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INFÂNCIA CHAPADA: A MEDICALIZAÇÃO DO TRANSTORNO DE DÉFICIT DE


ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE DOPED CHILDHOOD: THE MEDICALIZATION
OF ATTENTION DEFICIT HYPERACTIVITY DISORDER

Chapter · June 2018

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2 authors:

Ricardo Pimentel Méllo Priscila Dantas Da Costa Garcia


Universidade Federal do Ceará
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MÉLLO, R. P.; GARCIA, P. D. da C. Infância Chapada: a medicalização do transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade. In: PIANI, P. P. F.; MOREIRA, A. C. G.; BRIGAGÃO, J. I. M. (Org.). Direitos Humanos, Saúde Mental e
Drogas. Belém(PA): Pakatatu, 2016. p.146-162. ISBN: 978-85-7803-288-3
146

INFÂNCIA CHAPADA: A MEDICALIZAÇÃO DO


TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E
HIPERATIVIDADE
DOPED CHILDHOOD: THE MEDICALIZATION OF ATTENTION DEFICIT HYPERACTIVITY
DISORDER
Ricardo Pimentel Méllo1, Priscila Dantas da Costa Garcia2
Resumo
Trata-se de ensaio desenvolvido a partir de pesquisa bibliográfica sobre o processo de medicalização
do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e do uso da medicação indicada para
o seu tratamento, o metilfenidato. Segundo dados da IMS-PMB –Pharmaceutical Market, o
metilfenidato teve seu consumo no Brasil elevado em 1.616%, no período de 2000 a 2008, ganhando
o título de “droga da obediência”. O TDAH e sua medicalização tiveram suas condições de
possibilidade no encontro da infância com a psiquiatria. Este processo de enlaçamento se deu pela
lógica do biopoder ou controle da vida, por meio de estratégias de disciplinarização dos
considerados “anormais”. Concluímos que, certas práticas “psi” agem impulsionadas por
diagnósticos de Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), caracterizando crianças com
TDAH de modo indiscriminado, as condenando, desde tenra idade, a romper seus laços sociais com
amigos e colegas.
Palavras-Chave: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade; TDAH; Medicalização de
Crianças; Metilfenidato; Ritalina.

Abstract
This essay focuses on published research about the medical treatment for Attention Deficit
Hyperactivity Disorder (ADHD) in which the methylphenidate is the recommended drug of
treatment. Data from IMS-PMB – Pharmaceutical Market shows that in Brazil the use of
methylphenidate increased 1.616% from 2000 to 2008, and it received the nickname of “obedience
drug.” The medical treatment of ADHD became possible when the psychiatry met the childhood and
designed its treatment using the logic of biopower, or life control, or of strategies to tame the
considered “not normal”. We concluded that certain “psy” practices act propelled by assessments of
Antisocial Personality Disorder (APD) labeling children with ADHD indiscriminately, thus
imposing that these children from very young age break their social connections with friends and
acquaintances.
Keywords: Attention Deficit Hyperactivity Disorder; ADHD; Medications for Children;
Methylphenidate; Ritalina.

1
Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia
da universidade Federal do Ceará.
2
Psicóloga Clínica, graduada pela Universidade Federal do Ceará.
147

INFÂNCIA CHAPADA: A MEDICALIZAÇÃO DO


TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E
HIPERATIVIDADE

A partir de uma pesquisa bibliográfica desenvolvemos esse ensaio sobre


o processo de medicalização do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH) e do uso da medicação indicada para o seu tratamento, o metilfenidato. O
TDAH e sua medicalização tiveram suas condições de possibilidade no encontro da
infância com a psiquiatria, que findou com esta se apropriando daquela. Apesar de
um início menos biologista (vide a Psicanálise), a psiquiatria acabou seguindo o
rumo contemporâneo da via química na investigação das angústias humanas,
fazendo com que sintomas de sofrimento fossem silenciados. Na verdade, como
afirma Birman (2001), seguindo traços menos biologicistas encontraremos a tese de
Freud de que há um conflito que sempre se fará presente em cada um de nós entre
registros da pulsão e civilização de forma estrutural, que gera desamparo (Méllo,
2008). É uma tese que “[...] não apostam todas as fichas no cérebro, na genética,
nos hormônios. Deixam um espaço amplo para a existência, os projetos os
encontros a interpessoalidade” (Nogueira Filho, 2001, p. 28).

