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Para a proposta de leitura de um conto baseado no método recepcional, considere


os seguintes aspectos:

Conteúdo: (apresentar uma proposta de leitura de conto que seja adequado a uma série
do ensino médio bem como uma definição do tema que pretende desenvolver nessa
atividade);
Material: (indicar referências bibliográficas, conforme temática selecionada);
Objetivo: (estabelecer o propósito da atividade);
Procedimentos didáticos: (Considerar as 5 etapas desenvolvidas no método recepcional).

******************************

Conteúdo:
Gênero conto e as temáticas: gestos de afetos e conflito geracional.

Material:
• Cópias do conto A partida, de Osman Lins;
• Três verbetes do dicionário Michaelis: afeto, gesto e sutileza;
• Arquivo em vídeo com trecho do filme Homem-aranha no aranhaverso;
• Arquivo em vídeo com o documentário média-metragem Nascimento/Maternidade
(Tarachime, 2006), filme de Naomi Kawase (duração de 39 minutos, disponível no
Youtube com legendas em francês, mas tenho cópia com legendas em português).

Objetivo:

Fomentar nos alunos a reflexão crítica sobre suas próprias vivências e questões de cunho
geracional e social, por meio da leitura, debate e partilha de experiências gerados via contato
com o conto A partida, de Osman Lins, e materiais de outros gêneros relacionados às temáticas
que ele abrange, inclusive produções audiovisuais.

Procedimentos didáticos - etapas – via método recepcional

Conforme vimos nos materiais didáticos disponibilizados neste disciplina, apresentarei


uma sequência didática, tomando como base o gênero conto, mas sem utilizar a leitura somente
como caminho para pensar a estrutura do gênero ou pretexto para quaisquer outros
ensinamentos (a exemplo de lições de gramática, sobre movimentos literários ou biografias de
autores). O trabalho será centrado, portanto, na leitura, na reflexão sobre o que foi lido e na
interpretação coletiva de tal conteúdo.
O foco desta atividade será a construção de sentidos por parte dos alunos-leitores por
meio da leitura do conto, individual e compartilhada, o debate de ideias, com a partilha de
percepções para o coletivo de alunos, relacionando os elementos de enredo do conto, em suas
minúcias, com as vivências dos alunos, suas experiências pessoais, visões de mundo e ainda o
diálogo do texto-base com outras produções, de diferentes gêneros, que possam auxiliar na
verticalização de leitura.
Sugerimos, assim, uma aula dialogada, interativa, que garanta o livre espaço de faça dos
alunos, distanciando-se, portanto, do modelo expositivo, no qual o professor transmite
conteúdos, diante de uma sala em silêncio. Queremos, dessa forma, distanciarmo-nos da
chamada “educação bancária”, que tem como base a transmissão de conhecimentos, mas, sim,
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a vertente “problematizadora”, com uma relação horizontal entre docente e alunos, respeitando
os espaço de fala e a liberdade de pensamento, estimulando a reflexão, o questionamento e a
criticidade (FREIRE, 1987).

a) Determinação do horizonte de expectativa;

Considerando o teor do conto selecionado para esta atividade, o texto A partida, de


