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Possibilidades de Pesquisa: dentro e fora da sala de aula

A partir de uma ata de casamento pode-se iniciar uma pesquisa sobre história e
demografia, abordando o início de uma família em particular. Da ata de casamento
seguimos para outros registros das etapas do ciclo vital: nascimentos, casamentos,
1
batizados e óbitos. A sucessão de filhos oriundos desse casamento, cujos batismos
estejam assentados nos livros constantes nos arquivos paroquiais, permite acompanhar
os desdobramentos da família em estudo. Em seguida vêm os casamentos dos filhos
desse primeiro casal, ciclos matrimoniais também registrados nas atas das paróquias ou
nos Censos populacionais realizados no Brasil nos séculos XVIII e XIX.

A pesquisa é sempre dependente das fontes, se elas existem ou não. Assim como
o recorte temporal é fator de maior ou menor dificuldade no acesso aos documentos,
particularmente em se tratando de demografia. É preciso fazer um levantamento sobre
os tipos de documentos existentes na cidade, desde os paroquiais, os censitários oficiais
e os documentos privados, processos-crimes, inventários, etc.

As evidências quantitativas permitem ao historiador interpretar as variações dos


traços sociais, econômicos, culturais dos indivíduos e grupos em suas determinações de
sexo, idade, estado civil, número de filhos, casamentos entre e inter-classes.2 Neste
último aspecto é possível detectar as possibilidades de ascensão social dos grupos por
meio dos casamentos: quando há casamentos/uniões entre grupos de maior e menor
poder econômico, entre pessoas abaixo e acima da hierarquia social, pode-se inferir que
há distribuição e espalhamento da riqueza, que não fica concentrada num único grupo.

Os Censos evidenciam também a distribuição na estrutura da população por sexo e


idade. Este aspecto permite inclusive perceber se os jovens permanecem na cidade onde

1
Fernando Braudel ao referir-se ao “jogo demográfico” nos séculos XIII ao XVIII, afirma que “é a
potência biológica por excelência que impele o homem, como todos os seres vivos, a reproduzir-se;o
‘tropismo da primavera’, dizia Georges Lefebvre. Mas existem outros tropismos, outros determinismos.
Essa matéria humana em perpétuo movimento comanda, sem que os indivíduos tomem consciência disso,
uma boa parte dos destinos de conjunto de seres vivos. Alternadamente, estes, em tais ou tais condições
gerais, ou são numerosos demais ou não são suficientemente numerosos, o jogo demográfico tendo para o
equilíbrio, mas este raras vezes se atinge. BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de
Janeiro: Editora Rocco, p. 10.
2
Esses dados que podem parecer abstratos servem para movimentar os estudos de práticas cotidianas “do
habitual, “do rotineiro”. “Na realidade, o habitual invade o conjunto da vida dos homens, difunde-se nela
como a sombra da tarde enche uma paisagem”. P. 13
foram registrados, junto à família ou se migram. Se em determinado período houve
aumento significativo de “velhos”, pode-se aduzir que a cidade neste período específico,
não oferecia condições de trabalho e estudo para os jovens. Se a faixa etária permanece
equilibrada, se ela acentua envelhecimento da população, o pesquisador deve procurar
no contexto deste período os problemas que incentivaram a saída dos mais jovens.

Lembrando sempre que o conceito de velho sofre variações no tempo, com o


aumento da longevidade de homens e mulheres e, em sociedades mais tradicionais, o
valor social atribuído aos mais velhos. Podemos saber também se os fatores de
equilíbrios/desequilíbrios não estão relacionados à diminuição da taxa de natalidade
e/ou mortalidade, relacionadas às doenças, mas também, à utilização de práticas
anticonceptivas. (NOTA)

Os Censos mostram se as uniões entre os sexos são estáveis, se há aumento das


separações/divórcios e em que faixa etária elas ocorrem. A crítica dos dados é sempre
dependente do grau de profundidade do conhecimento do período que está sob análise.
Os dados em si mesmos, assim como os “fatos brutos”, nada dizem, cabe ao intérprete
dar sentido, significação, profundidade e movimento histórico a eles, contextualizando-
os no interior de uma realidade concreta. Aqui entram os valores sociais, econômicos,
culturais e religiosos, fatores estes entremeados no jogo demográfico.

