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6. Os filhos de Alá na Bahia ORIGEM AFRICANA V.OS MUÇULMA.NOS DA. BA.HIA

Africanos muçulmanos foram trazidos para diversas regiões das Américas


como escravos e lá procuraram reprcduzir o qt!-epuderam e o que mais interes-
sava das práticas islâmicas de acordo com as quaís haviam sido-educados. Resta
pouca dúvida, no entanto, de que a maior concentração desses adeptos de Alá

I escravizados no Novo Mundo terminaria por ser na Bahía da primeira metade

I do século xtx, Não se sabe exatamente quando os primeiros muçulmanos


chegaram. Antes do século XIX, entre os africanos vindos da África Ocidental, al-
aqui

____.'l. guns provavelmente eram islamizados, 'entre eles Os malíl1kes, aqui chamados
mandíngos. Embora não se tenha noticia detalhada de sua presença no Brasil,
esses africanos deixaram rastro inconfundível nos amuletos coloniais, chamados
bolsas de mandinga, ou simplesmente mandinga - termo que usado 'em certos
contextos equivalia a feitiçaria,' .
Entretanto, foi ao longo da primeira metade do século XI::': que desembar-
cou na Bahía grande número de africanos muçulmanos. Nessa época, o Islã se
Alá não gReI' injllstiça C01tlTa suas criatlhraS' constituiria em vigorosa força política na África Ocidental, especialmente den-
Qur'im (3: 1.08) tro das fronteíras da.atual Nigéría, no chamado Sudão Central, onde estavam si-
\:'.) tuados diversos reinos ou Estados haussás, corno K311o,Gobir, Katsína, 2a1'ia,'
CJ Não há sombra de dúvida sobre o papel central desempenhado pelos mu- .Zamfara, Adamawa, entre outros. O islamismo pão era um corpo estranho nes-
--
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çulmanos na rebelião de 1835. Os rebeldes - ou uma boa parte deles - foram sa região, estando ali fixado havia gerações, e com mais força entre os ful anis,
para as ruas com roupas usadas na Bahia pelos adeptos do islamismo, No corpo um grupo étnico que constituía cerca de 20% da população da haussalândia, Os
\. v~0!.. " de ml.ü\~§};i.?,s,ql(ewq\r.~r.~m})?'?líSI~,
-,~l}~~P~r?u~~~1:1.e.to.~{I?:lIçu1l11anos
e pa- fulanís se-dedicavam sobretudo ao pastoreíe; mâs-rambéín contavamcõm uni. lâF"""
péis com rezas e passagens do Qur'ãn usados para proteção. ESSflSe outras mar-
go contingente de comerciantes, artesãos e sacerdotes muçulmanos, Pertenciam
cas da revolta levaram o chefe de polícia Francisco Gonçalves MflrU;s a concluir
a essa etnia a maioria e os mais respeitados mestres muçulmanos que atuavam
o óbvio: "O certo", escreveu ele, "é que a Religião tinha sua parte na sublevação'i.,
na região. Entre as últimas décadas eloséculo xvrn e os primeirosanos do XIX, fer-
Seguia a observação: "Os chefes faziam persuadir OS miseráveis, que certos pa-
mentava entre eles um consistente movimento elerevivescência religiosa. Havia
péis os livrariam da morte". E o outro Francisco Martins, o presidente: "Parece-
inclusive um dU101a milenarista, criado pela expectativa de que haveria de aparecer
me que o fanatismo religiosotambém entrava nesta conspiração".' Todos que
em breve um messias (mcLhdí); enviado por Alá para presidir Q fim dos tempos na-
~J. posteriormente escreveram sobre a revolta não puderam evitar o (ator religio-
'-"I so, fosse para enfatízá-lo absolutamente ou p'lra díminuí-lo demais. Ambas as quele inicio do século .íOII do calendário muçulmano.
u-f posições têm seus méritos, mas são arribas incompletas, Neste e nos três capítu- O líder maior desse movimento era de origem fulaní, homem piedoso,
los subseqüentes abordarei esse polêmico aspecto da revolta, erudito, pregador carísmático, o sheh» (haussá para shail,lt, xeque) Usuman dan
Antes de discutir em termos mais estritos o envolvime:nto muçulmano Fodio, a quem já encontramos brevemente no capítulo 3. Dan Fodio vivia em
em 1835, cabe falar sobre a presença do íslamísrno na comunidade africana Chl DegeJ, urna vila no reino haussá ele Cobír, onde a comunidade por ele presidida
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r::.~l-1:'t1~~~· ~ hr:c:.q r-~::--:,l!J(';

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con~tituía urna ilha puritana num a~,biente em que predominava o relaxamen- circulo, as conquistas políticas, territoriais e econômicas da jiltád acabaram por
to religioso, caracterizado pelo sincretismo entre o Islã e o bori, a religião tradí- se tornar um negócio ele família mais do que de Deus."
cional dos .haussás, ou pela adesão pura e simples a costumes ditos pagãos, tudo ,Agl-1erra não se restringiu a Cobir, que depois ele alguma resistência foi

