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Revista de
etra
Exposição de proposta técnico-pedagógica que será Mikhail Bakhtin marcou uma renovação nos es-
divulgada em livro (já no prelo), no qual se pretende dar tudos linguísticos e literários do Ocidente depois que suas
subsídios teóricos e apresentar estratégias de análise estilís- ideias ultrapassaram as fronteiras da Rússia, a partir da dé-
tica, articulada com a teoria da variação e com os gêneros, cada de 70. Na multiplicidade de temas estudados em sua
na perspectiva semiótico-funcional. O presente trabalho obra — a sátira menipeia, a cultura popular medieval, o ro-
visa a demonstrar um ensino da língua portuguesa (L1) as- mance moderno ou escritores como Rabelais e Dostoiévski
sentado na Estilística, portanto privilegiando as escolhas do —, é possível localizar uma mesma questão de base que ele
enunciador e suas articulações com a variedade linguística chamou de dialogismo. Trata-se do princípio de que todo
decorrente do gênero textual eleito para a comunicação. enunciado linguístico se fundamenta sobre um diálogo im-
Trazemos ainda uma articulação intertextual, incluindo plícito com outros enunciados, postulado cujo desdobra-
textos não verbais ou sincréticos com vista a dinamizar as mento teve consequências teóricas fecundas, gerando con-
práticas pedagógicas de língua portuguesa. ceitos paralelos como os de polifonia e carnavalização.
Reunindo vários escritos a partir da fábula “A for-
Palavras-chave: Estilística; Gêneros; Variação Linguís- miga e a cigarra”, situar-nos-emos na esteira das reflexões
tica; Ensino. de Bakhtin, aprofundando aspectos mais obscuros de sua
teoria, no que tange à distinção, por exemplo, entre polifonia
Abstract e intertextualidade, ou procurando desenvolvê-la na apli-
cação a novos objetos de estudo, ou seja, contaremos com
Exposition of a pedagogic proposal that will be o auxílio de outras ciências linguísticas — Semiótica, Es-
published in a book (in press), in which it intends to offer tilística e Pragmática — para a análise do corpus.
theoretical allowances and stylistic analysis strategies, Esse auxílio nos oferecerá um leque de diferentes ca-
combined with the theory of variation and their genders, minhos para análise, uma vez que não é demais lembrar que o
in a functional-semiotic perspective. This paper aims to discurso, seja qual for, nunca é totalmente autônomo (Bliks-
demonstrate the teaching of Portuguese language (L1) tein, 2003, p. 45), de sorte que poderemos comentar, então,
based on Stylistic, favouring the choices of the speaker os níveis de estruturação discursiva do texto, num percurso
and their articulations according to the linguistic variety dedutivo, alicerçando-nos não apenas na Análise do Discurso.
that elapses of the textual gender chosen for communica- Nesse sentido, veremos que as várias vozes, os
tion. Further, we offer an intertextual proposal including vários registros e suas fontes textuais nessas obras tornam
non-verbal or syncretic texts in order to give support to atuais as reflexões de Barthes e Rifaterre, citados por Linda
the teaching of Portuguese language. Hutcheon: [...] a intertextualidade substitui o relaciona-
mento autor-texto, que foi contestado por um relaciona-
Keywords: Stylistically, Gender, Language Variation, mento entre o leitor e o texto, que situa o lócus do sentido
Teaching. textual na história do próprio discurso (1991, p. 166).
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SELEPROT, UERJ, Bolsista de Produtividade (CNPq). E-mail: darciliasimoes@gmail.com
2
SELEPROT, UNESA. E-mail: arturrei@uol.com.br
a um objeto mudo ou a um fenômeno natural, referem- Suportado por toda uma intertextualidade, o discurso
-se ao homem em sua especificidade. O homem tem não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes,
A CIGARRA E A FORMIGA
Esopo
Uma escura manhã, quando já não faltava muito para o inverno, a terra despertou e viu-se recoberta
por uma geada branca como a neve. Sob esse manto prateado, tudo parecia imóvel e sem vida; mas bem
no fundo, no meio da entrelaçada erva rasteira, uma colônia de formigas estava muito ocupada. Indo e
vindo pelas sinuosas avenidas de seu reino minúsculo, elas traziam os seus grãos de milho para arejá-los
em montinhos e com isso conservá-los para o sustento durante os dias frios e cruéis que estavam por vir.