Em se tratando de valores religiosos ou sobre o nível de obediência aos preceitos


da Igreja, estes podem ser identificados nos dados que remetem às relações entre os
sexos: se declaram que não são “casados” ou se omitem para “fugir” do termo
concubinato/amasiado, visto que os termos guardaram, até muito recentemente, um
sentido moral. Se há grande número de homens e mulheres solteiros, isso pode indicar a
existência de uniões entre sexos não “reconhecidas” por eles mesmos, seja porque não
está dentro da ordem estabelecida pelos preceitos religiosos, ou porque existem
interesses e interferências de direitos civis. Por exemplo: termos como concubina,
amásia e bastardos carregam sentidos históricos ligados aos costumes morais, mas têm
relação estreita com o econômico, pois implicam em reconhecimentos e partilhas de
bens, além de que admitir a bastardia pode ser considerado como fator de desordem
familiar, portanto, desordem social.

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Para distribuir indivíduos, famílias e domicílios na estrutura econômica podem
utilizar os inventários do século XIX e os Censos quando estes estejam ao alcance do
pesquisador do tema. Lembrar sempre de precisar com exatidão o que é riqueza ou
pobreza, por exemplo, conceitos sempre dependentes do período em estudo, variam
muito no tempo. Tomar cuidado para não incorrer no maior crime que um historiador
pode cometer, o anacronismo. Bens materiais inventariados, desde uma panela de
barro/ferro deixada para um ente próximo ou distante - parente ou não - até bens mais
substanciais, como apólices, devem ser dimensionados historicamente para avaliar
corretamente as suas significações.

Os bens adquirem sentido se colocados em referência às estruturas econômico-


sociais e símbólico-afetivas. Assim como têm relação como o meio, se este é rural ou
urbano, ou seja, os objetos adquirem sentido no tempo e lugar onde são produzidos e
utilizados. O inventário materializa, na maior parte dos casos, a morte do doador,
portanto, o que ele deixa tem sentido para a vida terrena, assim como se refere a medos
e temores do além.

Quando se fala em estrutura populacional, pensa-se, muitas das vezes, numa


história sem movimento ou que se movimenta muito lentamente, uma história quase
estática. Embora as estruturas tenham movimento quase imperceptíveis, o seu
dinamismo vai depender das análises aplicadas aos dados, o que significa movimentar
os dados, dar-lhes vida e sentido histórico. Por exemplo, mudanças freqüentes de
moradia podem adquirir sentidos sociais diversos, dependendo do tempo-lugar,
diferentes significados, que vão desde melhorias “de vida”, ligadas diretamente à vida
material e cotidiana, a dificuldades financeiras que impossibilitam a permanência da
família numa mesma casa por muito tempo; ou também denotar alta concentração de
imóveis, falta de crédito e dinheiro para a aquisição de moradia. Enfim, referir-se a
equilíbrios/desequilíbrios estruturais e conjunturais, que podem ser inferidos a partir de
dados indiretos e interpretados pelo historiador/professor/pesquisador.

O binômio migração/imigração, restringindo o estudo para um campo específico,


no caso aqui pensando na cidade de Porto Nacional, significa movimento que pode ser
associados aos mais diferentes aspectos da vida social. Aspectos gerais da população,
níveis educacionais, rendimentos, habitação, acesso à informação, estão disponíveis no
Plano Nacional por Amostragem de Domicílios. O PNAD coleta esses dados desde

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1967-1970, trimestralmente. A partir de 1970 as amostragens passaram a ser coletadas
anualmente. Censos Demográficos foram realizados no Brasil nos anos de 1970, 1980,
1991, 2010. Entre os anos de 1974/75 o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) realizou um Estudo Nacional de Despesas Familiar (ENDEF) que investigou
os níveis e a diversidade de consumo alimentar e orçamentos familiares. 3

A partir de 1987 as pesquisas começam a perguntar à população sobre o acesso


ao Rádio, à TV, ao uso de computadores em domicílios e às diferentes maneiras de
acesso à Internet. O estado do Tocantins, fundado em 1988, começou a fazer parte do
PNAD a partir dos anos de 1992, o que permitiria aos historiadores começarem um
estudo mais seguro sobre os homens, mulheres, crianças e velhos que aqui residem,
mapeando as mudanças e permanências que os dados certamente indicarão.

