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Fundamentos

Metodológicos
do Ensino de
Língua Portuguesa
LÉO MACKELLENE GONÇALVES DE CASTRO
LÉO MACKELLENE GONÇALVES DE CASTRO

FUNDAMENTOS
METODOLÓGICOS DO ENSINO
DE LÍNGUA PORTUGUESA

NOVAS TENDÊNCIAS PARA O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA

1ª EDIÇÃO

Sobral/2016
INTA - Instituto Superior de Teologia Aplicada
PRODIPE - Pró-Diretoria de Inovação Pedagógica

Diretor-Presidente das Faculdades INTA Revisora de Português


Dr. Oscar Rodrigues Júnior Neudiane Moreira Félix

Pró-Diretor de Inovação Pedagógica Revisora Crítica de Textos


Prof. PHD João José Saraiva da Fonseca Anaisa Alves de Moura

Coordenadora Pedagógica e de Avaliação Diagramador


Profª. Sonia Henrique Pereira da Fonseca José Edwalcyr Santos

Professor conteudista Diagramador Web


Léo Mackellene Gonçalves de Castro Luiz Henrique Barbosa Lima

Assessoria Pedagógica Analista de Tecnologia Educacional


Sonia Henrique Pereira da Fonseca Juliany Simplicio Camelo
Evaneide Dourado Martins
Juliany Simplício Camelo Produção Audiovisual
Francisco Sidney Souza de Almeida (Editor)
Design Instrucional
Sonia Henrique Pereira da Fonseca Operador de Câmera
José Antônio Castro Braga

4 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Sumário
Palavra do Professor-autor....................................................................................
Biografia do autor...................................................................................................
Ambientação............................................................................................................
Trocando ideias com os autores............................................................................
Problematizando.....................................................................................................

1 Ampliando a noção de Língua


Introdução ............................................................................................................................................
O Surgimento das Línguas..............................................................................................................
Breve História da Língua Portuguesa I: Aspectos Históricos.............................................
Breve História da Língua Portuguesa II: Formação ...............................................................
Língua Portuguesa e Colonização ...............................................................................................
O Português Brasileiro .....................................................................................................................
Nível Fonológico.........................................................................................................................
Nível Morfológico.......................................................................................................................
Nível Sintático..............................................................................................................................
Preconceito Linguístico ...................................................................................................................
Língua e Poder.....................................................................................................................................

2 Ampliando a noção de Ensino de Língua


Introdução.............................................................................................................................................
O Ensino de Língua Portuguesa como instrumento de Exclusão Social.......................
A Lei do Diretório................................................................................................................................
A Atual Prática Docente de Língua Portuguesa .....................................................................

Leitura Obrigatória.................................................................................................
Bibliografia..............................................................................................................
Bibliografia Web.....................................................................................................
Palavra do Professor-Autor

Olá, sejam bem-vindos!

Boa parte dos estudantes do Ensino Superior, do primeiro ao último semestre,


apresenta enormes dificuldades em escrever textos, da redação de uma simples
prova discursiva à escrita de um artigo científico, um resumo expandido ou mesmo
da monografia de fim de curso; apesar de terem passado mais de dez anos de suas
vidas estudando língua portuguesa.

Para a língua portuguesa no Ensino Básico, são reservadas, em média, sete


aulas semanais. Contando que o ano letivo tem aproximadamente 29 semanas, e
calculando que o aluno regular passa 12 anos na escola, temos que esse aluno
assiste a aproximadamente 2.500 aulas de língua portuguesa na vida, e mesmo
assim ainda temos um quadro de dificuldade de escrita bem alarmante.

A maior parte das “modernizações” do ensino de língua levam em conta


apenas as questões metodológicas. Mas será que o problema é realmente só a
metodologia? Será que o que precisamos rever não é mesmo o conteúdo a ser
trabalhado em sala de aula? Será que estudar língua é estudar gramática? Será que
as aulas de literatura têm que se concentrar no estudo das escolas literárias, suas
características, principais obras e principais autores?

São essas e outras questões que vamos abordar na disciplina que por hora
começamos, tentando dar conta das implicações pragmáticas das escolhas teórico-
pedagógicas que fazemos.

O autor.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 9


Biografia do Autor

Léo Mackellene Gonçalves de Castro é Mestre em


“Literatura e Práticas Sociais” pela Universidade de Brasília
(UnB). Licenciado em Letras pela Universidade Federal do
Ceará (UFC), tendo sido professor de disciplinas de “Estágio
Supervisionado”, “Ensino de língua portuguesa” e “Ensino de
literatura” pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA),
durante dez anos (2004-2014). Escritor, publicou livros de
poemas e contos premiados por editais estaduais e municipais
de fomento à cultura, em Fortaleza, além de livros resultantes de pesquisas nas áreas
de alfabetização e letramento (A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire:
considerações sobre Alfabetização e letramento, financiado pela CAPES) e nas áreas
de memória cultural e história oral (Carinhanha: entre rosas e veredas, Carinhanha:
entre o sabor e o saber e Carinhanha: entre rios de histórias, este último financiado
pelo Centro Cultural Banco do Nordeste). Atualmente, é editor do periódico científico
Scientia – Revista de Ensino, Pesquisa e Extensão de uma faculdade particular em
Sobral, e autor de manuais de escrita acadêmica na mesma instituição. Está em fase
de conclusão de seu primeiro romance, a ser publicado em 2016.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 11


AMBIENTAÇÃO À
DISCIPLINA
Este ícone indica que você deverá ler o texto para ter
uma visão panorâmica sobre o conteúdo da disciplina. a
Olá, caros(as) estudantes, estamos começando a disciplina Fundamentos
Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa! Esperamos que ela lhes seja de
muito bom proveito no sentido de repensarmos nossa prática pedagógica como
professores que somos ou seremos.

A expectativa dos estudantes – muitos de vocês já professores na área –, quando


chegam a uma disciplina como essa, é de que o professor dê dicas de atividades e
materiais a serem utilizados em sala de aula; e que a disciplina ensine o passo-a-
passo, a práxis, o fazer pedagógico do ensino de língua portuguesa. Sentimos muito
quebrar essa expectativa!

O material “Novas Tendências para o Ensino de Língua Materna”, na verdade,


não dá dicas, ele procura instigar uma reflexão sobre a compreensão geral acerca
do que é a língua – geralmente entendida como mero meio de comunicação –, bem
como sobre o que é ensinar língua – geralmente confundida com ensinar gramática.

Essas compreensões comuns têm orientado uma visão muito reducionista do


ensino de língua, levando o professor a trabalhar quase que exclusivamente com a
gramática e com textos escritos, e desconsiderando outras modalidades da língua,
bem como suas outras características.

Esse material tem por objetivo problematizar a prática pedagógica tradicional


do Ensino de Língua Portuguesa, analisando, na segunda unidade, a prática
curricular de alguns alunos-professores na disciplina de Estágio Supervisionado I,
ministrada pelo Curso de Licenciatura Específica da Universidade Estadual Vale do
Acaraú/ Instituto de Estudos e Pesquisas Vale do Acaraú, no município de Santana
do Acaraú-CE, em 2006. É uma oportunidade, portanto, de avaliarmos a prática
pedagógica diante das novas tendências para o ensino de língua materna.

Bons estudos!

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 13


ti
TROCANDO IDEIAS
COM OS AUTORES
A intenção é que seja feita a leitura das obras indicadas
pelo(a) professor(a) autor(a), numa tentativa de
dialogar com os teóricos sobre o assunto.
Agora é o momento de você trocar ideias com os autores das
obras sugeridas.

No acervo da biblioteca existem alguns livros


importantes para nossa discussão. Sugerimos a leitura
da obra Uma gramática intuitiva: liberte-se das regras
e tome posse da língua que você fala, de Cristin A.
Schumacher. Nele, a autora destaca o que entendemos por
“regras gramaticais”, sugerindo que essas não são como
leis de trânsito que devem ser seguidas pelos motoristas e
cuja desobediência está sujeita ao pagamento de multas,
pontos da carteira etc., mas características da língua. A partir
daí ela pergunta “O que é errar?”. Essas características da
língua é que compõem o que a autora chama de “gramática
intuitiva”.
O livro é importante não só porque traz à tona reflexões importantes acerca de
nossa compreensão dos fenômenos linguísticos, mas porque, com uma linguagem
extremamente simples, ela explica a importância da linguística, a ciência da língua,
para o professor de língua portuguesa. Além disso, a terceira unidade traz, uma série
de dicas sobre itens gramaticais como a formação de palavras, o que ela chama de
“localizadores textuais”, ligados a perguntas como “Onde?”, “Como?”, “Quando faz?”,
bem como “as palavras contexto”, que a autora explora como sendo palavras típicas
de determinados contextos discursivos; utilizando exemplos reais e uma linguagem
que procura fugir o tempo todo da nomenclatura gramatical.
SCHUMACHER, Cristina A. Uma gramática intuitiva: liberte-se das regras e
tome posse da língua que você fala. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

Propomos também o livro que, apesar de não convergir


para as ideias deste material, serve como contraponto para
uma reflexão nossa é o Dicionário de erros correntes da
língua portuguesa, de João Bosco Medeiros e Adilson
Gobbes. Os autores apresentam os mais recorrentes “erros”
cometidos pelos falantes da língua portuguesa no Brasil,
procurando dar explicações breves de como usar cada
palavra e primando por apresentar exemplos simples
tirados do cotidiano da língua.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 15


A perspectiva sob a qual esse dicionário é escrito, bem como a concepção
de “erro” dos autores, estão bem claros no prefácio, onde eles apresentam ideias
como a de que “a diversidade linguística prejudicaria a comunicação”, ao mesmo
tempo em que, paradoxalmente, admitem que a linguagem precisa ser adaptada ao
destinatário, cabendo “ao usuário da língua decidir qual registro utilizar diante das
mais variadas situações”.

Procure ler esse prefácio, identificando em que pontos esse dicionário vai de
encontro ao que nosso material vem defendendo.

MEDEIROS, João Bosco; GOBBES, Adilson. Dicionário de erros correntes da


língua portuguesa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

GUIA DE ESTUDO

Após a leitura das obras, escolha uma e faça a resenha crítica e comente
com seus colegas na sala virtual.

16 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


PROBLEMATIZANDO
É apresentada uma situação problema onde será feito
um texto expondo uma solução para o problema
abordado, articulando a teoria e a prática profissional. PL
Você é professor(a) do 9º ano do Ensino Fundamental II num distrito de Sobral-
CE. A língua que o material didático de língua portuguesa descreve é uma língua
bem diferente da língua que os alunos usam, tratando as variações linguísticas
como “erro” de português. Como professor (a) encarregado (a) pela disciplina, não
pode deixar de usar o livro – que tanto é cobrado pelos coordenadores de área e
diretores das escolas, quanto pelos pais dos alunos, acostumados ao modelo de
ensino em que a “tarefa de casa” e “de classe” é que pode “medir” quanto o aluno
tem estudado. Como você pode utilizar o livro de maneira crítica?

GUIA DE ESTUDO

Baseado na situação mencionada, faça uma reflexão e comente com seus


colegas na sala virtual.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 19


APRENDENDO A PENSAR
O estudante deverá analisar o tema da disciplina
em estudo a partir das ideias organizadas pelo
professor-autor do material didático.
Ap
AMPLIANDO A NOÇÃO
1
DE LÍNGUA
CONHECIMENTOS
Entender que nosso idioma não se restringe a uma soma de regras gramaticais,
acertos e erros, e que ele se concretiza como fator de identidade cultural, com uma
história própria ligada tanto a elementos internos quanto a elementos externos.
Entender a língua como instrumento de manutenção/revolução de um status quo;
lugar onde se manifestam as relações de poder.

HABILIDADES
Analisar o fenômeno linguístico além da questão meramente gramatical –
compreensão equivocada inculcada nos falantes da língua durante toda a
Educação Básica –, compreendendo-o como instrumento de dominação social e
fator de identidade cultural.
Reconhecer a língua portuguesa e a sua importância como instrumento de
construção de concepções sobre si e sobre a realidade em nossa volta.

ATITUDES
Posicionar-se criticamente com relação aos preconceitos linguísticos cometidos
cotidianamente pelo desconhecimento da realidade do fenômeno linguístico no
Brasil.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 21


Introdução
Apesar dos esforços dos sociolinguistas, desde a década de 60, e do poder pú-
blico (através dos PCN’s, da LDB e de cursos de formação de professores), o ensino de
língua portuguesa ainda não conseguiu superar o conteúdo tradicional baseado na
gramática de Said Ali, de 1920, que insiste em apresentar conteúdos como a classifi-
cação das sílabas das palavras quanto à acentuação (em proparoxítonas, paroxítonas
e oxítonas) e a classificação dos encontros vocálicos (em ditongo, tritongo e hiato),
por exemplo, como se fossem da mais alta importância para o desenvolvimento das
habilidades de linguagem.
Alguns professores chegam ainda ao extremo de trabalhar o detalhamento da
estrutura das palavras (Morfemas, Afixos, Desinências, Vogais Temáticas, Vogais e
Consoantes de Ligação). Outros chegam ainda a classificações fonéticas do tipo oclu-
siva, fricativa, bilabial, labiodental etc. Como se esses conteúdos fossem responsáveis
pelo bom desempenho na hora de se escrever ou falar algo.
Trabalharemos sob a perspectiva de que esses conteúdos, não são úteis para o
desenvolvimento das habilidades de linguagem, pois têm levado a resultados extre-
mamente opostos aos esperados: ao invés de aproximarem o estudante do estudo
do idioma, afastam-no quase que definitivamente do estudo da sua própria língua
materna, da leitura, da literatura, e, mais ainda, da interpretação e da compreensão de
si, do outro e do mundo em que ele vive.
Nos cursos de Graduação em Letras e de Especialização em Ensino de Língua
Portuguesa, cursos de formação de professores etc., há sempre professores que apon-
tam vários problemas do ensino de língua portuguesa. E a pergunta que sempre fica
é: como deve ser então o Ensino de Língua Portuguesa? Bem, não há receitas para
isso. Existem algumas experiências que podem ser utilizadas como parâmetros tanto
para dizer “é assim” quanto para dizer “não é assim”. E é a partir da análise de algumas
dessas experiências que trabalharemos aqui.
Chegamos à conclusão de que o mais importante deste problema não é a me-
todologia de ensino. Haveríamos de estar loucos se reformulássemos os métodos de
aprendizagem humana construindo um novo paradigma teórico para o ensino e apren-
dizagem sem levar em conta o conteúdo pedagógico. Como reformular os métodos
pedagógicos do Ensino de Língua Portuguesa apenas apresentando um novo paradig-
ma teórico sem reformular o próprio pensamento sobre a língua? Entendemos que é
algo anterior a isso, e que está ligado à nossa própria compreensão do que é o fenôme-
no “língua” e de como ela deve ser ensinada. Antes de querer rever nossa metodologia
de ensino, portanto, é preciso rever a nossa própria concepção de língua na unidade
de estudo I e revistar nossa concepção de ensino de língua na unidade de estudo II.

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O surgimento das Línguas

Por milhões de anos a humanidade viveu como animais.

Então, alguma coisa aconteceu

que desencadeou nosso poder de imaginação:

Nós começamos a falar.

“Keep Talking”, Pink Floyd

The Devision Bell

Está tudo relatado em A vida secreta das plantas de Peter Tompikins e Cris-
topher Bird (1989). Segundo esses dois cientistas, há uma espécie de aura que os
antigos físicos chamavam de “fogo sutil” e que os atuais físicos chamam de “magne-
tismo”, que liga entre si todos os seres vivos sobre a terra. Essa ligação, se dá em um
nível muito menos perceptível que as visíveis catástrofes naturais acontecidas nos
últimos anos, consequência inevitável das inúmeras agressões à natureza. Segundo
a teoria de Peter Tompikins e de Cristopher Bird, toda prática que incidisse sobre um
determinado ser seria sentida por todos os outros seres que estivessem em torno
deste ser que sofre mais diretamente a intervenção.

Para comprovar tal hipótese, vamos observar uma experiência realizada com
plantas e animais.

Só para citar uma dessas experiências, os cientistas puseram numa sala isolada
um barril de camarões vivos e, ao lado desse barril, um aquário de água fervente.
Ao redor dessa sala, em três salas longitudinais, cada qual separada das outras por
espessas paredes de alvenaria, três árvores de pequeno porte. Em cada uma delas,
eles acoplaram eletrodos semelhantes aos que, em seres humanos, são capazes
de detectar a atividade psíquica, ligados, por sua vez, a registros. Num determina-
do momento, o barril de camarões vivos é despejado dentro do aquário de água
fervente. Segundo eles, no momento em que os camarões começaram a morrer,
todas as árvores reagiram a essa agressão como se fosse uma agressão contra elas
mesmas. O mais impressionante de tudo é que, ao serem comparadas a intensidade
da reação, o tempo de duração, o instante em que a reação começa e o instante
em que ela cessa, foi constatado que havia uma simetria perfeita, ou seja, todas as
marcas batiam entre si, todas, como se fizessem parte de um único organismo vivo.

24 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Concluímos após a leitura dos relatos que existe uma relação íntima e secreta
entre as coisas do mundo. Como se todos os seres do mundo estivessem ligados
de certa forma entre si, compartilhando as mesmas experiências, as mesmas sen-
sações, a mesma seiva, a mesma energia. É o que Goethe chamou em Fausto de
“o vínculo profundo que une partes sem conta, e faz do todo um mundo; (...) força
motriz de tanto movimento”. A relação intrínseca, íntima e secreta que há entre
todas as coisas do mundo, entre todas as coisas da vida, aquilo a que chamaram já
de “alma total, homem total, todo universal, analogia universal. Um mundo unís-
sono a que nós, um organismo imenso do qual cada um de nós é um pequeno
átomo, a pequena célula, do qual, homens e mulheres modernos, estão aparta-
dos. De tal movimento harmonioso, seja espontâneo, instintivo, intuitivo, estamos
separados. Culpa do fruto. O paraíso bíblico, o Éden, jardim que nos bastaria, é a
representação mítica dessa harmonia perdida à qual o homem tentou se religar
por meio da religião (do latim religare, religar-se).

Ernst Cassirer, em seu livro Ensaio Sobre o Homem, diz que:

O homem primitivo sente-se rodeado por todo tipo de perigos visíveis e


invisíveis. Não pode ter esperanças de superar esses perigos por meios
meramente físicos. Para ele, o mundo não é uma coisa morta ou muda;
ele pode ouvir e entender. (CASSIRER, 2001, p. 183)

Segundo essa reflexão, o homem, estando apartado dessa natureza (por um


motivo que talvez a ciência esteja ainda longe de desvendar e de que dão conta
explicações míticas como a de Adão e Eva), se viu diante de um mundo comple-
tamente novo para ele, submetido a toda sorte de eventos naturais (ventanias,
furacões, raios, relâmpagos, chuva etc.) que ele não entendia. Imagine como agiria
uma criança diante de um mundo como esse sem explicação alguma sobre o que é
essa água que cai lá de cima, sobre o que é esse vento que rebola para lá e para cá
estas coisas verdes presas no chão por troncos de madeira, sobre o que é aquela
luz brilhante cujo calor aquece a Terra e, às vezes, quando o calor é intenso, acaba
por incendiar tudo! Ao invés do pecado original, teríamos aqui o medo original do
mundo desconhecido da realidade.

Qual a primeira pergunta que qualquer pessoa faz quando encontra algo que
desconhece, pode ser bicho ou objeto? Por acaso não é um “o que é isso?” cheio

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 25


de espanto? E o que quem pergunta “o que é isso?” está querendo saber? Um
nome. Ela quer um nome.

O nome foi o primeiro passo rumo ao conhecimento das coisas e, posterior-


mente, ao domínio de todas as coisas. A existência ilimitada de todas as coisas,
fonte de nosso medo original, precisava ser contida, aprisionada, e o foi através
da palavra. Pela palavra, o mundo se tornou palpável, mensurável, real. Por isso, o
evangelho de João começa com “no princípio era o verbo e o verbo estava junto
de Deus e o verbo era Deus”. A palavra foi, a partir de então, considerada sagrada.

A palavra sempre teve, em todas as culturas, um valor muito forte. O homem


é em si um ser simbólico. Segundo o Cristianismo, a criação do mundo e da pró-
pria existência de tudo vem do anúncio de Deus, “E faça-se a luz!”, e o universo
começa.

O fruto que esse primeiro homem e essa primeira mulher teriam comido, se-
gundo a explicação mitológica, era da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Discernir por si o bem e o mal é separar em categorias grupos de ações e fenôme-
nos, é assumir, acima de tudo, a responsabilidade pela nossa liberdade de escolha.
Quando o homem, no entanto, toma consciência de si e do mundo que o rodeia,
quando ele admite para si o poder de recriar um novo mundo, é que ele se altera,
deixa de ser simples objeto que figura como parte do ambiente para ser, agora,
senhor desse ambiente. É ele que vem lançar luz sobre o mundo desconhecido,
categorizando e rotulando cada coisa que encontra, cada realidade, cada objeto,
cada ser. A decifração do mundo partia, assim, da codificação do mundo.

Michel Foucault, em As Palavras e as Coisas, diz que as línguas originais


eram muito próximas da própria realidade que representavam. Assim, as palavras
que designavam as coisas tinham a possibilidade de descrever muitos aspectos
desta mesma coisa. Ele cita o exemplo do hebreu (que ele considera como uma
língua original) Chasida, que significa “cegonha” e que, segundo ele, também quer
dizer “bondosa, caridosa, dotada de piedade”.

Isso nos traz à pergunta clássica jamais respondida com certeza


absoluta: como surgiu e como foi sendo elaborada a língua?

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Carlos Emílio Barreto Corrêa Lima, escritor cearense natural de Granja, em
seu romance A cachoeira das Eras, de 1979, diz que:

A linguagem fora sendo elaborada durante séculos e séculos com a ajuda


do murmurejar dos rios, do estalar dos galhos, do farfalhar das folhagens,
com o estrépito dos peixes pela água, com o ruflar das asas e o canto dos
pássaros e os ecos animais do fundo das noites mais antigas e dos cipós
e do gosto da polpa dos frutos sumarentos ou azedos e da sensação dos
corpos nas viagens pela mata (LIMA, 1979, p. 171).

Essa é a conhecida tese onomatopeica, segundo a qual “toda a linguagem tem


origem na imitação de sons” (CASSIRER, 2001, p. 187). Alguns teóricos associam a
isso o fato de que o nome de Deus entre os índios tupinambás no Brasil Pré-colonial
ser Tupána (que depois variou para Tupã), que em tupi era o nome genérico para
ruídos da natureza como o trovão. O que acontece é que essa tese nunca pôde ser
comprovada.

Em contraposição a ela surgiu uma outra conhecida pelo nome de tese inter-
jecional, segundo a qual os sons da fala são exclamações “de medo, raiva, dor ou
alegria” (Cassirer, 2001, p. 190), ou seja, são manifestações de certos sentimentos e
pensamentos humanos.

Seja qual for das duas teses a verdadeira, o fato é que foi essa capacidade de
nomear, associada ao fato de que nenhum outro animal (O que não quer dizer que
não possuam sistemas próprios de representação, tais como as abelhas, as formigas,
os golfinhos, as baleias etc. Que se comunicam entre si usando sistemas diferentes
do sistema linguístico humano), dispõe destes meios de representação da realida-
de, que forneceu ao homem base para se reconhecer como o animal escolhido por
Deus para dominar o mundo.

O princípio que rege o mundo é a comunicação. Essa comunicação, em verda-


de, é um princípio de comunhão. A palavra permeia todas as nossas ações. Ela é a
única entidade que está em toda parte, todo o tempo. É ela que mantém as pessoas
em relação. O verbo é o elo entre os indivíduos. A ponte. A palavra é uma chave para
o outro. Ela está fora, porque possibilita essa comunhão, mas também está dentro
de nós. Os psicolinguístas dizem que a memória consciente do indivíduo começa

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 27


a ser registrada no momento em que ele aprende a primeira palavra. Ela funciona,
como uma marca, a materialização de uma memória. Isso quer dizer que a palavra,
além de estar fora de nós, está dentro de nós. Assim, o verbo, a palavra, assim como
Deus, é onipresente.

Quando lemos e ouvimos, não apenas deciframos um código como se nós


tivéssemos nos olhos e nos ouvidos (e os cegos nas mãos — no braile, essa língua
carinhosa em que o leitor acaricia com os próprios dedos a palavra), quando lemos,
agimos como se fôssemos portas secretas, como se nos olhos nós tivéssemos fe-
chaduras para as quais as palavras são chaves. É a palavra quem abre essa porta de
nós mesmos, a porta para a nossa própria imensidão. Abre-te, Césamo! Ordena a
palavra silenciosamente. E ei-nos abertos.

Ler é, assim, permitir que a palavra nos atravesse, como se fôssemos nebu-
losos fantasmas luminosos e a palavra, um ente concreto que nos atravessa como
uma flecha, um pássaro que significa, inundando assim, com sua cor peculiar, todo
o nosso pensar, todo o nosso agir. Por dentro de nós, a palavra passeia livre nos fa-
zendo criar imagens novas a partir de nós, do que temos de mais antigo, de nossas
lembranças, criar imagens a partir do que vivemos. A palavra adentra em nós como
um espírito que invade as florestas. É ela, a palavra, a semente para as árvores de
significado que brotarão distintas de pessoa para pessoa e que conservará sempre
um tronco comum que possibilitará a nossa comunhão: a língua.

