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MATÉRIAS DO MÊS
Postado em 17/10/2018
Levantes, cujo catálogo foi publicado pelas Edições Sesc, contou com a curadoria do filósofo e historiador da arte Georges Didi-
Huberman (1953), um dos grandes intelectuais franceses de sua geração, autor de dezenas de livros. Suas reflexões abrangem desde a
filosofia da imagem à história da arte, passando pelo cinema e pela literatura.
Abaixo é disponibilizado, de forma inédita em língua portuguesa, o texto completo do ensaio Images et sons à bout de bras
[Imagens e
sons como forma de luta], redigido pelo pensador francês e que serviu de base para sua fala na conferência que ocorreu em 17 de
outubro de 2017. Não se trata da transcrição do que foi dito por Didi-Huberman, com suas sínteses e digressões, naquela terça-feira à
noite, mas da tradução para o português do texto integral que ele redigiu para a oportunidade.
Didi-Huberman na conferência dada em 17 de outubro de 2017, no Sesc Pinheiros | Foto: Alexandre Nunis
É extraordinário constatar como os povos mais oprimidos sabem se forjar uma potência poética
que por si só significa um levante em
certas situações — coloniais, por exemplo — nas quais o poder político
está fora de alcance e, com frequência, não é nem mesmo
desejado. No exemplo descrito por Pierre Clastres, as mulheres também tomam a palavra e seu canto manifesta, então, como por
tradição, um patos particular: "o canto das mulheres jamais é […] alegre. Os temas de suas canções são sempre a morte, a doença, a
violência dos Brancos e, na tristeza de seu canto, as mulheres assumem toda a dor e toda a angustia do povo Aché." Mesmo entre os
um outro desejo
Guayaki, insiste Pierre Clastres, "o homem é um animal político": mas retorna ao canto para expressar a alternativa de
político, o de "não ser mais o que se é" quando se é oprimido. Em 1903, em sua obra fundamental As almas do povo negro, William
Du Bois consagrou um capítulo inteiro aos cantos de dor. Bem mais tarde, Jerry Silverman conseguiu, sob o título A Chama Imortal
recolher um conjunto de cento e dez canções — em dezesseis línguas diferentes — inventadas em meio aos tormentos do Holocausto.
Desse modo, cantam sem-fim — como uma outra resposta invocatória e reconvocatória ao não finito da história — os povos oprimidos.
Lutos, cóleras e desejos mesclados. É a música dos párias, dos sem-nome, dos revoltados, dos exilados, dos proletários. Temos a música
armênia, os rebetiko das populações gregas atiradas ao mar pelos turcos. Há os mineras(cantos das minas), ou os carceleras (cantos
das prisões), o canto jondo cigano-andaluz, do qual José Luis Ortiz Nuevo e Alfredo Grimaldos mostraram o conteúdo essencial social e
subversivo. Temos os tangos políticos do submundo de Buenos Aires, recentemente coletados por Javier Campo e Ofelia Flores. Existem,
sem dúvida, todos os cantos da luta política na Europa, desde a Revolução Francesa, até seu elemento anarquista, cuja história Larry
Portis retraçou. Existem cantos políticos que foram inventados e ressoam por toda parte no mundo, desde a Catalunha até a Cabília, na
Argélia, ou do México até a Itália, dos quais um colóquio realizado recentemente tentou esboçar uma cartografia geral com o título
Cantar a Luta .