Sintomas tratados quimicamente e as pessoas “chapadas”. Esse termo


geralmente é usado para designar terrenos com extensas superfícies planas em
regiões de serras, que tem vegetação rasteira (Houaiss, 2001), ou seja, esse tipo de
terreno acaba se destacando de outros relevos de serra que têm características
opostas: ondulados e mais acidentados. Quanto a outro uso comum do termo,
deseja-se comparar pessoas que não estão usando drogas depressoras com as que
usam e ficam “chapadas”, referindo-se a certa inércia ou sonolência. Portanto,
usamos de forma crítica o termo “chapada”, entendendo certas prescrições médicas
como no caso do TDAH, advindo do fato de que crianças são diagnosticadas como
“acidentadas” demais, hiperativas e precisam ficar mais “rasteiras” e menos
148

“onduladas”, mais “planas”, sem muitas alterações. Passa-se “chapinha” para


ficarem “chapadas”.

O metilfenidato, da família das anfetaminas, (vendido com os nomes


comerciais de Ritalina e Concerta) não foi produzido “para dar conta” de crianças
inquietas, no entanto o uso dessa substância com tal intuito aumentou o número de
diagnósticos médicos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e,
concomitantemente, a produção da droga. Esse processo de enlaçamento entre
infância e psiquiatria se deu por meio de práticas discursivas sobre o normal
instituído pela lógica do biopoder, aliadas a estratégias de disciplinarização dos
considerados “anormais”.

Nesse texto nos atemos ao uso do metilfenidato em crianças


diagnosticadas com TDAH, mas sabemos que seu uso vai além disso, sendo
batizada de “pílula da inteligência” ou “droga dos concurseiros” por estudantes que
querem melhorar seu desempenho em provas, sustentando o uso do medicamento
no mito de que ele melhora o desempenho cognitivo e magicamente aprimora a
concentração, abranda o cansaço e permite que se “acumule” mais informação
rapidamente. Esse mito foi desfeito em pesquisa realizada pelo Departamento de
Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo onde se concluiu que: “a
memória e a atenção de jovens saudáveis não são alteradas após o consumo de
metilfenidato” (Unifesp, 2012). Mas, pesquisas como essa parecem não chegar ao
conhecimento dos profissionais de saúde nem da população em geral. Segundo
dados da IMS-PMB – Pharmaceutical Market (instituto suíço que mantém
atualizado os dados do mercado farmacêutico brasileiro), o consumo de
metilfenidato no Brasil cresceu 1.616%, no período de 2000 a 2008, lhe dando o
título de “droga da obediência” (Luengo, 2010, p. 76). Esses números colocam o
Brasil como o segundo maior consumidor de Ritalina do mundo, perdendo apenas
para os Estados Unidos.

O que não é mito é o efeito do metilfenidato: aumenta a concentração


de dopaminas (neurotransmissor associado ao prazer) nas sinapses, mesmo
mecanismo de ação das anfetaminas e da cocaína, ou de outros estimulantes. E
conforme a bula da Ritalina (2013) os efeitos adversos “podem ser sérios”: inchaço
149

dos lábios ou língua, ou dificuldade de respirar (sinais de reação alérgica grave);


febre alta repentina, pressão arterial muito elevada e convulsões graves (Síndrome
Neuroléptica Maligna); dor de cabeça grave ou confusão, fraqueza ou paralisia dos
membros ou face, dificuldade de falar (sinais de distúrbio dos vasos sanguíneos
cerebrais); batimento cardíaco acelerado; dor no peito; movimentos bruscos e
incontroláveis (sinal de discinesia); equimose (sinal de púrpura trombocitopênica);
espasmos musculares ou tiques; garganta inflamada e febre ou resfriado (sinais de
baixa contagem de células brancas do sangue); movimentos contorcidos
incontroláveis do membro, face e/ou tronco (movimentos coreatetoides); ver ou
sentir coisas que não existem na realidade (alucinações); desmaios (convulsões,
epilepsia ou crises epilépticas); bolhas na pele ou coceiras (sinal de dermatite
esfoliativa); manchas vermelhas sobre a pele (sinal de eritema multiforme). A bula
também nos diz que os efeitos adversos “muito comuns” são: dor de garganta e
coriza; diminuição do apetite; nervosismo; dificuldade em adormecer; náusea, boca
seca. E há uma observação importante em relação as crianças que tomam Ritalina
por um “período longo”: “podem ter um crescimento mais lento que o normal”, mas
“geralmente o recuperam quando o tratamento é interrompido”. Outra informação
que não pode ser esquecida que é grafada em letras maiúsculas: “ATENÇÃO:
PODE CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA”.

O Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde de


São Paulo emitiu Alerta Terapêutico nº 01/2013 (São Paulo, 2013) sobre uso do
metilfenidato, após fazer avalição de 553 notificações suspeitas de reações adversas
associadas ao uso desta substância. Uma das conclusões desse estudo afirma que:
“O uso do metilfenidato pode ter contribuído para o óbito de cinco pacientes em
tratamento, considerando-se que o medicamento pode causar ou agravar distúrbios
psiquiátricos como depressão e ideação suicida”. Já a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA) alertou para o uso crescente do metilfenidato em
todas as regiões do país. Considerando-se a Dose Diária Definida (DDD)/1000
crianças entre 6 e 16 anos/dia, o aumento no consumo do fármaco foi de 164%
entre 2009 e 2011 (Anvisa, 2012).

Outro estudo importante que pode indicar certa tendência grave foi
desenvolvido por Silva (2014) em uma unidade de saúde infantil na cidade de
150

Santos (SP). Analisando o uso do metilfenidato em crianças de seis a dez anos, no


período de 2008 a 2012, percebeu uma redução na prescrição da Ritalina, porém, o
que poderia ser interessante, na verdade mostrou-se ainda mais preocupante: estava
ocorrendo uma substituição por Risperidona, em 45,7% das crianças, que é uma
droga antipsicótica, também tarja preta, indicada para “tratar” esquizofrenia e não
tem recomendação de uso pediátrico, senão a partir de quinze anos (Risperidona,
2013). A seguir o depoimento de um médico: “As crianças que tomavam Ritalina
por causa de Transtorno de Conduta, eu entrei com Risperidona e o sucesso foi de
100%”; “A Risperidona é muito melhor, você bota um limite” (Silva, 2014, p. 53).
Ou seja, com os alertas e pressões advindos do uso abusivo de Ritalina, faz-se a
substituição por outro medicamento, sob a mesma justificativa do uso do
metilfenidato: dar disciplina às crianças.

Diante dos alertas e tantos efeitos possíveis (ainda tem outros na bula
não listados aqui), será que se justifica esse tratamento destinado a crianças que são
“[...] difíceis de lidar, tanto na escola quanto em casa” (bula da Ritalina)? Essa
“indicação” na bula da Ritalina tem relação direta com a conclusão de estudo da
ANVISA que nos mostra que suas vendas são reduzidas nos meses de férias e há
um aumento considerável no segundo semestre do ano quando vão finalizando o
período escolar com as provas finais (Anvisa, 2012) Precisamos entender sobre esse
uso. Comecemos pela história da infância e do TDAH, entendendo que estratégias
de controle biopolítico (Foucault, 1979, 2006) iniciam nessa “etapa” do nosso
processo de socialização.

Sobre a infância, o normal e o patológico

A patologização e consequente medicalização de modos de vida


humanos veio com o alargamento das práticas médicas que se tornaram
hegemônicas na disciplinarização da vida. Nesse caso é preciso entender que não se
trata apenas de ficarmos discutindo a criação de doenças (vide CID e DSM) e suas
consequentes medicalizações, mas o que ocorre é o “gerenciamento da vitalidade
humana” (Rose, 2010, p. 631): “considerar um aspecto da vida humana como
151

