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FRONTEIRA EM CONFLITO: A REVOLTA DE

1824 NO TURIAÇU

Sueny Diana Oliveira de Souza*

Em torno da revolta

Entre o final do século XVIII e o m1c10 do XIX,


chegar à longínqua região de fronteira entre o Pará e o
Maranhão - no rio e freguesia de Turiaçu - demandava

• Professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará


- Campus Ananindeua. Doutora em História Social da Amazônia
pela Universidade Federal do Pará.
222 Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedad e na Amazônia 223

esforços, gastos e desafios. 2 Porém, não era o único estratégia de expansão dos que apoiavam a revolta pelos
problema. O Turiaçu era uma região de difícil acesso não sertões da província do Pará contou com a ajuda de
somente pelo trajeto, mas, sobretudo, pelo controle sobre índios, capitães do mato e desertores das tropas
os sujeitos que compunham aquele espaço. paraenses. Quase um mês depois do início do conflito,
Foi num universo dinâmico, cujos modos de vida em 21 de setembro, atingiram a vila de Bragança, que na
dos habitantes traziam particularidades de uma longa ocasião era sede da "administração política e militar de
história de ocupação e coexistência de diversos grupos toda a região atlântica do Grão-Pará". 6 Duran te os
naquelas terras ou de identidades forjadas pela vivência deslocamentos, os levantados ocuparam a vila de Ourém
na região que se desencadeou, em 26 de agosto de 1824, e os lugares de Viseu, Gurupi e Piriá7, como també m
uma._revolta sangre1:1ta na freguesia de Turiaçu. Na . aplicavam punições ou usavam de violência contra
ocas1ao, o lugar f01 tomado por militares em um
contingente de cerca de cem ou cento cinquent~ soldados
em sua maioria desertores da província do Maranhão:
entre os grupos políticos de Belém, capital da Província do
que seguiram até o Turiaçu liderados pelo capitão Grão-Pará, e os dirigentes da Corte no Rio de J~neiro, o centro do
reformado Manoel de Nascimento de Almeida e os novo Estado brasileiro independente. A influência de D. Pedro I e
capitães do mato José Florêncio e André Miguel.3 José Bonifácio de Andrada e Silva sobre os dirigentes provinciais
Aos militares se juntar am dezenas de escravos manteve os privilégios dos homens de negócios, intele~ ~ais ~
africanos - fugitivos ou não -, índios e outros civis. funcionários públicos que tinham se colocado c?ntran os _ a
emancipação do Brasil. Além disso, começaram a chegar mformaçoes
Qu~~ o os "ins_ubordinados" ocuparam a freguesia, a sobre a revolta iniciada no Recife em 2 de julho daquele ano: uma
ma1ona dos habitantes saiu de suas casas e abandonou a rebelião contra o fechamento da Assembleia Constituinte pelo
região, pois havia rumores de que estes pretendiam matar Impera dor, em novembro de 1823, seguida da _instituição do Poder
europeus e brasileiros brancos que estivessem com eles. 4 Modera dor na Constituição de 1824. As medidas passara m a ser
interpretadas como um retorno ao anti~o ~espoti~m? port~S?es e um
• A

Segundo Adilson Brito, a revolta estendeu-se


'

rapida mente para vilas e freguesias da região.s A risco de sepultamento da IndependenCia brasileira. Imciada em
Pernambuco a revolta liderada pelo presidente da província Manoel
de Carvalho ' Paes de Àndrade, logo se espalhou por toda a região
Sob~e. sua condi_ç~o de vila de fronteira incerta e repleta de problemas 'norte' do Império, abarcando grande parcela da população _de
2