Osman Lins, elegi três temáticas a serem abordadas a partir da leitura, que seguem organizadas
hierarquicamente, sendo, a primeira delas, portanto, a mais importante: 1. gestos de afetos; 2.
conflito de gerações; e 3. envelhecimento.
Pensando nos dois primeiros pontos, a primeira ação de sensibilização da turma, antes
de chegarmos ao conto, terá início com a exibição de um fragmento bastante breve, com um
minuto e dezenove segundos de duração, extraído da animação Homem-aranha no
Aranhaverso, filme recente, lançado em 2018, e entendo ser uma material que auxiliará no
estabelecimento desse diálogo inicial.
O protagonista do filme, que recebe poderes, tornando-se o Homem-aranha, é o Miles
Morales, um jovem negro, que mora no Brooklyn, bairro de Nova York bastante populoso,
posto enquanto espaço pobre e periférico da cidade. No fragmento selecionado, Miles está
sendo levado para a escola por seu pai, que é policial, conversando com ele sobre o seu desejo
de continuar na escola do Brooklyn, por considerar a atual muito elitista, não se sentir parte da
nova escola.
Ao final da cena, após uma discussão, ao sair do carro, o pai diz: “Te amo, filho.”. Miles
responde: “Eu sei, pai. Até sexta.”. Na frente da escola, diante de todos os colegas do filho, o
pai diz pelo autofalante da viatura: “Tem que dizer ‘te amo também’!”. Miles volta-se incrédulo,
reclamando, e o pai insiste que quer ouvir “Te amo, pai.”. Miles continua queixando-se do
“mico” que está pagando na frente de todos, mas, por fim, diante do pedido insistente do pai,
que continua utilizando o alto-falante da viatura, Miles conforma-se e diz: “Pai, eu te amo.”. E
entra e sobe as escadas da entrada da escola, sob olhar e os risos dos demais alunos.
Por tratar da falta do sentimento de pertença de Miles em relação àquele espaço, da
diferença de visões entre o pai e o filho sobre qual em qual escola seria melhor estar, sobre a
distinção social e de qualidade entre a escola anterior e a atual e, sobretudo, pelo diálogo final,
no qual a demonstração de afeto do pai não é respondida a contento de pronto e gera, inclusive,
vergonha no filho diante dos demais estudantes, entendo que, apesar de breve, o fragmento tem
potencial para ser o material gerador do primeiro ponto do método recepcional: a determinação
do horizonte de expectativas.
Todas as questões acima podem ir sendo abordadas gradativamente, mas a última, o
foco no diálogo final entre pai e filho e na reação de Miles e dos colegas à verbalização do “Te
amo, pai” é o ponto principal, por dialogar diretamente com o que será trabalhado no conto
posteriormente e, possivelmente, com a vivência de cada um dos alunos, considerando a faixa
etária, serem também adolescentes.
Cabe abrir uma discussão na sala para perguntar aos alunos o que acham da atitude do
pai e de Miles; se entendem ou não, identificam-se ou não com o constrangimento de Miles em
dizer em público que ama seu pai. Caberá ainda sair da obra ficcional e focar nos relatos de
experiências, questionando como isso ocorre nas famílias, se, em suas casas, demonstrações
desse tipo ocorrem corriqueiramente, se os afetos são demonstrados, tanto pelos familiares (não
apenas a figura paterna) quanto pelos próprios alunos, levantando a questão, inclusive, como
eles se sentem com demonstrações de afeto, seja no espaço privado de suas residências ou
quando ocorrem publicamente e de que maneira tais demonstrações ocorrem.

b) Atendimento do horizonte de expectativa;


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Na segunda etapa de nossa sequência, que tem o pontapé inicial no final da aula anterior,
serão distribuídas para cada aluno da turma cópias do conto A partida, de Osman Lins,
indicando que a leitura deve ser feita em casa, portanto, de forma individual e silenciosa, para
discussão na aula seguinte, e que tais cópias devem, portanto, serem trazidas para a sala.
Mesmo tendo sido indicada e, provavelmente, realizada a leitura individual por cada
aluno em suas casas, começaremos a aula seguinte com a leitura do conto na sala de aula (por
isso o pedido para que o material fosse trazido), uma leitura em voz alta, feita pelo professor, a
fim de que o docente possa dar ênfase às passagens, palavras, expressões, que considerar que
merecem destaque.
Em seguida, o texto começará a ser discutido com a turma. Como se trata de um texto
curto, é possível que, durante o debate em sala, seja retomada a leitura de trechos que ilustrem
o que for sendo debatido para ir sedimentando, cada vez mais, a apreensão das minúcias do
texto.
O primeiro momento estimular os alunos a recontarem oralmente o conto a partir dos
pontos principais do enredo ao perguntar: sobre o que trata o texto? O que acontece? De que
maneira comportam-se os dois personagens: o narrador-personagem e sua avó? Por fim, saindo
do aspecto mais descritivo, partir para uma leitura reflexiva e crítica, perguntando o que os
alunos acham das atitudes de cada um dos personagens.

c) Ruptura do horizonte de expectativa;

Depois disso, é importante que se busque estabelecer uma relação entre o vídeo assistido
pela turma anteriormente e o enredo do conto de Osman Lins, questionando os alunos a respeito
das semelhanças e das diferenças entre as demonstrações de afeto do pai do Miles Moraes e da
avó do narrador-personagem do conto de Lins, bem como da forma que Miles e o protagonista
do conto reagem a tais gestos de carinho. Cabe ainda questionar os alunos sobre por qual
motivo, na visão deles, os personagens mais jovens não são receptivos às demonstrações de
afeto, introduzindo a temática do conflito geracional.

d) Questionamento do horizonte de expectativa;

O passo seguinte será a apresentação de três slides com três verbetes extraídos do
dicionário Michaelis, imagens que serão projetadas no quadro, uma a uma, sendo solicitado que
cada verbete seja lido por um aluno. Os verbetes apresentados serão, respectivamente: “afeto”,
“gesto” e “sutileza”.
O ponto principal desse momento das atividades é levar os alunos a pensarem que os
gestos de afeto podem ser sutis, indo além do “eu te amo” verbalizado em alto e bom som, mas
estar presente nos detalhes, como vemos no conto de Osman Lins, como os cuidados que a avó
tem com o neto, desde as recomendações sobre segurança, disciplina, cuidados com a saúde,
aconselhamento, o olhar prolongado, o ato de cobrir o corpo do neto no momento de ir dormir,
o beijo e, sobretudo, a mesa cuidadosamente posta para ambos, com o uso da “humilde louça
dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários”.

e) Ampliação do horizonte de expectativa.

