si mesma, que Hartmann denomina de conceito. Para ele, é a intuição sensível
21
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira | NÓBREGA, Terezinha Petrucia da Nóbrega. Compêndio
Merleau-Ponty. Editora LiberArs. San Paulo. 2016. P. 106
22
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira | NÓBREGA, Terezinha Petrucia da Nóbrega. Compêndio
Merleau-Ponty. Editora LiberArs. San Paulo. 2016. P. 107
23
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira | NÓBREGA, Terezinha Petrucia da Nóbrega. Compêndio
Merleau-Ponty. Editora LiberArs. San Paulo. 2016. P. 108
5
que proporciona às artes sua superioridade sobre o conceito. Entretanto, Hartmann considera
como um grave erro sustentar que a apreensão estética (também chamada de intuição) é um
tipo de apreender ou que está no mesmo nível do apreender cognoscitivo.
“O olhar é um pensamento.
a luz cambaleia,
a beleza é ameaçadora.
Hartmann finalizou a obra intitulada Estética ao final da segunda guerra mundial e ela
foi publicada em 1953.24 Nicolai Hartmann é um fenomenólogo e compartilha da ideia da
compreensão da estética como algo que pertence ao entendimento de um todo.
24
JONKUS, Dalius. La fenomenologia de la razón y la experiencia estética. Investigaciones
fenomenológicas, nº 11. Lituania. 2014. P. 140 Disponível em: https://vb.vdu.lt/object/elaba:6119732/
25
OTAÑEZ, Joel Hernanández. La obra de arte: fenómeno y estructura. Aportaciones estéticas de
Nicolai Hartmann. Murmullos filosóficos. P. 90. Disponível em:
http://www.revistas.unam.mx/index.php/murmullos/search/search
6
Bem, como dito, Hartmann considera a arte como um fenômeno do mundo e nesse
caso, a estética não pode ser considerada somente um mero prolongamento dela e tampouco
uma etapa superior pela qual a arte passa. Para ele, a estética transita pela esfera do mistério
que as artes procuram guardar. É como se ela tentasse o tempo todo adentrar nessa esfera para
tornar cognoscível as estruturas da arte. Além disso, o objetivo da estética também é captar o
que está ao redor da contemplação do objeto artístico, o ato de prazer que um indivíduo pode
desfrutar ao contemplar uma obra de arte “enquanto o pensamento não o dissolve nem
perturba.”26 Desse modo, a estética é uma ferramenta de conversão: ela olha para o ato de
contemplação e “transforma em objeto o que nesse ato não é e nem muito menos poderia ser”
27
. Diante desse mistério insondável que a arte é, o objeto artístico é para a estética algo
diferente e atua como um objeto de meditação e investigação. Em virtude dessa variedade de
possíveis análises, Hartmann afirma que a atitude do estético não é exatamente a mesma coisa
que uma atitude estética, há portanto, uma diferenciação entre eles.
A poesia, principal objeto artístico de investigação deste estudo, é uma forma de arte e
esta por sua vez, abrange inevitavelmente o âmbito da beleza e inspiração, temas que sempre
foram do interesse do saber filosófico, o que determinou que a estética seja considerada até
hoje um importante desdobramento da filosofia. Por isso, é interessante pensar a linguagem
poética como um fenômeno de manifestação artística que envolve a capacidade humana de
atuar no mundo porque de modo geral, pensar sobre a arte é analisar os valores estéticos. Por
exemplo: o que afinal, é a beleza? Há beleza na poesia? O que mais há além da beleza? Esse
tipo de reflexão é o que, segundo Manuel Pérez Cornejo, permite a descoberta dos princípios
categoriais apresentados por Hartmann e que fazem parte da estrutura fundamental das obras
de arte.
26
HARTMANN, Nicolai. Estética. Ed. Universidad Autonóma de México. Trad. Elsa Cecília. Mexico.
1977. P. 12.
27
Idem
7
elemento representativo do “aparecer sensível da ideia”, ou seja, o belo seria aquilo que
aparece ou deixa-se ver no mundo sensível. A fenomenologia pretende desmontar a dualidade
originada com o platonismo: onde uma coisa é o mundo da materialidade e outra coisa é o
mundo do pensamento.28
Para Nicolai Hartmann, a Estética é uma categoria de conhecimento que tem uma
tendência para converter-se em ciência, desde que tenha como objeto a entrega e o êxtase que
produzem o belo. Como foi mencionado, ele não considera que a a arte e a estética sejam
somente prolongamentos uma da outra e tampouco a visão do contemplador. Há na estética
algo mais, para Hartmann, a estética é uma ferramenta de desvelamento do mistério que a arte
guarda por todos os meios possíveis e nesse sentido, a sua função envolve o ato de
contemplação, que existe em razão do pensamento. Ora, em virtude do ato de contemplação, a
beleza, enquanto valor intrínseco da arte, possui dentro da filosofia de Hartmann uma função
essencial no estudo da estética, sendo esse o principal conceito dessa ciência que se limita a
duas principais questões: “a análise da estrutura e do modo de ser do objeto estético e a
30
análise do ato contemplativo, do outro”. Assim, a formulação do valor da beleza ou da
“forma bela”, para Hartmann, é abrangente e engloba tanto as nobres proporções de uma
28
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Compêndio Merleau-Ponty.
Editora LiberArs. 1ª edição. São Paulo, 2016. P 354.
