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História do Campesinato

na Fronteira Sul
Letra&Vida Editora
Conselho Editorial:
Antônio Suliani (Presidente), Antônio Dalpicol, Ildo Carbonera,
João Carlos Tedesco, José Hildebrando Dacanal, Luis Alberto De Boni,
Míriam Gress, Paulo Ricardo Suliani, Vania Beatriz Merlotti Herédia.
HISTÓRIA
DO CAMPESINATO
NA FRONTEIRA SUL
Paulo A. Zarth
organizador

Claiton Marcio da Silva


Marcos Gerhardt
Delmir José Valentini
Dirceu Benincá
Isabel Rosa Gritti
Paulo Pinheiro Machado
Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
Cristiano Desconsi
Eunice Sueli Nodari
Isaura Isabel Conte
João Carlos Tedesco
Joel João Carini
José Carlos Radin
José Manuel Palazuelos Ballivián
Márcio Antônio Both da Silva
Tau Golin
Walter Frantz

2012
© Paulo A. Zarth, 2012

Capa:
Nilmara Trindade da Silveira

Editoração:
editor@suliani.com.br – (51) 3384.8579

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

H673 História do campesinato na Fronteira Sul. / Organizador: Paulo


A. Zarth. – Porto Alegre: Letra & Vida: Chapecó: Universidade
Federal da Fronteira Sul, 2012.
320 p.; 16 x 23 cm.
ISBN: 978-85-8118-027-4
1. Camponeses – história. 2. Brasil – Fronteira Sul – Mesorregião. I.
Título.

CDU 94(816.5)

Bibliotecária responsável Kátia Rosi Possobon CRB10/1782

Av. Presidente Getúlio Vargas, 609N – 2° andar


Bairro Centro – Chapecó – SC
www.uffs.edu.br

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Porto Alegre, RS – Fone: (51) 3384.8579
www.letraevida.com.br – suliani@letraevida.com.br
Apresentação

Um livro deve ser o machado


que quebra o mar gelado em nós.
Franz Kafka

O bom livro é aquele que se abre com interesse


e se fecha com proveito.
Amos Bronson Alcott

As epígrafes acima traduzem bem as expectativas que os livros,


de um modo geral, e este, em particular, carregam e despertam.
Independentemente da relação que estabelecemos com eles, quer
como autores, produtores ou leitores, os livros continuam a ser obras
de criação e de invenção humana, por meio das quais retratamos a
realidade e refletimos criticamente sobre ela, assim como produzimos
novos olhares, perspectivas, relações e, por que não dizer, mundos.
Ao invés de fechamentos, os livros promovem aberturas, ampliam
olhares e criam/inventam novos horizontes.
O presente livro inscreve-se claramente nessa perspectiva. Ele é
parte de um processo em curso, de grande importância acadêmica,
científica e política na Mesorregião da Grande Fronteira do Merco-
sul. Trata-se do esforço coletivo e partilhado de criação/implantação
da primeira universidade pública federal nessa grande região de
abrangência, composta por mais de 396 municípios dos três Estados
do Sul do Brasil. A Universidade Federal da Fronteira Sul é, hoje,
uma realidade; é uma obra em construção que, ao inventar-se, tam-
bém desencadeia, transforma e cria novas dinâmicas e processos.
Além de oportunizar o acesso ao ensino superior público e gratuito, a
UFFS promove outras dimensões fundamentais da vida universitária
e sociocultural, essenciais ao desenvolvimento do país e da região de
sua abrangência. A pesquisa é uma dessas dimensões; ela materializa
e intensifica a presença transformadora da universidade.

Mais que ligar-se ao processo de implantação da UFFS, a obra que


ora chega a público reveste-se de particular importância por ser
a primeira publicação que tem como temática central de análise a
Mesorregião da Fronteira Sul. Os artigos que a compõem procuram
aportar elementos que ajudam a compreender a formação/transfor-
mação dessa região. Tendo em vista os temas e a qualidade dos textos,
esse livro será, certamente, leitura obrigatória para estudantes da
educação básica e do ensino superior, assim como para pesquisadores
de diferentes áreas do conhecimento.

Esse é um livro, como sugere Amos Bronson Alcott, que se abre com
interesse e se fecha com muito proveito.

Prof. Dr. Joviles VitÓrio Trevisol


Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFFS
Sumário
Introdução ............................................................................................................. 9
Paulo A. Zarth

PARTE I
CAMPONESES E POVOS INDÍGENAS
1 Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena –
cultura, ambiente e biodiversidade........................................................... 17
José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
2 O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra......... 33
Joel João Carini, João Carlos Tedesco
3 Os missioneiros ............................................................................................ 58
Tau Golin

PARTE II
TRAJETÓRIAS CAMPONESAS
4 Colonos na Fronteira Sul ............................................................................ 76
José Carlos Radin
5 A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento
da guerra na região do Contestado (1906-1916)...................................... 95
Delmir José Valentini
6 O movimento do Contestado e a questão de terras ............................. 115
Paulo Pinheiro Machado
7 A busca pela terra e a migração dos colonos
do Sul para o Mato Grosso ....................................................................... 133
Cristiano Desconsi
8 Os colonos judeus no Brasil ..................................................................... 154
Isabel Rosa Gritti
9 Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul.......................... 172
Márcio Antônio Both da Silva
10 Juventude rural e modernização da agricultura:
tensões entre extensão rural e movimentos sociais
na região Oeste de Santa Catarina (1970-1985) ..................................... 195
Claiton Marcio da Silva
11 Trajetórias camponesas: resistências, exclusões,
êxodos e tentativas de reinserção ............................................................ 209
Edemar Rotta

PARTE III
NOVOS TEMAS DE PESQUISAS
12 Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região ..... 224
Eunice Sueli Nodari
13 Os caboclos e a história da paisagem ..................................................... 240
Marcos Gerhardt
14 Águas que geram energia e luta .............................................................. 256
Dirceu Benincá
15 Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos ...... 277
Isaura Isabel Conte
16 Organização cooperativa na agricultura familiar ................................. 295
Walter Frantz

AUTORES.......................................................................................................... 318
Introdução

Paulo A. Zarth

1 Os camponeses e os povos indígenas

Os textos deste livro fazem parte de uma pesquisa sobre o campe-


sinato e os povos indígenas da Fronteira Sul do Brasil, espaço compreen-
dido pela Mesorregião Grande Fronteira do Mercosul, que abrange o
Norte do Rio Grande do Sul, o Oeste de Santa Catarina e o Sudoeste do
Paraná. O trabalho foi realizado com o apoio da CAPES através de uma
bolsa de Professor Visitante Nacional Sênior na Universidade Federal
da Fronteira Sul. A seleção dos artigos deste volume tomou por base as
novas abordagens e os novos temas historiográficos investigados por
diversos pesquisadores da região, numa perspectiva crítica à tradição
centrada na ideia de progresso e da colonização europeia como centrali-
dade. Neste livro, a presença dos povos indígenas junto com os campo-
neses tem o propósito de mostrar que a história do mundo rural do Sul
tem estreitas conexões entre indígenas, colonos de origem europeia e
povos de origem africana. Os povos indígenas não pertencem a um
mundo aparte e, como os textos revelam, estão estreitamente relacionados
com a sociedade regional num processo de interculturalidade, seguindo
uma interpretação que se consolida nas ciências sociais de hoje.
Reunimos três artigos que expressam em boa medida novas tendên-
cias acadêmicas sobre os povos indígenas. Até recentemente eles eram
vistos como atrasados e que precisavam ser civilizados, desconsiderando
seu modo de vida, cultura e relação com a natureza. Tais concepções
serviram de base ideológica para os colonizadores usurparem suas terras
mesmo depois das demarcações do século XIX. O texto de José Manuel
Palazuelos Ballivián e Alexandra Carvalho P. de Palazuelos se insere num
movimento recente de valorização do conhecimento, ao qual se conven-

Introdução 9
cionou chamar de saberes tradicionais dos povos indígenas. A Convenção
da Diversidade Biológica, produzida pela Conferência das Nações Uni-
das para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio 92), assinada pela
maioria dos países, ampara essa dimensão do conhecimento como fun-
damental para conservação da diversidade biológica na terra. O artigo faz
parte do esforço recente de diversas instituições para pensar a educação
nos termos da própria cultura indígena e não mais do ponto de vista
eurocêntrico, respeitando a cosmovisão dos caingangues e dos guaranis
que habitam o território sulino.
O estudo de Joel João Carini e João Carlos Tedesco é um exemplo do
notável movimento dos indígenas pela retomada das terras invadidas por
colonos com conivência dos governos ao longo do século XX. Pela primei-
ra vez, depois de séculos, os indígenas protagonizam a reconquista de parte
de seu território. O artigo revela também a mudança de postura política
de instituições como a igreja e o governo, indicando que as pressões da
sociedade pelos direitos dos povos indígenas surtiram efeito nesses casos.
Tau Golin aborda a história do povo guarani dos Sete Povos das
Missões a partir das discussões historiográficas e literárias a respeito
dos missioneiros na constituição da identidade sul-rio-grandense. O autor
analisa exaustivamente o processo de indianização da sociedade regional
após a invasão do território das Missões em 1801 por aventureiros gaúchos.
Observa ainda que a indianização vai mais além da mestiçagem, e pres-
supõe uma imanência cultural que leva inclusive descendentes da imi-
gração do século XIX e recente (poloneses, italianos, alemães, espanhóis,
etc.) a se identificarem como missioneiros. Esta identidade é difundida por
artistas populares, educadores, historiadores e arqueólogos que defendem
a existência de uma arte e cultura missioneira. Tal reivindicação significa
um forte movimento cultural que pretende reconhecer que os indígenas,
incluindo os guaranis e os caingangues, impregnam a sociedade regional
com seus traços e costumes. Eis um campo de pesquisa que tende a
frutificar e o ensaio do autor é uma boa referência metodológica.

2 Camponeses colonos, caboclos e negros

A tradição historiográfica tem tratado a história do Sul a partir de


critérios étnicos. Além dos pioneiros portugueses, os títulos dos livros
se referem principalmente à imigração alemã, italiana e polonesa, as
quais constituem os principais grupos imigrados no século XIX e XX.
Outros grupos também merecem atenção proporcionalmente a sua parti-
cipação no conjunto da colonização do Sul. Estes pequenos agricultores
são os denominados “colonos”. Estas histórias mantêm uma certa difi-
culdade em estabelecer relações entre os diversos povos que habitam

10 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo A. Zarth


o Sul do Brasil, especialmente quando se trata de caboclos, indígenas
e negros. Na atualidade, por influência das teorias associadas à ideia de
interculturalidade ou de multiculturalismo, os pesquisadores têm se dedi-
cado a dar visibilidade a essas relações, as quais foram historicamente
conflituosas, preconceituosas e excludentes. Os artigos aqui apresentados
revelam essa tendência que vem se consolidando no mundo acadêmico
e aos poucos vai formando uma nova visão entre os cidadãos que com-
partilham essa sociedade multicultural.
Um dos pontos altos das novas pesquisas é o que podemos chamar
de reabilitação do caboclo. Esse antigo morador da floresta do Sul brasi-
leiro era quase invisível na historiografia que fazia apologia aos colonos.
Quando visíveis, eram vistos como ignorantes e atrasados que deveriam
tudo aprender com os imigrantes europeus. Hoje, em primeiro lugar,
as principais pesquisas indicam sua presença, dando-lhes visibilidade
necessária. Em segundo lugar, o suposto atraso e ignorância são substi-
tuídos por uma visão de valorização cultural, procurando salientar sua
relação com a natureza e formas diferenciadas de religiosidade, de uso
do território e de modo de vida. Outra característica importante da nova
historiografia sobre os camponeses é a crítica à ideologia do progresso
que revestiu ideologicamente os projetos de colonização públicos e priva-
dos. José Carlos Radin mostra como as autoridades do estado de Santa
Catarina difundiram um discurso baseado nesses argumentos, enfati-
zando o trabalho, no sentido weberiano, como ponto fundamental de
distinção do colono em contraponto ao caboclo.
A história cabocla tem na Guerra do Contestado seu maior evento e
hoje é objeto de inúmeras pesquisas que aprofundam as análises sobre
um dos maiores conflitos sociais da República brasileira. As novas
pesquisas, longe de atribuir ao suposto fanatismo dos caboclos a origem
do movimento, trazem à luz cada vez mais argumentos indicando as
políticas públicas e o avanço das empresas madeireiras e colonizadoras
como ponto central no desencadeamento do conflito. O texto de Delmir
Valentini, fruto de sua tese de doutoramento, revela a importância da
Brazil Railway Company na deflagração do conflito e na violência que
assolou a região entre 1912 e 1916. Tem razão o autor ao indicar o condi-
cionante econômico como fator imprescindível no desencadeamento da
Guerra, na medida em que desapropriou moradores que viviam a tempos
na região.
O avanço do capitalismo na região, através das empresas ferroviárias
e de colonização, significou um conflito de interesses também entre
colonos e caboclos em relação ao uso das terras. Paulo Pinheiro Machado
destaca que a invasão da região, na esteira da modernização, por imigran-
tes colonos de origem alemã, italiana e polonesa, não passou despercebida
pelos sertanejos. Um bilhete encontrado no bolso de um caboclo morto em

Introdução 11
combate afirmava que o governo republicano expulsava os brasileiros das
terras da nação para vender aos colonos europeus. Eis aqui um exemplo
de contato conflituoso entre dois grupos culturais distintos.
Nas novas pesquisas acadêmicas, além de revelar a presença de
caboclos e povos indígenas nas terras ditas “devolutas”, os colonos são
apresentados de forma menos laudatória do que no passado quando
indicados como referência de progresso, de civilização e de sucesso
extraordinário. De forma crítica, a nova bibliografia vem revelando as
dificuldades da imigração europeia e das novas migrações no interior
do Brasil, onde se repetem as dificuldades e as angústias inerentes aos
processos migratórios. A imigração dos camponeses para o Brasil signi-
ficou transferir para a América os problemas vividos no continente
europeu, conforme a análise de Radin. No novo mundo, a migração
continuou como uma alternativa recorrente. Cristiano Desconsi seguiu
a trilha dos migrantes sulinos em direção ao Centro-Oeste do Brasil no
início século XXI, os quais deram continuidade à jornada migratória ini-
ciada no século XIX desde a Europa até Rio Grande do Sul e depois no
Oeste de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná. A caminhada não para: lá,
na fronteira distante, o autor percebeu que os colonos do Sul continuam a
voltar o olhar para municípios e microrregiões localizadas “mais à frente”.
Incluímos neste livro um exemplo pouco conhecido da colonização
do Sul brasileiro, como foi o caso dos imigrantes judeus, os quais fugi-
ram das conhecidas perseguições no Leste da Europa e enfrentaram
enormes dificuldades no Norte do Rio Grande do Sul. Isabel Griti
analisa a colonização judaica em Quatro Irmãos promovida pela Jewish
Colonization Association, revelando os problemas decorrentes do modelo
administrativo dessa companhia colonizadora.
Um tema que dá os primeiros passos nas pesquisas na Fronteira
Sul trata do campesinato negro. Na historiografia tradicional, os povos
de origem africana eram, de um modo geral, invisíveis, deliberada-
mente esquecidos ou minimizados como algo incomum e sem maior
importância. No entanto, as pesquisas atuais chegam a surpreender
muitos leitores ao revelarem a presença de trabalhadores negros escravi-
zados nessa região e que deram origem à população afrodescendente
atual. Os indícios revelam a existência do que Ciro Flamarion Cardoso
conceituou de brecha camponesa no sistema escravista. Desta população
escravizada ao longo do século XIX emergiu um campesinato negro
que sobreviveu com enormes dificuldades, como mostra a pesquisa de
Márcio Both da Silva. O autor demonstra que a orientação das políticas
públicas era a de limitar o acesso à terra, condicionando os ex-cativos a se
inserirem na sociedade como agregados ou peões seguindo os conselhos
de Alexis Tocqueville para o caso das colônias francesas, ao observar
que os negros livres não estariam inclinados a trabalhar para um senhor,

12 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo A. Zarth


preferindo viver independentes como camponeses em sua própria terra.
Ainda que os indícios revelem que alguns estancieiros tenham doado
terrenos para seus ex-cativos, como forma de assegurar mão de obra
nas imediações das fazendas, é evidente que não houve uma política
pública de distribuição de terras aos ex-escravos. Ao contrário, as terras
disponíveis foram distribuídas para imigrantes europeus. No entanto,
esses trabalhadores rurais de uma forma ou de outra se estabeleceram
como agricultores em terras alheias sob diversas condições negociadas
com os proprietários. O campesinato negro é um tema incipiente e está
aberto para pesquisas.
Os movimentos sociais do campo da atualidade parecem unir os
camponeses em torno de problemas comuns que atingem a todos, sem
distinção de origem étnica e cultural. Por isso não é raro encontrarmos
lutando lado a lado colonos, caboclos, camponeses negros e, em certos
momentos, povos indígenas. O exemplo clássico se refere ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, que agrega camponeses de
diversas origens étnicas sob a bandeira da luta pela reforma agrária. Tal
fenômeno tende a consolidar uma identidade camponesa acima de outras
identidades culturais e, talvez, superar os conflitos históricos.
Muito se escreveu sobre a revolução verde e seus efeitos econômicos
na agricultura regional, mas ainda é importante aprofundar-se nas pes-
quisas sobre as estratégias utilizadas pela extensão rural para induzir os
camponeses a adotar o chamado “pacote tecnológico”, que causou pro-
fundas transformações sociais e culturais. Ao mesmo tempo, conside-
rando que a revolução verde é um projeto em constante renovação, é
fundamental conhecer as estratégias de resistência camponesa que foram
gestadas ao longo das últimas décadas. Claiton Marcio da Silva estudou
os clubes 4-S voltados para a juventude rural, que partiam do princípio
que os jovens estavam mais aptos para aceitar as inovações tecnológicas.
O destaque desse estudo é justamente o movimento de resistência campo-
nesa através da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que, também apostando
nos jovens, passou a implodir os clubes 4-S em Santa Catarina. A visão
crítica da juventude rural ligada à pastoral era incompatível com as
políticas de modernização do campo.
As ações críticas da juventude rural fazem pleno sentido ao obser-
varmos que a chamada modernização da agricultura foi um processo
excludente que forçou milhares de camponeses a migrarem para outras
regiões ou para as cidades. O artigo de Edemar Rotta analisa esse proces-
so como a inserção da pequena agricultura no capitalismo, revela os
impactos econômicos, mas também os profundos impactos sociais, desa-
gregando antigos costumes e valores do campesinato. Ao mesmo tempo, o
autor traz elementos importantes para estudo da urbanização decorrente
do êxodo rural.

Introdução 13
3 Novos temas na história do campesinato

Um tema fundamental e que só recentemente mereceu a atenção dos


pesquisadores é a história ambiental, apesar dos impactos contundentes
sobre o meio ambiente decorrentes do processo de colonização. A obra de
Marcos Gerhardt é um dos primeiros estudos no Norte do Rio Grande do
Sul e sua análise serve, de um modo geral, para outras áreas da floresta
ombrófila mista do Sul do Brasil. A história ambiental da região remete
necessariamente ao estudo dos povos indígenas e suas relações com a na-
tureza, cuja história revela que esses povos conviveram durante séculos
na região sem causar danos significativos ao meio ambiente, conforme
anuncia o texto de Eunice Nodari. Se para os povos indígenas a floresta
representava tudo na vida e precisava ser preservada, para os colonos
significava algo completamente diferente, causando diversas impressões
de impacto aos primeiros imigrantes. Como destaca a autora, uma das
inovações da história ambiental é a análise da natureza como protagonista
da história. Os rios, o Uruguai, por exemplo, e os tipos de florestas e cam-
pos influenciam significativamente a história dos humanos na Fronteira
Sul.
Durante mais de um século, a colonização da região causou fortes
impactos no meio ambiente. As questões centrais relativas a tais impactos
giram em torno do desflorestamento arrasador e das consequências decor-
rentes na fauna e no solo. Nos últimos anos a água tornou-se um tema
saliente na região em função da poluição de rios e mananciais subter-
râneos e, sobretudo, da construção de usinas hidrelétricas. A novidade
desse fenômeno é que a luta pela terra, que marcou a história dessa região
por séculos, incluiu agora a água como um novo elemento litigioso. O
mundo industrial urbano, ávido de energia elétrica, invadiu as terras da
região e represou grandes e pequenos rios, inundando a terra fértil dos
camponeses. O texto de Dirceu Benincá analisa essa questão destacando
a trajetória do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o qual se
articula num movimento mais amplo que atua em todas as regiões do país
e se relaciona com outros grupos do mundo todo através da Via Cam-
pesina.
Entre os temas novos da historiografia está a história das mulheres
camponesas que emerge paralelamente ao protagonismo feminino a partir
dos anos 80 do século XX. Isaura Conte descreve a trajetória do Movi-
mento das Mulheres Camponesas (MMC) no Sul do Brasil. A autora
é pesquisadora e ao mesmo tempo militante do movimento, condição
que permite uma análise singular e uma forma de testemunho histórico
das lutas das mulheres camponesas. O protagonismo das mulheres no
mundo rural do Sul vem sendo cada vez mais considerado, mas é pela
emergência de suas lutas reivindicatórias, a partir dos anos 80, que alcan-

14 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo A. Zarth


çam visibilidade. Os historiadores e historiadoras têm um longo trabalho
pela frente para superar a historiografia masculina construída a partir de
uma visão patriarcal da sociedade camponesa da Fronteira Sul.
O cooperativismo é uma das formas de organização mais conhecidas
entre os camponeses do Sul do Brasil e deram origem a importantes
empresas agroindustriais. Inicialmente a cooperativa era uma alternativa
dos pequenos agricultores para escapar da exploração dos comerciantes
que acumulavam riqueza através de mecanismos de compra e venda. A
desconfiança nos comerciantes e a possibilidade de criação de instituições
cooperativas motivaram os colonos a se organizarem com o objetivo de
alcançar um preço justo para seus produtos. Mais tarde, a expansão do
capitalismo nos pequenos estabelecimentos familiares foi uma ameaça
de destruição das práticas associativas. As antigas cooperativas locais
sucumbiram diante da modernização da agricultura baseada na revolução
verde e foram incorporadas por grandes cooperativas regionais. As gran-
des cooperativas foram resultado e ao mesmo tempo agentes desse pro-
cesso de modernização. Além desses aspectos econômicos, o autor traz
valiosas contribuições para pensar o cooperativismo como espaço de rela-
ções que transcendem a dimensão exclusivamente econômica. Os dados
da pesquisa com base em depoimentos de cooperativados revelam que
a cooperação é ainda um espaço importante de organização dos campo-
neses como forma de resistência e merece mais atenção dos historiadores.

Introdução 15
1
Adequação de temáticas socioambientais
na educação indígena
– cultura, ambiente e biodiversidade –

José Manuel Palazuelos Ballivián


Alexandra Carvalho P. de Palazuelos

No paradigma atual dominante da globalização percebemos que alguns


fenômenos mundiais têm provocado uma tendência cada vez maior à
homogeneização de comportamentos humanos para dentro de formatos
padronizados e mais uniformes, fato este evidenciado claramente quando
analisamos o tema do consumo de produtos vinculados à indústria
e ao comércio de mercadorias. Por outro lado, uma realidade ainda
pouco (re)conhecida nos mostra um Brasil historicamente multiétnico
e pluricultural, com determinados grupos e sociedades que resistem,
até os dias de hoje, à sua integração num modelo capitalista dentro da
racionalidade ocidental. São saberes, valores e formas particulares de
viver que hoje se encontram em sério risco de mudanças drásticas, ainda
mais do que já foram afetadas, pela sujeição e dependência cada vez
maior à sociedade nacional dominante e suas estruturas.
Mais particularmente, estamos falando das comunidades tradicionais
indígenas, grupos estes que historicamente trazem consigo uma identi-
dade marcada por características próprias de ser, estar e se relacionar
entre si, com as outras sociedades e com o meio ambiente.
Levando este aspecto para a questão da educação indígena diferen-
ciada, verificamos que a escola vem tomando uma importância maior
para estas comunidades, exigindo cada vez mais uma melhor preparação
das crianças e jovens para enfrentar e lidar com um mundo certamente
interligado em diferentes graus e formas. Porém, surge igualmente uma
necessidade de garantir que determinados princípios, concepções e rela-

Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena – cultura, ambiente e biodiversidade 17


ções de “raiz” (o conhecimento ancestral) sejam mantidas e continuem
a nortear o rumo de seu grupo, respeitando os processos próprios de
socialização e de reinterpretação das necessidades e desafios atuais. Neste
sentido, a escola, além de propiciar conhecimentos necessários para lidar
com as normas, códigos e oportunidades do mundo da sociedade não
indígena baseada na ciência ocidental, é também desafiada a introduzir,
através de uma pedagogia mais crítica e contextualizante, as temáticas
socioambientais que são relevantes dentro da visão própria de ver o mun-
do – a sua cosmovisão.
Porém, ao verificar sobre a existência de materiais didáticos ou paradi-
dáticos que estejam disponíveis para os professores e que abordem
temáticas em prol da afirmação de identidade e da relação entre ser
humano e natureza, encontramos poucas experiências concretas sobre
o tema. Ainda mais, muitos desses materiais e pesquisas se encontram
quase que exclusivamente em bibliotecas e universidade das grandes
cidades, longe das terras indígenas e de suas escolas, inclusive escritas
numa linguagem extremamente acadêmica e disciplinar, não compreen-
didas pelos indígenas.
Da mesma forma, muitas das temáticas abordadas dentro das ciên-
cias naturais, biológica e ecológica ou são tratadas dentro de uma visão
antropocêntrica ou, ao contrário, exageradamente conservacionista ao
grau de não aceitar pessoas em certos ambientes naturais. A ciência oci-
dental, ou seja, o conhecimento científico não indígena, historicamente
foi sendo separado em partes até chegar ao que hoje conhecemos como
disciplinas e áreas do conhecimento específicas. Este processo trouxe
muitos benefícios e aportes à humanidade, pois permitiram conhecer os
elementos da vida e seus processos com maior detalhe e profundidade,
porém trouxe consigo também consequências negativas. Uma delas foi o
distanciamento do ser humano com a natureza e de sua relação espiritual
– um certo grau de artificialização da vida.
Dentro desse contexto, e apoiados no livro paradidático apresentado
por Palazuelos (2006), apresentamos na continuação nove temáticas que
fazem parte da ligação que sempre existiu entre os povos indígenas e a
natureza, ou seja, a forte interação de dependência e de complemen-
taridade entre os mundos: social-humano, natural-ecológico e sobrena-
tural-espiritual.

1 Natureza e culturas tradicionais

As culturas indígenas sempre mostraram uma relação íntima com


a natureza. Isto se expressa, usualmente, através dos próprios nomes da
etnia, das pessoas e da divisão social em grupos que trazem significados

18 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
de elementos, coisas e fenômenos ligados à natureza. Os povos indígenas
se sentem parte integrada dela e a conformam junto aos espíritos e
deidades que habitam nela. Isto a torna sagrada, portanto, criando vín-
culos ou laços de reciprocidade.
Todo conhecimento indígena é basicamente empírico, sendo transmi-
tido desde a infância. Eles vivem em contato com a natureza, conhecem
os hábitos dos animais, em que épocas dão cria, de que se alimentam,
quando podem ser caçados e como caçá-los; conhecem as plantas, as
que fazem bem para a saúde e as que são venenosas. E todos estes
conhecimentos estão também diretamente relacionados com suas músicas,
danças, crenças e rituais. Assim, o conhecimento da natureza depende
também de contatos com o mundo “invisível” dos espíritos.
Enquanto os ambientalistas não índios lidam exclusivamente com
uma relação extremamente racional entre os seres humanos e a natu-
reza, os povos indígenas têm um modo diferente de conceituar esta visão.
Para eles, esta ligação homem-natureza, neste mundo natural, é simul-
taneamente material e espiritual. Todas as coisas que existem na natureza
possuem espírito e se inter-relacionam.
Os rituais constituem uma forma com a dimensão espiritual que faz
parte importante da realidade indígena. Esta espiritualidade está ligada a
um sentido comunitário de laços de reciprocidade entre todos. São forças
opostas que se complementam e dialogam: frio e quente, macho e fêmea,
claro e escuro, etc.
Também adotam nomes e costumes ligados à natureza, acreditando
que cada palavra tem vida própria, portanto trará o espírito ou força
desse elemento que acompanhará essa pessoa na sua vida. Acredita-se
que de acordo com o nome que a criança recebe ao nascer, ela adotará o
comportamento parecido com o daquele ser. Como um exemplo, o nome
Pénĩ na etnia caingangue, significa tartaruga, portanto quem receber este
nome terá tendência a ser lento, calmo e pensativo.
A própria divisão tribal utiliza-se de elementos da natureza. Na base
social da etnia caingangue, uma metade denomina-se Kajukré, que é liga-
da ao leste, à lua, ao frio, úmido e fraco. E a outra se denomina Kamẽ, que
está ligada ao oeste, ao sol, ao quente, seco e forte.

2 Seres vivos, não vivos e fenômenos da natureza

Dentro das culturas indígenas acredita-se que os seres vivos, não


vivos e fenômenos da natureza têm espírito, portanto, também devem ser
respeitados e protegidos. Aqui, mito e realidade andam juntos.
Cada povo indígena utiliza objetos que proveem da natureza, aos
que lhes é dado significados espirituais, utilizados em rituais e festas.

Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena – cultura, ambiente e biodiversidade 19


Esses adornos são usados em ocasiões especiais, como por exemplo na
cerimônia de iniciação, na qual o adolescente passa por um ritual para ser
considerado adulto. Assim também fazem parte destes rituais a pintura
no corpo, os cantos e as danças, que imitam elementos e fenômenos da
natureza. Em algumas culturas indígenas, além de existir a crença que
atribui alma própria aos seres vivos, dão também este mesmo valor aos
objetos, fenômenos e forças da natureza (animismo). Portanto, a natureza
é sagrada de modo que: terra, montanhas, pedras, rios e matas são
providas de espírito e, portanto, têm que ser respeitadas e protegidas. Na
etnia guarani, por exemplo, a cestaria, que de um modo geral serve para
levar frutas, também recebe as espigas de milho e o pão que é utilizado
durante os rituais realizados na casa de reza – opy. A pele de cobra
comumente representada nas tramas ou desenhos em torno do cesto
– adjaka – tem a importante função simbólica de proteger os alimentos
sagrados ali contidos.

3 Biodiversidade – espécies

A diversidade biológica não é simplesmente um conceito pertencente


ao mundo natural, é também uma construção étnico-cultural-social. No
mundo natural, distinguem-se dois fatores principais: (1) a riqueza de
espécies diferentes, e (2) a riqueza de indivíduos diferentes dentro de uma
mesma espécie (variedades, raças, tipos, cultivares, etc.). Porém, elas somen-
te conseguem permanecer e se perpetuar se, dentro da cultura, continua-
rem a ter significados e valores importantes – um sentido de existência.
Sabe-se que grande parte da biodiversidade encontra-se distribuída
em territórios indígenas e que pelos índios é conhecida, manejada e prote-
gida. Assim, além deste conhecimento da classificação da fauna e flora, e
de acordo com suas crenças, eles também conseguem explicar a origem de
certas plantas e animais através dos mitos de criação.
A distribuição de plantas e animais, bem como a de alimentos e de
matérias-primas que deles derivam, é primordial à sobrevivência destes
povos. Porém, quando se extingue uma variedade tradicional de espécie,
as comunidades indígenas perdem simultaneamente parte de sua história
e de sua cultura, correndo também o perigo de fragilizar a sua existência,
pois ao perderem recursos adaptados ao seu ambiente, perdem junto com
eles parte da autossuficiência e autonomia que garantia as suas neces-
sidades, tornando-os ao mesmo tempo mais dependentes de fontes e
recursos de origem externa e da necessidade constante de adquiri-los.
A perda ou diminuição da biodiversidade também está sendo influen-
ciada pela introdução de espécies exóticas em ambientes ou habitats não
tradicionais para elas. Exemplo disso são as árvores de pínus, eucalipto

20 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
e acácia negra; os peixes carpa e tilápia; o capim-annoni, etc. Também as
monoculturas e criações intensivas, principalmente as que têm servido
ao agronegócio, como a soja e o gado, têm impactado negativamente na
qualidade de diversos ambientes.

4 Biodiversidade – usos e significados

A conservação da biodiversidade passa também pela preservação


das culturas e sociedades tradicionais, pois elas estão estreitamente vin-
culadas através das práticas dentro da cultura e do próprio idioma ou
língua que dá sentido e significado às espécies dentro dos valores e per-
cepção da natureza.
Ao longo dos últimos cinco séculos as terras indígenas foram inva-
didas para dar lugar a empreendimentos econômicos, como plantações de
soja, criação de gado, extração de madeira, arrendamento para terceiros,
extração de plantas medicinais para a indústria farmacêutica, construção
de estradas, hidrelétricas, etc.
Muitos medicamentos que as indústrias produzem foram colhidos
de plantas a partir de informações obtidas dos povos indígenas e hoje
muitas destas plantas estão salvando vidas, porém foram transformadas
em mercadorias que passaram a beneficiar somente aos seus fabricantes,
ignorando a origem ou procedência desse material e do conhecimento que
já se tinha sobre ele.
É importante saber que o conhecimento indígena inclui não somente
informações sobre as utilidades das espécies, mas também informações
sobre o modo como aspectos do universo se inter-relacionam com elas,
como o conhecimento xamânico. Assim, não podemos pensar na prática
e manutenção de uma determinada manifestação cultural sem termos
disponíveis o conhecimento e os elementos naturais específicos que
possibilitem a sua realização.
Para os Guaranis Mbyá, por exemplo, o cedro (cedrela fissilis) também
é bastante utilizado para finalidades medicinais e rituais.
Nos primeiros anos da criança guarani, a grande preocupação dos
pais é assegurar o crescimento da alma, pois ela ainda está fraca e vulne-
rável. Por isso, nesse período é comum os pais adotarem a criação de
animais domésticos, como galinhas e cachorros, existindo a crença de que
eles servem de anteparo protetor a qualquer malefício que venha do mun-
do exterior, como doenças e feitiços, sendo que, tanto pais como filhos,
estão vulneráveis às maldades do mundo.
Numerosas plantas são utilizadas pelos indígenas para diversos fins.
Ervas sagradas, resinas e outras misturas são empregadas também em
cerimônias, defumações, emplastros, etc., com o objetivo de proporcionar

Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena – cultura, ambiente e biodiversidade 21


a cura de doenças (em vários níveis), bem-estar, equilíbrio, sabedoria,
limpeza e contato com o interior e com os espíritos protetores. Assim, não
se pode pensar na conservação da biodiversidade sem tomar em conta a
preservação das culturas e sociedades tradicionais associadas a ela e que a
sustentam.

5 Teia alimentar – relações de vida

A autonomia conseguida através da autossuficiência alimentar foi


sempre uma estratégia que caracterizou as etnias bem adaptadas aos ci-
clos naturais e às diversas condições de clima e de recursos específicos em
cada ambiente e região.
Os povos indígenas ocupam e influenciam de diferentes formas as
teias ou redes alimentares. Isto varia muito de acordo com a cultura e
hábitos que cada uma delas pratica. Aqui encontramos também os tabus e
crenças alimentares que servem e funcionam como reguladores (e porque
não protetores!) de uma biodiversidade ao restringir ou liberar o acesso a
determinadas espécies.
Numa melhor compreensão de como o ser humano ocupa e influen-
cia de diferentes formas a teia alimentar de acordo com a cultura e hábi-
tos que pratica, encontramos os tabus e crenças alimentares que de
certa maneira funcionam como reguladores de uma biodiversidade, res-
tringindo ou liberando certos alimentos de determinadas espécies. Na
etnia caingangue, por exemplo, são consumidos os chamados “corós”,
que são larvas encontradas nas taquaras e troncos podres.
Porém, o modo de viver dos povos indígenas começou a mudar radi-
calmente no momento do encontro com os europeus. Estes ocuparam as
terras dos índios e os forçaram a abandonar a sua forma de trabalho nas
aldeias para atender aos interesses dos conquistadores. De acordo com
Bringmann (2009), a interferência dos não indígenas, com o aldeamento,
começou no século XIX na região Sul do Brasil:
A política de aldeamento dos Caingangue teve início em 1846, com a
criação de dois núcleos principais: Nonoai e Guarita, ambos no norte
da província. Com sua criação se pretendia a transformação dos antigos
costumes dos indígenas, que de um modo de vida primitivo, baseado na
caça, coleta e agricultura incipiente, passariam a participar dos modos de
produção modernos, onde o lucro obtido com a venda do excedente das
plantações pagaria as dispendiosas somas gastas com a sua criação.
Nesta perspectiva, observamos que indígenas da etnia caingangue,
por sempre terem sido pescadores, caçadores e coletores, não possuíam
o costume de plantar, pois seu alimento provinha do extrativismo. Sendo

22 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
que até hoje, mesmo com a escassez dos recursos naturais, os Caingan-
gues ainda se alimentam de recursos vegetais provenientes das matas
e capoeiras, tais como o fuá ou fuvá (erva moura), o kumĩ (folhas de
mandioca brava) e o fyj (caraguatá do banhado). Porém, com o aldea-
mento e, consequentemente, a redução de seu território, os Caingangues
foram forçados a mudar seu modo de viver e recentemente aprenderam a
cultivar a terra de modo mais contínuo. Contudo, apesar dos Caingangues
possuírem na sua culinária o pise, que é milho torrado socado nas cinzas,
o bolo nas cinzas – ẽmĩ – também feito com farinha de milho, e a canjica
– kajika – com a aparição das tecnologias ditas “modernas”, muitos indí-
genas ainda não sabem diferenciar um milho híbrido e transgênico de
um milho crioulo ou nativo. Tem-se observado indígenas caingangues da
Terra Indígena Guarita, RS, questionar o porquê do milho que plantaram
ter dado somente sabugo, não compreendendo que as sementes utilizadas
eram híbridas e, portanto, conforme são plantadas novamente, vão
perdendo o seu valor produtivo e reprodutivo.

