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Reginaldo Prandi
E
Luiz Jácomo
Teresinha Bernardo
com o racismo que se segue à Abolição, a Amado, Roquette-Pinto, Edison Carneiro, Ar-
incompreensão, o não reconhecimento e a thur Ramos, Ulisses Pernambucano, Luís da
perseguição sem trégua por parte de muitas Câmara Cascudo e o antropólogo americano
instituições da sociedade brasileira branca e Melville Herskovits (Freyre, 1935, 1937).
católica, que viram na religião afro-brasileira Já o II Congresso Afro-Brasileiro foi
durante muito tempo – e de certa forma realizado em 1937, em Salvador, tendo à
continuam vendo – uma via de manifesta- frente Edison Carneiro, que procurava dar
ção demoníaca, do mal. Muito se perdeu continuidade, ainda que de forma crítica, à
por conta disso tudo, e era preciso repor pesquisa pioneira de Raimundo Nina Ro-
as coisas no lugar: reaprender as línguas drigues, que inaugurou no Brasil os estudos
africanas usadas nos rituais, recuperar os sobre o candomblé e tratou longamente, à
mitos esquecidos, livrar-se do peso morto do moda racista de seu tempo, de questões re-
sincretismo católico, encontrar mecanismos ferentes à população negra. Retornaram ao
de legitimidade social e garantir um lugar debate Herskovits, Edison Carneiro, Arthur
cidadão para a religião numa sociedade que, Ramos e Jorge Amado, aos quais se junta-
ela também, tentava se refazer na luta pela ram muitos outros, além do sociólogo ame-
reconquista de seus direitos violados (Prandi, ricano e Professor Emérito da USP, Donald
2005). De todo modo, estamos muito longe Pierson, que conduziu seus estudos sobre o
dessa travessia ter se completado. negro preocupado com os conceitos de cul-
tura e classe social; o babalaô Martiniano
2 do Bonfim, figura lendária do candomblé; e
a igualmente famosa ialorixá Ana Eugênia
Em 1988, por ocasião do centenário da Obabií dos Santos, Mãe Aninha, fundadora
Abolição legal da escravidão no Brasil, rea- do Axé Opô Afonjá. Também esteve presente
lizou-se na Universidade de São Paulo, de 7 o africano Ladipô Sôlankê, que apresentou
a 11 de junho, o evento “Escravidão – Con- uma comunicação sobre a concepção de Deus
gresso Internacional”. A rigor, tratou-se do entre os iorubás (Carneiro, 1940).
IV Congresso Afro-Brasileiro. O primeiro, Passados 45 anos, por ocasião das co-
datado de 1934, foi realizado em Recife por memorações do cinquentenário da publica-
iniciativa de Gilberto Freyre, que no ano ção de Casa-grande & senzala, realizou-se,
anterior publicara Casa-grande & senzala. novamente no Recife, em 1982, com a pre-
Pretendia-se tratar de inúmeras questões re- sença de Gilberto Freyre, o III Congresso
ferentes à população negra brasileira suscita- Afro-Brasileiro, sob os auspícios do Instituto
das pelo livro. Foram reunidos no congresso Joaquim Nabuco e com organização de Ro-
importantes autores, antropólogos, psiquia- berto Motta. Ao lado de consagrados autores
tras, escritores, advogados, historiadores, brasileiros e estrangeiros, o evento trouxe
folcloristas, músicos e também sacerdotes, uma nova geração de pesquisadores das po-
caso de Pai Adão, babalorixá do Terreiro pulações negras, assim como novos temas.