O estudo sobre o surgimento e o impacto das novas tecnologias 4 na vida


cotidiana já possui considerável bibliografia histórica. A Revolução Técnico-Científica
“institui um encadeamento entre as novas tecnologias e, por conta da escalada na
atividade produtiva, enormes movimentações populacionais” em direção às áreas
urbanas, desencadeando o “fenômeno da metropolização na sua magnitude
5
contemporânea”. Em sentido geral, as técnicas aplicadas, as cidades que crescem de
forma desordenada e as maneiras como os indivíduos acompanham essas “mudanças

3
A história demográfica capta em grandes linhas “importantes fluxos de história”, afirma Braudel. Para o
grande historiador do século XX, saber o que os homens comem, “Como se vestem? Como se alojam?
Perguntas incongruentes, que exigem quase uma viagem de descoberta, porque, como sabem, o
homem não come nem bebe nos livros de história tradicional. Foi bem dito, há muito, muito tempo:
Der Mensch ist was er isst [O homem é o que come], mas talvez seja, sobretudo pelo prazer do jogo de
palavras que a língua alemã permite. Entretanto, não creio que se deva relegar para o anedótico o
surgimento de tantos produtos alimentares, desde o açúcar, o café e o chá até ao álcool”. Para Braudel o
estudo da produção e consumo alimentares são “temas tão apaixonantes, (...) quanto o destino do Império
de Carlos V ou os esplendores fugazes e discutíveis do que se chama hegemonia francesa na época de
Luís XIV. É sem dúvida temas repletos de conseqüências: a história dos antigos intoxicantes, o álcool, o
fumo, a maneira fulgurante como o fumo, em particular conquistou o mundo, deu-lhe uma volta
completa, não será uma advertência para as ainda mais perigosas drogas de hoje? BRAUDEL, Fernand. A
Dinâmica do Capitalismo, p. 12
4
O estudo das técnicas e sua difusão pelo mundo não é uma característica do século XX, embora tenha
havido uma aceleração sem precedentes nos século XIX e XX. Ainda para Braudel, está história
maravilhosa “acompanha de perto o trabalho dos homens e seus progressos muito lentos na luta cotidiana
contra meio exterior e contra eles próprios. Tudo é técnica desde sempre, o esforço violento, mas também
o esforço paciente e monótono dos homens, modelando uma pedra, um pedaço de madeira ou ferro, para
fazer disso uma ferramenta ou uma arma. Não é uma atividade rente ao chão, conservadora por essência,
de transformação lenta, é que a ciência (que é a superestrutura tardia) recobre devagar” (sic) os
aprimoramentos técnicos. “As grandes concentrações econômicas pedem as concentrações de meios
técnicos e o desenvolvimento da tecnologia: assim ocorreu com o Arsenal de Veneza no século XV, com
a Holanda no século XVII, com a Inglaterra no século XVIII. BRAUDEL, Fernand, p. 13.
5
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In.: A História da Vida
Privada no Brasil (República: da Belle Époque à Era do Rádio). São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 522

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vertiginosas”, exigiram que os indivíduos adequassem-se a elas fisicamente: o corpo
tendo que também acelerar seus movimentos, adequando-os aos movimentos das
máquinas, por exemplo, do bond que atravessa a cidade e o caminho dos transeuntes
citadinos, ainda não disciplinados, física e psiquicamente, para competir com os ritmos
acelerados das máquinas.

As novas tecnologias, colocadas em movimento pela eletricidade, mudam


gradativamente as relações do corpo com o exterior. O café, o fumo, a cocaína, ou seja,
os estimulantes corporais estão intrincicamente ligados às necessidades de aceleramento
do corpo, da percepção visual e auditiva. Qualquer deslize ou distração pode significar a
perda da vida ou de partes do corpo. Essas mudanças, que começam a se tornar
perceptíveis a partir de meados do XIX e que se aprofundam ao longo do XX, são o que
os historiadores denominam de transformações das sensibilidades: o rearranjo do espaço
urbano - a eletricidade, o bond, o automóvel – mudou também as almas. A velocidade
das novas máquinas exigia de todos que se mantivessem sempre alertas e elétricos. 6

Muda o corpo e simultaneamente novas maneiras de ver, comer, vestir, morar,


trabalhar e amar. 7 A literatura está repleta de exemplos e constatações dos mecanismos
de adequação aos novos ritmos da vida social, incrementados pelas velocidades das
máquinas: telefone, bond, avião. Assim, tecnologia e mudanças nos modos de vida são
possíveis de serem captados por meio de uma documentação diferenciada.