Na cultura guarani, guardar sementes, em especial as do milho,


chamado por eles de avati etei, “milho verdadeiro”, tem um significado a
mais do que somente alimento para o corpo físico. O milho também pos-
sui um importante valor espiritual, pois além de servir de diversas
formas na base alimentar da comunidade, está relacionado a um dos
mais importantes ritos religiosos que acontecem nas aldeias guaranis,
o Nhemongaraí – retratado como o batismo do milho, que tem lugar por
ocasião da sua colheita. Momento em que também são revelados e distri-

Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena – cultura, ambiente e biodiversidade 23


buídos os nomes em língua guarani às crianças mais novas da aldeia.
Para que os nomes sejam atribuídos, os respectivos pais devem levar à opy
(casa de rezas) alguns elementos simbólicos que devem estar presentes no
Nhemongaraí. Dentre esses elementos está o mbojape, um tipo de alimento
preparado com farinha de milho e água, assado nas cinzas de uma fo-
gueira. O mbojape só pode ser feito com sementes de milho guarani. Por
isso, comer desse milho fortalece não somente o corpo de cada indivíduo,
mas o corpo da comunidade como um todo. Neste sentido, o cultivo do
milho avati etei é indispensável para a manutenção das tradições guaranis,
assim como a manutenção dos sistemas de cultivo está intimamente
relacionada à função religiosa e social.
Porém, atualmente muitos indígenas começaram a adotar um estilo
de vida mais sedentário e industrial, que vem predispondo-os a doenças
como a diabetes e a obesidade, através do consumo excessivo de gor-
duras, açúcar refinado, refrigerantes, entre outros. Soma-se a isso a redu-
ção de territórios, de biodiversidade e a destruição de ambientes naturais.
Neste sentido, se faz necessário fortalecer a autonomia conseguida através
da autossuficiência alimentar que foi sempre uma estratégia característica
dos indígenas bem adaptados aos ciclos naturais e às diversas condições
de clima e de recursos específicos em cada ambiente e região.

6 Tempo e espaço – dinâmicas e ciclos

As atividades de produção e consumo, em muitos povos indígenas,


definem ciclos idealmente em sintonia com os ritmos da natureza, mar-
cados principalmente pelo regime de chuvas e pela época da seca. As ativi-
dades econômicas e cerimoniais definem ciclos, com períodos definidos
para as práticas agrícolas, pesqueiras, extrativistas, cerimoniais, religiosas
e comerciais, posto pelo sistema de rodízio, quando tudo volta a se repetir.
Dia e noite, vida e morte, movimentos do sol e da lua, transformações
e sucessões, ciclos e fenômenos próprios do mundo natural e do cosmos
ou universo; foram estes, e em alguns casos ainda são, aspectos que tradi-
cionalmente serviram como referenciais importantes para marcar, guiar
e estabelecer as dinâmicas e ritmos do mundo social, cultural e religioso
dos povos indígenas. As atividades criam um calendário próprio, que
sincroniza e coincide as dinâmicas da natureza (agricultura, artesanato,
coleta, etc.) com as atividades sócio-cerimoniais-religiosas e comerciais.
A sazonalidade ou estacionalidade de atividades acaba definindo
um calendário de manejo que atua de forma a regular o período de utili-
zação dos recursos naturais, como também a própria mobilização socioam-
biental dentro da aldeia e território, influenciada também pelas relações
comunitárias, de gênero (homens e mulheres) e graus de parentesco.

24 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
Vivemos em constantes mudanças, nada é estático. E isto inclui
as culturas também, que apesar de ainda manterem muitas tradições
milenares, vão se adaptando ao meio, tempo e espaço. Assim, a etnia cain-
gangue, através de sua criatividade, vem inovando o seu artesanato
como um meio importante de gerar renda. Com o passar do tempo foram
se adequando a pedidos e demandas da sociedade não indígena. Seus
balaios, por exemplo, que antes eram maiores, hoje são confeccionados
em vários tamanhos e modelos. Adornos como colares, pulseiras e brincos
têm sido trabalhados de acordo com a demanda da sociedade envolvente.
Também, com a escassez de algumas das matérias-primas, artesãos vêm
substituindo a mesma por outros materiais. É o caso da fibra de bana-
neira, que já é utilizada na fabricação de bolsas por alguns grupos de
artesanato na Terra Indígena Guarita, RS. Igualmente em suas atividades
sociocomerciais, os artesãos indígenas caingangues costumam sair das
aldeias para vender seus artesanatos em outras cidades nas épocas do
natal e páscoa, supondo-se que estes sejam os momentos mais propícios
para se conseguir uma boa venda ou brique.1
1
Uma das maneiras que os artesãos indígenas realizam a comercialização dos seus
produtos é através do que eles chamam de brique. O brique é a prática da troca ou
escambo, ou seja, é a permuta de produto por produto sem o uso de moeda ou dinheiro
corrente/convencional.

Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena – cultura, ambiente e biodiversidade 25


Exemplificando também as dinâmicas de temporalidade na etnia
guarani, o período da colheita do milho igualmente é o momento de
realizar os batismos na aldeia. Desta maneira, a mobilidade espacial está
expressa na organização sociocultural dos Guaranis e no funcionamento
de seu sistema agrícola, de forma com que a diversidade de cultivos
e cultivares nas roças familiares apresenta-se dinâmica no tempo e no
espaço. E esta prática dos batismos, de caráter mítico-religioso, faz com
que haja um processo migratório entre as aldeias e continue a manter,
fortalecer e criar relações de parentesco (a visitação entre parentes), a troca
de materiais e sementes, continuidade de práticas produtivas tradicionais,
fluxo e partilha de informações e aconselhamentos, trabalhos de cura, etc.
Os calendários indígenas caingangues e guarani, portanto, dinamizam
as atividades da comunidade e são a expressão de uma organização de
interdependência entre natureza, sociedade e sua espiritualidade.

7 Ambientes naturais modificados e territórios sagrados

O território sempre teve um sentido maior do que um simples recurso


para a produção. Ele é um espaço de organização social e de reprodução
da memória e da identidade. Muitos veem a terra como uma simples
mercadoria, o que remete a um valor de posse ou propriedade; porém,
sabemos que ela é muito mais. O território nos remete à apropriação e
construção de um espaço e lugar de vínculo geográfico-social que se
habita, ou seja, se pratica e recria a própria cultura. Nele se identificam,
principalmente, ambientes naturais, ambientes modificados (agricultura,
construção, plantações, áreas de lazer, etc.) e ambientes sagrados.
As terras indígenas, apesar de garantidas pela Constituição, conti-
nuam sendo invadidas. Muitas delas nem sequer foram demarcadas, ou
seja, não tem seus limites estabelecidos. Entretanto, mesmo as demar-
cadas não estão livres de invasão, e os invasores, ao explorar o território,
acabam modificando-o e promovendo seu desequilíbrio.
Muitas destas invasões são feitas por pessoas e grupos econômicos
interessados nas riquezas encontradas nessas terras. Outras vezes, diante
da grande concentração da propriedade da terra existente no Brasil,
também pequenos agricultores acabam invadindo as terras indígenas em
busca de um lugar para trabalhar e viver com suas famílias.
Nesta perspectiva, de acordo com Veiga (2005):
A partir de 2000, com a demanda de produtos agrícolas pelo mercado
internacional, está existindo uma nova pressão sobre as terras indígenas.
Ao mesmo tempo em que várias delas foram recuperadas, por estarem
amparadas no direito constitucional, elas estão voltando ao mercado
através da prática de arrendamento, feito em parcerias entre indígenas e

26 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
particulares. Essa prática acontece tanto através de parcerias entre alguns
índios quanto através de “cooperativas indígenas”, o que transformou as
terras indígenas em bens de mercado. Esse mecanismo tem impedido, a
muitas famílias indígenas, o acesso à sua terra ancestral, transformando
as aldeias em dormitórios, jogando a população nas piores e mais
desprotegidas formas de trabalho, tais como: carregamento de aves, corte
de erva-mate, colheita de maçã e de uva. Os homens passam semanas
trabalhando fora da área para poder sustentar as famílias que ficam na
terra indígenas. A lógica do mercado é da incorporação das terras ao
processo produtivo, nesse sentido não importa nas mãos de quem esteja
a terra, desde que esteja a serviço do modelo econômico vigente.
Contudo, para os povos indígenas, a terra é muito mais do que um
simples meio de subsistência. Ela representa o suporte de vida sociocul-
tural e está diretamente ligada ao sistema de crenças e conhecimentos.
A terra é um bem coletivo, destinada a produzir a satisfação das neces-
sidades de todos os membros da comunidade. Embora o produto do traba-
lho possa ser, em muitos casos, individual, as obrigações existentes entre
os indivíduos certamente asseguram a todos o usufruto dos recursos –
um patrimônio comunitário e de oportunidade para a prática da recipro-
cidade.

8 Recursos naturais – mudanças e impactos

A Constituição brasileira reconhece o direito dos índios sobre as


áreas por eles habitadas e também sobre as utilizadas para suas ativida-
des produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao seu bem-estar e as necessárias para sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Mas, contradito-
riamente, em alguns casos o próprio Estado tem mostrado interesse nas
terras indígenas para outros fins de “causa maior”, como por exemplo
projetos de desenvolvimento regional, abertura de estradas e construção
de hidrelétricas para fins energéticos e de irrigação.
Tradicionalmente, os povos indígenas em geral desenvolveram um
padrão de ocupação territorial que permitia aproveitar da melhor forma
os recursos do ambiente, sem criar o risco do esgotamento para suas fon-
tes de recursos. Para isso, praticavam a migração temporária por seu
território, de um ponto ao outro durante certo tempo, em função da abun-
dância de um ou outro recurso, voltando sempre à sua aldeia fixa, de
tempo em tempo ou ao final do ciclo. Alguns adotavam também o recurso
de mudar o lugar da aldeia fixa, dentro de seu território, ao fim de alguns
anos, para não esgotar o solo nem aumentar demais a área desmatada das
roças.

Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena – cultura, ambiente e biodiversidade 27


Com o aldeamento e as mudanças compulsórias a que foram subme-
tidos, sem poderem vencer ou expulsar os invasores de suas terras, os
indígenas tentaram conviver pacificamente com eles, porém tiveram que
se adaptar a esta situação. Muitos perderam a transmissão de conhe-
cimentos tradicionais, houve uma desestruturação nas próprias formas de
organização social, crenças, costumes e foram sujeitos a doenças contra
as quais seu organismo não possuía defesa, inclusive, causando um
extermínio em massa dos indígenas.
Antes da colonização, os indígenas não conheciam o arado nem os
animais de tração. A introdução e a reprodução de novas espécies de
animais (bovinos, ovinos, equinos, etc.) vindas de outros continentes
trouxeram benefícios, porém o aumento das proporções desses animais
vem provocando impactos muito sérios aos ambientes naturais. Também
nestes ambientes próximos ou circunvizinhos às terras indígenas, a mono-
cultura, os transgênicos e o uso de agrotóxicos têm afetado o equilíbrio
natural. Além de contaminar fontes de água, tem castiçado (contaminado)
sementes tradicionais e colocado em risco a saúde da comunidade.
Portanto, a causa da crise ambiental tem suas origens numa crise
sociocultural inserida numa economia de mercado que promove a compe-
tição, consumismo e acumulação de bens, como também funda-se na
exploração irracional aos ritmos da natureza e que ignora o sentido
religioso-espiritual para com ela.

9 Recursos naturais – manejo sustentável

A luta histórica de resistência à imposição de uma exploração inten-


siva, irracional ou extremamente racionalista e ambiciosa fez dos indí-
genas, chamados pejorativamente “preguiçosos” e “relaxados” pelo seu
modo de ser e de viver distintos, um exemplo de sociedade que melhor se
relacionou, dialogou e se integrou à mãe natureza.
A importância das novas abordagens da questão indígena reside não
só na identificação do índio com outras minorias em seu direito à dife-
rença, mas também em sua estreita associação com a questão ambiental.
Portanto, são eles testemunho vivo e exemplo de uma correta vida
“simbiótica” junto à natureza. No seu agir, sempre tiveram por princípio
o uso temporário do solo com base em um manejo rotativo itinerante, res-
peitando os processos de recuperação e restituição dos elementos neces-
sários para recompor os ambientes e sua diversidade. A sua própria
natureza interna e as normas de cada etnia orientam sua relação de uso
e manejo dos recursos naturais. Porém, devido a influências externas e
alguns projetos de apoio aos povos indígenas, em vez de contribuírem
à biodiversidade do seu território e valorização de sua cultura e crenças,

28 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
têm provocado resultados contrários. Exemplo disso são as licitações para
a aquisição de insumos e sementes destinados à produção de alimentos
e geração de renda. Em geral, quem consegue responder aos volumes
solicitados e exigências burocráticas impostas são as empresas de semen-
tes híbridas e transgênicas, de adubos químicos, agrotóxicos e de maqui-
narias. Já os detentores das sementes nativas e crioulas – os camponeses
da pequena agricultura familiar, povos tradicionais e os próprios indíge-
nas – normalmente não conseguem se adequar às exigências “legais” como
as indústrias.
Esta situação, em muitos casos, acaba criando dependência do mercado
e do modelo convencional de agricultura e, em outros casos, leva à conta-
minação dos recursos genéticos tradicionais.
Por outro lado, vêm surgindo experiências como, por exemplo, o pro-
jeto Guardiões das Sementes Crioulas no município de Tenente Portela, RS,
em que grupos indígenas caingangues e guarani da Terra Indígena Guari-
ta participam desta proposta, em prol da conservação da biodiversidade e
do desenvolvimento sustentável local.

Considerações finais

A sobrevivência da riqueza biológica do mundo está estreitamente


vinculada à perdurabilidade das culturas tradicionais e dos idiomas nati-
vos. É importante saber que as próprias linguagens, com sua diversidade
de interpretações e valores, também promoveram uma diversidade bioló-
gica.
Os mitos têm também seu papel ético-relacional, normativo e organi-
zacional. Ainda assim, acreditamos que eles não têm a obrigatoriedade de
dar explicação racional a todas as coisas ou de ter uma descrição lógica
e formal. Eles existem também pelo seu sentido intrínseco, não somente
descritivo e sim muito mais interpretativo. Talvez haja uma necessidade
de se criar novos mitos, ou de resignificar antigos, de forma a não perder
os princípios, a essência ou os fundamentos das lógicas do saber tradi-
cional indígena, contextualizando o sentido aos problemas e desafios para
os tempos atuais.
Finalmente, para quebrar a imagem equivocada do indígena gené-
rico, desejamos que este material sirva também para estabelecer um
maior respeito às diferenças culturais e para um convívio interétnico mais
fraterno, que começa pelo reconhecimento da existência de uma alteri-
dade indígena com suas especificidades.

Adequação de temáticas socioambientais na educação indígena – cultura, ambiente e biodiversidade 29


ANEXO

Na Fronteira Sul do Brasil confirmamos a presença dos povos


guarani e caingangue.
Os GUARANIS pertencem ao grupo linguístico tupi-guarani,
sendo encontrado nos estados do Mato Grosso do Sul, Espírito Santo,
Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
como também nos países da Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai.
Hoje, pela indefinição de espaços específicos, são obrigados a viver em
pequenas aldeias, em beiras de rodovias e também em acampamentos.
A população guarani no Brasil atualmente é estimada em torno
de 34.000 pessoas (há estimativas de 50.000 indivíduos) composta por
Kaiowa, Ñandeva e Mbyá. A população Mbyá atual estaria, segundo
projeção, em torno de 14.000 a 15.000 pessoas. Estas são estimativas,
pois no caso dos Mbyá existe uma rede de parentesco e reciprocidade
que se estende por todo um amplo território compreendendo as
regiões onde se situam as suas comunidades, o que implica uma
dinâmica social que exerce intensa mobilidade (visitas de parentes,
rituais, intercâmbios de materiais para o artesanato e de cultivos, etc.).
A palavra guarani significa guerreiro ou lutador. E eles têm lutado
por sua Tekoá, um espaço para viver, em busca de uma terra sem
males. E mais do que um lugar para viver ou sobreviver, a Tekoá para
os Guaranis, possui um sentido maior: significa o lugar onde o povo
guarani possui sua opy, casa de reza, e onde eles expressam seu modo
de ser e estar no mundo, o Teko. Por esta razão, os Guaranis dizem
que: “Sem Tekoá não há Teko”, ou seja, eles não chamam de Tekoá os
acampamentos ou áreas de ocupação recentes, mas sim os espaços
onde podem exercer plenamente o modo de vida guarani.
Os CAINGANGUES são um povo pertencente à família linguística
Jê, integrando, junto com os Xoclengue, os povos Jê Meridionais. Sua
cultura desenvolveu-se à sombra dos pinheirais, ocupando a região
Sudeste e Sul do atual território brasileiro. Há pelo menos dois séculos
sua extensão territorial compreendia a zona entre o Rio Tietê (SP) e o
Rio Ijuí (Norte do RS). No século XIX seus domínios se estendiam para
o oeste, até San Pedro, na província argentina de Misiones.
Estimava-se uma população caingangue de mais de 30.000 pessoas
vivendo em 32 Terras Indígenas. No entanto, verifica-se a presença
de famílias vivendo nas zonas urbanas e rurais próximas às Terras
Indígenas e em acampamentos.
O nome caingangue passou a ser utilizado a partir de 1882. Ele foi in-
troduzido pelo Coronel Telêmaco Enéias Augusto Morocines Borba, que

30 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
► que ajudou a dominar e expulsar os índios de suas terras. Conforme
Borba, o significado da palavra Kaingang é: Caa = mato + ingang =
morador, ou seja, morador do mato. Hoje o termo Kaingang, para eles
próprios, possui o significado de índio, unificando e identificando
estes como uma unidade diante dos não índios e diante de outros
povos indígenas.

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32 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Manuel Palazuelos Ballivián, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos
2
O conflito de Nonoai:
um marco na história das lutas pela terra

Joel João Carini


João Carlos Tedesco

Os conflitos e as tensões em torno da terra indígena já vêm de muito


tempo e são visíveis e intensas em todo o país; no Rio Grande do Sul, em
particular na sua parte Norte, os conflitos foram e continuam sendo muito
presentes. O pano de fundo é a terra, na realidade, a propriedade da terra,
seu uso, seu sentido, suas formas de apropriação.
A luta indígena se manifesta, historicamente, também por direitos,
pela manutenção de identidade, preservação de seu hábitat, contra os pro-
cessos de demarcação e delimitação de territórios, as intrusões efetivadas
e deliberadas pela esfera pública estatal (CARINI, 2005). Nos conflitos
sociais entre colonos (pequenos agricultores familiares) e índios, em
particular o de Nonoai em 1978, sedimentaram-se processos deliberados
por decisões políticas equivocadas (que se estenderam por várias déca-
das), artimanhas jurídicas alimentadas por pressupostos de progresso
social, de controle social, de produção agrícola, de estruturação da pro-
priedade privada da terra, das formas de ocupação e de privilégios e
prioridades dadas a colonos em suas normatizações e condições efetivas
de produção e de estabelecimento.
A terra, para ambos os atores sociais envolvidos nos conflitos, car-
rega consigo horizontes amplos, simbólicos e materiais, econômicos e cul-
turais; é sinônimo de patrimônio e de reprodução; é patrimônio que se
correlaciona com descendência, seja ele embasado na dimensão da pro-
priedade individual mercantil e/ou coletiva para a subsistência. Essa razão
cultural da propriedade da terra se alimenta, em sinergia, com a dimensão
econômica e com a luta pela sobrevivência material. Ser proprietário de
terras, para determinados grupos, sempre significou a possibilidade de

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 33


construir e preservar patrimônio, o qual é obra da e para a família e/ou
para o grupo; busca-se conservar não só a terra, mas uma moralidade da
terra (BRANDÃO, 1995), vínculos societais de longa data, sedimentados
e transmitidos por gerações. Antes de produzir culturas (cultivos), há
outras culturas que se sedimentam e se semeiam também com e na terra
e que demandam preservação (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997).
É também em torno desses valores que tanto índios como pequenos
agricultores lutaram e lutam pela possibilidade de sobrevivência na terra.
O “conflito de Nonoai”,1 ou para outros, a “revolta de Nonoai”, condensa
essa realidade camponesa/cultural com a terra presente em ambos os
grupos sociais em questão.
Desse modo, daremos ênfase a alguns processos que desencadearam
esse conflito e, também, a partir do ocorrido em Nonoai,2 à constituição
de uma territorialização de lutas pela terra na região, processo esse que foi
mediado por inúmeras instituições e estratégias entre pequenos agricul-
tores familiares, esfera pública e organizações ligadas ao setor agrícola
e indígena e aos grandes proprietários fundiários. Essa temporalidade,
ainda que curta (1978-82), não se encerra em si mesma; é manifestação de
uma gestação e, ao mesmo tempo, acirramento e desencadeamento de um
processo histórico de lutas pela terra no Norte do estado e, em especial,
na paradigmática Fazenda Sarandi, que ainda se evidencia. Veremos que
o referido conflito condensa uma realidade complexa, envolve atores
sociais subalternizados, vitimados por políticas públicas e pelo poder do
latifúndio, e, ao mesmo tempo, tornou-se desencadeador de uma luta
social que se tornou histórica e expressiva em todo o país.

1 Índios e pequenos agricultores disputando territórios

Na história agrária e nas políticas de normatização das terras no Rio


Grande do Sul registram-se vários atos de deliberação da esfera pública
em torno das terras, em particular onde havia maior concentração de
população indígena. Desde o início do século XX, com maior concentração
entre os anos de 1940-60, as reservas indígenas tornaram-se espaço de
ação política de governantes para aliviar tensões sociais, compensar o

1
Conflito entre índios e agricultores na Reserva Indígena de Nonoai, desencadeado ao
longo das décadas de 1960 e 1970, cujo ápice deu-se em 1978 com o confronto entre
índios caingangues e colonos intrusos, tendo resultado na expulsão de mais de mil
pequenos agricultores da referida reserva.
2
O presente artigo é fruto de um estudo mais amplo que fizemos sobre os conflitos
agrários no Norte do RS; parte desse estudo foi publicada em dois volumes, os quais
abarcaram a temporalidade dos anos 50 aos anos 90. Ver indicação bibliográfica nas
referências finais.

34 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
denominado esgotamento das fronteiras agrícolas a serem ocupadas por
colonos e agropecuaristas, para facilitar e incentivar as ações predatórias
de colonizadoras que objetivavam mercantilizar a terra e dar-lhe feição
econômica nos moldes das políticas de crescimento econômico e de
funcionalidade da agricultura no estado, em particular na região Norte
(GEHLEN, 1983). Desse modo, o Estado, pressionado pelo grande capital
fundiário e pelas colonizadoras, não impediu a entrada massiva de colo-
nos. Ao contrário, em alguns momentos a incentivou e/ou a amparou, assim
como extinguiu reservas (Serrinha e Ventarra), retalhou outras (para con-
templar colonos, sem serem extintas, como foi o caso de Nonoai, Inhacorá
e Votouro) (CARINI, 2005).
Essas ações passaram a ser a tônica por quase toda a primeira e até a
segunda metade do século XX. Houve uma significativa redução de terras
indígenas já previamente demarcadas, bem como a criação de reservas
florestais no interior das mesmas, legitimadas pelas políticas de Estado. A
reserva indígena de Nonoai, por exemplo, quando demarcada, possuía uma
extensão de 34.908 ha; no final da década de 40, o Estado destina quase 20
mil ha (mais de 50% da área) como reserva florestal (CARINI, 2005).
Em 1940, o SPI (Serviço de Proteção ao Índio – órgão criado pelo go-
verno federal) imprimiu uma intensa política de limitações de áreas para
cada família indígena nas reservas, destinando o restante para cons-
tituir parque florestal, sob o controle do Estado. Essa ação tornou-se
decisiva para as intensas investidas nas terras indígenas nas duas décadas
subsequentes e para a oficialização da saída de índios das reservas de
Serrinha (11.950 ha) e Ventarra (753 ha), objetivando sua distribuição a
famílias de pequenos agricultores de todo o estado e, em particular, da
região Norte (CARINI, 2005; SIMONIAN, 1981). Com isso o poder pú-
blico estatal legitimava o avanço sobre os territórios indígenas e o SPI
encarregava-se de facilitar o acesso de madeireiros e granjeiros capitalis-
tas e arrendatários:
Instaurada por determinação da Presidência da República, através do
seu Gabinete Militar, a Comissão de Sindicância de 1961 tinha por tarefa
apurar irregularidades nos Postos Indígenas Cacique Doble, Paulino
de Almeida (Ex-Ligeiro), Nonoai e Guarita, no Rio Grande do Sul, do
Serviço de Proteção aos Índios, do Ministério da Agricultura.
No tocante à Nonoai, a comissão levantou os dados comprobatórios da
exploração indiscriminada das madeiras da área indígena, de 1944 a 1961
– especialmente cedro e pinheiros –, toda ela por acordos e contratos do
SPI com a firma Hermínio Tissiani & Cia Ltda. A Comissão investigou
também as atividades de exploração agropastoril e, por ser muito signi-
ficativo, vale notar outra referência da mesma à firma Tissiani: “Mereceu
também destaque a declaração do sr. Oriculo Bandeira quanto a área de

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 35


2.000 alqueires (sic) plantada pela firma Hermínio Tissiani & Cia Ltda, já
que o contrato apenas permite 500 ha (CIMI-SUL, 1978, p. 7-8).3
Em décadas posteriores, com as comunidades indígenas já sob a
tutela da Funai (em substituição ao SPI), a exploração capitalista da terra
indígena de Nonoai prosseguiu, intensificada pela atuação do Depar-
tamento Geral do Patrimônio Indígena (DGPI). Esse processo foi alta-
mente denunciado por indigenistas, antropólogos e o próprio CIMI,
porém, não sensibilizou a esfera pública encarregada e preocupada que
estava na intenção de “emancipar os índios” (SIMONIAN, 1981). Havia,
segundo o CIMI-SUL, uma forte propensão da Funai em desenvolver
economicamente as comunidades indígenas, levando o DGPI, no Sul do
Brasil, a instalar modernas e potentes serrarias nos postos de Manguei-
rinha (PR) e Xapecó (SC) e implantar grandes projetos agrícolas em diver-
sos postos do Sul, como de Xapecó (SC), Guarita (RS) e Nonoai (RS)
(CARINI, 2005). Em Nonoai, a Granja Ressurreição foi emblemática
dentro desta proposta, pois, “totalmente mecanizada contando com um
agrônomo que a fiscaliza, a Granja Ressurreição plantou em 1975, segun-
do o jornal Folha da Manhã (Porto Alegre, 20 ago., 1975), 500 hectares de
soja e 300 de trigo” (CIMI-SUL, 1978).
Há que se considerar, para efeito de análise do que ocorreu nas terras
da reserva de Nonoai, no final dos anos 1960 e começo dos 70, as trans-
formações em marcha no agro brasileiro iniciadas ainda no final dos anos
1950. Iniciava-se no período aquilo que se denominou de industrialização
da agricultura (BRUM, 1987), com a passagem do complexo rural aos
complexos agroindustriais. Numa linguagem simples, a substituição
de formas manuais de produção pelo uso de técnicas mecânicas. De
uma agricultura autônoma, desatrelada da indústria e desvinculada do
mercado interno, passou-se a uma agricultura capitalista moderna, vol-
tada para grandes culturas de excedente mercantil em mercados competi-
tivos, com alto grau de mecanização e insumos químicos.
No início dos anos de 1960, havia grandes debates e propostas em
nível nacional de viabilização da reforma agrária no país. No Rio Grande
do Sul havia se constituído o Movimento dos Agricultores Sem Terra
(MASTER), movimento organizado e liderado por lideranças políticas
ligadas ao governador Brizola (ECKERT, 1984). Na região em estudo,
especialmente pelo prefeito de Nonoai – Jair de Moura Calixto –, após
incursões pela Fazenda Sarandi, houve grandes movimentos e ações de
viabilização da reforma agrária, promovidas pelo governador Brizola,

3
Relatório da Comissão de Sindicância – Presidência da República, Gabinete Militar,
Subgabinete Militar no RS. Porto Alegre, 16/09/1961. In: CIMI-SUL. Luta Indígena:
Informativo dos Índios e Missionários do Sul do Brasil, nº 6. Xanxerê-SC: Publicação da
Equipe Pastoral, ago. 1978, p. 7-8.

36 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
que decidiu desapropriar em torno de 20 mil ha da Fazenda Sarandi e
assentar algumas centenas de famílias (TEDESCO; CARINI, 2007). Porém,
nem todas as famílias de pequenos agricultores foram contempladas;
esse processo fez intensificar ainda mais a intrusão (entrada, fixação de
morada e trabalho na terra) nas reservas indígenas da região Norte do
estado, em particular a de Nonoai.

Acampados do Master no Capão da Cascavel, em Sarandi,


Norte do Rio Grande do Sul, no início da década de 1960.
Fonte: Arquivo de Adelfo Zamarchi.

Havia no estado gaúcho no período (final da década de 1950 até


meados da de 60) uma ferrenha disputa pela tutela no meio rural, em par-
ticular junto ao pequeno agricultor familiar. O Centro-Norte gaúcho era
expressivo disso. Igreja Católica, PCB, Master, Brizola, Ligas Campo-
nesas, associações de produtores e partidos políticos, tentaram imple-
mentar suas ações nesse sentido. A Igreja saiu vencedora desse processo
todo na efetivação e mediação para viabilizar sindicatos rurais, coopera-
tivas agrícolas, comunidades rurais, etc. Na realidade, a Igreja Católica,
através da Frente Agrária Gaúcha (FAG, essa, aos poucos, foi constituindo
a Fetag, no início do golpe militar), lutou por implementar, via coopera-
tivismo, sindicalismo e extensionismo, um grande controle político e
ideológico no meio rural e, em especial, junto ao pequeno agricultor,
formado por descendentes de imigrantes, contribuindo assim para sua
seletivização, exclusão e modernização também seletiva (SCHERER,
1961). Boa parte desse denominado agricultor familiar conseguiu se inse-
rir, ainda que marginalmente, nesse novo modelo modernizador. Essa
realidade produziu diferenciações na agricultura familiar, situações que
promoveram a passagem para agricultores modernizados, outros que

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 37


foram excluídos e engrossaram as fileiras dos sem-terra do período, em
meio aos que já eram identificados (caboclos em suas várias formas de
se relacionar com o trabalho e com os setores). Na realidade, nenhuma
dessas entidades citadas acima coibiu a inserção de pequenos agricultores
no interior das reservas indígenas, realidade essa que foi intensificada
no período, bem como também não fizeram muita coisa para evitar a
exclusão de contingentes de agricultores familiares aos novos processos
produtivos.
Só para se ter uma ideia, em 1963, cerca de 900 colonos acamparam no
interior da reserva indígena, no lugar denominado Passo Feio (TEDESCO;
CARINI, 2007; ECKERT, 1984). O evento teve grande repercussão no
meio político, no meio acadêmico e na imprensa estadual, num momento
histórico particularmente importante, quando os movimentos sociais
eram vistos como “sinais eminentes do comunismo”, uma forte ameaça
aos interesses da oligarquia agrária, já prenunciando o golpe militar no
país, o que efetivamente ocorreu no início de 1964. O movimento de Passo
Feio forçou a desapropriação de parte da reserva (2.499 ha), pelo Governo
do Rio Grande do Sul no ano de 1963, constituindo a 4ª Secção Planalto,
onde foram assentadas duas centenas de famílias de colonos. Este gesto
do governo, no entanto, antes de por um fim ao esbulho das terras
indígenas, acabou fomentando-o ainda mais até o final da década de 1960
(ECKERT, 1984).
Madeireiros e grandes arrendatários viam nessas investidas no inte-
rior das reservas uma oportunidade de lucro, porém, para pequenos
proprietários, revelavam ser uma possibilidade de sobrevivência e repro-
dução enquanto agricultor. Por isso, geralmente o maior foco de conflito
dava-se entre o indígena e o posseiro pobre, face ao maior tempo de
contato entre ambos, com a permanência constante do colono sitiante no
interior das reservas, disputando o mesmo espaço agrícola, dividindo o
espaço comunitário e fazendo uso dos mesmos recursos naturais: floresta,
rios, animais, fontes de água, etc. (CARINI, 2005).
Em 1967, um grupo de jesuítas realizou um levantamento socioeconô-
mico e cultural em três toldos do Rio Grande do Sul e constatou que no
Toldo de Nonoai encontravam-se mais de 500 famílias de intrusos (CIMI-
-SUL, 1978, p. 15). Em meados de 1969, a situação tinha se agravado a tal
ponto que, após visita pastoral realizada ao referido toldo, o padre Egydio
Schwade fez o seguinte desabafo ao bispo de Frederico Westphalen: “Os
índios vem fugindo de sua área pressionados pelos invasores. Para se ver
a extensão destas invasões dos últimos meses, basta dizer que só num dia
entraram em torno de 60 famílias, e que os 1000 e poucos índios de há três
anos só restam ainda uns 700 na área, tendo os restantes fugidos” (CIMI-
-SUL, 1978, p. 21).