Dizem com razão que esses cantos — essas práticas musicais em geral — são "populares". Nessa expressão, ainda é preciso não
reconduzir as hierarquias acadêmicas nas quais erudito popular
e se ignorariam reciprocamente. As lamentáveis polêmicas que opuseram
Arnold Schönberg e Bertolt Brecht, desde seu exilio político em Los Angeles, polêmicas entre música de vanguarda e música do povo,
certamente não podem mais ser levadas em conta a partir de suas opiniões isoladas e hostis. Archie Shepp, citado por Philippe Charles e
Jean-Louis Comolli em sua obra Jazz livre, poder negro
, afirmava que "não é possível ver três crianças e uma igreja explodirem sem que
alguma coisa permaneça em sua própria experiência cultural. A vanguarda é [exatamente] isso". Considerada de uma perspectiva na
qual a memória da música Hobo [música boêmia] — com a figura marcante do cantor lumpemproletário Joe Hill que, nas primeira
décadas do século XX, foi cognominado "trovador da revolta" em razão de suas palavras de ordem simultaneamente poéticas e políticas
— bem como a grande tradição do blues caminhavam lado a lado, com um espírito de experimentação sobre as formas musicais que ia
de encontro aos desejos políticos emancipadores dos negros americanos nos anos 1950 e 1960.
O fato de o jazz ter sido literalmente "mal compreendido" por Theodor Adorno — mas estávamos em 1937 — nada exime do caráter
surpreendente do primeiro, nem tampouco das exigências filosóficas do segundo. Na opinião dos nazistas, a música de Arnold Schönberg
ou de Alban Berg não era menos degenerada do que a das orquestras de jazz. E as "utopias sonoras" da música erudita contemporânea,
como foram denominadas por Laurent Feneyrou, não provocaram menos levantes — até mesmo em suas questões políticas, por vezes
manifestas, como aconteceu com o compositor Luigi Nono — com os clamores magistrais de John Coltrane, Albert Ayler ou Ornette
Coleman. É surpreendente que em seu primeiro grande livro de filosofia política, O Espírito da utopia
, escrito entre 1915 e 1917, Ernst
Bloch quis separar a questão das formas da questão estética: uma oportunidade para chegar a uma verdadeira "filosofia da música" que
constituiu a parte central dessa obra de um marxismo bastante ortodoxo. Isso porque na opinião de Ernst Bloch, toda forma — sonora,
visual ou literária — é capaz de surgir no espaço público "como um dom visionário transformado". Desse modo a forma se revela um
"signo anunciador", e até mesmo o segredo de nós mesmos (exatamente porque ela sempre volta a representar) o tempo e o lugar
rememorado. Essa seria a significação essencialmente anunciadora, "apocalíptica" e utópica, da forma estética entendida como desejo do
outro — outro tempo, outro lugar, outro regime semiótico, outro mundo político — no levante de nós mesmos.
Nós mesmos: ou seja, nossos corpos em movimento. Todo corpo em movimento também poderia ser considerado como um "corpo da
Liberdade" — e relembremos que Delacroix retomou a dinâmica dessas antigas figuras de ninfas que denominamos "Vitórias" em
marcha. Todo corpo manifestante não seria como a proa de um pesado navio que avança atrás dela? Essa proa, por sua vez, possui suas
próprias proas: uma frente que "faz frente" e olhos que "ardem de desejo", por exemplo. Mas também a boca que , em geral, é "o
começo, ou, se quisermos, a proa dos animais", como escreveu Georges Bataille na revista Documents: "Nas grandes ocasiões, a vida
humana ainda se concentra bestialmente na boca, a cólera faz ranger os dentes, o terror e o sofrimento atroz fazem da boca o órgão de
gritos lancinantes" — coisas às quais se oporiam, por exemplo, a expressão de um funcionário de banco com "o caráter de constipação
rígida [de sua] atitude estritamente humana, o aspecto magistral da face boca cerrada
, bela como um cofre-forte." A boca se escancara
para clamar, para reclamar, para transgredir, seja por um processo de "regressão", comentado por Pierre Fédida, a partir de Bataille, em
seu livro Por onde começa o corpo humano .