Nicolau Sevcenko serviu-se da literatura de Machado de Assis e João do Rio para


8
mostrar os impactos dessas mudanças por essas duas gerações. O autor incorpora
6
Saia-se à rua com cautela e “alarmado, imaginando que estará sempre na iminência de cortar o caminho
para o necrotério, tornou-se uma espécie de segunda natureza do transeunte moderno, indefeso nas suas
negociações com um trânsito urbano cada dia mais complicado, maciço e acelerado”. SEVCENKO,
Nicolau, p.550.
7
Gilberto Freyre aliás, nos lembra o valor precioso que assume o estudo das “predominâncias de
palavras, como as de símbolo e de ritos sociais, estilos de arte, formas de retórica, ritmos de dança, regras
de conduta, modas de trajo e de penteado’ a fim de “tentar surpreender e interpretar o que houve de mais
íntimo no caráter de uma época”. A sugestão de Gilberto Freyre é seguir o método de Ortega y Gasset
(método perspectivista) – “E ele quem adverte muito lucidamente, sobre as ‘visões distintas’ não se
excluírem: ‘mas ao contrário tenderem a se integrar’ pois ‘nenhuma esgota a realidade...” É que, segundo
Ortega y Gasset, ‘uma realidade que vista a partir de qualquer ponto permanecesse sempre idêntica, seria
um conceito absurdo’ pois ‘cada vida é um ponto de vista...’ Mais ‘a única perspectiva falsa é essa que
pretende ser a única’”. P. 523

8
O autor justifica a escolha de Machado de Assis (1839-1908) porque o homem e o literato “cuja
sensibilidade se formou no cenário das instituições imperiais, assinala o ímpeto e a velocidade das

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outros autores, fontes, outras vozes “na medida mesma em que o afluxo (afluir
afluência, concorrência) das experiências identificadas com a modernidade vão se
adensando e intensificando”.

Particularmente o Rádio, que transformou as maneiras de percepção das


realidades históricas, dando nova dimensão aos acontecimentos pertinentes à vida
pública entrando, definitivamente, na vida privada dos indivíduos. Pierre Nora ao
analisar “as metamorfoses do acontecimento” na sociedade contemporânea, nos mostra
como os fenômenos históricos, no período entre guerras e a Segunda Guerra Mundial,
estiveram ligados ao à percepção auditiva, ao Rádio.

“Uma época da história contemporânea começa com as conversas


democráticas inauguradas por Roosevelt, com os discursos
fulminantes de Nuremberg (...) Uma outra começa com os árabes para
os árabes com s discursos de Nasser; ainda uma outra, [época da
história contemporânea inaugura-se] para o Congo dos anos 60, onde
era suficiente a um homem de Estado negro estar em vias de afirmar
através das ondas que teria tomado o poder para que o poder lhe
pertencesse efetivamente. (...) E sabemos qual instrumento de
penetração da história o transistor continua a desempenhar no
continente africano”. 9 Para Nora, “é a própria história, pela voz de
seus autores , que o rádio permite falar, reativando, dessa forma, numa
vasta escala, o mais poderoso motor da história desde os profetas e os
oradores gregos”.10

Voltando às pesquisas realizadas pelo PNAD (Pesquisa Nacional de amostragem


Domiciliar), em Goiás e, a partir de 1988 no estado do Tocantins, percebe-se quanto o
rádio é ainda um meio importante de acesso à informação e à formação política e
cultural de seus habitantes. Os números nos dizem, por exemplo, que o número de
aparelhos de rádios nos domicílios é maior que os de televisões. Mesmo assim podemos
nos perguntar qual é o sentido, tanto para os governos como para os fabricantes de

mudanças, a surpresa dos seus contemporâneos e as resistências erguidas como meios de defesa contra o
fluxo que a tudo parecia levar de roldão.” Diferentemente de João do Rio (1881-1922) – “cujas
possibilidades de carreira se abriram com o advento da República, assinala a ampla difusão, os efeitos de
mitificação e os modos de celebração (festejar, comemorar) entusiasmados dessas mudanças
vertiginosas.”
9
NORA, Pierre. O retorno do fato. In.: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. História: novos problemas.
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995, p 182. Esse “poderoso motor da história”, ainda é presente no
Brasil. Basta lembrar que se Franklin Delano Roosevelt falava aos americanos através do rádio
(conversas ao pé do fogo, no sentido de conversas informais- fireside), aqui no Brasil o ex-presidente José
Sarney (1985-1990) falava ao povo nas “conversas ao pé do rádio” e o presidente Luis Inácio Lula da
Silva também se aproxima do povo quando fala no programa “Café com o presidente”.
10
Idem, p. 182