38 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
Não podemos esquecer que os anos entre as décadas de 1950 e de
1960 foram expressivos no esgotamento da reprodução econômico-social
dos pequenos agricultores no Norte do estado. Processos migratórios
para outros estados, como é o caso de Santa Catarina e Paraná, tornam-
-se a sua salvaguarda, assim como o foram os que empurraram, quase
meio século antes, os descendentes de imigrantes europeus das ditas
terras velhas na direção dos matos do Norte do Rio Grande do Sul. Novos
modelos de produção agrícola, novos cultivos e relações de produção, em
adequação com os novos formatos de uma estrutura capitalista (produ-
ção de excedentes, dimensão do lucro e produtividade, culturas de intensa
dinâmica comercial e de características extensivas) que foi sendo imple-
mentada pelo viés da modernização produtiva, exigiram espaços amplia-
dos de terra (RÜCKERT, 1997). Essa nova realidade modelar da atividade
agrícola alterou, de uma forma abrupta, a relação do pequeno agricultor
com a terra, deixando-o cada vez mais dependente de outros capitais
(financeiro, comercial e industrial) e de um conjunto de fatores produtivos
cada vez mais complexos (tecnologias, mecanização e uso de insumos
químicos), os quais aos poucos vão desencadear o que se convencionou
denominar de “a crise da terra aos camponeses” (BRUM, 1987).
Colonizadores e colonizadoras, agentes públicos de colonização, pe-
cuaristas, comerciantes, madeireiros, granjeiros, grandes arrendatários,
latifundiários, agroindustriais, banqueiros, grandes cooperativas, pas-
saram a ser os agentes centrais da agricultura que se desenhava a partir
de meados do século XX em várias regiões do Sul do Brasil, em especial
no Norte do Rio Grande do Sul (GEHLEN, 1983). Nesse sentido, por
volta dos anos 60, começou a se constituir uma maior proliferação de
unidades médias e grandes no âmbito produtivo; grandes arrendatários
acabaram absorvendo estâncias pastoris para a produção de trigo e milho
de uma forma mais modernizada em termos mecânicos e de racionalidade
econômica em adequação com o que se incentivava no país (RÜCKERT,
1997; GEHLEN, 1983; ZARTH, 1997), dentro da lógica da chamada “revo-
lução verde”, da produção em escala visando atender a indústria (à mon-
tante e à jusante) e a demanda por alimentos dos centros urbanos em
expansão.
A agricultura familiar se desenhava a partir do paradigma dos colo-
nos, produtores de excedentes, com suas unidades familiares policultoras,
proprietária e produtora com tendência seletiva e modernizante. Essa,
em meio ao latifúndio e à estância pastoril, tenta se desenvolver, porém
passa pelos mesmos processos de exclusão e/ou inclusão marginal
que já há mais tempo havia sido sentida e efetivada em relação aos
caboclos e pobres do campo, em razão dos pressupostos modernizantes
do modelo produtivo em particular. Em outras palavras, em razão de
políticas públicas de incentivo a uma racionalidade produtiva moderna/

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 39


produtivista (de excedentes no âmbito do denominado mais atualmente
de agronegócio) e tecnificada, parte significativa de agricultores familiares
passam a engrossar as fileiras dos subalternizados, dos alijados do proces-
so de desenvolvimento econômico e social do país, processo esse que aca-
bou por provocar seleções, fissuras na histórica cultura da produção e
reprodução na terra (RÜCKERT, 2003). Quem já havia sido subalternizado
antes (índios, caboclos, pequenos arrendatários, meeiros e posseiros) pelas
colonizadoras e pelas formas mercantis e jurídicas de acesso à terra, pela
intrusão nas reservas indígenas, agora, com esse novo modelo, será mais
ainda excluído; será o grande contingente que dará corpo aos processos
de êxodo rural, tão expressivos nos anos 70 no país e na região Norte
do estado. Em pouco tempo, as terras consideradas devolutas, disponi-
bilizadas pelo estado gaúcho, esgotaram-se e os pequenos agricultores
(caboclos e colonos) se veem diante de um novo dilema: migrar para
outras regiões, ou para os centros urbanos dentro do próprio estado, ou,
então, continuar o processo de inserção para as reservas indígenas, como
última estratégia para manter-se na terra (GEHLEN, 1983)
A entrada para territórios indígenas do Norte do Rio Grande do Sul
– demarcados no começo do século XX – pelos pequenos agricultores,
seguindo as pegadas de madeireiros, grileiros e fazendeiros, tornara-se
ato recorrente desde meados da década de 1940, acentuando-se nos anos
1950 e 1960. A ideia que sempre permeou a ação pública, inclusive no
período mais intenso – que é o do governo Brizola –, é que havia muita
terra para poucos índios e que era melhor intrusar para alterar o quadro
de pobreza e de demanda social dos mesmos. Esse argumento revelava
a nova concepção da esfera pública e da representação social produzida
em torno da terra e das relações de trabalho desenvolvidas pelos índios
que, no fundo, acabou por estender-se, de uma forma menos enfática,
aos negros e caboclos no Sul do Brasil. Desse modo, passou a acontecer
e a legitimar-se na região uma intensa presença de colonos nas reservas
indígenas de Serrinha e Nonoai, bem como em outras de menor porte.
A reserva de Serrinha (também no Norte do estado) foi intensamente
intrusada por toda a década de 1950 e finalmente retalhada e colonizada
entre o final dos anos 50 e início dos 60, até ser totalmente extinta em
meados dos anos 60 (CARINI, 2005). O precedente aberto pela coloni-
zação oficial de Serrinha incentivou a intrusão de outras reservas no
começo dos anos 1960, especialmente a de Nonoai, esta, em parte, já
expropriada aos índios pelo estado gaúcho desde 1941 (Governo do
Interventor Federal no Rio Grande do Sul, Cordeiro de Farias) para cons-
tituir parque florestal.
Podemos afirmar que as lutas entre índios e colonos, bem como as
outras que estavam se gestando para enfrentar o latifúndio, revelaram
o lado perverso do processo de modernização tecnológica e produtiva

40 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
adotada e cristalizada desde então há duas décadas; viu-se que nem
tudo era modernização, o que havia mais eram sim contradições. Movi-
mentos sociais iam se gestando ao redor de associações sindicais rurais,
de quadros do interior da Igreja Católica, de alguns partidos na clandes-
tinidade, a reforma agrária reaparece como bandeira política por grupos
sociais do meio rural no final dos anos 70. A região Norte será palco
desses conflitos por toda a década de 80.

2 A origem do conflito

O tema questão indígena passa a fazer parte da agenda política e social


num cenário em que aflorava cada vez mais os grandes temas do país.
O final dos anos 70 passou a ser um período fértil nesse sentido e uma
nova reconfiguração sobre o problema indígena toma corpo. A constituição
do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) representou um marco na
inserção da Igreja Católica e nas ditas pastorais sociais. A CPT (Comissão
Pastoral da Terra) foi outro grande passo; estimulada por um bispo
muito ligado à questão da terra, Dom Pedro Casaldáliga, de São Félix
do Araguaia (MT), a mesma tornou-se uma entidade autônoma, mas
ligada ao campo pastoral da CNBB junto aos pequenos agricultores na
luta contra a grilagem de terras, em especial na Amazônia e no Centro-
-Oeste, por empresas agrícolas e multinacionais, pela reforma agrária
(BEOZZO, 1994). A Comissão teve sua performance mais orgânica em
nível de país a partir do início dos anos 80. Tanto o CIMI, quanto a CPT e
as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) passaram a ser a expressão da
resistência de categoriais sociais (urbanas e rurais) subalternizadas pelas
dinâmicas de desenvolvimento econômico do país (MATOS, 2003).
É importante ter presente que grupos políticos, aliados ao regime
militar e ao grande capital fundiário, lutaram com todas as forças para
impedir os avanços conquistados nos anos 50 e início dos anos 60 em
torno da questão da terra, em geral, no interior das políticas de Reformas
de Base (do governo Goulart) e nos grupos organizados para esse fim. A
Igreja Católica assumiu várias fases e faces em torno da questão social e
da luta pela terra ainda antes, mas muito mais durante o regime militar. O
medo do comunismo, a constituição de sindicatos, seus vários quadros de
ação social, suas entidades, suas mediações no meio social e no rural em
especial definiram linhas de ação, conflitos internos, ambiguidades insti-
tucionais. No entanto, havia Bispos que se declaravam a favor da reforma
agrária, da necessidade de exigência de justiça social, bem como de
vincular o homem da terra como seu proprietário; possibilitar em larga
escala o acesso a terra àqueles que estejam aptos a se tornar proprietários;

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 41


criar condições para que o homem obtenha, pela posse e pelo uso ade-
quado da terra, os meios de proporcionar uma existência digna a si e à
sua família, sem ferir as legítimas exigências do bem comum” (REB, 1964,
p. 43).
A institucionalidade da Igreja Católica não era e nunca foi um bloco
monolítico; múltiplos conflitos internos e divergências se fizeram sentir
principalmente após o Concílio Vaticano II, em especial em torno de
suas diretrizes de pastoral, do apoio ou não aos militares, da luta pela
reforma agrária (BEOZZO, 1994). Durante a segunda metade dos anos
70 se explicita com mais veemência a noção de cultura e religiosidade
popular. A dimensão do “popular” ganha força na luta social tanto na
periferia urbana como no meio rural. Não há dúvida de que essa nova
dimensão evangelizadora (não tão nova assim, talvez fosse melhor dizer
redefinida conjunturalmente) bateu de frente com o status quo político
golpista, dificultando o relacionamento entre Estado e Igreja. Desse modo,
começou-se a separar o joio do trigo. Setores da Igreja foram acusados de
“comunistas”, “anticatólicos”, “inimigos da nação” e “clero vermelho”
pelos militares e por alguns membros da oficialidade da Instituição reli-
giosa (MATOS, 2003). Essa relação tensa e de busca de legitimação social
e moral continuou até o final do regime em meados dos anos 80. A
chamada “igreja do povo”, identificada com os pobres, “igreja do evan-
gelho”, caminhava independente da hierarquia da Igreja Católica.
A Igreja a partir do povo, emergindo de seus valores e expressão de sua
compreensão da vida e do evangelho. Igreja que assume os anseios do
povo acredita em suas capacidades e se esforça por despertar e arregi-
mentar suas forças latentes [...]. Parece igualmente claro que a Igreja
viverá, durante um bom período, num clima de tensão mais ou menos
velada com a comunidade eclesial anterior, centrada na burguesia, seus
valores e aspirações (QUEIROZ, 1997, p. 123).
Vários foram os documentos da Igreja que denunciavam os excessos
do regime, a recessão econômica, a marginalização do povo e o problema
agrário; alguns deles foram muito importantes, dentre os quais,
destacamos: “Eu ouvi os clamores do meu povo” (1973); “Marginalização
de um povo: grito das Igrejas” (1973); “Comunicação pastoral ao povo de
Deus” (1976); “Exigências cristãs de uma ordem política” (1977). Esses
documentos vão revelar também a realidade problemática dos índios
no Brasil (suicídios, doenças, extinção, redução de reservas, incipiente
e discutível representação pública e de sua própria entidade, mudanças
culturais, intrusão, impacto internacional, exploração do latifúndio,
prostituição, etc.). Com isso, vão produzir certa pressão social e a efeti-
vação de instituições mediadoras engajadas na “luta indígena” e enti-
dades de apoio internacional; a própria Funai é pressionada para assumir

42 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
a defesa dos índios. O Estatuto do Índio é promulgado em 1973 com a
intenção de assegurar áreas e reservas indígenas e suas demarcações
(ainda feitas pelo estado positivista, sob a orientação e gerenciamento de
Torres Gonçalves, nas primeiras décadas do século XX) que, na prática,
em anos posteriores, vai se mostrar muito ineficaz.
Um grande encontro em nível nacional das comunidades indígenas
aconteceu em maio de 1978 em Barra do Garças-MT. Os processos de
intrusão nas terras indígenas, a violência de fazendeiros e madeireiros,
a inoperância da Funai, dentre outros, foram os temas que tomaram o
tempo das discussões desse encontro (CARINI, 2005). Esse processo forta-
leceu a decisão dos índios de expulsar os colonos da reserva de Nonoai.
Um jornal local assim o descreve:
A luta entre posseiros e índios na reserva indígena de Nonoai se agra-
vou nas últimas horas [...], existem dezenas de feridos, muitos dos quais
deverão ser transportados para os hospitais de Passo Fundo. No telefo-
nema, o prefeito de Nonoai diz que a situação se agravou na semana
passada, quando foram incendiadas sete escolas municipais, localizadas
na área da reserva indígena (O Nacional. Passo Fundo, 10 maio 1978, p. 1).
A situação das reservas de Serrinha, Ventarra, Inhacorá, Votouro
e Nonoai, todas muito próximas e no Norte do estado, expressa essa
tendência e diretriz em relação às intrusões e perdas de territórios por
parte dos índios. Uma apuração do governo do estado e do Incra, em
1974, indicou a existência de 974 famílias de intrusos no interior das
reservas (indígena e florestal) de Nonoai e Planalto (CARINI, 2005).
A violência física acabou sendo um expediente utilizado pelas partes,
uns insistindo na retomada da terra – os índios – e outros resistindo à
perda da terra – os colonos posseiros. Esse confronto entre índios e peque-
nos agricultores intrusados aconteceu não só em Nonoai, mas em várias
regiões do Sul do Brasil (Cacique Doble, Guarita, Chapecó, Rio das
Cobras, Tenente Portela, dentre outras), induzindo a Funai, entidades
de igrejas, em particular o CIMI e o COMIN (esse da Igreja Luterana),
as pastorais sociais da CNBB, entidades do campo jurídico e da socie-
dade civil, ao engajamento pela causa indígena, ao mesmo tempo que
também tornavam-se sensíveis à causa camponesa. Em nível de país,
aos poucos, os militares mostraram sua face, suas práticas e para quem
estavam governando. Seus acordos com os grandes capitais (nacionais e
internacionais), seu endurecimento político, sua centralidade política, a
repressão contra os direitos humanos fundamentais dos cidadãos, produ-
ziam certo descontentamento na oficialidade da Igreja Católica. Um
documento da CNBB de 1969, após o AI-5, passa a revelar as novas
diretrizes da referida instituição que serão colocadas em prática em anos
posteriores. Diz um fragmento do mesmo que,

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 43


é firmado o direito da Igreja de pronunciar-se sobre assuntos políticos
quando estiver em questão o bem da população. [...]. A situação institu-
cionalizada no mês de dezembro [AI-5] possibilita arbitrariedades,
entre as quais a violação de direitos fundamentais, como o de defesa, de
legítima expressão do pensamento e de informação; ameaça à dignidade
da pessoa humana [...], institui um amplo poder que torna muito difícil
o diálogo autêntico entre governantes e governados (CENTRO PASTORAL
VERGUEIRO, 1986, p. 120).

Esse documento do final dos anos 60 apresenta uma ideia da mudan-


ça que foi se constituindo na relação entre Igreja e Estado no período
(MATOS, 2003). A pressão dava-se em relação à esfera pública em
vários níveis e ao latifúndio na justificação da necessidade de uma
efetiva reforma agrária que contemplasse os empobrecidos do campo. O
“problema indígena”, aliado aos dos colonos, ganhou feição no campo
público, ou seja, transferiu-se e pressionou o Estado para que fosse resol-
vido um problema que ele mesmo criou, permitindo, no decorrer de muitas
décadas anteriores, a intrusão, o arrendamento de terras, a redução de
reservas indígenas e a ausência de representação efetiva (RÜCKERT,
2003). No entanto, órgãos dos governos federais e estaduais ainda ficaram
por muito tempo num jogo de empurra-empurra em torno da questão,
pois sabiam que poderiam resolver o problema dos índios produzindo
outro: o dos colonos/posseiros.
Novos posicionamentos, encaminhamentos e discussões resultam
de uma nova visão sobre a questão indígena, porém, sob conflito e
tensão com atores sociais também do meio rural em situação de luta
pela preservação de culturas e de horizontes jurídicos que protegem
a propriedade da terra. Outros exemplos já haviam acontecido, em
períodos recentes ao de Nonoai, no Paraná e em outras regiões do país,
mas muitos outros aconteceram depois, fato que mobilizou categorias
de representação política em níveis estadual e federal. Discutia-se muito
a questão da emancipação das comunidades indígenas, sob pena de
em pouco tempo não haver mais índios, ou, então, em tê-los totalmente
aculturados e desfigurados em sua cultura; CPIs estaduais foram criadas
para rever e rediscutir a denominada questão indígena, debates políticos
tomavam conta do parlamento e da esfera midiática, havia pressão
internacional nesse sentido, o foco midiático foi acionado em torno
do tema, realidades em que situações de extermínio de índios eram
evidenciadas (MARCON, 1979).
Os conflitos começaram a se explicitar no interior de reservas
indígenas, em especial a de Nonoai; colonos e madeireiros já haviam
destruído grande parte da reserva florestal no interior da referida reserva.
A cultura da soja, desenvolvida e incentivada pela esfera pública estatal,
estava desconfigurando a paisagem. A corrupção de funcionários da

44 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
Funai, os desvios de dinheiro, o não pagamento de arrendamento aos
índios, o uso irracional do solo, dos rios e da vegetação em geral, além do
total descontrole da esfera pública em torno das intrusões, principalmente
no ano de 1974, davam o tom do conflito que se avizinhava (GEHLEN,
1983; SIMONIAN, 1981).

3 O desencadeamento do conflito

Na corrente da filosofia política do estado gaúcho dos anos de 1960,


percebe-se que deputados discursam a favor da desapropriação das terras
indígenas, as chamadas reservas florestais – estas criadas nos anos 1940
no interior das terras tribais –, deixando os latifúndios intactos:
Segundo revelou o deputado Luciano Machado na Assembleia Legisla-
tiva, o Estado é possuidor de vastas áreas de terras, completamente
devolutas, isto é, improdutivas.
Enquadrou nas mesmas 400 colônias do Estado, em Tenente Portela,
que se encontram devolutas, e ainda 700 colônias de reserva, também
do Estado, ao lado da área dos índios (de 4.100 colônias). Juntadas as
áreas de Tenente Portela e Nonoai dão 27 mil hectares, área superior a
desapropriada em Sarandi (O Nacional. Passo Fundo, 20 jan. 1962, p. 4).
Ganhava cada vez mais adeptos no meio político gaúcho da época a
concepção de que havia terra suficiente para abrigar índios e posseiros,
juntos, como forma de justificar a permanência de posseiros no interior
das reservas, ignorando o modo de vida tribal, suas representações
simbólicas e sua organização social. Nesse sentido, não obstante a exis-
tência de um contexto favorável ao Movimento Indígena (MI) na região
de Nonoai, após o surgimento do CIMI, um conjunto de forças alia-se à
causa dos pequenos agricultores, estabelecendo-se, então, um duelo entre
a força apoiadora do MI e o grupo colocado ao lado dos colonos/pos-
seiros, ao qual aderiram, além de políticos ligados a várias correntes parti-
dárias, até mesmo integrantes da própria Igreja Católica. De acordo com
o CIMI-SUL (1978), nos anos de 1976 e 1977, os indígenas de Nonoai
tiveram um período de intensa preparação, tempo em que foram vencidos
os conflitos internos e verificou-se maior engajamento por parte do CIMI
na organização do movimento, através do respaldo dado às lideranças,
da divulgação das condições opressivas às quais estavam submetidos os
indígenas e do anti-indigenismo praticado pela Funai.
A mudança de cacique da reserva de Nonoai, no final de 1977, foi
fundamental para imprimir decisões mais radicais entre os índios. Oriun-
do de uma ala, no interior do grupo, contrária à presença de posseiros e
arrendatários, e estando mais próximo à nova geração de caingangues,

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 45


o cacique Xangrê trata desde logo dos preparativos para a “revolta”,
afrontando a Funai e desencadeando um clima de guerra contra os
brancos (CARINI, 2005). É interessante também enfatizar que, além desse
fator de poder e de comando interno, havia outros processos favoráveis à
mobilização dos índios: havia um alto grau de conscientização dos índios
em todo o Sul do Brasil, havia muitas adesões à causa indígena, através
de manifestações de apoio das mais diferentes entidades, organizações
(nacionais e internacionais) e pessoas (antropólogos, indigenistas, ecolo-
gistas, sociólogos), além da articulação entre os vários movimentos sociais
populares que cresciam em todo o Brasil, uma total desarticulação de
parte dos pequenos agricultores no interior da mesma.
O jornal O Estado de São Paulo noticiou a eminência de levantes quatro
anos antes do que iria se evidenciar; revela também o clima de inamis-
tosidade no interior da reserva e a estratégia de acomodação do cacique
que seria substituído posteriormente:
A qualquer momento poderá ocorrer um grave conflito entre 1.200
caingangues de Nonoai, há 461 quilômetros de Porto Alegre, e os agricul-
tores que trabalham nas terras reclamadas pelos índios. As hostilidades
entre brancos e caingangues ocorrem desde o início da invasão e somente
não se transformaram em lutas de maiores proporções por que o chefe
do posto tem pedido paciência, conforme acentuou o cacique Alcindo
Nascimento, líder dos 1.700 caingangues de Nonoai, ao explicar que há
cinco anos os índios já queriam lutar para expulsar os brancos (O Estado
de São Paulo, São Paulo, 8 ago. 1975, p. 12).
A “revolta” efetivamente acontece em maio de 1978, através de intimi-
dação, advertências, incêndio às escolas, ataques a casas e, finalmente,
expulsão:
A luta entre posseiros e índios na reserva indígena de Nonoai se agravou
nas últimas horas. Segundo informações transmitidas ao deputado Aldo
Pinto pelo prefeito Gervásio Magri, existem dezenas de feridos, muitos
dos quais deverão ser transportados para os hospitais de Passo Fundo.
No telefonema, o prefeito de Nonoai diz que a situação se agravou na
semana passada, quando foram incendiadas sete escolas municipais,
localizadas na área da reserva indígena (O Nacional. Passo Fundo, 10
maio 1978, p. 1).
Continua o mesmo jornal relatando que:
Uma patrulha de 250 índios fortemente armados está encarregada de
percorrer a reserva indígena de Nonoai, e dar um ultimatum aos agri-
cultores para que desocupem a área em menos de 24 horas. Mais tarde,
a patrulha volta ao local e o agricultor, caso não tenha obedecido à
advertência, será sumariamente expulso dos limites da reserva indígena.
Ontem os índios incendiaram os pertences de duas famílias e prenderam

46 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
um caminhão que transportava um pequeno carregamento de madeira,
que era retirado pelo agricultor conhecido como Chico Mascate. Também
mantiveram sob o domínio o motorista que dirigia o caminhão, enquanto
davam liberdade ao ajudante Luiz Capelari (Idem, p. 1).
A violência física acabou sendo um expediente utilizado pelas partes,
uns insistindo na retomada da terra, os índios, e outros resistindo à perda
da terra, os posseiros. As agressões no confronto direto entre índios e pos-
seiros resultaram em feridos e pelo menos uma morte.
À reportagem de O Nacional, o índio Avelino falou com alguma difi-
culdade e contou que “dez índios e oito brancos” se desentenderam com
um saldo de três índios feridos e um branco. “Nós fomo avisar os ho-
mem pra ele sair da terra. Um tava com uma faca e eu fui tirá. Daí ele
me cortou”. Os outros dois índios foram atendidos, segundo Avelino, em
Nonoai mesmo e não soube contar nada a respeito do posseiro ferido.
Disse, entretanto, que “quase mataram o homem branco”. Referindo-se à
situação que reina na área indígena, a partir dos incidentes com agricul-
tores que estão se apossando das terras dos índios, Avelino Pedroso afir-
mou: “a coisa está muito feia, tem muita gente invadindo” (Id., Ibid., p. 1).
O conflito desencadeou polêmicas em vários setores da sociedade,
induziu a Funai a se engajar efetivamente ao movimento indígena,
tornando-se aliada à causa dos índios e ao tratando de buscar alternativas
para a evacuação dos colonos intrusados nas reservas. Segundo a Funai,
“Todos os invasores das áreas indígenas localizadas em Nonoai e Planalto
serão tirados a partir dos próximos dias por determinação da Fundação
Nacional do Índio” (O Nacional. Passo Fundo, 11 maio, p. 1). A mesma
tentou, através da mídia local e estadual, minimizar o conflito e acalmar a
opinião pública, dizendo que o clima entre posseiros e índios não era tão
violento como vinha sendo propalado. Também negou que os incêndios
às escolas tivessem sido praticados pelos índios, pois, segundo ele, estes
incêndios teriam resultado de ações planejadas, com ataques todos pela
madrugada, sendo que “o índio não planeja, ele ataca a qualquer hora”. E
conclui: “Os incêndios não teriam sido praticados, nem por índios e nem
por posseiros, mas, por ‘aproveitadores’”.
Simonian (1981), ao contrário do delegado regional da Funai, sugere
que o incêndio às escolas era parte de uma decisão planejada pelos índios
nos mínimos detalhes quando afirma: “Em três de maio (1978), os líderes
indígenas se decidiram: o trabalho teria início naquela noite. Na aldeia de
Pinhalzinho obteriam junto ao chefe do posto o combustível necessário
para o incêndio das escolas sem que este soubesse sobre o destino da
gasolina cedida”. Para a autora, a escola representava “um mecanismo
retentor dos posseiros” na reserva (SIMONIAN, 1981, p. 177). Desse
modo, percebe-se que havia uma preparação, um amadurecimento dos

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 47


índios em torno das ações, bem como vínculos com outros movimentos
indígenas, em particular com o da reserva de Rio das Cobras, em Laran-
jeiras do Sul, estado do Paraná, no qual os índios afrontaram os intrusos,
conseguindo evacuá-los de suas terras.4 Isso evidencia a existência na
época de canais de comunicação entre as comunidades indígenas pelo
Brasil, unificando, como já foi dito, discursos, estratégias e planos de ação
a nível nacional, situação não vivenciada pelas comunidades indígenas na
década de 1960. Nessa reserva, segundo informações do CIMI-SUL, mais
de 90% das terras estavam ocupadas por fazendeiros, grileiros, madei-
reiros e colonos (CARINI, 2005).

Conflito entre índios e colonos em Nonoai em 1978,


o qual promoveu a expulsão de colonos intrusados no interior da reserva indígena.
Foto de Ricardo Chaves – Arquivo Pessoal. Disponível em: <http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/>.

4
O levante dos índios guaranis e caingangues de Rio das Cobras acabou se constituindo
num caso emblemático no contexto da história de resistência e luta dos índios contra os
invasores, tomado como referência para outras ações de despejo, como a que ocorreu
em Nonoai-RS e outras áreas do Brasil. Ainda em 1975, a Funai, o Incra e o Governo do
Paraná concluíram que 18.024 ha da reserva de Rio das Cobras, isto é, 94,33% da sua
área total, estava ocupada por intrusos (fazendeiros, grileiros, madeireiros e colonos
sem terra). Durante muito tempo os índios e padres do CIMI-SUL denunciaram à
Funai e à opinião pública as invasões, o roubo de madeira, a ação predatória feita nas
matas e as ameaças de jagunços contratados pelos empresários capitalistas. Na falta de
resultados práticos, os índios decidiram iniciar uma luta pela retomada de suas terras,
expulsando delas todos os invasores. Ver CIMI-SUL, Luta Indígena..., n. 6.

48 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
Em Nonoai, o conflito ficou mais limitado ao confronto entre índios
e colonos, ainda que estivessem os índios dispostos a evacuar também
os madeireiros e arrendatários. Estima-se que mais de mil famílias de
camponeses foram expulsas do interior da reserva, sendo que a maioria
permaneceu errante pelas estradas da região.

4 Um novo território de conflitos

A luta social que devolveu boa parte das terras aos índios produziu
outra realidade de difícil resolução. As mais de mil famílias de pequenos
agricultores expulsos da reserva de Nonoai não tinham para onde ir,
milhares de sem terra ficaram a vagar pelas estradas na região de Nonoai,
Ronda Alta e Sarandi:
De maio de 1978 em diante isto aqui se tornou um corredor de pere-
grinação; colonos que iam, que vinham; gente que tinha necessidade,
que passava fome; pessoas que precisavam de ajuda e eu lembro que no
primeiro momento, a minha atitude como padre era socorrer as vítimas
(FRITZEN, Arnildo. Entrevistado por Joel João Carini).5
Grande parte das famílias de colonos desalojados da reserva (em
torno de 750) foi acampar provisoriamente no Parque de Exposições de
Esteio, até encontrar uma solução. Outro grupo permaneceu acampado
próximo à reserva; outros ainda se espalharam pela região, sendo apoia-
dos e acolhidos por parentes e/ou em propriedades de conhecidos na
circunvizinhança. Os veículos de comunicação, como porta-vozes da esfe-
ra política e de grupos temerosos do que poderia acontecer, desde logo
buscaram desqualificar o movimento, apontando soluções, como a migra-
ção para projetos de colonização no Centro-Oeste, no assalariamento
urbano (que, no período, apresentava-se como eficaz) ou nas empresas
rurais na região (que eram abundantes, principalmente em Passo Fundo
e Carazinho), as quais demonstravam necessitar de mão de obra; reivin-
dicavam também a necessária repressão policial para manter a ordem e
defender o direito de propriedade, desestabilizar os movimentos em prol
da reforma agrária. Porém, desde logo (ainda no ano de 1978), surgem
lideranças forjadas no campo popular, preocupadas na articulação de
um movimento de abrangência mais ampla, capaz de fazer convergir
5
FRITZEN, Arnildo. Entrevistado por Joel João Carini, Ronda Alta, 9 de junho de 2006.
Padre Arnildo, 63 anos, foi um dos mais destacados intelectuais dos movimentos
sociais agrários da antiga Fazenda Sarandi que culminaram com a criação do MST.
Participou da organização dos movimentos populares, sobretudo do Movimento
dos Sem Terra nos eventos da Macali e Brilhante em 1979 e da Encruzilhada Natalino
1981/83. Como integrante da CPT da Igreja Católica, teve uma grande atuação nos
movimentos sociais agrários e sindicais das décadas de 1980 e 1990.

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 49


para um mesmo foco propostas dispersas em torno da luta pela terra
(GEHLEN, 1983). A CPT começava a atuar em nível de país pela causa
dos sem-terra. Sindicalistas e cientistas sociais engajaram-se num cenário
político que já acenava pela possibilidade de organização dos grupos
subalternizados; experiências nesse sentido já estavam acontecendo no
campo do operariado urbano (no ABC paulista, em particular) e isso
poderia também ganhar corpo no meio rural.
Representantes da igreja da região do conflito, tendo Ronda Alta
e Sarandi como epicentros, se engajaram na luta dos colonos. O padre
Arnildo, uma das principais lideranças da Igreja Católica na região,
transformou-se numa espécie de baluarte da causa camponesa na região.
Assumiu a Paróquia de Ronda Alta em 1977 e imediatamente deparou-
-se com o drama dos posseiros de Nonoai. Num primeiro momento, na
segunda metade do ano de 1978, dedicou-se exaustivamente ao traba-
lho de assessoria, objetivando dar um encaminhamento imediato às prin-
cipais demandas dos camponeses expulsos de Nonoai que, segundo ele,
“peregrinavam pelas estradas de Ronda Alta”. Num segundo momento,
amparado na filosofia da CPT, tratou de articular uma estratégia visando
reunir os “desgarrados”, sob a mística da resistência contra a opressão e a
luta pelo direito a terra.
Fomos andando e aí pelo mês de setembro de 1978 eu tive os primeiros
contatos com o João Pedro Stedile. Ele trabalhava na Secretaria da Agri-
cultura e aqui no Natalino tinha uma estação experimental, então a gente
se encontrava neste ir e vir e trocávamos ideias sobre o que fazer, já que
ele era uma liderança do meio estudantil (FRITZEN, Arnildo. Entrevista
direta já informada).
A Fazenda Sarandi começa a ser o alvo das investidas dos grupos
expulsos da reserva de Nonoai. Porém, não havia ainda organização dos
colonos, muito menos lideranças com reconhecida legitimidade. A socie-
dade brasileira ainda estava num período de exceção no campo político-
-democrático. Esse processo fez com que muitos colonos permanecessem
sem rumo, sem perspectivas e sem grandes mediações. Os que estavam no
Parque de Exposições possuíam alojamentos precários e estavam sempre
sob forte aparato policial-militar, dificultando-lhes a saída e as visitas de
entidades e populares solidários. Porém, essa tentativa de isolamento não
foi tão eficiente, pois o fato de os colonos estarem próximos da capital, de
uma forma deliberada ou não, acabou dando visibilidade maior à reali-
dade e promoveu ampla discussão e denúncia sobre a questão da terra
no estado e no país. A pressão para a adesão aos projetos de colonização
na Chapada dos Guimarães e em Canarana foi intensa (TAVARES DOS
SANTOS, 1993).

50 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
Após muitas negociações, repercussões, mediações, solidariedades,
pressões, etc., três meses depois, em torno de 550 famílias que estavam
no Parque de Exposições foram transferidas para projetos de colonização
no Mato Grosso, numa região denominada de Terra Nova, em projetos
de agrovilas, orientados por Igrejas (Zero Hora. Porto Alegre, 8 jun. 1978,
p. 43); outras 130 famílias foram para assentamentos em Bagé, sob orien-
tação da Cooperativa Aceguá; outro grupo que permaneceu acampado
próximo da reserva e os que se espalharam pela região bateram pé na pro-
messa do governador Guazelli de conseguir terras no estado (MARCON,
1979). Desse modo, parte, pelo menos, da realidade conflituosa e proble-
mática dos colonos expulsos havia sido resolvida (GEHLEN, 1983).
Porém, havia o problema dos que ficaram. Sem nenhuma proposta efe-
tiva de reassentamento, na metade de 1978, um grupo de 37 famílias
invadiu a reserva florestal da Fazenda Sarandi. Em 5 de julho de 1978,
dois dias após a primeira invasão, já se encontravam mais de 100 famílias
no interior da referida área, segundo anunciado na imprensa regional (O
Nacional. Passo Fundo, 4 jul. 1978, p. 1.; também em 5 jul. 1978, p. 8).
Chega-se então ao ano de 1979 e, desde os primeiros meses, o grupo
dos expulsos de Nonoai já tem certa organização e mediação da Igreja e
de outras lideranças sindicais, políticas e do meio universitário, que lhes
confere certa coesão e poder de organização.
No começo de 1979 a gente resolveu fazer nucleação das famílias para
se discutir com elas o que fazer. Foi muito interessante, pois surgiu um
núcleo em Planalto, um em Nonoai e um em Três Palmeiras. Eu naquela
época já estava na CPT e aí nós tomamos a iniciativa como pastoral. Assim
se estruturaram três núcleos, com coordenações (uma coordenação de
cada núcleo) (FRITZEN, Arnildo. Entrevista direta já citada).
Esse processo de organização acabou fortalecendo a união dos desalo-
jados, agregou os que haviam se dispersado na região e abandonado a
esperança da conquista da terra. Em julho de 1979, os colonos iniciaram
processos de ocupação de fazendas, intensificaram-se as viagens à capital
do estado, objetivando obter do governo a liberação das áreas Macali e
Brilhante, na antiga Fazenda Sarandi, para o assentamento dos expulsos
de Nonoai. Diante de promessas que, posteriormente, revelaram-se inó-
cuas, os colonos decidiram ocupar a gleba Macali em 06 de setembro de
1979. Ações do governo do estado amedrontaram o grupo com a força
policial, porém, diante das pressões e da organização dos colonos, o
mesmo recua e tenta resolver o impasse pela via da negociação. Essa ação
permitiu a visibilidade da possibilidade da conquista da Macali. Essa
realidade abriu um precedente e os sem-terra se animaram e prepararam
a ocupação da Brilhante, o que se efetivou ainda no mês de setembro de
1979: “Como isso estava deslanchando, dando certo, aqueles que não
vieram junto na primeira leva, vieram pra Brilhante. Então nos dias 25,

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 51


26 e 27 de setembro foram os dias da ocupação da Brilhante. Como na
Macali não foram tirados, na Brilhante também não podia, né” (FRITZEN,
Arnildo. Entrevista direta já citada).
A ocupação da Brilhante, no entanto, provocou forte reação do
governo e nos meses subsequentes ocorreram inúmeros confrontos entre
ocupantes e a Brigada Militar: “Aí se passou um período de parte do
Governo de muita dureza, foram uns 6 meses de muita pressão, Briga-
da Militar muito violenta, gente que saía não deixavam mais voltar,
enfim, houve muito sofrimento, foi uma luta muito dura, mas foi um
aprendizado” (FRITZEN, Arnildo. Entrevista já informada). Ademais,
os casos de Macali e Brilhante reacenderam as discussões sobre a polê-
mica em torno das terras do Estado na Fazenda Sarandi. Na Assembleia
Legislativa, no final de 1979, uma CPI desnudou uma série de trapaças,
negócios escusos, casos de grilagem, vendas ilegais de madeiras, distri-
buição de terras para pessoas estranhas a agricultura, desmatamentos
realizados ao longo do período militar (desde 1964 até 1979), irregula-
ridades que invariavelmente eram realizadas pelos funcionários-adminis-
tradores da Fazenda Sarandi (Zero Hora. Porto Alegre. 19 out. 1979, p. 11).
As ocupações das fazendas Macali e Brilhante, além da ameaça de
outras vizinhas e/ou integrantes da histórica Fazenda Sarandi (é o caso da
Annoni), em setembro de 1979, envolveram não só os expulsos de Nonoai,
mas também os atingidos por barragens, diaristas de granjas, assalariados
rurais, sem-terra assentados na Fazenda Sarandi (desapropriação de
Brizola na época do Master) e que ainda não tinham obtido título defini-
tivo. Fizeram parte também posseiros, arrendatários e minifundistas que
entendiam não ser possível fragmentar ainda mais sua propriedade e
que necessitavam de terra para permitir a sobrevivência de membros das
famílias, além dos retornados dos projetos de colonização no Mato Grosso
e mesmo alguns de Bagé.6 O grupo se ampliou com a agregação de vários
outros grupos; conflitos internos apareceram em torno dos processos de
seleção dos que seriam contemplados, dos que possuíam mais legitimi-
dade na obtenção da terra; divisões internas se fizeram sentir, bem como
também maior visibilidade pública do fato, produzindo apoios e opiniões
externas em torno da questão.7

6
É interessante enfatizar essa questão dos retornados, pois se tornaram fundamentais
como contrapropaganda e manifestação da falência das promessas feitas para as
adesões aos projetos de colonização do período e dos posteriores. O depoimento dos
mesmos servia de contrapropaganda e alimentava a luta pela conquista da terra nos
espaços regionais e/ou, no limite, no interior no estado gaúcho.
7
Jornais locais e da capital do estado intensificavam sua visibilidade na questão produ-
zindo muitas matérias sobre o mesmo. Ver O Nacional e o Diário da Manhã, ambos de
Passo Fundo, bem como o Zero Hora e o Correio do Povo de Porto Alegre.