A mesma língua que serve, por um lado, para libertar o homem de seu medo
original, serve também para oprimir outros homens. Zilá Bernd (1988), em seu livro
O que é negritude, diz que existem duas palavras para o francês se referir ao homem
negro: a palavra noir, mais polida, e a palavra nègre, ofensiva, com a qual os france-
ses costumeiramente agrediam os africanos que viviam na França. A estudiosa diz
que o termo ofensivo gerava o que o poeta antilhano Aimé Cesaire chamava de “a
vergonha de si mesmo”. Como forma de superar essa condição, poetas, escritores e
intelectuais negros de língua francesa, ressignificaram o termo cheio de conotações
pejorativas e fundaram, em 1934, o movimento literário conhecido como Negritude.

A ideia era recuperar ao negro a sua dignidade, a sua identidade, a memória


que os séculos de colonização francesa dos países africanos teimaram em fazer es-
quecer; e faziam isso burlando, driblando o poder de palavras ofensivas impressas
sobre os africanos e seus descendentes, re-significando essas palavras. Logo, aquilo
que servia para ofender tornava-se motivo de orgulho. A arma utilizada para lhes
atacar agora seria usada para defendê-los.

28 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


O poeta da negritude fora designado a fazer justiça com as próprias mãos.
“Sentindo-se como o guia, o condutor de seu grupo, o poeta busca recuperar a
rebeldia e os ideais de liberdade que outrora guiaram seus antepassados” (BERND,
1988, p. 50). E tanto foi assim que, a partir da década de 60, os poetas começaram
a colher os frutos dessa semeadura: os países africanos dominados há séculos pela
Europa tornavam-se independentes. O principal poeta e líder da Negritude foi Leo-
pold Sédar Senghor, que se tornou, em 1960, o primeiro presidente da República do
Senegal, seu país de origem.

Esse é um exemplo forte de que a palavra ela não somente descreve realidades
(tese onomatopeica) ou manifesta sentimentos ou pensamentos (tese interjecional),
mas é representativa de relações sócio-históricas em que conflituam jogos de poder
entre as pessoas. Podendo ressignificar essas estruturas sociais, podendo superar
condições históricas, a palavra, assim como o verbo e assim como Deus, é onipo-
tente.

Em culturas diferentes há diferentes nomes para determinado objeto (concre-


to ou abstrato, animado ou inanimado). Cada nome desses se refere, no entanto,
a uma determinada característica daquele objeto. Ernst Cassirer diz que os termos
grego e latino para a palavra lua, embora se refiram ao mesmo objeto, não expres-
sam a mesma ideia. O termo grego denota a função da lua de “medir” o tempo; o
termo latino denota a luminosidade ou brilho da lua. Diz o autor que desse modo
“isolamos e concentramos a atenção em dois aspectos bem diferentes do mesmo
objeto (...). A função do nome limita-se sempre a enfatizar um aspecto particular
de uma coisa” (CASSIRER, 2001, p. 221). Cada palavra é uma categorização, uma
classificação da realidade. “Cada classificação é dirigida e ditada por necessidades
especiais, e é claro, que essas necessidades variam de acordo com as condições di-
ferentes da vida social e cultural do homem” (CASSIRER, 2001, p. 223). Cassirer cita
o caso da língua Bakairi falada por uma tribo indígena do Brasil central. Segundo
ele, nessa língua,

Cada espécie de papagaio e de palmeira tem seu nome individual, mas não
existe nome algum para expressar o gênero “papagaio” ou “palmeira”. Os
bakairi apegam-se de tal modo às numerosas noções particulares que não
se interessam pelas características comuns. (CASSIRER, 2001, p. 223)

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 29


A revista Piauí de janeiro de 2007 publicou a matéria “O verbo na alma da selva”
de Branca Vianna, em que ela retrata o trabalho que a Sociedade Internacional de Lin-
guística (SIL) tem feito no Brasil no sentido de registrar e preservar as línguas indígenas
desde a década de 60. Dentre as línguas catalogadas, o pirahã é falado por uma tribo
da Amazônia. Segundo ela, nessa língua, não existem palavras para cores e números,
e não há nenhum sistema de contagem. As referências a quantidades (como cada,
todos, muito e pouco) também são escassas nessa língua. O sistema pronominal é o
mais simples registrado entre as línguas conhecidas no mundo e existem apenas oito
consoantes e três vogais. Não há orações subordinadas. Em pirahã, diz ela:

O falante só pode se referir a pessoas ou objetos presentes fisicamente


diante dele ou a eventos que tenha presenciado. (...) Apesar dos mais de
duzentos anos de contato com comerciantes brasileiros, nenhum pirahã
jamais aprendeu português. (VIANNA, 2007)

A extrema peculiaridade do pirahã com relação a línguas como o português


é ilustrativo das diferenças culturais que as diferenças linguísticas representam. Os
Pirahã possuem um elaborado sistema de nominação articulado à sua forma de
entender o mundo, ou seja, sua cosmologia. Como povo seminômade que é, os
pirahãs apresentam uma incrível preocupação com o presente, o aqui e o agora, o
que demonstra sua capacidade de ligar-se intensamente aos que vivem. Seu tempo
é marcado por duas grandes estações: seca e chuva. Sendo assim, não há referências
à história. E como não há estratificação social em classes sociais bem demarcadas,
sua língua expressa tal condição, daí a ausência de subordinação nos períodos.

Saiba mais:

Pirahã: Tribo seminômade que habita o vale do rio Maici, na fronteira


entre os Estados do Amazonas e Rondônia, no norte do Brasil.

Em 1920, o linguista americano Benjamin Lee Worth divulgou uma teoria que
defendia que a nossa compreensão do mundo passa necessariamente pelas cate-
gorias da língua que falamos. Bem, isso não é de todo visível. Basta pensar que o

30 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


modo de vida automatizado em que vivemos hoje exige uma língua igualmente
automatizada, já que é ela quem media as relações sociais. Lembremos, portanto,
do sistema pronominal e verbal do inglês, língua do país carro-chefe desse modo de
vida cujo título é justamente American Way of Life (modo de vida americano). Se le-
varmos ainda em consideração que a palavra de ordem hoje é a multifuncionalidade
e maleabilidade suficientes para lidar com situações inusitadas, podemos ainda dar
crédito à teoria de Lee Worth, pois que as palavras são representações da realidade,
o que significa que a cada nova realidade uma nova palavra surge (ou ressurge) ou é
tomada de empréstimo de uma outra língua para representá-la. Sendo o inglês uma
língua lexical (é uma das línguas com maior número de palavras no mundo) e onde
se geram novos termos praticamente a cada semana, não é de se espantar que a
língua inglesa seja a que melhor representa os tempos em que vivemos.

Mas isso não é privilégio do inglês. Basta que observemos o novo paradigma
pronominal e verbal do português falado no Brasil: as desinências de número, que,
na gramática normativa, aparecem em número de seis (amo, amas, ama, amamos,
amais, amam), na fala cotidiana se reduzem a três (amo, ama, amam). As pessoas
verbais, classicamente seis (eu, tu, ele/a, nós, vós, eles/as), ampliaram-se para oito
(eu, tu, você, ele/a, nós, a gente, vocês, eles/as). E isso é uma característica justamen-
te da automatização porque passa a língua portuguesa no sentido de acompanhar
as necessidades linguísticas do tempo.

A língua é uma convenção social, ou seja, depende das pessoas que a falam, e
sobre a terra não existe um ser humano igual ao outro, é de se esperar que, mesmo
dentro de um mesmo idioma, grupos sociais diferentes usem palavras diferentes
para designar objetos, pessoas, situações, sensações, etc. Do mesmo jeito quando
se trata de indivíduos: cada indivíduo dá a cada palavra determinada carga semân-
tica, dependendo da sua experiência e do seu conhecimento. O poeta francês René
Daumal escreve: “Escuta bem, contudo, não as minhas palavras, mas o tumulto que
se eleva em teu corpo quando me escutas” (BACHELARD, 2000 p. 186). Assim é que
se pode dizer que a palavra não é só objetiva, parte dela também é subjetiva.

Mario A. Perini (2004), em “As Três Almas do Poeta”, ensaio do livro A língua
do Brasil amanhã e outros mistérios, diz que nas diferenças linguísticas (tanto as
de idioma para idioma, quanto às de dialeto para dialeto).

Não se trata simplesmente de ‘uma outra maneira de dizer as coisas’ (table


em vez de mesa, te quiero em vez de eu te amo), mas de outra maneira de
entender, de conceber, talvez mesmo de sentir o mundo [...]. Cada língua
é a expressão de uma concepção de mundo [...]. Cada língua é um retrato

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 31


do mundo, tomado de um ponto de vista diferente, e que revela algo não
tanto sobre o próprio mundo, mas sobre a mente do ser humano. Cada
língua ilustra uma das infinitas maneiras que o homem pode encontrar de
entender a realidade (PERINI, 2004, p. 42-43; p. 52).

Albert Camus, em seu romance A Queda, relembra que o termo em espanhol


para “saudade” é añoranza, que recupera a relação dessa palavra com a forma arcai-
ca añorar, que, por sua vez, recupera a palavra latina ignorare, de onde deriva. Sen-
do assim, diz Camus, há nesta palavra uma carga semântica que traz tanto a ideia
de falta quanto a ideia do desconhecimento, do ignorar o que é daquilo/daquele/
daquela de quem se sente añoranza, um sentir falta (com o sentimento focado em
quem sente saudade) somado a uma preocupação com o outro (com o sentimento
focado no objeto da saudade).

Seja como for, a relação entre as palavras e a cultura de um povo é tão forte
que a palavra que melhor expressa a condição do povo que fala a língua portu-
guesa, tanto mais no Brasil, é “saudade”. A saudade do indígena que já não tem
suas terras e os seus, a saudade do negro que já não está nas suas terras e não
sabe dos seus, e a saudade do europeu que veio embora de suas terras muitas
vezes sem os seus.

Breve História da Língua Portuguesa I: Aspectos


Históricos
O Império Romano pode ser considerado como um primeiro gesto de univer-
salização de uma cultura (e isso inclui língua, costumes, crenças etc.). Era o uso da
língua latina nos trâmites comerciais e administrativos do Império que reforçava a
noção de comunidade instaurada no imaginário dos chamados “Cidadãos Roma-
nos”. Além disso, “o latim era não só a língua em que se ensinava, como também a
única língua ensinada” (Anderson, 2008, p. 46), diz Benedict Anderson, em Comuni-
dades Imaginadas. “Romano” não era simplesmente “aquele que morava dentro dos
limites do Império”. O título de “Cidadão Romano” denotava grande importância
política e destaque social, que implicava ao detentor do título uma série de privilé-
gios e regalias onde quer que ele chegasse, inclusive a conotação de “civilizado”, em
contraposição a “bárbaro” (ainda que a palavra “bárbaro” originalmente designasse

32 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


apenas “aquele que não falava latim ou grego”).

Anderson lembra que “todas as comunidades clássicas se consideravam cos-


micamente centrais, através de uma língua sagrada ligada a uma ordem supraterre-
na de poder” (ANDERSON, 2008, p. 40). Associado, portanto, ao catolicismo apostó-
lico romano, o imaginário sobre o poder terreno dos césares ganhava ares divinos.
A língua latina adquire status de “língua-verdade”. Além disso, à necessidade de
expansão territorial própria do Império somam-se as pretensões universais teológi-
cas e filosóficas do Cristianismo, e o Império Romano ganha status de “Comunidade
Sagrada”. Essas duas condições têm fortes ressonâncias na constituição de Portugal
e na expansão de seu Império, traços fortes nas feições da Identidade Cultural lusi-
tana.

Após a queda do Império Romano (por volta do séc. V d. C.), a pressão dos
centros administrativos sobre as comunidades locais diminuiu, e a cultura dessas
comunidades oprimidas até então pelo poder centralizador de Roma pôde então
se desenvolver amplamente. Isso ocasionou um processo veloz de dialetação do
latim em toda a extensão do que antes fora o Império. O vernáculo vai, aos poucos,
fragmentando e pluralizando a “comunidade sagrada” a que Anderson chama de
“comunidade imaginada da cristandade” (ANDERSON, 2008, p. 78).

O documento mais antigo “escrito em língua portuguesa” é o Auto de Parti-


lhas (1192).

Disponível em http://www.hs-augsburg.de/~harsch/lusitana/Cronologia/seculo12/Partihas/par_
manu.html. Acesso em 10 de outubro de 2011.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 33


Neste documento, embora ilegível quando digitalizado, vê-se ainda uma lín-
gua muito próxima do latim — desde a forma de escrita até o próprio léxico.

Além de traços do latim, passado recente da língua naquele momento, o texto


apresenta traços do galego-português (grosso modo, uma língua intermediária en-
tre o espanhol e o português). Eis uma transcrição aproximada do Auto de Partilhas.

1 In Ch(rist)i n(omi)ne, am(en). Hec e(st) notitia de p(ar)tiçon (e) de devison que
2 fazem(os) antre nós dos h(er)dam(en)tus e dus cou[tos e] das onrras e
3 dou<s> padruadig(os) das eygreygas que fórum de nossu padre e de nossa
4 madre, en esta maneira q(ue) Rodrigo Sanchiz ficar por sa p(ar)ticon na
5 q(u)inta do couto de Vííturio e na q(u)inta do padroadigo dessa eygreyga em
6 todol(os) us h(er)dam(en)tus do couto e de fora do couto. Vu<a>sco
7 Sanchiz ficar por sa p(ar)ticon na onrra d’Ulueira e no padroadigo dessa
8 eygreyga en todol(os) h(er)dam(en)tos d’Olveira e en nu casal de Carapezus
9 q(ue) chamam da Vluar e en outro casal en Agiar que chamam Q(u)intáá.
10 Meen Sanchiz ficar por sa p(ar)ticon na onrra de Carapezus e nus
11 outr(os) h(er)dam(en)tus e nas duas p(ar)tes do padroadigo dessa eygreyga e
12 no padroadigo da eygreyga de Creysemil e na onrra e no h(er)dam(en)to
13 d’Arguiffi e no h(er)dam(en)to de Lauoradas e no padroadigo dessa eygreyga.
14 Eluira Sanchiz ficar por sa p(ar)ticon nos h(er)dam(en)tos de Centegaus e
15 nas três q(u)artas do padroadigo dessa eygreyga e no h(er)dam(en)to de
16 Creyximil assi us das Sestas come noutro h(er)dam(en)to. Estas p(ar)ticoens e
17 divisoes fazem(os) antrenós q(ue) uallam por ens(e)c(u)la
18 s(e)c(u)lor(um), am(en). Facta karta m(en)sse M<a>rcii E(r)a M.ª CC.ª XXX.ª.
19 Vaa<s>co Suariz ts., V(er)múú Ordoniz ts., Meen Farripas ts., Gonsaluu
20 U(er)muiz ts., Gil Diaz ts., Dom   M(a)rfío [13] ts.,  M(a)r(ti)m P(eri)z ts.,  Don
21  St(e)ph(a)m  Suariz ts.  Ego J(o)h(an)n(e)s  M(e)n(en)di p(res)b(ite)r notauit.
Em vermelho, algumas expressões do latim; em verde, do que viria a ser o espanhol.

Observe que há ainda a indefinição da grafia de determinados fonemas como


[ ] (“o” fechado), [ ] (“o” aberto) e [ ] (“u”). Nas linhas 2, 8 e 11, é possível observá-lo,
quando herdamento ora é escrito com “o no final”, ora com “u no final”, bem como
a palavra “dos”, grafada também como “dus”. Isso denota uma língua cuja unifor-
mização ainda não se dera. A uniformização/padronização da língua só vai se dar
quando do surgimento dos Estados-Nação na Europa, no processo de formação das
ditas monarquias nacionais, pela necessidade da afirmação das identidades nacio-
nais constituídas pela língua; um fenômeno da Idade Média tardia. Nesse processo
de uniformização/padronização da língua, a literatura será de grande valia também
na instituição do vernáculo, língua oficial de uma nação.

34 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Será a literatura o meio divulgador das línguas nacionais europeias considera-
das até então como erros de Latim (ou “latim vulgar”, variações chulas do latim clás-
sico); isso até fins da Idade Média. Assim, foi com a Divina Commedia (1307-1321)
na Itália; Les horribles et épouvantables faits et prouesses du très renommé Panta-
gruel Roi des Dipsodes, fils du Grand Géant Gargantua (1532) na França; Don Quijote
de la Mancha (1605) na Espanha; e Os Lusíadas (1572) em Portugal, que funcionaram
como primeira tentativa de uniformização das línguas.

Saiba mais:

Idade Média - Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas


(2008, p. 77), diz que o Francês fora considerado uma corruptela do la-
tim até 1539, quando se tornou a língua oficial dos tribunais da França.

Embora só em 1572 a língua portuguesa tenha ganhado versão impressa, com


a obra camoniana, já em 1290 em que foi oficializada pelo rei trovador D. Dinis como
língua do reino lusitano. Isso se deu por uma razão histórica. Em 711 d.C., os mouros
(negros islamizados da África do Norte) invadiram a Península Ibérica.

Fonte: http://hid0141.blogspot.com.br/2012/03/dominio-muculmano-da-peninsula-iberica.html

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 35


GUIA DE ESTUDO

Esta seção contou um pouco do processo de formação do estado


português na Europa, e de como essa formação acabou por influenciar
diretamente a própria língua portuguesa. Construa um texto de uma lauda
demonstrando a relação entre os aspectos históricos da formação do Reino
de Portugal e as repercussões disso na língua portuguesa.

O Império Romano já não mais existia, mas mesmo assim a organização so-
cial, política e econômica instaurada durante sua vigência ainda prevalecia. José
Hermano Saraiva, em seu livro História Concisa de Portugal, cita o relato do
presbítero de Braga Paulo Osório, que assistiu ao fenômeno das invasões. Segun-
do ele, as invasões representaram:

O fim de uma era de injustiça. Era a opinião dos cristãos, que considera-
vam as invasões um castigo de Deus, mas ao mesmo tempo um ensejo
de libertação e de implantação de uma lei mais justa. [Afinal,] os senho-
res romanos eram mais bárbaros do que os próprios bárbaros (SARAIVA,
1987, p. 29).

Diz ele ainda que:

Aqueles que lamentam os males presentes (as desgraças causadas pelas


invasões) estão deslumbrados pelo brilho da civilização romana, mas es-
quecem que tal civilização tinha por alicerce a injustiça e a miséria das
populações (SARAIVA, 1987, p. 28-29).

Os árabes permaneceram na Península Ibérica até 1492, quase oito séculos,


tempo suficiente para deixar marcas que não se podem apagar na língua e na cul-
tura portuguesa. Em 1788, a Academia Real das Sciencias organizou um dicionário
de 160 páginas (com palavras de A a Z) intitulado Vestigios da lingoa arábiga em
Portugal ou Collecção Etimologica das palavras e nomes portugueses, que tem ori-
gem arábiga. O dicionário ganhou uma versão moderna em 1981, com nota intro-
dutória de Fr. João de Sousa e prefácio de A. Farinha de Carvalho.

36 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Seja como for, muitos cristãos não se deixaram assimilar e recolheram-se no
extremo norte da Península, numa região montanhosa conhecida como Montes
Cantábricos.

Estavam, assim, isolados do restante do mundo românico, já que toda a Pe-


nínsula estava ocupada pelos árabes. Pouco a pouco, os cristãos concentrados ali
foram se organizando e reconquistando a área que depois comporia a extensão
territorial de Portugal. Acompanhe os limites conquistados e a data aproximada da
Reconquista. Entre um e outro, vão-se quase 100 anos.

Fonte: http://pt.slideshare.net/francielereiza/teyssier-histria-da-lngua-portuguesa

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 37


Na Península Ibérica, o vernáculo fora oficializado pelo Rei Trovador D. Diniz,
em 1290, como Língua Portuguesa. A oficialização do idioma lusitano tem papel fun-
damental na Reconquista, também referenciada como Conquista Cristã, movimento
iniciado no século VIII que visava recuperar as áreas da Península Ibérica tomadas
pelas invasões mouriscas. Embora tenha recebido substratos árabes (fundantes da
cultura chamada “moçárabe”), o alcance do idioma lusitano serviu para estabelecer
os limites políticos da área que futuramente seria Portugal: o português assumiu
o posto de “língua-verdade” e se sacralizou, no sentido de que qualquer variação
linguística da Norma Padrão era considerada “erro de português”; a “comunidade
sagrada da cristandade” fora reforçada e os árabes foram repelidos com veemência,
bem como os povos que Portugal iria subjugar com as Conquistas Ultramarinas.

GUIA DE ESTUDO

Esta seção contou um pouco do processo de formação do estado


português na Europa, e de como essa formação acabou por influenciar
diretamente a própria língua portuguesa. Construa um texto de uma lau-
da demonstrando a relação entre os aspectos históricos da formação do
Reino de Portugal e as repercussões disso na língua portuguesa.

Breve História da Língua Portuguesa II: Formação


As línguas mudam com o tempo. Se não fosse assim, estaríamos todos ainda
falando a língua original de Adão. E por que mudou? Porque o objetivo maior das
línguas, é possibilitar a comunicação entre as pessoas nos mais diversos contextos
sociais e comunicativos, ou seja, nas mais variadas situações. Assim, se uma reali-
dade social se modifica, a língua também se modifica. Se novas realidades sempre
despontam, surgem também novas línguas. Já reparou que, no Brasil, por exemplo,
apesar de falarmos a “mesma” língua, há peculiaridades bem específicas de cada
lugar/região do país? Isso se deve a quê? À condição que as línguas têm – qualquer
língua no mundo – de se adaptar.

As línguas variam quanto aos seus inventários fonéticos. Quando um falante


depara-se em sua língua com um estrangeirismo − o que caracteriza o que chama-
mos de empréstimo linguístico − por uma condição fisiológica, de estrutura do apa-
relho fonador, habituado a produzir fonemas de sua língua materna, ele, o falante,
tende a adaptar a pronúncia do vocábulo novo ao seu sistema fonêmico. Assim se
dá o sotaque do falante e a consequente perda do sotaque original da palavra. É
por isso que reconhecemos quando o falante é estrangeiro ou não, e muitas vezes
podemos até deduzir de que país ele é, ou ao menos que língua ele fala. Os “érres”
puxados de um falante nativo do francês ao tentar pronunciar palavras do portu-
guês ou os “érres” retroflexos das línguas enroladas de quando um americano tenta
falar português. Essa condição é responsável por um fenômeno que os sociolinguís-
tas chamam de “aportuguesamento”.

Saiba mais:

Empréstimo Linguístico:
O que geralmente ocorre quando é necessário descrever uma realidade
nova dentro da cultura de determinado povo.

Foi o que aconteceu, por exemplo, à palavra futebol, que chegou ao Brasil
como empréstimo do inglês football; ou ainda o francês, que deixou marcas pro-
fundas nos costumes nordestinos, como as quadrilhas de S. João, em que se ouvem
palavras de origem francesa como as já aportuguesadas anarriê, alavantur; deixou
também o francês uma palavra não encontrada em mais nenhum outro lugar do
país e que é marca registrada da mais alta manifestação popular do Ceará, a palavra
fulero, que vem do francês le fou, o bobo da corte, o engraçado, o palhaço, e que
assume aqui no Ceará também o sentido de sem valor, feio, mal feito, desordeiro.

Tal processo também se deu na passagem do latim para as línguas românicas


(francês, espanhol, português, italiano e romeno), quando estas entraram em conta-
to com as línguas germânicas (inglês, alemão, holandês), tanto de um lado quanto
de outro.

Saiba mais:

O antropólogo Darcy Ribeiro (1995), em seu livro O Povo Brasileiro: a


formação e o sentido do Brasil, diz que durante muito tempo não se soube
se o Brasil seria uma colônia francesa ou portuguesa. Ainda no século XVII
era possível encontrar franceses no país. O livro Iracema, de José de Alencar,
ambientado em 1611, menciona-os, por exemplo, na Serra de Ibiapaba, no
Ceará. O termo “Guaraciaba”, por exemplo, que dá nome a uma das cidades
mais altas da serra, significa “cabelos do sol”. É um termo indígena para falar
dos europeus que tinham os cabelos louros.
Acordo político assinado em 26 de setembro de 1815 pelos impérios Rus-
so (Alexandre I), Austríaco (Francisco I) e Prussiano (Frederico Guilherme III),
logo depois da derrota definitiva de Napoleão. Essa aliança objetivou frear
as ideias liberais francesas e inglesas e fazer manter as monarquias absolu-
tistas na Europa enfrentando a onda revolucionária.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 39


Do latim mater temos o espanhol madre, por dois fenômenos: 1) a sonorização
da consoante alveolar surda / t / em alveolar sonora / d / de maTer para maDre,
por influência das vogais circunvizinhas, todas elas sonoras. 2) uma metástase, que
é quando um fonema muda de lugar; no caso, o “R forte” ou fricativa glotal surda
/ h /, antes em posição final mateR e depois em posição de segunda consoante no
par da consoante tautológica (duas consoantes da mesma sílaba) anterior à vogal
pós-tônica / / madRe, transformando-se num “R fraco” ou tepe (vibrante).