p~hticos _e ~ociais no final do período colonial, ver: SOUZA, Sueny Alagoas , Paraíba, Rio Grande do Norte e Cea~á. Foram tambem
Diana Oliveira de; RICCI, Magda. Fronteira em movimento: o Pará e enviadas proclamações para a Bahia, o Maranhao e o Pará. Nelas,
o Maranhão a partir dos sertões do Turiaçu (1772-1808). In: Eduardo Paes de Andrade conclamava os povos à luta pela liberdade do Brasil,
Scheidt. (Org.). Histór ia Social das Fronte iras. Rio de Janeiro·· que estaria sob o perigo de voltar a ser colônia de Portugal devid? à
Paco Editorial, 2012, v. 1, p. 115-130 . atitude centralizadora do Imperador: Em contraste com a tentativ a
3
PARÁ. Correspondência de diversos com o governo (1793-1800). Cód. de D. Pedro em manter a unidade do Império , espalhava-se ~ma
901, doe, 34. Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do forte tendência à fragmentação" (BRITO , Adílson. País de mwtos
Pará (APEP). brasis. Revist a de Histór ia, Rio de Janeiro, jan./jul., 2014. p.2).
4 Idem. 6
Idem.
5
De acord_o c?m Adilson Brito (2014), "Havia insatisfação com a forma 1 BRITO, Adilson . País de muitos brasis. Revist a de
Histór ia, Rio de
como foi feito o acordo político de adesão à Independência brasileira Janeiro , jan./jul., 2014. p.2.
224 Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 225

aqueles que consideravam (ou de fato eram) "não tenham feito como forma de questionar por interesses
brasileiros". distintos. Para Nogueira, esses homens "questionavam não
Foi durante os deslocamentos que alguns índios o regime, mas a presença e autoridade de europeus na
assassinaram Miguel Joaquim Faial e José da Maia, região"11• O fato é que esse movimento mobilizou um
europeus e donos de fazendas da região. Ainda no número expressivo de sujeitos de diferentes etnias, cujos
Turiaçu, escravos africanos executaram o feitor Bento anseios em função da revolta provavelmente também eram
Roque, uma vez que este pretendia partir para a freguesia distintos. Letícia Barriga afirma que durante o processo de
com o objetivo de conter os negros envolvidos na revolta. independência até a década de 1830 no Grão-Pará, negros
Os índios, além de executarem europeus tinham o intuito libertos e cativos, homens brancos pobres e tapuios "se
de assassinar o capitão militar da freguesia de Turiaçu apropriaram do pensamento revolucionário vigente, de
José Gonçalves de Azevedo, assim como o juiz ordinário e liberdade e autonomia, adequando-os às suas próprias
o vigário do lugar8 • reivindicações e construindo sua liberdade"12 •
Adilson Brito analisa a revolta de 1824 como sendo Raiol destacava que as notícias da revolta ocorrida
"firmemente situada na conjuntura independentista do em Turiaçu, chegaram à Belém em setembro de 1824. E
Maranhão" e que contou com a participação de um grande que esta havia sido instigada por "desordeiros"
contingente de negros escravos daquela província, 9 provenientes do Maranhão. Ao saber da revolta o
baseados nos ideais de liberdade defendidos e veiculados presidente da capitania do Pará teria autorizado o Juiz
pela rede de cooperações estabelecidas com a Paulo Francisco Fernandes a buscar meios para se
Confederação do Equador. Essa revolta que à primeira reestabelecer a ordem no distrito, ao tempo em que
vista parecia ser de militares alcançou maiores proporções. ordenou que "uma força composta de artilharia e
Shirley Nogueira10 afirma que a revolta do Turiaçu "tinha infantaria" partisse de Belém a fim de encontrar com a
como objetivo disseminar os ideais republicanos que tropa que já estava destacada em Ourém sob o comando
permeavam na província do Pará no pós-Independência". do tenente Francisco José de Aragão. De Ourém as forças
Porém, talvez os negros, escravos e fugitivos, homens deveriam seguir para Bragança onde ficariam à disposição
brancos pobres e índios que se inseriram no conflito o do coronel e comandante militar Pedro Miguel Ferreira
Barreto13.
a PARÁ. Correspondência de diversos com o governo (1793-1800). Cód.
901, doe, 34. Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do
Pará (APEP).
9 BRITO. Adilson Ishihara. "Viva a Liberté"! Cultura política popular, 11
/dem.
revolução e sentimento patriótico na independência do Grão-Pará, 12 BARRIGA, Letícia Pereira. Entre leis e baionetas: Independência e
1790-1824. , 2008. Dissertação (Mestrado em História Social da Cabanagem no médio Amawnas (1808-1840). 2014. 209f. Dissertação
Amazônia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2008, p. 287. (Mestrado em História Social da Amazônia) - Universidade Federal do
10 NOGUEIRA. Shirley Maria. A "Soldadesca desenfreada": Pará, Belém, 2014, p. 64.
politização militar no Grão-Pará da Era da Independência (1790- 13 RAIOL, Domingos Antonio. Motins Políticos ou história dos