tolerado pêlos dirigentes locais, muçulmanos, mas nem tanto, aos olhos dos re- vencido, em 1808, quando o movimeI;to já contaminara, atraíra ou, vencera di-
formistas, Dirigentes que, de outro lado, comandavam regimes socialmente versos Estados haussás, Em 1809, esses reinos foram unificados. sob uma estrutu-
opressivos. Corno já mencionei no referido capítulo 3, um desses gove.rr1antes ra política islârnica, o Califado de Sokoto. Continuando sua marchaexpansíonís-
era o sarki Yunfa, do reino de Cobir, que contesto~ a autoridade religiosa de ta, os fulanís Ievararn a guerra a Borno, Nupe e 9)'9, explorando em cada lugar
Usuman dan Fodio, temendo o aumento de adeptos e da rnilitância islârnica na as dissidências internas, nem sempre com sucesso. Mas ajihãd não era sempre
comunidade por este comandada. O sarki anterior, Nefata, já proibira que Dan tão santa. O calífado, por exemplo, promovia razias anuais para a captura de es-
.Fodio pregasse em território de Gobír e que exigisse «;m sua comunidade o uso cravos supostamente pagãos. Essas campanhas militares, todas elas, terminaram
de turbantes pelos homens e de véus pelas mulheres, entre outras restrições. Pe- produzindo enorme volume de cativos p<11"aservirem nos domínios do próprio
sava também sobre o governante e outros chefes haussás a acusação de permí- calífado, onde uma aristocracia fulaní se afirmaria como classe dominante eSCl'8-
tir a escravízação e venda de muçulmanos, contra os cânones da tradição islâmi- vista. Qs cativos de guerra, muçulmanos ou não, de ambos os lados em comba-
ca. Muitos desses escravos eram vendidos aos iorubás de 9Y9, que os retinham te, foram também. alimentar o tráfico transa ariano e o transatlântico. Nesse úl-
em seu território ou os exportavam para serem vendidos a traficantes U<) litoral. timo, sé)gt.UJ.doLovejoy, 74% das presas feitas naquela região teriam sido vítimas
Em 1804, Dan Fodio transferiu seus acólitos para um local protegido, Gu- da jihád" de guerras ou de razias. Exportados através de portos no golfo do Be-
du, definindo essa migração Gomo uma hégira, e ali declarou um<Jjihãd contra nin, sobretudo de Lagos, foram comprados aos milhares por traficantes baianos
o'tegimedosarlâ Yunfa, Este ainda tentaria urna reconciliação de última hora, 011 "oasí3àdós na Bahia, que, usando em especial fumo corno moeda de troca,
mas, quando viu engrossar o êxodo para Cudu, procurou barrá-lo com o uso da . controlavam o grosso da importação de escravos ali embarcados para o Brasil.'
violência. Teria inclusive atentado contra a vida do shchu. Além de diversos gru- A maioria dos 23 africanos do Sudão Central entrevistados no final da dé-
pos fulanís, cujos líderes acataram o chamado à guerra santa, Outros grupos ét- cada de 1840 pelo cônsul francês na Babia, Francis de Castelnau, haviam sido
nicos íslamízados se associaram ao movimento, como algumas tribos ruaregues soldados capturados nessas guerras. Outros foram seqüestrados de Selas vilas ou
ê parcelasdocampes1.natv"hactssásufocado pelo despotísrnode Yunfa. Fique ela- nas esrradas.por bandos armados independentes, Os eÚhévistad"õ;,· eram na sua
r- ro que estajih(id foi, corno escreve john Hunwick, "uma revolução no pensa- maioria haussás e bornos. Mahammah, cujo nome cristão na B:ÜU,l era Manuel,
mento islâmico", no sentido de ter sido feita contra outros muçulmanos, "ou fora capturado numa emboscada durante urna expedição militar contra Borgu,
·1 pelo menos contra outros q1.V~ se consideravam muçulmanos eles próprios" .'c ... um reino Independente a oeste do Calífado de Sokoto, Ele fazia parte da cava-
Murray Last também questiona qve a Jihàd. tivesse sido dirigida contra grupos laria haussá, sendo portanto de Uma classe social superior, uma vez que os me"
realmente pagãos, mas sim contra aqueles que se caracterizavam por haver mis- nos aquinhoados estavam reunidos na infantaria. Capturado, Maharnrnah atra-
turado Q islamisrno com a religião tradícionallocal. Apesar de constituir uma vessou o território iorubá até ser comprado em ljebu por traficantes de Lagos,
frente multiétnica, onde nem sempre o objetivo religioso predominava, onde embarcou para a Bahia. Também cavaleiro haussá de Kano, Adam (talvez
tinha sua liderança formada por fulanis, o grupo mais puritano, destacando-se Adamu), ou Braz na Bahia, após participa:" cle várias expedições COntra provi.'1-
como cabeças, além de D,111 Fodio, seu irmão j\bduh:.hi dan Fodio e seu filho cias rebeldes do Califado de Sokoto, foí aprisionado numa campanha contra
Muhammad Bello. Este último se afirmaria COlTl.O
o estrategista militar e políri- QY9 e vendido em Lagos. AqUi ele viu um branco pela primeira vez, Já Karo, ou
co do movimento} c sucedeu ao pai após a SU4 morte ClTI 1817, sob protestos do Manuel, era de Borno, e foi capturado numa batalha contra os haussás em seu

~.
;<:i~t;

160
outrós H6c:re~~;, lSSCJ~ para dos estavam fora dl;~S2L.
13 011P. , ou Antônio,

161
haussá de Zària, especificou, com algum orgulho, haver participado de 21 cam- Iíngüístico gbe, sobretudo fon-ewe), QY9 já pagava tributo a Nupe no final da dé-

panhas militares sob a"bandeira de Sokoto, até ser feito prisioneiro em Manda- cada de 1780, ainda no tempo de Abiodun, o último alafin de fibra, Seu suces-

ra, reino de Borno. Apesar de essa guerra representar o fim de sua carreira de sor, AWQle, era um fraco e teve que enfrentar sucessivas dissidências entre seus
~ ~ generais, ReInou apenas sete anos e foi obrigado a cometer suicídio, com;'era
homem livre, ele se jactava de que "o exército com o qual marchara devastou o
país Mandara", Tais histórias de africanos escravizados na Bahia, às vezes com de praxe, após ter sua autoridade contestada pelos chefes militares. O próximo

detalhes fascinantes, repetem-se ao longo das páginas de Castelnau.' alafin reinou alguns meses. O historiador iorubá Samuel Johnson escreveu so-

Paralelamente aos conflitos no Norte, outros em territórioiorubá, muitas bre o abatimento moral que sobreveio a QY9 nesse momento de incerteza:

vezes vinculados àqueles, também estiveram na origem da presença de escravos


muçulmanos na Bahia.' O final do século XVIII marcou o inicio da desintegração À medida que a autoridade do rei esvanecia, também cessaram o respeito e a de-

do poderoso império iorubá de QY9, que, além de súbrneter outros reinos de 'ferêncía até então tributados aos cidadãos da capital [ QY9 lle]; eles eramaté tra-

língua iorubá, arrancava tributos de Estados vizinhos como Nupe, terra dos tados desrespeitosamente e se tornaram objeto de canções vulgares por todo o

chamados tapas na Bahia, e Daomé, terra dos chamados jejes (povos do grupo país [iorubá], uma coisa nunca vista antes! A lei e a ordem foram subvertidas, o po-
der triunfou sobre o direito, .e os poderosos chefes voltaram suas armas para sub-
verter cidade após cidade no reino, objetivando aumentar a riqueza e o poder de-
les próprios.'

QY9 desmoronou aos poucos, obra de uma série de guerras civis iniciadas em
torno de 1796-7, com a revolta de Afonjá, um membro da aristocracia iorubá que
pretendeu suceder AWÇ>le.O líder rebelde detinha o cargo de Art; Qna Kakanfo
(comandante-em-chefe) dos exércitos provinciais do reino, e também o título de
Baálç de Ilorin, cidade situada ao sul de QY9 Ile, a capital do reino. O estado de
rebelião do comandante-em-chefe sobreviveu ao apoio recebido por sucessivos
alafins de obás de outras'próvínciás e reinos 'tribufáriOs' em territórioionibá. Es-'
tes, porém, diante do enfraquecimento do poder central em diversas frentes, fo-
ram pouco a pouco desenvolvendo vontade própria, até para guerrear entre si.
Na periferia sul do império, por exemplo, entre cerca de 1811 e 1822, Ife e Ijebu
assaltaram Owu (no reino de Egba) duas vezes, em conflitos sangrentos e pro-
longados - o segundo cerco sobre Owu duraria cerca de cinco anos; O historia-
dor Adeniyi Oroge sugere que esse confronto representaria uma virada na histó-
ria da região, levando à hegemonia política dos chefes de guerra, que detinham
o título de Qlogun. Nessas lutas, os Orno Ogum - escravos-soldados - desem-
penharam um papel fundamental. Muitos deles seriam feitos prisioneiros e ter-
minariam sendo vendidos a traficantes que operavam no mercado baiano.'
',.