Em português, o latim mater originou mãe, com a queda do “R forte” final e a


queda da consoante intervocálica V/ t /V, e nasalização das vogais finais, por influ-
ência da nasal bilabial oclusiva / m /.

O “R” final cai porque em português o elemento fonêmico de maior importân-


cia, base da sílaba, é a vogal. Não tendo, portanto, uma vogal na qual pudesse se
apoiar, o “r” final tende à queda. O que acontece hoje com os infinitivos dos verbos,
por exemplo: o verbo estar, que no português brasileiro perde o “R” final gerando
confusão na escrita de indivíduos pouco habituados ao exercício da leitura e da es-
crita quanto ao infinitivo dos verbos e a conjugação dos verbos na terceira pessoa
do singular no presente do indicativo (estar/está, vê/ver ou ainda dá/dar), dada,
portanto, por influência fonológica.

Enfim, o latim mater exerceu influência no aparecimento da palavra mother


no inglês, neogermânico, pronunciado [ ]. A tese mais aceita é a de que
a palavra latina entrou no vocabulário inglês logo após a sonorização de /t/ em
/d/. Durante longos séculos, a elite inglesa era toda normanda, de língua neor-
românica (isto é, derivada da língua de Roma, o latim). O termo deve ter entrado
no inglês como uma palavra estrangeira (ou empréstimo lingüístico), sendo logo
assimilado pelo sistema fonêmico do inglês, depois pelo sistema ortográfico
dessa língua, chegando à sua forma atual mother; tal qual a palavra cafetão, que
entra em português como o francês caften, e, adequando-se ao sistema fonêmi-
co do português, e posteriormente a seu sistema ortográfico, chega ao diciona-
rizado “cafetão”; ou a palavra football, citada anteriormente.

40 Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Ora, se por um lado o latim influenciou as línguas neogermânicas, do outro,
o germânico, língua ancestral do inglês, também influenciou as línguas neolatinas.
O germânico werra é um exemplo disso, pois essa palavra gera, indiretamente, em
português a palavra guerra e, diretamente, a palavra inglesa (neogermânica) war.

É esse fenômeno (das mútuas influências que uma língua exerce sobre a outra)
responsável pela variação, dialetação e transformações das línguas, desde a forma-
ção de simples sotaques até a instituição de novas sintaxes, sem esquecer do surgi-
mento de novas palavras originadas não só do contato com outros povos que falam
outras línguas, mas também de expressões internas da própria língua.

Por exemplo, a expressão vossa mercê, que evolui para vosmicê, depois para
vancê (registrado por Jorge Amado em Seara Vermelha), segue para a forma atual
você e que começa a sofrer modificações na fala sendo então pronunciado apenas
“cê” e, na escrita, como “vc”. Outro exemplo disso é a expressão vamos em boa hora
que, pouco a pouco, vai se aglutinando até a forma vamos embora, forma aceita
hoje como oficial, mas que na fala se manifesta já nas concorrentes vambora > rum-
bora > umbora > umbó > bó.

Quando encontramos alguém a pronunciar ingual ao invés de igual ou ingreja


ao invés de igreja, ou enzempru ao invés de exemplo, tanto como forma de reforçar
a vogal isolada quanto por analogia ao profuso emprego do prefixo in, como em
infeliz, insensível, impossível; condição confirmada por Leite de Vasconcelos (1922)
em seus Textos Arcaicos, em que aparecem as formas inliçom e eleger, formas que
depois se transformarão em eleição e eleger – achamos estranho! Mas a nasalização
da vogal inicial / i / é outro exemplo das pressões internas que as línguas sofrem.

Saiba mais:

A nasalização no Português Brasileiro é um fenômeno bem comum e


bastante importante no que se refere à constituição de formas de falar.
Voltaremos a isso!

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 41


Esse fenômeno de nasalização se encontra já na formação do português. Um
exemplo é quando se tinha a palavra latina regina (pronuncia-se Réguina, com o
“érre” vibrante) transformada em regna, com a assimilação da vogal anterior alta [i]
pela oclusiva velar vozeada [G], e, posteriormente, pela queda dessa mesma conso-
ante agora sem apoio vocálico, transformada em reña (pronuncia-se com o “érre”
vibrante), e, posteriormente, no português moderno rainha, por exemplo. Há de se
observar duas transformações paralelas dessa palavra: uma que desemboca na pa-
lavra portuguesa rainha e outra no espanhol reina.

É importante compreender que muitas destas transformações se perderam no


tempo pela falta de registro escrito de suas fases consecutivas. Sendo assim, muitas
das transformações apresentadas aqui configuram-se ainda no nível especulativo.

Interessante ainda mostrar o surgimento de palavras e expressões idiomáticas


que caracterizam dialetos dentro de um mesmo código linguístico. Algumas pala-
vras surgem pela variação da pronúncia de uma palavra que o falante desconhecia.
Essa variação na pronúncia de palavras para ele desconhecidas, às vezes, se dá por
analogia a palavras que ele já conhece.

Como o caso de tremedal, que significa pantanal. Mário Perini (2004), em A


língua do Brasil amanhã e outros mistérios, nos conta caso interessante quanto a
isso. Ele conta que, certa vez, preso num engarrafamento, pôde observar que a pla-
ca que indicava o nome da rua não a grafava como tremedal, mas como tremendal.
Pensou então que tal forma pudesse ter sido deduzida pela analogia com a palavra
tremendo (adjetivo) mais conhecida popularmente; não descartou a possibilidade
de, sabendo o significado de tremedal, aquele que gravou a placa ter associado a
imagem do pântano a algo tremendo de se atravessar. A esse fenômeno, ele dá
nome de Etimologia Popular. Outro caso interessante é o caso da palavra ferrolho,
também citado por Mário Perini. Segundo ele, a palavra original vem do latim veru.
Saiba mais:

Ferrolho: Outra explicação desse fenômeno está na dessonorização


da fricativa lábio-dental[ v ] em [ f ] ferrulhu; o reforço do “r” fraco
(vibrante), que teria se transformado em “r” forte (fricativa glotal) fer-
rulhu. E a oscilação da grafia de “u” a “o”.

42 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


É de conhecimento corriqueiro entre aqueles que se debruçam sobre o latim
medieval, mais conhecido como latim vulgar, que o povo costumava acrescentar
aos substantivos o sufixo diminutivo do latim –ícula, -ículum, donde vêm as palavras
portuguesas cubículo, película, gotícula. De forma que veru facilmente se transfor-
mava em veruculum. Teria havido, então, primeiro, a queda da vogal pós-tônica “u”
veruc’lum; a perda da nasalização do /u/ final veruclu; daí a sonorização da oclusiva
velar surda [ k ] em [ g ] veruglu; que, associado à lateral [ l ] tende à palatalização,
transformando “gl”em “lh” [ ] verulhu.

O entendimento do falante de que aquele instrumento era feito de ferro o


fez chamar tal instrumento de ferrolho. Fenômeno semelhante ao que aconteceu à
palavra latina apis, que, acrescida ao sufixo diminutivo apicula, teria gerado depois
o português abelha. Primeiro terá ocorrido a queda da vogal pós-tônica “u” apic’la;
depois, a sonorização não só da oclusiva velar surda [k] em [ g ], o que daria apigla,
mas também a sonorização da oclusiva bilabial surda [ p ] em [ b ]; abigla; além da
redução da vogal anterior alta [ ] em vogal anterior média fechada [ e ] abegla e a
palatalização da lateral /l/, pela sua proximidade com a ocluciva velar sonora /g/ em
“lh” [ ]; o que daria a forma final que conhecemos hoje: abelha. Toda essa trans-
formação, no entanto, num processo demoradíssimo, com cerca de 1000 anos: da
queda do Império Romano à oficialização da língua portuguesa, em 1290.

Quanto a expressões idiomáticas, podemos citar o exemplo de uma expressão


cuja origem ainda não pôde ser bem explicitada, de modo que figuram algumas
versões sobre ela. É o caso de “Júlia é cagada e cuspida a mãe dela”; expressão que
significa algo próximo a dizer que Júlia é muito parecida com a mãe. Duas teorias
tentam explicar o surgimento dessa expressão. A primeira diz que “cagado e cus-
pido” seria uma corruptela da expressão original “esculpido em Carraro”. Segundo
esta teoria, Carraro seria um lugar na Itália do século XVI referência no mundo eu-
ropeu quando o assunto era esculpir estátuas. Lá estariam as melhores e mais reais
estátuas já vistas até então, daí a expressão “esculpida em Carraro” como sinônimo
de “muito semelhante, igual”. A segunda teoria também aposta na corruptela, mas

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 43


agora de uma outra expressão “encarnado e esculpido”, que seria também uma for-
ma de enfatizar a semelhança entre dois indivíduos (aparentados ou não).

Caso mais interessante ainda, para evitar o enfado dos senhores, é a palavra la-
tina para designar serva, escrava, ancila. Há três pronúncias para essa palavra. A pro-
núncia chamada restaurada [ ] (lê-se “ãnquíla”); e a tradicional, que comporta
duas outras 1) [ ] (lê-se “ãnsíla”), que seria já uma transformação da [ ]
(lê-se “ãntsíla”), evolução natural das línguas românicas; e [ ] (lê-se “ãntchíla”),
pronúncia do Vaticano até hoje.

Jorge de Lima (1997), poeta alagoano, publica em 1947 um livro chamado


Poemas Negros. Neste, há um poema intitulado “Ancila Negra”, que fala sobre uma
negra iorubá que o teria acompanhado até a escola, e que teria embalado seu sono
na rede, lhe contado histórias de bicho, de outros reinos.

José Lins do Rego, em seu livro Menino de Engenho, faz menção a uma negra
ama de leite sua que também teria lhe contado dessas histórias. Aqui, no Nordeste
e em outras regiões do país, há o costume de chamarmos nossas professoras do
primário de “tia” (lê-se “tchia”), tanto pela relação de proximidade que se cria num
ambiente escolar quanto pela emanação afetiva que existe entre estudante e pro-
fessora do primário. Ora, não seria improvável que essa conotação encontrada hoje
não tenha começado agora; que essa mesma ama que acompanhava os filhos de
famílias abastadas do tempo do Brasil Império e do Brasil Colônia, ou mesmo na
própria Europa Antiga, possa ter sido chamada pelos povos latinos de “ancila” no
sentido de “tia”. Como argumentação a favor, teríamos a pronúncia tradicional “2”
[ ], que teria gerado a palavra “tia” em português; e a pronúncia restaurada [
], que teria gerado a palavra “uncle”: “tio” em inglês.

Será coincidência?

Fica assim demonstrado, “por a mais b”, que as línguas mudam com o tempo.
Mas por que o assunto ainda é um tabu? Marcos Bagno, em entrevista à revista Ca-
ros Amigos, nos dá uma pista a esse respeito. Segundo ele:

44 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Nas culturas ocidentais que passaram pelo processo de normatização o
que aconteceu foi (...) [que] para criar uma identidade nacional era preciso
criar um modelo de língua. Então eram criadas leis, as normas sociais, as
normas políticas e também as normas linguísticas. Até para fins burocráti-
cos, para poder emitir documentos, produzir as leis, era preciso ter um mo-
delo de língua, então a língua foi retirada da heterogeneidade natural dela
e transformada num modelo mais homogêneo, houve essa normatização
da língua. No caso específico do português brasileiro, o grande problema
é que essa norma é muito rígida, muito obsoleta, muito ultrapassada. Em
outros países, que têm sociedades mais democráticas, por exemplo, nos
Estados Unidos, a língua inglesa em geral, à medida que vão surgindo no-
vas formas de falar e escrever, essa norma padrão vai incorporando sem
muito trauma, os dicionários autorizam e por aí vai. Aqui no Brasil isso não
acontece porque é fruto do nosso processo colonial, a tentativa das nossas
elites desde sempre de se afastar do vulgo, do populacho, da negraiada,
da indiada e criar uma casta branca, superior, europeizada (BAGNO, 2008,
p. 33-34).

É a mania feia de nossa elite (econômica e intelectual) de querer parecer eu-


ropeu. Para entender melhor isso, só compreendendo como se dá a relação entre
língua e colonização.

GUIA DE ESTUDO

Como você pode observar lendo esta seção, as línguas mudam com o tem-
po, tanto por pressões internas quanto externas (mudanças de realidade social,
surgimento de novas realidades e circunstâncias comunitárias etc.). Ao mudar, no
entanto, é grande a resistência ao reconhecimento oficial daquela nova possibili-
dade linguística, como diz a parte final da seção, porque a língua é um instrumento
também de segregação, de exclusão social. É por isso que as variações linguísticas
são, primeiro, e durante algum tempo, consideradas “erros” da língua. Ou seja, só
depois de algum tempo − que não se pode estimar quanto, mas que pode che-
gar, como vimos no caso do português, durante muito tempo considerado “erro”
de latim, há mil anos −só depois de algum tempo é que as variações linguísticas
podem ser consideradas como tal, promovendo-se a “dialetos” e, posteriormente,
talvez, alçando status de “língua”. As razões pelas quais um dialeto transforma-se
em língua são históricas, e têm haver com questões políticas ligadas a revoluções,
movimentos separatistas e\ou luta por independência ou emancipação.
Por que é correto afirmar que as línguas mudam com o tempo? Use elemen-
tos dessa seção para construir sua resposta.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 45


Língua Portuguesa e Colonização
Não se pode perder de vista que a língua portuguesa no Brasil é uma língua
que tem um passado ligado à colonização e, portanto, traz em seu âmago o peso
histórico de ser a língua do opressor.

Como a evolução (e, portanto, o processo de dialetação) das línguas é irrefre-


ável; como a dialetação nunca é um processo unilateral, no sentido de que, ao mes-
mo tempo, numa mesma região, podem-se desenvolver vários dialetos e mais, que
a ascensão do status de um dialeto à língua é um fenômeno antes histórico, político,
econômico até, mais ligado à dominação que alguma característica propriamente
linguística, é preciso deixar claro que os vernáculos oficializados nem sempre coin-
cidiam com a língua da população. Em Angola, o português é a língua oficial do
estado e é falado por uma parcela muito pequena da Luanda, a capital. Diante de
uma organização social hierarquizante, é natural que o dialeto que adquira status
de língua seja o dialeto das classes política, social e economicamente dominantes.

Durante o Império Romano, o que era considerado “Língua” era, na verdade, a


variante urbana (urbanitas) do latim, em detrimento de suas “variantes” camponesas
(rusticitas) ou dos falares a ela estranhos (peregrinitas ou mesmo os falares ditos
“bárbaros). Isso porque o sermo latinus estava associado ao centro civilizado, de-
senvolvido, urbanizado, onde vivia a classe dominante do Império. O caso da velha
Grécia citado por Silvio Elia, em A língua portuguesa no mundo, é também ilustrativo
disso. Segundo ele, a Grécia antiga era um mosaico dialetal. Sua divisão em vários
Estados, refletia sua divisão em dialetos. Cada dialeto encontrava sua exemplaridade
em manifestações distintas.

O dialeto eólico (Beócia, Tessália, Ilha de Lesbos) era mais adequado ao


lirismo; o dórico (um terço do Peloponeso, ilhas de Creta e Rodes) foi o
preferido para a poesia coral; [...] o ático (Ática, ilha de Eubéia) dominava
na comédia e na tragédia; [bem como] na grande prosa clássica, a dos filó-
sofos e oradores (ELIA, 2001, p. 10).

A partir de Alexandre, o Grande, da Macedônia (séc. IV a. C.), educado por Aris-


tóteles, cujo dialeto grego era o ático, foi esse dialeto se afirmando como a língua
geral do imenso Império que Alexandre fundara com suas conquistas e que hoje
conhecemos como o grego koiné, base do grego medieval e do grego moderno.

46 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas, também dá exemplo elu-
cidativo. É o caso da Inglaterra, país da periferia noroeste da Europa latina. Segundo
o que ele conta:

Antes da conquista normanda, a língua da corte, literária e administrativa,


era o anglo-saxão. Nos 150 anos seguintes, praticamente todos os do-
cumentos régios foram redigidos em latim. Entre 1200 e 1350, esse latim
oficial foi substituído pelo franco-normando. Entrementes, uma lenta fusão
entre essa língua, de uma classe dirigente estrangeira, e o anglo-saxão,
da população de súditos, gerou o médio-inglês [early english]. Essa fusão
permitiu que a nova língua se tornasse, após 1362, a língua das cortes
(ANDERSON, 2008, p. 76).

Anderson também chama a constituição do Estado Nacional de “revolução


filológico-lexicográfica” (ANDERSON, 2008, p. 127). Para compreender isso melhor
talvez devêssemos recorrer ao exemplo do Francês falado antes e depois da Revo-
lução Francesa, quando todos os valores do Ancièn Regime foram negados ou sub-
vertidos, dentre eles o modelo de língua bela, que passou a ser a língua da classe
média instruída parisiense, ao invés da língua falada pela classe nobre.

A diversidade linguística, não obstante o prestígio da variante oficial, mante-


ve-se e se aprofundou, naturalmente; de modo a gerar, dentro dos limites de uma
mesma fronteira, “dialetos” de uma mesma língua incompreensíveis entre si – como
no caso da Alemanha e da Holanda. A Holanda faz fronteira ao leste com a Alema-
nha. Segundo Silvio Elia (2001), os holandeses que vivem mais próximos à fronteira
comungam muitos traços, costumes e, inclusive, o dialeto pelo qual se comunicam
com os alemães que vivem do outro lado da fronteira. A língua que falam de cada
lado da fronteira, no entanto, não é compreendida por quem vive no extremo opos-
to de cada país respectivo. Entretanto, diz o linguista brasileiro, se perguntarmos a
esse holandês da região fronteiriça que língua ele fala, ele responderá que fala o
holandês, enquanto que se perguntarmos o mesmo ao alemão do outro lado, ele
dirá que fala alemão, embora a língua pela qual se comunique com seu “vizinho”
do outro lado da fronteira, seja uma língua incompreensível por seus respectivos
conterrâneos no outro extremo do país e perfeitamente compreensível entre o ho-
landês e o alemão da fronteira.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 47


No caso de países africanos colonizados por Portugal, como Angola, por exem-
plo, a questão da língua é singular, posto que a taxa de analfabetismo em língua
portuguesa chega aproximadamente os 90%, não obstante a língua oficial do país
ser exatamente essa.

Em Sagrada Esperança (1974), o poeta e líder do Movimento Popular de Li-


bertação de Angola – MPLA, Agostinho Neto (que um ano depois proclamaria a
Independência da Angola) se refere:

A ti Mussunda amigo
A ti devo a vida
E escrevo versos que não entendes
Compreendes a minha angústia? (NETO, 1985, p. 54. Grifo meu.)

Era um paradoxo, de todas as ordens, sob todas as perspectivas, um parado-


xo: como falar de sentimentos, pensamento, enfim, da alma genuinamente africana
numa língua estrangeira? Mais ainda: como escrever contra a colonização na língua
do colonizador? A questão linguística não é tão simples quanto parece, quando o
que está em jogo é uma relação de poder colonizado-colonizador.

No que tange a literatura angolana, o debate foi extremamente acirrado. Em


Barroco Tropical (2009), romance do angolano José Eduardo Agualusa, a língua
portuguesa é entendida como “língua da unidade nacional” e o discurso oficial ali
presente afirma que “um verdadeiro angolano tem de saber falar bem a língua por-
tuguesa” (AGUALUSA, 2009, p. 280). De fato, foi um problema e tanto, porque, se
por um lado a língua portuguesa em Angola representava o próprio europeu co-
lonizador, por outro, como reunir forças para lutar contra a colonização em toda a
Angola se é um país mosaico linguístico? A língua portuguesa foi o veículo através
do qual as forças antilusitanas puderam se articular em nível nacional. Daí dizer que
a língua portuguesa em Angola é a “língua da unidade nacional”.

A questão linguística, aliás, a “angústia linguística” começava a ser apaziguada.


“Não temos escolha”, dizia Leopold Sedar Senghor, outro poeta líder do movimen-
to pela libertação do Senegal, ex-colônia francesa, referindo-se à mesma condição
vivida pelos escritores, poetas e intelectuais responsáveis pelo movimento de liber-

48 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


tação do Senegal (entretanto com relação à língua francesa). “É nossa situação de
colonizados que nos impôs a língua do colonizador, mais precisamente a política
da assimilação... porque a Negritude é o fruto da Revolução, por ação e reação. (...)
Nós escolhemos as armas do colonizador para voltá-las contra ele” (BERND apud
DAMASCENO, 1988, p. 33-34).

A despeito dessa tentativa do mentor do movimento de “Renascença Negra”


que foi o movimento de Negritude de apaziguar os corações diante da “angústia
linguística”, o conflito continuava quente. Esse é, de alguma forma, o discurso ofi-
cial assumido por poetas (no caso, Leopold Sedar Senghor no Senegal e Agostinho
Neto, na Angola) que, em pouco, assumiriam a presidência destas jovens repúblicas
cuja independência eles próprios proclamariam; um discurso que entendia, no caso
de Angola, a língua portuguesa como “um troféu de guerra. Roubamos a língua ao
colonizador e fizemo-la nossa” (AGUALUSA, 2009, p. 280). No Brasil, o que se deu
foi o seguinte:

O colonizador europeu, que subjugava todos os outros povos pela força, se


reconhecia e se fazia reconhecer pelo colonizado como único povo com cultura, a
“língua-verdade”, no caso, era a língua portuguesa, a “comunidade sagrada” era a
comunidade cristã.

É emblemático esse exemplo. Segundo Hansen (2006), toda a poesia e o teatro


do Padre Anchieta, escritos em Tupi, foram instrumentos cruciais não apenas para a
conversão do chamado “gentio” ao cristianismo, mas para a produção de sua alma.
Em seu artigo “Anchieta: poesia em tupi e produção da alma”, o autor diz que essa
poesia em tupi “se apropria da oralidade selvagem descontextualizando suas signi-
ficações” (HANSEN, 2006, p. 18).

No Auto de S. Lourenço (1592), por exemplo, os demônios têm os mesmos


nomes dos chefes indígenas que guerrearam contra os portugueses na chamada
Confederação dos Tamoios, Aimbirê e Guaixará. Além dessa identificação direta,
outro elemento simbólico associa a cultura indígena ao demônio: no auto, so-
mente Aimbirê e Guaixará falam em tupi. Ora, se a construção das representações
sociais de determinado grupo étnico se baseia no “tornar o estranho familiar”,
quando se trata de substituir um conjunto de representações por outro − na rela-
ção colonizador-colonizado − o processo se dá pelo inverso, ou seja, a imposição
se baseia no “tornar estranho o familiar”. É isso o que se quer dizer quando Hansen
diz que a poesia em tupi “descontextualiza as significações” da cultura indígena.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 49


Antes de impor uma cultura estranha aos indígenas, era preciso destituir de
significado a sua própria, a fim de que o colonizado com ela não mais se identifi-
casse. Daí os chefes tribais serem representados como demônios, num jogo retórico
direto, sem decalques. Dando a esses demônios os nomes dos chefes que guerrea-
vam contra os portugueses, a associação era direta.

O reverso disso também era prática que completava o ciclo. Isto é, se por um
lado criava-se no imaginário a ideia de que os inimigos dos portugueses eram de-
mônios, por outro, seus aliados eram considerados honrados membros da socieda-
de portuguesa. Araribóia foi chefe indígena que, por ter auxiliado os portugueses
na mesma Confederação dos Tamoios, recebeu com honrarias o batismo e o nome
cristão de Martim Afonso.

O mesmo se deu com Poti, da nação dos Pitiguaras, tribo do litoral cearense.
Poti auxiliou os portugueses na expulsão dos franceses do litoral do Ceará e da Serra
da Ibiapaba, ao norte do estado. Ao término da guerra, também sob honrarias, o
guerreiro fora “agraciado” com o nome cristão de Antônio Felipe Camarão. Salva-
guardadas as devidas proporções, era como se ele recebesse o título de “Cidadão
Romano”; no caso cidadão “lusitano”. Símbolo de honraria e de status, os indígenas
que recebiam nomes cristãos eram exibidos como modelos de como devia ser e se
comportar um indígena. O modelo era tão significativo que inspirou José de Alencar
na construção de O Guarani e Iracema, ícones máximos do projeto original/oficial
de identidade nacional.

Além dessa ressignificação, digamos, personificada, uma ainda mais poderosa


estava em ação, pois lidava com a ressignificação dos elementos profundos da es-
trutura social das representações tribais. Segundo João Adolfo Hansen, o jesuíta “se
apropria estrategicamente de termos tupis para reclassificá-los por meio de noções
cristãs” (HANSEN, 2006, p. 19). Assim, diz o autor:

O termo Tupána, Tupã, que em tupi era o nome genérico de ruídos da


natureza, como trovões, e que passa a ser usado significando nada me-
nos que a substância metafísica incriada de uma das Pessoas da Trindade,
Deus-Pai. Caso de anhagá, termo que nomeava espíritos do mato, apro-
priado como nome unificador da ausência de Bem, o diabo cristão. Ou de
ánga, princípio vital, reclassificado com o nome para o princípio cristão de
unidade e coerência espirituais da pessoa, a alma (HANSEN, 2006, p. 19).