1850). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal da principais acontecimentos políticos da Província do Pará. v.
Bahia, 2009. 3. Rio de Janeiro: Typ. Hamburgueza do Lobão, 1883, p. 166-167.
226 Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 227

Em ofício encaminhado pelo presidente do Pará ao castigos ou perdão em seu nome, conforme julgasse
juiz do julgado de Turiaçu - no qual relatava a revolta - foi compatível ao crime praticado17. Em 24 de dezembro do
representado que os "revoltosos" haviam esquecido de mesmo ano, José de Araújo Roso informou em ofício que
seus deveres e do respeito às autoridades constituídas. aprovara as medidas que estavam sendo tomadas para
Lembrando que os habitantes do lugar em outras ocasiões impor a paz e tranquilidade em Turiaçu18 •
já haviam se portado sem temor a Deus e às penas cabíveis A revolta se deu dois anos após a transição do
para tais atos. Na ocasião, autorizava o comandante regime colonial para o Império no Brasil e, mesmo
militar de Bragança a depor o capitão José Gonçalves de estando em processo de formação do Estado Nacional,
Azevedo, que estava comandando a força em Turiaçu, e este foi aceito, mas não necessariamente quisto. Maria
que fosse nomeado outro oficial indicado pelos moradores Odila Dias, em estudo sobre o processo de interiorização
do lugar. O presidente solicitava que com moderação e da metrópole afirma que os políticos do pós-
prudência se restabelecesse a ordem e que retornassem "os independência eram conhecedores da instabilidade
índios e todos os demais facciosos ás suas habitações, e interna em que o Brasil se encontrava à época, quer no
depondo voluntariamente as armas". Entretanto, José de campo social, racial ou político. Segundo a autora,
Araújo Roso deixava claro que caso não voltassem à tratava-se de um momento em que os regionalismos não
ordem, poderia ser aplicada sobre eles "toda a força para deram "margem ao aparecimento de uma consciência
os acabar de uma vez, e segurar-se a paz, e tranquilidade nacional que desse força a um movimento revolucionário
dos bons habitantes". Mesmo que essa paz e tranquilidade capaz de reconstruir a sociedade"19. Esta autora destaca
fossem alcançadas com a morte dos "revoltosos".14 que, naquele contexto, houve muitos movimentos q~e
Em 1° de outubro de 1824, José de Araújo Roso defendiam interesses locais, e que o processo de formaçao
informava à Câmara da vila de Bragança que o major Luiz de uma "consciência nacional" só veio "através da
Ferreira da Cunha havia partido para a vila a fim de integração das diversas províncias e seria uma imposição
assumir o comando militar da vila de Bragança no lugar da nova Corte no Rio" - e isso apenas nas décadas de
do coronel Pedro Miguel Ferreira Barreto, que havia sido 1840-185020 • O sentimento de identidade nacional fora
morto na revolta1s. Luiz Ferreira da Cunha partiu para gestado a duras penas, e, na região de Turiaçu, até
assumir o cargo levando reforços do destacamento da mesmo o poder da autoridade provincial não foi
cidade de Belém16. reconhecido, pois os habitantes manifestavam apoio ou
Em 19 de novembro de 1824, muitos revoltosos já
haviam sido apreendidos e o presidente do Pará
11 PARÁ. Ofícios avulsos, 19.11.1824. Acervo disponível no Arquivo
autorizava o comandante militar de Bragança a aplicar
Público do Estado do Pará (APEP).
18 pARÁ. Ofícios avulsos, 24.12.1824. Acervo disponível no Arquivo
14 PARÁ. Ofícios avulsos, 16.09.1824. Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP).
Público do Estado do Pará (APEP). 19 DIAS Maria Odila. A interiorização da Metrópole (1808-1853). ln:
15 PARA. Ofícios avulsos, 1.10.1824. Acervo
disponível no Arquivo MOTA, Carlos Guilherme. Dimensões. São Paulo: Perspectiva,
Público do Estado do Pará (APEP). 1972. p. 169.
16 Idem.
20 Idem.
228 Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 229