29
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 543.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf
30
Kirchof, Edgar Roberto. Estética e semiótica de Baugmgarten e Kant a Umberto Eco. EDIPUCRS,
2003. p. 19
8
escultura, a distribuição dos espaços na arquitetura, o ritmo e a sequência de intervalos em
uma melodia, a construção de toda uma “frase” musical ou da estrutura cênica, muito artística,
de uma obra de teatro, mas também o jogo de linhas de uma paisagem, a majestosa
configuração de uma árvore gigante, a fina nervura de uma folha. 31 “Tal como na formulação
do velho eidos aristótelico, a forma Hartmanniana do belo é tida como forma essencial. 32
Portanto, há então as categorias que atuam como princípios ônticos que permitem
apreensão do objeto artístico pela reprodução, que capta a relação dinâmica entre os estratos.
Em suma, se trata de um “ver através de” que abrange a percepção e adentra num poderoso
processo de descortinamento que mira o âmago, que passa pelo externo, pela matéria, pois
está carregada de valores, ainda que transitório, mas sempre contínuo e dinâmico. Nas
palavras de Hartmann: “En la conciencia estética, la percepción no se dirige tampouco a la
conexión objetiva de las cosas, sino a otra conexión que consiste sólo en la relación al sujeto y
33
a su manera de ver.” Nesse ponto, a objetivação do subjetivo atua como uma simulação da
realidade percebida pelo “percipiente” estético. Nela, os estratos não são acessíveis aos
sentidos, mas é todo um mundo interior que tem intrínseca uma disposição de abertura através
da forma à intuição, que é autônoma. Hartmann faz um esforço para deixar clara essa relação,
que define como relação do aparecer, justamente por ser uma relação estrutural que está
contida no objeto. As formas de objetivação são diferentes e a função delas é acolher o
conteúdo apreendido, obedecendo sempre à condição material. É fundamental perceber que na
categorização de Hartmann, o primeiro plano, que é o material, é real. Aquilo que surge
depois na relação do aparecer é, então, o conteúdo irreal:
31
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição.
P. 18
32
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição.
P. 18
33
Idem. P. 63
9
Siempre, sin embargo, fugaz o duraderamente, se cumple la ley de la
objetivación: la imagen total tiene dos estratos y desde luego tiene la
heterogeneidad característica de los estratos, tanto según la estructura como
según el modo de ser. Pues sólo el primer plano, el producto material,
sensible, es real, el trasfondo que aparece, el contenido espiritual, es irreal.
Aquél existe en sí junto con su plasmación, éste, por el contrario, "para" un
espíritu vivo dispuesto a recibir, que pone lo suyo y se convierte en
reproductivo al aprehender.34
34
Idem. P. 106
35
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 544.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf
36
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 545.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf
10
De modo geral e em resumo, Hartmann considera que as artes representativas possuem
uma estrutura mais complexa, pois nelas, o plano de fundo está dividido em uma
multiplicidade de estratos. De igual forma, Merleau-Ponty afirma que “o reino da ficção,
ligado inevitavelmente com o perceptivo, é mais propício para dar conta da multiplicidade na
qual consiste a nossa realidade e darmos conta de nós mesmos nela.”37 No caso da literatura,
aparecem simultaneamente os sentimentos, as emoções dos personagens, suas características
essenciais, o destino particular de cada um dos protagonistas, a trama vital formada pelo
cruzamento de seus destinos, os conceitos gerais sobre o mundo e a existência que orientam
as ações e valores e desvalores que realizam tais personagens ao atuar no mundo através de
suas decisões. Uma análise detalhada dos estratos na literatura será feita num momento
posterior deste trabalho. Por ora, é importante ainda permanecer na perspectiva geral do
objeto artístico, independente da sua classificação, e na relação de aparecer.
37
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Compêndio Merleau-Ponty.
Editora LiberArs. 1ª edição. São Paulo, 2016. P 354.
38
Morujão, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Universidade Católica Portuguesa. P. 175.
Disponível em
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
39
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Compêndio Merleau-Ponty.
Editora LiberArs. 1ª edição. São Paulo, 2016. P 356
11
o observa e só existe na relação do aparecer para o sujeito da contemplação. Isso acontece
porque há no objeto estético um jogo de diferenças de conteúdo e estrutura entre os estratos.40
Delfim Santos considera que a relação proposta pela Estética de Nicolai Hartmann,
onde a arte e a atitude do artista atuam como objeto de estudo, não permite que o sentimento
ao redor do enigmático contido na arte se desfaça. Assim, a arte contém o enigma e abre um
universo de possibilidades para a investigação filosófica e o filósofo ao contemplar o belo
estético transita pela profundidade de um inconsciente muitas vezes impenetrável. 41 A partir
daqui é possível pensar a proposta de análise categorial na poesia, que é o objeto estético
desse trabalho.
“A beleza é a ciência cruel, imponderável, sempre fértil, da magia? Então sim, então essa
energia à solta, e conduzida, é a beleza.” (Herberto Helder)
40
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição. P.
194
41
Hartmann, Nicolai. Estética. Universidad Nacional autónoma de Mexico. Mexico, 1977, 1ª edição. P.
07
42
Morujão, Carlos. Delfim Santos, Hartmann e Heidegger. Universidade Católica Portuguesa. P. 178.
Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16338/1/(2008)%20Delfim_Santos_Hartmann_Heidegger
.pdf
12
En efecto: no puede negarse el hecho de que todos los grandes constructores
de sistemas conceptuales han sido capaces de intuir principios o categorías
que les permitieron resolver problemas planteados por determinados grupos
de fenómenos; pero, al mismo tiempo, no es menos cierto que, al establecer
sus teorías, cometieron siempre una ‘<transgresión del límite”
(Grenztíberschreitung), consistente en trasladar las categorías descubiertas
en los niveles más altos o más bajos del Ser a dominios de fenómenos
distintos, por considerar que tales principios estaban dotados de un potencial
explicativo más universal del que realmente poseían. 43
Como foi mencionado no capítulo anterior, Hartmann considera que nas artes em
geral, a revelação artística ocorre a partir de um processo de ruptura do plano de fundo através
do jogo dinâmico de estratos. Nas artes representativas, como é o caso da literatura (e poesia),
o que determina essa ruptura é o aparecimento simultâneo dos estratos, numa mesma sucessão
e com a mesma dependência em que devem estar ônticamente.44 Portanto, a relação do
aparecer ocorre da esfera do anímico para a esfera do orgânico para somente assim, chegar ao
material. É assim que a relação transcende o limite e chega na percepção anacrônica do Ser
através dessa organização significativa do objeto artístico É importante frisar que a relação do
aparecer é simplesmente o que Hartmann define como força de objetivação contida em si
mesma numa sucessão de estratos que atua na obra de arte. Basicamente, isso acontece porque
o objeto artístico revela um conteúdo espiritual que inevitavelmente aparece na matéria
sensível, mas esse aparecimento não está no conceito ou pensamento, mas sim no nível da
intuição, razão pela qual ele considera ser uma relação de caráter imediato.
É possível ousar dizer que o jogo dinâmico das categorias de estratos proposto por
Hartmann atua metaforicamente de forma semelhante ao labirinto de Ariadne, onde os fios
são os próprios estratos pelos quais o sujeito que contempla e objeto estão conectados. Apesar
da literatura conter uma multiplicidade de estratos e abranger todos os aspectos da vida
humana, Hartmann a considera como a arte com menor capacidade de penetração no sensível,
pois usa a palavra como matéria-prima, que por si dificulta a análise categorial. O filósofo
43
Cornejo, Manuel Perez. A estética de Nicolai Hartmann: investigação em torno da arte. P. 19.
Disponível em:
http://www.agustinosvalladolid.es/estudio/investigacion/estudioagustiniano/estudiofondos/estudio1995
/estudio_1995_3_05.pdf
44
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 202
13
destaca que essa dificuldade decorre do fato da linguagem; enquanto ferramenta para capturar
a palavra; não ser o meio mais adequado para a aparição do inefável. Entretanto, apesar dessa
inalcançabilidade daquilo que não pode ser dito, Hartmann assume que é possível distinguir
traços essenciais dos estratos do objeto na literatura. Esse desafio acontece, segundo ele,
principalmente porque os conceitos costumam contradizer a intuição. E com a próxima
passagem, o referido autor expõe o ponto central do problema sobre a palavra como
matéria-prima:
Hartmann argumenta que ao usar a palavra como matéria, a literatura limita-se ao que
pode ser expresso através dela e assim, arrisca-se a não alcançar a totalidade. Entretanto,
apesar de não atingir essa totalidade, as palavras podem remeter à imagens, sentimentos,
dramas e conflitos que fazem parte da vida humana e é exatamente aí que está o seu valor. A
questão da inalcançabilidade da totalidade se origina, segundo Hartmann, do fato do uso da
linguagem na literatura não envolver necessariamente conceitos, apesar de estar limitada a
fazer uso deles durante o ato da descrição. Por isso, Hartmann reconhece que o uso deles
dentro de uma narrativa sempre foi um obstáculo para a estética. Nas palavras de Hartmann:
45
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 203
46
Idem. P. 205
14
Sendo assim, a literatura ultrapassa o conceito apesar de fazer uso dele apenas como uma
maneira de criar uma narrativa:
Nesse sentido, o filósofo afirma que a literatura consegue ir além daquilo que
verdadeiramente se trata. Sendo assim, a arte literária oferece um conteúdo que se apresenta
de forma semelhante ao que ocorre na vida humana: “os destinos, os sofrimentos e o amor, na
conduta externa dos homens.” Na passagem a seguir, Hartmann destaca o valor da linguagem:
47
Idem. P. 206
15
aparecer. Essa equivalência não está completamente evidenciada, uma vez que é sempre algo
não dito e inefável, mas que capta traços da amplitude da vida humana e é representada
através da dramaticidade.
“O importante não é o que dizem, mas sim como fazem. Em geral, a única
coisa que importa é o imponderável. Não se trata de que tampouco nunca
seja importante o conteúdo do que é discutido; isso é óbvio. Mas não é disso
que se trata. Isto é, sempre algo não dito e inefável.”
48
Idem. P. 36
49
Idem. P. 36
50
Idem. P 37
16
nenhuma modalidade, forma ou conteúdo, mas sim um comportamento, que ele define como
hacer o estado del sujeto. Hartmann argumenta que o valor da beleza não está aderido às
coisas como modalidades ônticas, independentes da maneira de ser e da força perceptiva do
sujeito, mas ao contrário, ela está justamente condicionada pela postura interior do sujeito
receptor e é distinta em cada tipo de arte. É por isso que a relação entre artista, objeto artístico
e sujeito contemplador é de codependência e acontece através de um jogo dinâmico,
modulado pelos estratos.
Bem, basicamente, o que Hartmann afirma e já foi exposto aqui é que o objeto
artístico está dividido em dois planos: primeiro plano real e o plano de fundo irreal. Na
literatura, o primeiro estrato do primeiro plano real é a palavra. Segundo Cornejo, a proposta
de Hartmann envolve a ideia de que (...) “as palavras que vão deletreando o leitor,
51
apoiando-se nas categorias do espaço e tempo da intuição” e nesse processo de construção
da estrutura da narrativa, as palavras começam a se integrar ao estrato intermediário, pois a
escrita está fundamentada sobre o sistema de símbolos. No que concerne ao uso da palavra
como matéria, Hartmann afirma que ela se convierte en material de plasmación superior e a
imagem escrita adquire uma função de retenção que confere consistência, capacidade de
resistência e duração que fazem da literatura um objeto extra artístico.52
51
CORNEJO, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Universidad Complutense de
Madrid. Madrid, 2002. P. 164. Disponible en: https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
52
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 120 - 121
53
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 208
17
esse estrato intermediário abrange a esfera do movimento, de tudo aquilo que denota uma
visibilidade intermediária e é facilmente perceptível e o estrato posterior, que aparece através
54
desse engloba os sentimentos, as emoções e as “características humanas típicas.” Esse
estrato é perceptível em virtude dos tipos de ações efetuadas pelos personagens. Nesse ponto,
o leitor se depara com as intenções, os conflitos e motivações dos personagens. Aqui a
empatia revela-se como um elemento atuante na relação do aparecer dos estratos. Essa
sucessão é dinâmica, um estrato conduz o leitor a outro e aparece no outro e assim
sucessivamente. Desse modo, começa-se a adentrar num plano mais oculto, profundo da
psique humana, que Hartmann caracteriza como formação anímica e que pertence ao caráter
do homem ou, el ethos del hombre. A forma de atuação dos personagens revela os traços do
caráter, nas palavras de Hartmann:
Esse estrato é perceptível em virtude dos tipos de ações efetuadas pelos personagens.