de Iemanjá, dos mais antigos do país. En- Entre os presentes, destacaram-se Raimundo
tre nomes famosos, se destacaram o próprio de Souza Dantas, que foi o primeiro embai-
Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Jorge xador negro brasileiro, Manuela Carneiro
QUADRO 1
Reginaldo Prandi
Reginaldo Prandi
disfarçar de proteção dos animais contra a Embora essas tentativas de impor leis im-
crueldade. Tal dubiedade, porém, parece ter peditivas do sacrifício religioso não tenham
sido definitivamente resolvida pelo Supremo logrado êxito – pelo menos até o momento
Tribunal Federal (STF) na votação do Re- –, em cada proposta de tal tipo de legislação
curso Extraordinário 494601, concluída no são renovados os sentimentos e atos de per-
dia 28 de março de 2019. Garantiu o pleno seguição, preconceito e intolerância contra
do Supremo que a defesa dos direitos dos uma religião que passou grande parte da
animais não pode se sobrepor à liberdade história tendo que se esconder. É o velho
da religião de praticar seus rituais segundo racismo aplicado à religião, tentando usar
suas tradições. A tese produzida pelo Supre- a lei como disfarce.
mo, que garantiu por unanimidade o sacri- Não se pode esquecer que, no candom-
fício votivo pelas religiões afro-brasileiras, blé e em outras religiões afro-brasileiras, a
diz que: “É constitucional a lei de proteção pertença do devoto se efetiva num proces-
animal que, a fim de resguardar a liberda- so iniciático em que diferentes etapas são
de religiosa, permite o sacrifício ritual de marcadas pelo sacrifício votivo de animais
animais em cultos de religiões de matriz (Motta, 1991). As carnes sacrificiais são
africana”2. Por decisão majoritária, o STF consumidas no terreiro da mesma maneira
decidiu também que alegações de crueldade como a maioria não vegetariana da popu-
contra os animais e questionamentos sobre lação se serve diariamente à mesa. Assim
o consumo das carnes não se aplicam no como as receitas domésticas são preparadas
caso do sacrifício votivo. de acordo com o gosto, o costume e as pos-
Vale lembrar que o abate religioso de ses de cada família, a comida votiva segue
animais, segundo a fórmula halal, que só receitas da tradição. Afinal, essas religiões
pode ser praticado por sacerdotes ou espe- reproduzem nada mais nada menos do que a
cialistas iniciados pela religião, da mesma antiga família extensa africana reconstituída
maneira que se faz no candomblé, alimenta no Brasil no plano simbólico (Prandi, 2017).
parcela significativa das exportações de car- Não há nenhum mistério no abate praticado
ne brasileira para os mercados de países de nos terreiros: as divindades são cultuadas
maioria islâmica, sendo também praticado, com a oferenda de comida; essa comida se
em proporção menor, por outras religiões faz com carne e outros ingredientes, e a
tradicionais no Brasil. Em termos compa- carne usada deve ser obtida segundo pre-
rativos, o volume do abate realizado pelo ceitos rituais. Impedir o abate nos terreiros
candomblé é irrisório, além do fato de que significaria impedir a adoração das divinda-
a carne resultante é consumida nos terrei- des, o mesmo que proibir a religião de ser
ros pelos praticantes da religião como ato praticada segundo a tradição.
de comunhão entre humanos e divindades.