tema deste livro. Em torno de 1817 explodia ali uma revolta escrava instigada mem que me comprara lhe disse, "Se você não vender este escravo seu, ele vai fu-
por Afonjá, que vinha havia muitos anos castigando cidades e vilas fiéis ao ala- gir e ir para a guerra, de forma que seus cauris" estarão perdidos, porque esse
.; fino Os escravos de QY9, boa parte deles empregados na famosa cavalaria do rei- moço tem olhos firmes". Então o homem me pegou, me amarrou e seus três fi-
.;. ,I.
no, eram principalmente de origem nortista, na sua maioria haus~·ãs e de forma- lhos levaram-me para a vila de Ajashe [Porto Novo], onde homens brancos tinham
ção muçulmana, embora não se possa dizer que fossem exatamente devotos, já desembarcado; então tiraram os ferros de meus pés, levaram-me para a gente
que muitos ali estavam por terem sido vítimas da jihãd em suas terras. Visando branca, que me comprou, e colocou um ferro em volta do meu pescoço. Depois
a liberdade, eles desertaram em massa, respondendo com entusiasmo ao apelo de ~omprar todo mundo, eles nos pegaram e nos trouxeram para a beira-mar,
de rebeldia feito pelo malàm Alirni, nome por que era conhecido o líder religio- trouxeram uma can?a muito pequena e nos transferiram UDl a um para uma gran-
so Al Sàlih, de origem fulani, conhecido por seu proselitismo na região. Alimi de emb arca çã o."
havia sido incentivado a esta ação pelo próprio ~re Qn4"Kakanfo; que em segui-
da incorporaria seus correligionários como aliados contra o alafin, QY9 não se O destino de Ali Eisarni poderia ter sido a Bahia, mas um navio inglês capturou
recuperaria desse golpe. O investimento do império na escravidão vinha de lon-
o tumbeiro que o transportava e levou seu carregamento de cativos para Serra
ge e tinha várias ramificações. Oroge assim resume esse aspecto pouco elevado
da história do reino: "Em parte devido a seu poderio militar, que fora con~truído
em torno de uma força de cavalaria ligeira, e em parte devido à sua proximida-
de com os mercados do norte, [QY9J era o maior produtor de escravos,o maior
traficante de escravos e o maior usuário de escravos entre os iorubás nos sécu-
los XVII e XVIII".lo Os haussás, que constituíam a maior parte da mão-ele-obra es-
crava servindo em país iorubá, eram particularmente famosos como cordoeí-
ros, vaqueiros, barbeiros, além de terem reputação de veterinários competentes,
uma ocupação vital à cavalaria do alafin, Alguns também trabalhavam na agri-
cultura e como agentes e assistentes comerciais de seus senhores: Embora a maio-
ria desses escravos fosse retida entre os iorubás como trabalhadores especializa-
.. , d~s, u~ ~·~a~d~ núme~·o era tradici~:;;';,lm~ni:~-~~;'clid·~;:,~lit;·~~ pam o tráfico
atlântico. A partir da rebelião de 1817 muitos senhores decidiram vender seus
escravos antes que aderissem ao movimento rebelde."
Foi o caso de Ali Eisarni, muçulmano de Borno - aliás, filho de um 111.aliim
_ seqüestrado por muçulmanos ful anis, vendido a traficantes haussás também
muçulmanos que o revenderam a um iorubá "pagão" de Qy9. Este senhor o tra-
tava bem, mas fora convencido por um amigo de que isso não bastava para evi-
tar que se juntasse aos demais escravos em revolta. Eisarni deixou-nos testemu-
nho do levante escravo na região e de sua desdita pessoal:

Depois de ficar ali quatro anos, uma guerra começou: agora, todos os escravos
24. Ali Eisam.i; muçulmano que seria traficado para o
que iam para a gue1T2,tornavam-se livres; então, quan~o os escravos ouviram es- Brasil) ~e o ttLmbeiYo que o transportava i-:./!q-tivc$5C

sas boas-novas, todos correram para lá, e os iorubás viram .isso. Un: amigo do ho- sido aprr.sado por 1Hn cruzador iitglês {1n c. 15./7.

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Leoa, onde a Inglaterra estabelecera uma base de combate ao tráfico, proibido
pelo país em 1807. Foi ali que o africano narrou a sua história:
s, Já o navio que transportou ;~ufino José Maria escapoudoscruzadores in-
'.'
gleses, e o africano desembarcaria na Bahia em 1822 ou 1823, ou, como ele di-
a
.s ria, no tempo da Guerra de Madeira, ou seja, a Guerra da Independência. Trin-
,~
o
ta anos depois, quando já era liberto, Rufino foi preso em Recife por suspeita de
-o
8 envolvimento numa conspiração. Com ele, foram confiscados uma cópia, do
1:
8 Qur'an e vários escritos. Nessa ocasião ele declarou que tinha dezessete anos ao
.'
~ ser capturado em QYe? pelos haussás, provavelmente ex-escravos rebeldes agora
E
'i<
~J

8 a serviço de Ilorín, tornando-se assim mais um muçulmano vendido por outros


<5'"
~
:::;
.
~
o
como escravo. Tal como o pai de Eisarni, seu pai, Ocochê, era sacerdote muçul-
E mano, a mesma ocupação que o filho viria a adotar no Brasil" e que exercia
"" 8
o
q '" quando preso no início da década de 1850."
~
II É interessante observar que, apesar de muçulmano, em nenhum momen-
~
~,~

,,~ to Ali Eisami imprimiu uma conotação religiosa à narrativa do conflito que o
~ transformara em mercadoria. Tivesse fugido de seu senhor, Eisami provavel-
'" mente terminaria nas fileiras de Ilorin. Os escravos de QY9, agora libertados, vi-
~
~
""Z
riam a constituir a espinhadorsal do exército rebelde cio Kakanfo Monjá. Rufí-
o
f,..1
no também não atribuiu um caráter religioso à "guerra pelos Ussás" que o
'"o transformara em escravo na Bahia. Sua captura sugere que sua família não ade-
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o rira a Afonjá, pois do contrário o escravo baiano teria sido poupado pelos haus-
':::l
(.!)
sás, a essa altura a serviço de Ilorin, De fato, desde o início, muitos muçulmanos
~
-r ..: de Óyó, homens e mulheres livres de nação -io:~~b~,t'end~~ fr;~te ~~;,:rico mer-
I cador charriâdo Solagberu, haviam apoiado o comandante-em-chefe alegando
'1'

~ ~ perseguição do alafin, Há uma versão das atividades de Alimi que o coloca em


'õ;'