50 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Dessa forma, o indígena sofria uma completa reestruturação de sua utensila-
gem mental que, aos poucos, ia tornando-o tão europeu quanto qualquer outro
europeu − ao menos mentalmente.

Saiba mais:

O termo utensilagem mental é utilizado por João da Rocha Pinto


(2002, p. 13), em seu artigo “O olhar europeu: a invenção do índio bra-
sileiro” para referir-se aos modelos mentais de representação social, de
cultura.

João Adolfo Hansen diz que a produção da alma do “gentio” era eficaz quan-
do o próprio “eu” do enunciado se confundia com o “eu” da enunciação. O “eu” do
poema recitado, do texto memorizado para a representação do auto, era o “eu” de
uma pessoa católica, “dotada de interioridade anímica, memória do Bem e culpa do
mal” (HANSEN, 2006, p. 20). Obrigados a recitar o poema ou a ditar o texto, esse “eu
católico” ia sendo assimilado pelo eu que recitava/ditava. Hansen diz que, escrito em
tupi, o poema impunha através da metrificação em redondilha menor (Versos de
cinco sílabas). “uma medida, uma acentuação, um sistema de pausas, um ritmo e,
principalmente, a forma de uma respiração católica” (Hansen, 2006, p. 20) que sub-
mete a própria dicção do indígena, transformando-a, ressignificando-a, gerando no
“gentio” uma “memória artificial” através da qual passa a enxergar os de sua etnia e
a si mesmo.

Dessa forma, diz o estudioso, os valores do colonizador se impunham de ma-


neira não simplesmente ideológica, como um conjunto de conceitos abstratos que
o colonizado assume, mas “produz simultaneamente o corpo, a percepção, a respi-
ração, a alma e os valores católicos” (Hansen, 2006, p. 21), ou seja, “catequiza o tupi
materialmente na sua própria língua” (Hansen, 2006, p. 21), porque impõe sobre o
indígena um comportamento diretamente vinculado ao sermo cristianus, construin-
do sobre si toda uma outra identidade cultural e desvinculando-o de sua própria.

Darcy Ribeiro (1995, p. 117-118), em seu livro O Povo Brasileiro, diz que:

O ser normal [dessa comunidade que se formava no Brasil] era aquela ano-
malia de uma comunidade mantida em cativeiro, que nem existia para si,
nem se regia por uma lei interna do desenvolvimento de suas potencialida-
des, uma vez que só vivia para os outros e era dirigida por vontades e mo-
tivações externas, que o queriam degradar moralmente e desgastar fisica-

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 51


mente para usar seus membros homens como bestas de carga e as mulheres
como fêmeas animais.

(...)

[Na empresa escravista], qualquer povo é desapropriado de si, deixando


de ser ele próprio, primeiro para ser ninguém (...); depois, para ser o outro.

Em 1979, o escritor cearense Carlos Emílio Corrêa Lima, publicou um livro inti-
tulado A Cachoeira das Eras, onde narra a história da Coluna de Clara Sarabanda,
que percorre a mata atlântica da América Latina em busca de um templo perdido
que é o próprio passado. “Os mortos serão nossos guias” diz ele logo na invocação
às musas que, segundo o livro, serão os mortos “gritando do antes dos aniquila-
mentos gerais, porque ninguém os escuta”. A certa altura, o narrador-personagem
reclama:

O que me aniquila é não saber o nome de cada uma dessas árvores. O que
me amofina é não saber o verdadeiro nome desses bichos, desses pássa-
ros, desses répteis, desses peixes. Sinto-me fluindo das dobras do vazio.
Não sei o nome de nenhuma estrela e não digo em ascensão os nomes
dos planetas numa velocidade mágica da fala. (...) Ele já nem falava. Perdera
praticamente a memória da linguagem de sua nação, linguagem que fora
sendo elaborada durante séculos com a ajuda do murmurejar dos rios, do
estalar dos galhos, do farfalhar das folhagens, com o estrépido [sic] dos
peixes pela água, com o ruflar das asas e o canto dos pássaros e os ecos
animais do fundo das noites mais antigas e dos cipós e do gosto da polpa
dos frutos sumarentos ou azedos e da sensação dos corpos nas viagens
pela mata. Tudo estava esquecido no corpo daquele homem (LIMA, 1979,
p. 120, 171).

Pois é essa linguagem que, mais de 100 anos antes, Alencar tentava marcar
como traço principal de uma identidade nacional, ao misturar à prosódia portugue-
sa à melodia nativa.

A burguesia de 1789 instalou sobre o dito Velho Mundo uma nova ordem cal-
cada na propaganda dos ideais iluministas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Assim, conseguiu congregar, sob a mesma égide, intelectuais, liberais, operários e

52 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


ex-camponeses deslocados de seus lugares de origem pelo êxodo rural acentuado
com o crescimento das cidades. Num momento em que o processo de Moderniza-
ção (técnica e ideológica) de toda a Europa já ia alto, com as Revoluções Industriais e
com a experiência bem sucedida da independência da colônia britânica na América
(os EUA, em 1776). A Revolução Burguesa alterava toda uma ordem aristocrática em
voga desde o alvorecer da sociedade feudal, de economia basicamente agrária.

A insurreição contra a aristocracia e o Rei não fora exclusividade do norte


americano nem do europeu; no mesmo ano da queda da Bastilha, o insucesso da
Inconfidência Mineira no Brasil acirrou a pressão da metrópole portuguesa sobre o
Brasil. A reação não foi menos intensa: logo o sentimento nativista que já ocupava as
mentes dos intelectuais brasileiros ganhou novo fôlego e se expandiu para os meios
populares em forma de anedotas e adjetivos que se agregavam a um e outro numa
espécie de guerra ideológica que não raro chegava às vias de fato. No meio inte-
lectual, encontrou no índio o símbolo dessa brasilidade que deveria ser garantida.

O pano de fundo do descobrimento da Bahia é pretexto, em Caramuru, para


que Santa Rita Durão enobrecesse a fauna, a vegetação, os ritos e as tradições in-
dígenas, a história do Brasil. Outros autores, antes e depois dele, fazem-no com
menos referência à metrópole camoniana, como Basílio da Gama, Gonçalves Dias,
Gonçalves de Magalhães entre outros.

Ao longo do séc. XIX, a Identidade Nacional passara a ser tarefa de urgência


para a construção de um Estado Nacional democrático e sólido, ainda mais quando,
como diz Canclini (2008), em Culturas Híbridas, a ciência positivista entendia ser
relativo ao biotipo o progresso ou atraso de uma sociedade humana (leia-se “raça”).
Assim, Alencar, como homem de seu tempo, foi quem mais se empenhou na busca
desse homem tipicamente brasileiro, que achava estar entre os tipos regionais que
caracterizava: o sulista, em O Gaúcho; o nordestino, em O Sertanejo; ou mesmo no
tipo característico do liberal do século XIX que nos apresenta em seus romances ur-
banos (Viuvinha, Cinco Minutos ou Senhora), personagens já cônscios da redução
das relações humanas as relações de troca impostas pela economia do dinheiro. A.
Bosi, em seu livro História Concisa da Literatura Brasileira, menciona que a inten-
ção de Alencar era “cobrir com a sua obra narrativa passado e presente, cidade e
campo, litoral e sertão, e compor uma espécie de suma romancesca do Brasil”.

Não tendo ficado acomodado em apenas “pintar” o(s) tipo(s) brasileiro(s),


Alencar queria fundar uma Nova Língua, uma língua pautada não nos moldes lusita-
nistas impostos pela Reforma Pombalina de meados do século XVIII, mas na língua

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 53


falada pelas pessoas nas ruas e nos campos; animado pelo paradigma romântico do
“vox populi”, do “gênio coletivo”, entendia ser, a língua, manifestação mais genuína
dessa identidade que precisava resgatar e que fora, por anos de colonização, no
dizer de Roger Bastide, aculturada.

No prefácio de “Sonhos d’ouro”, publicado originalmente em 1872, e dando-


-nos a conhecer pelo livro do Prof. Eduardo Diatahy B. de Menezes, O Pensamen-
to Brasileiro dos Clássicos Cearenses, Alencar chega mesmo a explanar belíssima
defesa da língua nacional, utilizando-se da mesma arma usada para atacar (o que
ele chamou de) o “gênio brasileiro”, isto é, o determinismo biológico. Diz Alencar, “o
povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua
com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damas-
co e a nêspera?”.

GUIA DE ESTUDO

Mário Marroquim diz, em A língua do Nordeste (1934), que uma das


características da fala do nordestino é a tendência em trocar as fricativas
frontais – gente (j), mesmo (z), vaca (v) − pela fricativa glotal (rr), tornando
possível a enunciação espontânea de uma frase coloquial como *lerrei uma
carreira duma raca réa lá em riba da ribanceira. Se essa é uma tendência
natural da fala do nordestino, por que a língua do nordeste não pode ser
considerada língua? Comente.

O Português Brasileiro
Durante muito tempo o francês, o italiano, o romeno (oriental e ocidental), o
espanhol e o português — todas as línguas neoromânicas (ou neolatinas) — foram
considerados “erros de latim”. Só depois do período da formação dos Estados Na-
cionais, em torno de cada neolatim desse, é que o que era considerado antes como
“dialeto do latim”, passou a ser considerado uma língua diferente do latim. Estamos
vivendo um período semelhante agora. A língua portuguesa se espalhou no mundo
pelos cinco continentes. Portugal, arquipélago de Açores, arquipélago de Madeira
(Europa), Brasil (América), Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Angola
e Moçambique (África), Goa, na Índia, Macau, na China, Japão (Ásia), Timor Leste
(Oceania).

54 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Mapa da Lusofonia

Tendo a língua portuguesa entrado em tantas regiões, não será na-


tural que ela entre em contato com as muitas línguas locais, e, assim,
encontre novas formas de relações sociais e, portanto, acabe por receber
substratos sociolinguísticos ao longo de sua história? Como manter (e
para quê?) a mesma estrutura da língua sendo tão variadas as condições
sociais, históricas, culturais e linguísticas nas diversas partes do mundo
em que deu entrada?

Numa entrevista, à revista Caros Amigos, o sociolinguista brasileiro Marcos


Bagno, autor de Preconceito Linguístico, faz uma pergunta muito importante para
compreendermos o estado natural das línguas.

Qual é o estado natural de uma língua? É que as pessoas de cada lugar


falem de maneira diferente, que as pessoas das diferentes camadas sociais
falem de maneira diferente, que as pessoas das diferentes idades falem de
maneira diferente, então a variação linguística, a heterogeneidade linguís-
tica, é o estado natural da língua (BAGNO, 2008, p. 33-34).

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 55


Sendo natural que as línguas mudem, é natural que a língua portuguesa se
dialete, assim como aconteceu com o latim, a tal ponto que, de seu tronco comum,
se originassem outras línguas. Não fosse esse o natural das línguas, ainda estaría-
mos falando latim, ou, como disse em alguma parte deste material, alguma língua
adâmica do início dos tempos.

Em 1996, Mary A. Kato organizou uma coletânea de artigos intitulada Portu-


guês Brasileiro: uma viagem diacrônica. Nesta obra, afirma a autora:

Todos os trabalhos incluídos nesta coletânea devem ser vistos como tra-
balhos em andamento, partes de projetos maiores de seus autores. Mas
os resultados fornecem uma descrição bastante instigante do que vem
mudando no português do Brasil, e o conjunto desses resultados é uma
evidência de que o que ocorre não é um processo de ‘deterioração da gra-
mática’, como pensam os escolarizados pela ótica da gramática prescritiva,
mas uma reorganização interna coerente, uma mudança radical na língua.
(ROBERTS; KATO, 1996, p. 19)

Afirma ainda que:

A consciência dessas mudanças sistemáticas, que desembocam em uma


língua distante de suas irmãs românicas, até mesmo do português de Por-
tugal, é necessária para entender por que os estudantes escrevem como
escrevem e por que a língua dos textos escolares, para as camadas de pais
iletrados, pode parecer tão estranha quanto a de um texto do século XVIII.
(ROBERTS; KATO, 1996, p. 20)

São muitas as diferenças entre o português de Portugal, mais conhecido como


português europeu (PE), e o português brasileiro (PB). Como vimos na seção ante-
rior, à questão é antiga, anterior a José de Alencar.

Aqui não faremos um estudo aprofundado dessas diferenças, mas vamos


apontar algumas no sentido de demonstrar que a língua que nós falamos não é
propriamente a língua portuguesa, mas o brasileiro, ou pelo menos uma modalida-
de brasileira da língua portuguesa.

56 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Segundo o que dizem filólogos experientes como Ismael Coutinho (1969) e
Clóvis Monteiro (1952), existem níveis linguísticos de variação que podem demons-
trar o quanto uma língua se diferenciou de sua língua-matriz (ou sua língua-mãe).
São eles:

1) O nível Fonológico, entendido como o primeiro nível da variação lin-


guística, responsável, por exemplo, pelo surgimento do que chamamos
de sotaques, formas diferentes de manifestação prosódica; que faz com
que alguns indivíduos do sudeste do Brasil pronunciem gratuito com a
vogal anterior alta [ ] como um hiato (“gratuíto”) e não segunda vogal do
ditongo [uy] (“gratuito”), como rege a gramática normativa e como falam
indivíduos de outras regiões do país.

Há mais musicalidade na entonação carioca; a alagoana, entretanto, deixa


maior impressão de fala cantada, porque as sílabas são pronunciadas mais
vagarosamente, e têm o mesmo valor; (...) a entonação do falar nordestino,
no interior, principalmente, segue uma orientação descendente. As vogais
são marcadas e abertas. Daí a fama [dos nordestinos] falarem cantando
(MARROQUIM, 1996, p. 24-25).

A mudança no âmbito fonológico pode, acrescido a mudanças nos âmbitos


morfológico e sintático, ocasionar o surgimento de dialetos fonologicamente mar-
cados não só pela mudança na prosódia, mas também no ritmo da fala; e, quem
sabe, até de línguas diferentes da língua matriz. Mario Marroquim diz, por exemplo,
que “a pronúncia do nordestino é a que caracteriza em geral o falar brasileiro: é
demorada, igual, digamos mesmo arrastada, em contraste com a prosódia lusitana,
áspera e enérgica” (MARROQUIM, 1996, p. 21).

2) O nível Morfológico, um tanto mais resistente que a fonologia para a


mudança, está vinculada, de alguma forma, à representação gráfica da
fala. “A escrita”, segundo Manuel Veiga, “desde sempre, foi um sistema
de sinais arbitrários e convencionais” (In: Osório, 1980, p. 09); no caso do
Português, ainda segundo Manuel Veiga, essa “arbitrariedade” não esta-
ria vinculada à vontade dos seus usuários, mas à etimologia.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 57


Esta escrita afasta-se consideravelmente da realização actual e efectiva e
sincónica da língua para ir buscar a sua raiz na realização histórica por
onde a língua passou, nos aspectos diacrónicos que inicialmente faziam
parte da língua, mas que hoje ficaram reduzidos a um passado que apenas
a história é capaz de reconstituir em reminiscência. (OSÓRIO, 1980, p. 08)

Dessa forma, por manter vínculos culturais com o passado (e por conta de
todos conflitos socio-culturais e psicológicos que isso implica), a mudança morfoló-
gica da língua tende a seguir mais lentamente sua jornada. Embora haja linguistas
– como Luiz Antônio Marcuschi (2004) – que discordam dessa dualidade tradicional
com que se vê a língua escrita e falada.

Em parte, porque a escrita não consegue reproduzir muitos dos fenômenos


da oralidade, tais como a prosódia, a gestualidade, os movimentos do cor-
po e dos olhos, entre outros. Em contrapartida, a escrita apresenta elemen-
tos significativos próprios, ausentes na fala, tais como o tamanho e tipo de
letras, cores e formatos, elementos pictóricos, que operam como gestos,
mímica e prosódia graficamente representados. (MARCUSCHI, 2004, p. 17)

3) O nível Sintático é o nível mais profundo da mudança linguística, pois


é quando as influências de outras línguas (tanto de empréstimos quanto
de estruturas sintáticas) ou mesmo pressões internas da própria língua
(pelo que Clóvis Monteiro (1952, p. 19) chamou de “inclinação do espírito
para simplificar o mecanismo gramatical que, com a declinação, tanto se
complica”) chegam ao que Chomsky chamou de Estrutura Profunda da
língua que é o seu nível mais íntimo, mais genuíno, mais característico.
Quando a estrutura de uma língua começa a diferenciar-se da gramática
de sua língua-mãe é um indicativo de que ela fatalmente (e felizmente)
conquista independência, pois é sinal de que está se adequando à forma
de seus usuários pensarem o mundo. Em outras palavras, é sinal de que a
língua vai desatando seus laços da sua língua matriz e adquirindo feições
cada vez mais próprias.

Vamos, assim, a exemplos de cada um desses níveis de variação linguísti-


ca. Lembramos que as diferenças aqui apresentadas não têm caráter de-
finitivo e funcionam apenas como forma de ilustrar a mudança linguística
e seus níveis.

58 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Nível Fonológico
No nível fonológico, tomemos a divisão teórica da estrutura silábica da língua
portuguesa apontada por Thaís Cristófaro (1999). Segundo ela, a sílaba em portu-
guês pode comportar a seguinte estrutura máxima:

consoante1+consoante2+vogal+consoante3+consoante4

Exemplificando essa estrutura temos a palavra transformar e tem como


elemento central a vogal. No entanto, o preenchimento de todos os espaços po-
tenciais pré-vocálicos e pós-vocálicos é sobremaneira raro, sendo mais comum o
preenchimento de um espaço consonantal — o pré-vocálico (ba-na-na, ca-ne-ta,
ca-sa, pa-ra-le-le-pí-pe-do etc.), e não menos comum o de dois espaços consonan-
tais (can-ção, sam-ba, in-fe-liz-men-te etc.). O preenchimento do espaço vocálico
é obrigatório, sendo raríssimo encontrar alguma sílaba em português sem a vogal.
Um caso citado por Cristófaro é o caso de psiu!, sinal de silêncio.

Aqui, dá-se um fenômeno de fundamental importância para o português do


Brasil, posto que a obrigatoriedade da vogal na sílaba, ou seja, a vogal como ele-
mento central da sílaba, é uma característica unicamente do português brasileiro,
sendo isso um dos principais fatores de diferença fonética entre o Português Euro-
peu (PE) e o Português Brasileiro (PB).

Segundo Rosa Virgínia Mattos e Silva (1993), em seu artigo “Português Bra-
sileiro: raízes e trajetórias”, “articulamos claramente no Brasil as vogais não-acen-
tuadas, mas enfraquecemos as consoantes finais, o inverso ocorrendo no europeu”
(p. 2). Em Portugal, as vogais pré-tônicas continuam perdendo força e, consequen-
temente, caindo. É o caso de:

cap’linha
s’tembro
p’dir
ec’nomica

Aqui, no Brasil, acontece com o português o que aconteceu com o latim clás-
sico, “o acento cai com grande força sobre as sílabas que fere, dilatando as vogais e

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 59


amiúde ditongando-as” (AUERBACH, 1972. p. 79). É o caso, por exemplo, da diton-
gação de monossílabos tônicos como:

nós > nóis


faz > faiz
mas > mais
luz > lúiz

Outro fenômeno fonológico é o inverso da ditongação, ou seja, a simplificação


de ditongos, como em:

peixe > pêxe


baixo > baxo
ouro > ôro

Este último, no entanto, já tendo ocorrido, conforme já dissemos, com a forma


verbal poude, assim usada em 1920 e hoje grafada como pôde.

Quer dizer que pode ser que daqui a alguns anos estejamos escrevendo “ôro”,
ao invés de “ouro”, “pêxe”, ao invés de “peixe”, “baxo”, ao invés de “baixo”? Sim.
É possível.

Essa mudança fonológica é responsável pelo reposicionamento dos pronomes


no português brasileiro. No PE, o pronome é átono, sendo assim, ele não tem força
para iniciar um período. No PB, o pronome é tônico, garantindo a possibilidade des-
sa nova posição na oração. O poema “Pronominais”, do poeta modernista Oswald
de Andrade, retrata bem essa situação. Diz ele:

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

60 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Há, no entanto, uma condição interessante no PB quanto à ditongação da
vogal tônica como nas palavras citadas (nós, faz, mas e luz). É considerada estig-
matizada a forma “nóis”, isto é, pronunciá-lo pode ser tomado pelos outros falantes
como sinal de ignorância, “burrice”, “não sabe falar!”, o que provoca o deboche
daquele que assim fala. Em contrapartida, o mesmo fenômeno linguístico pode ser
tido como símbolo de status social. Na boca de um carioca, por exemplo, quando
ele fala “naiscer”, ao invés do gramaticalmente correto e dicionarizado “nascer”. O
que isso quer dizer? Simples: que o problema não está exatamente na língua falada,
mas em quem fala essa língua.

Configura-se aqui o que Marcos Bagno (2001) chamou, em sua obra homôni-
ma, de Preconceito Linguístico.

Mário Marroquim (1996) vai mais profundo na distinção do português euro-


peu e no português brasileiro, dizendo que existe mais do que uma modalidade
brasileira do português: uma língua do nordeste. Segundo o autor, o traço mais
marcante dessa “língua” do nordeste é a transformação em fricativa glotal [ h ] da
fricativa labiodental vozeada [ v ], da fricativa alveolar vozeada [ z ] e da fricativa pa-
latal vozeada [ ]. Assim, palavras como vaca [ ], mesmo [‘mezmu ] e gente [ ‘ei
] acabam por ser pronunciadas como “rraca [‘haka ], “mermu” [‘mehmu ] e “rrente”
[ hen ]. Por isso, é comum encontrar um nordestino que tenha sofrido pouca influ-
ência formatadora da escola — o que força a língua espontânea a ceder lugar para
um padrão de língua — falando “lerrei uma carrera duma raca réa em riba da riban-
cêra”. Rir disso é desconhecer o que é a feição real da língua portuguesa no Brasil.

Nível Morfológico
A Nova Reforma Ortográfica aprovada em 2008 é um bom exemplo de mu-
dança nesse nível. Ela ocorre no sentido de tentar unificar as escritas dos países lu-
sófonos a fim de facilitar a comunicação entre eles. A que pode ser relembrada aqui
é quanto à queda do “c” e do “p” mudos como em acto e optico.

Essa não foi a primeira reforma ortográfica. A primeira e mais profunda refor-
ma aconteceu em 1911 e acabou com grupos de letras como ph, th e rh, represen-
tando um retorno à fonética medieval. Mas antes disso, mesmo o aspecto gráfico
da língua sempre passou por mudanças que eram acordadas através de uma con-
venção, muito mais que através de um acordo político assinado e institucionalizado
como as reformas citadas de 1911 e 2008.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 61


Vejamos:

1500 1788

1725 1606

Se compararmos a escrita original d’A Carta de Pero Vaz de Caminha a


el-Rei Dom Manuel (1500) à escrita do Auto de Partilhas (1192) e depois à es-
crita original do artigo Vestígios da Língua Arábica em Portugal do Frei João de
Sousa (1788) e compararmos a exemplos da língua escrita em 1725 e 1606, ambos

62 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


escritos no que poderíamos chamar de língua oficial de suas épocas, encontrare-
mos muitas diferenças morfológicas, mas nenhuma que chegue a comprometer a
compreensão geral desses textos, apesar do intervalo de quase 500 anos entre o
primeiro e o último, a não ser pela utilização de palavras e expressões que tenham
caído em desuso ou tenham começado a ser utilizadas pelos usuários ao longo da
história da língua.

Assim, o português padrão escrito em Portugal tanto quanto no Brasil se as-


semelham muito. Entretanto, para demonstrar as diferenças entre um e outro seria
necessário um estudo da escrita de brasileiros e portugueses em situações espontâ-
neas de comunicação escrita tais como: no bilhete, na carta pessoal, na anotação de
aula, na inscrição em muros e paredes etc. Eis uma proposta de trabalho.

Seja como for, podemos apontar a oscilação das vogais “u” e “i”, que ora apa-
recem no PB, como em:

loura > loiro

como apareceram já no PE, como em :

noute > noite


cousa > coisa
dous > dois
poico > pouco

No nível morfológico está também a questão do léxico e da semântica, seja


no que tange as palavras que apareceram (neologismos) aqui ou lá por condições
históricas peculiares, seja no que tange ao significado diferenciado (daqui e de lá)
para determinados vocábulos.

Como exemplo de léxico diferente, temos, no Brasil, o anteriormente chamado


pronome de tratamento “você”, que, morfossintaticamente, funciona como prono-
me pessoal do caso reto, segunda pessoa do discurso. Maria Cristina Figueiredo
Silva (1996) diz que “a história de ocupação do Brasil explica a substituição de tu por
você: [o pronome era] (...) utilizado pelos escravos para se dirigir a seus proprietá-
rios” (SILVA, 1996, p. 38).