Nesse ponto, o leitor se depara com as intenções, os conflitos e motivações dos personagens.
Aqui a empatia revela-se como um elemento atuante na relação do aparecer dos estratos. Essa
sucessão é dinâmica, um estrato conduz o leitor a outro e aparece no outro e assim
sucessivamente. Desse modo, começa-se a adentrar num plano mais oculto, profundo da
psique humana, que Hartmann caracteriza como formação anímica e que pertence ao caráter
do homem ou, el ethos del hombre. A forma de atuação dos personagens revela os traços do
caráter, nas palavras de Hartmann:
54
CORNEJO, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Universidad Complutense de
Madrid. Madrid, 2002. P. 165. Disponible en: https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
55
Idem. P. 209
56
Idem
18
Destino é o nome que Hartmann confere a esse estrato. É importante frisar que o
destino a que ele refere-se aqui não é num sentido de uma providência divina que interfere no
dia a dia do homem, mas assume um sentido de uma cadeia de eventos que o homem prepara
(tece) para si mesmo, como um resultado da totalidade das suas ações, assim como é possível
observar nas tragédias gregas. Hartmann considera que a aparição do destino é sempre um
momento crucial na literatura épica e dramática, pois é uma forma da literatura reconstruir e
deixar aparecer essa totalidade que passa imperceptível no cotidiano das pessoas comuns.
Portanto, é função da literatura fazer a conexão do homem com essa totalidade da vida e
provocar então, a reflexão necessária. Assim, a literatura, enquanto objeto artístico, promove
uma autêntica visão ética dos valores ao atuar como uma condição prévia para compreensão
dos conflitos humanos através de uma perspectiva aguda e plástica. Hartmann elabora de
forma objetiva o que ele considera como destino:
“Esta totalidad puede ser llamada el destino, ya sea del individuo o del que
entreteje a muchas personas. Ahora bien, aquí no debe tomarse “destino”
literalmente - como aquello que una providencia superior determina para el
hombre - se trata más bien del destino que el hombre se prepara a sí mismo
y que sólo a él se debe.”57
O destino não é o último dos estratos. Hartmann considera que é possível adentrar
num nível ainda mais profundo dos estratos quando se trata da retratar a condição humana e
assim, mais uma camada vai sendo exposta: o estrato das “ideias gerais”, ou como menciona
Cornejo, allgemeine Ideen.58 É aqui que estão concentrados os valores dos personagens. Nas
palavras de Hartmann:
57
HARTMANN, Nicolai. P. 210
58
CORNEJO, Manuel Pérez. Arte y Estética en Nicolai Hartmann. Universidad Complutense de
Madrid. Madrid, 2002. P. 165. Disponible en: https://eprints.ucm.es/2304/1/T18423.pdf
19
parciales), se comprende sin más la inmensa distancia a la que puede llegar
a estar el hombre verdadero con respecto a la riqueza potencial de su esencia
original —o quizá debiera decirse ideal.”59
Por fim, esse último estrato tem um caráter mais geral, que Hartmann chama de ideal.
De acordo com ele, o estrato das ideias gerais é formado por características menos concretas e
intuitivas, pois envolve aspectos gerais da própria vida humana. Em síntese, esse estrato
representa a imagem da vida expressa no destino de um indivíduo, porém de um modo mais
generalizado. Dito de outro modo: a identificação com aspectos da vida sem necessariamente
uma razão específica para isso. Trata-se aqui de um estado de compassividade perante a
fortuna ou aos infortúnios da existência, apreendidos nas entrelinhas do que não está dito
claramente no texto. Por isso, envolve o que Hartmann chama de interpretação da moral da
história:
“Lo general no necesita tener tampoco la forma de una ideia moral como en
los ejemplos anteriores; puede tener la forma de una inquietud metafísica,
una angustia vital, una inseguridad inexplicable - quizá el sentimiento de
impotencia frente a las fuerzas numerosas e incalculables que entran en
juego en el proprio destino.”60
Esse estrato, segundo Hartmann, conecta o homem aos âmbitos religioso e político da
existência. O termo religioso usado por ele não é num sentido institucional, mas refere-se
aquilo que envolve a sacralidade da vida. Já o termo político envolve aspectos sociais da vida
ao fazer uso de temas como justiça, liberdade, igualdade, etc. Assim, Hartmann conclui que a
literatura oferece ao homem a capacidade de reflexão sobre a “riqueza potencial da essência
61
original” através de uma visão plástica dos valores éticos, sem necessariamente, mesclá-los
aos estéticos, ao mesmo tempo em que transforma-os em objetos artísticos. É aqui que os
personagens literários personificam a imagem do herói, do guerreiro, da virgem pura, do
velho sábio e representam ideais do indivíduo.