~
-c Oke Suna, a comunidade dirigida por Solagberu em Ilorín, quando se lhe fez o
convite para integrar o partido de Afonjá, a essa altura conhecedor da populari-
dade do malãm entre os muçulmanos e talvez já usuário fiel dos arnuletos pro-
tetores que ele confeccionava."
Com a ajuda desses aliados, muçulmanos haussás e iorubás, além de alguns
pastores fulanis que viviam na área, a rebelião estritamente política de Afonjá,
segundo Gbadamosi, "terminou se misturando com o fermento e a agitação
muçulmanos da época" ,16 As forças rebeldes se concentraram na cidade de Ilorin,
que veio a tornar-se espécie de Meca iorubá. Aqui os muçulmanos passaram a
pUS~1.l11'
csc..:.:a.Yos,..pagaos C11 ill1.lÇ'i:;C·';:"C,:; ,:{)!-.no
-
l<:Li:flDO, capturados .
durante a

revolta e os conflitos qUI: se seguiram, ou simplesmente seqüestrados. O histo- fronteira de J;gba atacada por torças muçulmanas baseadas em Iseyin. Ironica-
riador iorubá Babatund~ Agiri comenta a ironia da situação: "Os escravos mu- mente, o patrano local era Obatalá (nosso Oxalá), a divindade mais freqüentemen-
çulmanos que com suc~sso se revoltaram contra o·,goyerno de OY9 em 1817, te associada aos muçulmanos
~.'
por meio de uma série de aproximações
f:
rituais e
I,'

agora possuíam escravos eles próprios"." Mas esse era apenas um aspecto da in- 'simbólicas. Pilho de uma importante família de tecelões, o pai conselheiro elo

versão da ordem na região. " balç de Osogun e a mãe descendente da aristocracia de QY9 e sacerdotisa de
Entre 1817 e 1820, Afonjá empenhou-se na formação de um Exército gran- Obatalá, Crowther, após uma breve escravidão em Iseyn, seria vendido para tra-
demente constituído por soldados", oficiais muçulmanos, tanto que passou para ficantes baseados em. Lagos, ,que o embarcaram para o Brasil, provavelmente
o registro histórico como o jamã'a (comunidade muçulmana) de Ilorin, Para para a Bahia. Seu navio, tal como o de Ali Eisarni, terminou como presa de cru-
aqui convergiram muçulmanos de diversas regiões, inclusive líderes guerreiros zadores britânicos e, foi levado para Serra Leoa. Aqui Crowther narrou sua hís-
e reli t?síosos ou --ozente q.ue acumulava arnbas "as atividades. 18 O paradoxo político tóría."
t -
era evidente: Afonjá não era muçulmano, e se recusara mesmo a converter-se Osogun, uma cidade de cerca de 12 mil habitantes, foi atacada no meio da
ao islamisrno. Seu sonho parece ter sido chegar a alafin e para ser rei de QY9 na- manhã por um bando de muçulmanos íorubás, "maornetanos de OY9" segun-
quela época era preciso adesão aos cultos tradicionais, especialmente o de Xan- do Crowther, mas entre os quais havia também ful anis e haussãs. O ataque fora
gô, orixá patrono do reino e em especial de sua classe dirigente, o alafin no topo. inesperado, porque forças semelhantes já tinham passado por ali diversas vezes
A fórmula que misturava forças muçulmanas e "pagãs" funcionaria apenas por al- sem importunar, o que se combinava com a estratégia de preservar populações
gum tempo, mesmo porque a essa divisão se acrescentava a diferença étnica dos que a qualquer momento pudessem ser atacadas e escravizadas. E foi precisa-

envolvidos na aliança. mente o caso, Os atacantes não estavam absolutamente interessados em conver-
No início da década de 1820 QY9 Ile, a capital do reino, foi atacada e parei- ter ninguém ao Islã. Em sua narrativa Crowther em nenhum momento faria
"almente destruída, mas o velho império ainda conseguiria mobilizar forças para qualquer alusão a isso, e sua própria experiência e a de sua família confirmam
defender-se contra seu antigo servidor. Pode ter sido esse O momento em que que Q ataque não passava de Um negócio. Há uma passagem da narrativa sobre
Rufino acabou como presa de guerra. Mas o pior estava acontecendo fora de o pânico na cidade:
$Y9, porque o alafin já não tinha como defender seus súditos mais distantes, cujas
~,..' :;'-vila-s"continuavam a ser pilhadas sistematicamente pelas forças de Afá~J~~"1\:\:er:;'" Tentando escapar na multidão COmminha mãe.iduas h,~ã~'~·riri;.·p~i'lÍ:io;:f~;";os
ta altura o líder rebelde já não controlava seus próprios homens. Samuel Jom1-"", agarrados por dois íorubás ma01IJ.ç"mOSque imediatamente jogaram laços de cor-
son assim resumiu a situação: da e nos levaram como suas presas [...], Mal tínhamos chegado ao centro da cida-
de, quando dois homens Foulah [fulanís] atacaram nossos captores e brigaram
Os jarnás aumentavam em número e em rapacidade, pari! maior desgraça e ruína com eles par" dividir a presa porque eles não haviam chegado a tempo de pegar a
do país. Quando não tinham uma guerra em mãos eles geralmente se espalhavam sua. Meu primo foi violentamente puxado dos dois lados; e minha mãe, ouvindo
por "todo o território saqueando o povo e cometendo abusos. Entravam em qual- as ameaças dos Poulahs de cortar o pobre sujeito em pedaços se nossos captores
quer casa, faziam-na seu quartel-general, a partir de onde pilhavam a vizinhança e não o deixassem ir, convenceu ..-os de: que seria melhor dá-lo aos Foulahs doque
os distritos próxímos.Alímentavam-se com o gado da casa e levavam o resto con- rnatá-lo; nossos c8ptores, tendo algum sentimento de humanidade, deixaram ()
forme sua vontade e seu prazer." menino para eles, com quem fugiram com a fúria de um tigre."

A pilhagem estendeu-se ao sul do reino de Qyç. Em Crowther concluiuque os "soldados não eram pouco ladrõe~e11s~~ele,spróplios" .
.'~n,gli~;~.r) S~'~~'u~l
Crowther foi capturado cri; é)·~~)it-{ú,"'l.ima descontado o fato de se tratar da narrativa -de . ao cris-