Caberá, então, voltar à discussão anterior já feita com os alunos sobre as demonstrações
de afeto em suas relações pessoais, pensando agora nesses gestos mais sutis, que vão além da
verbalização. O momento seguinte seria o pedido para que refletissem se conseguem encontrar
exemplos de seu cotidiano familiar de gestos sutis de afeto, como as demonstrações da avó do
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narrador-protagonista, só melhor compreendidas e aceitas por ele com o tempo, após certo
distanciamento e reflexão sobre o passado, visto que o conto escolhido é uma narrativa
memorialista.
Se eu fosse dar essa aula, faria um depoimento pessoal sobre a relação com o meu pai,
que sempre teve enorme dificuldade em demonstrar afeto, mas fazia questão de trazer, de suas
caminhadas no sítio, pedras que lhe pareciam mais bonitas, diferentes, que lhe chamam a
atenção. Um dia, um dos presentes que me deu foi um “corisco”, também chamada de “pedra-
raio”, que algumas pessoas acreditam, popularmente, cair do céu no momento que um raio
atinge determinado lugar. Nos agradecimentos de um de meus trabalhos acadêmicos, abri
dizendo: “Aos meus irmãos e ao meu pai, este por seu amor rústico, de contidas demonstrações,
que só o tempo e as pedras recolhidas pela estrada foram capazes de desvelar”.
Creio que um exemplo pessoal, como esse, poderia estimular os alunos a ficarem mais
à vontade para a fala. Acredito que qualquer docente seria capaz de trazer exemplos de sua
própria vivência para fortalecer esse vínculo com os alunos e o estímulo ao engajamento deles
sobre o tema, ficando à vontade para falarem de si mesmos.
Ainda pensando na ampliação do horizonte de expectativas, faria a exibição de novo
material audiovisual: o documentário em média-metragem Nascimento/Mãe (Tarachime,
2006), da diretora japonesa Naomi Kawase.
Nessa produção, temos diversas cenas de interação entre Naomi Kawase e sua avó, que
a criou. O documentário trabalha a questão do vínculo entre as duas personagens que se
estabelece e mantém-se, mesmo com alguns conflitos (havendo uma cena de forte discussão
entre as duas), sendo o afeto de todo o tempo de cuidados e convívio muito mais forte e
relevante, independente de Kawase não ter sido gerada pela mulher que a criou.
No enredo, temos o nascimento do filho de Kawase (momento filmado pela própria
cineasta), imagens de interação dela, de seu filho em tenra idade e de sua avó, as reflexões da
avó sobre ficar sozinha após a partida de Kawase para a cidade na qual mora, o câncer da avó
de Kawase e a reflexão sobre sua morte.
No documentário, há algumas cenas de nudez, tanto o parto de Naomi Kawase quanto
o corpo envelhecido de sua avó, sobretudo falando do câncer de mama que a levaria à morte,
no entanto, não há qualquer espécie de erotização, e tratando-se de atividades voltadas para o
ensino médio, pela faixa etária, entendo que isso não represente um problema.
Após a exibição do documentário, será o momento de conversar novamente com a
turma, em roda de conversar, para, mais uma vez, estimular um olhar comparativos entre os
materiais apresentados até o momento: como se estabelecem e mantém-se as relações de afeto
entre os personagens, que gestos de afeto são possíveis observar e quais as semelhanças e
diferenças entre as obras apresentadas até o momento, focando ainda, mais uma vez, em como
as questões geracionais influenciam no modo como os personagens relacionam-se.
O diálogo entre o conto de Osman Lins e o filme de Kawase também pode ser
estabelecido tratando sobre envelhecimento. Creio que caberia tratar tanto da solidão na velhice,
com os filhos (sejam eles biológicos ou não), em determinado momento, saindo de casa,
“ganhando o mundo”, como se diz popularmente, algo que acontece nas duas narrativas, quanto
a configuração de família, nos três materiais trabalhados com os alunos, que fogem à família
tradicional, pois tanto o personagem do conto quanto a personagem do documentário foram
criados por suas avós. Tratar de tal questão pode levar os alunos a identificarem-se com suas
próprias histórias de vida.
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Sugiro, como atividade final, que, apesar do texto-base da sequência ser um conto, que
os alunos sejam estimulados a escreverem uma crônica, pensando sobre os sutis gestos de afeto
que permeiam o seu cotidiano.