Existem registros de formas anteriores dessa expressão. A forma mais antiga


é, no entanto, vossa mercê. A presença do “vossa” explica porquê até então a forma

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 63


você foi entendida como pronome de tratamento. O registro posterior a esse é vos-
micê, depois vancê (registrado por Jorge Amado em Seara Vermelha, 1946), depois
você, e, agora, a forma oral cê e a forma virtual vc, que começa a invadir a escrita
espontânea das pessoas. A norma padrão da língua, entretanto, só reconhece a
forma você, e não a classifica como um pronome pessoal, mas como pronome de
tratamento.

Como exemplo de mudança semântica, podemos usar o exemplo da palavra


brasileiro. O sufixo “-eiro”, em português, indica profissão e não nacionalidade/na-
turalidade, papel dos sufixos “-ense” (sobralense, fortalezense, cearense), “-ano” (pe-
ruano, pernambucano, americano), “-ês” (inglês, francês, português) e “-ita/ -ista”
(israelita, islamita, paulista). Assim, brasileiro designava antes “aquele que trabalhava
com o Pau-Brasil”. Só posteriormente foi que passou a se referir àquele que “mora
no Brasil” e, finalmente, àquele que “nasce no Brasil”.

Com a palavra pagão, deu-se algo parecido. Hoje, pagão significa “aquele que
não foi batizado na religião cristã”. Como adquiriu essa conotação? Bem, o termo
advém do latim paganus (veja o sufixo “–ano”, que indica nacionalidade/naturalida-
de), que por sua vez é uma derivação de pagos, que significa “aldeia”. Portanto, pa-
ganus designava “aquele que morava na aldeia”, isto é, o aldeão. O que ocorreu foi
que os apóstolos de Cristo percorriam as regiões a fim de batizar as pessoas. Como
a locomoção naquele momento era algo penoso, algumas regiões — as mais distan-
tes — acabavam por não ser visitadas por estes apóstolos, ficando, seus habitantes,
sem o batismo. Essas regiões distantes que não eram batizadas denominava-se al-
deias. Logo, o termo latino paganus (aldeão) foi evoluindo morfologicamente (para
pagão) e adquirindo esse novo caráter semântico (não-batizado).

Ainda no nível semântico, são muitas as palavras do Português


Brasileiro que têm significado diferente no Português Europeu. Algumas
dessas diferenças podem ser acessadas pelo site http://www.alzirazul-
mira.com/diferencas.htm (acesso em 11 de outubro de 2011). Eis algu-
mas delas:
fila (PB) > bicha (PE)
terno (PB) > fato (PE)
legal, maneiro (PB) > fixe ( “fiche”) (PE)

64 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Nível Sintático
Esse é o nível mais profundo da mudança linguística, porque as estruturas
sintáticas, como demonstramos anteriormente, estão diretamente ligadas às estru-
turas de pensamento da realidade. A organização do pensamento está diretamente
associada à organização das estruturas de pensamento, que são muito influenciadas
pela língua, mas especificamente, por sua estrutura sintática.

Paradigma Pronominal e Conjugação Verbal

A primeira grande mudança que queremos apontar está relacionada à mu-


dança do paradigma pronominal e verbal do PE e do PB. Segundo a gramática
normativa, o paradigma pronominal da Língua Portuguesa é Eu, Tu, Ele(a), Nós, Vós,
Eles(as). O verbo amar, por exemplo, conjugar-se-ia, portanto, no presente do indi-
cativo como amo, amas, ama, amamos, amais, amam. No entanto, se observarmos
a língua que as pessoas falam no dia a dia, no Brasil, encontraremos algo um tanto
diferente disso.

Paradigma
Pronominal
PE PB
Eu Eu
Tu Tu
Ø Você
Ele(a) Ele(a)
Ø A gente
Nós Nós
Vós Ø
Ø Vocês
Eles(as) Eles(as)

Observe que aparecem mais três formas pronominais (você, vocês, a gente) e
desaparece a forma vós. Esse fato tem influência direta no paradigma da conjugação
verbal.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 65


O verbo amar no presente do indicativo, por exemplo, fica assim sendo con-
jugado:

Paradigma Conjugação Paradigma Nova


Pronomial PE Verbal Pronomial PB Conjugação
Tradicional Verbal
Eu amo Eu amo
Tu amas Tu
Ø — Você
ama
Ele(a) ama Ele(a)
Ø — A gente
Nós amamos Nós amamos
Vós amais Ø —
Ø — Vocês amam
Eles(as) amam Eles(as)

O paradigma pronominal e o modelo de conjugação verbal do Português Bra-


sileiro é mais simplificado que o do Português Europeu. Isso se dá por fatores que os
linguistas ainda não conseguiram definir. Uma das hipóteses já foi explicitada logo
acima, quando falamos da necessidade de automatização da língua. Dessa forma,
a língua tende a uma maior regularidade. Embora, a Gramática Normativa defenda
que o certo na língua é o paradigma pronominal do Português Europeu, não é preci-
so ser um ágil observador ou pesquisador da língua para perceber que este modelo,
no Brasil, simplesmente não existe, não é real. O que é real, o que de fato existe, e o
que é usado pelas pessoas, na modalidade oral, tanto em situações formais quanto
informais, é o paradigma pronominal do Português Brasileiro. Os outros tempos
verbais igualmente se modificaram: o futuro do presente, por exemplo, é conjugado,
no Brasil, com o presente do indicativo do verbo ir conjugado + verbo principal no
infinitivo. Por exemplo:

Pessoa Comer (er) Passear (ar) Sair (ir)


Eu vou comer vou dançar vou sair
Tu
Você
vai comer vai dançar vai sair
Ele(a)
A gente
Nós vamos comer vamos dançar vamos sair
Vocês vão comer vão dançar vão sair
Eles(as)

Essa forma verbal não é utilizada apenas na fala e por pessoas com baixo
nível de escolaridade. Mário A. Perini é professor do programa de pós-graduação

66 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


em Língua Portuguesa da PUC de Minas Gerais. No seu livro A língua do Brasil
amanhã e outros mistérios, essa forma de falar é comum durante todo o livro; “ela
vai desaparecer”, “vai se misturar”, “vai se corromper” (Perini, 2004a), “vou admitir”
(Perini, 2004b), “muitos vão estranhar” (Perini, 2004c), “quem é que vai vigiar” (Perini,
2004d), “não vamos saber nunca” (Perini, 2004e) etc.

O mesmo acontece com o futuro do pretérito: conjugado agora com o preté-


rito imperfeito do verbo ir conjugado + verbo principal no infinitivo.

Pessoa Comer (er) Passear (ar) Sair (ir)


Eu
Tu
ia comer ia passear ia sair
Você
Ele(a)
A gente
*não é comum encontrar essa construção verbal conjugada
nessa pessoa do verbo. Quando ela acontece, geralmente está
Nós*
associada à forma pronominal “a gente”.
Vocês
iam comer iam passear iam sair
Eles(as)

Aryon Dall’Igna Rodrigues (2010), um dos maiores pesquisadores das línguas


indígenas do Brasil, encontra aqui um ponto de influência do tupi e do tupinambá,
línguas existentes no Brasil já bem antes da invasão portuguesa. Em seu artigo “Tupi,
tupinambá, línguas gerais e português do Brasil”, no livro O Português e o Tupi no
Brasil, o pesquisador afirma que, no português, a flexão (dos verbos e dos subs-
tantivos de maneira geral) é sufixal, enquanto que nas línguas tupi e tupinambá é
prefixal. Em português, por exemplo, na norma padrão, se conjuga: eu fico, tu ficas,
ele fica, nós ficamos... enquanto que no tupi, diz ele, “a parte final do verbo não
varia para concordar com o sujeito”. Sendo assim, o verbo que corresponde a ‘ficar’
permanece invariável, mudando o prefixo correspondente à pessoa: apytá, erepytá,
opytá, japytá ou oropytá. Isso pode, segundo ele, ter “contribuído para a redução
da flexão sufixal de pessoa nos verbos em grande número de variedades do portu-
guês do Brasil: eu fico, tu/você fica, ele fica”, até as formas estigmatizadas “nós fica,
vocês fica, eles fica”, sem a marca de plural.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 67


Pronome-Lembrete

O pronome-lembrete é geralmente utilizado para retomar um termo que já foi


referenciado na frase. Vejamos alguns exemplos:

1 A menina que o pai dela é dono do Bom Preço está grávida.

2 Eu tenho uma amiga que ela só veste amarelo.

3 Essa cortina, eu achei ela na Tapeçaria Marcelo.

No primeiro exemplo, o pronome-lembrete “dela” retoma “a menina”, filha do


dono do Bom Preço. No segundo exemplo, “ela” retoma “a amiga”. E no terceiro
exemplo, “ela” retoma “essa cortina”. Os dois últimos exemplos são citados no livro
de Mário A. Perini. Apesar de comum, o pronome-lembrete não foi ainda muito
estudado, mas representa uma forte diferença entre o PE e o PB. Ainda não há hipó-
teses a respeito do por que ele ocorre, onde ele ocorre, nem como ocorre.

Mas é um fato linguístico real e é amplamente utilizado. Repare na maneira


como você fala ou qualquer dos seus/das suas colegas.

Concordância Verbal e Nominal

Observe as orações abaixo retiradas de jornais brasileiros de grande circulação:

1 Falta ao governo FHC decisões corajosas e firmes principalmente contra


os partidos que o apoiam. (O Estado de S. Paulo, 17/9/1995)

2 Ainda não se sabe como será conduzida as eleições sobre o destino da


política salarial na reunião que o presidente Itamar Franco convocou para
amanhã à tarde. (Correio Braziliense, 18/7/1993)

3 Se a população de rua não for retirada, de nada adiantará medidas de


segurança. (Jornal do Brasil, 13/11/92)

O que eles têm em comum? Examine-os.

Todos eles têm o verbo anteposto ao sujeito. E qual a importância deste fato?
Quando se trata de um sujeito plural, no PB, isso faz muita diferença, pois implica na
concordância verbal. Estes são três dos muitos exemplos, citados por Marcos Bagno
(2003), em seu livro A Norma Oculta, em que o verbo, quando anteposto ao sujeito
plural, vem no singular. Veja: no primeiro exemplo, o verbo é “falta” e o sujeito é “de-
cisões corajosas”; no segundo exemplo, é uma locução verbal, “será conduzida”, e o

68 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


sujeito “eleições”; no terceiro exemplo, o verbo, “adiantará”, o sujeito “medidas de
segurança”. Todos os sujeitos plurais e o verbo, que aparece anteposto, no singular.
A ampla utilização dessa construção sugere uma mudança linguística no nível de
sua estrutura profunda, o que marca, mais uma vez, a diferença entre o PB e o PE.

Ainda nessa esteira, o PB apresenta, em sua modalidade oral espontânea, a


queda sistemática da marca de plural “-s/-es” em substantivos antecedidos pelo
artigo já marcado, como em

As menina bonita vieram.

Essa seria uma outra influência do tupi na língua portuguesa. Segundo Aryon
Rodrigues:

No português falado do Brasil, ou em grande número de suas variedades,


houve mudança nesse processo: a flexão de plural não se aplica aos no-
mes, nem a seus qualificadores, mas só aos especificadores (Aqueles gato
amarelo são mansos). (...) é possível que a ausência de flexão nas línguas
tupi e tupinambá tenha contribuído para a alteração dessa regra de con-
cordância. (RODRIGUES, 2010).

Por que tudo isso ocorre? Não há explicações definitivas. O que há são hipóte-
ses. Todos esses fatos fazem parte do que Mário Perini chamou de “fatos malditos”
(Perini, 2004, p. 31) da língua, e como tal fazem parte da constelação de temas tabu
em torno da língua portuguesa que precisam ser quebrados e levados para discus-
são direta dentro das salas de aula, a fim de quebrar a mais grave consequência
da falsa noção de que existe uma língua certa e uma língua errada: o preconceito
linguístico.

GUIA DE ESTUDO

1. Esta foi a mais longa e mais pragmática das seções até agora. Ela
apresentou os níveis em que a língua se modifica, citando vários
exemplos tirados da linguagem cotidiana do Português Brasileiro.
Faça um resumo de cada nível, apresentando exemplos tirados do
texto e exemplos que você mesmo(a) pode observar nos falantes de
sua comunidade.

2. Com base no texto, apresente diferenças entre o Português Europeu


(de Portugal) e o Português Brasileiro.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 69


Preconceito Linguístico
Veja estas duas orações abaixo:
.A gente se encontramos lá fora.
(Solange, ex-BBB 2006)

.Vem pra Caixa você também, vem.


(propaganda da Caixa Econômica Federal)

Observando estas duas frases, de imediato, qual das duas lhe sugere um erro
gramatical? Se não me engano em minhas previsões, você vai responder que é a pri-
meira. Acertei? Agora, por quê? Essa eu acho que também adivinho: você vai dizer
que é a que apresenta um erro de concordância verbal. A frase deveria ser, na verda-
de, ou “A gente se encontra” (ou “se encontrou”, o tempo verbal é ambíguo na ora-
ção) lá fora; ou “nós nos encontramos lá fora”. Não é isso? Mas procure numa velha
novíssima gramática da língua portuguesa (ou na internet mesmo) qual a conjuga-
ção do verbo vir no imperativo afirmativo na pessoa você. Ela diz que a conjugação
do verbo vir, nesse caso, é venha e não vem como está na propaganda da Caixa.
Se você havia percebido isso, parabéns! Você faz parte de uma parcela pequena da
população de lusófonos deste país. Experimente fazer uma enquete no seu local de
trabalho, na sua família, em casa e verifique a resposta das pessoas. Boa parte delas
apontará a primeira como errada e não a segunda. Por quê?

Existem algumas hipóteses para responder a essa questão: a primeira delas,


mais visível, está ligada ao que os professores de língua portuguesa e literatura
chamaram de “licença poética”, ou seja, para que caiba na métrica para rimar com o
“também”, o verbo foi conjugado como “vem” e não “venha”, como manda a gramá-
tica normativa. Uma resposta um pouco menos imediata, embora tão visível quanto,
está ligado ao fato de que é assim que nós falamos no dia a dia. De fato. É muito
mais comum utilizarmos o “vem” que o “venha” (há controvérsias: alguns linguistas
dizem que no nordeste a forma “venha” é mais comum que em outras regiões do
país). Uma resposta menos visível, a essa hipótese que quero me referir, está ligada
ao que os linguistas hoje chamam de Preconceito Linguístico.

Ambas as orações apresentam o mesmo “problema” (de concordância verbal)


e, no entanto, esse “problema” é imediatamente visível na primeira, enquanto quase
passa despercebido, na segunda. Por quê? Observemos os enunciadores.

70 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


A oração da ex- BBB - Big Brother Brasil - 2006 Solange “A gente se encon-
tramos lá fora” é o enunciado de uma mulher, negra, moradora de uma favela no
Rio de Janeiro, com baixo nível de escolaridade. A oração de uma grande empresa
nacional, ou seja, mais uma vez o que está em jogo aqui não é a língua, mas quem
fala essa língua. Se quem “comete esse erro” goza de determinado status social ou
faz parte dos grupos sociais histórica e socialmente estigmatizados.

O que estou querendo dizer? Norman Fairlough (1989), em Language and


Power, diz que “a ideologia é mais efetiva quando sua ação é menos visível” (p.
85. Tradução livre). O trabalho do linguista, tanto quanto do professor de língua
portuguesa, é explicitar quando essa ideologia se manifesta na língua. Pois, como
diz Fairlough:

Se alguém se torna consciente de que um determinado aspecto do sen-


so comum sustenta desigualdades de poder em detrimento de si próprio,
aquele aspecto deixa de ser senso comum e pode perder a potencialidade
de sustentar desigualdades de poder, isto é, de funcionar ideologicamente.
(FAIRLOUGH, 1989, p. 85. Tradução livre)

E é justamente o que as duas orações em questão fazem: estabelecem e re-


forçam a ideologia da estratificação social manifestada através da língua. Nossa
concepção a respeito da língua (e de seus produtos mais palpáveis: os textos) deve
mudar urgentemente: a língua não é apenas uma forma de expressar sentimentos
e ideias, tampouco somente um meio através do qual o homem pode se relacionar
com o mundo e com as pessoas a sua volta. A língua é um verdadeiro espaço de
luta hegemônica. Através das análises dos textos, além da sua interpretação mais
imediata, devemos exercitar a compreensão das contradições sociais e das lutas
pelo poder que levam o sujeito (escritor/falante/emissor) a selecionar determinadas
estruturas linguísticas ou determinadas vozes, por exemplo, e a articulá-las de de-
terminada maneira num texto. Quando um jornalista, por exemplo, substitui:

• Collor faz cooper todos os dias pela manhã. O nosso presidente diz
assim poder manter a forma para cuidar de tão imenso país.

por,

• Collor faz cooper todos os dias pela manhã. O nosso Indiana Jones
diz assim poder manter a forma para cuidar de tão imenso país.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 71


Fica clara aqui sua intenção irônica. Além dessa intenção meramente estilísti-
ca, que intenção oculta haveria por debaixo do que o texto diz? Alguma intenção
político-partidária? Alguma intenção de deslegitimar o cooper que o presidente
fazia então? Será preciso lembrar que o fenômeno histórico dos “caras pintadas”
— movimento juvenil de protesto que no início da década de 90 foi “responsável”
pelo primeiro impeachment da história do país - foi liderado por uma ampla cam-
panha midiática. (ver documentário Além do Cidadão Kane). Seria esse jornalista
um representante dessa mídia que visou deslegitimar a imagem do presidente
a fim de dessacralizá-la e, assim, torná-lo mais vulnerável às críticas que dali em
diante se fariam sobre ele até o cume de exonerá-lo publicamente do cargo?

A língua, diz o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, é um campo de batalha,


um terreno em que entra em jogo cargas semânticas, preconceitos e relações de
poder que são misturadas por uma vontade de domínio. O próprio ato de nomear
algo seria uma forma de dominação, como vimos na primeira seção. Por que o
senhor de escravo nomeia o escravo recém-comprado? Por que o conquistador de
terras batiza a terra recém-“descoberta”? Posse. O nome é o primeiro passo do ho-
mem no sentido do domínio do ser nomeado, homem ou natureza. Assim, a língua
seria o repositório das relações de poder que se processam quase invisivelmente.
Por exemplo, quando os apresentadores do Jornal Nacional dizem:

1. EUA ocupam Iraque desde 2003.

2. Sem-terra invadem fazendas no Rio Grande do Sul.

O que justifica o uso de ocupam na primeira frase e de invadem na segunda


frase, senão a carga semântica construída e mantida por relações extralinguísticas
de poder?

A Estilística vem, assim, junto a outro ramo da linguística, a Análise do Dis-


curso, devolver à língua seu caráter social esquecido pelos estruturalistas que se-
guiam a linha de Ferdinand de Saussure, malgrado o aviso do próprio Sausurre
quando este diz que a língua é uma instituição social, afinal, como diz o sociolin-
guísta Jean-Louis Calvet (2002), “a língua só existe porque existem homens que a
falam” (p. 12).

72 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


GUIA DE ESTUDO

No começo desta seção, o texto sugere fazer uma enquete, apresentando


os dois exemplos citados bem no início da seção e perguntando quais dos
dois apresenta erro gramatical. Realize essa enquete. DICA: Não explique
nada, apenas pergunte, anote a resposta. Ao final, lembre-se de montar
uma tabela comparativa mencionando quantos votos cada opção ganhou.
Lembre-se de anotar quantas pessoas, ao todo, foram entrevistadas.

Língua e Poder
Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi o primeiro a organizar os estudos da
língua dentro da ciência moderna. Num livro intitulado Curso de Linguística Geral
(1987), estão suas principais ideias a respeito do fenômeno linguístico. Dentre todas,
a que nos interessa por ora é a percepção de que a língua é um sistema estabelecido
e organizado de signos. E o que seria um signo?

É estreita a relação entre linguagem e pensamento, ou, mais especificamente,


entre língua e construção da realidade, dada a natureza concreta dos conceitos. As
palavras são capazes de influenciar diretamente o comportamento das pessoas, mu-
dam nossa forma de pensar o mundo, reforçam ou questionam nossas crenças, nos-
sos valores. São elas que moldam nossa identidade, a maneira como nós nos per-
cebemos e, daí, a maneira como nós agimos. As palavras são capazes de influenciar
desde simples decisões corriqueiras quanto ao que vamos comer, por exemplo, até
decisões um tanto mais complexas como, por exemplo, em quem votar nas eleições
presidenciais. Dá-se, através da língua, uma forma sutil de manifestação do poder.

A forma como lidamos com o mundo, com o outro, com a gente mesmo, é
orientada pelo que consideramos como “verdade” (valores e certezas, afirmações e
negações que acreditamos serem legítimas formas de pensar, agir, falar, fazer etc.).
Essas “verdades” são chamadas hoje pela psicologia social de “Representação So-
cial”. Como é isso?

Quando você ouve alguém dizer “Eu sou professor”, que ideias lhe vêm à ca-
beça? Algo relacionado a seus trajes? Algo relacionado à maneira como ele deve se
comportar? Algo ligado a quanto ele deve ganhar por mês? Se esse alguém acres-
centasse ao substantivo professor um adjetivo qualquer como “professor universi-
tário” ou “professor primário”, essa primeira imagem que se formou em sua cabeça
se manteria ou ela teria alguma mudança? Imagine agora um Padre. Como deve ser

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 73


um padre? Pense nas roupas, na maneira como ele fala, na maneira como ele anda,
na maneira como ele age. Isto é, a cada tipo social se agregam formas de pensar e
de agir que são característicos daquele tipo social. E essas formas estão gravadas
na nossa memória através das palavras, e de forma tão poderosa que mesmo que
eu diga “não pense em uma maçã vermelha” a mente está treinada a formar essa
imagem.

Ferdinand de Saussure (1987), considerado o pai da linguística moderna, fala


que a língua é um sistema de signos, palavras estruturadas a partir da relação entre
o que ele chamou de “significante” — a palavra propriamente dita, escrita (imagem)
ou falada (acústica) — e “significado” — que não é a imagem do objeto (a da maçã
do parágrafo anterior, por exemplo), é uma rede de ideias em torno daquele objeto
e que montam, por sua vez, o “conceito”. Eis o esquema que ilustra o processo inte-
rativo da comunicação:

O indivíduo A pronuncia determinada palavra (digamos a palavra “maçã”) que


chega pelos ouvidos de B e na mente de B se associa a uma rede de ideias (concei-
to) associadas àquela palavra (no caso, maçã: a imagem do objeto, para que serve
aquele objeto, cores, onde encontrá-la, onde conservá-la, se está boa de comer,
histórias ligadas a ela etc.). Essa associação é direta e simples, porque estamos tra-
tando de objetos. Mas quando pensamos em palavras que representam objetos
menos concretos, essa relação se mostra em toda sua complexidade. O que é ser
“belo”, aliás, o que é a “beleza”? O que é ser “bom”? O que é ser “ético”? Essas pa-
lavras também estão ligadas em nossa memória a uma rede de significações que,
no nosso caso, dependem da nossa educação como cristãos (religião majoritária no
Brasil). Mas será que o que é belo para nós é belo para todo o mundo? Será que ser
bom é para nós o que é para todo mundo?

74 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Há como complicar ainda mais esse jogo, quando, por exemplo, estabelecemos
distinções sociais a partir de rótulos como “Ela é pobre”, ou “Ele é homossexual”, ou
“Eles são nordestinos”. Cada rótulo desse orienta a maneira como nós lidamos com
cada tipo social. Cada tipo social desse, na nossa memória, está associado a certa
maneira de se vestir, de falar, de andar etc. Esse conjunto de ideias que formam o
conceito não mais sobre os objetos mas sobre as pessoas e a realidade é que cha-
mamos de Representações Sociais.

Na sociedade, representações múltiplas sobre o que é (ou não) verdade, sobre


o que é (ou não) moralmente correto, do que é “normal” (ou “diferente”), convivem,
ou melhor, conflituam; relações maniqueístas a respeito da legitimidade que apenas
determinado grupo social teria de poder dizer o que é o real, o que é melhor, o que
é correto etc., o que é “normal” ou “diferente”. A realidade seria, portanto, o campo
onde se discutem essas várias representações, cada uma delas imbricadas numa
rede de poder simbólico que um (ou mais) grupo(s) social(is) estrutura(m) para de-
fender seus próprios interesses, anseios, necessidades e vontades.

Saiba mais:

Maniqueísta: Filosofia religiosa que afirma existir o dualismo entre


dois princípios opostos, normalmente o bem e o mal

Veja o que aconteceu na Venezuela em abril de 2002, quando o então presi-


dente Hugo Chaves foi deposto por um Golpe de Estado organizado pela extrema
direita do país, que não ficou nada contente com a estatização do petróleo, cujo
lucro, antes, estavam concentrados nas mãos dessa mesma extrema direita que re-
presenta a pequena elite econômica do país. O documentário A revolução não será
televisionada é um bom registro deste momento.