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tecnologias mapearem a utilização desses produtos pelos habitantes do estado/país? E
quais significados e sentidos o historiador poderia tirar de tais dados?

Saber, mesmo que seja por amostragem, quantas pessoas possuem rádio, TV,
computadores, utilizam Internet, ajuda o historiador a melhor avaliar a sociedade
contemporânea ou o grupo social no qual está inserido ou que pretende conhecer, e
avaliar as mudanças sociais, dos hábitos e costumes. Enfim, a vida cotidiana e material
podem ser estudada e conhecida por meio dessas informações. Todo estudo
historiográfico é dependente da problemática formulada pelo historiador, que ele se
formula e dos documentos de que dispõe. Mesmo quando a documentação é pobre, há
sempre problemas que ainda não fora formulados.

A abundância de fontes permite praticar a exploração extensiva sem modificar a


problemática. Assim, documentos muito explorados exigem do historiador novas
problemáticas, novas perguntas, novas questões. Portanto, a “escassez de documentos”
para o estudo de partes do norte de Goiás, não deve ser uma desculpa para não se
empreender pesquisas, sejam elas extensivas ou mais verticalizadas. Cabendo ao
historiador, instrumentado teoricamente e com apoio das instituições (Universidade,
estado, secretarias, etc.), exercer seu ofício e produzir conhecimentos válidos para o
presente. Voltando ao já dito, particularmente, referente ao estado do Tocantins, fazem-
se necessários empenhos institucionais no sentido de contribuir para a coleta, a
produção e organização de arquivos.

A história da vida material dos homens exige diálogos interdisciplinares ou


talvez mais do que isto, pois a Sociologia, a Geografia, a Biologia, a Língua são partes
integrantes de um mesmo sistema, cujo sujeito absoluto é a presença e a relação dos
homens com o mundo. Como afirmou Paul Veyne:

“As Ciências Morais e Políticas (vamos chamá-las


convencionalmente ‘Sociologia’, para sermos breves) não são o
território do vizinho, com qual estabeleceríamos pontos de contato, ou
de iríamos saquear objetos úteis. Elas [as ciências Morais e Políticas]
nada fornecem à História, porque fazem, de fato, muito mais:
informam-na, constituem-na. Senão, seria supor que os historiadores
seriam os únicos com direito a falar de certas coisas – paz, guerra,
nações administrações ou costumes – sem saber o que são e sem
começar por apreendê-las, estudando as ciências que delas tratam”. 11
11
VEYNE, Paul. O inventário das diferenças: história e sociologia. Edição Guinefort, p.4. Embora a
história se caracterize por sua vocação empírica (pesquisa), Paul Veyne recorre a Aron quando este

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O exemplo mais bem acabado de diálogo entre as diversas ciências encontramos
no livro Apologia da História ou o ofício do historiador. Nesta obra, publicada
postumamente - Marc Bloch foi fuzilado em 1944 por fazer parte da resistência nazista -
esse grande historiador do século XX cita o caso do Golfo o Zwin. Embora a citação
seja longa transcrevo-a íntegra por ser um exemplo clássico e os textos clássicos
permitem pensar e aplicar seus ensinamentos em outros lugares e circunstâncias. Assim
escrevia Marc Bloch:

“No século X de nossa era, um golfo profundo, o Zwin, recortava a


costa flamenga. Depois foi tomado pela areia. A que seção do
conhecimento levar o estudo desse fenômeno? De imediato, todos
designarão a geologia. Mecanismo de aluviamento, papel das
correntes marinhas, mudanças, talvez, no nível dos oceanos: não foi
ela criada e posta no mundo para tratar de tudo isso? Certamente.
Olhando de perto, porém, as coisas não são de modo algum assim tão
simples. Tratar-se-ia, em primeiro lugar, de escrutar as origens da
transformação? Eis o nosso geólogo já obrigado a se colocar questões
que não são mais, estritamente, de sua alçada. Pois, sem dúvida, esse
assoreamento foi, pelo menos, favorecido por construções de diques,
desvios de canais, secas: diversos atos do homem, resultado de
necessidades coletivas e que apenas certa estrutura social torna
possíveis. Na outra parte da cadeia, novo problema: o das
conseqüências. A pouca distância do fundo do golfo, uma cidade se
erguia. Era Bruges. Comunicava-se com ele por um breve trajeto
fluvial. Pelas águas do Zwin, ela recebia ou expedia a maior parte das
mercadorias que faziam dela, guardadas as proporções, a Londres ou a
Nova York de sua época. Vieram, cada dia mais sensíveis, os avanços
da sedimentação. Bruges tentou em vão, à medida que a superfície
inundada recuava, empurrar ainda mais seus portos avançados para a
foz, e seus cais pouco a pouco adormeceram. Decerto essa não foi
absolutamente, longe disso, a causa única de seu declínio. Age a física
alguma vez sobre o social sem que sua ação seja preparada, ajudada
ou permitida por outros fatores que não venham do homem?

(...)

Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem [os artefatos ou


as máquinas], por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as
instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram,
são os homens que a história que capturar. Quem não conseguir isso

afirma que ‘A ambição do historiador, enquanto tal, continua sendo a narração da aventura vivida pelos
homens. Mas essa narração exige todas as fontes das Ciências Sociais, (...) Como narrar o devir de um
setor parcial, diplomacia ou ideologia, ou de uma entidade global, nação ou império, sem uma teoria do
setor ou entidade? O fato de ser diferente de um economista ou sociólogo, não implica que o historiador
seja menos capaz de discutir com eles em pé de igualdade. “Eu me pergunto mesmo se, ‘Ao invés da
vocação empírica que lhe é normalmente atribuída, ele [o historiador] não deve flertar com a Filosofia:
quem não busca sentido à existência, não o encontrará na diversidade das sociedades e das crenças”. P. 3

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será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador
se parece com o ogro da lenda. “Onde fareja carne humana, sabe que
ali está a sua caça”. 12

Marc Bloch cunhou o termo história-problema para contrapor-se à história-


relato. A partir dele e de Lucien Febvre, a obra histórica passa a ser “temática” e não
meramente a descrição de seqüências de fatos sincrônicos organizados num tempo
contínuo. Os fundadores da Escola dos Annales rompem com a noção de “fato
histórico”, o que significou o extraordinário desenvolvimento de novas temáticas,
interesses por novos tipos de fontes e uma grande atenção a outros condicionantes como
a geografia, o clima, as dimensões antropológicas. Dois historiadores profundamente
marcados pelas novas ciências, particularmente a Sociologia de Durkheim e a Geografia
de Vidal de La Blanche e Henri Berr, a Economia e a Ciência Política. Não é demais
afirmar que depois deles a história nunca mais seria a mesma.

Fernand Braudel também escreveu suas obras fazendo um permanente diálogo


com a Geografia. As mudanças climáticas, por exemplo, que vêm ocorrendo afetam
diretamente a vida econômica e social dos homens, interferindo nos preços dos
alimentos e, simultaneamente, mudando hábitos alimentares, provocando doenças e
mortes por desnutrição. Braudel entende que “os ritmos do clima” nos últimos séculos
são o pano de fundo para tantas mudanças que afetaram os homens, transformando
comportamentos econômicos e práticas sociais.

“São sucessivos desastres que põem em movimento enormes


flutuações de preços de que dependem mil uma coisas. E como não
pensar que esta insistente música de fundo faz parte da história das
alterações do clima? Ainda hoje sabemos qual a importância crucial
das monções: um simples atraso acarreta na Índia, prejuízos
irreparáveis. Se o fenômeno se repete em dois ou três anos seguidos,
lá vem a fome. O homem não está livre desses terríveis
condicionamentos. Mas não esqueçamos os estragos causados pelas
secas de 1976 na França e na Europa ocidental, ou a alteração anormal
do regime de ventos que, em 1964 e 1965, provocou nos Estados
Unidos, a leste das Montanhas Rochosas, uma seca catastrófica." ·.