solidariedade a quaisquer ações que lhes interessavam em sua maioria, não eram de cunho étnico, mas
diretamente, como o apoio à revolta de 1824, visto que espacial22.
entraram na luta não para simplesmente - ou Em seu trabalho sobre a fronteira entre Brasil, Peru
literalmente - apoiar os militares ou os negros vindos do e Bolívia, Laís Cardia afirma que o espaço da fronteira
Maranhão, mas, possivelmente, para demonstrar suas assumia diferentes sentidos entre os sujeitos. Se para
insatisfações em outros campos. alguns era local de passagem, outros que para lã se
Em fins do século XVIII e na primeira metade do deslocavam esse lugar "vai adquirindo novas formas e
XIX as relações entre indivíduos ou grupos de diferentes significados, que se traduzem também em outras formas
etnias eram frequentes em diversos espaços da fronteira, de entender as relações humanas e as relações com o
onde negros, índios, brancos pobres e mestiços meio que convivem [...]"23.
construíram lógicas variadas. Para autores como Brito, a Essas diferentes concepções acerca do espaço e das
coexistência dessas lógicas muitas vezes fora "colocada na relações que nele se desenvolvem estiveram presentes
tênue, e, por vezes, invisível linha existente entre o também em Turiaçu. Exemplo disso pode ser evidenciado
conflito e a solidariedade entre a polissemia da liberdade na dualidade da representação feita pelo Major e
e da escravidão"21. Comandante Boaventura da Silva, em 22 de janeiro de
A região do Turiaçu configura-se como um espaço 1825, pois ao tempo em que participava ao presidente da
no qual se desencadearam inúmeros conflitos envolvendo província, José de Araújo Rego, que iria marchar para a
a posse de terras, a luta contra mocambos, os povoação de Turiaçu com o objetivo de atender às
desentendimentos no interior das povoações indígenas, súplicas dos habitantes do lugar porque, segundo o
dentre outros. A própria criação e mudanças de comandante, eram "perceguidos dos negros do mocambo
localidades e de povoações ao longo do rio Turiaçu e algum dos faciosos que com elles se tem reonidos",
revelava a tensão existente naquela região. Nesse sentido, informava que na povoação do Piriá não havia ninguém,
a interação entre indígenas, homens brancos pobres e nem mesmo as mulheres, afirmando que os indivíduos
negros sempre que se deu de forma contínua, frequente e daquele lugar ainda estavam para os matos "indevido e
intensa, vem se fortalecendo ao longo dos séculos, sendo subornado pelo indio Felippe", apontado pelo
muitas vezes difícil distinguir os espaços constituídos por
diferentes grupos sociais, contudo, a identidade
sociocultural de cada grupo se manteve. No entanto, as
questões identitárias dos sujeitos na região de Turiaçu, 22 Para Laís Cardia (2009), "para os habitantes que vivem neste espaço
durante gerações, a fronteira é um 'lugar', 'seu lugar', aonde vêm
construindo espaços de relações sociais, vinculações afetivas e
21
BRITO. Adilson Ishihara. "Viva a Liberté"! Cultura política emocionais, formas concretas de entender as relações com o meio"
popular, revolução e sentimento patriótico na independência do CARDIA, Laís M. Espaços e culturas de fronteira na Amazônia
Grão-Pará, 1790-1824. 2008. Dissertação (Mestrado em História Ocidental. Ateliê Geográfico Revista Eletrônica, Goiânia, v. 3,
Social da Amazônia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2008. p. n. 7, p. 108-125, set. 2009. p. 111.
51. 2 3 CARDIA, Ibid., p. 108-125.
230 Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 231