A elite organizou uma marcha contra Hugo Chaves. Em apoio ao então presi-
dente, outro grupo, se concentrou ao redor do Palácio do Governo Miraflores. Num
dado momento da marcha antiChaves, o líder da marcha desviou a rota rumo ao
palácio do governo, com a intenção de incitar um conflito direto. As redes de tele-
visão (todas privadas) registraram o momento em que os dois grupos começaram a
lutar. São cenas muito fortes. Do alto de prédios cuja localização não fica clara para
ninguém que está presente no conflito, exceto talvez para os dirigentes da marcha
antiChaves, atiradores de elite disparavam contra a multidão ferindo na cabeça mui-
tas pessoas de ambos os grupos.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 75


Um homem que está junto ao grupo pró-Chaves saca uma arma de baixo
calibre e dispara rumo à direção de onde ele imagina estarem vindo os tiros: a rua
por onde a marcha antiChaves passaria caso não tivesse sido desviada. O plano-se-
quência mostra o homem atirando e depois mostra o lugar para onde sua mira está
apontada: uma rua vazia. Mas o plano-sequência foi editado, e somente a imagem
desse homem disparando foi excessivamente exibida em rede nacional e interna-
cional. A culpa, portanto, recaía sobre o grupo pró-Chaves e, consequentemente,
sobre o próprio Chaves. A opinião pública nacional e internacional se voltou contra
o presidente e ele foi deposto (ao menos temporariamente).

Para Bourdieu (2007), o poder de dizer é poder simbólico que se manifesta


através do que ele chama de “estruturas estruturantes/estruturadas”. Essas estrutu-
ras são formas simbólicas de classificação que distinguem 1) aquele (ou aquilo) que
é classificado ― essa relação estabelece e legitima o estigma de um indivíduo ou
grupo social marginalizado; e 2) aquele que classifica ― o que estabelece e legitima
o status de um indivíduo ou grupo social privilegiado. Diz o autor que tais formas
simbólicas estruturam justamente a ideologia, que funciona como alicerce para a
sugestão de comportamentos, a manutenção do status do grupo social, cultural e
economicamente dominante e a construção de discursos legitimadores e represen-
tações hegemônicas. Para Bourdieu (2007, p. 9),

o poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a


estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (...),
quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número,
da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências.

Mais a frente, o autor entende “o poder simbólico como o poder de constituir


o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a
visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto, o mundo” (BOUR-
DIEU, 2007, p. 14). Cada grupo social teria o que Bourdieu (2005) chama de ponto
de vista, que seria dado ao indivíduo pela posição social que ele ocupa em deter-
minada sociedade (ou micro sociedade: uma sala de aula, por exemplo; um presídio,
um hospital etc.) ou mesmo dentro de um grupo social. Segundo ele, a posição
social do indivíduo ― se ele é empresário, se é operário, se é professor universitário,
professor primário, se não trabalha, enfim ― dá a este indivíduo determinado ponto

76 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


de vista pelo qual e com o qual ele entende e classifica a realidade e os outros. Ba-
seado nesse ponto de vista é que o indivíduo tomaria, inclusive, suas posições nos
domínios mais diferentes das práticas sociais.

“As representações sociais são entidades quase tangíveis”, diz Moscovici (apud
Gerard Duveen. In: MOSCOVICI, 2007), que circulam, se entrecruzam e se cristalizam
continuamente através de uma palavra, de um gesto, ou de uma reunião, em nosso
mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas relações estabelecidas, os
objetos que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que estabelece-
mos. Assim, são as representações sociais que orientam os sentidos que damos à
realidade, ao mundo.

Vivendo no que Moscovici chamou de uma “era da representação” (2007, p.


40), o homem contemporâneo percebeu que “todas as interações humanas, surjam
elas entre duas pessoas ou entre dois grupos, pressupõem representações” (2007,
p. 40). Entende-se que a toda prática subjaz um discurso, que não há ação que não
esteja baseada nos discursos, posto que os discursos são manifestações de uma
ideologia que alicerça práticas cotidianas. É aqui o ponto onde linguagem e pensa-
mento se encontram.

As Representações Sociais são alimentadas pelos discursos. Os indivíduos se


veem a todo instante mergulhados em redes de discurso que constroem um ima-
ginário acerca de algo, alguém ou uma realidade. E é justamente através de afirma-
ções pejorativas sobre a língua portuguesa que se propaga a aversão que se cons-
truiu ao longo dos anos no Brasil, desde a Lei do Diretório, em 1750, promulgada
pelo Marquês de Pombal, que obrigava o ensino de língua portuguesa nas escolas
do Império.

GUIA DE ESTUDO

Existe certo imaginário acerca do que é ser inteligente. Esse imaginário,


compartilhado por várias pessoas na sociedade, é o que chamamos de
representação social. Com relação à língua, ser inteligente está diretamente
associado a “falar bem”. E “falar bem”, por sua vez, está diretamente associado
a “falar de acordo com as normas gramaticais”. O avesso desse modelo é
o imaginário em torno do ser “burro”. Assim, todo aquele que não fale (ou
escreva) de acordo com as normas gramaticais é “naturalmente” chamado
de “burro”. Reflita sobre isso. Quando possível, apresente situações reais
que possam ilustrar essa condição.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 77


AMPLIANDO A NOÇÃO DE
2
ENSINO DE LÍNGUA
CONHECIMENTO
Entender que o ensino de nosso idioma não se restringe ao ensino de uma soma
de regras gramaticais; e o que precisa ser modificado na prática pedagógica com
a língua portuguesa não é somente a metodologia aplicada, o conteúdo a ser
“ensinado”.

HABILIDADES
Identificar e selecionar as metodologias mais adequadas ao ensino de língua
portuguesa, considerando quais conteúdos são realmente necessários ao
desenvolvimento das habilidades linguísticas (falar, ler, escrever, ouvir).

ATITUDES
Ser um agente das novas tendências para o ensino de língua portuguesa,
analisando criticamente as estruturas mais adequadas ao ensino de Língua

Portuguesa.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 79


Introdução
Agora que estamos um pouco mais conscientes acerca das implicações sociais,
ideológicas, filosóficas etc. da língua que falamos, estamos um pouco mais aptos
a refletir de maneira mais ampla sobre o ensino de língua, aproveitando nossas
próprias experiências como estudantes, mas também, no caso de alguns, como
professores.

O ensino que se tem da língua materna, preso ainda à gramática normativa,


visa à memorização de nomenclaturas e termos da tecnologia gramatical e de um
conjunto de regras que seriam (ou deveriam ser) aplicadas na hora de escrever
e de falar, caso o usuário da língua queira falar ou escrever “corretamente”. Essa
compreensão quase hegemônica do ensino de língua “materna” tem insistido em
ensinar as “leis” da língua como que se tratassem de regras de etiqueta.

Ora, noções como “certo” e “errado”, na perspectiva do ensino de língua


(qualquer que seja a língua), fazem parte do campo semântico do que Marcos Bagno
(2001) chamou de Preconceito Linguístico, que seria a manifestação, no plano da
língua, de um verdadeiro preconceito social entranhado na alma dos indivíduos
educados sob a ótica-ética da gramática normativa. Esse preconceito linguístico é
que faria repetir as tais afirmações pejorativas “que se ouvem até de pessoas cultas”,
lembra Celso Pedro Luft (2002) como: “as pessoas sem instrução falam tudo errado”,
ou “nesse país todo mundo fala errado”, ou ainda “português é a língua mais difícil
do mundo” e outras tantas que costumamos repetir irrefletidamente por aí.

É nosso intuito demonstrar, que concepções como “falar certo” e “falar


errado” têm implicações diretas e não muito positivas na autoestima de quem
“fala certo” ou de quem “fala errado”. É nossa preocupação também demonstrar
que esse indivíduo, que tem sua autoestima afetada por achar que “fala errado”,
tenderá, cada vez, mais a evitar se expor, a interferir na vida política de sua
comunidade e, mais grave, a tomar decisões por si e para si próprio, deixando,
assim, de exercer cada vez mais sua genuína cidadania, reduzida hoje ao
mecanismo falido do voto.

Saiba mais:

Voto - Àqueles que porventura desejarem entender e debater sobre este


último ponto, sugerimos a leitura de A produção social da loucura de Ciro
Marcondes Filho.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 81


Esse indivíduo, tendo aceitado a verdade de que não sabe falar, não sabe se
expressar e, dada a relação intrínseca entre língua e pensamento já mencionada,
portanto, teria de aceitar uma verdade ainda mais terrível: a de que ele não se
expressaria “corretamente”, mas a verdade de que ele não pensaria “corretamente”.
Assim, esse mesmo indivíduo tenderia a eximir-se da responsabilidade social que ele
tem em se assumir como sujeito de sua própria vida e da vida de sua comunidade,
como sujeito da sua própria história. Tendo aprendido que ele não sabe se expressar,
nada mais previsível que ele então evite incorrer no seu erro, isto é, evite se expressar,
evite falar contra as atrocidades, as injustiças sociais, a má distribuição de renda,
contra os desmandos sutis da política, contra a submissão e a miséria que toda essa
forma de relação que estabelecemos na sociedade capitalista lhe/nos imprime.

Ensinar língua é, assim, atrelar-se-á ao infindável trabalho de ler não só textos,


mas discursos; não só literatura, mas o mundo, o homem através da literatura; ler,
enfim, o mundo a sua volta e interpretar o seu próprio modo de vida, estabelecer
parâmetros para viver melhor consigo e com o outro.

Não se trataria apenas de reformular os modos pelos quais ensinamos língua.


Havemos de estar loucos reformulando somente os métodos da aprendizagem,
construindo um novo paradigma para o ensino e aprendizagem, sem levar em conta
o que vai ser construído no/com o indivíduo. O paradigma tradicional, vinculado
ao que Celso Pedro Luft ( 2002) chamou de “ensino gramaticalista” do ensino de
língua está atrelado a um método estruturalista de fazer ciência, alimentado pelo
pensamento positivista, herdeiro da filosofia Iluminista francesa e, portanto, burguesa
e capitalista: como reformular o paradigma teórico de ensino sem reformular o
próprio pensamento que embasa a prática tradicional? Em outras palavras, não
basta modificar a metodologia, o como, é preciso reformular conceitos e conteúdos,
isto é, o “o quê”.

O Ensino de Língua Portuguesa como Instrumento


de Exclusão Social.
Quando um estudante escuta de seu professor que ele fala errado, que não
sabe falar, e que, portanto – conclui o professor –, ele é “burro”, qual o impacto disso
sobre ele? Que elementos estão implicados quando esse professor, a partir do fato
de o estudante “não saber falar”, considera-o “burro”? De que “burrice”, afinal, ele
está falando?

82 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o personagem Fabiano envolve-se
injustamente numa queixa com um “soldado amarelo” e acaba preso. Fabiano é um
tipo humilde – como o são as principais personagens do chamado “Romance de 30”:
pobres, nordestinos e analfabetos – “tinha muque e substância, mas pensava pouco,
desejava pouco e obedecia” (Ramos, 1994, p. 27), diz o narrador, “o vocabulário dele
era pequeno”. E, justamente por não poder/saber se explicar, não consegue dizer
da injustiça a que fora submetido para, assim, poder defender-se e, quem sabe,
libertar-se da prisão.

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava
preso por isso? Como era? Então, mete-se um homem na cadeia porque
ele não sabe falar direito? [...] Às vezes, largava nomes arrevesados, por
embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar
o que tinha no interior. Se pudesse... (RAMOS, 1994, p. 36)

Diz o narrador. É uma árdua e difícil reflexão que o personagem faz


reconhecendo-se, e, ao se reconhecer, distiguindo, na verdade, uma forma de poder
que se impõe sobre si e que manifesta na língua toda uma condição histórica e
social responsável para que ele esteja ali naquela condição. Compara-se, inclusive,
ao Seu Tomás da bolandeira, “pessoa de consideração [que] votava” (Ramos, 1994,
p. 36), diz ele. Reconhecendo nele um homem superior, já que “lia livros e sabia
onde tinha as ventas” (RAMOS, 1994, p. 36). Fossem perguntar a ele, diz o narrador,
que, neste momento, confunde-se com o personagem, ele “contaria aquela história.
Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada” (Ramos, 1994, p. 36), explode ele em
pensamento já dentro da cela.

Seria Fabiano “burro”? Sob que perspectiva ele poderia ser considerado “burro”?
Antes, poderia ser ele considerado “burro” só por não saber articular argumentos
capazes de livrá-lo daquela situação?

A língua – toda e qualquer língua – é muito mais do que simplesmente um “meio


de comunicação”, como dizem, no geral, os livros de português, os compêndios de
gramática e os manuais de redação. A língua é, antes, uma forma de compreender
o mundo. Sim, ela media a relação entre as pessoas e constrói os conceitos pelos
quais temos acesso à realidade em nossa volta (Mackellene, 2006), influenciando,
inclusive, a forma como nos compreendemos, como lidamos com o outro – a
partir de sistemas de classificação do mundo (de coisas e pessoas etc.) próprios
da faculdade de linguagem, reforçando (por relações de identidade/alteridade) os

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 83


laços sociais entre os indivíduos de uma mesma comunidade linguística. Mas, mais
do que tudo isso, a língua é uma forma de domínio.

A língua é onde as relações de poder se manifestam de maneira mais sutil, quase


invisível. Dentre as outras manifestações humanas com essa mesma característica,
no entanto, é a língua, talvez, a mais poderosa porque é capaz de fazer com que um
indivíduo se autossugestione no sentido de considerar-se, ele próprio, um “burro”,
“um bruto”, como Fabiano fizera, na alegoria construída por Graciliano Ramos, como
o estudante do exemplo inicial, que teria sido chamado pelo seu professor de língua
portuguesa de “burro”, poderia se considerar.

No dia 13/01/2015, o portal G1 de notícias publicou uma matéria com a


seguinte manchete: “529 mil alunos ficaram com nota zero na redação do ENEM
2014, diz MEC”. Esse dado, que representa, segundo a mesma reportagem, 8,5% dos
candidatos participantes, pode ser associado à porcentagem dos alunos “burros”
que fizeram a prova?

A Lei de Diretrizes e Bases, Lei nº 9.394/96, estabelece em seu Art. 26, § 1, que
“os currículos [...] devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa
e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social
e política, especialmente do Brasil”. Em seu Art. 32, § 3, a lei orienta que “O ensino
fundamental regular será ministrado em língua portuguesa”, embora assegure “às
comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios
de aprendizagem”. Mas destaca, em seu Art. 36, inciso I, que “[...] a língua portuguesa
como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania”.
É salutar para nossa discussão que se perceba que no Art. 26, a língua portuguesa é
a primeira disciplina a ser mencionada, e que, no Art. 36, a LDB a reconhece – e não
outra – como “instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício de
cidadania”, ainda que tenha legitimado, no art. 32, a utilização das línguas maternas
indígenas nas comunidades respectivas.

Essa supremacia da língua portuguesa se manifesta na distribuição das cargas


horárias ao longo do ano letivo no Ensino Básico. O Guia de Educação, da editora Abril,
aponta como carga horária mínima para os primeiros anos do Ensino Fundamental
de 5 a 9 aulas por semana de língua portuguesa, enquanto que as demais têm 2
aulas por semana. No Ensino Médio a situação não é muito diferente. O Colégio
João XXIII, na Vila Prudente, em São Paulo, distribui 5 aulas semanais para cada ano
do Ensino Médio, enquanto que Física, Química, Biologia e História têm, em média,
3, e Filosofia e Sociologia, 1. Considerando que o indivíduo passa, em média, 12

84 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


anos de sua vida na escola – 2.400 dias, portanto, se levarmos em conta que o ano
letivo da Educação Básica tem 200 dias, de acordo com a LDB – podemos fazer um
cálculo simples para concluir que, nestes 12 anos, o estudante foi submetido a, em
média, 10.000 horas de aulas de língua portuguesa.

Apesar desse volume de aulas, as dificuldades são imensas. Observe o resultado


desastroso do ENEM 2014. Tais dificuldades vão desde aspectos gramaticais (como
concordância, regência, ortografia etc.) até aspectos textuais (como paralelismo,
coesão, coerência, continuidade etc.). Por que isso se dá? Por “burrice” dos
estudantes? Por incompetência – e, portanto, “burrice” – dos professores?

Celso Pedro Luft (2002), em seu livro Língua e liberdade, pergunta:

Por que os professores em geral não capacitam melhor os alunos para a


comunicação oral e escrita? Porque, em vez de fazê-los trabalhar INTENSA-
MENTE (sic) com sua gramática interior, fazendo frases, compondo textos,
lendo e escrevendo, pretendem impor-lhes Gramática, teorias e regras. Um
ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegu-
rança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão
livre e autêntica de si mesmo. (LUFT, 2002, p. 21)

Essa “aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si


mesmo” tem desdobramentos sérios no estudante, posto que, uma vez tendo ouvi-
do de sua professora que “não sabe falar”, o mais comum de acontecer é que se re-
cue no seu silêncio, imaginando que, se ele fala errado, os pais, que lhe ensinaram a
falar e com os quais mantém um convívio linguístico cotidiano, também não sabem,
e, mais ainda, que se eles – seus pais e ele – falam, como se espera, uma variação
linguística própria da comunidade onde vivem, e falam errado, muito provavelmen-
te a própria comunidade fala errado.

Contudo, a relação entre falar e pensar, já demonstraram os psicolinguístas,


é muito íntima, no sentido mesmo de que as palavras são o mecanismo do pensa-
mento, as engrenagens da mente. Sendo assim, ao deduzir que ele, seus pais e a
comunidade onde vivem falam errado, não é muito difícil chegar à conclusão de que
a comunidade, seus pais e ele próprio pensam errado. Ora, se pudéssemos agora,
neste projeto de pesquisa, rascunhar um conceito para “burrice”, esse conceito pas-
saria por “não saber pensar ou não pensar certo”, ou seja, “pensar errado”.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 85


Não se pode perder de vista que a língua portuguesa no Brasil é uma língua
que tem um passado ligado à colonização e, portanto, traz à tona o peso histórico
de ser a língua do opressor. Marcos Bagno (2001), em seu Preconceito Linguístico:
o que é, como se faz? aponta expressões que repetidas por aí até por professores de
língua portuguesa e dos cursos de letras. Tais expressões fazem parte do que ele
chamou de “mitologia do preconceito linguístico”. O “mito 2”, por exemplo, aponta
que “brasileiro não sabe português. Só em Portugal se fala bem português”, ou
ainda o mito 4, que diz que “as pessoas sem instrução falam tudo errado”, ou, pior
ainda, o mito 8, segundo o qual “o domínio da norma culta é um instrumento de
ascensão social”.

Todas essas expressões dão a ver o grau de desconhecimento da realidade


linguística do país, tanto no que se refere ao seu aspecto sincrônico quanto diacrônico
(SAUSSURE, 1987). Para quem tem olhos treinados para ver, tais expressões – e outras
tantas – dão a ver relações de poder, dão a ver efeitos, ainda hoje, da colonização.

Celso Pedro Luft (2002) também corrobora esse pensamento. Segundo ele,

Não podemos persistir num ensino que gera como produto final afirma-
ções tolas (que se ouvem até de pessoas cultas) como “português é a lín-
gua mais difícil do mundo”, “não sei português” ou “neste país todo mundo
fala errado” (LUFT, 2002. p. 12).

Mas, como pode um estudante odiar a sua própria língua? Como poderia o
estudante não gostar da língua em que ele pensa, com a qual ele se comunica,
pela qual se expressa? Afirmações como essas são expressões cristalizadas que
querem nos dizer algo muito além do que dizem: antes de dizer do sentimento que
o estudante tem por tal matéria, essas afirmações dizem de como anda o ensino
dessa disciplina, de como os professores a têm tratado e de como os estudantes a
encaram.

A língua portuguesa no Brasil tenta ser imposta desde Anchieta, e até hoje é
uma língua que nós não falamos. É, portanto, uma língua estrangeira. E bem possível
que os problemas de língua portuguesa que encontramos no ensino desta disciplina
hoje devam-se justamente a isso.

86 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


José de Alencar, já em 1872, no prefácio de seu livro Sonhos d’Ouro, já
perguntava: “O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode
falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo,
a pêra, o damasco, a nêspera?” (In: MENEZES, 2006, p. 19).

O colonizador europeu, que subjugava todos os outros povos pela força, se


reconhecia e se fazia reconhecer pelo colonizado como único povo com cultura, a
“língua-verdade”, no caso, era a língua portuguesa, a “comunidade sagrada” era a
comunidade cristã, que fala essa língua.

No poema “À Santa Inês”, de Padre Anchieta, escrito para ser cantado pelo
índios por ocasião da chegada da sua imagem ao Brasil, o poeta diz

Cordeirinha linda, [...]


como folga o povo,
porque vossa vinda Oh que doce bolo
lhe dá lume novo. que se chama graça!
Quem sem ela passa
[...] é mui grande todo
homem sem miolo
O pão, que amassastes qualquer deste povo.”
dentro em vosso peito,
é o amor perfeito
com que Deus amastes.
Deste vos fartastes,
deste dais ao povo (In: GONÇALVES; AQUINO;
por que deixe o velho SILVA, 1995, p. 45. Grifo nosso)
pelo trigo novo.

Observe que os trechos em grifo procuram construir uma atmosfera propícia


a que o indígena “deixe o velho”, ou seja, sua cultura, seus costumes e sua língua,
“pelo trigo novo”, isto é, a cultura e os costumes portugueses, dentre eles a língua.
É verdade que os jesuítas eram verdadeiros defensores da cultura e dos costumes
indígenas, tendo o cuidado, inclusive, de elaborar – como Anchieta, que escreveu
Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil – compêndios sobre
as línguas dos nativos, procurando preservá-las. A despeito disso, a maneira como
lidavam com as línguas indígenas acabavam por adaptá-la aos modelos conceituais
e formais da cultura e da língua portuguesa.

Quanto à mudança dos modelos conceituais, é emblemático o exemplo citado


por João Adolfo Hansen (2006), em seu livro “Anchieta: poesia em tupi e produção

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 87


da alma humana”. Ainda que toda a poesia e o teatro do Padre Anchieta fossem
escritos em Tupi, tal produção literária servia como instrumento crucial não apenas
para a conversão do chamado “gentio” ao cristianismo, mas para a produção de sua
alma. Em seu artigo, Hansen diz que essa poesia em tupi “se apropria da oralidade
selvagem descontextualizando suas significações” (HANSEN, 2006, p. 18).

No Auto de S. Lourenço (1592), continua o teórico, os personagens-demônios


têm os mesmos nomes dos chefes indígenas que guerrearam contra os portugueses
na chamada Confederação dos Tamoios, Aimbirê e Guaixará. Além dessa identificação
direta, outro elemento simbólico associa a cultura indígena ao demônio: no auto,
somente Aimbirê e Guaixará falam em tupi. Ora, se a construção das representações
sociais de determinado grupo étnico se baseia no “tornar o estranho familiar”,
quando se trata de substituir um conjunto de representações por outro − na relação
colonizador-colonizado − o processo se dá pelo inverso, ou seja, a imposição se
baseia no “tornar estranho o familiar”. É isso o que se quer dizer quando Hansen diz
que a poesia em tupi “descontextualiza as significações” da cultura indígena.

Além dessa ressignificação, digamos, personificada, uma mais poderosa estava


em ação, pois lidava com a ressignificação dos elementos profundos da estrutura
social das representações tribais. Segundo João Adolfo Hansen, o jesuíta “se apropria
estrategicamente de termos tupis para reclassificá-los por meio de noções cristãs”
(HANSEN, 2006, p. 19). Assim, diz o autor:

O termo Tupána, Tupã, que em tupi era o nome genérico de ruídos da


natureza, como trovões, e que passa a ser usado significando nada menos
que a substância metafísica incriada de uma das Pessoas da Trindade, Deus-
Pai. Caso de anhagá, termo que nomeava espíritos do mato, apropriado
como nome unificador da ausência de Bem, o diabo cristão. Ou de ánga,
princípio vital, reclassificado com o nome para o princípio cristão de
unidade e coerência espirituais da pessoa, a alma (HANSEN, 2006, p. 19).

Dessa forma, o indígena sofria uma completa reestruturação de sua


utensilagem mental que, aos poucos, ia tornando-o tão europeu quanto
qualquer outro europeu − ao menos mentalmente.
O termo utensilagem mental é utilizado por João da Rocha Pinto
(2002, p. 13), em seu artigo “O olhar europeu: a invenção do índio bra-
sileiro” para referir-se aos modelos mentais de representação social, de
cultura.

88 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Quanto à mudança dos modelos estruturais, João Adolfo Hansen diz que
a produção da alma do “gentio” era eficaz quando o próprio “eu” do enunciado
dos versos se confunde com o “eu” da enunciação. O “eu” do poema recitado, do
texto memorizado para a representação do auto, era o “eu” de uma pessoa católica,
“dotada de interioridade anímica, memória do Bem e culpa do mal” (Hansen, 2006,
p. 20). Obrigados a recitar o poema ou a ditar o texto, esse “eu católico” ia sendo
assimilado pelo eu que recitava/ditava. Hansen diz que, ainda que fosse escrito em
tupi, o poema impunha, através da metrificação em redondilha menor, “uma medida,
uma acentuação, um sistema de pausas, um ritmo e, principalmente, a forma de
uma respiração católica” (Hansen, 2006, p. 20), que submete a própria dicção do
indígena, transformando-a, ressignificando-a, gerando no “gentio” uma “memória
artificial” através da qual passa a enxergar os de sua etnia e a si mesmo.