REFERÊNCIAS:

AIRES, Kelly Sheila Inocêncio Costa Aires; SILVA, Maria Analice Pereira da Silva;
BEZERRA. Conto: quem conta um conto oculta um ponto. Aula 8. In: Teoria literária II.
João Pessoa: IFPB, s/d. p. 119-133.

AFETO. In: Michaelis: dicionário brasileiro da língua portuguesa. Editora Melhoramentos


Ltda, 2019. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/afeto/. Acesso em: 19 mai. 2019.

BEZERRA, Marta Célia Feitosa Bezerra; BARBOSA, Socorro de Fatima Pacífico;


PEREIRA, João Batista. A Estação e o conto de Machado de Assis. Aula 2. In: Literatura
brasileira III. João Pessoa: IFPB, s/d. p. 26-33.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GESTO. In: Michaelis: dicionário brasileiro da língua portuguesa. Editora Melhoramentos


Ltda, 2019. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/gesto/. Acesso em: 19 mai. 2019.

KAWASE, Naomi. Tarachime Naomi Kawase, 2006. 1 vídeo (38min53s). Publicado pelo
canal Funde a Negro Club de Cine. 25 set. 2018. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WttTrCXEEGY. Acesso em: 19 mai. 2019.

LINS, Osman. A partida. Conto brasileiro. 18 abr. 2015. Disponível em:


https://contobrasileiro.com.br/a-partida-conto-de-osman-lins/. Acesso em: 18 mai. 2019.

PAI, eu te amo - Homem-Aranha: no Aranhaverso. 1 vídeo (1min19s). Publicado pelo canal


Show do cinema. 17 mar. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P-
fQ4oIPweU. Acesso em: 19 mai. 2019.

SEGABINAZI, Daniela Maria; LACERDA, Andrea Maria de Araújo; ALVES, José Helder
Pinheiro. Abordagem do conto no ensino médio. Aula 8. In: Metodologia do ensino de
literatura. João Pessoa: IFPB, s/d. p. 131-147.
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SEGABINAZI, Daniela Maria; LACERDA, Andrea Maria de Araújo; ALVES, José Helder
Pinheiro. O conto no ensino fundamental. Aula 1. In: Metodologia do ensino de literatura.
João Pessoa: IFPB, s/d. p. 73-89.

SUTILEZA. In: Michaelis: dicionário brasileiro da língua portuguesa. Editora Melhoramentos


Ltda, 2019. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/sutileza/. Acesso em: 19 mai. 2019.

ANEXOS:

ANEXO A - A partida – Conto de Osman Lins

Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante.
Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha
impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a
horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a
afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica,
um paletó justo que eu não pudesse despir.
Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir
conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no
dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios,
domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo
era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na
posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!
Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso,
pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me
parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.
Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para
a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a
entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.
Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer
arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos
aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o
tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.
Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:
— Acordado?
Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas
pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam,
indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo
a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.
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Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria


dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha
avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou,
emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de
leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a
mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a
então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e
chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um
morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar.
Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de
mim. Eu não estava morto.
Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas
grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
Acordei pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo com obstinação, quis
novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das
três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então
o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto
antes minhas cadeias de disciplina e de amor.
Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me
e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama.
Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras… Que
me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro,
ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria
um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse
mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-
se de ter dormido muito. Tentava sorrir.
Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura
de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava
beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora
do adeus, ela chorasse?
Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um
gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta
e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a
humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos
aniversários).

O texto acima, publicado em “Os Gestos”, Editora Melhoramentos — São Paulo, 1975, consta
também do livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, seleção de Ítalo Moriconi,
Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 190.

LINS, Osman. A partida. Conto brasileiro. 18 abr. 2015. Disponível em:


https://contobrasileiro.com.br/a-partida-conto-de-osman-lins/. Acesso em: 18 mai. 2019.
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ANEXO B - Imagem do verbete “afeto”, do dicionário Michaelis


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ANEXO C – Imagem do verbete “gesto”, do dicionário Michaelis


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ANEXO D - Imagem do verbete “sutileza”, do dicionário Michaelis


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