comandante como um dos cabeças da "facção" cometida amocambados pretendiam atacar a povoação de
em Bragança em 182424. Turiaçu26 •
Nessa descrição, Boaventura afirmava, ao mesmo Em 8 de junho de 1829, em uma ronda realizada na
tempo, que iria atender à solicitação dos habitantes da região das minas foram apreendidos alguns indivíduos que
região e que no lugar de Piriá não havia ninguém a não atuavam clandestinamente na exploração do ouro em
ser nos matos. Nesse caso, a definição de habitantes é Turiaçu. Nessa ocasião, o soldado miliciano Antonio
dada apenas para os indivíduos que não haviam Joaquim de Castro denunciava que um indivíduo chamado
participado ou dado apoio à revolta de 1824. Neste Salvador Cardoso de Oliveira "estava reunindo gente para
sentido, a noção de ocupação não incluía aqueles que se ir com João Bunda aclamar a republica na povoação de
organizavam nas matas, visto que estes, na verdade, Tury Assú". Porém, o comandante militar de Ourém
representavam um entrave ao processo de ocupação e informava que nada disso havia ocorrido, e que Salvador
"controle" do espaço da fronteira. Todavia, essa forma de Cardoso não se animaria a realizar tal ato, pois "sabe, tem
ocupação das matas tomou grandes proporções nessa visto, e prezenciado que não só elle como todos aquell~s,
região e um dos principais responsáveis por empreender que se conspirarem contra a religião catholica~ postohca
uma "caçada" aos mocambos na década de 1820 - romana o trono imperial e contra o atual sistema do
sobretudo depois da revolta de 1824 - foi o comandante império' são infalivelmente desgraçadas vi,cti~as::2 1. O
Boaventura, que fora enviado à região com o objetivo comandante acreditava que estas eram denuncias filhas
inicial de conter a revolta. E em 31 de agosto de 1825, do tempo", todavia não as desprezava. Lembrava que há
solicitava ao presidente do Pará, José Felix Pereira de cerca de seis meses estavam vindo para a margem
Burgos, que fosse enviado um destacamento para o paraense do rio Turiaçu algumas famílias provenie~tes do
Turiaçu, pois assim ele iria trabalhar "para pacificar os Maranhão e do Ceará, sendo que algumas haVIam se
povos e destruir os quilombos que existem formados por estabelecido na freguesia de São Francisco Xavier de
escravos fugidos" que haviam atuado na revolta2 s. Turiaçu e outras em Bragança28 • No entanto, Francisco da
Como Boaventura implementou uma intensa busca Silveira informavá que não os perdiam de vista, sobretudo
aos mocambos da região de Turiaçu, na qual alguns "os celebrados Pacheco, e Caninanas", visto que "no tempo
soldados e negros saíram mortos, dentre outros feridos. das commoçoens populares, que houverão naquellas
Em 31 de agp~to de 1825, esse comandante informava ao províncias destringuirão-se"2 9. . •
presidente da província do Pará José Felix Pereira de No caso relatado é importante observar a ideia de
Burgos que estava estacionado em Turiaçu por um que o Turiaçu era um lugar de liberdades e aut~nomias,
período de tempo maior do que o previsto, visto que procurado por indivíduos que as defendiam ou
havia rumores de que quando se retirasse da região os
26 Ibid., doe. 52.
24 PARÁ. Correspondências do Comando Geral Militar com diversos. Cod. 27 PARÁ. Correspondência de diversos com o governo. Cod., 849, doe.
817, doe. 19. Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do Pará 63. Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do Para (APEP).
(APEP). 28 /dem.
:isJdem. 2 9/dem.
232 Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 233