Da mesma forma é impossível não pensar nos “ataques microbianos” como


determinantes de situações históricas. Num primeiro momento, com a chegada dos
europeus na América: “o que é absolutamente garantido é que a América teve, com a

12
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2001, pp. 53-54

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conquista européia, uma derrocada biológica colossal, talvez não de 10 para 1, mas
seguramente enorme e sem comparação possível com a peste negra e com as catástrofes
que a acompanharam na Europa do sinistro século XIV.13 Nos séculos seguintes serão às
vezes das populações do Pacífico (XVII) e sobretudo nos séculos XVIII e XIX, com a
presença dos brancos: “as doenças – isto é, os vírus, bactérias e parasitas importados da
Europa ou da África – propagaram-se mais rapidamente do que os animais, as plantas e
os homens que chegaram do outro lado do Atlântico. (...)”14

Varíola, rubéola, gripe, disenteria, lepra, peste (“os primeiros ratos


desembarcaram na América por volta de 1544-1546”)15, doenças venéreas, febre tifóide
a elanfantíase, “doenças levadas pelos brancos ou pelos negros, mas que adquiriram,
todas elas nova virulência”. Daí em diante e chegando ao século XIX, por exemplo, no
Rio de Janeiro, a febre amarela volta a atacar os estrangeiros que aqui aportavam: há
circulação de mercadorias e de doenças. Séculos antes eram os Europeus imunes às
doenças que dizimaram parte substancial população ameríndia, no século XIX e inícios
do XX, muitas doenças aqui presentes retornam a eles, causando medo e mortes
prematuras. Nos portos as doenças espreitavam aqueles que aqui desembarcavam.

Nesse momento circula nos meios de informação mais um acontecimento


assustador: notícias sobre o aparecimento de uma nova bactéria, para a qual não existiria
antibiótico conhecido. A bactéria, segundo informam, entrou nos Estados Unidos e na
Inglaterra, através dos corpos de americanos e ingleses que procuram tratamentos de
saúde na Índia, por ser a medicina deste país mais barata e acessível. Tal situação é uma
contradição, quando sabemos das grandes diferenças sociais e econômicas existentes
entre aqueles países e a Índia.

Olhando panoramicamente a história dos últimos séculos e diante da


“democracia do acontecimento” promovida pelos mass media, a história contemporânea
é constantemente interrogada sobre os problemas e fatos do cotidiano. Os fatos - a
“sobremultiplicação” deles na contemporaneidade - chegam às massas desconectados
do passado. Assim, segundo Pierre Nora,

13
O autor argumenta que “as agruras de uma guerra impiedosa tiveram as suas responsabilidades [na
derrocada biológica] e as de um trabalho colonial de uma severidade ímpar também”. P. 24
14
BRAUDEL, Fernand, p. 39
15
Idem, p. 40

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“O imediato torna de fato a decifração de um acontecimento ao
mesmo tempo mais fácil e mais difícil. Mais fácil porque choca de
imediato, mais difícil porque se manifesta totalmente de imediato. (...)
Pois por mais independente que [o fato] possa parecer, o
desdobramento de um acontecimento não tem nada de arbitrário. Se
não é seu aparecimento, pelo menos seu surgimento, seu volume, seu
ritmo, seus encadeamentos, seu lugar relativo, suas seqüelas e seus
saltos obedecem a regularidades que dão aos fenômenos
aparentemente mais longínquos um certo parentesco e uma morna
identidade.” 16

Pode acontecer que, a ameaça de uma bactéria letal vinda agora da Índia, tenha
se evaporado e nenhuma conseqüência desse fato poderá ser auferida. Mas assim
mesmo, caso seja o fato efêmero, ele não deixará produzir ressonâncias afetivas e
implicações emocionais às massas que, temerosas diante de tantos acontecimentos
catastróficos, este também pudesse sair do campo das inúmeras virtualidades possíveis e
realmente causar uma mortandade em massa. Pois os mass media contríbuiem para
disseminar insegurança e temor divulgando fatos cotidianos, tenham estes ocorridos em
lugares próximos ou distantes. Ao fim e ao cabo, o medo e a insegurança é uma
característica da sociedade contemporânea.

16
NORA, Pierre. O retorno do fato, p. 189-190. Esta afirmação de Nora está ligada às suas análises sobre
o papel dos meios de comunicação e o retorno do fato cotidiano como espetáculo e como forma de
participação “passiva” das massas nos destinos nacionais.

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