Os "corpos da Liberdade" avançam, bocas na frente. Bocas abertas entoando seus cantos de convocação ou sua reclamação
fundamental. Ao mesmo tempo, vamos repetir, os braços se erguem: é como se, ao se exporem
, os corpos manifestantes se abrissem
para o mundo e quisessem abrir o próprio mundo com o gesto de empunhar os braços, de seus braços erguidos à frente. Não existe,
porém, nada de humano — menos ainda de político — que não seja aparelhado, meditatizado. O fato de os corpos manifestantes se
manterem perpetuamente entre expressão e representação, na análise de Emmanuel Soutrenon ou Dominique Memmi, isso não impede
que imagens , ou todo tipo de objetos, tenham a função de intermediar a reivindicação em causa, agitadas pela força dos braços com o
intuito de desempenhar seu papel no espaço sensível dos levantes. É preciso, então, se perguntar: o que empunham os braços dos
sujeitos em levante. O que braços como esses agitam, sublevam ou projetam no ar?
Primeiramente, suas próprias mãos, ou seus punhos. Lembramos que no Encouraçado Potemkin, de Eisenstein, os punhos dos
moradores de Odessa, revoltados com a morte injusta do marinheiro, se crisparam de cólera — cada um por si — antes de se erguerem
unanimemente em sinal de revolta que, na ocasião, era muito mais do que uma simples expressão afetiva: punhos erguidos todos juntos
que, a partir de então, se tornaram o emblema gestual por excelência da reivindicação comunista. Já em A Greve
, os braços se ergueram
com as mãos abertas para o céu, clamando, por assim dizer, seu desejo de emancipação. Um pouco mais tarde, Jean Jaurès iria arengar
as multidões do Pré-Saint-Gervais com o punho do braço direito cerrado — marca da intensidade —, e o do esquerdo firmemente
agarrado à bandeira vermelha hasteada acima dele. Tratava-se de uma versão antimilitarista — o próprio tema desenvolvido em seu
discurso — de A Liberdade guiando o povo , na qual a bandeira era agitada à direita e o fuzil com baioneta à esquerda, versão
encontrada também na imagem de Gustave Courbet impressa na revista A salvação pública
na época da Revolução de 1848.
Uma célebre fotografia de Willy Ronis, feita em 1938 na sessão de estofamento das fábricas Citroën, de Javel, em Paris, mostra uma
mulher que arenga seus camaradas. À frente de sua boca está seu braço erguido. Na extremidade do braço um indicador apontado em
direção a um ponto qualquer do espaço exterior. Ela segura uma pequena folha de papel. Ela incita os trabalhadores a reivindicarem
seus legítimos direitos. E, naquele mesmo dia, a fazer greve. Ela informa igualmente, como o próprio Willy Ronis testemunhou, as ações
tomadas pela CGTU, da qual ela era militante, para reiterar a "solidariedade com os cidadãos da Espanha". Seu nome era Rose Zehner.
Assim que a greve terminou, ela foi afastada da empresa e só obteve reconhecimento público bem mais tarde, quando a fotografia —
que era muito subexposta para encontrar lugar na revista comunista Regards, para a qual era destinada — foi finalmente publicada em
1980. Uma maneira de constatar que, em todo caso, o braço erguido acompanha a palavra do levante: ele a prolonga e difunde em
direção ao outro, quando se trata, como nesse caso, de reunir um grupo por uma causa política. Além disso, o braço erguido concentra
diversas operações: ele abre o espaço à frente
para um outro lugar, e, consequentemente colabora para ressubjetivar qualquer um que
tenha razões para "reivindicar" em um grupo que, coletivamente, irá "fazer reivindicações no espaço público".