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tianismo, e que via no episódio a obra típica de religiões bárbaras, não há por lorido étnico pelo fato de os primeiros serem iorubás tal como o grande chefe.
que duvidar de sua autenticidade. Segundo Crowther, milhares dos habitantes Conta a tradição oral que durante um festival de egungum, que celebra os an-
de Osogun foram aprisionados e, enlaçados pelo pescoço.Ievados da cidade des- cestrais iorubás, umsétio distúrbio eclodiu entre as duas facções, que daí em
truída atéIseyin, onde o burtn seria dividido. Uma marcha "decerca de dez ho- diante começaram secretamente a preparar-se para a guerra." Sob a influência
ras, passando por cidades e vilas reduzidas a cinzas pelos muçulmanos. Nosso de Alimi, e sobretudo de seu filho e sucessor 'Abd al-Salãm (ou Abdusalarni)-
narrador coube a um dos chefes, que logo o trocaria por um cavalo, do que se aos quais se reunira um grande número de compatriotas fulanis -, a cada dia
arrependeria pouco tempo depois. Foi em seguida vendido de um donoa outro, o exército tendia mais para o califa de Sokoto do que para o Baálç de Ilorin,
até que seu último comprador o embarcou para ° Brasil, aonde nunca chegaria. Quando Monjá percebeu isso, já era tarde. Tentou livrar-se dos antigos aliados,
Em lugar de escravo na Bahia, seria bispo na África. instando-os a abandonar llorin e se estabelecer .em seus arredores, m~s a reação
Johnson inocentou maliim Alímí de responsabilidade pela. campanha de ter- ~ão tardaria: Afonjá foi atacado e, apesar de resistir ao lado de sua guarda pes-
ror na região que, segundo ele, teria sua origem na "arrogância" do próprio soal, terminou assassinado a flechadas. Seu corpo foi em seguida queimado na
Monjá. Se foi assim, o kakanfo estava cavando sua própria sepultura. As relações praça do principal mercado da cidade. Os muçulmanos de origem iorubá não
entre devotos de orixás e devotos de Alá eram tensas em Ilorin, e ganhavam co- participaram do golpe, mas facilitaram o trabalho dos golpistas ao se manterem
neutros, em cima do muro. Estamos em 1823-4, aproximadamente. Seria o fim
do controle iorubá sobre Ilorin, que, nas mãos dos fulanis e sob a liderança de
Abdusalami, se tornaria mais um ernirado ligado, embora frouxamente, a Soko-
to. Digo frouxamente porque o novo Estado ficaria respondendo diretamente à
autoridade do emir de Gwandu, encarregado do governo do califaclo no Sudes-
te do país haussá."
Depois da tomada da cidade de Afonjá, como Ilorin era conhecida, os mu-
çulmanos aqui baseados radica1izaram suas campanhas de escravização. John-
son cita algumas cidades e vilas atacadas nesse período: Kanla, Ganma, El~hÍl1ja-
;~é
re, Id~fian: Oke Oyi, Igbon, Ires; -e o'qu~rteirão de Oke Suna, nos ;~redo~es
de Ilorin, fúhdado por Solagberu, o líder dos muçulmanos iorubás, Segundo
esse historiador, os moradores das vilas mais distantes eram transferidos à força
para os arredores de Ilorin, sendo os homens obrigados a servir nas fileiras mu-
çulmanas, apesar de serem "pagãos" ou convertidos às pressas. Muitas mulheres
e crianças foram vendidas a traficantes em troca de armas de fogo. Quantas não
teriam vindo dar na Bahia." .
A liderança fu1ani de Ilorin não planejava restringir seu controle apenas a
regiões dentro das fronteiras de OY9, antes visando estendê-Ia até a costa do
Atlântico." O empreendimento não seria apenas fulani, mas envolveria, além

25. O bispo anglicano Samuel Crowther, em 1888, tam-


destes, os ex-escravos haussás e os muçulmanos iorubás de OY9 liderados por
'Jém resgatado porum cruzador inglês a mminh~ do Era- ~9lagb~ru. Sobre a participação dos iorubás, que mais nos interessam em função
xi! ~m 1821.

rio 171
Pode ser que a sua ,participação najihãd seja mais bem compreendida como uma durante algum tempo a humilhação de pagar tributo a I19riIl. Era o fim de uma
continuação e uma conseqüência de seus problemas anteriores, Sua prontidão em era, O país iorubá estava convulsionado internamente e desmoronava nas fron-
coloca~interesses religiosos acima da leal~ade nacional, pode-se sugerir,tinl~,a ori- teira~:; a queda de 9Y9 apenas agrav~riaa anarquia, A sociedademilitarizou-se,
gem na progressiva erosão da lealdade ao sistema político tradicional [o alafinado agÇlra inteiramente entregue à ação dos ologuns, os pequenos senhores da guer-
de QY9l qU,ejá era evidente vários anos antes de 1817," ra, sobretudo aqueles que haviam abandonado 9Y9 à frente de inúmeros ban-
dos armados independentes - muitos formados por escravos-soldados - que
Na verdade, esses muçulmanos iorubanos não tinham muita escolha depois da se capturavam :f!1utuamente e atacavam as populações locais. Os prisioneiros.
morte de Afonjá. E ficariam ainda mais à deriva após a eliminação de Solagbçru eram em parte incorporados como guerreiros e dependentes dos ologuns e seus
por Abdusalarni, que temia - ele que era estrangeiro - uma liderança rnuçul- capitães, em parte vendidos na costa principalmente por traficantes de ljebu. Es-
mano-iorubá forte comperindo em terreno próprio cem a sua. A desculpado lí- ses últimos tinham passado a controlar o tráfico na região, substituindo QY9
der fulani para punir as ambições políticas do líder iorubá foi acusá-Ia de não se- em uma importante e tradicional fonte de renda. Enquanto isso, os obás tenta-
guir as normas mais ortodoxas do Islã, a shari 'a. Antes mesmo dessa reedição do vam reorganizar-se, reagir ao avanço de Ilorin, e no processo faziam mais cati-
destino de Afonjá, os iorubás do partido de Solagberujánão se integravam har- vos de guerra para o tráfico. Finalmente, em 1838, o recém-formado reino de
moniosamente a haussás e fulanis. Apesar de serem todos muçulmanos, as di- Ibadan, tendo à frente líderes refugiados de 9Y9, derrotaria as forças do Norte,"
ferenças étnicas não haviam desaparecido: iorubás, ful anis e haussás viviam
separados em quarteirões próprios, e os primeiros eram considerados pelos mu-
çulmanos do porte como sincretistas, afeitos a uma bada', ou prática "fetichis- MAPA 5- PORTOS DO TRÁFICO AFRlCANO

ta"." Porém, àquela altura, voltar a servir o alafin não parecia uma alternativa
viável para os iorubás, até porque QY9 se desintegrava a olhos vistos e atribuía I
( Nigéria
Toga Bením Fronteiras atuais
essa decadência em grande parte a seus súditos muçulmanos. E estes escolhe-
/
ram o lado que vencia. Além da óbvia conveniência política e vantagens mate- \ r 08 Limites de floresta
OYO
\ B Pântano
riais, a convicção religiosa dessa escolha é assunto de difícil penetração, As fon- ~.
\
t~pobre esse momento, da história dos ilorins são po;u,cas, daí talvez porque O·' 100 200km
I I

Law, um especialista, escreveu otrecho acima pisando em ovos.