59
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 211
60
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 213
61
Idem. P. 211
20
que espera o momento certo para ser desvelado, enquanto faz das imagens reveladas pela
linguagem e limitadas pela palavra, um objeto de arte e portanto, da estética.
21
(...) “é por dentro de poemas que transportamos esse estranho alimento de todas as mortes.”
Herberto Helder
Nessa parte, faz-se necessária uma pausa na estética de estratos de Hartmann para
introduzir uma breve apresentação do poeta escolhido para esse estudo: Herberto Helder.
Segundo Carla Delfina Marques Carvalho, Herberto Helder foi um dos autores que mais
fortemente contribuiu para a definição de uma nova linguagem poética portuguesa na segunda
metade do século XX. Nascido em 1938, o poeta vivencia a morte da mãe aos oito anos de
idade. Cursou a Faculdade de Direito de Coimbra e a Faculdade de Letras. Foi no
Arquipélago da Madeira, sua terra Natal que ele publicou os seus primeiros poemas, numa
coletânea chamada Arquipélago. Ele se destacava pela ruptura com os estereótipos poéticos
que baseavam-se na formalidade e na subjetividade. Participou como membro do grupo Café
Gelo, que era frequentado por diversos e renomados autores da literatura portuguesa e de certa
forma, foi influenciado pelo surrealismo. O seu primeiro livro, Amor em Visita, foi publicado
em 1958 e além da escrita, Helder também teve outros trabalhos, como operário e delegado de
propaganda médica. O seu quarto livro, Passos em Volta, foi publicado em 1963. Em 1994
recusou o prêmio Pessoa de literatura portuguesa. O poeta optou pelo isolamento e se mostrou
contrário à mediatização dos prêmios literários e qualquer outra forma de glorificação e
glamourização da escrita poética. Carla Delfina Marques Carvalho conta que o seu
afastamento rompeu com a tentativa do público de marginaliza-lo ou até mesmo de tentativas
de manipulação. Esse afastamento consciente de Helder o manteve à margem de críticas e
22
injúrias e além disso, era uma forma de se blindar contra a comercialização banal da literatura,
que ele considerava uma arte. De modo geral, o público tinha um certo distanciamento da
poesia de Helder, que era considerada nomeadamente ilegível, uma vez que resistia aos
discursos dominantes, além de ser também considerada como obscura e acessível somente a
um número pequeno de leitores. Contudo, a falta de adesão do público e as constantes críticas
pelo fato de ser conhecido como o poeta do ilegível não era motivo de preocupação para
Helder, para quem qualquer crítica literária é somente uma mera forma de mediação entre a
obra e o leitor. As palavras de Herberto Helder sobre as críticas: 62
A crítica? Bem vê: nas circunstâncias em que me encontro, a crítica não me poderia ajudar.
Ela de resto nunca ajuda um autor. Tende a fazer de mediadora entre uma linguagem e um
entendimento. Ajudará o leitor. Visto que bani das minhas preocupações a ideia de
comunicação, não considero a intervenção desse primeiro decifrador, do mediador. Porque
não estou interessado em que o leitor adira […]. 63
De acordo com Rosa Maria Martelo, a escrita de Herberto Helder articula-se de modo
improvável, um pouco inatual e contemporânea e por isso, ela considera que ele teve um
62
CARVALHO, Carla Delfina Marques. O símbolo na poética de Herberto Helder: uma linguagem
universal de água, fogo, terra e ar. Universidade da Madeira. 2016 / 2017. P. 12 - 16.
63
V. Entrevista, de Fernando Ribeiro de Mello, a Herberto Helder in Jornal de Letras e Artes (N.º 139),
17 de maio de 1964.
64
V. “Herberto Helder: morreu o poeta que nunca se deixou capturar”, in Observador, 24 de março de
2015; Obs.: Caricatura retirada do “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, 16 de outubro de 1958.
23
papel relevante na viragem e renovação da poesia de Portugal, que tiveram elementos que se
misturavam de modo determinante, como o neo-vanguardismo e a tradição modernista. 65
A obra de Herberto Helder é, segundo Juliet Perkins, um labirinto de imagens, temas e
67
estilos e uma das características presentes na obra do poeta é que ele tenta instaurar
simultaneamente uma esfera mágica e tecnológica. 68
65
MARTELO, Rosa Maria. Os nomes da obra - Herberto Helder ou o Poema Contínuo. Ed. Sistema
Solar (Documenta). Lisboa. Abril 2016. P. 25 - 26. Disponível em:
https://issuu.com/sistemasolar/docs/rosa_maria_martelo_os_nomes_da_obra
66
FARRA, Maria Lúcia Dal. Herberto Helder, sigilosamente Herberto. Agulha Revista de Cultura. Nº
100 | Julho de 2017. Disponível em:
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2017/08/maria-lucia-dal-farra-herberto-helder.html
67
PERKINS, Juliet. Análise de um poema de Herberto Helder. Fundação Calouste Gulbenkian |
Revista Colóquio. Nº 65 | Janeiro de 1982. P. 14. Disponível em:
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=65&p=14&o=p
68
Idem
24
relacione com a metáfora, também rejeita uma polarização nítida entre
pontos de partida e de chegada. A transferência desta analogia para a
linguagem permite a sugestão de que os próprios elementos (sons, palavras,
frases) sofrem uma metamorfose ao girarem em torno do círculo de
significação. Sem um ponto de referência exterior e fixo, mas sim a
contiguidade dentro do círculo, os elementos linguísticos acumulam uma
sucessão de associações metafóricas que resultam dum processo
essencialmente metonímico, ou seja, de combinação e justaposição.” 69
69
Idem. P14 -15
70
CARVALHO, Carla Delfina Marques. O símbolo na poética de Herberto Helder. Uma linguagem
universal de água, fogo, terra e ar. Dissertação de Mestrado da Universidade da Madeira. Outubro de
2017. Disponível em: https://digituma.uma.pt/bitstream/10400.13/1906/1/MestradoCarlaCarvalho.pdf
25
Esse é o momento da investigação em que a obra de Helder encontra a estética de
Hartmann. Se para o primeiro, o poeta é alguém que vivencia na prática as demarcações da
linguagem, para o segundo, de acordo com Nuno Júdice, o poeta é um vidente, um
clarividente, um descobridor, aquele que transita pela vida com os olhos abertos para tudo e
que, por ele mesmo, retira as paixões e as figuras do cenário da vida até diante da distância
dos objetos estéticos. Para Hartmann, é na poesia que a linguagem se cria e se recria, por
isso, ele considera o poeta como um descobridor do humano. 71
Para Herberto Helder, a
linguagem é o tema central da poesia e Nuno Júdice afirma que para esse poeta não é o
mundo mas sim a língua que constrói a ordem da matéria e dos objetos que integram o poema
– “e essa língua é, ambiguamente, quer a língua que se fala quer, por sinédoque, o objecto que
72
é a língua”. Um ponto comum entre eles é o fato da poesia ser um meio de intervenção da
linguagem, onde ela assume uma postura de ferramenta de criação e uma forma de
transcender as fronteiras da racionalidade, tendo na figura do poeta o sujeito dessa potência
criativa.