Nesse sentido, o gesto de Rose Zehner — e das passionárias
em geral, desde a veemência das mães trágicas, estudadas por Nicole
Loraux, até as célebres arengas de Dolores Ibarruri, em Madrid, de Federica Montseny, em Barcelona, e em outros lugares também —
encontra seu prolongamento contemporâneo no gesto simples, mas extraordinariamente potente, inventado, ou reinventado, pelas
feministas, no início dos anos 1970. Como bem lembrou Laura Corradi, esse gesto "faz parte da linguagem de sinais utilizada pelos
deficientes auditivos, os surdos e pessoas com deficiências da fala: ao abrir o indicador e o polegar de cada uma das mãos formamos a
letra L, quando as extremidades dos dois polegares e dos dois indicadores se juntam forma-se um triangulo, signo da vagina, utilizado
em nosso país [a Itália] no decorrer das manifestações feministas dos anos 1970. Trata-se, porém, de um signo usado na mais alta
Antiguidade" e que remonta, pelo menos, à civilização suméria. Nesse caso, ele foi reapropriado como desdobramento feminino do V da
vitória, como signo de rebelião, como imagem do sexo feminino assumido através de uma ressubjetivação política e pública.
Ilaria Bussoni o denominou, com razão, um "gesto de autorrealização". As mulheres efetivamente se reuniam para expor do alto de seus
braços erguidos, à frente de si próprias, a imagem gestual
do que constituía, simultaneamente, a parte mais íntima de sua anatomia —
lugar do prazer, mas também do sofrimento comum de se ver coisificada ou controlada pela predação machista — e o elemento
reivindicado de sua liberdade sexual ou de sua decisão quanto ao gênero. Tratava-se, acima de tudo, de uma ressubjetivação auxiliar,
um "novo sexo" inventado, ainda nas palavras de Ilaria Bussoni, que subitamente, surgia no espaço público entre as mãos dessas
mulheres. Gesto de sexo: que belo paradoxo! Esse não foi um gesto sublimado, "pleno" e "seguro de si", de tomadas de partido, de
braços simplesmente erguidos na vertical, de punhos cerrados, ou, como se vê algumas vezes, de mãos imitando um revólver apontado
para o inimigo. Foi um gesto de desejo que indicava uma relação de si com o outro, que designava o espaço interior de cada um, que
podia estar aberto para o mundo comum, ou podia desenquadrar, ou enquadrar à sua maneira. Ele enfrenta (por que está erguido em
frente) e, ao mesmo tempo, deixa passar (pois esboça uma abertura). Ele assinala, com isso, a afirmação de uma fissura — ou de uma
nova dialética — em nossas habituais linhas de divisão no que diz respeito às relações entre o mundo subjetivo e o mundo público, o
desejo e a política.
Talvez não fosse por um mero acaso que, inventado nos anos 1970, esse gesto evocasse igualmente a forma em losango escolhida por
Jacques Lacan para indicar a relação de "punção" no que ele denominava o "fantasma fundamental", que liga e desliga um sujeito ao
objeto que ele deseja. Como dizia ele, em seu seminário de 1959 sobre O Desejo e sua interpretação
, essa relação "assegura ao suporte
do desejo sua estrutura minimal". Essa "estrutura minimal" já é complexa e, para completar, dialética: ela "se complexifica pelo fato de
ser em uma relação mediadora com o fantasma que o sujeito se constitui como desejo". Por isso, ela é o que faz com que "o sujeito se
entregue à medida em que se enfraquece" em sua relação com o objeto no mundo real. Aqui, essa seria, então, uma maneira
complementar de compreender o gesto feminino: uma forma dada, reafirmada, dirigida, mas também uma "forma da ruptura" —
intrínseca ao desejo —, que Lacan desenvolvia na época, reiterando que essa relação nos faz compreender, fundamentalmente, que
"todo sujeito não é um". O que, a seu modo, as feministas clamavam em público. "Gesto-punção" por isso mesmo: um gesto que
simultaneamente corta e junta, separa e reúne. Gesto do compartilhamento por excelência, no sentido dialético que essa palavra poderá
assumir na ordem do desejo, bem como na da política, em algum lugar entre uma imagem de revolta e uma imagem de esperança.
Coisas que obras decisivas de artistas como Ana Mendieta, Valie Export, Cindy Sherman ou Helena Almeida desvelam no que se
denomina "cultura visual feminista".