52 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
A primeira vitória, ainda que parcial, dos grupos que pressionavam,
aconteceu entre maio e julho de 1980, através da seleção de famílias para
o assentamento na Fazenda Brilhante. Em outubro de 80, outro grupo
não contemplado tentou invadir a Fazenda Annoni (latifúndio localizado
nas proximidades), porém, sem obter resultados positivos, pois foram
imediatamente desalojados pela polícia, a qual sempre esteve alerta nesse
período, marcando presença na região e forçando os invasores a retornar
para o acampamento na Brilhante (GEHLEN, 1983).
A partir do conflito de Nonoai várias frentes se deslocaram em torno
da questão da terra na região. Além de sua tentativa de assentamentos,
discutiu-se a legitimidade das negociações fundiárias, reabriram-se as
discussões em torno das políticas de colonização que, no fundo, foram
marca registrada de governos militares de até então, assim como de
governos do estado. A questão agrária regional e estadual passou a ser
politizada por setores da sociedade civil organizada (MARCON, 1979), as
contradições da questão agrária no Brasil, e em especial na região, foram
evidenciadas e os equívocos de políticas públicas e de modernização
produtiva foram enfatizados. Porém, todos os acampados sabiam que
não haveria como contemplar todos nas glebas em questão; essa realidade
provocava tensões internas, desistências, dispersões, interesses múltiplos,
aceitação para projetos de colonização, ocupações de outras fazendas,
porém, com resultados negativos, fragmentações e, ao mesmo tempo,
consciência do enfrentamento (MARCON, 1979).
Ainda que tenha havido muitos problemas internos e externos, a
organização dos sem-terra expressou, para a conquista das fazendas refe-
ridas, um despertar para um novo momento histórico. Para cada ação ou
ameaça de invasão, crescia a adesão. Assim, após um processo de lutas
de dois anos, gestava um grande movimento social de luta pela terra,
o qual seria organizado alguns anos depois, o MST, deflagrado a partir
do acampamento de Encruzilhada Natalino. A partir dessa realidade de
desapropriação das duas fazendas referidas, novas estratégias começaram
a se evidenciar na região. O acampamento Natalino, em janeiro de 1981,
na denominada Encruzilhada Natalino, ao sul da Fazenda Sarandi, na
entrada da gleba Macali, passou a ser a grande estratégia para os grupos
não contemplados nas desapropriações anteriores e para outros que se
somariam. No início, sua adesão foi paulatina e a visibilidade pública e
midiática também muito aquém do que se transformaria pouco tempo
depois. Em julho já eram 600 famílias acampadas reivindicando terra no
estado (MARCON, 1979).
Nesse período, a sociedade brasileira já se preparava para a redemo-
cratização política. Havia uma intensa ojeriza social em torno da estrutura
militarizada da sociedade, bem como uma pequena experiência de luta
regional pela reforma agrária promovida em grande parte pelos expulsos

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 53


da reserva indígena de Nonoai. Esse processo vai formar o novo e/ou
contínuo quadro do cenário regional dos conflitos sociais, das contradi-
ções fundiárias na região (MARCON, 1979).
Os primeiros a acampar foram os colonos de Nonoai que não haviam
sido contemplados nas fazendas Macali e Brilhante. Posteriormente fo-
ram chegando os arrendatários, meeiros, ou assalariados da região e de
municípios da circunvizinhança. Assim como foram sendo acrescidos os
sujeitos considerados sem-terra, esperançosos na conquista da terra, tam-
bém ganharam corpo os adeptos das causas sociais do campo religioso,
político, assistencial, universitário, enfim, pessoas que conheciam a reali-
dade dos colonos e que idealizavam a reforma agrária no país. Na realida-
de, o acampamento tornou-se um marco de intensas adesões em razão
das causas, do momento conjuntural da política brasileira, do retorno da
questão da reforma agrária depois de 20 anos sem grandes expressões
num país e numa região de imensos latifúndios, até então intocáveis.

As celebrações religiosas promoviam grandes concentrações de sem-terra na região.


O acampamento da Encruzilhada Natalino foi um marco aglutinador nesse sentido.
Fonte: Foto sem indicação de autoria, encontrada no acervo pessoal do Padre Arnildo,
entregue ao MAB com sede em Erechim.

O acampamento da Encruzilhada Natalino passou por várias fases


que vão da sua constituição lenta até metade de 81; intervenção militar-

54 História do Campesinato na Fronteira Sul • Joel João Carini, João Carlos Tedesco
-federal, assentamento provisório em 82 até o assentamento definitivo em
outubro de 83 (MARCON, 1979). O mesmo não encerrou um processo
de luta; ao contrário, deu sequência ao conflito gerado pela expulsão de
colonos de Nonoai, alimentou e abriu possibilidades para novas ações de
grande repercussão nos anos subsequentes na região, realidade essa que,
em períodos com mais intensidade, outros menos, perdura até então.

Enfim...

O conflito de Nonoai, entre índios e colonos, condensou uma reali-


dade que vinha se processando a mais de meio século no interior das
reservas indígenas do estado, em particular nas terras do Norte do RS;
o mesmo revelou os equívocos de políticas públicas, a não efetivação da
reforma agrária no país e no estado, a tentativa de imprimir modelos de
desenvolvimento homogeneizantes para grupos sociais diferenciados e,
além de outros processos, o descaso com os empobrecidos da terra (ín-
dios, caboclos, pequenos agricultores proprietários, meeiros, posseiros,
dentre outros). Esse conflito constituiu-se num marco histórico, não
apenas pelas suas dimensões (número de camponeses envolvidos), mas
sobretudo pelas repercussões sociais que desencadeou, por ser entre dois
grupos sociais empobrecidos, por revelar ações de revolta indígena, etc.
(MARCON, 1979; CARINI, 2005).
Grande parte dos pequenos agricultores expulsos de Nonoai em 1978
passou a constituir a força social para os movimentos que se desenca-
dearam na região na luta pela terra, tanto de colonos/caboclos quanto de
índios, que passaram a lutar para reaver suas terras em Serrinha, em mais
um conflito com colonos, expressivo de equívocos de políticas de Estado
no passado que se tentou resolver em anos posteriores, produzindo no-
vos problemas. A maioria das lideranças indígenas do movimento da
década de 1990 era de Nonoai, assim como a maioria dos camponeses dos
acampamentos da região, implantados a partir de 1979, eram invasores da
reserva indígena de Nonoai (CARINI, 2005).
A Fazenda Sarandi tornou-se o palco aglutinador dessa realidade
política, econômica e social, bem como das contradições da propriedade
da terra no país e o seu consequente empobrecimento de contingentes de
produtores rurais; nela condensaram-se movimentos em prol da reforma
agrária, da justiça social no campo, das políticas de incentivo à pequena
propriedade familiar. No seu interior, grupos sociais alijados da terra
lutaram pela sua desestruturação, desapropriação e fatiamento para cen-
tenas de pequenos produtores, contra o regime militar, contra as ações
do Estado em defesa do latifúndio. Pela primeira vez, de uma forma mais

O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 55


orgânica, teve-se uma ação efetiva pela reforma agrária produzida pelos
próprios pequenos agricultores familiares.
O movimento indígena de 1978 e os acampamentos decorrentes
herdaram muito do que o Master (1960-1964) pretendeu em determinado
período de sua curta existência. Diferenciou-se muito em alguns de seus
aspectos, mas manteve o sonho da conquista da terra e a consciência
da experiência da necessidade da luta social para efetivá-la. A presença
mediadora do CIMI e da CPT foi fundamental para ambos os atores
sociais envolvidos (índios e colonos).
A região se constituiu num cenário de uma orgânica luta pela terra
no fim do já quase exaurido regime militar. As ocupações de terras da
antiga Fazenda Sarandi (Macali, Brilhante, Natalino, Annoni e Coqueiros),
a partir de 1979, tornaram-se a mola propulsora de um longo processo
de movimentos sociais na região, que conserva sua história de lutas e de
referências ainda hoje.
Há que se ressaltar, por fim, que as lutas pela terra na região
Norte do Rio Grande do Sul, cujo epicentro foi a revolta de Nonoai
de 1978, contribuíram também para o nascimento e fortalecimento do
sindicalismo rural combativo, de outros movimentos sociais rurais
(como Via Campesina, Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais)
e para a ascensão de lideranças do campo sindical e político-eleitoral
ao poder, tendo-se como exemplos as próprias eleições de vereadores e
prefeitos pertencentes ao Partido dos Trabalhadores (PT) nos anos 1990,
nos municípios de Ronda Alta e Pontão, fato que deve ser enaltecido
por se tratar de uma região historicamente dominada por partidos
conservadores.

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O conflito de Nonoai: um marco na história das lutas pela terra 57


3
Os missioneiros

Tau Golin

A identificação do missioneirismo implica diversos condicionantes for-


mulados, demonstrados ou mantidos e reinventados constantemente no
silencioso mundo dos classificados insatisfatoriamente como “os subal-
ternos”. Existiu um longo processo até a consagração da territorialidade
missioneira como certificadora da identidade. Todavia, o determinismo
geográfico como gentílico ilude, em parte, a cotidianidade de hábitos,
costumes e imaginários que se vivificaram pelos meandros que conduzem
a um espaço simbólico, à recriação do evento pretérito como “tempo per-
dido”. Desse modo, o gentílico missioneiro pode alimentar-se em uma
permanência sustentada na historicidade da população, como pelo senti-
mento de habitar-se a territorialidade de sustentação dos acervos. E deles
recriar os monumentos de imanência de suas memórias. Enfeixar, por fim,
a seleção de elementos para marcar-se como identidade no presente.
Historicamente, a ideia do espaço missioneiro como região formadora
do Rio Grande do Sul e, por óbvio, do Brasil, sofreu uma ação objetivada
na materialidade e nas representações da nacionalidade. Primeiro, o colo-
nialismo das metrópoles investiu sobre a organização social jesuítico-indí-
gena. Os padres foram transformados em inimigos dos reinos ibéricos e
os indígenas infantilizados como suas vítimas, como se fossem incapazes
da concepção de destino, e, por conseguinte, como parte humana para
constituir o povo do Estado-nação. No corolário do Tratado de Madri
(1750), as instruções do marquês de Pombal determinaram a estratégia
da miscigenação, o casamento de soldados com índias guaranis cristiani-
zadas.
Desde sua origem, a concepção ibérica era de destruição do enorme
espaço sob controle da Companhia de Jesus e dos cabildos indígenas.

58 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


Portanto, a decadência gradativa do período inaugurado pela Guerra
Guaranítica (1753-1756), marcado pelas gestões corruptas e roubos de
terras e gados missioneiros, teve outro sentido após a invasão luso-
-brasileira de 1801. Estava consorciada com a guerra da Fronteira Sul,
cujas operações pelo oeste missioneiro eram concebidas como “tática
de diversão” para separar os efetivos do inimigo concentrados no Chuí,
na Lagoa Mirim e seus afluentes. Por isso, as concessões para fazer
estragos nas Missões foram dadas aos líderes de grupos de desertores,
gaudérios ou gaúchos. Depois ingressaram as tropas regulares. Todos,
indistintamente, dedicaram-se ao saque. Esta horda de saqueadores foi
se convertendo em “povoadores” somente quando a ideia de conquista
buscou sistematizar um modelo de ocupação.
Tal intrusão carregava a sua radicalidade. Concomitante à subtração
dos bens indígenas, à utilização temporária e destruição da materialidade
arquitetônica, outro processo radical se instaurou: a erradicação material,
cultural e simbólica do indígena, especialmente do Guarani. A ideia orga-
nizacional jesuítico-indígena deveria ser proscrita. O processo que começou
com os espanhóis se radicalizou com os luso-brasileiros. Como observou
Saint-Hilaire, em 1821,
cumpre notar que não resta, em toda a Província das Missões, nenhuma
inscrição ou epitáfio que lembre os jesuítas. Todos os monumentos desse
gênero foram, provavelmente, destruídos pelos espanhóis no propósito
de fazer com que os índios se esquecessem desses padres (SAINT-
-HILAIRE, 2002, p. 388).
Entretanto, que processo, nem sempre subterrâneo, manteve a noção
de que o mundo missioneiro constituiu um tempo da felicidade, da abun-
dância e, principalmente, que a sua destruição significou a decadência?
Uma tese provável, sustentada na documentação e nas observações de
viajantes, além de indicações de estudos contemporâneos, é que a inva-
são das Missões, em 1801, desencadeou um impressionante fenômeno
de guaranização da população, tanto no território ocupado como no Rio
Grande do Sul, em especial da Campanha. A miscigenação entre Guara-
nis, Charruas, Minuanos e Caingangues torna ainda mais complexo o
processo. De certo modo, podemos falar em indianização.
Em uma definição preliminar, indianização ou guaranização pode signi-
ficar modos de vida influenciados étnica ou culturalmente. Vai mais além
da noção de mestiçagem, cuja conformação posterior tem origem nos cru-
zamentos biológicos. Indianização pressupõe uma imanência cultural
que leva inclusive descendentes da imigração do século XIX e recente
(polacos, italianos, alemães, espanhóis, etc.) a se identificarem como mis-
sioneiros. O assustador neste processo é que tal identidade, muitas vezes,

Os missioneiros 59
descarta o modelo antropológico indígena, e se ancora na territorialidade
e no patrimônio cultural.
Ainda hoje, o corolário do nacionalismo, de imanência colonial, insiste
em não dar lugar às Missões na formação do Rio Grande do Sul. Segui-
damente aparecem manifestações e ações contra os missioneiros do
período colonial como não dignos de brasilidade. Essa pieguice de conce-
ber um povo exclusivamente pela organização do sistema político é o
método vesgo da distorção que, além de justificar genocídios, dilui a par-
ticipação indígena na formação social e cultural do povo rio-grandense.
José Hemetério Velloso da Silveira talvez tenha sido o primeiro autor
a sofrer mais violentamente o revés do nacionalismo oficial, em conse-
quência dos artigos que foi escrevendo durante a segunda metade do
século XIX e que culminou no indispensável As Missões Orientaes e seus
antigos domínios, publicado em 1909, considerando os jesuítas e os índios
como “os fundadores das Missões”. Destoou “da maior parte dos escrito-
res, que, em 144 anos decorridos”, tinham “preconizado todas as medidas
empregadas para sua supressão e banimento” (SILVEIRA, 1909, p. VIII).
A dificuldade em definir o rio-grandense pelos padrões raciais ou
pela centralidade predominante do “portuguesismo”, agregado, mais
tarde, por etnias que conformariam um estado europeizante, teve o seu
momento mais candente desencadeado por uma obra literária. Erico
Verissimo entrou no debate em favor da parte missioneira do Rio Grande
através do personagem Pedro Missioneiro, na trilogia O tempo e o vento,
cuja matéria “é a formação histórica do Rio Grande do Sul, dos começos,
no século XVIII, quando as Missões são destruídas...” (FISCHER, 2004, p.
89). Da ciência, o autor penetrava na subjetividade da memória afetiva.
Na conjuntura do debate, Erico, em miúdos, estampava no espelho do
Sul o indígena na formação das famílias. Pedro, que havia aparecido
misteriosamente numa fazenda da fronteira do Rio Pardo, em torno
de 1777, engravidou Ana Terra, de origem portuguesa, originando um
dos troncos familiares rio-grandenses, revolvendo as manipulações
da genealogia tradicional. De certa forma, a relação da família Terra
com Pedro, na genialidade de Erico Verissimo, assemelha-se a dos
conquistadores com os indígenas.
A família Terra observa que ele “não é índio puro”. Pedro apresenta-
-se pelo denominativo que lhe atribuem: “Me jamam Missioneiro”, falan-
do em “portunhol”. Ao lhe perguntarem se é espanhol, responde que não;
Continentino? (luso-brasileiro residente no Continente de São Pedro);
também “no”. “Donde é, então?”. Pedro responde: “De parte ninguna”.
Pedro havia nascido em São Miguel, mas era mestiço, talvez de Guarani
com descendente da Espanha. Não existia mais as Missões jesuíticas.
Ele, como representação dos demais, era algo involucrado, no entre-
-lugar do passado guarani, da redução e do colonialismo ibérico. Ele era

60 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


“missioneiro”. Algo que pela difusão guarani-mestiça de que ele era parte
se espalhava pelo todo (VERISSIMO, 1972, p. 81-82).
Nessa obra mediadora de impressionante intuição histórica, Erico
Verissimo identificou a particularidade do processo gentílico: Pedro engra-
vidou Ana, que pariu um filho e o embalou no berço contraditório da
fronteira e de um território conquistado. A exemplo de uma metáfora
da história, os irmãos de Ana assassinaram Pedro, por entranhar-se, por
inocular-se no útero gestador do povoador oficial, como a ocupação luso-
-brasileira inviabilizou o modo de vida guarani. Mas, silencioso e invisível
ao reconhecimento intruso, o filho de Ana prosseguiria entranhando
social e culturalmente a sina missioneira. Nele, de algum modo, estavam
todos!
Explicava-se, desse modo, a alcunha de “castelhanista” atribuída a
Érico. E, logo, a todo autor que insere o Prata na história do Rio Grande,
ou o indígena das Missões.
Essa discussão chegou a um estágio significativo nas esferas do
governo do estado, dos jornais, revistas e especialmente no Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, nos anos de 1955-57. Nessa
época formaram-se os núcleos de irradiação de posições que se esten-
dem até os nossos dias. A polêmica foi desencadeada pela consulta do
governo do estado ao IHGRS sobre a “pertinência” de edificar um monu-
mento a Sepé Tiaraju no bicentenário de sua morte (1756). Como se
sabe, Tiaraju foi um dos comandantes guaranis contra os demarcadores
e tropas ibéricas na execução do Tratado de Madri (1750), cujo levante
desencadeou a Guerra Guaranítica. O “parecer contrário”, encaminhado
ao governador, foi assinado por Afonso Guerreiro Lima, Moysés Vellinho
e Othelo Rosa (relator). Na concepção dos três, representando a chamada
corrente historiográfica lusitana, era “inaceitável o brasileirismo de Sepé”.
Os missioneiros, assim como o corregedor miguelista, não poderiam
ser encarados “como uma expressão do sentimento, das tendências,
dos interesses, da alma coletiva, enfim, do povo gaúcho, que se estava
formando ao signo da civilização portuguesa”. Publicado no Correio do
Povo, de 26 de novembro de 1955, o parecer acendeu o debate sobre a
formação social e cultural rio-grandense (PRITSCH, 2004, p. 12).
Até transformar-se em aceitação pública e identidade sub-regional, o
missioneirismo subsistiu silenciosamente fundado no imaginário do tempo
“de ouro” das reduções, no contraponto da miséria posterior. Apesar das
políticas oficiais, até a década de 1970, os pesquisadores ainda corriam
riscos quando realizavam investigações nas ruínas e, especialmente,
tentavam identificar os espólios extraídos das reduções. A ideia de preser-
vação era um espectro sobre o patrimônio dos moradores, que temiam a
identificação de simples pedras nos alicerces e paredes de suas casas.

Os missioneiros 61
Aos poucos, a aceitação da remanescência se deve aos historiadores e
arqueólogos que deflagraram a educação patrimonial, associados a outros
profissionais, provocando a grande virada na memória das Missões. A
música contribuiu imensamente, em especial quando artistas populares
como Jayme Caetano Braun, Noel Guarany, Cenair Maicá, Pedro Ortaça
e o Grupo de Arte Nativa Os Angueras, entre outros, começaram a se
autodenominar publicamente como “missioneiros”. A ilação dessa identi-
dade assumida também se expandiu pela rede de reconhecimento dos
barranqueiros, a confraria dos participantes do Festival da Barranca,
restrito predominantemente para homens relacionados com as artes,
em especial a música, e com influência nos meios de comunicação de
massa, em todas as regiões do estado. Em muitos casos, no presente, o
missioneirismo se constituiu em marca eleita por indivíduos de fora após
passarem a viver em seu espaço geográfico e histórico.
Esse processo de alteridade afetiva e incorporada contribuiu também
para impulsionar os grupos locais intermissioneiros para integrarem-se
à elaboração, mesmo que às vezes não muito clara, da identidade mis-
sioneira, como exercício intelectual e artístico. No conjunto, faz parte do
processo moderno de formação da marca identitária como escolha, ao
cabo, dos indivíduos, dentro do universo fragmentário das múltiplas
referências assumidas. A “consistência” do pertencimento, invariavel-
mente, encontra conforto na aparência pós-moderna das celebrações,
na escolha de indumentárias típicas, em estilos musicais e vocabulários
regionalistas, em teatralizações de hábitos e costumes, retirando-os de
suas normalidades. Após as celebrações do parecer-ser, a vida retoma seu
cotidiano contemporâneo, imantada pelo capitalismo.
Mesmo com o relativo sucesso na construção da identidade missio-
neira, os discursos nacionalistas ainda estão enraizados no senso comum
e, inclusive, em educandários e universidades, que não incluem as
Missões na História do Brasil, ou particularmente na sua História da Arte.
Após a expulsão dos jesuítas, os remanescentes das reduções estimu-
laram os olhares dos viajantes. Isso se deve, em especial, ao fenômeno de
que o jesuitismo da Província do Paraguai se constituiu em tema universal.
A crise da Guerra Guaranítica o mundializou. Constituiu-se em assunto
recorrente das esferas do poder em todos os continentes, especialmente
europeu, e fez parte dos embates políticos, sociológicos e dos programas
utópicos. Após a expulsão dos jesuítas das Missões, em especial no
século XIX, os viajantes sempre tentaram identificar os remanescentes
missioneiros no antigo território dos Sete Povos.
Em 1821, Saint-Hilaire formulou uma espécie de linha do tempo
da decadência. No início, “os espanhóis seguiram exatamente o plano
traçado pelos padres”. Entretanto, “como só se enviassem, para governar
as Missões, protegidos dos vice-reis de Buenos Aires” interessados em

62 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


“assegurar fortuna, entrou em decadência. Desfizeram-se do sistema dos
jesuítas; os índios foram explorados de todas as maneiras” e, ato contínuo,
“foram se dispersando”. Sob gestão espanhola, os “brancos se misturaram
com eles, apoderaram-se de suas terras e lhes assimilaram os vícios e
doenças destruidores” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 331-332).
A invasão luso-brasileira das Missões em 1801 foi uma operação de
geopolítica e de banditismo. Quase uma delegação aos grupos de gaúchos
e desertores (os quais se agauchavam temporariamente) para fazer a
“diversão” pelo oeste e auxiliar as tropas majoritariamente regulares
que atuavam na Fronteira Sul. Os três chefes de bandos principais que
invadiram as Missões, José Borges do Canto, Gabriel Ribeiro de Almeida
e Manuel dos Santos Pedroso, eram identificados como “voluntários
paisanos”. Pedroso, “fazendeiro e soldado miliciano”, após os ataques
aos postos militares espanhóis, dedicava-se integralmente ao saque e
retornava para a região de Santa Maria, no Continente de São Pedro,
com o produto da barbárie que espalhara pelas Missões, especialmente
milhares de cabeças de gado. Abandonava as posições e percorria os
campos arreando os gados das estâncias guaranis e seus bens móveis. Era
o líder de um bando considerável, uma tropa de meia centena de homens
experimentados na vida de campo e entreveiros. De forma independente,
percorreu o território missioneiro dedicado ao saque e às atrocidades.
Manuel dos Santos Pedroso atuava por conta e o ataque às Missões, ainda
neste momento inicial, não tinha estritamente o projeto de conquista. Por
isso, a destruição era a “lógica” que movia os invasores. José Borges do
Canto, mestiço, filho de “índia da terra”, por sua vez, tinha sido “soldado
de dragões”. Segundo testemunho de Almeida, há muitos anos havia
desertado, vivia na fronteira, na “vasta campanha, povoada de uma nação
de gentios Charruas e Minuanos, couto e refúgio dos criminosos” das colô-
nias portuguesa e espanhola. Sobrevivia especialmente do contrabando
(ALMEIDA, s.d., p. 191-205).
O visconde de São Leopoldo, conselheiro e ministro do Império, depu-
tado nas Cortes e governador da província (1823-1826), reuniu importante
documentação estatal sobre a invasão e, depois, conquista das Missões.
Concluiu que nos seis primeiros meses, ficou submetida aos “males
inevitáveis do saque”. Em uma comparação com a administração espa-
nhola pós-expulsão dos jesuítas, considerou que “o governo português”
também “não lhe fez todo o bem que podia, reformando a antiga adminis-
tração viciosa, e deixou o mesmo germe de destruição e de desordem”.
Mesmo com todo o problema da administração espanhola entre 1769-
1801, as cifras sobre os missioneiros (índios integrantes do sistema dos
Sete Povos) oscilavam entre quatorze a vinte e duas mil pessoas. Em 1756,
na crise da Guerra Guaranítica, eram em torno de trinta mil, dos quais,
três mil se retiraram com o exército português para o Rio Grande e deram

Os missioneiros 63
origem a diversas povoações. Baseando-se na documentação portuguesa,
o visconde de São Leopoldo estimou a população no menor índice: “o
seguro porém é que não passava de quatorze mil” (SÃO LEOPOLDO,
1982, p. 157). Isso não significa que nas Missões não existissem mais indí-
genas vinculados ao modo de vida tradicional e espalhados pelas proprie-
dades que vinham se instalando desde a Guerra Guaranítica e, em
especial, do Tratado de Santo Ildefonso, em 1777, quando a primeira apro-
ximação intrusa se deu pelos campos neutrais, com a transformação em
propriedades privadas das terras indígenas da fronteira neutra e suas
adjacências, notadamente da região de Santa Maria e Toropi para Santa
Tecla (Bagé).
São Leopoldo atribuiu a destruição missioneira pelos luso-brasileiros à
falta de suporte do direito internacional, a exemplo do que aconteceu nas
conquistas da Guerra das Laranjas (ver CAMARGO, 2001), causa da guerra
na América, cuja invasão espanhola em Portugal resultou na devolução
de territórios conquistados. Conforme o visconde, a “destruição” se
deu, “quiçá pela incerteza de conservá-la, à vista das vivas instâncias,
com que o gabinete de Madri reclamava a restituição”. Por óbvio, o
espectro destrutivo das Missões sob a perspectiva indígena, como ter-
ritório especial dos povos, se deve ao longo processo iniciado pela invasão
de tropas milicianas agauchadas em 1801, por tropas regulares e, nota-
damente, por chefes de bandos, por maltas de bandos gaúchos, com
interesse nos gados, ervais, relíquias religiosas, produtos dos armazéns
missioneiros e mulheres e crianças.
Este ciclo de barbárie luso-brasileira e gaudéria se estendeu, sem freio,
até aproximadamente 1809, quando se alinhavou um primeiro pacto
fronteiriço, mas ainda com provisoriedade sobre o domínio brasileiro
sobre as Missões (ver Golin, 2002). Somente com o abrandamento da
tensão espanhola na diplomacia e no território conflagrado com a Revo-
lução de Maio, com seu início em 1810, que resultou na independência
argentina, a corte de D. João começou a estabelecer um regimento de
comarca às Missões como região incorporada ao Rio Grande (SÃO
LEOPOLDO, 1982, p. 157). Testemunha do resultado da conquista luso-
-brasileira, Saint-Hilaire afirmou que os Sete Povos empobreceu “mais
a cada ano, e sua população diminui de maneira espantosa” (SAINT-
HILAIRE, 2002, p. 331-332).
A subtração dos meios foi o corolário do saque. Com o pacto de
fronteira no Ibicuí, deflagrou-se impressionante processo de expropriação
indígena. Em torno de 1808, em São Borja, as “terras em torno da cidade
foram distribuídas a ‘soldados’”, velha estratégia portuguesa que transfor-
mava a conquista em propriedade privada e assegurava a posse com
proprietários-militares-milicianos, constituindo uma população que, rapi-
damente, poderia constituir um exército. Segundo Hemetério Velloso da

64 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


Silveira, somente treze contemplados, inclusive José Borges do Canto, se
apossaram de um território de aproximadamente 46 por 24 quilômetros
(SILVEIRA, 1909). Manuel dos Santos Pedroso também recebeu a sua
sesmaria (HARNISCH, 1952, p. 242).
O marechal Chagas, comandante das Missões, em 1821, “entre cháca-
ras e estâncias”, já acumulava oito propriedades, estimadas “em 24 léguas
a extensão” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 350) – quarenta e quatro quilô-
metros de lado.
Os primeiros registros significativos da decadência das Missões
apareceram após quatorze anos de ocupação luso-brasileira. Os indígenas
eram cada vez mais destituídos de seus bens e submetidos a todo tipo
de exploração. Mesmo que as cifras possam estar flexibilizadas, pelo
censo de 1814, “um destino irresistível parecia empenhado a reduzir
esta tão amena e fértil porção da Província a um vasto ermo, e davam-se
por causas o flagelo da fome e as frequentes invasões hostis”. Os índios
estavam reduzidos a 6.395 pessoas, em uma população de 7.951. Entre os
Sete Povos, São Francisco de Borja tinha a população mais numerosa, com
1.918 pessoas: índios, 1.424; brancos, 289; livres, 20; escravos, 92; nascidos,
123 (SÃO LEOPOLDO, 1982, p. 157-158).
Com a liderança artiguista na Banda Oriental (hoje República Oriental
do Uruguai), Entre Rios e Misiones (Argentina), São Borja se converteu
em lugar estratégico da geopolítica. Em 1817 passou a categoria de vila,
ampliando a sua função militar e de comando da fronteira, instalando,
continuamente, departamentos de governo (SÃO LEOPOLDO, 1982, p.
160), razão por que, em 1821, Saint-Hilaire classificou São Borja como uma
“praça de guerra”.
A desestabilização das Missões, todavia, atraiu um de seus piores
flagelos: os bandos de gaúchos. Os povos eram atacados e saqueados;
as estâncias tinham seus gados arreados; as famílias que pretendiam se
estabelecer na Campanha nas terras expropriadas dos índios, sofriam
todo tipo de violência dos bandos gaudérios, identificados pelos
governantes e viajantes como um tipo social especial. Viviam independen-
tizados como grupos, mas também se formavam temporariamente confor-
me a conjuntura para o saque. O gauchismo significava as operações
de saques, arreadas, roubos e todo tipo de desordem. Geralmente, os
gaúchos agiam sobre populações ou famílias isoladas, ou nas guerras,
aproveitando a concentração de tropas em determinados territórios e
desguarnecendo outros.
Na guerra contra Artigas, gaúchos pilharam São Nicolau (SAINT-
-HILAIRE, 2002, p. 362). Na sequência do período de saques, a decadência
era “acelerada pela guerra” contra Artigas (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 331-
332), mas também pelas maltas de gaúchos que infestavam os campos e
ameaçavam as populações. Desde a segunda metade do século XVIII, os

Os missioneiros 65
gaúchos eram os agentes da barbárie. Com o fim das milícias missioneiras
que os combatiam sem trégua, eles passaram a ter campo livre e coni-
vência das autoridades. Durante a invasão paraguaia de São Borja, em
junho de 1865, os gaúchos rivalizaram com as tropas de cinco mil homens
do coronel Estigarribia e do padre Duarte. Espalharam o pânico até Itaqui,
percorreram o território e transformaram em realidade o desespero
emulado pela guerra. “Desertores” e “malfeitores conhecidos por tais
corriam não somente pelas estâncias e casas saqueadas pelos paraguaios”,
“como também percorriam a campanha, fazendo a mesma coisa em toda
a parte”. Segundo testemunha do cônego João Pedro Gay, vigário de São
Borja, registraram-se “assassinatos perpetrados por desertores [do exército
rio-grandense] e malfeitores”, além de “alguns roubos de moças” e estupros.
E quanto a roubos de bens móveis, e sobretudo de cavalos e gado, são
tão numerosos que não tem conta. Pode-se dizer, sem medo de errar,
que os habitantes de Missões entre os rios Uruguai, Ibicuí, Itu e Ijuí
Grande perderam em geral a maior parte de seus bens móveis e ficaram
arruinados (GAY, 1980, p. 98, 99, 102).
A tragédia missioneira teve em Saint-Hilárie um de seus melhores
cronistas. Ele chegou ao povo de São Borja em 19 de fevereiro de 1821 e
partiu no dia 1º de março. Entretanto, no transcurso da viagem sempre
introduziu em seu diário enxertos sobre São Borja dependendo das ques-
tões que iam surgindo. Dessa forma, o naturalista francês expressou
um método narrativo que misturou crônica e memória. Enquanto fazia
registros retomava assuntos temáticos para reflexão tanto do percurso
recentemente percorrido como das interpretações históricas, socioló-
gicas, políticas, de história natural e de hábitos e costumes. Sua narrativa
é só aparentemente cronológica, pois os temas são transversais e constan-
temente revisitados.
O método de Saint-Hilaire pareceu contaminar a historiografia futura.
A prerrogativa da remanescência conduz o seu olhar. Imagina um tempo
jesuítico em comparação com suas observações. Assim ocorreu com as
reflexões de Antônio José Gonçalves Chaves, publicadas em 1822 e 1823;
com visconde de São Leopoldo, nos trâmites de governo entre 1823 e
1826; com Arsène Isabelle, em 1834; Carl Seidler, em 1833 e 1834; Nicolau
Dreis, em 1839; A. Baguet, 1845; cônego João Pedro Gay, entre 1850 a 1865;
Aimé Bonpland, na década 1850; Hemetério José Velloso da Silveira, nas
últimas décadas do século XIX; Robert Avé-Lallemant, em 1858; conde
d’Deu (Gastão de Orléans), em 1865; Maximiliano Beschoren, em 1877; e
com Wolfgang Hoffmann Harnisch, na década de 1940; além de muitos
outros.
Entretanto, ao mesmo tempo que o olhar de Saint-Hilaire procurou
remanescentes, ele registrou o fenômeno da guaranização, o processo

66 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


de formação de um gentílico indianizado. A prerrogativa de um direito
natural presente nos viajantes, por outro lado, tendeu a desconsiderar
qualquer direito ao índio fora do seu modo de vida tradicional ou
jesuítico. As considerações demográficas são reveladoras dessa concepção.
O coeficiente indígena vai decaindo violentamente, a população em geral
aumenta, mas não se considera sociologicamente o fenômeno da mesti-
çagem. Pressupor que o índio deixava de existir estabeleceu a instrumen-
talização de uma noção que suprimiu qualquer mediação e desconsiderou
qualquer política pública em relação ao missioneiro em formação.
Pelo Mappa ou divisão estatística da Província do Rio Grande de S.
Pedro, de 1822, a população missioneira oficial era estimada em 6.750,
obviamente deixando de lado os contingentes nativos e gauchescos inatin-
gidos pelo censo (CHAVES, 1978, p. 108). Em 1835, o modelo jesuítico
ainda era considerado como Missões, não visualizando importante contin-
gente populacional herdeiro de direitos milenares. “Tinham somente
130 índios válidos, 38 inválidos, 32 menores, 130 mulheres válidas, 32
mulheres velhas e 27 moças menores, ao todo 377 pessoas, e possuíam
cinco estâncias, nove cercados, duas invernadas, oito casas de campo,
31 pastagens, 21.000 reses, 642 cavalos, 952 éguas, etc.”. Em 1858 já se
registrava a participação de outro contingente humano na guaranização.
“Veem-se igualmente numerosos negros em São Borja.” O “lastro”
indígena era tão predominante que sequer a solidez da formação alemã
resistia à indianização, ao observar que lares alemães já eram “meio
brasileiros” (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 272, 281, 282).
São evidentes as comprovações históricas de que aquilo que se
denomina miscigenação, no território dos antigos Sete Povos, teve por
base a indianização de predominância guarani, criando um tipo que pode-
mos denominar genericamente como missioneiro. No olhar atilado de
Saint-Hilaire, o sincretismo se deu pela entrada inicial dos espanhóis.
Depois ingressaram os paulistas, curitibanos (Paraná) e de outras regiões
do Brasil. As causas da transferência para as Missões eram as mais
variadas, como crimes, fugas de casais, recrutamento militar obrigatório,
religiosos sentenciados por deflorarem moças de família, acusados de
“sodomia”, aventureiros em busca de gado e erva mate, militares benefi-
ciados por terras ou por transferência.
Saint-Hilaire deixou inúmeros registros sobre o fenômeno do enamo-
ramento dos homens brancos pelas índias. Considerava-os “enfeitiçados”
por elas, com quem se casavam, se amasiavam, ou, para sua surpresa,
trocavam as próprias mulheres pelas guaranis.
Além disso, ao contrário do que costumeiramente insiste a suposição
de abandono guarani do território, a difusão já havia ocorrido antes da
invasão de Rivera, em 1828, considerada, discutivelmente, como causa da
desguaranização.