71
HARTMANN, Nicolai. Estética. P. 178
72
JÚDICE, Nuno. As fronteiras do poético na poesia de Herberto Helder. Diacrítica | Centro de
estudos Humanísticos da universidade do Minho. Nº 03 | Vol. 23 | Janeiro de 2009. Disponível em:
https://puredev.unl.pt/portal/en/publications/as-fronteiras-do-poetico-na-poesia-de-herberto-helder(9c8
3d57f-5221-4275-a05f-64f4480a71b7).html
73
Gonçaves, Márcia. Uma concepção dialética da arte a partir da gênese do conceito de trabalho na
fenomenologia do espírito de Hegel. vol.46 no.112 Belo Horizonte Dec. 2005. P. 269. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2005000200010
74
Idem
75
Idem
76
Idem.
77
Ponty, Maurice Merleau. A prosa do mundo. Tradução de Paulo Neves. Ed. Cosac Naify. P. 60.
26
com ostentação.78 Em “Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty também fala da poesia
como uma modulação da existência, pois a linguagem particular utilizada num poema tenta se
moldar a existência através de um aparato material e poético que permite que ela seja
79
eternizada.
Hartmann argumenta que ao tecer a forma da obra que aparece no primeiro plano
linguístico real, a poesia acaba por adquirir uma importância superior em relação às outras
literaturas. Na prática, isso acontece porque o efeito de versificação e do jogo dinâmico
contido na poesia fazem com que ela salte a etapa do estrato intermediário contido no
primeiro plano real e penetre diretamente no plano de fundo irreal a partir do estrato dos
sentimentos, paixões, afetos e valores. Na obra de Herberto Helder, o salto entre estratos e o
dinamismo existente entre eles são extremamente evidentes. Entretanto, esse salto é para
Hartmann, segundo Cornejo, um efeito metafísico sem aparente solução. A dinâmica de
formas versificada pelas palavras da poesia conduz o leitor para o universo dos sentimentos,
dos destinos humanos e valores ideais da obra. Na sequência é apresentado um esquema
gráfico para que seja possível assimilar melhor o salto entre as etapas dos estratos na poesia:
78
Idem, P. 06
79
Ponty, Maurice Merleau. Fenomenologia da percepção. Tradução de Alberto Ribeiro de Moura. Ed.
Martins Fontes. 2ª edição. 1999. P. 209.
27
Como é possível perceber através da ilustração, Hartmann assume a existência de um
salto entre um estrato e outro e isso indica uma diferenciação da poesia em relação às outras
artes representativas. É exatamente esse salto que esse trabalho pretende explorar na obra de
Helder, assim como a identificação das outras categorias de estratos. Essa análise será feita a
partir de um dos poemas de Herberto Helder.
Ana Lúcia Guerreiro escreveu que a poética de Herberto Helder invalida qualquer
hipótese da poesia ser vista como meramente como uma arte mimética80, mas que as imagens
verbais que ele cria a partir da palavra sustentam a matéria da poesia em uma analogia com
aquilo que é possível definir como real. A combinação de palavras liberam um conteúdo
emocional arquetípico e arcaico, onde o ser é colocado em imanência e eminência. A poesia
de Herberto Helder descortina verdades metafóricas com palavras que produzem imagens em
movimentos, a partir do jogo de estratos proposto por Hartmann, revela beleza, provoca
empatia e preserva a natureza enigmática da estética. A poesia de Helder assume a
multiplicidade ôntica proposta por Hartmann.