biológico, hoje, é sugerir que ele pode ser transformado através da tecnologia”.
Assim, quando se localiza um “déficit de atenção” no corpo de uma criança, logo se
busca uma biotecnologia que compense ou detenha esse problema bio-lógico. Esse
caminho final é precedido por técnicas diagnósticas construídas pelos doutos
sabedores do funcionamento biofísico do humano. Criam-se padrões universais de
vitalidade humana que funcionam como marcadores dos limites aceitáveis para a
fluidez da vida: “a redução da pluralidade de opiniões a uma única opinião
politicamente correta é outro traço antipolítico fundamental dos grupos organizados
biopoliticamente” (Ortega, 2004, p. 13).
Sob esta perspectiva podemos nos deter no “curso da história” sem
ocupar aqueles e aquelas que leem este texto como mais uma espécie de “história
ctrl-c ctrl-v”, copiando infindas citações de historiadores importantes como
Philippe Ariès (1981), Colin Heywood (2004), Demause (1991), para enfim
concluir que infância e criança são conceitos/categorias construídas, com
caraterísticas que vão mudando ao longo da história e que antes do século XVI
eram inexistentes na Europa onde emergiu. Naquela época, não havia tantos
estágios na vida humana, como teorias da Psicologia e Pedagogia nos querem fazer
crer existir como etapas naturais do “desenvolvimento humano”. De uma categoria
que apenas espera se dissolver certa dependência de sobrevivência materna, a
criança passou a ser o personagem de um período: a infância. Logo se percebeu que
aquele personagem sendo submetido “à educação formal” poderia ser domesticado
e, com ascensão dos Estados Modernos, as famílias ou comunidades ondes esses
personagens nasciam foram convencidas que deveriam entregar seus filhos a
educadores, cuja função era moralizar e disciplinar “[...] esses seres estranhos dos
quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem nossa língua” (Larrosa,
1998, p. 229). Portanto, com a construção das sociedades modernas e criação dos
Estados, começa-se a gerir a vida de tal modo que esta passa a “ser investida por
cálculos explícitos e por estratégias de poder” (Caponi, 2009, p. 533). E assim, a
vida, o corpo, a saúde, as necessidades, a reprodução, que antes faziam parte da
esfera pré-política, transformam-se em questões políticas por excelência. As
estatísticas contribuem para dotar esse processo de maior objetividade,
multiplicando taxas de mortalidade e morbidade, taxas de natalidade e dados sobre
152

a distribuição de epidemias e doenças. (Caponi, 2009, pp.533-534). Todos os


humanos são contáveis e controláveis.
No contemporâneo aceitamos culturalmente que a criança é alguém
“que vai crescer e que ainda não está pronto” (Neme, 2003, p.15). Assim criamos,
em consonância com a noção desenvolvimentista, que o “acabado” seria uma fase
posterior à infância: a chamada “vida adulta”. Nessa perspectiva, a criança passa a
ser considerada como importante na medida em que é tratada como o “futuro da
nação”, “esperança de um mundo melhor”, projetada, portanto como o que será um
adulto ideal. Essa preocupação com o futuro fez com que, ao longo do século XX,
houvesse um aumento da cientifização dos discursos sobre a criança, que contribuiu
não somente para a profusão de um “discurso pedagógico normalizador, mas
também para a validação de um saber sobre a criança no campo das especialidades:
psicologia, psicopedagogia, psiquiatria, etc.” (Guarido, 2007, p. 156). Essa prática
científica tem levado a um número cada vez maior de diagnósticos psicopatológicos
e terapêuticas que reduzem ou “comprimem” o sofrimento na infância. Com isso,
em idade cada vez mais precoce, temos crianças medicadas de modo a se sanar um
sintoma inconveniente, abortando-se as manifestações da singularidade de um
sujeito (Guarido, 2010). Assim, reduz-se o “psiquismo” e o “sofrimento” a um
“transtorno”, que tem uma base biológica e que pode ser corrigido com a
medicação. Isso ocorre à medida que emergem medidas de controle da população,
tendo a figura do médico como um agente administrador da saúde (Foucault, 1979).

Breve história do Transtorno de Déficit de Atenção e


Hiperatividade (TDAH)

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) “surgiu”


como categoria nosológica em 1980 no Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais, terceira edição - DSM III (American Psychiatric Association,
1980), classificado como patologia que normalmente tem seu primeiro diagnóstico
na infância, tendo como sintomas principais a “desatenção” e
hiperatividade/impulsividade. Porém, não foi a primeira vez que “maus
153