Os missioneiros 67
Todos os cultivadores da província têm nas suas casas índios que lhe
servem de peões. Suas esposas e filhas têm continuamente sob os olhos
os exemplos de libertinagem das índias e, familiarizando-se com o vício,
tornam-se tão pouco castas quanto as próprias índias. Assim, nesta
província, os lares oferecem o exemplo da desunião e de toda espécie de
desordens. Entregando-se às índias, os homens brancos se embrutecem,
tornam-se insuportáveis e estúpidos; disso tive muitos exemplos entre
São Borja e São João (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 391, 392).
Ao sair das Missões pelo Toropi-Chico, Saint-Hilaire discutiu o as-
sunto com um estancieiro curitibano. Muitos homens que se estabeleciam
com a “esperança de fazer fortuna”, sem “a intenção de ficar aqui”,
“se apaixonam pelas índias e não querem mais separar-se delas”. Ao
tratarem “sobre o amor que as índias inspiram aos brancos”, seu hospe-
deiro considerou “como uma espécie de encantamento”. Esse era o
motivo da “desunião que elas fomentam nas famílias e sobre os maus
costumes reinantes nesta província entre homens e mulheres” (SAINT-
-HILAIRE, 2002, p. 391, 393). Ficara famoso o caso do batalhão de Santa
Catarina transferido para as Missões, em que mais de cem homens não
conseguiram se separar de suas “mulheres índias”, quando tiveram que
retornar para a sua província de origem, e constituíram famílias com elas.
A cifra das que ficaram grávidas ou tiveram filhos é incalculável.
Em todos os lugares existiu o processo de povoamento miscigenador.
Seu corolário progressivo se alterava quando os hábitos indígenas de
alguma autoridade escandalizava a corte, ou feria a moral da igreja.
João de Deus Menna Barreto descendia de uma plêiade de militares e
deixou descendência reconhecida no Império e na República. Chegou ao
posto de marechal do Exército e recebeu o título de nobreza de visconde
de São Gabriel. No início da conquista portuguesa das Missões e sua
consolidação, era um jovem oficial, filho de um coronel de Rio Pardo,
com adestramento e vivência entre os pioneiros paulistas, açorianos e
a gauchada de campo. No posto de capitão, a partir de sua unidade em
São Gabriel, localizada na divisória fronteiriça do Tratado de Santo
Ildefonso, transformou-se em exímio conhecedor da Campanha. No
início da Campanha já era pai de nove filhos com Rita Bernarda Côrtes
de Figueiredo Mena, com quem casara em 1788, em Rio Pardo. Ainda
tenente, aos 19 anos, ao ingressar em família de portugueses chegados
do Rio de Janeiro, incorporou inclusive o sobrenome Menna da mulher,
dando origem ao tronco dos Menna Barreto.
Seu desempenho geopolítico deu-lhe, por merecimento, o cargo de
comandante geral das Missões, em 18 de abril de 1805.
Nas andanças pela sua jurisdição, logo ficou evidente a preferência
do capitão Barreto pelas índias. Enamorou-se de uma que passou a
figurar como espécie de primeira-dama das Missões. Era comum vê-la

68 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


no ambiente do poder em São Borja, sem perder os hábitos de “sentar”
acocorada, invariavelmente pitando um cachimbo. Com ela o coman-
dante teve, ao menos, três filhos, segundo referências documentais. Tal
missioneirismo do oficial logo chegou ao comando do exército e bateu de
arrepio com a pregação do frei João Baptista dos Prazeres, que o censu-
rava publicamente e alimentava as denúncias contra o capitão Barreto
em cartas aos seus superiores e autoridades. Com seus costumes e paixão
“inexplicável” pela nativa transformados em escândalo, o comandante
perdeu o cargo em 4 de abril de 1807. Foi removido para a sua unidade de
origem. Concomitantemente, havia engravidado Rita Bernarda mais três
vezes, entre a guerra de conquista e seu comando das Missões.
Seria difícil imaginar que ele tenha abandonado a sua preferida e
seus filhos mestiços “guaranis”. No futuro, estratégica e economicamente
localizado em São Gabriel, principalmente depois de comprar as terras
da antiga estância missioneira de Batovi, do povo de São Miguel, João
de Deus Menna Barreto teve a sua vida vinculada à vila, à Campanha e
às Missões. Quando organizou o 1º Regimento de Cavalaria Miliciana,
referência guerreira nos conflitos bélicos futuros, grande parte de seus
contingentes pertenciam à indiada mestiça de campo, proprietários,
peonada, ou andejos. Aliás, no Rio Grande do Sul, o termo indiada foi
progressivamente se tornando um classificativo plural para os mestiços
ou população da Campanha, desde que com habilidade campeira. Aos in-
dígenas, no geral, se mantiveram os nominativos de seus povos (Guarani,
Caingangue, Minuano, Charrua), ou pelo genérico de bugres.
Logo, aquele capitão expurgado do comando das Missões pelo seu
rabicho por uma índia guarani, pai de mestiços, seria um dos principais
defensores da conquista portuguesa. Sua cavalaria mestiça se notabilizava
nos combates contra os espanhóis. Sustentou as Missões nas investidas
das forças de Artigas, participou da Guerra da Cisplatina, fez parte do
governo provisório do Rio Grande na transição da independência brasi-
leira, assumindo a presidência posteriormente, e auxiliou a debelar as
hostes farroupilhas. Em plena guerra civil de 1835-45, recebeu o título
de barão de São Gabriel (1841), cidade que fundara em 1817, em seu
terceiro e definitivo povoamento. Após a vitória imperial, em 1846, pas-
sou a visconde (FIGUEIREDO, 1993, p. 225-226). Curiosamente, nomeou
seu filho, major José Luís, comandante do Corpo de Guaranis, que perma-
neceu com tropa leal e acampada em Porto Alegre nos primeiros anos do
Império.
Os tratados de genealogia tradicional, invariavelmente, não têm lugar
para os filhos bastardos, a exemplo da descendência de João de Deus
Menna Barreto. Seus biógrafos visualizam, no geral, apenas os 14 filhos
que teve com Rita Bernarda. E mais os quatro “ilegítimos”. Um deles,
João Manoel Menna Barreto, chegou ao posto de brigadeiro. Sua mãe

Os missioneiros 69
era Manoela Ribeiro de Almeida, filha do “lendário” Gabriel Ribeiro de
Almeida, estancieiro e líder de um dos grupos paisanos invasor das Mis-
sões em 1801.
A biografia de João de Deus Menna Barreto é emblemática. Pode-se
dizer que é humanamente espetacular, entranhada na história do povoa-
mento sul-rio-grandense. A participação do indígena, de fato, como obser-
varam os viajantes dos séculos XVIII e XIX, acentuou a mestiçagem em
todas as classes. Por óbvio, não equalizou relações de afetividade, com
implicações de destino social. Na elite, os filhos “ilegítimos” ficaram no
entre-lugar quando identificados ou mesmo reconhecidos, ou na periferia
dos amasiamentos; milhões reproduziram-se nas relações sexuais furtivas,
temporárias, integrando-se na flexibilidade e adesão dos grupos huma-
nos, ou pela formação temporária e dissolução periódica dos casais no
meio popular e sua sensitiva elasticidade para integrar aqueles que pos-
suíam alguma conectividade de parentesco ou de relação familiar, mesmo
que passageira. Por certo, Menna Barreto, como milhares de outros, teve
descendência mestiça indígena. Entretanto, seus rebentos não tiveram
história. Passados os escândalos conjunturais, eles se diluíram na massa
que modulou o povo rio-grandense.
Só recentemente a historiografia contemporânea tem conseguido
superar as deturpações da campanha memorialista para incluir o Rio
Grande do Sul em uma “civilização lusitana”. O general Borges Fortes,
nessa perspectiva, apesar de sua considerável contribuição, expressa o
determinismo excludente desse método: “etnicamente, as reduções guara-
níticas não eram o Rio Grande” (FORTES, 1998, p. 15).
Ainda como capitão, o futuro visconde – com a pompa de conselheiro
de Sua Majestade, dignitário da Ordem Imperial do Cruzeiro, comen-
dador da Ordem de São Bento de Avis e condecorado com medalhas
militares (ALMEIDA, 1961, p. 62) – possivelmente tenha sido magneti-
zado pelo mundo percebido por Nicolau Dreis (1990, p. 75), em 1839, ao
se referir às mulheres guaranis:
Beleza que raras vezes se verifica logo à primeira impressão, porém se
reveste, com o tempo, de uma força de sedução; [...] um natural asseio,
não somente nos vestidos, como também nas casas e até ao redor delas,
distingue aliás as famílias guaranis e parece que a moral participa da
nitidez física, pois os crimes são raros entre esses homens ainda pouco
afastados da natureza...
A dispersão dos guaranis, com influência determinante no povoa-
mento, transformou-se em problema de Estado em apenas duas décadas
de ocupação luso-brasileira. O governo estabeleceu guardas no Toropi
Grande e Toropi Chico com funções de controle de fronteira. Somente
deveriam

70 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


deixar entrar na Província das Missões, ou dela sair, pessoas munidas de
passaporte. Tal medida foi sem dúvida tomada para impedir a deserção
dos índios guaranis das aldeias e o roubo de crianças pelos brancos;
mas me parece que, contrariando os senhores milicianos, tal medida
não corresponde ao objetivo, pois os índios, excelentes nadadores, não
precisam transpor o rio junto à guarda, e os brancos poderão também
roubar uma criança, pondo-a na garupa do seu cavalo, e fazê-la passar
por outros lugares fora da estrada principal (SAINT-HILAIRE, 2002, p.
395).
Talvez um dos processos mais terríveis de lesa humanidade cometida
pelos povoadores tenha sido o roubo das crianças indígenas. Este era um
costume que se prolongou até as primeiras décadas do século XX. Estima-
-se que em 1904, a bisavó da minha filha, por exemplo, foi levada ainda
criança por um estancieiro-carreteiro de origem alemã para a região de
Santa Maria juntamente com uma estátua barroca. Essa menina guarani
casou com um estancieiro e, depois de viuvar, administrou sua estância
por muitos anos, falecendo em 1998. No altar da sede sempre esteve a
imagem barroca. Seu oratório constituía o único ambiente para todos os
membros da propriedade.
Ao passar pela estância do Durasnal de São João da Coxilha do Morro
Grande, na região central, Saint-Hilaire observou que a estancieira “tem
muitos índios em sua casa e se queixa amargamente da indiferença
deles”. Ao que observou: “Creio que não se deve estranhar muito a pouca
dedicação dos índios pelos patrões, já que são tratados como animais”
(SAINT-HILAIRE, 2002, p. 397-398). De seus registros se deduz que o
“destino” indígena não foi uníssono. Certamente formaram o lastro gentílico
dos subalternos. Mas também se transformaram em soldados, espalharam-
-se pelas estâncias como peões, muitos se transformaram em estancieiros;
outros mantinham as famílias extensas, vivendo em grupos e criando
muares. “Também vi em Santa Maria burros pertencentes a índios.”
Em quase todas as estâncias dos arredores de Santa Maria, há índios
desertados das vilas [Sete Povos]. Os homens se empregam como peões,
trazendo consigo toda a família. Queixam-se geralmente os patrões da
inconstância e do pouco apego desses homens (SAINT-HILAIRE, 2002, p.
405, 407).
Por consequência, os comportamentos não ficavam imunes ao estilo
índio. Ainda na região da Depressão Central, na estância de Restinga
Seca, observou que “as mulheres são bonitas, muito brancas e coradas”,
mas “usam vestido de índia e um fichu; os cabelos armados com uma
travessa e as pernas nuas. Este costume não é, de fato, o mesmo obser-
vado em Minas, mas não difere daquele que têm as mulheres das cida-
des” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 416). O mais curioso em Saint-Hilaire

Os missioneiros 71
é que em determinado momento, depois de viver entre os índios e a
população mestiça, ele também era convertido pelo meio e, de certa
forma, também se indianizava. Ele reproduzia o comportamento que
fora a sua crítica ao índio guarani e a “alteração que nossa raça sofre na
América”, ao reconhecer que, depois de se despedir de seus anfitriões em
Porto Alegre, não ficava mais emocionado.
No começo de minhas viagens, ficava emocionado sempre que me sepa-
rava das pessoas que me haviam recebido com hospitalidade; esta ideia
“até nunca mais!” causava-me profunda impressão. Hoje, já não acontece
o mesmo; minha sensibilidade moral diminuiu como a sensibilidade
física. Sinto menos a privação das coisas necessárias à vida, resigno-me
mais às contrariedades e sou menos tocado pelas despedidas (SAINT-
-HILAIRE, 2002, p. 447).
Metodologicamente é importante perceber que existe uma ilusão dos
censos oficiais incorporados pela historiografia sobre a desguaranização
da Missões e do Rio Grande do Sul. Essa interpretação tem sérias
consequências sobre a formação do missioneiro e, em particular, do rio-
grandense. Por curioso, o “êxodo” guarani não vai para lugar nenhum.
Evapora! Quando se faz a cronologia da decadência missioneira se atribui
a Rivera a suposição de que ocorreu uma espécie de raspagem do que
existia de população guarani nas Missões.
Entretanto, as fontes demonstram que desde a expulsão dos jesuítas
em 1769 e, em especial, após a conquista luso-brasileira de 1801, ocorreu
determinante processo de guaranização de toda área missioneira e do Rio
Grande do Sul, notadamente da Campanha, da jurisdição de Rio Pardo e
do Escudo Rio-Grandense. Tal guaranização se deu não só pela dispersão
de grupos de famílias extensas e nucleares, mas por indivíduos. Afora
isso, ocorreu intenso fenômeno de miscigenação através de casamentos
e amasiamentos com mulheres guaranis, gravidez de índias “solteiras”,
roubo e “adoção” de milhares de crianças, incorporadas às famílias como
serviçais, agregados e, inclusive, filhos adotivos, etc.
Essa guaranização subalterna talvez tenha sido o fenômeno mais
determinante da formação de um ethos rio-grandense, daquilo que pode-
mos chamar genericamente de elementos fundantes de um povo e pelos
seus costumes em comum. Outra via foi a incorporação militar do indí-
gena nas tropas regulares, milicianas ou como contingente étnico.
Somente o Regimente Guarani sediado em São Borja possuía um efetivo
de quinhentos homens, cuja banda de música era a sensação dos eventos.
Esses soldados mantinham suas famílias em um aglomerado de ranchos
isolados. Em 1845, quando Baguet chegou a São Borja, “a guarnição do
posto era composta de soldados índios que só falavam o dialeto guarani”
(BAGUET, 1997, p. 76). Assis Brasil considerou que “as instituições mili-

72 História do Campesinato na Fronteira Sul • Tau Golin


tares ensejaram a fusão”. Para Osório Tuyuty de Oliveira Freitas e Alcides
Lima, os Guaranis, como os demais povos indígenas, “fundiram-se na popu-
lação pastoril de todas as regiões da fronteira” (HARNISCH, 1952, p. 242).
Esse processo foi tão contundente que, ainda no século XXI, todas
as levas de imigrantes europeus lançadas no território não apagaram o
fenótipo indígena da população, em especial dos contingentes subalternos
e rurais. Mesmo no Planalto Médio e Alto Uruguai, de ocupação recente,
cada vez mais, o Caingangue e o Mbyá-Guarani impregnam seus traços e
costumes. Ao lado dos direitos dos povos indígenas, o imaginário da in-
dianização, além de complexar o processo histórico, repercute socialmente
nas afetividades e na humanização da sociedade rio-grandense.

Demonstração da bacia do Ibicuí (Sul) e Vacacaí, com as propriedades dos povos


neste território e indicação dos caminhos. Pontos de difusão missioneira após
a Guerra Guaranítica. “Demostracion del modo mas fácil y exato para poder aberiguar
el origen principal del Ybicuy y poder concluir la Demarcacion.” 1758.
Comissão espanhola de demarcação do Tratado de Madri (1750).
Arquivo geral de Simancas.

Os missioneiros 73
Cartografa o território entre os rios Uruguai, Ibicuí e Jacuí, com a toponímia
e a nomeação de diversos lugares. Fragmento do “Mappa que contem o Pais
conhecido da Colonia athe as Missões”, de Miguel Ângelo de Blasco. 1756-1758.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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Os missioneiros 75
4
Colonos na Fronteira Sul

José Carlos Radin

Pretende-se neste trabalho contextualizar a experiência agrícola dos


migrantes descendentes de europeus na Fronteira Sul do Brasil, na
primeira metade do século XX, enquanto trabalhadores camponeses. Por
camponês aqui se entende o colono que produzia sua subsistência a partir
do trabalho em pequeno lote agrícola e que mantinha certa autonomia
em relação ao mercado em função do tipo de agricultura praticada. Essa
característica é típica do processo de colonização das diversas áreas rurais
do Sul. Esse colono camponês foi um personagem em geral visto de forma
pejorativa, como indivíduo de modo de vida rústico e em contraposição
ao vivido no espaço urbano. No entanto, em determinadas situações desse
processo teve sua imagem positivada, sendo visto pelas autoridades e
intelectuais como um trabalhador progressista, que produzia para o desen-
volvimento do país e que colonizava de forma ordeira regiões conside-
radas desocupadas.
O contexto em que se constituiu esse segmento social no Sul do Brasil
foi, principalmente, a partir da expansão da imigração europeia no século
XIX e das migrações sequentes. Em sua maioria os imigrantes ocuparam
áreas destinadas à agricultura em pequenos lotes rurais, nos quais além
de produzir a subsistência da família, almejavam garantir sua reprodução
enquanto camponeses. Por isso estabeleceram forte relação com a proprie-
dade da terra.
A história testemunhou inúmeras lutas e sonhos, tendo como objetivo
a conquista da terra. No contexto da emigração o camponês sonhava com
a possibilidade de conquistar a propriedade da terra e, pelo seu trabalho,
idealizava galgar uma condição que lhe permitisse superar a difícil reali-
dade em que vivia na Europa; fantasiava “fazer a América”.

76 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


Grosso modo o imigrante europeu deixou para trás uma realidade
ainda com fortes resquícios feudais, na qual os proprietários da terra exer-
ciam amplo domínio sobre os trabalhadores camponeses. Muitos deles
não possuíam terra ou eram detentores de minúsculas propriedades e
necessitavam labutar muito para arranjar sua minguada subsistência. O
verso repetido pelos imigrantes italianos, em certo sentido, sintetiza essa
situação e representa a condição vivida pelo trabalhador diante do seu
senhor. Formaio no g’hen taio; late fino a le culate, poina pochetina e scolo fino al
colo.1
Essa sociedade, do contexto da emigração do final do século XIX e
início do seguinte, segundo Grosselli (1987, p. 15),
Tinha caracterizado a vida de milhões de homens e mulheres durante
dezenas de gerações. Uma sociedade radicada na terra, que via na terra
um fator de produção essencial e único juntamente com o trabalho. Uma
sociedade cujo núcleo central era a família em que vigoravam divisões
precisas de tarefas que diferenciavam sexos e, muito menos, as faixas
etárias. Uma sociedade, enfim, profundamente permeada de um espírito
religioso totalizante que se confundia, até o ponto de identificar-se com
moral e ética social e que, também por essa razão, confiava às estruturas
eclesiásticas tarefas que iam da “cura das almas” e que em última instân-
cia, eram também administrativas e, mais ainda, políticas.
O camponês imigrante enfrentava grande dificuldade para produzir
o sustento familiar, em especial por não ter o controle sobre o uso da
terra. Por isso a oportunidade de conquistar a propriedade era tão cara
aos imigrantes e aos seus descendentes. Ela significava a possibilidade de
se produzir enquanto ser humano e grupo familiar, bem como de cons-
truir uma organização comunitária a partir de valores que lhe davam
sentido e significado à vida. A propriedade da terra representava acima
de tudo a grande possibilidade de dar o conforto à família, de formar uma
comunidade de fé junto a qual desenvolvia boa parte da sua vida social e,
também, espaço da solidariedade no enfrentamento das dificuldades típi-
cas desse tipo de colonização.
Nesse sentido o colono, trabalhador das áreas coloniais, emoldurou
um tipo de sociedade bastante particular. Após algumas décadas de sua
implantação o modelo de colonização nelas adotado não raro era utili-
zado pelas autoridades e opinião pública como ideal e que deveria ser
difundido. Destacava-se a capacidade de produção e de organização das
comunidades que se formavam nessas regiões. Por isso foi referência por
décadas, inclusive nas regiões alcançadas pelos processos migratórios
subsequentes, como foi o caso do Norte do Rio Grande do Sul, do Oeste

1
Queijo eu não corto; leite até as nádegas (pois apenas carregava o balde); requeijão um
pouquinho e soro até o pescoço.

Colonos na Fronteira Sul 77


de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná. Ser colono passara a ser sinô-
nimo, entre outros, de garantia de que o indivíduo supria com facilidade
suas necessidades e de que vivia com dignidade. A agricultura que prati-
cava lhe possibilitava certa autonomia, pois, em geral, produzia suas
próprias sementes e não dependia de insumos. Tal situação perdurou ao
menos até o pós-Segunda Guerra, quando se acelerou a chamada “revo-
lução verde”, a qual provocou amplas modificações no modelo agrícola
das áreas coloniais. A nova realidade se constituiu numa espécie de limite
ao camponês, de viver com mais autonomia e liberdade. Isso afetou as
diferentes experiências desenvolvidas pelos imigrantes no Sul brasileiro.

1 Imigrantes no Sul

No período colonial a fixação dos portugueses no território brasileiro


ligou-se predominantemente ao modelo de desenvolvimento embasado
no latifúndio monocultor, no trabalho escravo e na produção voltada
para o mercado externo. Esse modelo marcou e marca profundamente a
história agrária brasileira, em particular quanto ao controle e uso da terra.
Em geral as regiões periféricas à produção monocultora produziam para
a subsistência ou serviam de forma subsidiária às que produziam para o
mercado externo. Para os colonizadores a conquista efetiva do território
do interior ou sertão ficou, por séculos, como tarefa a se cumprir. Ela
ganhou notoriedade no contexto da independência quando se incentivou
o ingresso de imigrantes europeus, com o propósito de ocupação do
espaço, e pela prática da agricultura em pequenos lotes também para a
produção de excedentes destinados às cidades.
Em regiões periféricas ao latifúndio, diferentes iniciativas haviam
sido tomadas em outros tempos, como foi o caso do ingresso de açorianos
que ocuparam pontos litorâneos no Sul, em meados do século XVIII, com
clara intenção geopolítica, considerando as disputas entre portugueses e
espanhóis na parte meridional. No entanto, o século seguinte é que ficou
marcado pelo ingresso mais significativo de imigrantes.
O processo de industrialização na Europa, em particular do Sul da
Alemanha e do Norte da Itália, gerou intranquilidade política e social, o
que predispôs as pessoas a buscarem outras alternativas. A passagem da
sociedade rural para um novo modo de vida, de características urbanas,
constitui-se num fato histórico marcante da vida do ser humano e trans-
formou de forma irreversível a história não apenas daqueles países.
A industrialização também provocou transformações na forma de
uso da terra e, somado à falta de perspectivas dos camponeses daqueles
países e ao “sonho da América”, promoveu intensa emigração. Dos que se
dirigiram ao Centro-Sul do Brasil, muitos tinham uma história centenária

78 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


ligada aos senhores da terra, aos tradicionais princípios culturais, e pouca
mobilidade social e mesmo geográfica, o que marcou profundamente seu
modo de vida. A condição quase servil que essas pessoas viviam carac-
terizou a vida de várias gerações que antecederam o fenômeno da gran-
de imigração e condicionou a vida de cada um. Uma parcela deles fazia
trabalhos sazonais fora de suas comunidades, mas mantinha íntima rela-
ção com a terra e com os tradicionais afazeres agrícolas.
Deixar a pátria para viver em terra desconhecida certamente não se
constitui atitude fácil para qualquer pessoa. Da mesma forma é difícil
representar em palavras o que significou tal decisão para milhares de
europeus, no século XIX e início do seguinte. No entanto, o aceno da
propriedade da terra e a possibilidade de conquista de sua autonomia
alimentavam o sonho dessas pessoas e a emigração se colocava como
grande alternativa.
Referindo-se a esse processo, Grosselli (1987, p. 17) afirma que o
contexto de crise do final do século XIX parecia não se resolver com os
sistemas tradicionais:
O camponês encontrou uma solução “camponesa”. Não procurou, de
modo algum, mudar a sociedade, mas somente mudou de sociedade,
transferindo-se para a América onde procurou, e em parte conseguiu,
reconstruir um novo núcleo social segundo o modelo daquele deixado
na pátria. [...] Eles emigraram porque a sociedade em que viviam tinha
assumido ou estava assumindo características tais que não mais permi-
tiam a sobrevivência de formas de vida e de valores que tinham sido
deles durante séculos. [...] Foi uma “revolução” camponesa, pois, pode
ser entendida como recusa de uma sociedade e construção de uma nova
sociedade (ainda que sobre modelos antigos) não internamente ou sobre
as ruínas da sociedade recusada, mas num contexto geográfico novo.
Para esses trabalhadores camponeses, em que pese a dificuldade da
decisão, deixar para trás a antiga realidade para se tornarem proprietários,
constituía-se numa experiência formidável. Na condição de proprietários
podiam se sentir “senhores”, mesmo que aqui, esse novo “senhor da ter-
ra”, tenha se deparado com uma realidade bastante distinta da que conhe-
cia. Necessitou se adaptar às adversidades impostas pela natureza, com
sua mata exuberante e com novas técnicas de produzir, além de ele
mesmo ter que trabalhar a terra.
A região Sul do Brasil oferecia a propriedade do lote de terra como
o grande atrativo aos imigrantes. Um lote agrícola podia ser adquirido
por preço considerado baixo, ao menos no contexto inicial da colonização,
quando outras vantagens também eram proporcionadas aos imigrantes.
Salienta Berri (1993, p. 37, 40-41), referindo-se a essas possibilidades
que “um lote rural, de em média 20 hectares, comum nos núcleos de

Colonos na Fronteira Sul 79


colonização italiana, era pago com o equivalente ao trabalho de uma
pessoa, durante 83 dias, nas obras públicas do Estado”. Faz ainda outro
comparativo relacionado à troca com produto agrícola, sendo que, com o
equivalente a 60 sacas de milho, seria possível pagar um desses lotes.
Destarte, evidencia-se que os imigrantes foram favorecidos pelas con-
dições bastante favoráveis para a aquisição dos lotes agrícolas. Infere-se
também que disso decorreu a intensificação do processo imigratório para
essas áreas coloniais, bem como o próprio êxito do modelo de colonização.
O modelo desenvolvido nessas colônias foi possível por se localizar
em regiões periféricas aos interesses agrários predominantes. Conforme
afirma Veiga (2002, p. 125):
Desde meados do século XIX, quando o Brasil optou por uma estratégia
agrária inversa à dos Estados Unidos, as elites rurais brasileiras tentam
persuadir a sociedade de que não faz sentido promover a agricultura
familiar, pois o caminho do campo só pode ser um: o da grande fazenda
com assalariados.
Nesse contexto foram criadas no Sul várias colônias de imigrantes,
entre elas, as alemãs, em São Leopoldo-RS (1824) e São Pedro de Alcân-
tara-SC (1829) e depois Blumenau-SC, Brusque-SC, Jaraguá do Sul-SC e
Joinville-SC. A partir de 1875 surgiram as colônias italianas em solo gaú-
cho, especialmente Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Antônio Prado,
Encantado, Garibaldi, Guaporé e Silveira Martins. Em Santa Catarina, as
colônias italianas surgiram em Tubarão, Urussanga, Criciúma e entorno
da colônia Blumenau. Essas regiões receberam um contingente bastante
significativo de imigrantes e, em momento seguinte, forneceram um
número tão ou mais significativo de pessoas para a colonização das novas
áreas agrícolas da Fronteira Sul.

2 Migração para a Fronteira Sul

No começo do século XX abriam-se as novas fronteiras agrícolas do


atual Oeste de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná, regiões que foram
colonizadas tendo como parâmetro o modelo implantado nas antigas co-
lônias sulinas.
Desde o início do século o governo de Santa Catarina deixava clara
a intenção de aumentar a população rural, pois entendia que essa era a
melhor forma de difundir a prosperidade econômica no estado. O rela-
tório do governo à Assembleia, de 1911, também refletia o pensamento
corrente no país acerca do assunto. Salientava que:

80 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


Só pelo povoamento rápido pode o Brasil conquistar o lugar a que tem
direito no concerto das grandes Nações. Nem foi por outros processos
que os Estados Unidos da América do Norte alcançaram a extraordinária
prosperidade de que gozam. Aqui mesmo temos a prova das vantagens
da introdução de braços para a exploração das riquezas das nossas
terras. Sem isso, ainda hoje, muito pequeno seria ao progresso do Estado.
Penso, portanto, que deveis autorizar o Governo a ceder à União, a título
gratuito, as terras que ele quiser colonizar. Os lucros indiretos que o
Estado alcançará com a sua produção, com o desenvolvimento do seu
comércio e com a abertura de estradas por conta dos cofres federais,
compensarão sobejamente o prejuízo resultante da cessão gratuita de
terras (Governo de SC, 1911, p. 42).
Nas áreas de colonização dos estados sulinos, seja no contexto da imi-
gração ou nos processos migratórios posteriores, em geral prevaleceu
tal entendimento por parte do poder público. Essas ideias eram bastante
difundidas pela opinião pública, por vários intelectuais e principalmente
por governantes.
Os relatórios anuais do governo catarinense são bastante significativos
quanto à positivação da colonização e do trabalho agrícola como vinha se
fazendo nas primeiras colônias de imigrantes. Salientava-se que o estado
não possuía grandes cidades e que esses espaços urbanos nem sempre
exprimiam a riqueza e a abundância dos povos, sendo o progresso con-
quistado pelas cidades:
Reflexo da abundância da terra, trabalhada por uma geração de homens
robustos, instruídos e patriotas. É na vida dos campos que reside a
fortuna e a prosperidade. É encorajando o agricultor; animando a indús-
tria pastoril; rasgando estradas, mais estradas e cada vez mais estradas;
educando as populações agrícolas, não para aumentar o número de
bacharéis, mas para centuplicar o número de lavradores adiantados;
protegendo a produção; barateando o produto, facilitando-lhe o acesso
aos seus escoadouros naturais; dividindo a terra, com supressão gradual
das grandes propriedades inaproveitáveis, por meio de um regime
racional de tributação; não desperdiçando energias em lutas estéreis de
politicagem, é desta maneira que vamos encontrar a fórmula definitiva
e boa para a solidez do nosso futuro econômico, em última análise, da
riqueza pública (Governo de SC, 1919, p. 19-20).
O entendimento acerca das vantagens da divisão das terras agrícolas
a partir do modelo de pequena propriedade no Sul do Brasil era eviden-
ciado em diferentes situações, principalmente quando se reportava aos
imigrantes em geral, aos italianos e alemães, em particular. Essa situação
é corroborada, em meados do século passado, por ocasião das comemo-
rações do 75º aniversário da colonização italiana no Rio Grande do Sul,
em que se afirma:

Colonos na Fronteira Sul 81


Trazidos ao nosso meio e localizados nas glebas desde logo denominadas
“colônias”, com a área de 24 a 50 hectares, trouxeram ao nosso Estado,
como depois a Santa Catarina, a inapreciável vantagem econômica e
social, da pequena propriedade agrícola. A eles precipuamente, deve
o Rio Grande a solidez de sua economia, a policultura que assegura a
prosperidade e, com a maior e a sua melhor distribuição, a estabilidade
social que desfruta e com que enfrenta as vicissitudes de uma economia
mal estruturada como a brasileira (BERTASO; LIMA, 1950, p. 89).
A imigração e os processos migratórios para as novas fronteiras
agrícolas do Sul se deram num contexto de valorização da atividade agrí-
cola. Na passagem do século XIX para o seguinte, criaram-se condições
que favoreceram a colonização das áreas coloniais da Fronteira Sul. Várias
disputas acerca de posses territoriais envolveram a região. Inicialmente,
a Questão de Palmas (1895) ajustou os limites entre Brasil e Argentina.
Em seguida, ocorreu a disputa pela região contestada entre os estados do
Paraná e de Santa Catarina, abrangendo em torno de 48.000 km2 do atual
Oeste de Santa Catarina, a partir do Vale do Rio do Peixe, do traçado da
ferrovia São Paulo-Rio Grande e do Sudoeste do Paraná. Tal processo se
concluiu em 1916 e definiu as atuais divisas, sendo que da área em dis-
puta, aproximadamente 28.000 km2 passaram a pertencer à Santa Catarina
e os restantes ao Paraná.
A definição dos limites interestaduais se efetivou no contexto da
Guerra do Contestado (1912-1916), a qual contribuiu para uma espécie
de “limpeza da região”, por eliminar ou dispersar os “intrusos”, como
eram conhecidos os caboclos ou as populações locais. Isso favoreceu a
expansão da colonização na região, pois facilitou a ação das companhias
de colonização que atuaram na comercialização dos lotes agrícolas. Os
potenciais colonizadores e o próprio modelo de colonização foram busca-
dos na experiência das primeiras colônias de imigrantes, das antigas áreas
coloniais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Assim, a Guerra do Contestado, a construção da Estrada de Ferro
São Paulo-Rio Grande, a instalação de indústrias, como a madeireira, a
moageira e a frigorífica, além da atuação das companhias de colonização,
entre outros, modificaram profundamente a história regional. No cerne
dessa modificação situa-se o processo de colonização, com suas inúmeras
implicações, entre as quais o desalojamento dos caboclos e dos povos
indígenas das terras que ocupavam desde tempos imemoriais. Esses grupos,
diferentemente dos migrantes, não possuíam a mentalidade da proprie-
dade da terra, e isso, ao longo do processo, contribuiu sobremaneira para
que fossem colocados à margem da sociedade que se reconstruía, seja por
perderem o controle sobre a posse da terra ou pelo papel que passaram a
exercer no processo produtivo.

82 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


A construção da ferrovia foi um dos fatores que contribuiu de forma
significativa para impulsionar o processo de conquista da fronteira agrí-
cola, em especial a partir de suas margens, ao longo das quais se estabele-
ceram inúmeros núcleos colonizadores. Para as autoridades catarinenses,
somente com a colonização seria possível garantir a posse efetiva das
terras do Contestado, além de fazê-las gerar dividendos ao Estado. Por
isso não hesitaram em facilitar as concessões às empresas particulares,
estimulando-as a que atuassem na venda imediata das terras e na conse-
quente colonização. Assim, combinavam-se interesses das autoridades,
dos empresários da colonização e dos próprios colonos desejosos em
adquirir os lotes agrícolas.
As Mensagens apresentadas pelo governo ao Congresso catarinense,
nesse contexto, são bastante elucidativas quando tratam da colonização e
das perspectivas que ela abria ao futuro do Estado. Ressaltam, ao longo
de diversos anos, o otimismo quanto ao modelo que se instituía nas terras
catarinenses e, para o governo, teriam êxito previsível, dependendo ape-
nas da vontade dos governantes. Quanto à forma de aproveitamento das
riquezas das terras, entendia-se:
A policultura é a nossa riqueza. Não temos como outros Estados, a
intensificação de uma cultura como o café, o açúcar, o algodão que
fazem a riqueza pública, mas limitam a riqueza particular aos grandes
proprietários.
O nosso regime agrícola divide a riqueza e dá à generalidade de todos
aqueles que trabalham as melhores compensações, estabelecendo uma
situação de equilíbrio. [...] Não devemos recear o nosso futuro econô-
mico. Temos diante de nós as melhores perspectivas, tudo dependendo
da ação inteligente dos governos, impulsionando o trabalho e protegendo
todas as iniciativas de aproveitamento das extraordinárias riquezas
naturais que possuímos (Governo de SC, 1917, p. 70 e 75).
No transcurso da primeira metade do século XX, a expansão da colo-
nização e da agricultura em pequenos lotes era vista como a possibilidade
para modernizar Santa Catarina e o Brasil. Se não havia um passado que
pudesse ser exaltado, acenava-se com as grandes perspectivas de futuro
que se estavam construindo. Nesse sentido, o governo catarinense dizia
colocar seus esforços para efetivar tal projeto, visto como necessário para
o engrandecimento do estado e da nação. Na Mensagem de 1920 salienta
que as ações governamentais visavam à ligação da “viação e rodagem
à colonização”. Isso fazia com que as diferentes áreas do estado fossem
“cortados por extensas e magníficas estradas de rodagem, junto às quais
já se estão localizando novos e abundantes elementos de trabalho”. Com
isso o governo pretendia assegurar a acessibilidade cômoda e rápida às
chamadas terras devolutas.