Que gestos são esses que se expressam por intermédio de nossos braços erguidos? O corpo que espera ainda tem as mãos vazias. O
corpo que resiste procura outra mão para segurar a sua e ampliar sua ação. Quando precisa se render e se sente condenado, ele ainda
lança as palmas da mão em direção ao mundo — ou rumo aos tempos futuros — em um gesto de desafio desesperado. O corpo
sublevado se posiciona à frente de modo mais aparente e alegre. Mas quais são suas estratégias, seus aparelhos de protensão, de
progressão? A resposta é de uma inventividade sem-fim, um grande não finito
de escritos, de imagens e de objetos. No conflito, previsto
nas manifestações violentas, usam-se sobretudo a funda, o coquetel Molotov, o paralelepípedo, ou até mesmo uma simples pedra. Em
casos extremos de guerras civis ou de guerras de ocupação, como a que Goya representou em sua tela Desastres de Guerra
, é uma mão
inexperiente, uma mão de mulher, que ousa armar uma peça de artilharia quando todos os combatentes ao seu redor já estão mortos.
No curso de sua pesquisa sociológica sobre as Estratégias da rua
, Olivier Fillieule retirou do serviço central da CRS, Companhia
Republicana de Segurança francesa uma fotografia que mostra, depositados sobre um pano branco, os objetos confiscados no levante de
Creys-Malville, em 1977 — fundas, porcas de metal, ferros de solda — expostos como troféus de guerra.
As maneiras não violentas são ainda mais inventivas e variadas: como se fosse preciso simular uma arma, um gesto, ou falsear uma
imagem usando o menor objeto ao alcance. Sem dúvida alguma há a bandeirola que precede os manifestantes e que, de qualquer modo,
clama em nome deles. Philippe Artières consagrou a ele uma útil monografia reduzindo-o à dimensão única de "cartaz escrito". A
bandeirola é tanto uma superfície de visibilidade
como de legibilidade: por exemplo, constitui um sistema ao lado das bandeiras que com
frequência saturam o espaço sensível das manifestações. Ele é quase sempre figurativo. Se Henri Cartier-Bresson cruzou o mundo
incansavelmente a fim de fotografar tudo o que pudesse dos cortejos de manifestantes — tarefa infinita sem sombra de dúvida, arte do
não finitodiante da história — foi porque para ele a relação dos corpos com os estandartes assemelhava-se a uma forma antropológica
exemplar da vida social na qual, cada pessoa caminha no levante de todos e sob o olhar de todos.
Razão pela qual ninguém se contenta em erguer os braços para tomar a palavra, como acontecia nas assembleias de estudantes, em
1968, ou para indicar ao cortejo de manifestantes o caminho a seguir. Sempre existem imagens que os sublevados empunham nos
levantes: são bandeiras que, por vezes, assumem a dimensão lírica e infantil de grandes cervos voadores, são balões de gás, alguns
imensos e surpreendentes, com os quais as forças policiais não sabem mais o que fazer, tampas de panelas com as quais se fazem
panelaços, mas que também são imagens de escudos protetores ; construções carnavalescas de material reciclado parecidas com
charretes festivas (por exemplo uma bicicleta-megafone ou uma grande catapulta feita de ursos de pelúcia, expostos na coleção Objetos
de Desobediência , reunidos no Victoria & Albert Museum, de Londres, em 2014), mascaras ou disfarces, como se vê nos feministas ou
nos "zaps" doAct Up , estudados por Victoire Patouillard em um artigo da revista Sociétés Contemporaines
, em 1998. Como se nessas
mascaradas fosse preciso reinstaurar a "política do riso", inerente às sátiras e às caricaturas do passado, ou então reproduzir as "festas
de loucos" das quais Michel Foucault, que as assistiu pessoalmente, percebeu a profunda dimensão blasfematória.