5
Os anos recentes foram pródigos em
2 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/ver-
NoticiaDetalhe.asp?idConteudo=407159. Acesso em:
mostrar que os problemas identificados a
12 de abril de 2019. partir da década de 1990 vêm se tornando
cada vez mais graves. Multiplicou-se o nú- de culto (Silva Jr., 2007). Assim como uns
mero de estudos que tratam, agora explici- poucos outros, Silva Jr. tem agido no senti-
tamente, do que é chamado de intolerância do de capacitar os seguidores das religiões
religiosa (Silva, 2007). Aos poucos, e com afro-brasileiras em sua luta de defesa da
muitas dificuldades, em consequência de sua religião, promovendo encontros e reuniões,
própria constituição como religião formada publicando cartilhas e folhetos sobre legis-
de pequenos grupos sem nenhuma unidade lação, direitos e modos de agir, conduzindo
formal nem chefia centralizada, os terreiros projetos de pesquisa e atuando judicialmente
vêm tentando reagir, sobretudo, através de nos tribunais. Teve grande visibilidade, em
meios jurídicos, enveredando por processos agosto de 2018, sua participação no já refe-
que se arrastam por anos nos meandros das rido julgamento pelo STF do abate animal
diferentes instâncias do Judiciário. com fins ritualísticos. Na abertura da sessão,
Raras e notórias lideranças surgiram à em resposta às sustentações contra o abate
frente desses movimentos de defesa coletiva animal para fins religiosos proferidas por
das religiões afro-brasileiras, caso de Hé- representantes do Ministério Público do Rio
dio Silva Jr., que tem atuado em processos Grande do Sul e do Fórum Nacional de Pro-
contra abusos sofridos por membros e locais teção e Defesa Animal, disse Hédio Silva Jr.:
Reginaldo Prandi
sa, obtidos a partir de mais de uma dezena dência traz para o debate as questões mais
de instituições que registram ocorrências des- sensíveis da sociedade – com os meses de
se tipo no estado do Rio de Janeiro (Santos maio a julho do mesmo ano, observou-se
et al., 2018). Novamente, as religiões afro- um aumento dos casos de intolerância nos
-brasileiras figuram como as mais atingidas diferentes âmbitos considerados: 15% quan-
por esse tipo de violência. Chama a atenção do se tratou de raça ou cor, 75% quando
a pesquisa “Mapeamento de terreiros”, da o motivo identificado foi a homofobia ou
Pontifícia Universidade Católica do Rio de transfobia, 83% para os casos relacionados à
Janeiro, que identificou que quase 70% dos origem geográfica e de nacionalidade e, por
casos de intolerância atingem terreiros pe- fim, 171% de aumento nos casos de intole-
quenos, com até 50 frequentadores – mais rância por motivos religiosos5. Para os que
vulneráveis, portanto. Além disso, apenas não aceitam a diferença, a religião parece
15% dessas agressões levaram a algum tipo ser o alvo preferencial.
de representação na polícia ou em entidades
de denúncias (Santos et al., 2018, pp. 34-6). 6
Os dados de ambos os relatórios sobre
intolerância religiosa apontam que os evangé- Outra mudança importante verificada nos
licos aparecem como os maiores responsáveis últimos 30 anos é o modo como a religião
pelas supostas agressões, enquanto as religi- afro-brasileira muda de lugar na construção
ões afro-brasileiras surgem das estatísticas do objeto de estudo na pesquisa das religi-
como suas vítimas preferenciais. No geral, ões. Muito mais do que explicar a religião,
os afro-brasileiros têm pequena participação trata-se agora de investigar sua relação com
como agressores. Porque são os que mais outros aspectos da realidade. É o que se
sofrem violações de direitos relacionados a observa, por exemplo, quando a pesquisa
sua religiosidade, os afro-brasileiros voltam, procura entender como é que a religião de
como no passado, a ter que se esconder, co- origem negra lida com os problemas da mar-
mo acontece hoje, por exemplo, em escolas ginalidade social, da criminalidade, como
em que crianças iniciadas no candomblé ou elabora identidades não convencionais, como
umbanda são obrigadas a ocultar sua per- aborda questões de gênero e como trabalha
tença religiosa, deixando de usar qualquer situações conflitivas de convivência de negros
símbolo material que denuncie sua identidade e não negros nas escolas e outras institui-
religiosa e se calando diante de colegas e ções não religiosas (Bernardo et al., 2017).
professores sobre a crença que professam É quando a religião não é mais o objeto
(Fonseca, 2017; Bernardo et al., 2017). principal da pesquisa, mas usada para me-
Se esses dados já são sobejamente preo- lhor se entender a construção de concepções
cupantes, o período imediatamente seguinte artísticas, por exemplo, quando se questiona
ao analisado no Rivir apresenta uma situação
bastante piorada. Segundo matéria da Folha
de S. Paulo, comparando-se os meses de 5 Matéria completa disponível em: https://www1.folha.
agosto a outubro de 2018 – época em que uol.com.br/cotidiano/2019/01/registros-de-intoleran-
cia-triplicaram-em-sp-na-ultima-campanha-eleitoral.
a própria campanha eleitoral para a Presi- shtml. Acessado em: 12 de abril de 2019.
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