Colonos na Fronteira Sul 83


O processo seguinte consiste em pagar em terras o preço das estradas
construídas, sujeitando, porém, os respectivos construtores à condição
de colonizar dentro de determinado tempo os terrenos cedidos, sob pena
destes, findo o respectivo prazo, reverterem ao Estado, sem indenização
de qualquer espécie. [...] Deste modo se vai fazendo o aproveitamento
imediato de uma grande riqueza até agora inativa, sem onerar a despesa
pública com encargos impossíveis (Governo de SC, 1920, p. 47).
Na Mensagem do ano seguinte, o assunto da construção de estradas
nas “áreas devolutas” voltava a merecer atenção. Destacavam-se as vanta-
gens da opção do governo de mandar construir estradas nessas áreas, pa-
gando os serviços em troca de terras. Entendia que o Estado transformava:
Em moeda a terra inculta, e sobre essa mesma moeda recebemos oportu-
namente juros de duas naturezas: o primeiro, imediato e direto – o
imposto territorial; o segundo, indireto e, se bem que mais tardio de
muito maior valor – riqueza do povo. Essa transformação no sistema de
pagamento traz ainda as vantagens de diminuir o emprego da moeda
corrente, que é aplicada no custeio de outros serviços (Governo de SC,
1921, p. 37).
Fica evidente a intenção do governo catarinense em repassar à ini-
ciativa privada a tarefa de construir estradas, atreladas ao compromisso
de colonizar as terras. Decorreu que as companhias de colonização consti-
tuídas com o propósito de comercializar as terras favoreceram-se
amplamente dessa orientação governamental. Vários empresários da
colonização promoviam a construção de estradas nas áreas que adqui-
riam, mesmo que muitas vezes se constituíssem em simples “caminhos
carroçáveis”, como evidencia a memória dos colonos. Com isso, por
um lado os empresários abatiam sua dívida para com o Estado e por
outro criavam condições que facilitavam a comercialização das terras.
A existência de estradas não só facilitaria a venda dos lotes, como os
valorizariam, pois a existência ou não de estradas faria grande diferença
no momento da negociação. Tanto que esse aspecto era bastante
explorado na publicidade das diversas companhias colonizadoras que
atuavam na grande fronteira agrícola da região Sul.
As empresas colonizadoras exploravam outros elementos na publici-
dade com o intuito de facilitar a comercialização dos lotes. Conforme
se observa na Figura 1, salientava-se a abundância e a fertilidade das
terras, a possibilidade de valorização rápida, os preços e as condições de
pagamento favoráveis, entre outros. Várias colônias também eram orga-
nizadas a partir de elementos étnicos: “São Domingos para os italianos”,
e religiosos: “Palmitos para protestantes e São Carlos para católicos”,
ou como destaca o título: “Colonização Católica: não se recebem protes-
tantes”.

84 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


Fonte: Jornal Staffetta Riograndense, Caxias do Sul, 18 dez. 1929, p. 4.

Colonos na Fronteira Sul 85


Referindo-se à atuação dessas empresas, o relatório do governo
catarinense do ano de 1924 (Governo SC, p. 39) destacava que várias delas
se dedicavam aos trabalhos de colonização, “todas elas contribuindo
eficazmente para a incorporação da cultura daquele rico pedaço do nosso
território”. Afirma, ainda, que essa atuação “marca a primeira etapa
de civilização do nosso mais remoto Oeste, nos limites com a República
Argentina”. Entre as diversas manifestações acerca do tema, afirma-se
(Governo SC, 1928, p. 76): que as terras, objeto de concessões a empresas
colonizadoras, seriam gradativamente ocupadas “com elementos já
nacionalizados, oriundos das antigas colônias estrangeiras deste estado e
do Rio Grande do Sul, e que constituem indubitavelmente o melhor fator
para o povoamento do nosso solo”.
Como se observa, a presença do colono era defendida e desejada
pelas autoridades. Difundia-se a ideia de que a agricultura que ele prati-
cava representava a possibilidade de concretizar as potencialidades das
áreas coloniais e contribuía para tornar o Brasil um país moderno e desen-
volvido. Também era bastante disseminada entre as autoridades e a opinião
pública a ideia de Brasil “jovem” e “país do futuro”. Concomitante a isso
se evidenciava tanto a necessidade de ocupação e conquista do espaço,
considerado vazio, quanto o tipo ideal de trabalhador para tal tarefa.
Quem deveria estar na base da formação da identidade nacional? De
Luca (1999, p. 18) destaca que a intelectualidade brasileira do início do sé-
culo XX “elaborava sua visão de mundo a partir de um arsenal analítico
que manejava e se autoatribuía uma missão social e política”. Dela emergia
um amplo conjunto de representações, seja para definir o que era consi-
derado problema ou para dizer qual deveria ser sua solução, além de di-
fundir diferentes sonhos e projetos de futuro para o país. Acrescenta que:
O discurso científico, por sua vez, também acabava por fornecer um
importante rol de argumentos. Na sua versão mais ortodoxa, a infe-
rioridade étnica condenava a maioria dos habitantes ao status de subci-
dadão, deixando pouco espaço para o exercício dos direitos políticos.
Postulava-se a necessidade de elevar o seu patrimônio étnico, o que
deveria ser feito aliando a imigração selecionada e uma severa legislação
eugênica [...]. (DE LUCA, 1999, p. 306).
Esse entendimento também é observado na imprensa escrita da nova
fronteira agrícola. Uma matéria do jornal Cruzeiro (1934, p. 8) evidenciava
a necessidade que o Brasil possuía de “braços agrícolas” e, refletindo
sobre seu significado, salientava: “quisera que todas estas planícies,
estes vales, estes montes, fossem como que um vasto celeiro. Se tudo isso
fosse habitado por raças fortes e laboriosas, que desenvolvimento, que
progresso teria este país. Mas infelizmente nos faltam braços agrícolas”.
Quem seriam essas raças fortes e laboriosas? A partir de que estatuto
étnico se construiria o Brasil moderno? Ao menos parte da intelectuali-

86 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


dade, imprensa e governantes, de diferentes formas, alimentava essa
discussão no final do século XIX e início do seguinte. Para tornar o Brasil
moderno e progressista, em geral, mostrava-se a necessidade de esquecer
o passado escravista e das populações nativas do interior brasileiro.
Contrapunha-se esse passado com a possibilidade de branqueamento da
população pelo incremento da imigração europeia, a partir da qual se
daria suporte para uma almejada identidade ao país.
Nesse contexto Seyferth (2000, p. 90-91) afirma:
A identidade nacional brasileira estava sendo gestada pela exclusão
de uma parte substancial daqueles que as elites chamavam de “traba-
lhadores nacionais” – a massa de mestiços e negros sempre mencionada
como inferior (em raça e em cultura). Em suma, o Estado-nação precisava
de um povo qualificável como raça, e nisso os nossos “construtores” de
mitos não diferiam muito dos ideólogos de outros nacionalismos.
Assim, a imigração costumava ser relacionada com a necessidade e
com a possibilidade de ocupar os chamados “espaços vazios”; entendia-se
que havia um imenso “sertão” a ser efetivamente conquistado.
Referindo-se às condições necessárias para que efetivamente ocorresse
o aproveitamento do espaço regional, bem como da racionalização das
lavouras por métodos considerados condizentes para a época, Serra (1942,
p. 4) enfatiza:
Deve-se cuidar da colonização de imensas glebas de terras, principal-
mente as do Oeste que o presidente Getúlio Vargas pretende desbravar,
pondo assim, em equação a legenda “Rumo ao Oeste”. Tem-se que levar
a estas mesmas terras os meios de comunicação imprescindíveis à sua
expansão econômica. Tem-se que assistir as populações que se estabele-
cerem ou nelas já se encontram, com todos os benefícios da civilização
moderna, a começar pelo saneamento, pela assistência sanitária e médica,
pela educação, pela assistência econômica e financeira das populações
pioneiras. Enfim temos que transformar esse imenso espaço vital num
grande mercado interno para a expansão de nossa miraculosa civilização.
Nas novas fronteiras agrícolas, nas primeiras décadas do século XX,
esse entendimento se traduzia pela necessidade de ampliar a colonização
com colonos que efetivamente transformassem a região, conforme almeja-
vam as autoridades e mesmo empresários da colonização. Isso fica evi-
dente numa orientação de um representante do governo federal acerca de
como os colonos deviam agir com seus lotes:
O colono ou deixa no seu lote mata virgem ou permite que cresçam
capoeiras. O primeiro modo de proceder é uma vergonha da civilização,
porque exibe-nos como gente sem cultura; o outro é ainda pior; serve de
agasalho para plantas nocivas; basta que estas se multipliquem, e o Vale
do Rio do Peixe nada mais vale [...]. Qual é, pois o meio de dar produção

Colonos na Fronteira Sul 87


‘abundante e barata’ (é aspiração do governo) e conservar a terra sempre
fértil e dadivosa?
A receita é muito simples; aumentar o número de braços que trabalham;
não tendo força em casa, ajustar “camaradas”; confiar os lotes desabi-
tados aos “agregados” diligentes; mas em caso algum deixar mata virgem
ou capoeira (Cruzeiro, 1934b, p. 5).
Como se observa, a orientação governamental estava bastante clara
no que concerne o papel do colono e sua relação com a natureza. “Mata
e capoeira” eram sinônimos de “atraso e incivilidade”. Esperava-se que o
colono efetivamente cultivasse o máximo de seu lote fazendo aumentar a
produção e, com isso, contribuísse para o progresso do Brasil.
Ao longo da primeira metade do século XX, articulou-se um conjunto
de situações favoráveis ao avanço da colonização. Em espaço de tempo
relativamente curto, esse processo ocupou parte significativa do Oeste de
Santa Catarina e de toda a grande região da Fronteira Sul do Brasil.
Em geral, as regiões de colonização eram formadas por terras com-
postas de vales e matas, distantes dos latifúndios controlados pela produ-
ção pecuária. A necessidade de novas fronteiras agrícolas, baseadas no
modelo de pequena propriedade, era alimentada pelo próprio modelo de
desenvolvimento das antigas colônias, somado ao crescimento demográ-
fico dessas áreas. Assim, as chamadas terras novas, mais férteis e abun-
dantes, foram muito valorizadas e procuradas até meados do século XX,
alimentando um fluxo migratório de tipo rural-rural. Nesse contexto,
estudos (Cfe. SUDESUL, 1975, p. 53; ROCHE, 1969, p. 357) apontam que
aproximadamente 250.000 agricultores gaúchos migraram para o Oeste
de Santa Catarina. Essa população migrante era predominantemente de
jovens em pleno potencial para o trabalho.

3 O colono e a relação com a terra

Na Fronteira Sul, a agricultura centrada no trabalho da família se


constituía, ao mesmo tempo, na possibilidade e na consequência da
colonização. O modelo de pequena propriedade ali instituído gerava a
subsistência das famílias e, gradativamente, a produção de excedentes
absorvidos pelas populações urbanas. No entanto, as regiões de coloni-
zação se organizaram a partir de um modelo peculiar, seja pela produção
ou pela organização social. Salienta Seyferth (1990, p. 21):
O resultado mais significativo da colonização, contudo, está ligado à
formação de uma sociedade rural diferente da sociedade rural brasileira
tradicional, onde não havia lugar para o pequeno proprietário. De fato,
o que ocorreu no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, parte
de São Paulo, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, foi a formação e

88 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


a consolidação de uma sociedade camponesa, cuja base fundiária é a
pequena propriedade policultora, trabalhada pela família do proprie-
tário; camponeses que mantêm um estilo de vida próprio, um modo de
produção específico, apesar das transformações ocorridas desde o século
passado e das pressões do capitalismo.
Não resta dúvida que a formação da pequena propriedade nas áreas
coloniais sulinas constituiu-se em experiência agrária ímpar e distinta no
Brasil. Ela se desenvolveu especialmente a partir de meados do século
XIX, contrastando com o tradicional domínio do latifúndio que marcou
sobremaneira o controle e uso da terra no país ao longo de séculos. A
experiência das áreas coloniais está entre as poucas que destoam da histó-
ria agrária brasileira. Foi um modelo que, ao possibilitar o acesso à terra,
elevou um grande número de camponeses à condição de proprietários, o
que se constituiu em diferencial da experiência.
Uma vez transformado em proprietário de um lote agrícola, o colono
estabeleceu relação peculiar com a terra e com a estrutura social próprias
dessas áreas. Referindo-se ao fato da conquista da propriedade da terra,
em particular para os imigrantes italianos e seus descendentes, Costa e De
Boni (1979, p. 74) salientam:
A terra foi para nós um deslumbramento. Por ela nos apegamos estra-
nhamente a este solo, nos sentimos em casa, tivemos a experiência que
nunca tivemos, tornou-se realidade aquilo em que sequer tínhamos cora-
gem de pensar na Itália: sermos proprietários.
Para os camponeses italianos a relação com a terra foi marcante por
longo tempo. Quando se refere ao significado que lhe atribuíam, enfatiza
Gramsci (apud GREGORY, 2002, p. 48) que a propriedade da terra era
vista como condição para a plenitude do indivíduo e de sua família.
O direito de propriedade privada da terra e de seus frutos é intensamente
sentido pelo camponês italiano. Nas relações com a terra, o direito de
propriedade adquiriu um sentido religioso, que frequentemente se con-
funde com o sentido da família. Parece que a propriedade da terra é a
própria família, o núcleo originário da organização social, essência íntima
da estrutura humana.
A possibilidade de se tornar proprietário foi uma das grandes
motivações dos imigrantes no processo de implantação das antigas colô-
nias. Esse fascínio pela terra fez com que as áreas coloniais sulinas rapi-
damente alcançassem uma posição de destaque, seja pelo seu crescimento
econômico ou pelo fato do modelo ter sido criado no contexto em que
a ideia de “vocação agrária” do Brasil era difundida e vista como seu
“destino econômico”.

Colonos na Fronteira Sul 89


A produção agrícola, nas áreas de colonização, caracterizou-se pela
predominância da família como unidade organizadora do processo
produtivo. Era pequena a dependência externa à propriedade, o que
proporcionava certo grau de autonomia, pois a agricultura praticada
tinha baixo custo, o que também garantia alguma rentabilidade. Ademais,
aquele tipo de agricultura era favorecido pelos recursos naturais, parti-
cularmente a boa fertilidade natural do solo, ao menos nas décadas
iniciais da colonização.
A inviabilidade econômica da subdivisão dos lotes e a exploração
intensa, que gradativamente esgotava a fertilidade natural, passaram a
dificultar a subsistência, em especial a partir de meados do século XX. A
preocupação quanto ao esgotamento do solo era bastante evidente e se
constituía numa das preocupações acerca do uso da terra. Nesse período,
matérias publicadas em jornais destacavam a necessidade e a importância
da conservação do solo agrícola. O Jornal da Semana (1954) evidenciava a
necessidade de salvar milhões de hectares que estariam ameaçados pela
erosão, de completa esterilidade e destruição. Denunciava que, nessas
situações, a prática dos colonos era cômoda, pois apenas mudariam
para outras regiões, derrubando novas áreas de mato. Eles estariam
acostumados à fertilidade das terras novas e das ótimas colheitas que
nelas conseguiam, as quais lhes garantiam melhora da situação econô-
mica. Tal prática decorria do fato dos colonos serem habituados apenas a
plantar e a colher, não tendo preocupação com a recuperação da terra que
cultivavam por anos. Isso, no entanto, decorria do fato de nunca terem
recebido instruções sobre o modo de evitar o empobrecimento do solo e
por desconhecerem as técnicas de conservação.
Dificuldades de diferentes ordens foram constantes aos colonos
nas áreas colonizadas. Mesmo assim, a ideia de “vitória do colono” é
evidenciada de várias formas ao longo da primeira metade do século
XX. A imagem positiva do colono, visto como aquele que trabalha, que
produz alimentos para sua família e para o país, que produz matéria-
-prima para as indústrias, que organiza ordeiramente suas comunidades
entre outros, foi bastante corrente e se consolidou nesse período. A
positivação do colono imigrante se construiu a partir de diferentes
situações, mas foi a ideia de “gente trabalhadora” que perpassou essas
representações, como se pode ver na manifestação referente às come-
morações dos 75 anos da colonização italiana do Rio Grande do Sul.
Na grande Exposição agroindustrial a realizar-se ali, a Perola das
Colônias demonstrará o que tem significado, para o Rio Grande e para
o Brasil, estes três quartos de século em que o Imigrante, numa epopeia
de trabalho e de realizações fecundadas, enfrentando toda sorte de
sacrifícios, transformou a mata virgem neste monumento de cultura,
progresso e civilização, que são as cidades, os colégios, as instituições

90 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


pias, os estabelecimentos de caridade, os conventos, as Igrejas, os par-
ques industriais e comerciais, levantados pelo seu braço forte, como um
hino de gratidão e patriotismo à terra hospitaleira que o abrigou um dia
(BERTASO; LIMA, 1950, p. 239).
Imagem semelhante também era, em geral, difundida pela imprensa,
na nova fronteira agrícola. Referindo-se à região de Concórdia-SC, o
jornal O Tempo (1949, p. 6) afirmava que sua sociedade era constituída
de elementos oriundos “em sua totalidade” do estado do Rio Grande do
Sul, os quais fizeram o município se sobressair diante dos demais. As
terras fertilíssimas “enriqueciam o trabalho construtor dos colonos”. O
aparecimento das grandes indústrias na cidade iniciava uma nova fase,
pois consumia a matéria-prima produzida nas terras, que era fruto do
“labor cotidiano de nosso colono”. O articulista destacava que Concórdia-
-SC surgia “diante dos olhos dos forasteiros, como terra da promissão e
seu povo ordeiro e progressista a recompensa de seus anos de trabalho,
no valor indiscutível que representa perante a coletividade catarinense”.
A imagem do colono vencedor é bastante evidente nas representações
que os próprios imigrantes e migrantes têm do processo. Ermembergo
Pellizzetti, em suas Memórias (1939) acerca dos colonos italianos em Santa
Catarina, declarava-se convencido de que viviam em melhores condições
do que aqueles que estavam nas fazendas de São Paulo; acrescenta, ainda,
que aqueles que estavam nas colônias:
Eram todos proprietários de 25 a 30 hectares de terra e possuidores de
casas decentes; cultivavam tabaco, milho, feijão, batata; produziam muita
abóbora e tinham suínos, cavalos, vacas e galinhas. Alguns já plantavam
videiras. Haviam lutado rudemente nos primeiros tempos, mas agora
tornavam-se satisfeitos e eram estimados pelas autoridades (apud
PELLIZZETTI, 1981, p. 107).
Essas representações, em que se exalta a forma dos colonos traba-
lharem a terra e seu modo de vida, são geralmente colocadas em contrapo-
sição aos grupos que ocupavam a região antes da colonização e que têm
suas práticas negadas ou menosprezadas, são construções ideológicas e
marcaram profundamente a sociedade que decorreu desse processo.
Referindo-se à colonização do município de Chapecó-SC, Breves
(1985, p. 9, 22 e 26) afirma que “os antigos caboclos que o povoavam
passaram a ser minoria ínfima”; e, acerca dos seus costumes, entendia
que estavam desaparecendo e em seu lugar emergiam “hábitos mais
progressistas dos brasileiros de origem italiana, alemã e outros”. Lan-
çando olhar comparativo entre os que estavam e os que chegaram à
região, o autor os contrapõe e afirma que se àqueles “fossem retiradas
suas simples ferramentas e alguns animais domésticos, vestuários e uten-
sílios, a vida desses caboclos se assemelharia bastante à dos índios do

Colonos na Fronteira Sul 91


litoral nordestino, como foram encontrados por ocasião do descobri-
mento”. Destaca ainda que, por outro lado, os colonizadores faziam uso
de “métodos de trabalho adequados”, eram organizados e rapidamente
conseguiam a prosperidade, enquanto os caboclos continuariam na po-
breza.
Algumas correspondências enviadas por Luigi Dall’Oglio, de Lacer-
dópolis-SC, aos parentes italianos, entre 28 de outubro de 1946 a 8 de
novembro de 1949, também deixam evidente essa percepção que os
imigrantes e migrantes alimentaram sobre o trabalho. Numa primeira
correspondência que se teve acesso, destaca:
Vocês se lamentam de não ter trabalho e nós aqui nos lamentamos de
ter muito, e para viver aqui é muito fácil, basta trabalhar e se consegue
sempre algum progresso. Falaram-me que têm intenção de sair de lá e eu
teria o prazer de saber para aonde irão; se quiserem vir para a América,
trabalho aqui existe; tanto se quiserem trabalhar aqui comigo ou também
trabalhar como agricultores, pois terra existe à vontade. Aqui sofrem os
que não têm vontade de trabalhar.
Reforça a ideia em correspondência de 1949, ao dizer: “aqui trabalho
tem em abundância, basta vontade de trabalhar. Aqueles que não têm
vontade de trabalhar, digam que permaneçam na Itália”.
Tais percepções eram bastante difundidas nas regiões de colonização.
No entanto, por mais que esse colono tivesse certos parâmetros de
identificação, não pode ser visto como um todo homogêneo, muito menos
apenas como “vitorioso”. Um aspecto que evidencia a contradição do
colono autônomo é a constante necessidade dele produzir e, também,
transformar seu produto em dinheiro. Para tanto necessitava se inserir
no mercado e, nesse sentido, as relações que estabelecia já eram bastante
complexas, em meados do século XX. Por mais que a agricultura prati-
cada tivesse certa autonomia, com o avanço do processo de modernização
da agricultura, gradativamente se modificavam as relações de produção
nessas áreas, o que interferiu no modelo agrícola das áreas coloniais.
Reportando-se a essa questão e analisando o que decorreu para o país,
das experiências desenvolvidas nas áreas de colonização, destaca Veiga
(2002, p. 26) que, onde predominou a agricultura patronal, há poucas
escolas, igreja, clubes, associações, jornais, empresas e bancos. Também
que nessas localidades as condições de moradia são precárias, quase não
existem equipamentos de lazer e a delinquência infanto-juvenil é alta, ao
contrário do que ocorre onde predominou a agricultura familiar.
Em que pese os problemas gerados aos grupos que habitavam a
região e as dificuldades enfrentadas pelos colonos, próprias do processo
de colonização implantado nas áreas da Fronteira Sul, evidencia-se que
o modelo centrado na pequena propriedade agrícola teve papel signifi-

92 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


cativo para a economia regional ao longo da primeira metade do século
XX. Ele representou a possibilidade de subsistência para muitas famílias
e, possivelmente, se constituiu numa das experiências agrárias mais
significativas da história brasileira.
A ideia de “propriedade mínima” na qual pudessem produzir a
subsistência familiar e a criação das condições para educar seus filhos,
assim como a possibilidade de se reproduzir enquanto colono, foi um
parâmetro que motivou a maioria dos imigrantes e migrantes que ocupa-
ram as áreas coloniais sulinas.

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Vice-Governador, no exercício do cargo de Governador, em 22 de julho de 1920.
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Vice-Governador, no exercício do cargo de Governador, em 22 de julho de 1921.
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Colonos na Fronteira Sul 93


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94 História do Campesinato na Fronteira Sul • José Carlos Radin


5
A atuação da Brazil Railway Company
e o desencadeamento da guerra
na região do Contestado (1906-1916)

Delmir José Valentini

A proximidade da data que registra os 100 anos do início da Guerra do


Contestado (1912), provoca uma série de estudos e “olhares novos” que
serão lançados ao movimento, abordagens que enfocarão os diversos
fatores do desencadeamento da Guerra do Contestado e as mais diversas
áreas de estudo buscarão fundamentação nesta temática.
Este estudo, embora atento ao contexto de transformações diversas,
aponta os fatores econômicos ligados à atuação da complexa companhia
como fundamentais no processo de expropriação dos moradores que
viviam em toda região contestada. Ataques às estações e madeireira do
grupo e conflitos com os colonos instalados pela Lumber apontam para a
complexidade de fatores e, ao mesmo tempo, o condicionante econômico
como fator imprescindível no desencadeamento da Guerra do Contestado.
As fontes documentais utilizadas neste estudo, na sua maior parte,
vieram do acervo documental do historiador Romário José Borelli, onde
constavam: relatórios de atividades, dezenas de comunicações, planos de
venda dos lotes rurais das propriedades incorporadas, relações nomina-
tivas de terrenos medidos, demarcados e divididos para o requerimento
de compra pelos posseiros em terras devolutas, o movimento do escritó-
rio em São Francisco, a aquisição de pinhais, a descrição de patrimônio
de diversas fazendas, a descrição dos quadros de organização dos traba-
lhadores nas categorias, atribuições e misteres e um resumo histórico da
empresa antes da incorporação, livros grandes (40 x 60 cm) relativos a pa-

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 95


gamentos da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, onde estão
nominados os trabalhadores com os respectivos vencimentos, Uncaimed
Hages – 1910. Ainda, um levantamento no Arquivo Histórico do Rio de
Janeiro, onde foi possível encontrar, ler e fazer cópias de documentos
oficiais, boa parte doados pela família de Percival Farquhar, e também
artigos de jornais da época. Um documento imprescindível foi um resumo
do Programa Farquhar, onde estão descritas as empresas do grupo, as
subsidiárias, as linhas ferroviárias no Brasil e no exterior, os portos, os
aspectos administrativos, as projeções e as perspectivas quanto aos inves-
timentos. No Programa Farquhar, foi possível analisar documentos sobre
a Brazil Railway Company, como a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande
e as empresas subsidiárias, organizadas com o propósito de fomentar o
desenvolvimento das regiões atravessadas pelas suas linhas, todas incor-
poradas com capitais fornecidos pela Brazil Railway Company (Southern
Brazil Lumber Company, Southern Brazil Colonization Company). Foram tam-
bém utilizados resultados de pesquisas e bibliografias pertinentes.

1 Os moradores da Floresta Ombrófila Mista na região do Contestado1

Na primeira década do século XX, profundas transformações alte-


raram significativamente o modo de vida dos moradores da Região da
Floresta Ombrófila Mista,2 compreendida entre duas grandes bacias
hidrográficas: a do Rio Iguaçu e a do Rio Uruguai. A construção de uma
ferrovia colonizadora, que cortou verticalmente o Sul do Brasil, quebrou
o isolamento secular e mudou a história dos moradores que viviam nas
terras disputadas do Sertão catarinense.
A ocupação humana no Sul do Brasil, na Floresta Ombrófila Mista,
especialmente nas associações da Araucaria angustifolia em maior densi-
dade, é descrita com a presença pioneira das comunidades indígenas
Xoclengue e Caingangue. O antropólogo Silvio Coelho dos Santos assim

1
Região do Contestado – é a denominação utilizada na descrição da vasta área de terras
que foi alvo de disputas jurídicas entre Paraná e Santa Catarina na longa e fastidiosa
questão dos limites dos estados sulinos; além das disputas internas, envolveu a contes-
tação da Argentina na Questão de Palmas, arbitrada em favor do Brasil pelo presidente
Grover Cleveland no ano de 1895. No início do século XX, a região foi alvo da Cam-
panha no Contestado desencadeada pelo Exército brasileiro, no conflito que mais tarde
ficou conhecido como Guerra do Contestado.
2
Floresta Ombrófila Mista – é a terminologia proposta pelo IBGE e adequada a um
sistema de classificação da vegetação intertropical que mistura duas florestas distin-
tas: a tropical afro-brasileira e a temperada austro-brasileira (pinhais ou matas de arau-
cárias). As condições peculiares no Planalto Meridional Brasileiro, associadas à latitude
e às altitudes planálticas possibilitam a singular Região Neotropical (GUERRA et al.,
2003).

96 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


definiu os indígenas do Sul do Brasil: o Litoral é dominado pelos Carijó
do Grupo Tupi-Guarani; entre o Litoral, o Planalto, nas florestas que
cobriam os vales e as serranias, viviam os Xoclengue e os Caingangue,
do grupo Gê (SANTOS, 1973). A partir do século XVI, espanhóis e portu-
gueses palmilharam, conheceram e deixaram descendentes espalhados
nos vastos espaços do Sertão no Sul do Brasil.
Os elementos advindos da mesclagem dos primitivos moradores da
Floresta Ombrófila Mista com os pioneiros espanhóis e portugueses que
palmilharam o Sul do Brasil são remotos e acompanham o processo lento
de conhecimento, de povoamento e de ocupação dos espaços ocupados
primitivamente pelos grupos indígenas. Em toda região do Vale do Rio do
Peixe, são marcantes os traços na cultura do caboclo. Vinhas de Queiroz
(1977, p. 35-38) observa que, pela pobreza e pela economia de subsis-
tência, o modo de vida dos caboclos era similar ao dos indígenas.
Paulo Pinheiro Machado descreveu os aspectos indígenas presentes
no elemento miscigenado e apontou para as origens portuguesas e brasi-
leiras ao afirmar que: “a gente cabocla, com forte presença negra e indígena,
mesclada a alguns grupos familiares de origem paulista e rio-grandense,
compunha a principal base da população trabalhadora da região” (MA-
CHADO, 2004, p. 336).
Ligados a pequenas lavouras de milho, abóbora e moranga, os mora-
dores do Vale do Rio do Peixe também criavam porcos soltos engordados
com pinhão e frutos silvestres, colhiam erva-mate e, segundo Walter Fer-
nando Piazza, não tiveram professores, padres e nem médicos, o que fez
deste “caboclo, matuto, fanático, a grande vítima, pois a Nação Brasileira
e os estados de Santa Catarina e do Paraná até então não solucionaram
suas necessidades sociais” (PIAZZA, 1982, p. 76).
Outro estudo importante que tematiza o caboclo foi elaborado por
Jaci Poli, que caracterizou fases diferentes do processo povoador do Oeste
catarinense. O autor destaca que houve três fases de ocupação: a fase
indígena, a fase cabocla e a fase de colonização. Caracterizou a fase cabo-
cla como a “frente da frente”, pois, à medida que as comunidades indí-
genas eram “conquistadas”, o mestiço ocupava temporariamente como
“posseiro” e, em seguida, vinham os colonos para comprar, para pagar e
para ocupar definitivamente a terra (POLI, 1991, p. 73-110).
Cabe referir agora que o processo de ocupação, de povoamento e de
colonização desta vasta área foi cadenciado rumo à fronteira com a Argen-
tina; além disso, é possível identificar características diversas, como as di-
ferentes companhias colonizadoras e as décadas em que foram formadas
as colônias. Arlene Renk identificou um “tempo d’antes” quando apenas
o caboclo ocupava o espesso e o dividia entre “terras de plantar” e “terras
de criar”. A população cabocla, denominada também de brasileiros,
dedicava-se ao cultivo de pequenas lavouras de subsistência, à criação de

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 97


animais soltos e, principalmente, à extração da erva-mate. Com a atuação
das companhias colonizadoras, a terra passou a ser comercializada e os
brasileiros “posseiros” passaram à condição de intrusos (RENK, 1997).
Sobre o assunto, é necessário frisar que a chegada da Brazil Railway
Company e sua atuação na extração comercial da madeira e colonização
provocaram mudanças agudas no âmago da cultura dos caboclos que
viviam nas denominadas terras devolutas. Warren Dean registrou que o
assalto à floresta primitiva resultou na súbita e decisiva destruição das
matas. Quanto aos moradores, segundo o referido autor, “a incapacidade
dos caboclos pioneiros, dedicados à subsistência, de transformar seus di-
reitos de ocupantes em títulos de propriedade e de passar para a pequena
produção [...]”, fez com que continuassem abandonados, justamente aque-
les que eram capazes de conviver com a floresta sem destruí-la (DEAN,
1996).
As mudanças ocorridas estão associadas aos fatores econômicos,
sociais, políticos e culturais dentro daquele contexto da história daquele
grupo humano, que foi alcançado pelos trilhos da ferrovia São Paulo-
-Rio Grande e outras ações decorrentes da atuação da Brazil Railway
Company, principalmente nos ramos da extração comercial da madeira e
da colonização.

2 A Brazil Railway Company e o Programa Farquhar

A Brazil Railway Company foi constituída no ano de 1906 para adminis-


trar “um sistema de estradas de ferro na República do Brasil, juntamente
com uma porção de outros negócios subsidiários, que muito contribuem
para o geral desenvolvimento da empresa”. Esta descrição da Brazil
Railway Company, realizada ainda na primeira década do século XX por
Reginald Lloyd, já indicava as proporções do império que começava a ser
construído e, ao sugerir “uma porção” de outros negócios subsidiários,
ainda não concluía sobre a totalidade desta “porção” de negócios que
ocorreram; contudo, o referido autor deixou claro que “o objetivo da Com-
panhia e o trabalho que ela vem executando talvez não tenham, ainda,
sido inteiramente compreendidos, prevalecendo a ideia de que não
se trata apenas de uma companhia tomadora de ações, formada para
adquiri-las de um número de negócios, mais ou menos independentes,
e que confia seu êxito ao lucro que lhe advenha de tais ações” (LLOYD,
1913, p. 228).
Farquhar foi o principal articulador da Brazil Railway Company. Atra-
vés do Programa Farquhar, é possível reconhecer a confiança no “êxito
ao lucro” e as proporções do império que rapidamente se erigiu. Faziam
parte do grupo de Farquhar simples investidores europeus, banqueiros

98 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


e um grupo de gigantes empreendedores ligados aos desafiadores e aos
pioneiros caminhos ferroviários mundiais.
A Brazil Railway Company adquiriu linhas ferroviárias, principalmente
no Sul do Brasil, e, como não era uma simples “tomadora” de ações,
administrava e tinha “control sobre os negócios que formavam o seu
sistema”. Sobre o campo de atuação da Brazil Railway Company, descreveu
Lloyd que o Brasil, como muitas pessoas ainda estavam convencidas,
não era apenas uma zona dos trópicos caracterizada como uma estufa de
febre amarela. “Existem no Brasil, territórios com várias vezes o tamanho
da França e que nunca se ouviu falar em febre amarela. [...] Clima tempe-
rado, vastas zonas cobertas de densos pinheirais [...], extensas planícies
[...]”. O referido autor conclui:
O programa geral da Companhia visa ao rápido desenvolvimento de
uma região extraordinariamente fértil e salubre, por muito tempo aban-
donada. Do progresso material dessa região, do aumento de sua produ-
ção e riqueza, depende o êxito da estrada de ferro que, baixando as
tarifas, introduzindo imigrantes, estabelecendo colônias, criando novas
indústrias e melhorando as comodidades de viagem – identificando-se,
de fato, inteiramente, com os objetivos do país – espera obter adequada
retribuição ao seu capital. A Companhia tem largos planos a realizar
(LLOYD, 1913, p. 228).
Os largos planos da companhia descritos por Lloyd ficaram explícitos
na sequência, pelos gigantescas subsidiárias instaladas pela Brazil Railway
Company. A descrição de uma região “extraordinariamente fértil e salu-
bre” e os planos de ocupação e de colonização encontram-se ao longo
do trajeto da ferrovia São Paulo-Rio Grande que cortou verticalmente
a região do Contestado entre os estados do Paraná e Santa Catarina. A
descrição de região “abandonada” apresenta discordâncias quando obser-
vada do ponto de vista dos antigos moradores da região do Contestado

3 A ferrovia colonizadora entre os rios Iguaçu e Uruguai

A construção da ferrovia que cortou a Floresta Ombrófila Mista, nas


terras contestadas, marcou profundamente a história da região. Dois mo-
mentos distintos separam a história do Contestado: antes e depois da
instalação dos trilhos entre os rios Iguaçu e Uruguai. A ferrovia foi inau-
gurada no ano de 1910. Até então a região era habitada, esparsamente,
pelas comunidades indígenas e pelos caboclos e mestiços pioneiros refe-
ridos anteriormente.
A construção da ferrovia, ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul,
ressaltou a preocupação do governo brasileiro em ocupar as chamadas

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 99


“terras devolutas”. O trecho entre os rios Iguaçu e Uruguai, exatamente
na área de maior contestação, esteve a cargo da empresa Brazil Railway
Company, controlada pelo norte-americano Percival Farquhar.
Vinhas de Queiroz (1977, p. 70-71) escreveu sobre a concessão feita,
pelo governo brasileiro, à empresa construtora:
A estrada obtivera do Governo Federal uma concessão de terras equi-
valente a uma superfície de nove quilômetros para cada lado do eixo,
ou igual ao produto da extensão quilométrica da estrada multiplicado
por 18. A área total assim obtida deveria ser escolhida e demarcada,
sem levar em conta sesmarias nem posses, dentro de uma zona de trinta
quilômetros, ou seja, quinze para cada lado.
Charles A. Gauld escreveu que o mais doce entre os incentivos da
concessão das terras era uma faixa de terra ao longo do comprimento
da linha para a colonização. Os números da companhia ilustram que
esta doação continha 2.248.020 hectares nos estados de Santa Catarina e
Paraná. Somente no Paraná, o governo cedeu 1.700.268 hectares para a
companhia. Crucial para os planos de desenvolvimento, a companhia
planejava vender estas terras para os colonos que iriam então usar a fer-
rovia para embarcar os seus produtos da agricultura. Ainda, a companhia
descreveu a área incluída nesta doação como excessivamente rica, fértil,
bem irrigada e com clima agradável para a raça branca. Em relatório
escrito em 1909, Farquhar destacou que no Sul do Brasil “o solo é muito
fértil e próprio para trigo, milho, arroz, algodão, frutas e vegetais de prati-
camente todos os tipos” (GAULD, 1964, p. 210).
Em 1907, a Brazil Railway Company partiu de União da Vitória rumo
a Marcelino Ramos para concluir rapidamente o trecho da forma mais
econômica possível. Segundo Diacon:
De União da Vitória um exército de mil trabalhadores se movia para o
Sul em direção de São João-SC. Logo uma cidade de barracas se espa-
lhava sobre o interior para acomodar os trabalhadores. A companhia
encheu grandes armazéns, primeiro com as simples barracas de lonas,
com comprimentos de trilhos, dormentes, e ferramentas de todas as for-
mas e tamanhos. Enormes escavadeiras a vapor e niveladoras dragavam
a terra o que deveria ter sido uma grande diversão para os residentes
locais (DIACON, 2002, p. 48).
Em abril de 1908, foi inaugurado o primeiro trecho de 51 km e, um
ano depois, completou-se o segundo de 50 km, homenageando-se o presi-
dente da República com o nome da nova estação de Presidente Penna, o
qual compareceu à inauguração. No entanto, foi necessário intensificar os
trabalhos para a conclusão até Marcelino Ramos, no prazo constante no
contrato com o governo (dezembro de 1910).