Enquanto as formigas trabalhavam, uma cigarra, que por acaso sobrevivera ao verão e que agora estava
quase morta de frio e fome, aproximou-se delas. Tiritando, e com grande humildade, implorou por um
pouco de milho para salvar a vida.
As formigas continuaram com suas tarefas, mas uma delas, mais abrupta do que as companheiras, virou-
-se para a cigarra:
— O que foi que você fez durante o verão? perguntou em tom nada amistoso.
A cigarra tiritou ainda mais. Se tivesse um casaco, tê-lo-ia apertado à volta do corpo.
— Ah, minha senhora — sussurrou, ainda mais humildemente — passei um verão muito alegre e agradável,
cantando e dançando! Não me achava preguiçosa, mas nem por um instante pensei no inverno.
A voz da cigarra sumiu num queixume, enquanto as pernas longas e congeladas do bichino cediam um
pouco mais.
— Se é assim — retrucou a formiga, rindo e arrumando o celeiro — tudo o que posso dizer é isto: já que
cantou o verão inteiro, agora cante o inverno inteiro também!
Moral da História: Deus ajuda a quem cedo madruga. OU Os preguiçosos colhem o que merecem.
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A estilização é uma técnica geral de reescritura, de intertextualidade, e a paródia e a paráfrase seriam efeitos particulares, ou seja, a estilização
é o artifício utilizado pelo autor e a paródia e a paráfrase são o resultado. (Para maiores exemplificações, cf. Sant’Anna, 1985, p. 41).
Quanto à moralidade não há o que se lhe diga: a fábula Nesse sentido, podemos entender a intenção dos
é perfeita. O seu defeito — e este inegável — está autores da letra de música chamada ao texto, ao afirmarem
na sua matéria; está na formiga e na cigarra que ele
que existe uma relação de amizade entre as duas persona-
põe em cena. Em primeiro lugar, não há cigarras no
inverno. Em segundo lugar, a cigarra não come, e gens, já que existem explicações naturais que mostram a
de nada lhe valeriam “les grains et les vermisseaux” harmonia entre elas em seu hábitat. E o inverno em nossos
da formiga. Em terceiro lugar, a cigarra cantadeira e corações é a falta da “música” — metáfora da beleza, da
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Na literatura brasileira, destacou-se Noigandres (revista fundada em 1952), formado pelos poetas Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo
de Campos, entre outros.
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A poesia concreta propunha o poema-objeto. Os poetas utilizavam múltiplos recursos: o acústico, o visual, a carga semântica, o espaço tipográfico
e a disposição geométrica dos vocábulos na página. cf. http://pt.scribd.com/doc/263445/Haroldo-de-Campos.
Não utilizaremos aqui o termo escolha como sinônimo Como no ato de leitura (interpretação) o que se busca
de estilo, mas como condição do estilo. Acreditamos é efetivamente o sentido, semiótica e estilística vêm
que essa assertiva define bem os diferentes estilos ganhando contornos de maior relevância, uma vez
utilizados pelos autores que fizeram a escolha dessa que suas teorias alicerçam a discussão da tessitura
fábula, para dar um novo recorte, ou quando não, textual e viabilizam a construção de paradigmas de
para reescrevê-la sob a sua ótica particular, pessoal. análise consistente, bastante diferentes de modelos
anteriormente praticados que deixavam no leitor
E, nesse sentido, apontamos Granger (1968, p. 2005-6), a sensação de um trabalho de cunho quase esoté-
quando aborda o fato de que as obras que têm pontos de rico. A linguagem poética quebra a linearidade da
interseção se distinguem, primeiramente, pelos usos volun- sintaxe verbal, recuperando as qualidades físicas e
tários de cada um: sensíveis do objeto. Por isso, o texto poético requer
um observador extremamente atento, para que este
Assim, não é estritamente falar em uma estatística possa saborear toda a delícia que uma poesia pode
“desviante” que uma mensagem aparece como es- oferecer. Nesta perspectiva, a Semiótica traz um
tilisticamente marcada, mas apenas na medida em instrumental muito rico que permite ao observador
que essa diferenciação pode ser interpretada como (leitor,intérprete) examinar o objeto poético como
revelando uma distribuição “intencional” de caracte- um construto plástico, icônico.
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