Razão pela qual, de maneira semelhante, os membros aguerridos do exército zapatista, em Chiapas, se dedicaram tão pacientemente a
bordar seus tecidos figurativos e a confeccionar suas bonecas meio-tradicionais, meio-propagandistas. Por toda parte, os que
protagonizam levantes fabricam imagens que exibem e fazem circular. Foi fato notório que, em maio de 1968, paralelamente à intensa
atividade dos fotógrafos e cineastas, as prensas tipográficas, litográficas e serigráficas funcionaram a pleno vapor. Quatro anos depois,
alguns artistas pintores da "Cooperativa dos Malassis" se viram obrigados a utilizar os quadros que pintaram para uma exposição — uma
exposição oficial encomendada pelo Presidente Georges Pompidou, e que eles haviam decidido desertar — como estandartes figurativos
ou escudos improvisados diante de um regimento da gendarmaria, incapazes, então, quem ou o que "verbalizar". Os artistas também
manifestam, as manifestações se revestem de todo tipo de invenções formais.
Essa é a origem da proliferação das marcas visuais e das "cores manifestantes": as da "revolução laranja", na Ucrânia, ou do Black Bloc
,
por exemplo. É a origem também da escala quase industrial da produção de camisetas e de bottons
militantes. As mais comoventes, no
entanto, são as imagens ampliadas que os manifestantes agitam, e que representam aqueles cujo recente desaparecimento provocou
lágrimas e para quem se reclama justiça: foi o que aconteceu em Paris, nos funerais das vítimas do massacre de Charonne, em 1962 —
cortejo que também foi fotografado por Henri Cartier-Bresson —, no momento trágico dos desaparecidos
argentinos, em 1983, bem
como, no mesmo ano, na Marcha pela Igualdade, quando abrindo o cortejo estavam as fotografias dos jovens franceses de origem
magrebina assassinados pela polícia francesa.
Não são apenas os livros de filosofia ou de literatura que são brandidos simultaneamente como imagens e como escudos contra a polícia:
é o caso do Book Bloc. Da mesma maneira que sabem confeccionar máscaras contra os gases lacrimogêneos — uma garrafa de plástico
é quase suficiente para isso —, os manifestantes por vezes fabricam grandes escudos em forma de livros. Entre duas placas de acrílico,
basta espalhar duas camadas de espuma de borracha de um lado, do outro um pedaço de papelão duro, e representar sobre a face
anterior do escudo a capa de título do livro de sua escolha. O que se pôde ver nas insurreições de Londres, em dezembro de 2010, foi
um grande Espectros de Marx proteger um manifestante dos cassetetes da polícia. O espaço sensível do levante assume, então, uma
estranha figura: como se uma imensa biblioteca se espalhasse pelas ruas para fazer com que sua reclamação fosse ouvida. Não se
trataria, uma vez mais, de um fenômeno de ressubjetivação? Diante dos cordões policiais, dos cassetetes, dos Flash Ball
, ou dos lança-
chamas, não são efetivamente esses livros, cada um com sua "mensagem", que doravante tomam a palavra e se agrupam para fazer
ouvir o direito dos povos? Foi assim que, em Roma, Mil Platôs
protestava ao lado de A República
, ou de Dom Quixote Ética
, da , ou das
Almas mortas . Em Londres, A Insurreição que vem caminhava ao lado de Ulisses
e de Fim de Parte
; deliberadamente pintados de cores
vivas, todos esses títulos escondiam das forças da ordem o rosto daqueles que, sem dúvida, os haviam lido e tinham decidido levá-los
nos braços erguidos como seus porta-vozes.