100 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


Para atingir o objetivo rapidamente, o número de trabalhadores
multiplicou-se de 1.000 para 5.000, de tal sorte que, trabalhando em ritmo
acelerado, ao contratar trabalhadores para determinados trechos e ao
construir pontes temporárias de madeira ao longo da linha, a companhia
concluiu os trabalhos em dezembro de 1910.
Diacon registrou a inauguração da ferrovia com o seguinte texto:
“No dia 17 de dezembro de 1910, os oficiais locais e regionais da Brazil
Railway Company e a elite da sociedade do Contestado embarcaram no
trem alegremente decorado da Brazil Railway em União da Vitória. Horas
mais tarde, atravessaram a balançante ponte em Marcelino Ramos e a
história estava feita”. Afirmou também que “talvez os primeiros anos da
construção não tenham alterado grandemente a vida na região. Agora,
contudo, o grande avanço mudou tudo” (DIACON, 2002, p. 47).
São visíveis as marcas das transformações da ferrovia instalada na
região do Contestado e em todo o Vale do Rio do Peixe. Do Rio Iguaçu
até o Uruguai, a cada duas ou três dezenas de quilômetros, aproxima-
damente, existiu uma pequena estação ferroviária que, logo após a sua
inauguração, ao seu redor, principiou um pequeno povoado que cresceu
com a derrubada da floresta e com o processo de colonização protago-
nizado pelos trabalhadores da ferrovia recrutados, principalmente nas
colônias de imigração do Paraná e, mais tarde, pelos colonos oriundos das
colônias do campesinato independente do Rio Grande do Sul.
Foi, neste sentido, a primeira ligação ferroviária entre o Sul e o
centro do país: teve fundamental importância na integração econômica,
secularmente ocorrida através do tropeirismo e, ainda, carregou em seu
bojo os projetos de imigração, de colonização e de extração madeireira
do Programa Farquhar nas terras compreendidas entre as duas grandes
bacias hidrográficas do Rio Iguaçu (ao norte de Santa Catarina) e do
Rio Uruguai (ao sul de Santa Catarina) em plena região do Contestado.
Chegava-se o momento, conforme os decretos anteriores anunciaram, da
exploração e da colonização das terras.

4 A Southern Brazil Lumber & Colonization Company

Através do Decreto 7.426, de 27 de maio de 1909, o presidente da


República, Affonso Augusto Moreira Penna, e o ministro de Estado da
Indústria, Viação e Obras Públicas, Miguel Calmon du Pin e Almeida,
concederam autorização para a Southern Brazil Lumber Company, a fim de
funcionar na República, com os devidos estatutos apresentados, mediante
a condição de cumprir a legislação em vigor. Não foram esclarecidos os
motivos da substituição do nome Southern Brazil Lumber Company para
Southern Brazil Lumber & Colonization Company, apenas, a partir de 1913,

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 101
sempre que foi citada em documentos oficiais, aparece o nome Southern
Brazil Lumber & Colonization Company ou simplesmente Lumber, como
igualmente passaremos a chamar.
Na mudança do nome da companhia, o acréscimo da palavra coloni-
zação (colonization) ao de madeira (lumber) parece ter acontecido por razões
óbvias, já que grandes áreas de terra foram adquiridas para fins de
exploração madeireira e, consequentemente, poderiam ser revendidas aos
colonos pela mesma empresa sem precisar recorrer à outra subsidiária do
mesmo grupo. Fernando Tokarski descreveu quando ocorreu a autori-
zação de funcionamento (já instalada e atuando) ou a simples mudança
da denominação da Southern Brazil Lumber & Colonization Company:
Em 04 de abril de 1913 uma procuração substabelecida ao advogado
Marcelino José Nogueira Junior, de Curitiba, requeria o legal funciona-
mento da Southern Brazil Lumber & Colonization Company em Três Barras,
SC. A mesma procuração havia sido encaminhada pelo advogado Frank
John Egan, radicado em São Paulo, que recebeu em Paris, a procuração
do vice-presidente da Southern Brazil Lumber & Colonization Company,
para que requeresse ao governo brasileiro o legal funcionamento da em-
presa no Brasil. O documento também determinava que Egan represen-
tasse a empresa em quaisquer outras ações, negócios ou assuntos de
interesse da Lumber (TOKARSKI, 2006).
Instalada no centro de vastíssimo pinheiral, na margem esquerda do
Rio Negro, entre os rios São João e Canoinhas, a Southern Brazil Lumber
& Colonization Company começou a ser construída em 1909 e foi concluída
no final do ano de 1911. Como em todas as demais subsidiárias da Brazil
Railway Company, profissionais experientes foram incumbidos na execução
do projeto.
A montagem dessa grande serraria e a exploração das florestas foi
entregue a Hiram Smith, especialista de reconhecida competência que,
pouco tempo antes, instalara serviços similares por conta da Northwestern
Railroad Company, empresa da qual F. S. Pearson era o presidente. Plane-
jada para ser uma empresa com alto grau de mecanização e de grandes
rendimentos, as máquinas do gigante “colosso mecânico” vieram dos
Estados Unidos, de navio, até o Porto de São Francisco. Deste porto, só
foram trazidas até Três Barras no ano de 1910, quando o ramal ferroviário,
que entroncava com a São Paulo-Rio Grande, em Porto União, alcançou
a localidade de Saltinho do Canivete (P. F. Southern Brazil Lumber &
Colonization Company, p. 10-11).
Além da preocupação com a instalação da madeireira, os serviços do
ramo de colonização, por indicação de William van Horne, foram incum-
bidos a Mr. Cole, profissional que já obtivera grandes sucessos como chefe
dos serviços de colonização da Canadian Pacific Railroad Company. Cole foi

102 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


responsável pelo estabelecimento de imigrantes poloneses nas diversas
colônias à margem das linhas da São Paulo-Rio Grande, entre União da
Vitória e Marcelino Ramos.
As terras onde Hiram Smith dirigiu a instalação da Lumber foram
compradas da família de Benvindo Pacheco, que já estava instalada lá
desde 1889, e tinha adquirido a área por concessão, como herdeiros de
José Teixeira Cordeiro e Lucas Cordeiro: “Essas terras eram uma extensa
área inexplorada quando os sertanistas começaram a percorrê-la, vão
denominando acidentes geográficos: Bugre, Pardos, Tigre, Duas Barras,
que mais tarde passa a se chamar de Três Barras” (Monte Carlo do Rosá-
rio, s.d., p. 6). Três Barras pertencia, pois, à Província do Paraná.
Reginald Lloyd (1913) escreveu que a serraria erigida em Três Barras
começou a funcionar em 22 de novembro de 1911 e tinha capacidade
para serrar mais de 200.000 pés de madeira por dia. Além da grande
madeireira de Três Barras, outras menores foram sendo construídas na
região. Enquanto o grande engenho de serrar de Três Barras foi conside-
rado a segunda maior madeireira do mundo, as demais serrarias menores,
que foram sendo construídas e que pertenciam ao mesmo grupo, fizeram
parte do maior complexo extrativo madeireiro até então.
O local da instalação da Lumber era apropriado: segundo Lloyd,
“560.000 acres de terra, densamente coberto de pinheirais”. O lucrativo
comércio madeireiro já tinha endereço:
Para a madeira, além dos mercados nacionais, há boa procura em Buenos
Aires, sem falar na possibilidade de exportação para a Europa. Cálculos
baseados sobre resultados já obtidos dão um lucro líquido de 90.000
libras para o ano de 1912 e 160.000 libras para 1913. Os lucros tendem
ainda a aumentar com o desenvolvimento do negócio. O Brasil importa
grande quantidade de madeira, sem falar que a Argentina e o Uruguai
importam dos Estados Unidos mais de 80.000 francos de madeira por
ano, fato que mostra que a Southern Brazil Lumber & Colonization Company
logo encontrará saída para sua produção (LLOYD, 1913, p. 240).
Ao descrever a quantidade de terras adquiridas para a construção
da madeireira, Maurício Vinhas de Queiroz e Reginald Lloyd divergem
quanto a isso. Para Vinhas de Queiroz a companhia “comprou 180 mil
hectares ao sul dos rios Negro e Iguaçu, próximo a Canoinhas, ao preço
de 15 mil-réis ao hectare” (QUEIROZ, 1981, p. 75). Já para Lloyd, a
Southern Brazil Lumber & Colonization Company de quem a Brazil Railway
Company possuía todas as ações [...]. Adquiriu uma grande área de
220.000 hectares de terras cobertas de florestas de pinheiros, nas proximi-
dades de Três Barras, na linha do Rio Iguassú, da S. Paulo-Rio Grande,
entre União da Vitória e o porto de São Francisco (LLOYD, 1913, p. 240).

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 103
Mesmo havendo divergência da quantidade exata da área de terras
onde a Lumber se instalou, existe unanimidade de que se tratava de uma
gigante reserva de pinheiros que garantiu a matéria-prima para uma
porção de anos. Os registros de contratos de arrendamento de terras para
a exploração das araucárias, localizados nos cartórios da região, ilustram
que, após o esgotamento das áreas compradas, a empresa partiu para
outras, geralmente comprando o direito da retirada da madeira.
Com a abundância de matéria-prima e o mercado garantido, a Brazil
Railway Company, através da Lumber, investiu nas eficientes tecnologias
para a industrialização madeireira, contratou os especialistas nas funções
técnicas, e um grande número de imigrantes foram empregados como
operários da gigante madeireira. A qualidade era buscada através das
experiências e das melhorias constantes, desde a forma mecanizada de se
recolher a matéria-prima das matas até o empilhamento e carregamento
do produto. Em 1911, foram construídos fornos de secagem de madeira
serrada com bons resultados: “Um problema da maior importância para
a madeira do Sul do Brasil, a secagem do pinho do Paraná, foi resolvido
depois de importantes experiências” (LLOYD, 1913, p. 220).
A ideia da cadeia lucrativa ficou evidente nas descrições de Lloyd
(1913), quando afirmou que a “Brazil Railway Company tirará grandes lu-
cros desta empresa com a madeira, sem falar que o transporte da madeira
da Lumber de 300 a 1.500 km constituirá considerável aumento no tráfe-
go ferroviário”. Tudo isso reforça, pois, as ideias constantes no Programa
Farquhar; além disso, os lucros emergiriam de várias fontes. Mais do que
nunca, tudo foi planejado para funcionar de modo sincronizado.

5 Colonização e extração madeireira


na Floresta Ombrófila Mista da região do Contestado

Na região do Contestado, além das vastas áreas de terras, havia tam-


bém o interesse do governo brasileiro na ocupação efetiva do território.
A concessão, por parte do governo, de grande faixa de terra ao longo das
margens dos trilhos, facilitaria os interesses mútuos. A Companhia do
Grupo Farquhar iniciou a colonização com imigrantes poloneses, ucra-
nianos e, mais tarde, em todo o Vale do Rio do Peixe, chegaram italianos,
alemães e outros grupos étnicos menores.3
O processo colonizador da região do Contestado deu seus primeiros
passos ainda antes da conclusão da ferrovia. Através do Decreto 6.455,
3
É interessante observar o elevado número de imigrantes poloneses e ucranianos que
trabalharam na Lumber. No donkey n. 2, em outubro de 1923, trabalhavam 12 operários;
pelos sobrenomes é possível identificar a origem: Kozak, Scorey, Kozakevicz, Repula,
Jankok, Scheuky, Holowka, Sczerbisky, Wiescosky, Maralevicz, Wolk e Budi.

104 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


de 16 de abril de 1907, o ministro Miguel Calmon, da pasta de Indústria,
Viação e Obras Públicas (ligada à pasta dos Negócios de Agricultura e
Comércio), expediu o Regulamento de Povoamento do Solo Brasileiro.
No relatório de 1908, o ministro interpretava os fins do regulamento,
dizendo que era preciso visar especialmente à “introdução de imigrantes
agricultores que se proponham estabelecer-se no país, criando centros
permanentes de trabalho, de riquezas” (Programa Farquhar).
A Brazil Railway Company teve participação em todo o processo de
colonização da região do Contestado, seja agindo diretamente, ao criar
colônias através das duas subsidiárias, a Brazil Development Colonization
Company e a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, ou de forma
indireta, “através de contratos com empresas particulares que assumiam
os serviços de colonização das terras obtidas por concessão do governo
federal” (SILVA, 1983, p. 78).
Rosângela Silva analisou diversas demandas judiciais e ações que
envolvem o processo de colonização em toda a região do Contestado
e áreas concedidas para a Brazil Railway Company e suas subsidiárias.
Entre os anos de 1908 e 1910, com a construção da ferrovia São Paulo-
-Rio Grande, inicia-se o povoamento com a chegada dos trabalhadores
da ferrovia. No baixo Vale do Rio do Peixe, ainda em 1908, ocorreu o
povoamento de Piratuba.
No ano de 1909, houve a “discriminação das terras devolutas –
autorização dada pelo governo do Paraná para medição e demarcação
das terras dos lugares Rancho Grande, Rio do Engano, Pepery e Chapecó,
na época pertencentes aos municípios de Palmas e Clevelândia”4 (SILVA,
1983, p. 80). As duas glebas denominadas Rio do Engano e Rancho Gran-
de estavam localizadas entre o Rio Uruguai e Concórdia; em 1910, através
da “Southern Brazil Lumber Company”, houve a tentativa de início de colo-
nização. Antes de destacar Pepery e Chapecó, localizadas mais ao Extremo
Oeste de Santa Catarina, faz-se necessário ressaltar as colônias Rio
Uruguay, Lageado do Leãozinho, Rio Capinzal e Colônia Herval. Eram,
pois, áreas amplas que abrangiam terras dos atuais municípios catari-
nenses de Joaçaba, Capinzal, Campos Novos e Concórdia.
No ano de 1911, a ferrovia São Paulo-Rio Grande já havia iniciado o
tráfego, e o processo de colonização ganhou impulso quando o governo
do estado do Paraná, através da Secretaria do Estado dos Negócios de
Obras Públicas e Colonização, expediu o título de revalidação de conces-
4
O nome da localidade de Bela Vista foi mudado para Clevelândia, em homenagem ao
árbitro e então presidente norte-americano Grover Cleveland, que deu sentença favo-
rável ao Brasil na contenda pelas áreas do vasto território que abrangia o Extremo Oeste
de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná, na disputa com a Argentina, denominada
“Questão de Palmas” ou “Questão de Misiones”. O litígio foi arbitrado favoravelmente
ao Brasil no ano de 1895.

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 105
são para a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande dos
seguintes locais: área de 371.908.795 m2 na Colônia Rio Uruguai; área de
40.399 hectares e 5.495 m2 no Lageado Leãozinho, também próximo de
Cruzeiro, mais tarde Limeira e hoje Joaçaba; na Colônia Rio Capinzal, a
Companhia São Paulo-Rio Grande já havia iniciado a divisão dos lotes e a
localização dos imigrantes (SILVA, 1983, p. 80).
Subindo o Vale do Rio do Peixe, no Meio Oeste de Santa Catarina, nas
áreas amplas que abrangiam terras dos atuais municípios catarinenses
de Videira e Caçador, estabeleceram-se, também, colônias e fazendas,
como Bom Retiro, que depois se subdividiu em várias glebas. É interes-
sante frisar que nesta área foi o estado de Santa Catarina, através da
Diretoria de Viação, Terras e Obras Públicas, que expediu o Termo de
Reconhecimento de Direito e Aprovação de Medições das Terras Devo-
lutas, como na área de 28.405 hectares e 9.103 m2 de terras devolutas nos
lugares de Rio Caçador, Rio das Antas e Rio das Pedras (Ibid., p. 91).
Voltando às concessões do Paraná, observa-se um movimento intenso
próximo ao Rio Iguaçu, especialmente nas áreas de interesse colonizador
e madeireiro. Silva destacou que, entre os anos de 1905 e 1909, sob o
“domínio da Brazil Railway Company era construído o ramal São Francisco
e intensificado o processo de colonização”. Ainda sobre o assunto, em
1908, o governo do Paraná criou a Comarca de Porto União: “A Southern
Brazil, Lumber Company adquire por compra de Affonso Alves de Camargo
e outros o imóvel São Roque, área de 516.912.000 m2” (Ibid., p. 86-91). De
interesse fundamental neste estudo, a fazenda São Roque foi o local onde
se instalou a segunda madeireira da Brazil Railway Company, queimada
pelos sertanejos rebelados durante a Guerra do Contestado, que será estu-
dada mais adiante, pontuando, além do interesse colonizador, o interesse
madeireiro.
O imóvel Pepery-Chapecó, com área de terra com 1.506.097.000 m2,
localizado no atual Extremo Oeste de Santa Catarina, foi expedido por
título de domínio para a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio
Grande, pelo governo do estado do Paraná, como parte do pagamento
das terras do contrato que abrangia até 15 km de cada lado dos trilhos,
envolvendo o cálculo da extensão quilométrica e a multiplicação corres-
pondente, já descrito anteriormente; no acerto das medidas, faltaram
terras próximas ao traçado ferroviário (Ibid., p. 93).
Após a inauguração da ferrovia e das primeiras concessões de terra
para a Brazil Railway Company para fins de colonização, seguiram-se
décadas de intensas negociações de terra, seja por iniciativa da própria
Brazil Railway Company, através de suas subsidiárias, cujos projetos cons-
tavam no Programa Farquhar, seja por companhias colonizadoras parti-
culares.

106 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


Enquanto no Extremo Oeste de Santa Catarina e nas terras do Vale do
Rio do Peixe até o Rio Uruguai predominaram os colonos oriundos do
Rio Grande do Sul, mais ao norte, nas terras próximas e no Vale do Rio
Iguaçu, outras etnias fizeram parte do processo colonizador. Nas terras
concedidas pelo governo do estado do Paraná para a Companhia Estra-
das de Ferro São Paulo-Rio Grande, entre as estações de Legru e São João
(atual Matos Costa), surgiram várias colônias, a primeira de rutenos,
que foi denominada Nova Galícia. Outras surgiram no Vale do Timbó,
como Coronel Amazonas, Santa Cruz, São Pedro, São Miguel e Maratá.
Ucranianos e poloneses apareceram nestas colônias e constituíram a
maior parte da mão de obra nos projetos de extração madeireira do Pro-
grama Farquhar.5

6 A Brazil Railway Company e o desencadeamento


da guerra na região do Contestado

Acompanhando o período delimitado deste estudo (1906-1916), pode-


mos destacar um histórico de eventos que são fundamentais no entendi-
mento das transformações protagonizadas pelo impacto da chegada e
pela ação do capital internacional na região do Contestado ao se iniciarem
as atividades empresariais, no início do século XX, pelo grupo da Brazil
Railway Company.
Em 1906, o ritmo de vida da população sertaneja da região do Contes-
tado continuava inalterado, salvo a ausência do velho monge João Maria
de Jesus, que não palmilhava mais a região, pois havia desaparecido.
Entretanto, decisões tomadas naquele ano mudariam para sempre o curso
da história dos moradores da exuberante Floresta Ombrófila Mista.
A Terceira Conferência Pan-Americana, realizada no Rio de Janeiro
no ano de 1906, contou com a presença do barão do Rio Branco,6 ministro
das Relações Exteriores do Brasil, e de Elihu Root, secretário de Estado
dos EUA. Como resultado desta Conferência, revelaram-se perspectivas
“altamente favoráveis” ao gigante da América do Sul, fornecedor de café
para a “grande República da América do Norte” e importador de fari-
nha de trigo, produtos elétricos, manufaturados, tecnologia e capitais
(GAULD, 2005, p. 219). De Root para Percival Farquhar, o otimismo
contagiante levou o quacre a tornar-se o “maior empresário de serviços
públicos na história nacional” (GASPARI, apud GAULD 2005).
5
Além dos dados extraídos de Silva (1983), também foram consultadas as obras de
Nodari (1999) e Piazza (1982).
6
O barão do Rio Branco destaca-se principalmente pela atuação como advogado brasi-
leiro na “Questão de Palmas” com a Argentina, cujo arbitramento foi feito pelo presi-
dente dos EUA, Grover Cleveland.

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 107
Ainda antes do final daquele ano (12 de novembro 1906), Farquhar
criou em Portland, estado do Maine, a Brazil Railway Company. Além de
buscar sócios poderosos, teve apoio financeiro de banqueiros franceses,
investidores de Wall Street, financistas de Londres e de banqueiros
escoceses. Com o levantamento da soma de um milhão de dólares, esta-
va criada a “holding do império que planejou na grande república dos
trópicos” (GAULD, 2005, p. 221). A história econômica brasileira mudaria
e a história da região do Contestado7 passaria para outro capítulo.
Os caboclos ou brasileiros mestiços (muitos dos quais eram antigos
moradores das terras devolutas da região do Contestado) tiveram a
sua história modificada com as decisões que se seguiram após o ano de
1906. No dia 16 de abril de 1907, o ministro Miguel Calmon, da Pasta da
Indústria, Viação e Obras Públicas, através do Decreto 6.455, expediu o
Regulamento de Povoamento do Solo Brasileiro. Em 1908, Miguel Calmon
regulamentava o Decreto, visando à introdução de imigrantes agricultores
com intenção de estabelecer-se no país, criando centros permanentes de
trabalho e de riqueza.
A partir do ano de 1910, os moradores da região do Contestado ini-
ciaram a experiência das decisões que já haviam sido deflagradas no ano
de 1906. Foram, pois, alcançados pelos trilhos do transporte mais moderno
e perfeito do mundo e também assistiram à chegada das demais compa-
nhias madeireiras e colonizadoras do grupo da Brazil Railway Company.
As florestas e terras do Sul do Brasil foram observadas com “olhos de
águia”. Percival Farquhar chegou ao Brasil pela primeira vez no início do
século XX. Com ampla visão dos aspectos econômicos dos países em que
atuou, depois de observar o Brasil internamente, percebeu que os imi-
grantes que aqui aportavam para atuar no sistema de colonato em
São Paulo, nas lavouras de café, ansiavam pela propriedade da terra
(DIACON, 2002). Neste sentido, a existência de terras devolutas na região
do Contestado facilitaria o processo de ocupação e de colonização e cor-
respondia às iniciativas oficiais do governo brasileiro.
A conclusão da ferrovia São Paulo-Rio Grande, entre os Rios Iguaçu,
ao norte, e Uruguai ao sul, na região do Contestado, coube à Brazil
Railway Company, do grupo de Farquhar. Largas concessões de terras fo-
ram expedidas em nome desta companhia, e o Programa Farquhar previa
a exploração comercial da madeira e a posterior colocação dos colonos nas
terras recém-desmatadas. Assim, se justificariam grandes investimentos
que culminaram com a colonização da região e que garantiram grandes
lucros aos investidores das empresas do grupo.

7
O litígio secular pelo território contestado após a decisão do STF, ocorrida no ano de
2004, continuava tramitando no Supremo Tribunal Federal e as indefinições conti-
nuavam gerando muitas discussões.

108 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


Em novembro de 1911, foi concluída a maior serraria da América
do Sul, em plena Floresta Ombrófila Mista, situada próxima aos trilhos
da ferrovia São Paulo-Rio Grande. Mais tarde, foi inaugurada uma liga-
ção ferroviária horizontal, unindo a grande madeireira ao Porto de São
Francisco do Sul, Santa Catarina. Iniciou-se a “maior predação de pi-
nheiro já efetuada no Hemisfério Sul” (BACK, 1984). Com a instalação da
Southern Brazil Lumber & Colonization Company, os moradores da região
assistiram ao desaparecimento das árvores milenares, de onde brotava o
sustento da fauna e do homem da Floresta Ombrófila Mista.
Estimativas levantadas neste estudo demonstram que esta companhia,
pertencente ao grupo da Brazil Railway Company, cortou e beneficiou
milhões de árvores de araucárias durante os anos de 1911 a 19408 na
região do Contestado. A companhia (Lumber) teve como engenho central a
grande serraria de Três Barras, Santa Catarina, vários engenhos de serrar
menores e um complexo emaranhado de investimentos em outros setores
extrativos, pecuário e colonizador. Na época, transformou-se no maior
complexo madeireiro exportador de tábuas e gêneros madeireiros e, pela
envergadura e pelas proporções da atuação na região do Contestado,
provocou profundas mudanças nos locais onde atuou, na história e na
vida de pessoas de diversas partes do mundo.
As aquisições de terras da Lumber, que ocorreram entre os anos
de 1910 e 1912, embora registradas entre 1920 e 1921, somam, em oito
propriedades pertencentes aos atuais municípios de Porto União e
Canoinhas, a quantia de 523.221.922 m2 (quinhentos e vinte e três milhões,
duzentos e vinte e um mil, novecentos e vinte e dois metros quadrados).
No ano de 1911, ocorreram os primeiros despejos de antigos mora-
dores da região do Contestado, expulsos das proximidades da ferrovia,
cujas terras agora pertenciam à Brazil Railway Company (VINHAS DE
QUEIROZ, 1977). Era gente que há quase um século povoou estes campos
devolutos e de repente foi surpreendida com a notícia da venda ou do
arrendamento a terceiros, que, armados do título de propriedade, não
tardam a procurar desalojá-los como intrusos (Jornal A Tribuna, Curitiba,
5 nov. 1914).
Cabe conferir também que o primeiro ajuntamento de sertanejos na
região do Contestado ocorreu em seguida, no ano de 1912. Alguns fatos
ocorridos no ano que antecedeu ao ajuntamento chamam a atenção. Os
sertanejos juntaram-se em torno de José Maria, um benzedor e curandeiro
que receitava ervas, dava conselhos e exercia práticas anteriormente
realizadas pelo velho monge João Maria. Com José Maria, principiou
8
A Southern Brazil Lumber & Colonization Company foi incorporada ao Patrimônio Na-
cional, através do Decreto-Lei n. 2073, de 08 de março de 1940, e retificada em 22 de
julho pelo Decreto-Lei 2436 do mesmo ano, passando a se chamar Southern Brazil
Lumber & Colonization Company Incorporada.

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 109
a aglutinação que gerou a Guerra do Contestado, iniciada em 1912 e
estendida até 1916.
Em 1914, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a holding de
Farquhar e suas subsidiárias, muitas ainda em plena expansão, deman-
davam grandes investimentos; além disso, não havia possibilidades de
retorno ou mesmo de sustentação própria. Todo o império de Farquhar
desabou, o “Faraó das Américas” teve, pois, o seu programa interrom-
pido. Ainda sobre o assunto, um administrador foi designado pelos inves-
tidores para tomar conta da Brazil Railway Company que ainda atuaria no
Brasil com todo o emaranhado complexo de empresas levantadas por
Percival Farquhar.
O fim do Programa Farquhar ocorreu em 1914 e houve a decretação
da recuperação judicial da Brazil Railway Company. W. Cameron Forbes9
foi nomeado como administrador e Farquhar, morando no Rio de Janeiro,
foi solícito em tentar receber dívidas do governo brasileiro e fez o possível
para auxiliar Forbes na recuperação financeira da holding que havia ideali-
zado. Um jornal noticiou em 17 de outubro de 1914 que “A queda de
Farquhar servirá como advertência aos investidores europeus e outros
contra os astutos esquemas financeiros ianques para comprar tudo e con-
trolar o mundo inteiro” (South American Journal, apud GAULD, 2005, p.
337). Em 1916, Farquhar afastou-se definitivamente da Brazil Railway
Company. Por uma década (1906 a 1916) as suas decisões influenciaram a
vida de muitas pessoas da região do Contestado e as histórias catarinense
e brasileira.
Após a saída de Farquhar, outros dirigentes atuaram nas empresas
do grupo e continuaram com as atividades madeireiras e colonizadoras.
A história continuou com os caboclos derrotados na Guerra, condenados
e culpados pelo derramamento de sangue, com os operários trabalhando
em ritmo acelerado na exploração industrial madeireira – muitos mora-
vam na cidade-empresa americana – os colonos, revolvendo a terra des-
matada, regada de sangue durante o conflito que recém havia cessado.
Os desentendimentos com os antigos moradores da região e os
ataques às estações, à madeireira e à colônia de imigrantes da Lumber são
reconhecidos a partir de três episódios cruciais do conflito, gerados pela
atuação da Brazil Railway Company. No dia 06 de setembro de 1914, o alvo
dos sertanejos rebeldes foi a própria Lumber, quando a Estação de Calmon
foi queimada. A filial da madeireira norte-americana foi alvo de saque e
depois incêndio. Herculano D’Assumpção registrou que, na porta de uma
venda, escrito a lápis, ficou um bilhete onde os sertanejos reclamavam do

9
Willian Cameron Forbes (1870-1959), foi advogado, banqueiro e diplomata que admi-
nistrou a recuperação judicial da Brazil Railway Company que durou até o ano de 1919
(GAULD, 2005).

110 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


governo que “toca os filhos brasileiros dos terreno que pertence à Nação e
vende para o estrangeiro [...] Nois não tem direito de terras tudo é para as
gentes da Oropa” (D’ASSUMPÇÃO, 1917, p. 245).
Os ataques às estações ferroviárias da Companhia Estrada de Ferro
São Paulo-Rio Grande, o incêndio da madeireira de Calmon e o ataque
aos colonos instalados pela Lumber levaram o diretor da companhia a
exigir do governo brasileiro garantias individuais e também para as pro-
priedades. Desta forma, não tardou a chegada de um terço do Exército
republicano brasileiro (BERNARDET, 1979, p. 113) com atuação ostensiva
e até com o uso de aeroplanos para combater os sertanejos revoltados. Os
gastos com a guerra foram astronômicos e isso provocou um genocídio
com a morte de, aproximadamente, 8.000 brasileiros, em sua grande maio-
ria, caboclos pobres que viviam na região do Contestado.
As concessões feitas para a Brazil Railway Company, que também
obteve o direito de explorar as terras compreendidas na faixa de 15 km de
cada lado da ferrovia, justificavam a desapropriação de moradores estabe-
lecidos nestas terras desde tempos remotos GAULD (2005, p. 354). A
extração industrial madeireira e os problemas gerados com o fim das
obras de assentamento dos trilhos somaram-se ao fanatismo religioso e ao
profundo descontentamento dos caboclos devido à alteração de seu siste-
ma de vida e são fundamentais no desencadeamento da Guerra do Con-
testado (1912-1916). Uma somatória de fatores levou à crise, que resultou
na luta armada.
O desbaratamento total das cidades santas, o final da Guerra do
Contestado, o cerco para impedir novos ajuntamentos e a assinatura do
acordo entre Santa Catarina e Paraná no dia 20 de outubro de 1916, que
determinou os limites para jurisdição de cada estado litigante, colocou
colonos e caboclos no mesmo chão, com forte atuação das companhias
colonizadoras na instalação dos núcleos coloniais e no acesso à terra
por meio de pagamentos e de legalizações de propriedades em cartórios
públicos.
Com efeito, a trajetória da Southern Brazil Lumber & Colonization
Company está diretamente ligada ao processo de industrialização e de
urbanização da sociedade brasileira. Neste sentido, a demanda por ma-
deira exerceu forte pressão sobre a floresta das coníferas; grande parte da
madeira destinada à construção de centros urbanos, como São Paulo, Rio
de Janeiro e Brasília, mais tarde, partiu da exploração comercial em larga
escala, tendo iniciado com a Brazil Railway Company. No plano externo,
o mercado da madeira expandiu-se com as exportações, principalmente
pelo Porto de São Francisco do Sul, de onde o pinho brasileiro da região
do Contestado ganhou mercados.
Da primitiva área de mais de 200.000 km2 no Sul do Brasil, coberta
de araucárias do início do século XX, em aproximadamente um século,

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 111
encontramos nos mesmos locais apenas 3% da cobertura original – isso
ilustra que o desaparecimento de tão vasta e rica floresta procedeu a um
processo rápido de transformação ambiental que merece atenta obser-
vação por parte dos governantes e da sociedade. As atividades de reflo-
restamento somente vão aparecer, anos mais tarde, como alternativa
econômica e como disponibilidade de matéria-prima para a indústria ma-
deireira.
Após 1916, os caboclos continuaram com dificuldades para ter acesso
àquilo que tinham anteriormente à chegada da ferrovia. De acordo com
Paulo Pinheiro Machado, ao findar a Guerra do Contestado, o general
Setembrino de Carvalho trocou telegramas com os governadores de Santa
Catarina e do Paraná, sugerindo o estabelecimento dos sertanejos prisio-
neiros em colônias na própria região. O general recebeu da Inspetoria
Federal de Povoamento do Solo (Ministério da Agricultura) a informação
de que “não existem terras disponíveis, sendo as colônias existentes orga-
nizadas para a recepção de imigrantes europeus” (MACHADO, 2004, 324).
Hoje, em alguns municípios da região do Contestado, encontramos
os mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). A assistência
aos moradores da região só chegou em pleno século XX e, mesmo assim,
depois do trauma da Guerra que vitimou milhares de sertanejos pobres
e analfabetos, condição que, em partes, ainda não se assegura que é
totalmente passado. O município de Timbó Grande, Santa Catarina, cuja
abrangência envolve o local do antigo Reduto de Santa Maria, encontra-se
na última posição do ranking dos municípios catarinenses (293), segundo
o IDH do ano 2000. Outros municípios vizinhos, também palco de antigas
cidades santas, encontram-se em situação idêntica, chamando a atenção
os baixos índices, principalmente nos itens de renda per capita, índice de
educação e índice de esperança de vida (ONU – GeoEcon/idhsc).
Não há como estudar a Guerra do Contestado sem um olhar atento
aos aspectos econômicos e, principalmente, à atuação da Brazil Railway
Company. Impossível entender o atual contexto social sem visitar o pas-
sado histórico.

Referências
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112 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


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Latina. Trad. de Eliana Nogueira do Vale. São Paulo: Editora de Cultura, 2006.
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Arquivo Nacional, Rio de Janeiro


Resumo do Programa Farquhar ao organizar a Brazil Railway Company, feito e oferecido por
Charles A. Gauld, Rio de Janeiro, 1942.

A atuação da Brazil Railway Company e o desencadeamento da guerra na região do Contestado (1906-1916) 113
Programa Farquhar: Empresas subsidiárias, organizadas com o propósito de fomentar
o desenvolvimento das regiões atravessadas pelas suas linhas e que todas foram
incorporadas com capitais fornecidos pela Brazil Railway Company (Southern Brazil Lumber
Company, Southern Brazil Colonization Company, Brazil Land, Cattle and Packing Company);

Arquivo Particular de Romário José Borelli, Curitiba, Paraná


Resumo histórico da empresa antes da incorporação (Documento de 304 p.).
ARAUCÁRIA, memória em extinção. Direção Sylvio Back. Produção: UFPR-Curitiba,
1984. Fita de vídeo (12 min), VHS, son., color.