comportamentos” passaram a fazer parte de categorias médicas já que em 1902 o


pediatra inglês George Frederick Still apresentou seus estudos sobre a “Doença de
Still” em três palestras no Royal College of Phisicians (Lima, 2005). Nesse estudo,
realizado com cerca de vinte crianças, Still percebeu uma prevalência de três
meninos para uma menina “afetados” com essa doença, que apresentavam ausência
de “volição inibitória”. Acreditava no fator hereditário de um “defeito no controle
moral”, que fazia com que as crianças adotassem uma conduta desafiadora,
agressiva e indisciplinada (Silva, 2009). Holman, na mesma linha de pesquisa que
tentava mostrar que haveria uma origem biológica no “mau comportamento” em
1922, descreveu a “Desordem Pós-Encefalítica do Comportamento” (Lima, 2005,
p. 66), que na década de 1960 foi nominada de “Disfunção Cerebral Mínima”
(Silva, 2009). No final dessa década o DSM-II (American Psychiatric Association,
1968), criou a categoria “Reação Hipercinética da Infância” que na década de 1980,
em sua terceira edição reformulou essa categoria nosológica que passou a ser
denominada de “Distúrbio de Déficit de Atenção” (DDA).

Em sua atualização mais recente, de 2013, o DSM-V (American


Psychiatric Association, 2013b), manteve os mesmos critérios de diagnósticos para
TDAH do DSM-IV, ou seja, continuam a ser divididos em dois domínios de
sintomas (desatenção e hiperatividade/impulsividade). Esta edição define o TDAH
como um “padrão persistente” de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que
interfere no funcionamento ou desenvolvimento, com sintomas observados em dois
ou mais espaços (por exemplo, em casa, escola ou trabalho, com amigos ou
parentes), e afeta negativamente o desempenho social, acadêmico ou ocupacional.
Dentre as alterações que foram feitas em relação ao DSM-IV, nós destacamos duas
como importantes: 1) ampliou-se a definição do TDAH para incluir critérios
diagnósticos a adultos e adolescentes, assegurando que as crianças com TDAH
possam continuar a ser diagnosticadas com esse transtorno por toda a vida; 2)
“Finalmente, ADHD [sigla norte-americana para o TDAH] foi colocado no capítulo
desordens do neurodesenvolvimento para refletir que o desenvolvimento do cérebro
se correlaciona com ADHD [...]. (American Psychiatric Association, 2013a, p. 02.
Tradução Nossa). Assim, além de localizar o TDAH como uma doença
154

neurológica, praticamente lhe dá o veredito de incurável e tendo, necessariamente,


de ser medicalizada por toda a vida.

Apesar das exigências da “sociedade hipercinética” (Silva et. al. 2012,


p. 50) onde a vida adulta deve manter um ritmo acelerado, a infância deve viver o
inverso. Nessa perspectiva, armados de manuais diagnósticos e estatísticos, não
mais questionamos o que acontece nas instituições escolares, na família, ou em
outros espaços sociais e centramos nossos diagnósticos na criança, que
necessariamente dever ser medicada e, sobretudo, silenciada aumentando a
prescrição indiscriminada do metilfenidato. Dessa maneira, a substância obtém o
status de medicação, deixando a marginalidade da “droga” devido à legitimidade
institucional, e seus usuários recebem o rótulo de doentes (Brant & Carvalho,
2012). Temos um caso importante de uso abusivo de droga: sem questionar sobre o
funcionamento de dispositivos disciplinares nas escolas, família e sociedade,
crianças que os desafiem tem como destino o uso de uma droga, cujo efeito a curto
e longo prazo é desconhecido. A criança ideal deve ser disciplinada e se não for,
Ritalina nela!

Por uma vida libertária seja na chapada ou na montanha

A patologização da vida levou a uma epidemia de diagnósticos, fazendo


emergir a “Era dos Transtornos” (Moysés, 2012). A medicina utiliza estratégias
para lidar com esses problemas: a medicação e a medicalização. Por medicação,
entende-se uma prática terapêutica presente quando se diagnostica uma doença
orgânica, a qual não se encontra outra estratégia de cura ou tratamento (Franco et.
al., 2013). A medicalização é um termo “que surgiu no final da década de 1960 para
se referir à crescente apropriação dos modos de vida do homem pela medicina”
(Gaudenzi & Ortega, 2012, p. 244). Assim, aspectos da vida que poderiam ser
analisados por diversos saberes, tais como sociologia, antropologia, psicologia,
história, etc., passam a ser objetos de estudo de “um único domínio metodológico
disciplinar: a medicina” (Guarido & Voltolini, 2009, p. 241).
155