É simultaneamente significativo e banal constatar que, na imagem da manifestação de Londres, uma câmera de vídeo foi dirigida —ela
também erguida nos braços — para o ponto de contato entre a polícia e os militantes do Book Bloc. Nos dias atuais, no mundo inteiro as
pessoas se manifestam com um telefone celular, utilizado como câmera ou máquina fotográfica, agitado no espaço real e imediatamente
colocado em rede no espaço digital. O que faz com que as imagens sejam utilizadas bem além de sua simples função informativa ou
representativa: por essa razão, elas podem também funcionar, psíquica e socialmente, como operadores de ressubjetivação. É
espantoso constatar, por exemplo, que Che Guevara precisou percorrer seus próprios campos de combate com uma máquina fotográfica
a tiracolo: o importante para ele era documentar o estado das populações indígenas, fazer retratos de seus amigos na prisão, imortalizar
as paisagens do maqui cubano ou, mais tarde, as grandes manifestações em Havana. Em meio a tudo isso — como mostra muito bem a
coletânea Che fotógrafo, organizada por Joseph Monzó, em 2008 — era preciso para ele se deter também nas ruinas antigas e, além
disso, se sacrificar, ao que parecia quase um ritual compulsivo de autorretrato, como se fosse exigido da imagem que ela se colocasse na
interface mais íntima, afetiva ou estética de sua "subjetividade" e de sua "figura" de revolucionário histórico.
Em contrapartida, quando percorremos a vida e a obra de Tina Modotti, ambas extraordinárias, deparamo-nos imediatamente com essa
potência — tão frágil que pode cessar a qualquer instante — que as imagens possuem de refigurar um indivíduo sensível a partir de seus
desejos mais fundamentais, da sexualidade até o fervor revolucionário. Nos dias atuais, nas florestas insurgidas de Chiapas, a
"participação das mulheres no governo autônomo", explicada em grande parte do Manual de la Escuelita Zapatista
(no qual se escreve
aos Zapatistas para não separarem o masculino do feminino), é acompanhada igualmente de um trabalho de imagem. Como Guiomar
Mulheres de Milho
Rovira revelou em , e Rocío Martínez analisou posteriormente, em 28 de março de 2001, uma mulher indígena tomou a
palavra no Parlamento Mexicano — quando todos esperavam pelo subcomandante Marcos — e seu discurso foi prolongado na prática de
produção de imagem das mulheres de Chiapas feitas por elas mesmas. Essas camponesas, cuja vida cotidiana era muito difícil,
aprenderam a usar máquinas fotográficas e câmeras de vídeo a fim de construir um ponto de vista inerente à sua própria vida de luta
política. Já em 1972, o artista mexicano Francisco Toledo, com a ajuda de Macario Matus, Elisa Ramírez e Vitor de la Cruz, conduziu
uma experiência semelhante no contexto da luta política dos camponeses de Juchitán, no estado de Oaxaca: a câmera transformava-se,
assim, em um instrumento de ressubjetivação nas mãos — na força dos braços erguidos — dos próprios camponeses. O que aconteceu
também no Brasil com o Cinema Novo, ou com as experiências cinematográficas portuguesas no tempo da "Revolução dos Cravos". E
que ocorreu igualmente na França, por meio da intensa atividade dos grupos de vanguarda cinematográfica que se fraternizaram com os
operários em luta e com os grupos de ação política.
Sem dúvida alguma, continua difícil realizar os próprios sonhos e inventar uma vida melhor, desassujeitada e ressubjetivada. Mas
produzir imagens livres para representar a si mesmo, sua memória, seu desejo, seu destino — em vez de ser assujeitado ao ponto de
vista dos senhores, que também são senhores das imagens — isso já constitui um avanço considerável no próprio plano da imaginação
política. O exemplo da "mulher com a câmera" no México, ou em Chiapas, bem como o de Tina Modotti, nos relembra uma condição
essencial da prática do espírito, tal como a definia Walter Benjamin, em 1934, em um contexto de luta contra o fascismo: é muito mais
crucial ser produtor de suas imagens do que ser "artista" em geral, mesmo "engajado" em uma causa específica. É um completo
contrassenso pensar em reduzir as relações da estética e da política a uma relação unívoca a ser estabelecida entre certos artistas e
certas ideologias políticas, como reiterou, ainda recentemente, uma coletânea de estudos intituladaArtistas e partidos
.