Dessa forma, diz o estudioso, os valores do colonizador se impunham de


maneira não simplesmente ideológica, como um conjunto de conceitos abstratos
que o colonizado assume, mas “produz simultaneamente o corpo, a percepção, a
respiração, a alma e os valores católicos” (Hansen, 2006, p. 21), europeus, portanto,
ou seja, “catequiza o tupi materialmente na sua própria língua” (Hansen, 2006, p.
21), porque impõe sobre o indígena um comportamento diretamente vinculado ao
sermo cristianus, construindo sobre si outra identidade, que se manifesta, inclusive,
na recusa de si e na tentativa de ser o outro.

Diz Darcy Ribeiro (1995), em seu livro O povo brasileiro:

O ser normal [dessa comunidade que se formava no Brasil] era aquela


anomalia de uma comunidade mantida em cativeiro, que nem existia
para si, nem se regia por uma lei interna do desenvolvimento de suas
potencialidades, uma vez que só vivia para os outros e era dirigida por
vontades e motivações externas, que o queriam degradar moralmente e
desgastar fisicamente para usar seus membros homens como bestas de
carga e as mulheres como fêmeas animais.

[...] [Na empresa escravista], qualquer povo é desapropriado de si, deixando


de ser ele próprio, primeiro para ser ninguém (...); depois, para ser o outro.
(RIBEIRO, 1995, p. 117-118. Grifo nosso).

Quando um professor, portanto, diz que seu estudante “não sabe falar”, está,
portanto, perpetuando essa mesma condição de domínio herdada da colonização,

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 89


posto que ele, o professor, acredita que é preciso ensinar-nos uma língua que, na
verdade, pertence ao outro, enquanto nossa língua é rebaixada e rechaçada das au-
las, transformando-se em motivo de chacota entre os profissionais da língua, entre
os usuários da língua. Nossa língua é, quando muito, um “dialeto”, quando pior: um
erro, um desvio do padrão, linguagem coloquial, popular. Segundo Marcos Bagno,
em entrevista à Revista Caros Amigos, isso é “fruto do nosso processo colonial,
a tentativa das nossas elites desde sempre de se afastar do vulgo, do populacho,
da negraiada, da indiada e criar uma casta branca superior, europeizada” (BAGNO,
2008, p. 34).

A África ensinando a gente é um livro organizado por Paulo Freire e Sérgio


Guimarães onde constam várias entrevistas com intelectuais, escritores e professores
envolvidos no processo de alfabetização em língua portuguesa na Angola, Guiné
Bissau e São Tomé e Príncipe. Um dos entrevistados é o próprio Paulo Freire, para
quem:

Do ponto de vista do colonizador, os colonizados não tinha história antes


da sua chegada à terra dos colonizados. Nesse sentido, os colonizados
deveriam agradecer aos colonizadores o fato de eles terem posto os
colonizados na História. Da mesma forma, os colonizados não tinham cultura
antes da chegada dos colonizadores. A língua dos colonizados sempre foi
chamada de dialeto, e dialeto feio e pobre. Só a língua do colonizador é
uma língua que tem possibilidades históricas, que tem flexibilidade para
expressar a ciência, a técnica e as artes. A arte do colonizado é folclore, a
arte do colonizador é cultura (FREIRE, 2003, p. 43-44).

Uma história da “burrice” – entendida a partir do critério da língua –, portanto,


é a história da colonização, a História do Ensino de Língua Portuguesa como
instrumento de exclusão social, a “lenta afirmação de uma cultura portuguesa
no Brasil” (Wehling, A., 1999) e (Wehling, M. J.,1999), o sufocamento das culturas
autóctones (nativos) dos povos que já estavam no Brasil e dos povos africanos que
para cá vieram escravizados.

Arno Wehling e Maria José Wehling, no livro Formação do Brasil Colonial,


apresentam que havia um “condicionamento social e político na cultura colonial.
Uma sociedade [...] voltada para fora, valorizando a cultura europeia como o

90 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


padrão a atingir” (Wehling, A., 1999) e (Wehling, M. J.,1999), gerando, assim, uma
“cultura literária voltada para a simples reprodução e, sobretudo livresca, na qual
se desprezavam a realidade circundante e a experiência, a favor do que diziam os
livros” (WEHLING, A.,1999) e (WEHLING, M. J., 1999). Em Retrato do Colonizado,
Albert Memmi (2007), nascido na Tunísia sob o poder francês, escreve um relato
revelador disso. Segundo ele:

Se eu era inegavelmente um nativo, como então se dizia, tão próximo


quanto possível do muçulmano em função da insuportável miséria de
nossos pobres e da língua materna [...], a sensibilidade e os costumes, o
gosto pela mesma música e pelos mesmos perfumes e a cozinha quase
idêntica me levaram a tentar apaixonadamente me identificar com o francês.
Em um grande impulso que me levava na direção do Ocidente, que me
parecia o modelo de qualquer civilização e de qualquer cultura verdadeira,
voltei alegremente as costas ao Oriente, escolhi irrevogavelmente a língua
francesa, vesti-me à italiana e adotei com deleite até mesmo os tiques dos
europeus. [...] [Tal] constitui o esqueleto de toda sociedade colonial. Nós
nos víamos apenas um degrau acima de nossos concidadãos muçulmanos.
Nossos privilégios eram irrisórios mas bastavam para nos dar um pequeno
e vago orgulho e para nos fazer ter a esperança de não sermos mais
assimiláveis à massa dos colonizados. (MEMMI, 2007. p. 19)

Ora, é a mesma condição do intelectual no Brasil colonial – e que se perpetua


até hoje. E como se legitimam os tais privilégios desta “elite” de que fala Memmi
em seu relato? “Só há um meio”, diz ele, “rebaixando o colonizado para engrandecer
a si mesmo, recusando aos nativos a qualidade de homem” (Memmi, 2007, p. 29),
chamando-o de “burro”, fazendo com que ele se autorreconheça como um “bruto”,
tal como Fabiano, na narrativa de Graciliano Ramos.

Em meu livro A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire: considerações


sobre alfabetização e letramento, na seção “Cultura letrada e exclusão social”,
da Unidade III, recupero a fala de Antonio Cândido em sua “literatura de dois
gumes”, segundo o qual, o intelectual, na colônia, é “peça eficiente do processo
colonial”. Quando o livro, monumento de toda e qualquer língua com tradição
escrita, se impõe sobre a massa de iletrados da sociedade colonial, o impacto dessa
imposição é devastador. Ocorreu “uma supervalorização da cultura livresca (cultura
do dominador) em detrimento de uma cultura local mais ligada à oralidade e às

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 91


práticas sociais dos indígenas e mestiços que formavam (e ainda formam) a maior
parte da população brasileira” (MACKELLENE, 2013, p. 80).

Portanto, continha, o livro, aquilo que deveria ser considerado verdade –


inclusive com o capital simbólico de que gozava a Igreja Católica, delegando à Bíblia
a legitimidade sobre toda a verdade a respeito da origem e do sentido do homem
no universo; em detrimento das mitologias indígenas ou africanas. Tudo o que
deveria ser considerado verdadeiro, por todos, estava ali, no papel. Não foi difícil
deduzir daí que tudo o que não estivesse no papel era, lógica e “naturalmente”,
falso. Por extensão, os textos, impressos em língua portuguesa, davam à língua do
colonizador o status de certa, em detrimento das línguas indígenas e africanas.

Ítalo Calvino, num artigo intitulado “A palavra escrita e a não-escrita”, defende


a ideia de que:

O homem que não dominava a leitura podia ver e escutar muitas coisas
que hoje não somos capazes de perceber: a trilha dos animais selvagens
que caçava, os sinais da aproximação de vento ou chuva. Ele podia saber
as horas do dia pelas sombras das árvores ou as da noite pela posição das
estrelas no horizonte. E no que respeita à audição, ao olfato, ao paladar e
ao tato, sua superioridade em relação a nós é inquestionável. (CALVINO,
2000, p. 143-144).

Como todas essas habilidades não serão consideradas como “conhecimento”


pela empresa colonial, sobre esse homem pouco afeito (acostumado) à cultura letrada
– “naturalmente” excluído dela – pesa a peja de “burro”, de “bruto”, em contraposição
aos conhecimentos (dito) refinados da cultura europeia e sua língua, no caso, o
português. Eram, na visão de Sérgio Buarque de Holanda (1995), em seu livro Raízes
do Brasil, “dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas
mentalidades que se opunham como ao racional se opõe ao tradicional, ao abstrato
o corpóreo e o sensível” (HOLANDA, 1995, p. 78).

Ainda hoje, no âmbito do senso comum – e, ao contrário do que se possa


pensar, reconhece-se a presença desse senso comum facilmente em professores
universitários, escritores e pesquisadores – a noção de “inteligência” encontra-se
muito atrelada, ainda hoje, à “falar bem”. Essa noção pôde ser construída entre nós,

92 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


brasileiros, desde os primeiros séculos de colonização, com o Barroco, por exemplo,
através da linguagem rebuscada de um Padre “Antonio Vieira, que, na percepção de
Arno Wehling, aperfeiçoou e produziu, no Brasil colonial, o padrão de língua culta”
(Wehling, A., 1999) e (Wehling, M. J.,1999), associando esse “falar bem” à “falar de
acordo com a norma padrão da língua”, mito hoje amplamente derrubado pelos
estudos da sociolinguística.

Contudo, se a noção de que “inteligente” é aquele que “fala bem” nasce com o
Barroco, aprofunda-se entre nós no Parnasianismo, que prezava por uma linguagem
rebuscada ao extremo, criando figuras de linguagem supervalorizadas à época como
as inversões do Hino Nacional, os hipérbatos, a sínquise, os anacolutos, ou criando
um sistema de valoração e classificação das rimas de um poema (rima pobre, rima
rica, rima cara, rima preciosa), supervalorizando as formas linguísticas abstratas e
claras, como se pode ler no poema “Profissão de fé”, de Olavo Bilac:

[...] Corre; desenha, enfeita a imagem,


a ideia veste:
Invejo o ourives quando escrevo: cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
imito o amor azul-celeste.
com que ele, em ouro, o alto relevo
faz de uma flor. Torce, aprimora, alteia, lima
a frase; e, enfim,
Imito-o. E, pois, nem de Carrara no verso de ouro engasta a rima,
a pedra firo: como um rubi.
o alvo cristal, a pedra rara,
o ônix prefiro. Quero que a estrofe cristalina,
dobrada ao jeito
Por isso, corre, por servir-me, do ourives, saia da oficina
sobre o papel sem um defeito.
a pena, como em prata firma
corre o cinzel. [...]

(BILAC, 1997, p. 149)

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 93


Saiba mais

Parnasianismo é uma escola literária que surgiu na França em meados


do século XIX, que tinha como objetivo a criação de “poesias perfeitas”,
valorizando a forma e a linguagem culta, e criticando o sentimentalismo
do Romantismo.
Leia mais em: http://www.significados.com.br/parnasianismo/

O hipérbato se refere a uma inversão brusca da ordem dos termos de


uma oração. Leia mais em: http://www.normaculta.com.br/hiperbato/

Sínquiseuma figura de linguagem.Um recurso que aumenta a expres-


sividade e o teor artístico da mensagem. Refere-se a uma inversão des-
mesurada e violenta da ordem dos termos de uma oração, havendo uma
total desconstrução

Há de se perceber o uso constante de palavras pouco usuais – outra característica


do parnasianismo –, tais como “ourives”, “ônix”, “cinzel”, “cinge-lhe”, “engasta”, ou a
referência específica à Carrara, notável cidade italiana famosa pela qualidade do
mármore branco que exporta ainda hoje e que, à época do poema, só era conhecida
pelo grupo seleto da elite letrada.

A recorrência a palavras pouco usuais – um objetivo do poeta parnasiano –


agregou à noção de “inteligência” atrelada à “falar bem” um novo valor. “Inteligência”
passou a confundir-se com “falar difícil”.

Através do Ensino de Língua Portuguesa influenciado por essas falsas


concepções, e que passa a apresentar a Norma Padrão da Língua não simplesmente
como um “ideal” de língua a ser seguido, mas como a única língua possível –
quando, por exemplo, chama todas as outras variantes da língua portuguesa no
Brasil de ilógicas –, estabelece-se o que Arno Wehling (1999, p. 289) chamou de
“supremacia do poder real pela suntuosidade e magnificência”, o modelo de língua
passou a se basear pelas “formas rebuscadas, tortuosas, de difícil concepção e
acabamento”, estabelecendo, portanto, “o primado da cultura”, uma concepção
“refinada, orgulhosa de si, preocupada em brilhar pela grandiosidade da forma,
[que] não buscava impressionar o espírito do observador pela sutileza: agredia-o
pelos sentidos”.

Estabelece-se uma fissura, um fosso entre letrados e iletrados, entre Imortais e


analfabetos. Reforça-se a língua portuguesa como instrumento de exclusão social.
O Ensino de Língua Portuguesa passa a cumprir uma função política como a que

94 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


Bourdieu, em seu livro O poder simbólico, explica como “instrumento de imposição
ou de legitimação de uma classe sobre outra (violência simbólica)” (BOURDIEU,
2007, p. 11).

A lei do Diretório
Em 1755, foi elaborada a Lei do Diretório dos Índios, publicada em 1757 e
estendida a todo o território nacional em 1758. O objetivo desta lei, assinada pelo
ministro do rei D. José I, de Portugal, Marquês de Pombal, era “modernizar” o país. Ela
extingue o trabalho missionário dos jesuítas, elevando aos aldeamentos à condição
de vilas e obrigando os indígenas a terem nomes portugueses, proibindo a nudez,
as habitações coletivas (cunhadismo) e o uso da língua brasileira – as chamadas
“línguas gerais” – sob punição de morte para quem a desacatasse. A lei do diretório
foi o primeiro ato legal oficial no sentido de legitimar a exclusão social que o Ensino
de Língua Portuguesa passou a representar.

O cenário linguístico do país quando da aprovação da lei era muito mais


diversificado que hoje. De acordo com Aryon Dall’Igna Rodrigues(1986), em seu
livro Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas, falam-se
hoje cerca de 170 línguas indígenas. O Seminário Íbero-Americano de Diversidade
Linguística, que aconteceu em novembro de 2014, apontou que em 500 anos o
Brasil perdeu mais de 1.000 línguas indígenas. Muitas línguas africanas também são
faladas hoje no Brasil: o iorubá, o quimbundo, o banto etc., mas, de acordo com
Maria Adelúcia dos Santos, em seu Trabalho de Conclusão de curso - TCC, intitulado
“O aporte lexical africano na formação do português do Brasil”, já foram mais de
300. Além dessas línguas, falavam-se outras línguas europeias no território nacional:
o italiano, o alemão, o holandês, o francês.

Darcy Ribeiro, em seu livro O Povo Brasileiro, menciona que durante muito
tempo não se soube se o Brasil seria colônia da França ou de Portugal, deriva daí a
influência da cultura francesa em algumas manifestações populares principalmente
do Nordeste, como as quadrilhas juninas, em que se podem encontrar expressões
advindas do francês: anarriê, alavantur etc. Contudo, outras línguas, menos comuns,
no entanto, podem ser encontradas no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, há um
bairro inteiro, o bairro da Liberdade, em que os moradores em sua totalidade falam
japonês, inclusive, o texto “As outras línguas da colonização do Brasil”, também de
Aryon Rodrigues (1986), aponta o japonês como a segunda língua mais falada no
Brasil hoje, são mais de 400.000 falantes. Há localidades, porém, do interior da Bahia,

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 95


principal destino dos Malês, negros islamizados da África que foram trazidos pra
cá como escravos, em que até hoje se fala árabe. Em Sobral-CE, há um bairro na
periferia da cidade chamado Sumaré com uma forte incidência dos ciganos, que são
bilíngues, falando o português e sua língua peculiar, o romani.

O desconhecimento de toda essa realidade linguística, que mostra o quanto


nosso país é pluricultural só reforça o discurso da hegemonia da língua portuguesa
que começou justamente com a Lei do Diretório de 1757. Naquele momento, as
principais línguas faladas no Brasil eram as chamadas “Línguas gerais”, o nheegatu,
no Sul e Sudeste, e o abanheenga, no Norte e Nordeste. Arno Wehling cita um
texto de Padre Antonio Vieira escrito na metade do século XVII que “a nativa
língua portuguesa não era mais geral entre nós do que a brasílica” (1999, p. 284).
Cita os historiados que o bandeirante Domingos Jorge Velho, apresentando-se
ao governador da Bahia para tratar do combate ao quilombo dos Palmares, teve
de se entender com a autoridade por meio de um intérprete, por não dominar o
português. O Édito de Pombal que anuncia a lei, citado por Nícia de Andrade Verdini
Clare, em seu artigo “Ensino de língua portuguesa: uma visão histórica” aponta que:

Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que


praticaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o
seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é o meio dos mais
eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos
costumes [...], ao mesmo passo [em que] se introduz neles o uso da língua
do Príncipe que os conquistou. [...] [substituindo] o uso da língua, que
chamamos geral, invenção verdadeiramente abominável e diabólica. [...]
Para desterrar este perniciosíssimo abuso, será um dos primeiros cuidados
dos Diretores estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua
portuguesa, não consentindo, por modo algum, que os meninos e meninas,
que pertencem às escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de
instrução nesta matéria, usem da língua própria das duas nações ou da
chamada geral, mas unicamente da Portuguesa. (In: CLARE. Acesso em
23/04/2015. p. 7-8).

Empurrados para os sertões, os falares gerais foram, pouco a pouco, adaptando-


se às circunstâncias sociais e ao peso padronizador das escolas que, após a lei,
foram surgindo. “Nas cidades litorâneas, só se falava a língua dos colonizadores, que
representava fator de status” (CLARE, acesso em 23/04/2015. p. 8). Mário Marroquim

96 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


(1996, ed. original de 1934) diz, em seu livro A língua do nordeste, apontou vários
traços do português falado no nordeste e que facilmente podem se encaixar na
concepção preconceituosa de “língua errada”: a nasalização ou simplificação
dos ditongos átonos, a metástase de alguns fonemas (como em “pregunta”, que
virou “pergunta”, ou “vidro”, que hoje pode ser encontrado na forma “vrido”, ou
“pedra” para “preda”) etc. Dentre esses fenômenos, Mário Marroquim destaca a
transformação das fricativas “v” (de “vaca”), “z” (de “mesmo”) e “j” (de gente) em
fricativas glotais “rr” (como em carro). Segundo ele, é essa característica que torna
possível o aparecimento de uma frase como *“lerrei uma carreira duma raca réa lá
em riba da ribancêra”. Seriam “burras” as pessoas que falam assim? Será esse um
traço de “burrice”?

É a língua portuguesa funcionando aqui como um verdadeiro instrumento


de exclusão social.

A atual prática docente de Língua Portuguesa


Uma parte dos relatórios dos estagiários de ensino de língua portuguesa de
Santana do Acaraú, segundo pudemos observar lendo os relatórios, percebe o quão
prejudicial e ineficaz tem sido a prática tradicional do ensino de língua e, partindo
dessa consciência, busca estratégias diferentes para o ensino: umas vezes utilizando
o lúdico ( jogos, advinhas, trava-línguas, brincadeiras de roda etc.); outras vezes,
utilizando estratégias de leitura e debate sobre textos dos mais diversos gêneros
e estilos, sempre sob a perspectiva de desenvolver no estudante a competência
comunicativa e o bom desempenho com a língua, falada ou escrita.

Fatalmente, boa parte deles ainda não conseguiu superar o método tradicional
e insiste principalmente em apresentar conteúdos considerados, em debate na sala
de aula, como inúteis: a classificação das sílabas das palavras quanto à acentuação
(em proparoxítonas, paroxítonas e oxítonas) e a classificação dos encontros
vocálicos (em ditongo, tritongo e hiato), por exemplo. Alguns estagiários chegavam
ao extremo de trabalhar ainda o “detalhamento da estrutura das palavras” (em
Morfemas, Afixos, Desinências, Vogais Temáticas, Vogais e Consoantes de Ligação);
conteúdos extremamente técnicos cujo domínio apenas os técnicos da língua,
professores de língua portuguesa e linguistas, é que precisam ter; justo por se tratar
de um conhecimento paralinguístico, metalinguístico, utilizado como forma de

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 97


tentar explicar como a língua funciona através da mera classificação de fragmentos
seus, métodos que não tem surtido efeito benéfico para o ensino de qualquer língua
natural.

Outros ainda apelavam para as famigeradas listas de conjugação verbal,


montando, para eventuais consultas, os afamados “Cadernos de Conjugação”,
que em minha época de estudante consultávamos e estudávamos, meus colegas
e eu, como uma tabuada ou caderno de catecismo, às vésperas da arguição da
severa Tia Conceição. Alguns estudantes, no entanto, diante da necessidade de
reformular a metodologia utilizada, concentrando-se na prática da escrita e da
leitura, caíram na armadilha de utilizar o que Marisa Lajolo (1986) chamou de “O
texto como pretexto”, em que estudantes são solicitados, logo depois de lerem
um texto qualquer, a “destacar os verbos de cada período [do texto] e os classificar
em simples e compostos”; ou a “circular [no texto] todas as palavras que liguem
termos de uma mesma oração”. Outros negligenciaram a sutileza do lúdico e
caíram na armadilha de usá-lo também como pretexto, como forma de dar uma
nova roupagem ao antigo método de decorar nomenclaturas e conceitos da
gramática normativa, como sugere o trecho a seguir retirado de um dos relatórios.

Após as explicações, chegamos a um momento muito esperado pelos


alunos desde o início da aula, quando expliquei sobre as atividades que
seriam realizadas: a dinâmica “dança das cadeiras”. Após organizar as
cadeiras em círculo no centro da sala, pedi para que um aluno vendasse
os olhos e ficasse perto do aparelho de som para parar a música.
Distribuímos a turma em dois grupos. O primeiro grupo organizou-se
em círculo em volta das cadeiras, e quando a música começou a tocar
giravam e esperavam a música parar. O aluno que não encontrasse sua
cadeira deveria responder qual a figura de linguagem correspondente a
uma frase lida por mim; se respondesse certo teria uma chance de voltar
à brincadeira.

“Lúdico” adj. Relativo a jogos, brinquedos e divertimentos; do Latim “Ludus, -i”


subst. m. I − Sent. próprio: 1) Jogo, divertimento, passatempo. No plural: 2) Jogos (de
caráter oficial ou religioso), jogos públicos, representações teatrais. Por extensão: 3)
Escola, aula. II − Sent. figurado: 4) Brinquedo, gracejo, graça. 5) Zombaria, escárnio. 6)
Prazeres (da mocidade).

Essa estratégia indispensável da pedagogia moderna é, por si mesma, uma

98 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


faca de vários gumes, como é possível observar buscando o sentido etimológico
de “Lúdico”. É preciso, antes de tudo, saber quais dinâmicas cabem a tais conteúdos
e porquê aquelas e não outras dinâmicas devem ser utilizadas. É preciso estudar a
dinâmica, analisá-la, refletir sobre ela e verificar se não existem dinâmicas melhores
a serem associadas àquele conteúdo específico. Não se deve perder nunca de vista
que o sentido pedagógico do lúdico é assegurado como necessidade da práxis, ou
seja, do jogo, do brinquedo (só aparentemente inocente) que vai guiar o estudante
a um conhecimento, à reflexão, à construção de um conceito (ou de conceitos)
abstrato(s) sobre o conteúdo diluído naquela prática lúdica.

A ludicidade, bem aplicada em sala de aula auxilia na construção do saber


por conta de seu caráter prático, ou seja: a partir do manuseio do objeto a ser
compreendido, assimilado, analisado, o estudante vai construindo um conhecimento
(abstrato) sobre o objeto que manuseia (concreto); e aqui o lúdico se mostra
extremamente valioso. Aplicado, entretanto, sem planejamento e sem reflexão, o
lúdico corre o risco de aparecer como pretexto para dar continuidade a práticas
pouco produtivas, como a citada no trecho acima.

Observe que o ato de “responder qual a figura de linguagem correspondente


à frase lida” pelo estagiário está diretamente associado ao fato de o estudante não
encontrar sua cadeira, o que desde já se configura como um ato de repressão, de
obrigatoriedade, quase que como um castigo pela sua falta de agilidade.

A atitude metodológica que sugerimos é a de urgente reflexão sobre o


mundo, sobre o homem, sobre si, sobre a comunidade, sobre a humanidade, sobre
a verdade, sobre os discursos, a partir da reflexão e do debate a respeito da língua
com a qual falamos e escrevemos. Somos da opinião de que o exercício proposto
pelo estagiário não trabalha outra faculdade humana que não a memorização das
definições, das nomenclaturas, das figuras de linguagem e da gramática tradicional.