A ampliação de estudos sobre o suposto funcionamento do cérebro


tornou-se mais importante que uma análise mais detida da queixa e a constituição
de um sofrimento. Se as pessoas são tratadas como um corpo feito de matéria inerte
e que não vibra (Méllo, 2012) e que padece de um problema “bioquímico”, a
resposta terapêutica para os seus sofrimentos se dá pela via química: o uso de uma
droga nomeada como medicação. No caso do TDAH, o corpo agitado e inquieto “se
tornou aquilo que está em jogo numa luta entre os filhos, os pais, entre a criança e
as instâncias de controle” (Foucault, 1979, p. 147). Criou-se a “necessidade” de o
corpo ser gerido com uma droga (metilfenidato) que passou a ser a “melhor
solução” a situação em que todos se incomodam com a inconstância e criatividade
infantil. A droga da disciplina também é a droga do silêncio. Voltamos ao período
manicomial só substituindo o material da camisa de força: agora temos a contenção
química (Silva, et. al. 2012).

Isso se agrava ainda mais em relação a crianças que são consideradas


“hiperativas” e que “não conseguem se concentrar” porque causam incômodo a
certa ordem já constituída. De algum modo o que observamos é que paira sobre
essas crianças que desafiam a ordem duas noções que caminham juntas há muitos
séculos: “anormais” e “perigosas”. Como aponta Vicentin, quando se refere aos
jovens em conflito com a lei, a noção de periculosidade “foi uma das bases de
configuração de uma psiquiatria criminológica” (Vicentin, 2010, p. 49) e que nos
parece estender suas presas as crianças diagnosticadas com TDAH. Se essa
psiquiatria agia e ainda age impulsionada por diagnósticos de Transtorno de
Personalidade Antissocial (TPAS), do mesmo modo diagnosticando crianças com
TDAH de modo indiscriminado, as condena a desde tenra idade romper seus laços
sociais com amigos e colegas, à medida que será uma criança com transtornos.
Uma criança transtornada. E tal transtorno, sua hiperatividade, lhe traz uma
tendência antissocial, por desafiar a norma. Camisa de força química nelas. Está
proibida a criatividade no lidar com crianças incomuns.

Por outro lado, agindo assim, desconsideramos que vivemos em uma


sociedade hedônica, proibida de sofrer. Sociedade onde cada um de nós deve viver
momentos eternos de felicidade, que diante do menor sintoma de tristeza devemos,
na obrigação de sermos felizes, buscar alívio rápido com soluções milagrosas:
156

tomar medicamentos para isso. Resultado: temos o aumento do consumo abusivo de


drogas psicotrópicas, produzindo uma sociedade legalmente adicta desde tenra
idade. O tráfico (comércio, negócio) legal de drogas (indústrias farmacêuticas), os
pontos de vendas de drogas (farmácias) e todos os vendedores legais, agradecem. E
que sejam bem-vindas as infâncias chapadas.

Chico Buarque e Edu Lobo já nos mostraram, na música “Ciranda da


Bailarina”, que toda criança tem algo que lhe tira de terrenos confortáveis e lhe
remete a acidentes; mostraram que a criança-bailarina perfeita só existe em
histórias de carochinhas, e nelas nós não acreditamos. E você?

Procurando bem Medo de subir, gente

Todo mundo tem pereba Medo de cair, gente

Marca de bexiga ou vacina Medo de vertigem

E tem piriri, tem lombriga, tem ameba Quem não tem

Só a bailarina que não tem

Confessando bem todo mundo faz pecado

E não tem coceira Logo assim que a missa termina

Verruga nem frieira Todo mundo tem um primeiro namorado

Nem falta de maneira Só a bailarina que não tem

Ela não tem

Sujo atrás da orelha

Futucando bem Bigode de groselha

Todo mundo tem piolho Calcinha um pouco velha

Ou tem cheiro de creolina Ela não tem

Todo mundo tem um irmão meio zarolho

Só a bailarina que não tem O padre também pode até ficar vermelho
157

Se o vento levanta a batina

Nem unha encardida Reparando bem, todo mundo tem pentelho

Nem dente com comida Só a bailarina que não tem

Nem casca de ferida

Ela não tem Sala sem mobília

Goteira na vasilha

Não livra ninguém Problema na família

Todo mundo tem remela Quem não tem

Quando acorda às seis da matina

Teve escarlatina Procurando bem

Ou tem febre amarela Todo mundo tem

Só a bailarina que não tem


158

Referências:

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