80
GUERREIRO, Ana Lúcia "A “antropófaga festa”. Metáfora para uma ideia de poesia em Herberto
Helder"
Diacrítica - Revista do Centro de Estudos Humanísticos, nº 23/3, Série Ciências da Literatura, Centro
de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2009, pp. 9-22. Disponível em:
http://cecbase.letras.ulisboa.pt/pesquisas/?task=tax&view=detail&rid=90162&tax=keywords&tid=4468
&rel&relid&subbase
28
Delfim Santos escreveu que a palavra é significativa de um mundo que pretende
sempre desvendar, encobrindo outro ao mesmo tempo. Mostra para esconder e o que esconde
é muito mais importante do que mostra. Logo, há beleza contida nesse processo. Segundo ele,
essa “tensão problemática” entre a palavra e o pensamento é algo que tem origem na
antiguidade, estando presente, inclusive, em Platão e Aristóteles. Nesse sentido, Delfim
Santos afirma:
O objetivo de usar a citação de Delfim aqui não é adentrar numa discussão sobre o que
é ou não é a linguagem, mas sim apontar o potencial criativo do poeta ao usá-la ao selecionar
qual palavra usar. Ao fazer isso, o poeta ascende ao domínio do uso da linguagem e ali, no
instante da criação do poema, ele pode tudo. A palavra é então o primeiro estrato do primeiro
plano real proposto por Hartmann. Na poesia, é nela que tudo começa e através dela que
Helder pode tudo ao escrever. Antes de prosseguir, é importante ressaltar que seria impossível
fazer uma análise completa da obra de Herberto Helder - que é bem extensa - neste trabalho,
mesmo porque o objetivo principal aqui é captar a dinâmica de estratos da proposta estética de
Nicolai Hartmann. Para isso, o poema escolhido é Antropofagias, que pode ser encontrado no
final, logo após a parte da análise. O poema mencionado foi extraído da obra Ou o poema
contínuo.
Como foi dito, Hartmann afirma que a palavra é a matéria-prima do poema. De modo
geral, em seus poemas, Herberto Helder esculpe a sua obra e organiza as palavras de um
modo nada convencional (ou lógico), mas a composição (ou disposição das palavras) segue
81
SANTOS, Delfim. Da Filosofia do Homem. Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª edição. Lisboa. P.
134 -135
29
um caminho diferenciado, como bem apontou Eunice Ribeiro no artigo O sombrio trabalho
da beleza (notas sobre o barroco em Herberto Helder). Segundo ela, a composição do poema
segue em direção a um processo de deflagração e de suspensão formal como condição de
ingresso no não-saber poético no fulgor calcinante e inenarrável da sua matéria tremenda 82.
Dentro dessa estrutura, a composição metapoética de Helder conecta de imediato o leitor ao
assombro e assim, seus poemas quase sempre remetem o leitor ao caos, promovem o encontro
com o carnal e enquanto tudo parece confuso, o leitor é conduzido para uma experiência
estética onde tem início o jogo dinâmico de estratos proposto por Hartmann.
82
RIBEIRO, Eunice. O sombrio trabalho da beleza (notas sobre o Barroco em Herberto Helder).
Universidade do Minho. Disponível em:
https://uniandrade.br/revistauniandrade/index.php/ScriptaUniandrade/article/view/1074
83
GUSMÃO, Manuel. Herberto Helder: o poema contínuo na primeira década de 2º milênio. Página
131. Disponível em: http://cehum.ilch.uminho.pt/cehum/static/publications/diacritica_23-3.pdf
30
Portanto, de acordo com Hartmann, as palavras são o que de real há no poema e assim,
guiam o leitor para os estratos e o primeiro estrato do real faz um salto para o primeiro estrato
do irreal: o das características humanas gerais, onde evidencia-se as emoções, os sentimentos.
Não há na obra de Helder nenhum contexto, nenhum personagem tecendo diálogos e
inserindo o leitor em um universo diferenciado. As palavras revelam de imediato o estrato das
emoções e sentimentos. De acordo com Ana Lúcia Guerreiro, o título Antropofagias - que
84
remete claramente à ideia de morte - expõe a ideia da finitude implícita no poema.
Entretanto, o título do poema não aponta para uma morte qualquer, mas conecta, a princípio, o
leitor à imagem de nutrição de carne humana. Logo, a ideia central do título é reproduzir um
comportamento em que o homem consome o homem, coisa que por si só pode no primeiro
momento, gerar certa repulsa. Sendo assim, a primeira impressão ao estabelecer-se um
contato com o título do poema pode ser o estranhamento. Porém, Ana Lúcia Guerreiro
menciona que ao longo do mesmo, o poeta trava uma conversa com o leitor, no sentido de
querer instigá-lo ao conhecimento. O primeiro texto começa com os dizeres: Todo discurso é
apenas o símbolo de uma inflexão da voz [...], a partir daí o leitor experimenta uma
intensidade de emoções, como se estivesse a um passo de uma descoberta única. A ansiedade
da descoberta revela-se a partir da equivalência com a ansiedade contida na própria
existência, no sentido de existir ser ansiar, seja por algo, por alguém. Diálogos são revelados:
84
GUERREIRO, Ana Lúcia. A antropófaga festa. Metáforas para uma ideia de poesia em Herberto
Helder. P. 09. Disponível em: http://cehum.ilch.uminho.pt/cehum/static/publications/diacritica_23-3.pdf
31
um conciliábulo entre poeta e leitor e Helder faz a primeira pergunta: “Estão a criar moldes?”
Ansiedade, curiosidade e a sensação de se transitar no mundo sem dele nada saber. A relação
do aparecer revela ao leitor um mundo em constante mutação ou em outras palavras,
depara-se com o próprio devir da existência.
Segundo Hartmann, depois do primeiro plano real - que é o estrato das emoções e
sentimentos humanos, aparece o estrato que ele chama de destino e que assume como um
estrato revelador de conflitos, feitos e tudo aquilo que faz parte do destino dos homens. Em
Antropofagias, o destino é perpetuado pela busca de significado da existência. Ao longo do
poema, Helder cria uma simulação da realidade que atinge o âmago da intuição autônoma do
sujeito. O poeta leva o leitor para o estrato dos conflitos humanos e nesse estrato ele encontra
a comunicação e a imagem central revelada parece ser aquilo que pode ou não pode ser dito,
as razões por trás do verbo, dos versos, das falas do cotidiano. Como já foi mencionado,
Hartmann afirma que qualquer sentido só pode existir perante a existência de um sujeito e na
obra de Helder, o leitor pode, pela empatia despertada pelo poema, estabelecer paralelos com
a própria existência.