propagavam em forma de "comoções" populares. Além de Este caso mostra diferentes interesses entre os
denotar a ideia de que existiu um tempo das comoções, o homens que compunham as forças políticas e militares
relato retrata o Turiaçu como um espaço de refúgio e/ ou nessa região de fronteira. Além de evidenciar algumas
politicamente estratégico para essas organizações. práticas dos mesmos, como o fato de um tenente ser, com
frequência réu de policia e conhecido por causar
A organização militar da fronteira pós 1824 "perturbações" na região. Dessa forma, o questi~~amento
do referido juiz sobre o grande número de m1htares -
Após a revolta de 1824, a região de fronteira entre o segundo ele - pode ter se dado primeiro porque a
Pará e o Maranhão ficou em "alerta", forçando a se adotar responsabilidade de realizar o recrutamento estava a
novas medidas visando restabelecer e manter a ordem do cargo do juiz de paz e o mesmo poderia estar
lugar. Nesse sentido, em janeiro de 1830 um embate "incomodado" por ter seu poder limitado quanto à
entre o juiz de paz Manoel dos Santos de Assunção e o organização militar da região, assim como o aumento de
comandante militar da vila de Bragança, Francisco da homens para se estabelecer o "controle" na região poderia
Silveira, permite perceber além da pluralidade das ser um limitador de seus interesses e ações ou
relações na região de fronteira, os diferentes sujeitos e as representar uma tentativa de evitar que pessoas próximas
estratégias de contenção dos errantes estabelecidas pós a ele fossem punidas.
1824. Na ocasião - por meio de oficio - o Juiz de Paz Domingos Raiol destacou que Lobo de Souza, em
questionava a necessidade de se ter dois regimentos no 1834, insistia em deixar o recrutamento a cargo dos juízes
distrito e um contingente de praças, segundo ele, de paz, mesmo que os problemas fossem iminentes e os
numeroso. O comandante militar de Bragança relatava, corpos de primeira linha vivessem constantemente
no entanto, que o questionamento do juiz de paz se incompletos31 • Todavia, julgava necessário imprimir
justificava, visto que seus conselheiros eram novas formas de realizá-lo. A proposta do presidente da
constantemente réus de polícia, incluindo seu genro província era a de que qualquer pessoa escolhida por ele
Antonio Jozé Soares, tenente de ligeiros, que nas pudesse realizar o recrutamento e em qualquer lugar,
informações de conduta era incorrigível, em virtude do podendo inclusive ser recrutado qualquer indivíduo que
seu constante estado de embriaguês, sendo preso com se encontrasse em condições de servir na capital da
frequência no quartel de Bragança. O comandante militar província, mesmo que fosse oriundo de outro distrito ou
afirmava que o tenente Antonio Jozé Soares sempre fora freguesia. As novas propostas para o recrutamento
de hora amotinava a vizinhança e todo o território da apresentada,s por Lobo de Souza foram aprovadas pelo
região. Além do genro, em uma patrulha policial Conselho da província no mesmo ano32 •
chegaram a ser apreendidos garrafões e potes de vinho Em resposta ao ofício recebido do juiz de paz de
que os escravos do juiz de paz tinham ido buscar a bordo Bragança em 6 de dezembro de 1831, no qual solicitava a
de uma embarcação naufragada3°.
31 RAIOL. Op. Cit., p. 321-322.
3° Jbid., doe, 14. 32 Jbid., p. 324-325.
234 Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 235

aprovação do presidente de Província quanto à criação da destacando que após efetuarem as mortes os amotinados
Patrulha municipal "para rondar ese districto incluindo roubaram as vítimas36 • Isso foi no tempo da revolta de
nella os milicianos". O presidente do Pará, Marcellino 1824, em que o comandante relatava que os soldados
Jozé Cardoso, recomendava que o Juiz cumprisse o insubordinados nunca haviam conhecido os comandantes
decreto de 6 de junho de 1831, que estabelecia a Guarda e oficiais inferiores de suas respectivas companhias, e
Municipal, "passando a nomear hum Comandante Geral e quando eram chamados para o serviço de Sua Majestade,
fazendo alistar as pêsoas que não sendo milicianos mandavam dizer a seus comandantes que não queriam -
tenham a qualidade que exige a referida ley''33. Solicitava, e não vinham. Tais atos de insubordinação e recusa ao
ainda, que lhe encaminhasse um mapa indicando o trabalho teria perdurado por longos anos, até a chegada
número e "qualidade" dos alistados, a fim de que pudesse do primeiro comandante militar na vila de Bragança37.
passar as instruções para a realização do serviço34. Durante o embate entre o Juiz de Paz de Bragança,
Nesse contexto, no início da década de 1830, o Manoel dos Santos de Assunção, e o comandante militar
interesse não estava relacionado somente à quantidade, daquela vila, o primeiro afirmava que o numeroso
mas também à qualidade dos recrutados. Nesse sentido, regimento dessa zona de fronteira havia sido estabelecido
ao tempo em que o juiz de paz questionava a existência pela tropa comandada pelo major Boaventura da Silva,
dos regimentos, afirmando que o destacamento do depois da sua passagem pela região em tempos de
distrito em outro tempo era composto por seis praças e revolta.38 Porém, o comandante militar Francisco da
um inferior de 1 ª linha. O comandante militar Francisco Silveira argumentava que o destacamento da região não
da Silveira afirmava não lembrar daquele tempo, a não havia sido instituído por Boaventura, e quando este
ser que fosse no período em que a maior parte dos esteve no distrito com sua tropa cometeram todo tipo de
soldados milicianos das companhias de Bragança e de violência e arbitrariedades, que até 1830 os pacíficos
Turiaçu se amotinaram e assassinaram o coronel Pedro habitantes não conseguiam esquecer as hostilidades
Miguel Ferreira Barreto, comandante militar do perpetradas por aquela tropa insubordinada, tendo à
distrito,3s e muitos habitantes nas suas próprias casas, frente o Major Boaventura. O comandante lembrava que
na ocasião, para retirá-los do distrito, foi necessário que o
33 PARÁ. Correspondências do Comando Geral Militar com diversos. Cod. senhor Barros, ex-presidente da província do Maranhão,
918, doe. 317. Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do
Pará (APEP).
34/dem. reinava nos coraçoens de todos em geral - huns dando mil vivas as
35 Pedro Miguel Ferreira Barreto foi o responsável por organizar o Amorosas Cortes de Portugal, outros a El Rey e Senhor Dom João VI,
juramento à "Santa Constituição nas Mãos do Vigário", em 23 de e outros a nossa Sagrada Constituição [ ...]" (APEP. Cod. 696, doe.
março de 1823, cuja solenidade ocorreu de acordo com as 92).
formalidades previstas para a ocasião. Esse ato foi realizado com 36 PARÁ. Correspondência de diversos com o governo. Cod. 890, doe 14.
festa e requinte, e contou com a presença de "membros da câmara, Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP).
párocos, corporações de 1 ª e 2ª linha e nobreza" (APEP. Cod. 696, 37 Idem.
doe. 92). Na ocasião, Ferreira Barreto destacava que durante o festejo 38 A documentação faz referências apenas ao tempo de revoltas, sem
era possível ver "de todas as formas o entusiasmo Nacional que informar o ano em que ocorreu da rebelião.
Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 237