Agora, comparemos esse exercício a outro exercício relatado por outro


estagiário:

Pedi aos alunos que tentassem definir a palavra “verbo”. Nesse momento,
eles ficaram calados e não quiseram participar. Assim, fizemos uma
apresentação [prática] do conteúdo: a sala foi dividida em dois grupos.
Depois, cada membro da equipe, um de cada vez, deveria vir à frente da
sala, pegar em um saquinho uma ficha com uma ação descrita e, através

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 99


de gestos, fazer com que a sua equipe descobrisse que verbo era esse. As
equipes iam participando e se divertiam muito, ficaram mais desinibidas e
à vontade.

Observe que o estagiário aqui começou o exercício fazendo como que um


último teste para comprovar (talvez pela última vez) − como que tirando a prova
dos nove − que o método de trabalhar a teoria antes da prática (ou mesmo o da
teoria sem a prática) não funciona. O silêncio dos estudantes como resposta nos
autoriza a dizer isso. Diante dessa prova incontestável, o professor põe em execução
uma dinâmica que parece ter sido pensada especificamente para aquele exercício.
Veja que, mesmo com o objetivo de conceituar e definir a nomenclatura “verbo”, o
estagiário se preocupou em partir da práxis para a teoria e não o contrário, o que
costuma-se ver nas aulas de língua portuguesa, cujos métodos de ensino ainda
estão presos aos métodos tradicionais (não que os métodos tradicionais sejam de
todo ruins. Não. Mas há de se convir que ele não é o único em que o professor
precisa dominar várias técnicas se desejar cumprir bem o seu papel).

O lúdico aqui não passa apenas de uma nova camada de verniz sobre a
madeira desgastada do método tradicional. Ele aparece entrelaçado a um objetivo
específico: levar os estudantes à percepção do que é um verbo através da práxis, ou
seja, através da própria experiência, do exercício prático, da vivência com o objeto,
do jogo, do lúdico.

Claro é que o conteúdo − o de conceituar “verbo” − mesmo aí, ainda se


vincula à gramática de nomenclaturas; contudo é preciso lembrar a reflexão de
Bechara (2002), segundo a qual não podemos simplesmente abolir totalmente e
tão bruscamente a gramática de nomenclaturas da sala de aula, já que ela ainda é
cobrada em concursos, em vestibulares (em escala cada vez menor). Mas o exercício
desenvolvido pelo estagiário, desde já, se configura como uma reformulação
vitoriosa da velha metodologia do ensino tradicional.

É interessante a falta de manejo que alguns estagiários apresentam com as


dinâmicas. Veja, por exemplo, este caso relatado em outro trabalho:

100 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


A classe estava toda em silêncio esperando minha entrada. Cheguei à mesa
e pedi para que um aluno me ajudasse a colar alguns cartazes. Esses cartazes
continham um resumo da matéria que seria estudada −verbos: voz ativa, passiva e
1
reflexiva.

Ao ver os cartazes, alguns alunos reclamaram. Diziam que os verbos eram


muito difíceis e que não serviam para quase nada. Expliquei que, no decorrer da aula,
essa visão seria mudada, que os verbos eram muito importantes para a compreensão
2
da linguagem, da leitura e escrita, processos essenciais para a própria inserção do
cidadão na sociedade.

Procurei iniciar as explicações criando um clima em que os alunos se sentissem


à vontade e pudessem manifestar suas opiniões sobre o conteúdo estudado.
Acreditava que esse ambiente seria necessário para que os alunos fossem os próprios
construtores do conhecimento, sujeitos de sua aprendizagem. Como o assunto era os
3
verbos na voz ativa, passiva e reflexiva, procurei primeiramente apresentar exemplos
do que seria uma ação ativa, uma passiva e uma reflexiva. Apresentei algumas
ilustrações e exemplos do cotidiano. Os alunos também ajudaram.

Depois disso, entrei no assunto, explicando o conteúdo proposto. Os alunos


prestaram muita atenção. Parti então para alguns exercícios, mesmo sob a reclamação
dos alunos. Para facilitar um pouco, expliquei as questões propostas. Notei que a
turma estava meio distante, que os exercícios escritos não eram do agrado da maioria
4
dos alunos que viam neles, segundo suas próprias palavras, uma atividade chata e
cansativa.

Após a conclusão dos exercícios, pedi para que alguns alunos fossem ao
quadro-negro e respondessem as questões. Enquanto isso, alguns alunos brincavam
e conversavam no fundo da sala. Percebi que era preciso desenvolver metodologias
5
mais criativas que realmente conseguissem chamar a atenção dos alunos.

Então, para quebrar o clima de rotina instaurado na classe com os exercícios


propostos, consegui um aparelho de som e um CD na própria escola. Fiz uma bola
de papel com algumas perguntas sobre o tema estudado e realizei uma dinâmica
em que a bola era passada entre os alunos em círculo. Onde a bola parasse, com a
interrupção da música, o aluno teria que responder a pergunta e, se errasse, pagaria 6
uma prenda, saindo da brincadeira. Foi uma dinâmica muito divertida. Notei que os
alunos voltaram a se interessar pela aula.

Depois da dinâmica, fiz uma revisão do que havíamos estudado. Em seguida,


realizei um debate pedindo a opinião dos alunos sobre o conteúdo e a aula. Eles
disseram que a aula foi boa, principalmente com a dinâmica. Também disseram que
sentiam um pouco de dificuldade quanto à conversão das vozes verbais e confirmaram
que precisavam treinar mais. Não gostaram dos exercícios propostos que pareciam
7
bem normais e cansativos. Mas gostaram muito das explicações iniciais com exemplos
da realidade.

Despedi-me dos alunos e agradeci a todos. 8

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 101


Resolvemos manter todo esse depoimento porque ele é o exemplo claro do que
acontece no trabalho cotidiano dos professores que ainda se limitam aos métodos
tradicionais de ensino, mesmo que reconheçam a necessidade de mesclá-los a
outros métodos. Demonstra, antes do desinteresse dos estudantes pelo conteúdo,
seu desapontamento pela maneira como o conteúdo é “repassado” em sala. Além
disso, mostra como o professor sente e entende (porque “sentido” vem de “sentir”
e, portanto, só se entende deveras aquilo que se pode sentir na pele) o quanto
os métodos tradicionais são ineficazes, e o quanto se angustia com isso. Mostra
também a falta de habilidade do estagiário em lidar com o lúdico em sala de aula.
Analisemos esse trecho de maneira mais pormenorizada.

O silêncio com o qual a turma recebeu o estagiário é antes pela expectativa


que por respeito. E isso é bom. É extremamente significativo que esse estado de
expectativa seja cultivado no estudante por vários momentos ao longo da aula,
porque isso faz com que eles se mantenham atentos ao que será discutido em
sala; não apenas pelo professor, diga-se de passagem. Os alunos devem ser sujeitos
de sua aprendizagem e, portanto, devem falar, discutir também, expressar suas
opiniões. Assim se sentem valorizados e mais dispostos a participar da aula. Isso
pode ser verificado até mesmo neste depoimento. Perceba que os alunos, no
parágrafo “4”, estavam, nesse momento, atentos à aula, posto que havia pouco sua
ajuda fora solicitada (relatado no final do parágrafo “3”). Perceba ainda que logo que
se deram conta do conteúdo da aula, protestaram, já que a estagiária dera, e com
razão, liberdade para tanto. Como os protestos foram inúteis, a única reação dos
estudantes foi justamente abster-se da aula. Justo o que é relatado adiante, “Notei
que a turma estava meio distante, que os exercícios escritos não eram do agrado
da maioria dos estudantes, que viam neles, segundo suas próprias palavras, uma
atividade chata e cansativa”; o que continuou pelos momentos seguintes (parágrafo
“5”).

Casos de desinteresse do aluno como esse se repetem e são expostos em al-


guns relatórios. Entretanto, o que se percebe no geral é que, mesmo diante desse
quadro de desinteresse, o estagiário prefere seguir em sua prática didática, dar se-
guimento ao seu plano de aula, concluir o conteúdo que havia previsto e separado
para essa aula. Fica evidente aqui, portanto, a velha concepção de sala de aula em
que o conteúdo é tido como a coisa mais importante, em detrimento mesmo do
aluno, como se o objetivo fosse o repasse do conteúdo a qualquer custo, por cima
de qualquer condição, elevando isso ao nível da esclerose de todo o processo edu-
cacional e à esquizofrenia do ambiente escolar e, consequentemente, ao fracasso
do ensino e, infinitamente mais grave, do aluno. Como se o importante não fosse
a educação, a formação do indivíduo. Como se a função do professor fosse o de

102 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


repassar conteúdos e não construí-los com o aluno, e não o de também ensiná-lo
a viver.

Saiba mais:

Esclerose: Endurecimento do tecido do organismo, normalmente de


causas patológicas; rigidez.

Note que o estagiário do caso acima relatado, diante do desinteresse do aluno,


percebe que é “preciso desenvolver metodologias mais criativas que realmente
consigam chamar a atenção dos alunos”; ao que ele arrisca uma dinâmica. Veja que
a dinâmica desenvolvida pelo estagiário, apesar de suas boas intenções, é bastante
semelhante à “dinâmica das cadeiras” que analisamos há pouco. Responder à
pergunta agora estava associado não a castigo, mas ao azar de ter sido naquele e
não naquele outro aluno que a bola teria parado.

Analisando profundamente a prática desse estagiário, podemos


observar outros pontos igualmente preocupantes.

Observe que, no momento relatado no parágrafo “2”, o estagiário se depara


com a opinião (dos alunos) de que aquele conteúdo (verbos: voz ativa, passiva e
reflexiva) é muito difícil e “não serve para [quase] nada”. Opinião essa que o estagiário
rechaça com um argumento que mesmo Rubem Alves chamaria de “vil”, posto o seu
grau de abstração com relação aos alunos: “os verbos são muito importantes para
a compreensão da linguagem, da leitura e da escrita”, como se repetisse algo que
lhe fora dito muitas e muitas vezes até que se tornasse uma verdade absoluta, como
um reflexo condicionado, ao ponto dessa verdade poder ser tomada pelo estagiário
como um argumento irrevogável, inquebrantável, incontestável, inquestionável.

Ora, esse argumento é de tal forma frágil que não se sustenta quando,
simplesmente, perguntamos “por quê? Por que ‘verbos são muito importantes
para a compreensão da linguagem, da leitura e da escrita’?” Estamos falando do
conceito de verbo ― que é do que trata a aula; afinal, o que está em questão são
os verbos ou as vozes verbais? Reformulemos a pergunta: por que definir a voz dos
verbos é “importante para a compreensão da linguagem, da escrita e da fala”? Esse
argumento demonstra ainda sua pretensão (frustrada, é o que nos mostra o resto
do relato) quando diz que “no decorrer da aula, essa visão [a visão dos alunos sobre
a inutilidade desse conteúdo] seria mudada” (parágrafo “2”).

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 103


No relato, no parágrafo “3”, note que, tendo já rechaçado a opinião dos
estudantes, o estagiário pretende retomá-la, inocentemente, conclamando-os para
tanto; diz acreditar que esse ambiente seria “necessário para que os estudantes
fossem os próprios construtores do conhecimento, sujeitos de sua aprendizagem”.
Mas que ambiente? O ambiente fora negado pelo estagiário no momento em que
rechaçou a opinião já expressa dos estudantes “sobre o conteúdo estudado” com um
argumento inclusive falho e extremamente frágil, sustentado apenas pela posição
privilegiada que o professor ocupa em sala de aula: a de “autoridade máxima”, como
dizem alguns relatórios.

Note que durante toda a aula relatada, em vários momentos, o estagiário


conclamou os estudantes para que dissessem o que pensavam sobre o conteúdo
da aula por ele ministrada, até o último momento (parágrafo “7”). E isso é louvável.
Raros são os casos de professores que se abrem para esse tipo de diálogo em que
não só o conteúdo, mas o próprio professor está em xeque. Mas o que o estagiário
conseguiu fazer com esses novos dados? Como ele pôde aproveitá-los?

O caso desse estagiário não é único dentre os relatórios analisados. Isso


demonstra, claramente e, portanto, a lenta transformação dos cursos de formação
dos professores de língua portuguesa. Eles sabem que o ensino de língua não
vai bem; sabem das drásticas consequências deste problema; sentem, até, essas
consequências; entendem que é urgente mudar; mas não sabem como.

Claro que a postura adotada por esse estagiário também é resultado de uma
postura assumida quase que inconsciente e coletivamente por indivíduos inseridos
num contexto social em que o professor é considerado, como diz a maioria dos
relatórios, “a autoridade máxima da sala de aula”; demonstrando confusão na
compreensão a respeito dos ditos “modelos” que os estudantes seguem, menos
por respeito e admiração que por obediência e medo, como relata o trecho “o
autoritarismo do professor consegue segurar o estudante, mantendo-o calado e
obediente como manda o ensino tradicional”; ou ainda “as filas dos estudantes para
entrarem na sala de aula”, o que mantém a tão desejada ordem; ou a “incondicional
obediência aos mestres e funcionários”.

Essa postura do professor é legitimada por um contexto social em que o


professor, uma vez visto como autoridade acha-se no direito de estabelecer como
ambiente propício à aprendizagem o slogan autoritário da “ordem, obediência e
respeito”, acrescendo cinicamente o termo “mútuo” para, logo em seguida, dizer
que, “embora reconheça reivindicações dos estudantes, acha difícil ministrar aulas

104 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


sem um completo domínio de sala, domínio esse que se estende, especialmente, aos
estudantes que devem sempre obedecer para seguir o planejamento elaborado”.

Desmascarando a atitude ditatorial do professor em tratar o estudante não


como sujeito do conhecimento, mas objeto de todo o sistema de ensino, tábua rasa
onde devem ser gravados a ferro em brasa os signos incautos dessa esquizofrenia
coletiva que é a escola que temos hoje, pois, segundo outro relatório, “a rigidez dos
planos de aula sempre se acomoda ao padrão mais convenientemente estabelecido;
apenas para a segurança do professor, não levando em consideração nem o interesse,
nem a atenção dos alunos”.

A confusão se instala de uma vez por todas quanto à compreensão e,


consequentemente, à aplicação do lúdico; quanto às estratégias de ensino de pontos
da gramática normativa, sempre necessária, como nos ensina Bechara (2002), quanto
ao uso do próprio texto em sala de aula. Itens que montam o que há de mais crucial
e essencial para o alicerce e a compreensão do que deve ser o ensino de língua
materna e de como ele deve ser conduzido na sala de aula.

GUIA DE ESTUDO

Esta seção apresenta uma série de problemas encontrados nas práticas


curriculares registradas nos relatórios analisados. Analise a sua própria
prática cotidiana em sala de aula tomando como base as análises desta
seção. Se você ainda não for professor(a), compare as práticas analisadas
com as práticas de seus professores do Ensino Básico ou mesmo do Ensino
Superior. Claro, você não precisará identificá-los. Se você for professor de
outra disciplina, concentre-se na prática, não no conteúdo específico.

A ideia é que, fazendo um paralelo entre as práticas analisadas e a


sua própria prática, você possa refletir de forma mais ampliada sobre o fazer
pedagógico e a prática de ensino em língua portuguesa.

A ideia é que, fazendo um paralelo entre as práticas analisadas e a


sua própria prática, você possa refletir de forma mais ampliada sobre o fazer
pedagógico e a prática de ensino em língua portuguesa.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 105


LEITURA OBRIGATÓRIA
Este ícone apresenta uma obra indicada pelo(a)
professor(a) autor(a) que será indispensável para a
formação profissional do estudante.
L
e
Propomos outro livro importante dentro dessa nossa
discussão, e que consta em nosso acervo bibliotecário, chama-
se A linguagem oral na educação de adultos, de Erasmo
Norberto Ferreyra. Nesse livro, o autor aborda os elementos que
entram em jogo no processo da comunicação para construir
certos sentidos e reações comunicativas, levando coisas pouco
consideradas como a expressão corporal dos falantes, ou a
compreensão de que a língua é muito mais do que um mero
meio de comunicação. Ela é o meio pelo qual o indivíduo
constrói sua realidade e se estabelece nela.

(FERREYA, Erasmo Norberto. A linguagem oral na educação de adultos.


Porto Alegre: ARTMED, 2009)

Nesta versão resumida do livro Preconceito Linguístico


que se tornou rapidamente um clássico dos estudos linguísticos
no início dos anos 2000, Marcos Bagno discute, um a um, dizeres
que muitos repetem por aí sem nenhuma reflexão como se esses
dizeres detivessem a mais genuína verdade sobre a língua. Coisas
como “Brasileiro não sabe português, só em Portugal se fala bem
português”, ou “Português é muito difícil”, “As pessoas sem instrução falam tudo
errado” ou ainda “É preciso saber gramática para falar e escrever bem” compõem o
que ele chama no livro de “A mitologia do preconceito linguístico” que, segundo ele,
funciona como verdadeiros obstáculos à aprendizagem e desenvolvimento plenos
das habilidades linguísticas.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 107


Rs
REVISANDO
É uma síntese dos temas abordados com a
intenção de possibilitar uma oportunidade
para rever os pontos fundamentais da
disciplina e avaliar a aprendizagem.
O ponto principal de toda esta unidade: entender que a língua não é um
elemento externo ao homem e às relações sociais, pelo contrário, a língua é, como
diz a professora Viviane Resende, em seu livro Análise do Discurso Crítico, “parte
irredutível da vida social”, o que implica dizer que os produtos imediatos da língua (os
textos) são “produções sociais historicamente situadas que dizem muito a respeito de
nossas crenças, práticas, ideologias, atividades, relações interpessoais e identidades”
(RESENDE, 2006, p. 10). E é objetivo do Ensino de Língua Portuguesa entender
como a língua (e os textos) “funciona na representação de eventos, na construção
de relações sociais, na estruturação, reafirmação e contestação de hegemonias no
discurso” (Resende, 2006, p. 13), entender como as “técnicas de natureza discursiva
(...) dispensam o uso da força para ‘adestrar’ e ‘fabricar’ indivíduos ajustados às
necessidades do poder” (Resende, 2006, p. 19), desvelar relações de dominação que
se dão por intermédio dos textos a fim de superá-las, afinal, os textos são usados
como “modos de ação sobre o mundo e sobre as pessoas” (RESENDE, 2006, p. 13).

Sendo assim, a ideia original de que o objeto de estudo da linguística é “a língua


em si mesma e por si mesma” cede à compreensão de que “a verdadeira substância
da língua não repousa na interioridade dos sistemas linguísticos, mas no processo
social de interação verbal” (RESENDE, 2006, p. 14-15). Como “fragmento material da
realidade” Resende (2006a), como “parte irredutível da vida social” Resende (2006b),
a língua, portanto, serve aos homens e não o contrário, como pressupõe a gramática
normativa e todo o ensino que se estruturou a partir da (falsa) premissa de que é
preciso saber gramática para falar e escrever bem.

Não podemos persistir num ensino que gera como produto final afirma-
ções tolas (que se ouvem até de pessoas cultas) como “português é a lín-
gua mais difícil do mundo”, “não sei português” ou “neste país todo mundo
fala errado” (LUFT, 2002. p. 12).

É necessário adaptar a citação de Celso Pedro Luft (2002), gramático, dicionarista


e autor de manuais de ortografia, dando a ela um caráter menos eufemista: não
podemos insistir num ensino que gera, como produto final, afirmações tolas como
“eu odeio português”, “português é a disciplina de que menos gosto” ou “português
é a disciplina que menos entendo”. Uma grande ironia esta última, já que a frase é
dita justamente em português. Como então não entender essa disciplina? E mais:
como odiar a sua própria língua? Como poderia o estudante não gostar da língua

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 109


em que ele pensa, com a qual ele se comunica, pela qual se expressa? Afirmações
como essa são expressões cristalizadas que querem nos dizer algo muito além do
que dizem: antes de dizer do sentimento que o estudante tem por tal matéria, essas
afirmações dizem de como anda o ensino dessa disciplina, de como os professores
a têm tratado e de como os estudantes a encaram.

O que se há de observar é que, ao dizer tais verdades, o estudante não está


se referindo, jamais, à língua que ele, seus colegas ou nós falamos. Basta dar uma
pequena olhadela nos livros didáticos utilizados em salas de aula das escolas
tanto públicas quanto particulares, em quaisquer que sejam os níveis; basta ler os
manuais gramatiqueiros que os professores utilizam como único recurso didático
para preparar as suas aulas; basta observar uma aula sequer de português e logo
perceberemos que esse ódio não é direcionado à língua propriamente dita, mas a
esse ensino gramaticalista e tecnicista que querem empurrar para os estudantes
nomenclaturas e definições que para o ato da comunicação, para o desenvolvimento
da potencialidade linguística, para a boa expressão e o bom domínio retórico
do discurso, enfim, para a boa comunicação nada influem muito pelo contrário,
atrapalham.

Um ensino totalmente desprovido de sentido para o estudante. Um ensino em


que a língua é tida como entidade exterior a ele e à qual ele deveria total respeito,
plena obediência, completa submissão, porque, segundo este ensino, ele deve ser
subordinado às leis da língua − como se estas fossem “regras” e não características,
leis naturais da língua, como as leis físicas em relação à natureza das coisas; uma
abstração fruto da alienação a que Saussure(1987) e seu estruturalismo relegaram
a língua, como se a língua pudesse existir sem os indivíduos que a falam, como
se a língua não tivesse que se adaptar às circunstâncias histórico-sociais que o
homem desenvolve e que o envolvem; e, assim, como se a língua não tivesse que
se modificar para continuar cumprindo a sua principal função que é a de pôr em
relação, comunicar, expressar vontades e desejos segundo fins ideológicos.

Um ensino que tende a impor estruturas sintáticas e leis ortográficas condizentes


a uma forma de língua não mais utilizada sequer pelos próprios portugueses, a
forma abstrata da norma padrão, e que tende a inibir o indivíduo no que ele tem de
mais genuíno: a expressão espontânea de seu espírito, o dizer de sua alma e do que
ele sente, quer, sonha, pensa e deseja. Um ensino que encara ainda o aluno como
a própria raiz da palavra sugere: a − prefixo de negação e lume − luz, isto é, aquele
que não tem luz e que seria iluminado por aquele que professa sobre os destinos:
o professor, como detentor, guardião máximo da palavra original, do Fiat lux, do

110 | Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa


veredicto final, juiz das vocações e dos futuros, detentor das notas, da média final.

Estudar a nomenclatura gramatical não é, nunca foi e nunca será estudar


a língua. De que servirá, para a comunicação, para a boa expressão, para fazer-
se entender ou para construir um belo texto que seja, explorando possibilidades
estilísticas, criando sabores estéticos; de que serve saber se aquela tal ou tal oração
é uma oração subordinada substantiva objetiva direta? Ou mesmo algo simples
como se o substantivo é abstrato ou concreto? Se aquele sintagma é um adjunto
ou um complemento? De que adianta decorar? (sim, porque não é outro o exercício
desse tipo de ensino, é o de memorizar e só), de que adianta encher a cabeça com
listas infindáveis de palavras que se escrevem com sc, ç, ss, c, x, ch, s, z, se existe
um meio muito mais eficaz e próximo da realidade da construção da linguagem de
fixar tais ortografias (lendo, simplesmente, e escrevendo)? Que outro sentimento
poderia ter o estudante obrigado a fazer a cópia do texto até a mão doer? Que outro
sentimento poderia ter o estudante que ouve o tempo todo de seu professor que
ele não sabe falar, que ele só fala errado, que ele é burro, que a língua em que ele (e
sua comunidade) se expressa é uma corruptela da dita norma dita culta?

Mesmo diante disso, ao invés de trabalhar com a língua viva, em funcionamento;


com a leitura prazerosa e proveitosa; com textos que possam tornar o indivíduo
crítico em relação à sociedade em que ele vive; crítico em relação a si e ao outro,
com textos que possam ensinar a ele sobre estilo e poética; ao invés disso, preferem
tentar fazer com que ele decore fórmulas e regras ortográficas, gentílicos, coletivos,
vozes de animais e outras coisas inúteis. O máximo que conseguem é fazer com
que o estudante odeie com todas as suas forças o estudo da língua em que ele fala,
pensa e ama.

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 111


AUTOAVALIAÇÃO
Momento de parar e fazer uma análise sobre o que o
estudante aprendeu durante a disciplina. Av
1. O que a tese onomatopeica defende?

2. A literatura teve um papel importante nas línguas românicas (neolatinas).


Que papel foi esse?

3. O que é considerado um estrangeirismo?

4. Qual a diferença entre língua e dialeto?

5. O que faz parte do processo de imposição de uma língua?

6. Apesar da literatura hoje estar desvinculada das aulas de língua portuguesa


nas escolas, a relação entre língua e literatura, ao longo da história do
Brasil, sempre foi muito próxima. Como se explica isso?

7. Por que a Lei do Diretório dos Índios é um importante documento para a


definitiva imposição da língua portuguesa no Brasil?

8. Qual a função da ludicidade no ensino de língua portuguesa?

9. Em que perspectiva o ensino de língua portuguesa pode ser entendido


como um instrumento de exclusão social?

Fundamentos Metodológicos do Ensino de Língua Portuguesa | 113


BIBLIOGRAFIA
Indicação de livros e sites que foram usados para a
construção do material didático da disciplina. Bb
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