O avanço das forças de Ilorín sobre território íorubá foi lento mas avassa-
lador. Quando Hugh Clapperton e Richard Lander atravessaram a região, no--
início de 1826, depararam com vilas e cidades desertas e incendiadas, uma atrás
da outra. Em 9Y9 ouviram canções furiosas, cantadas pelas esposas do alafim,
que amaldiçoavam os fulanis de Ilorin, pediam proteção aos orixás, e instavam
BENIN
os oiós a reagir, a esmagar os adversários ou "morrer nobrernente" ." Mas as vi-
las iorubanas do Norte eram agora apenas presas feitas nos intervalos das cam-
panhas de penetração profunda do país iorubá, em direção ao sul. Campanhas
que duraram dez anos, pulverizaram aos poucos o poder dos chefes locais e
transformaram a região num inferno de pequenas guerras, que se espalhavam
feito ond~s,' Em tornod~18?5, o ano do levante ??s malês nfl~ahi?,9rQIJe-.,
a capital do antigo império - foi finalmente abandonada, não sem antes sofrer

IJ3
que, nascidos pagãos n:;\própria Ilorin ou alhures, terminaram por se converter,
Recapitulando: desse pelo menos o início da jihãd de Usuman dan Fomo,
muitas vezes à força, à religião dos que agora os controlavam. Devemos supor,
levas de escravos de diferentes grupos étnicos, comprometidos em maior ou
então, que o nÚ9.1eo dos nagôs islamizados que ~utaram em 1835 seria constitu-,:.
1: menor grau com o Islã, vieram dar na Bahia. Durante as primeiras duas déca-
ído por gente de Ilorin ou de cidades iorubás do Norte que para lá convergiram.
das do século XIX, eles eram principalmente haussás, capturados de um e outro
De fato a grande maioria dOesescravos nagôs da Bahia era, em 1835, gente ori-
lado dos conflitos que levaram à formação do Califado de Sokoto, em ]809, se-
. guidos de rebeliões ocasionais de reinos e lideranças submetidos ou ainda não
unda do reino de 9Y9, fossem muçulmanos ou não. Voltarei ao assunto .
O Islã teve um papel ambíguo nos movimentos político-religiosos da África
conquistados. Exemplos: em ]818 rompeu um conflito entre Muhamrnad Bello
Ocidental na primeira metade do século XIX. De um lado, representou a ideolo-
e Abd al-Salãm, um importante líder insatisfeito com o que considerava despe-
gia e inspirou a formação de Estados geralmente expansionistas. Neste caso foi
__ tismo e injustiças do califa para consigo e sua comunidade; em 1826,.Sokoto fez
um aliadodo poder, com freqüência instrumento "militarista a serviço de senho-
guerra contra Gobir e Borno, tendo este último reino r:~istido sob a Iiderança
res e comerciantes de escravos. De outro, o Islã representou o refúgio dos hu-
do famoso sultão El Kamení." Daí que vamos encontrar escravos de Borno na
mildes, deu força espiritual, moral e organizacional a homens pobres livres que
Bahia, alguns envolvidos na rebelião de 1835. Os prisioneiros feitos nesses con-
viviam subordinados aos poderosos ~ fossem estes adeptos de religiões tradicio-
flitos nortistas eram vendidos na iorubalândia, onde uns ficavam, enquanto ou-
nais ou muçulmanos - e manteve viva a esperança de libertação de milhares de
tros eram exportados, em grande parte para a Bahia. A partir da ampliação
escravos. Foi então um instrumento de resistência e revolta. No que diz respei-
haussá e fulani da guerra civil de Afonjá contra 9Y9, e sobretudo após a elimi-
to ao país iorubá, Babatunde Agiri resume com felicidade esse movimento con-
nação deste e de Solagberu, e em seguida o avanço de Ilorin para o sul, os mu-
traditório:
çulm<\.nos de origem iorubá começariam a aparecer em grande número no ter-
minal baiano do tráfico transatlântico. Muçulmanos, muitos deles nascidos em
Ilorín se tornou ponto de apoio à expansão muçulmana para o sul, mas além de
outras cidades iorubanas, que haviam para lá se deslocado, reunindo-se a outros
suas fronteiras o Islã desempenhou um papel muito diferente daquele que desem-
penhara no emirado. Nos Estados iorub~s independentes, o Islã esteve mais asso-
ciado. aos.escravos.deorigem.nortista (haussá-borno.tapa) e conseqüentemente es-
ta religj~o proporcionou um ponto de comunhão potencial para a consolidação de
uma subcultura escrava distinta. Muitos chefes iorubás perceberam este perigo."

Foi sobretudo essa segunda tradição do Islã que os escravos muçulmanos tenta-
ram reinventar no interior da sociedade escravista baiana.

MALÊ

Na Bahia de 1835, os africanos muçulmanos eram conhecidos como "ma-


lês" 1':1. origem desse termo tem sido objeto de disputa. Braz do Arnaral, por

[75
I7·1
vam o Islã, em oposíçãç à "boa lei", da religião cat6lica. Assim, Braz enfatizava por malês. Bu disse tidos por malês, significando que, provavelmente, à exceção
que o termo era pejoratívo e portanto recusado pelos muçulmanos. Mas enfatí- dos nagôs, os afro-rnuçulmanos na Bahia não se autodenominavam todos assim.
.iou,:um erro, pois "rnalê" não pàrecj..a possuir tal carga negativa, pe19. menos nes- Os muçulmanos haussás, por J:xemplo, se diziam l1wssulmi' ou,.muçulmi, embora
se período, Mais razoável, o historiador norte-americano R. K. Kent associou eu não tenha encontrado esses termos na documentação. Certamente não se di,
rnalê com rnalám, a palavra haussá tomada do árabe um'a1!im, que significa "clé- ziam rnalês, e há indícios de que até abominavam o apelativo, Castelnau ouviu
rigo", ou "mestre"." deles que "se designa sob o nome de MalaLí todos os infiéis". O francês pode ter
Nina Rodrigues, primeiro estudioso competente dos malês, sugeriu qUe; o entendido mal seus informantes, ° que seria uma exceção em meio a informa,
termo derivava, de Mali, o poderoso Estado muçulmano da Costa do Ouro. ções muito precisas que deles colheu. Se entendeu bem, suponho que estarnos
Contudo, a explicação quenos parece mais sensata edireta ~ apresentada por diante de uma atitude de superioridade por parte de um grupo étnico, os haus-
Pierre Verger, Vincent Monteil e Viváldo da Costa Li~á, que associam. o termo sás, ql1e se consideravam mais autenticamente muçulmanos ou muçulmanos de
rnalê a imal~, expressão iorubá para muçulmano. tmrilç, por sua vez, é apontado maior tradição do que os nagôs - da mesma forma que na África os fulanis se
por Kath1een Stasik como sendo derivado de Mali, Reichrnurh confirma-o, mas consideravam superiores aos haussás, entre outros grupos com os quais convi-
complica a etímologia, observando que imalç pode derivar de Molawa, do haus- viam e que inclusive dominavam. 01,1 seja, trata-se de uma físsura étnica, no seio
sá Mallaawaa, ou "Gente do Malí". Dessa forma, Nina, Etienne, Bastide e outros da comunidade muçulmana da Bahia de então, que tinha raizes na África. Nes-
estudiosos que apontam a etnia ma1ink~ como origem de malê teriam passado sa intriga haussá talvez se encontre em parte explicado o sentido negativo que
por cima de um vocábulo mais próximo, Malí estaria então na origem da ori- O termo malé teria adquirido. Maior peso, porém, deve ser dado a uma intriga
gem, na- ordem ~Y1ali~.-.nil1UUÇ ~.~. rnalê, que seria a etímologia mais plausível." .. dos brancos, que' após 1$,35 diabolizaram os rriuçulmános nagõs e fizeram de
Jirlalê,imàlç e expressões afins eram usadas desde l?elo menos o inicio do sé, malê sinônimo do mal. Chegarei lá no final do livro."
culo XVIII para descrever mercadores muçulmanos que atuavam nos entrepostos Os muçulmanos eram minoria na Bahia, mas não minoria desprezível.
do tráfico negreiro no golfo de Benin, onde eram embarcados, na sua maioria, Considerando o tamanho dos grupos étnicos entre os quais o Islã estava mais di.
os escravos que chegaram à Bahia nos anos qU7 precederam ~l~vante de 1835. fundido (haussás, bornos, tapas e nagôs), calculo teremsido eles en.tre15% e
Na década de .1nO,porexei:,,·}plo; ]ea;',:Eaptiste Labat.asscciava-o termo.·maIlais. 20% dos africanos 'c1eSalv"dur em 1835 - mas. estoüfála'h'clódejJessdiJique "ti-
especificamente a negociantes muçulmanos atuando no litoral do reino do Dao- nham compromisso variado com a religião. De fato a maioria dos iorubás víti-
mé, Parece, aliás, que ma!ê era o termo para muçulmano entre os daorneanos, mas dos conflitos que acabei de narrar era adepta do culto dos orixás. Na me-
segundo sugere Robin Law Se estava no circuito do tráfico transatlântico havia - lhor das hipóteses o Islã representava na Bahia 1.1."nconcorrente de peso, num
tanto tempo, por q\.le o termo malê só emergiu na Bahia a partir de 1835? É pos- ambiente em que convivia com o culto dos orixás nagôs, dos voduns jejes, dos
sível que tivesse aparecidoantes, sem ter sido documentado, e tornou-se correu- iskõki haussás, dos ínquíces angolanos ~ entre outras expressões darelígíosída-
te após essa data por causa da maior presença dos escravos de lí11gua,i0rubá (na- de africana tradicional. Somem-se os santos do catolicismo crioulo ~ também
gôs) e fon (jejes, entre os quaís o termo era também usado), que o fixaram no abraçado por africanos ...,--e se terá uma idéia do pluralismo religioso no seio da
linguajar baiano, No entanto, deve ficar claro que na Bahía malê não denomina- população africana e afro-baiana naquela época. Os únicos grupos étnicos cujos
va o conjunto de uma etnia africana particular, mas o africano que tivesse ado- membros parecem ter, na sua maioria, abraçado o Islã antes de chegar à Bahia
ta do o Islã, embora, se quisermos ser bem estritos, e etnicamente corretos, me!- eram aqueles oriundos da haussalândía, de Borno e talvez de Nupe (estes cha-
l.ês mimn apenas os nagôs islamizados. Porém, nagôs, haussás, jejcs, tapas - en' mados tapas na Bahia, termo de extração iorubá). A maioria dos ;:;':l,"C:
fim, indivíduos pertencentes a diversas ernias - eram tidos', se !;mçulm:lbos, africano majoritário D;) na di~':ada de 1830; quJ.sc certamente ;C)~~7 nL:;-