enviasse ofício a Burgos, ex-presidente da província do controle necessário no território. Na época, o


Pará, solicitando que mandasse recolher aquele oficial comandante destacava que mesmo contanto com essa
com a tropa que tinha debaixo de seu comando39. pequena força de militares, as escoltas estavam atingindo
De 1824 a 1830, as dificuldades de se estabelecer o o seu intento, capturando indivíduos criminosos41 •
"controle" da região de fronteira foram muitas, Ao relembrar a época da revolta de 1824, anos
principalmente porque as forças policiais responsáveis depois, em 1830, o comandante de Bragança tinha o
por tal intento também se encontravam dispersas e/ou objetivo de mostrar ao presidente do Pará, Barão de Bagé,
"insubordinadas". Durante esse período, os portos e que a representação feita pelo juiz de paz - de que o
interior da vila de Bragança eram os pontos que estavam destacamento militar do distrito era numeroso, sem que
bem guarnecidos, com quatro praças, sendo dois de 1a houvesse necessidade - era falsa. Segundo o comandante,
linha e dois de 2ª linha, cuja preocupação maior era não se podia dizer que o destacamento deveria ser
evitar que criminosos e desertores entrassem na região. composto apenas por seis praças e um inferior, como em
Esse temor estava associado às mortes e roubos ocorridos outro tempo. E ironizava: "pode ser, que neste tempo
em Turiaçu, Bragança e outras partes do distrito no ano todos os homens fossem santos e hoje se tornassem maus,
de 1824. enfim he necessário excessiva prudencia para os
A recusa ao trabalho dos rebelados de 1824 foi sufferer"42 •
rememorada pelo Juiz de Paz de Bragança em 1830, o Na mesma ocasião, Francisco da Silveira descreveu
que demonstra uma clara rejeição e disputa entre o viver como estavam organizados os destacamentos de Turiaçu,
para si e o trabalhar para outros, entre formas de viver demonstrando que ali existia um destacamento de
suas liberdades e formas de trabalho imposto milícias composto de três inferiores e vinte e dois praças,
compulsoriamente. Isso fica claro no ato de posse do além de uma guarda composta de um inferior ou cabo e
comandante militar, em 1824, quando os soldados foram três soldados no quartel onde havia armamentos e
chamados para se apresentar, somente aqueles munições de guerra43. Além das forças citadas, era
considerados "bons" vieram e os que não eram bons realizada regularmente uma patrulha policial na região
fugiram. Com a recusa ao trabalho, o comandante do Turiaçu, com a participação de três praças que
mandou escoltas para resgatar os fugitivos, fazendo-os rondavam e "a marinha he obrigada a examinar se os
entrar em ordem regular de serviço, de forma que em individuas que entram ou saem se vão ou não munidos
1830 obedeciam a seus "officiais e oficiais inferiores"4º. dos competentes passaportes igualmente da parte das
Em 1830, o comandante militar ressaltava a embarcações"44, Logo que avistadas as embarcações -
necessidade de se manter um destacamento com seis antes mesmo de aportarem - um inferior com dois
inferiores e 50 praças na região, em virtude do serviço e soldados se deslocavam para subir a bordo e conferir os