No texto 2, Herberto Helder escreveu: [...] “mas desiste-se porque «a mão» vem
depressa” [...] e em outro momento [...] “agora estamos a fazer força para afastar o excesso |
de planos multiplicidades antropofagias para os lados todos que andam. ”[...] No poema, o
destino do homem revela uma interioridade de desistências e esforços de planos
multiplicidades antropofagias, num sentido em que o homem consome (ou nutre-se) daquilo
que é criação da própria humanidade ou em outras palavras, o homem alimenta-se do homem.
Em outro momento do poema, especificamente no texto 3, ele escreve: “somos obrigados «a
ver isso»| que faz o pé forte no sítio forte o pé leve no sítio leve | o sítio rítmico no pé rítmico?
32
e digo assim porque se trata do princípio «de cima para baixo | de baixo para cima» | que
este trecho, é possível perceber o confronto inevitável com as situações da
faz? que fazem?” N
vida que surgem e que induzem o indivíduo à reflexões mais profundas da própria existência.
A narrativa coloca o leitor com aquilo tudo que parece inusitado, pois esse estrato do destino
expõe realidades não tão imediatas: há o pensamento de morte. “o «problema» do bailarino é
coisa que não interessa por aí além | mas são chegados os tempos de agonia | estamos
«exaltados» com esse pensamento de morte”.
É nesse ponto que o jogo avança e mais uma nova cartada é colocada na mesa e então
o poema passa a transitar por um estrato ainda mais profundo. Como foi mencionado, muitas
das palavras presentes na obra de Helder remetem à representação e linguagem. Dessa forma,
adentra-se na ideia de um universo ôntico de ser-linguagem-criação, onde tudo parece ser
possível, onde a existência é contestada sob a ótica do enigma: ninguém sabe de onde veio e
nem para onde vai, tudo permanece protegido por um manto de um mistério impenetrável.
Transita-se pela transdimensionalidade ontológica: “Eu podia abrir um mapa: «o corpo» com
relevos crepitantes | e depressões e veias hidrográficas e tudo o mais | morosas linhas e
gravações um pouco obscuras | quando s se fendia nalguma parte um buraco | que chegava
repentinamente de dentro | a clareira arremessada pelo sono acima | insónia vulcânica sala
contendo toda a febre «táctil», | furibunda maneira | essa era então uma espécie de «lugar
interno»” [ ...] e o leitor transita por lugares internos ou como diria Hartmann, o possível
como um semi-ente dentro do real. Poeta, poesia e leitor acessam o espaço intangível entre a
aporia do ser e do não ser. O valor da beleza está nesse enigma e o sentimento ao redor do
enigmático contido na arte (e na vida) permanecem na esfera do indissolúvel. A questão que
Hartmann coloca sobre a transubjetividade está aberta à experimentação da visão de valores
subjetivos do sujeito que a lê. Como é possível perceber, chega-se então ao estrato das ideias
gerais do poema. No poema que é objeto desse estudo, elas estão espalhadas pelas linhas dos
doze textos de Antropofágias e abordam a perspectiva da soberania da linguagem, onde
segundo Manuel Gusmão, o sublime excede o estético. O inefável criado através da linguagem
é a principal ideia do poema.
33
Outro detalhe interessante para observar é que de acordo com Eunice Ribeiro, a
palavra corpo está presente em grande parte da obra de Helder. Segundo ela, o uso que ele faz
dessa palavra não é uma mera referência ao (a um) corpo humano, mas uma referência sutil à
obra poética, o corpo é (o da) obra, a obra é corpo no que a ambos se faz comportar de
errância. O último trecho mencionado anteriormente já continha a menção a esse termo, ainda
no mesmo texto podemos encontrar: [...] “e o apuramento do mel com a labareda inclusa o
corpo na prancheta para a lisura sentada onde se risca a posição mortal «um papel» apenas
a branca tensão do néon” [...] Quando usada num poema, a palavra corpo atua como uma
estrutura de representação, uma referência a uma existência onde a imagem e linguagem estão
presentes. Ao longo de Antropofagias, o poeta ainda faz uso dela das seguintes formas: “o
corpo” [...] com relevos crepitantes; corpo que se faltava em tempo “fotografia”. Em todas as
menções, a palavra corpo está associada com objetos que remetem à linguagem ou semiótica e
apontam para o que Eunice Ribeiro chama de uma relação performativa persistente entre
texto e destinatário. Assim, temos a ideia geral de um corpo que se movimenta através da
linguagem.
Antropofagias
Texto 1
de la voz
34
a la insinuación de un gesto una temperatura
“imagen de digestion”
“imagen de dilatación”
“imagen de movimentación”
en el centro
35
será que se pretende aún identificar “lenguaje” y “vida”?
“ver”
de voz
36
Texto 2
del pavor
que andan
“interminabilidad”
37
altas entradas altas salidas bajas entradas bajas “movimientos”
“peso propio”
de la “fiesta”
38
otro ritmo como el tejido de las arterias
Texto 3
pues vejan lo que está a hacer el bailarín que desata por ahí fuera
que hace el pie fuerte en el sitio fuerte el pie leve en el sitio leve
y digo así porque se trata del principio “de arriba hacia abajo
el “problema” del bailarín es cosa que no interesa por ahí más allá
39
pero son llegados los tiempos de la agonia
y pies
las cuentas com el inesperado tal vez entonce se tenga la idea de murmurar
también Jorge Luis Borges escribió esta cosa un poco nada espantosa
40
los imperios caen etc. el asunto del bailarín cae
“el estilo”
Texto 4
furiosa manera
aún fervientes
41
o minas con el frío bater y el ruido escurriendo
gracia
escarpas rapidamente
desarrollando
temperatura
temblores
42
sinuosidades esponjas donde pulsaban canais dolorosos
nervaduras vivas
43
Conclusão
xxxxxx
44