[76
17?
necia adepta do candomblé de orixá. Mesmo entre os haussás continuava a ha- qüentado uma escola corânica na África. E um grande número de libertos haus-
ver aqueles ainda ligados ao culto de seus espíritos nativos. O bori baiano era, sás foi preso por possuir papéis escritos em árabe."
digamos, o candomblé.haussá, havendo notícia deull;, em 1853, que parecia No entanto, é um erro afirmar a exclusividade, ou até a proeminência, dos: i.,

combinar rituais de possessão e magia mussulm." Muitos africanos, é claro, cir- haussás nos negócios íslâmicos na Bahia de 1835, especialmente na revolta, mes-
culavam em mais de.um desses circuitos religiosos, até em todos eles. mo no universo mais especializado da escrita. O islamísmo era uma religião ins-
Foram os haussás que na Bahia se tornaram prontamente identificados talada em 9Y9 desde pelo menos o século XVII. Nas primeiras décadas do sécu-
com o Islã: haussá e rnalê, apesar da origem íorubá deste termo, se tornaram si- '10 XIX pode-se falar de uma significativa comunidade de' muçulmanos iorubás
nônimos. Seria, de quebra, mais um atestado da pouca importância numérica em QY9 Ile, em geral associada ao comércio de longa distância e à manufatura
dos fulanis na Bahia, eles que na África eram tidos c~mo o.smuçulmanos mais têxtil. O próprio alafin, embora pagão, tinha aparentemente o papel de confir-
bem treinados. Em seu relatório sobre a rebelião, 02héfe de polícia Francisco mar a escolha do imã' dos muçulmanos de Óyó. Fora~ estes, como vimos, que
Gonçalves Martins observou a respeito dos rebeldes: "Em geral vão quase todos se associaram a Afonjá em Ilorín, onde muitos tiveram pelo menos alguns anos
sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos, que se assemelham ao ára- de experiência muçulmana concentrada antes de serem capturados e vendidos
be, usados pelos' Ussds, que fig\lram terem hoje combinado com os Nagôs. para a Bahia. Centenas desses muçulmanos, velhos e recém-convertidos, mes-
Aquela nação em outro tempo foi a que se insurgiu nesta Província por várias tres e discípulos, aqui desembarcaram como escravos."
vezes, sendo depois substituída pelos Nagôs"." E a esaava Marcelina, pergunta- Não duvido, inclusive, que por volta de 1835 os muçulmanos baianos fos-
da sobre escritos achados pela polícia na casa de um liberto que lhe alugava um sem nagôs na sua maioria e não filhos de nações minoritárias na Bahia, como a
quarto, disse: "Os papéis de reza de malês [foram] escritos e feitos pelos mestres haussá e, menor ainda, a tapa, ou a minúscula fulani. De qualquer modo, os ma-
dos outros, os quais andam ensinando, e estes mestres são de Nação Ussá por- lês-nagôs tinham poder e prestígio na comunidade africana, pelo menos entre
que os Nagôs não sabem e são convocados por aqueles para aprender, e tam- os de sua nação. Os escravos Ahuna e Pacífico Lícutan, talvez os personagens
bém por alguns de Nação Tapa"," mais importantes do levante de 1835, eram ambos conhecidos mestres malês de
Tanto o chefe de policiacomo a escrava pareciam estar a par da dinâmica nação nagô. Tinham o título de alufá ou àlilfáà (o mesmo que aljà em várias par-
da éonimlidadé'rD.uçtilrrúina·n<\ &hia.E1e-provavelmcnte aprendeu a-lição logo tes'da>AfticaOddéii.tài);téi:mOemIíriguaiÓfÚbY(dS'árabé d.llafa~escrever, 'corri:
no início do inquérito, mas ela o fizera a partir de uma experiência mais longa:, por) para mestre muçulmano, equivalente a malãm entre os haussás. Era.tam-
e profunda. Apesar de católica, Marcelina freqüentava a casa de nagôs que eram bérn alufá e líder rebelde Manoel Calafate, o liberto nagô em cuja casa a rebelião
-I instruídos por Um mestre tapa, Sanin, escravo que tinha o nome cristão de Luís. começara. E outros. Vários nagôs confessaramter se iniciado no Islã antes de
I Daí sua menção aos tapas, vizinhos dos nagôs na África, como mestres. Os de- atravessar o Atlântico. Com o escravo Gaspar (Huguby para os africanos) foram
poimentos de Martíns e Marcelína convergem para a importância do papel dos encontrados papéis esc~:os por ele próprio em árabe, pois que, confessou, "sa-
haussás entre os muçulmanos da Bahia, E não é uma impressão totalmente fal- bia ler e escrever já mesmo de sua terra". No ato de sua prisão chegou a ler "cin-
sa. Havia afinal uma longa história de resistência escrava na região comandada co ou sete linhas da direita para a esquerda" para o juiz de paz, que quis saber
por haussás islarnizados. E em 1835, além ele Sanin, que era tapa, entre os mes- do que se tratava, mas Huguby; segundo o escrivão, "não podia ou não sabia ex-
tres malês havia o comerciante haussá Dandará, liberto, também conhecido por plicar 110 nosso idioma". Para muitos, era impossível traduzir o idioma daquela
seu nome católico, Elesbão do Carrno. Ambos confessaram ser líderes religio- religião para o idioma da escravidão (e tem mais sobre isso adiante). Outro es-
sos antes de embarcarem para a Bahia. Outros haussás admitiram sua farniliari- cravo nagô, Pedro, perguntado sobre o conteúdo de papéis e um livro de notas
uacc1
1
CC,In03 papCl:\ ml1ç:.1in,;'"lnnS.
f'; tI,~n-, rip,lpc' ); o"
-. \..,'- ~ p,.,é'.·'.·,·,l..,·."',Ir-.
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.. c_;-;.:-::,··.·t-: hZ-·,JPf
~
tre-