41 /dem.
39 PARÁ. Correspondência de diversos com o governo. Cod. 890, doe 14. 42 /dem.
Acervo disponível no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). 43/dem.
40 Idem. 44/dem.
Sueny Diana Oliveira de Souza e William Gaia Farias (Orgs.) Militares, poder e sociedade na Amazônia 239

passaportes dos passageiros, buscando perceber se havia Essa solicitação do juiz de paz se deu em virtude das
alguém com atitude suspeita. Essa medida foi adotada em baixas, pois ficou acertado que os comandantes militares
função de que muitos soldados desertores, homens tidos deviam pedir aos capitães das companhias de milícias os
c?mo criminosos e outras pessoas sem passaporte praças que julgassem necessários para coadjuvarem os de
vmham a bordo de embarcações e assim entravam 1 ª linha no serviço da guarnição da vila de Bragança,
ilegalmente na Província do Pará. Depois de instituída visando estabelecer uma boa polícia em todo o distrito,
essa patrulha, vários indivíduos já haviam sido enviando constantemente escoltas rondantes com o
apreendidos e encaminhados para a capital da objetivo de capturar desertores, "homens criminosos" e
Província4s. "vagabundos", auxiliando também a justiça de Sua
Na mesma ocasião, o juiz de paz ainda alertava que Majestade - tudo para conservar o respeito e possibilitar
a agricultura poderia sofrer inconveniente e prejuízos, já aos considerados honrados e pacíficos habitantes
que 18 praças das duas companhias de milícias deveriam tranquilidade no seio de suas famílias48 •
coadjuvar de 15 em 15 dias na companhia de 1a linha, e Pelo exposto, o comandante militar reafirmava a
d~pois dos dias de revolta folgavam gradualmente por necessidade de se manter policiada a ribeira de Turiaçu
cmco meses para se dedicarem à agricultura, às artes e ao que se encontrava, em janeiro de 1830, reduzida a um
comercio, por isso que cada companhia tinha 90 praças, a número de vinte e dois praças e três inferiores, o que,
fim de que o rodízio na escala de trabalho fosse possível. portanto, não era suficiente para a realização do serviço,
O comandante afirmava que o juiz de paz ignorava o afirmando que seriam necessários pelo menos trinta
número de praças que, por escolha, eram chamados para praças de 1 ª linha, não só para guarnecerem os pontos
o serviço46 • mais vulneráveis, como também para realizar diligências
O juiz de paz era acusado de desconhecer ou não ter fora da área central da vila e freguesias, já que as
buscado saber o número, regime e necessidade de praças ocorrências e necessidade do serviço em outros pontos do
e por isso havia solicitado alguns praças para a primeira distrito não eram menos frequentes. Segundo Francisco da
linha, questionando o grande número de praças do Silveira, somente com uma numerosa guarn1çao os
segundo regimento. O comandante Francisco da Silveira habitantes de Bragança e Turiaçu poderiam gozar de
propunha, então, que de 15 em 15 dias fossem sucego e tranquilidade, caso contrário os "malvados"
direcionados oito praças e um inferior de cada companhia habitantes se devorariam uns aos49.
para compor o regimento de primeira linha, visto que
naquele momento havia apenas 24 praças e muito Concluindo
serviço47,
A intensificação das agitações populares ocorridas
na região do Turiaçu a partir de 1824, certamente foi um
45 /dem.
46 /dem. 48 /dem.
47 Idem . 49 / dem.
240 Sueny Diana Oliveira de Souza e William. Gaia Farias (Org:s.)

fator determinante para a ampliação e reformulação das


unidades militares na fronteira entre o Pará e o
Maranhão, uma vez que era preciso defender e/ ou
delimitar seus espaços e privá-los das ações de sujeitos
tidos como criminosos. Todavia, ao tempo em que o ano
de 1824 .trouxe à tona sujeitos e suas organizações
contestatórias, acabou por deixar em alerta as
autoridades tanto do Pará quanto do Maranhão para
novas possíveis insubordinações, em grande parte
expressadas pelas organizações clandestinas, que
numerosamente, viviam estruturadas nas matas.

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