Benjamin protestou veementemente contra a trivialidade — e mesmo o perigo — dessa relação de equivalência: não é a "tendência" que
conta, ou seja, a afiliação de uma obra a um partido político, seja ela romance ou peça de teatro, poema ou fotografia, mas sim o que
Benjamin denominou o "conteúdo". Melhor ainda, os dois devem funcionar recíproca e dialeticamente, fora de qualquer oposição entre
"conteúdo" e "forma": "A tendência de uma obra política não pode funcionar politicamente se não funcionar também literariamente",
afirmava ele. O que poderia fundamentar uma possível distinção entre "tomar partido" e "tomar posição", como demonstra em particular
a relação, com frequência muito mal compreendida, que Benjamin manteve com Bertold Brecht. Antes de mais nada, o que importa
compreender é que devemos nos constituir como livres produtores das imagens que propomos, eventualmente agitadas com a força de
nossos próprios braços erguidos — mas também entre as páginas de um livro de bolso — no espaço público. Sobre essa questão,
Benjamin escreveu que é necessário um "tratamento dialético": "É preciso integrá-lo em contextos sociais vivos", mas também em
contextos específicos, técnicos, nos quais uma imagem pode ser produzida. "O conceito de técnica representa o ponto de partida
dialético a partir do qual a oposição estéril entre a forma e o conteúdo pode ser ultrapassado".
A associação dessas duas palavras, técnica dialética
e permite compreender o que Benjamin teria escolhido para se referir ao trabalho de
Sergeï Tretiakov: produzir uma imagem no espaço político, afirmava ele, implica redialetizar e ressubjetivar seu desejo em relação às
circunstâncias — aos "perigos" — históricos. É, além disso, redialetizar e ressubjetivar suas próprias técnicas de invenção formal,
principalmente confrontando-as ou compartilhando-as com outros: ou seja, quando o escritor não tem mais medo de usar fotografias
(como Alfred Döblin ou Georges Bataille), quando o fotógrafo não tem medo de começar a escrever (como Man Ray ou Walker Evans).
"O próprio trabalho toma a palavra [e] a competência literária não se fundamenta mais na formação especializada, mas na formação
politécnica ( in der polytechnischen Ausbildung begründet
), e se transforma em uma espécie de bem comum".
É desse modo, prossegue Benjamin, que a "politécnica" do autor como produtor permite "implodir as barreiras" e "ultrapassar essas
oposições que impedem a produção da inteligência"; em primeiro lugar "a barreira entre escrita e imagem". Uma maneira de dizer que é
necessário se reapropriar das técnicas especializadas para, a partir delas, desconstruir os conformismos e empreender exatamente o que
Brecht denominava sua "mudança de função" ( Umfunktionierung
), da qual um dos procedimentos essenciais pode ser reconhecido na
montagem das heterogeneidades: o mesmo procedimento de Aby Warburg em seu atlas Mnemosine , de James Joyce em Ulisses, do
próprio Benjamin em seu Livro das Passagens
. Isso, porém, não pode se efetivar se o paradoxo das heterotopias e o anacronismo do
"retorno às origens" não for produzido — por isso o interesse de Brecht pela poesia épica e pelos "elementos mais originais do teatro" —
implicados na mais ardorosa urgência histórica e política, mesmo que esse ardor pareça, ou não, inatual aos olhos da opinião
majoritária. Jamais nos sublevamos melhor do que quando levantamos barreiras e ultrapassamos limites. E é primeiro na matéria, no
húmus do tempo — no perpétuo non finito
e no entrecruzamento das temporalidades — que é preciso tentar o acesso.
Levantes, exposição realizada em 2017, no Sesc Pinheiros | Foto: Matheus José Maria
Confira também (abaixo) a reprodução da brochura editada para a mostra Levantes (2017) — uma publicação
complementar, distribuída gratuitamente à época da exposição, repleta de imagens, com textos de Danilo Santos de
Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, do curador e da diretora do Jeu de Paume, Marta Gili.
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