179
e os papéis várias doutrinas cuja linguagem e sua ciência ele sabia antes de vir
i dotes muçulmanos em seus domínios porque dependiam deles, entre outras
de sua terra". O líber;o Pornpeu, mais cauteloso, informou que "tendo aprendi- coisas, para confeccionar arnuletos que seriam usados dentro e fora do campo
do [a,s 'letras arábicas'] em sua terra;.pequenino, que agora quase n,~da se lern-.. de batalha. O povo comum cik íorubalândia seguia seus chefe~. Éis o depoimen-
.~

brav~", O liberto Ajadi, que era nag6, declarou que "o dito caderno trata da re- to dos irmãos Ríchard e john Lander, que por alí passaram em 1830:
ligião de. seu País porque vira ali semelhante". Ou seja, o Islã é dito por Ajadi ser

1 a religião dos nagôs! Vê-se então que, da mesma


gôs contavam com velhos muçulmanos
forma que os haussás, os na-
em suas fileiras e o prestígio, a influên-
Paruás ou arnuletos são de uso universal, mais especialmente em Yarriba [entre os

t da e ascendência que tinham não podem ser subestimados." É provável inclusi-


iorubás,' principalmeute da QY9J, onde talvez a religião maornetana é menospre ..
sente, e tem menos progresso. Eles são ger,llmente cobertos com pano vermelho
ve detectar que fricções étnicas .entre OS muçulmane.s não permitiram que os
,-
;1·
haussás se submetessem à liderança espiritual e política de mestres nagôs, Isso
ou couro; são usados pela maior parte no braço esquerdo; e dez ia vinte podem ser
às vezes observado na pessoa ou indivíduo."
teve implicações para o levante, conforme vou discutir em futuros capítulos.

Mesmo gn1.pos africanos ainda intocados pelo Islã incorporavam os patuás


por suas alegadas virtudes protetoras. John Mcí.eod, que visitou o Daorné em
PODER E PROTEÇÃO: AMULETOS MALÊS
1803, escreveu que os mercadores árabes invariavelmente "levavam com eles
fragmentos ou Sentenças do Corão que eles distribuíam com os nativos, que ge-
Velhos malês muitas vezes procuravam atrair malês novos. Os documentos ralmente os amarravam nas pontas de varas perto de suas portas como amule-
da devassa sugerem um forte movimento de proselitismo e conversão em cur- tos contra â feitiçaria". A palavra escrita gozava de grandeprestfgio entre aque-
so na Bahia da década de 1830. O rótulo de "passivos" dado a eles como um les africanos mais familiarizados com a cultura oral, para os quaís a escrita em
todo por Bastide é portanto injusto." A penetração muçulmanana comunidade .. si representava magia protetora da melhor espécie. Mesmo entre grupos islami-
escrava se realizava em níveis distintos de profundidade religiosa e de compro- zados como os fulanis, podiam ser encontrados indivíduos que apostavam no
misso, porém. Como em toda relígíão.Eavia um centro mais doutrinário e Uma poder protetor ela palavra escrita de extração não-íslâmica. Segundo relato de
periferia rnenosdcuta 0-·felaxada;-~,rul~1~~~.J:~1
mai~,,~uperfic:ial encontramosa 'ado- ., Hugü'Clappertôn; f6r'á'Üfl1':fúlâiiiqü~seapropi:lâra'de umÜvr~do explorador
ção de símbolos exteriores da cultura muçulmana, O mais notável e difundido;:,
Mungo Park ~ que foi morto buscando a nascente do Níger - para servir "de
desses símbolos eram os amuletos malês. amuleto e preservativo contra balas de mosqueres", Segundo os irmãos Lander,
Os estudiosos do Islã são unânimes em reconhecer a estima por esses arou:": um chefe muçulmano de Borgu possuía, na vasta coleção de patuás a eles orgu-
letos também na África, apesar da oposição de líderes puritanos que de tempo lhosamente exibidos, um livro de canções cristãs, Watts Hymns, que aparente-
em tempo os têm criticado como elementos de uma religiosidade tradicional, mente também vinha da biblioteca de Mungo Park, Este mesmo homem pediu
atrasada, espécie de atavismo pagão. Eles protegiam, por exemplo, o corpo de Ó:
aos viajantes europeus que escrevessem sobre um papel palavras "que o tornas-
soldados e cavalos da puritanajihãd fulani-haussá, e podiam ser muito especiali- sem bem-sucedido em suas excursões de tiro, e na caça a hipopótamos"."
zados. Os chamados laya protegiam contra flechas envenenadas, os denomina, Mas, num ambiente como a Bahia, a escrita ocidental não possuía tanta for-
dos maganin kmfe contra armas brancas. Embora pagão, Afonjá confiava muito ça mística entre os negros quanto os escritos islâmícos. Aqui a popularidade do
na proteção desses arnuletos, que ele usava sempre em suas campanhas milita- talismã íslâmíco remontava aos tempos coloniais, quando era conhecido como
res, sobretudo os confeccionados pelo malam Allmi. Outros chefes iorubás, rnes- bolsa de mandinpa, Mas esse terrnc significado j".1is:'I'1plo, p::ra
mo ern guerra contramuçulmanos de T..k?TÜ':, toleravam .. o proselitismo de sacer- mesmo os patuás que contirharn, entre outros ingredientes mágicos ..

rSo
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