114 História do Campesinato na Fronteira Sul • Delmir José Valentini


6
O movimento do Contestado
e a questão de terras

Paulo Pinheiro Machado

H á uma longa discussão na historiografia do movimento do Contestado


sobre o peso e a relevância da questão de terras como parte das razões
que explicam o movimento sertanejo. Este texto procura avaliar o surgi-
mento desta questão na historiografia e centrar a pesquisa num período
cronologicamente mais recuado, para que se possa reconstruir o contexto
dos conflitos agrários vigentes no Planalto Catarinense quando se inicia-
ram as primeiras concentrações sertanejas em Taquaruçu e no Irani.
Durante a Guerra do Contestado, em setembro de 1914, em meio à
ofensiva rebelde generalizada, quando as vilas de Canoinhas, Curitibanos,
Campos Novos, Papanduva e Rio Negro encontravam-se sob o fogo dos
sertanejos seguidores do monge José Maria, o general Fernando Setem-
brino de Carvalho lançou um apelo à população do Planalto Catarinense
em folheto impresso nos seguintes termos:
APELO – Fazendo um apelo aos habitantes da zona conflagrada, que se
acham em companhia dos fanáticos, eu os convido a que se retirem, mes-
mo armados, para os pontos onde houver forças, a cujos comandantes
devem apresentar-se. Aí lhes são garantidos meios de subsistência,
até que o governo do Paraná lhes dê terras, das quais se passarão títulos de
propriedade. A contar, porém, desta data em diante, os que não fizerem
espontaneamente e forem encontrados nos limites de operação da tropa,
serão considerados como inimigos e assim tratados com todos os rigores
das leis de guerra. Quartel General das Forças de Operações, 26 de setem-

O movimento do Contestado e a questão de terras 115


bro de 1914. General Setembrino de Carvalho (CARVALHO, 1915, Ane-
xos, grifo nosso).1
A percepção de que a população do Planalto estava acompanhando os
“fanáticos” em busca de acesso a terras é aqui tacitamente assumida pelo
general Setembrino de Carvalho. Não quaisquer terras, mas aquelas que
fossem tituladas. Por mais que a imprensa e os militares batessem na tecla
do “fanatismo” e da “irracionalidade”, os comandantes das diferentes
colunas militares que já haviam atuado na região não deixavam dúvidas a
respeito dos desmandos dos poderosos locais, da especulação com terras
e da grilagem de proprietários que eram oficiais da Guarda Nacional
sobre as posses de lavradores pobres, como elementos importantes para
explicar a conflagração desta região (PEIXOTO, 1995; D’ASSUMPÇÃO,
1917; SOARES, 1931).
O major Matos Costa, do Exército, que mais tempo permaneceu em
ação na região do Contestado – entre as expedições do general Mesquita
(abril e maio de 1914) até quase a chegada de Setembrino de Carvalho
(em setembro de 1914) – relatou o diálogo com alguns representantes dos
sertanejos, tendo inclusive entrado disfarçado em um reduto rebelde, para
tentar uma negociação com a virgem Maria Rosa. Em correspondência ao
governo federal, o major declarava expressamente:
A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espo-
liados nas suas terras, nos seus direitos, na sua segurança. A questão do
Contestado se desfaz com um pouco de instrução e o suficiente de jus-
tiça, como um duplo produto que ela é da violência que revolta e da
ignorância que não sabe outro meio de defender o seu direito (PEIXOTO,
1995, v. 1, p. 98, grifo nosso).
A população nacional do Planalto, também denominada cabocla,2
aproveitou o conflito e seguiu as lideranças místicas com o objetivo
de afirmar seu descontentamento com a crescente marginalização dos
sertanejos que viviam do trabalho como peões e tropeiros, agregados e
camaradas. A modernização da região estava sendo experienciada com
o assentamento de colonos alemães, italianos e poloneses ao longo do
leito das estradas de ferro em construção. Além da referência presente
1
Optamos pela atualização ortográfica dos textos originais.
2
Emprego a palavra “caboclo” no mesmo sentido usado pelos habitantes do Planalto
Catarinense, ou seja, é caboclo o habitante pobre do meio rural. Embora não haja uma
conotação étnica nesta palavra, frequentemente o caboclo era apontado como sendo o
mestiço ou o homem de origem indígena e/ou africana. Mas a característica principal
desta palavra é que distingue uma condição social e cultural, ou seja, são caboclos os
homens e mulheres pobres, pequenos lavradores posseiros, agregados ou peões que
vivem em economia de subsistência e, no Planalto Catarinense, são devotos de “São”
João Maria. Desta forma, há brancos caboclos, inclusive descendentes de alemães e de
poloneses acaboclados.

116 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


no Apelo do general Setembrino, a historiografia sobre o movimento do
Contestado recorre à frase escrita em um bilhete que estava no bolso de
um sertanejo rebelde morto no ataque à Estação de Calmon, em 1914.
Ali estava escrito: “O governo da República toca os filhos brasileiros dos
terrenos que pertence à Nação e vende para o estrangeiro, nóis agora
estamo disposto a fazer prevalecer os nossos direito” e “Nóis não tem
direitos de terras tudo é pras gentes da Oropa” (D’ASSUMPÇÃO, 1917, v.
1, p. 246).
O bilhete revela a marginalização da população nacional, dos “filhos
brasileiros”, em benefício dos estrangeiros e coloca uma noção clara de
luta pela terra como um direito. Numa região de fronteira agrícola onde
a ferrovia e os órgãos de Estado começam a se estabelecer, o acesso à
propriedade da terra representava, em grande medida, as condições que
poderiam levar à autonomia ou à subordinação social.
Apesar da questão de terras ser fundamental para se entender o
movimento do Contestado, não podemos absolutizar esta questão nem
tampouco minimizar a presença de outros fatores sociais, políticos e
culturais que concorreram para a formulação do discurso rebelde, com
a presença de fortes expectativas milenares. No entanto, o presente texto
possui como foco central a investigação das questões de terras que prece-
deram ao movimento do Contestado.
Em que pese a presença destes indícios levantados pelos militares e
pela historiografia clássica, poucos autores empreenderam pesquisas
documentais sobre o acesso à terra e à concentração da propriedade na
região, e quando o fizeram, apenas ocorreu rápida pesquisa em jornais,
relatórios de presidentes de Província, Mensagens de governadores, refe-
rências esparsas de depoimentos orais, mas nenhuma pesquisa documental
original, com um universo documental representativo e quantificável, so-
bre registros cartoriais de propriedades, legitimação de posses e validação
de títulos do Império e de sesmarias do período colonial.
Boa parte dos conflitos de terra ocorridos no Planalto Catarinense no
início do século XX era originária da antiga disputa de limites entre os
estados do Paraná e Santa Catarina. Nas regiões do município de Palmas
(ao final do século XIX compunha um extenso território entre os rios
Iguaçu e Uruguai), nas terras próximas aos campos de São João, nos vales
dos rios Timbó e Paciência, na saliência paranaense formada pelas vilas
de Itaiópolis, Papanduva e Três Barras, eram frequentes as disputas de
terras, muitas vezes sendo o mesmo território escriturado por diferentes
proprietários em cartórios catarinenses e paranaenses (VINHAS DE
QUEIROZ, 1966; DIACON, 1991). Sendo uma região de ocupação e colo-
nização relativamente recente, os vales dos rios Negro e Iguaçu eram
importantes centros de produção de erva-mate, principal artigo de expor-
tação destes estados.

O movimento do Contestado e a questão de terras 117


Em 1904, após longa batalha judicial, o estado de Santa Catarina
obteve uma sentença favorável no Supremo Tribunal Federal. O território
contestado permaneceu sob administração provisória do Paraná, até que
houvesse uma sentença definitiva sobre a questão. Pela decisão de 1904,
os limites interestaduais reconhecidos pela corte suprema se definiam,
no Planalto, pelos rios Negro e Iguaçu. Os representantes do Paraná
recorreram e, em 1909, há uma segunda sentença do STF, confirmando a
decisão de 1904. O Paraná novamente entrou com embargos e, em 1910,
uma terceira e definitiva sentença deu ganho de causa ao estado de Santa
Catarina. A partir de então os governantes paranaenses passaram a resis-
tir à decisão da corte e manter a sua administração sob o território contes-
tado, argumentando que não havia uma lei de execução de sentença de
limites e, como tal, a sentença permanecia inócua. O Paraná tentou, entre
os anos 1910 e 1916, fazer valer seu poder político no quadro federal, para
obrigar Santa Catarina a desistir da aplicação da sentença e entrar numa
negociação de partilha da região contestada, tal como ocorreu em 1916,
sob os auspícios do presidente Wenceslau Brás, e executado em 1917.3
As disputas de terras e a precariedade das posses dos pequenos
lavradores era crítica nas regiões de jurisdição contestada com o Paraná.
A indefinição das respectivas jurisdições estaduais apenas acentuava os
aspectos violentos que revestiam a luta pela posse das terras, desde o iní-
cio da ocupação desta região. Porém, o início do movimento sertanejo do
Contestado, e grande parte de seu crescimento, ocorreu em solo catari-
nense não contestado pelo Paraná, onde os problemas agrários não eram
menores.
O Planalto Catarinense começou a ser colonizado por bandeirantes
e tropeiros paulistas a partir do início do século XVIII. Sendo parte do
longo caminho das tropas de muares, que eram conduzidas da bacia plati-
na até a região de Sorocaba. Datam deste período as primeiras concessões
de sesmarias, para pecuaristas que se estabeleceram nos Campos de Cima
da Serra. A vila de Lages, fundada por ordem do governo da capitania de
São Paulo em 1771, tinha por objetivo reunir a população de pecuaristas
que já existia dispersa pela região. Em 1820 o município de Lages foi
anexado à província de Santa Catarina.
3
O Tratado de Limites assinado por Paraná e Santa Catarina, em 1916, partilhou os
Campos de Palmas, sendo a parte norte, das águas que correm em direção ao Iguaçu,
sob domínio paranaense e, a parte sul, das águas que correm em direção ao Rio Uru-
guai, para Santa Catarina. A cidade de Porto União da Vitória foi dividida ao meio pela
linha de estrada de ferro, sendo que ao norte ficou a cidade paranaense de União da
Vitória e, ao sul, o município catarinense de Porto União. Os vales dos rios Paciência
e Timbó passaram para a jurisdição catarinense, assim como toda a saliência de Três
Barras, Itaiópolis e Papanduva. A cidade de Rio Negro foi dividida pelo rio de mesmo
nome, tendo a parte norte paranaense conservado o nome de origem e a parte ao sul do
Rio Negro passou a ser a cidade catarinense de Mafra.

118 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


Em julho de 1822 o governo do reino do Brasil suspendeu o regime de
sesmarias e, por muitos anos, governantes e políticos do Império formu-
laram distintos projetos de leis de terras para regular a questão. O regime
de sesmarias era baseado na legislação portuguesa de concessão de direito
hereditário de uso dos solos e uma forma de distribuição de terras para
estimular a fixação de colonos e o arroteamento dos solos. As sesmarias
tinham início a partir de uma concessão inicial ao colono, que era autori-
zado a se instalar e produzir e, num segundo momento, a um processo
mais complexo de confirmação, que resultava numa definição clara dos
seus limites territoriais. A legislação portuguesa previa prazos para a
confirmação das sesmarias que, se não cumpridos, implicariam anulação
do título inicial e reabsorção das terras ao poder real. Grande parte dos
possuidores de terras do Brasil durante o período colonial apenas pos-
suíam os documentos iniciais das sesmarias. As dificuldades de titulação,
os conflitos de limites e divisas e a desobediência à legislação levaram à
suspensão deste regime jurídico de distribuição de terras. O Estado não
tinha condições de definir, com clareza, a localização de terras públicas,
que poderiam ainda ser distribuídas. E as terras possuídas tinham uma
titulação precária, ou eram já posses, sem qualquer titulação.
Em setembro de 1850, a primeira Lei de Terras procurou disciplinar
esta questão. A partir daquela data só seria válida a aquisição de terras
públicas por escritura de compra. Para regularizar as situações antigas, a
Lei de 1850 cria ritos e prazos para a revalidação de antigas sesmarias e
para a legitimação de posses “mansas e pacíficas”, ocorridas no período
de vácuo legal, entre a suspensão do regime das sesmarias e a publicação
da nova lei. Um regulamento publicado em 1854 (Decreto Imperial 1318)
estabelecia com mais detalhe os passos para a legitimação de posses e
para a criação de um registro de terras. Ficou definido o Registro Paro-
quial de Terras possuídas, feito junto aos sacerdotes católicos em cada
paróquia, para a geração dos documentos iniciais de legitimação. O
Ministério do Império criou a Inspetoria Geral de Terras Públicas, com
uma pequena estrutura de oficiais, engenheiros e agrimensores que aten-
deriam recursos e problemas de contestação que chagassem das provín-
cias. Nestas, subordinado ao presidente existiria a Inspetoria Especial
de Terras que receberia os Registros Paroquiais e formaria o processo
de legitimação que seria deferido ou não pelo presidente da província.
Eram previstas multas para autoridades que não dessem cumprimento à
lei e aos possuidores de terras, que se não regularizassem seus domínios
dentro dos prazos previstos, teriam suas terras em comisso retornadas ao
Estado.
Para José de Souza Martins (1989) a Lei de Terras representou um
importante marco para a consolidação do poder dos grandes proprie-
tários e para a preparação do país para o fim do cativeiro e a imigração

O movimento do Contestado e a questão de terras 119


de trabalhadores europeus. Segundo este autor, existia um regime de
terras livres e de trabalho cativo que, tendo em vista o fim do tráfico
africano e a necessidade do trabalho livre, deveria ser substituído por
um regime de terras cativas, para a sobrevivência da grande propriedade.
Se as terras continuassem livres para libertos, nacionais e imigrantes,
quem trabalharia nas grandes lavouras? É inegável que a regularização
das terras seria benéfica aos proprietários. Mas muitos não pensaram
assim: houve uma grande resistência à aplicação da lei, principalmente
uma forma de inércia dos grandes posseiros que não se preocuparam
em legitimar suas terras. Os estudos sobre as fronteiras de expansão e
as plantations deixam claro que não existia um regime de terras livres no
Brasil. Mesmo no período colonial, fazendas eram compradas e vendidas,
formando uma espécie de mercado imobiliário. O difícil é determinar a
força material e as condições políticas para o Estado colocar em vigor uma
norma que disciplinava os proprietários.
Com exceção de algumas regiões do Rio Grande do Sul (CHRIS-
TILLINO, 2010), a maioria dos fazendeiros do país silenciou sobre a lei.
José Murilo de Carvalho chamou esta atitude de “veto dos Barões” à
política da Coroa (CARVALHO, 1996). Estudos mais recentes, como
a tese de Márcia Motta, demonstram que a lei não era, em princípio, de
benefício imediato aos grandes fazendeiros, que por muitos anos usaram
a indefinição dos limites das sesmarias e posses como meio de açambar-
camento e absorção de terras de posseiros próximos, além da extensão
sobre terras públicas. Houve inclusive a tentativa de apropriação da lei
por pequenos posseiros, já que suas disposições de legitimação previam
a regulamentação de pequenas posses desde que o agricultor provasse
moradia habitual e cultura efetiva sobre o terreno requerido. O reconhe-
cimento legal da posse útil, que fazia parte desta lei, poderia ser apropria-
do por grandes e por pequenos posseiros (MOTTA, 1998).
Em Santa Catarina, o presidente da província Araújo Brusque notifi-
cou a Assembleia Provincial, em 1860, informando que nenhum processo
de revalidação de sesmarias, ou de legitimação de posses, havia sido enca-
minhado ao governo e que, neste sentido, havia conseguido com o governo
imperial uma extensão de prazo para estes procedimentos (SANTA
CATARINA, 1860, p. 60). Porém, nos relatórios seguintes, não há referência
a estes processos de revalidação e legitimação. Os presidentes de província
de Santa Catarina estavam mais preocupados com as medidas urgentes
para definição de divisas com a recém-criada província do Paraná.
A província de Santa Catarina possuía, em 1860, apenas 115 mil habi-
tantes, quase todos morando nos municípios litorâneos de Laguna, São
José, Desterro, São Miguel, Itajaí e São Francisco. No único município
serrano – Lages – moravam 7 mil habitantes espalhados pela extensa
região pontilhada de campos nativos e matas. Enquanto as populações

120 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


litorâneas se dedicavam à pesca e à agricultura, a principal atividade
econômica do Planalto era a pecuária extensiva. As colônias particulares
e criadas pelo governo situavam-se em vales litorâneos que estavam no
caminho de subida à serra. Neste sentido, foram criadas as colônias de São
Pedro de Alcântara (no caminho entre Lages e São José, 1829), Nova Itália
(no Alto Vale do Rio Tijucas, 1836), Dona Francisca (com seu núcleo urbano
de Joinville, como início de caminho entre São Francisco e Curitiba, 1848)
e Blumenau (no médio vale do Itajaí, 1850). O caminho entre Lages e Des-
terro foi reforçado com a criação da Colônia de Santa Isabel (1847), da
Colônia Militar de Santa Tereza (1853) e da Colônia Nacional de Angelina
(1860). O governo dirigiu a colonização para a subida da serra, entre
outras razões, para a expulsão de indígenas, a manutenção de estradas e
a consequente conservação de caminhos de comércio entre o planalto e o
litoral. A colonização através da venda de terras aos imigrantes europeus
foi dirigida com a finalidade de promoção da integração viária da província.
Para os proprietários catarinenses, o que servia como titulação de suas
terras, na prática, eram os registros em cartórios civis, principalmente
quando suas terras estavam inventariadas em arrolamentos de bens
por herança. Durante a segunda metade do século XIX, uma geração de
rábulas especializou-se neste tipo de procedimento. Estes registros, com
muita frequência, não apresentavam as divisas precisas das propriedades
e nem sempre concordavam na definição das propriedades lindeiras
(MACHADO, 2004, p. 58). Mas a compra e venda e a herança de terras
não limitavam suas dimensões, como tentava fazer a Lei de 1850 e o Regu-
lamento de 1854, que restringiam a área de legitimação apenas nos locais
que fossem comprovadas moradia habitual e cultura efetiva.
No início da República, a nova Constituição de 1891 passou do gover-
no central aos estados a prerrogativa de legislar sobre terras e colonização.
A definição de uma política estadual de terras ocorreu ainda na década
de 1890, após a Guerra Federalista e a consolidação do poder estadual nas
mãos do Partido Republicano Catarinense. Esta política tinha como objetivo
atuar em duas “frentes”: a) Regularização definitiva de antigas posses; b)
Venda de terras públicas para estímulo da pecuária e da lavoura.
A concepção reinante não difere substancialmente do que vinha sendo
praticado durante o período imperial. Os Estados passaram a herdar as
contradições e ambiguidades da política imperial de terras que, se num
determinado momento eram elaboradas políticas para fazer da alienação
de terras públicas um processo de desenvolvimento da agricultura, setores
significativos destas elites proprietárias, pelas fraudes, grilagem e açambar-
camento privado de terras públicas, acabavam por modificar os objetivos
iniciais da legislação de terras.
O fato da legislação imperial de terras ter sido frequentemente desres-
peitada pela elite proprietária não anula, na prática, a política oficial de

O movimento do Contestado e a questão de terras 121


privilegiar os grandes proprietários e, ao mesmo tempo, tomar a iniciativa
de promover, tanto pela legitimação de posses médias e pequenas de
sitiantes nacionais como, através da imigração, a formação de uma cama-
da social de pequenos proprietários nas províncias meridionais. Novos
estudos procuram apontar para a importância da presença social e econô-
mica de pequenos e médios proprietários, tanto em regiões exportadoras
como nas terras ocupadas por atividades mais ligadas ao mercado interno
(FRAGOSO, 1990; PALÁCIOS, 2004).
A política de terras estabelecida pela legislação imperial, a partir da
Lei de 1850, não conseguiu definir uma de suas metas centrais, que era a
demarcação das terras públicas das possuídas, uma vez que a grilagem
e o açambarcamento de terras do Estado ocorreu quase sem controle.
Muitos proprietários, que possuíam títulos de sesmarias não demarcadas,
além de grandes posseiros, que se apropriaram de extensas faixas de
terra entre o fim da legislação colonial e a nova legislação do Império
(1822-1850), aproveitaram-se das disposições da Lei de 1850 e do Regula-
mento de 1854 para avançar suas propriedades sobre terras públicas e
de pequenos posseiros, transformados compulsoriamente em agregados
(SILVA, 1996; PAULILO, 1998). Segundo Márcia Motta (1998), frequen-
temente grandes fazendeiros serviam-se da intrusão de seus agregados
sobre terrenos públicos para ampliar suas posses.
Com o início da República, através das Mensagens dos governadores,
é possível identificar que a política de terras baseava-se na premissa
segundo a qual Santa Catarina precisava desenvolver sua “indústria pas-
toril e agrícola” e que, para isto, já contava com “terras ubérrimas” que
eram “desabitadas”. A noção de vazio demográfico aparece em muitos
documentos e relatórios, tornando a população cabocla e indígena invi-
sível ao Estado, já que não era vista como preparada para imprimir o
progresso desejado. Fica evidente a formulação de uma política de terras
ligada ao estímulo da colonização europeia, para o desenvolvimento de
uma lavoura comercial – submetida aos interesses do capital mercantil e
de empresas particulares especializadas em especulação com terras – e
ao crescimento da oferta de pastagens para os fazendeiros do planalto
(SANTA CATARINA, 1904 e 1906). Grandes pecuaristas do planalto e
especuladores do litoral foram os setores privilegiados na implementação
desta legislação.
Como em outros estados brasileiros, as populações indígenas e de
posseiros caboclos, que ainda ocupavam espaços territoriais significativos
nas regiões entre a serra e o litoral e no oeste, eram completamente
alijadas desta política de desenvolvimento. Neste período, os governantes
discutiram o fim aos massacres de silvícolas promovidos pelos coloniza-
dores, intensificados com o aumento da imigração europeia nos vales de
Itajaí, Tubarão e Araranguá. Com um discurso “humanitário e civilizador”,

122 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


defenderam uma política de atração e catequese dos indígenas, que deve-
riam ser confinados em aldeamentos específicos, mas não foi levantada
a hipótese de deixar os indígenas nas terras que já ocupavam (SANTA
CATARINA, 1895 e 1904). Em Santa Catarina, os últimos grupos indígenas
localizavam-se na fronteira agrícola de expansão da lavoura imigrante,
tanto ao norte, no Alto Vale do Itajaí, como ao sul, na região de Tubarão e
Urussanga, locais que eram cortados por estradas de tropas de cargueiros
que desciam a serra em direção a estes vales litorâneos (SANTOS, 1973).
Situação não muito diferente ocorreu com as populações de caboclos
que viviam nas mais diferentes regiões do estado, principalmente no pla-
nalto médio e norte, geralmente como posseiros, praticando uma agricul-
tura de subsistência. Estas comunidades de pequenos lavradores, vivendo
em bairros rurais, eram particularmente fortes em São José do Cerrito e
na Serra do Canoas, em Lages; no Erval Velho, nos Campos do Espinilho
e terras próximas à costa do Rio do Peixe, em Campos Novos; em São
Sebastião das Perdizes, no Taquaruçu, na Liberata, no Trombudo, na Serra
da Esperança e nos vales do Marombas e Correntes, em Curitibanos; e em
grandes extensões do município de Canoinhas.
O engenheiro Érico Grésecke, designado pelo governo de Santa Cata-
rina para realizar as medições dos terrenos devolutos que o Estado estava
cedendo para a Southern Brazil Railway, empresa concessionária da fer-
rovia São Paulo-Rio Grande, no Vale do Rio do Peixe, em 1913, afirma que
a região estava pronta para receber imigrantes, embora houvesse diver-
gências quanto ao número de propriedades regularizadas na região (se 4
ou 7 propriedades, número ínfimo para um vale com mais de 200 km). O
corpo de seguranças particulares da Brazil Railway já havia “limpado” a
região da presença de “intrusos”.4
Estes pequenos agricultores e criadores caboclos, além de estarem
distantes dos dispositivos do Estado que poderiam levar à regularização
de suas posses, na maior parte das vezes, nem sentiam necessidade de
assim proceder. Viviam em suas terras da mesma maneira que seus pais e
avós o fizeram. Se aparecesse algum usurpador, teriam que defender seu
sítio à bala, pouco adiantando ter ou não um papel passado em cartório.
Desta forma, para os pequenos posseiros, muitas questões de terras
resolviam-se assim, no âmbito privado, sem qualquer registro ou processo
em instituições de Estado. Em caso de querer regularizar sua posse, estes
lavradores pobres teriam que juntar uma papelada que não possuíam e
gastar um dinheiro (em medições, taxas e emolumentos) que lhes era
escasso. Além disso, a relativa mobilidade desta população tornava muito
comum as vendas de posses não regularizadas entre os caboclos, o que

4
Correspondência dirigida ao secretário geral dos Negócios do Estado, 23 de novembro
de 1913. APESC.

O movimento do Contestado e a questão de terras 123


era vedado pela legislação, acabando por inviabilizar qualquer processo
de legitimação. A mobilidade da população cabocla era parte do seu
próprio processo de reprodução camponesa, frequentemente ligado
à busca de novas terras para as gerações seguintes (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997).
Outro problema legal estava associado às posses por herança, uma
vez que raramente os pequenos lavradores faziam inventário e muitos
dos seus pais ou avós não possuíam qualquer registro civil. Por fim,
havia o problema adicional que complicava as vendas e heranças, o fato
do Estado não reconhecer a família cabocla, que normalmente não era
formada por casamento civil ou religioso, mas por amasiamento. No
Planalto Catarinense isto se agravou devido ao não reconhecimento pelo
Estado dos matrimônios realizados dentro dos redutos, ou “Cidades
Santas” dos rebeldes, como Taquaruçu, Caraguatá, Bom Sossego, Caçador
Grande, Santa Maria, Campina dos Buenos, Pedra Branca, São Pedro
e outros. Um ofício do promotor público de Campos Novos, dirigido
ao secretário geral do Estado, consulta se há registro de propriedade ou
posse legitimada por Benedito Antônio de Oliveira, na localidade de “Ser-
rinha”, no Rio das Canoas, comarca de Campos Novos. O promotor
afirma que, em 1913, Benedito uniu-se aos “fanáticos” de Taquaruçu “com
sua família ilegítima”, e que em janeiro de 1915 faleceu no reduto de
Santa Maria. Finda a guerra, a “suposta” viúva veio fazer inventário dos
bens. A Secretaria Geral anexou uma declaração de que a posse da “Ser-
rinha” pertencia a Benedito, legitimada em 1904. Os documentos não
afirmam que Benedito havia se casado no reduto rebelde, o que, eviden-
temente, não tinha qualquer valor legal.5
Desta forma, paralelamente a uma camada de posseiros que, por dife-
rentes razões, não legitimavam suas posses como previa a legislação esta-
dual, há uma camada de pequenos e médios proprietários, como Benedito,
com relevância demográfica e produtiva, mesmo em regiões de pecuária
extensiva, como os campos de Lages e Curitibanos, que procuraram legi-
timar suas posses e regularizar sua situação. Eram também proprietários
que organizavam arrolamentos e inventários, o que permite uma análise
da composição percentual dos bens destes lavradores (BORGES, 2005).
A regularização de antigas posses era uma política previsível de ser
desenvolvida, já que a província herdou esta questão não resolvida do
Império. A longa trajetória da aplicação da Lei de Terras de 1850, e sua
frequente extensão de prazos para novas legitimações de antigas posses
mansas e pacíficas, assim como de regularização de sesmarias, era ques-
tão pendente para a Inspetoria Especial de Terras e Colonização durante

5
Ofícios de promotores públicos à Secretaria Geral dos Negócios do Estado, 1917.
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina – APESC.

124 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


a década de 1880. Porém, um novo prazo para regulamentação de posses
também representava a chance de abrir a porta para práticas de grila-
gem de especuladores sobre pequenos posseiros e indígenas, além do
açambarcamento gratuito de territórios devolutos por particulares. Isto
era permitido pelas várias brechas deixadas pela Lei Estadual 173, de 30
de setembro de 1895, que previa a legitimação e revalidação de posses
num prazo até 1903.
Terminado o prazo previsto, todas as posses não legitimadas ou
revalidadas (aquelas que já possuíam legitimação no período imperial)
cairiam em comisso, sendo consideradas devolutas e incorporadas ao
patrimônio do Estado. Este prazo para regularização de posses foi pror-
rogado para 1904 (Lei 566, de 14 de agosto de 1903), sendo daí prorrogado
anualmente até 1926. O ímpeto inicial dos legisladores estaduais, de
regularizar as antigas formas de posse para definir, de uma vez por
todas, quais eram as terras públicas disponíveis (para venda, colonização,
aldeamento indígena, etc.), foi sendo refreado por uma crescente libera-
lidade em relação aos grandes posseiros (SILVA, 1996). A longa extensão
dos prazos de legitimação criou uma verdadeira ficção sobre a possibi-
lidade da existência de “terras livres” na fronteira agrícola, não apenas em
Santa Catarina. Segundo Vânia Losada Moreira (2005, p. 223-243), estu-
dando o caso do estado do Espírito Santo para este mesmo período, este
procedimento de apropriação privada de terras públicas nas fronteiras
agrícolas foi importante mecanismo de grilagem e de concentração de
terras nas mãos de poucos.
Por outro lado, a venda de terras públicas foi, neste período, um
importante meio de legalização da grilagem de sitiantes. Estabelecida pela
Lei 439, de 11 de outubro de 1899, apenas as posses já legitimadas ou em
vias de legitimação saíam de sua órbita. Em 1901, a Lei 523 reduziu os
preços anteriormente fixados e abriu possibilidade para que a medição e
a demarcação da propriedade fossem feitas diretamente pelo particular,
sem fiscalização do Estado. As terras não demarcadas pelo Estado podiam
ser vendidas a 1,5 réis o m2 (para terras de 1ª ordem), 1 real o m2 (2ª
ordem) e 1/3 real o m2 (3ª ordem). A lei também previa que as terras de 3ª
ordem, que fossem consideradas estéreis para a agricultura, só podendo
ser aproveitadas pela pecuária, teriam o seu preço rebaixado para ¼
de real por m2. A antiga justificativa – de que a pecuária necessitava de
muitas terras – continuava sendo privilegiada pela legislação. Caberia
à autoridade administrativa da Diretoria de Viação e Obras Públicas do
Estado a classificação das terras nas distintas ordens. O que não fica claro
é como o governo estadual republicano conseguia definir quais as terras
públicas poderiam ser alienadas, se o acervo de terras possuídas ainda
não estava definido e os prazos de legitimação de antigas posses eram
constantemente prorrogados.

O movimento do Contestado e a questão de terras 125


Curioso é observar que as propriedades eram vendidas ou legitimadas
à distância, na capital do estado, à revelia dos moradores do local que
estava sendo alienado. Situações absurdas chegaram a ocorrer, como a
tentativa de compra das terras (para transformá-las em invernada) onde
havia a comunidade de Ponte Alta, povoado formado “por mais de 200
famílias de nacionais”, no meio do caminho entre Lages e Curitibanos.6
Outro elemento que contribuiu fortemente para a instabilidade
social na região contestada, e no conjunto do Planalto Catarinense, foi a
introdução da ferrovia. A construção da linha entre União da Vitória e
Marcelino Ramos, no Rio Grande do Sul, concluída em 1910, e o ramal
leste, que ligava União da Vitória a Rio Negro, concluído em 1913, promo-
veram uma série de problemas para a região. A empresa concessionária,
responsável pela exploração da linha por 90 anos, era a Brazil Railway,
formada pelo magnata norte-americano Percival Farquhar, com a contri-
buição de capitais ingleses, norte-americanos e franceses que, além da
garantia de juros em caso de prejuízo, recebia como doação por parte do
governo federal de um trecho de até 15 km de terras de cada margem da
linha (D’ABREU, 1906; THOMÉ, 1983; VALENTINI, 2009).7
O antigo caminho das tropas foi extinto quase completamente, levan-
do à depressão econômica trilhas inteiras pontilhadas de vendas, locais
de pouso, descanso e invernada das tropas, principalmente no interior
dos municípios de Lages, Campos Novos, Curitibanos e Canoinhas.8 A
ferrovia São Paulo-Rio Grande tinha suas maiores rendas na receita de
passagens e mercadorias, sendo irrisórias as receitas por transporte de
animais, o antigo caminho das tropas de mulas não foi substituído pelo
transporte das mesmas através da ferrovia e foi eliminado.9
6
Ofício do Conselho Municipal de Curitibanos ao governador do Estado, 16 de outubro
de 1913, a denúncia é assinada pelos vereadores Faustino José da Costa, Francisco
Alves da Rocha Vieira, Virgílio Pereira, Miguel Driessen e José Custódio de Mello.
Ofícios das Superintendências Municipais ao Palácio do Governo. APESC. “Invernada”
é pastagem de ótima qualidade, utilizada para a engorda do gado antes do abate.
7
A concessão inicial da estrada de ferro Itararé-Santa Maria, feita pelo governo imperial
pelo Decreto 10.432, de 9 de novembro de 1889, doava 30 km de cada margem dos
dormentes. Esta concessão foi renovada pelo governo provisório da República, por
decreto de 7 de abril de 1890, onde a doação de cada margem seria no máximo de
15 km, tendo, no conjunto da extensão um domínio médio de 9 km por margem. A
concessão inicial da ferrovia era para o engenheiro João Teixeira Soares, após muitas
mudanças, a concessão é adquirida pela Brazil Railway em 1906.
8
Na correspondência do eng. Érico Grésecke dirigida ao governo de Santa Catarina este
faz referência ao grande prejuízo sofrido pelo comércio das cidades de Lages, Campos
Novos e Curitibanos, devido à inauguração da linha férrea no Rio do Peixe. Corres-
pondência dirigida ao secretário geral dos Negócios do Estado em 23 de novembro de
1913, APESC.
9
Durante o mês de Janeiro de 1911, o perfil das receitas da estrada de ferro São Paulo-
-Rio Grande era o seguinte: Passagens, 1:948$200; Bagagens, 85$720; Mercadorias,

126 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


O trecho catarinense da ferrovia São Paulo-Rio Grande passava pela
margem esquerda do Rio do Peixe, abrindo estas terras para a exploração
de madeiras e para a colonização estrangeira pela Southern Brazil Lumber
and Colonization, uma subsidiária da Brazil Railway, constituída justamente
para a exploração das terras marginais adquiridas na concessão (TOMPO-
ROSKI, 2006).
Entre 1908 e 1910 houve um violento processo de grilagem no vale do
Rio do Peixe. A Brazil Railway fez cumprir seu domínio sobre os terrenos
devolutos das margens de até 15 km de cada lado do leito da sinuosa
estrada de ferro. O objetivo era preparar este território adjacente para a
exploração de madeira e venda de terras a imigrantes estrangeiros ou a
filhos de colonos já nascidos no país (ESPIG, 2008). Para obter a posse di-
reta destes territórios, habitados por posseiros caboclos e até por posseiros
legitimados ou de proprietários de terra diretamente comprada ao estado
de Santa Catarina, a companhia valeu-se da força de um contingente
armado, comandado pelo coronel Palhares, antigo oficial da polícia para-
naense. Este coronel adquiriu fama pelas violências praticadas na região.
Havia uma pendência judicial entre a Brazil Railway e o estado de
Santa Catarina pelas terras à margem do Rio do Peixe.10 Enquanto a com-
panhia alegava que estava simplesmente cumprindo o contrato de conces-
são previsto pelo Decreto Imperial e renovado pelo governo provisório
da República, o Estado argumenta que, pela Constituição de 1891, as
terras devolutas passaram para o domínio dos Estados e que, segundo os
decretos originais, a companhia só tomaria posse dos respectivos terrenos
após a definição do traçado da estrada e das medições oficiais de demar-
cação. A definição do traçado ocorreu após a Constituição de 1891, e a
demarcação das terras foi feita diretamente pela Brazil Railway sem o
acompanhamento do estado de Santa Catarina. Mas os governantes cata-
rinenses não quiseram impor seu ponto de vista, nem pleitearam uma
guerra judicial contra a companhia. Um parecer emitido pela Consultoria
Geral da República foi favorável ao ponto de vista da Brazil Railway e o
governador não acionou qualquer outro meio político ou judiciário de
contestação ou recurso. Mas os posseiros regularizados ou proprietários
por aquisição processaram individualmente a companhia nas décadas de
1920 e 1930 (CAVALAZZI, 2003).
3:943$680 e Animais 19$900. Livro de Receitas e Despesas da Ferrovia S. Paulo-Rio Grande
em 1911. Arquivo da Rede Ferroviária Federal S.A. Curitiba. Considerando que o verão
era a temporada tradicional de venda em grande quantidade de muares, nota-se a que-
da definitiva neste comércio.
10
Segundo o gov. Vidal Ramos, o estado de Santa Catarina “alienou grande parte dos
terrenos devolutos nas comarcas de Campos Novos e Curitibanos, terrenos estes que
são em parte reclamados pela São Paulo-Rio Grande”. Mensagem apresentada ao Congres-
so Representativo do Estado, em 23 de julho de 1912, pelo Gov. Vidal José de Oliveira Ramos.
Florianópolis: Gabinete Tipográphico d’O Dia. 1912, p. 109.

O movimento do Contestado e a questão de terras 127


Nas décadas iniciais do século XX há uma crescente presença de
agricultores rio-grandenses no Oeste e Meio Oeste de Santa Catarina. A
ocupação dos últimos territórios públicos do Rio Grande do Sul (ZARTH,
2002) faz com que as gerações seguintes de agricultores procurem a fron-
teira agrícola em Santa Catarina. Esta forma de migração acontecia atra-
vés de processos de loteamentos formais de colônias, como no caso das
vendidas pela Lumber ao longo da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande,
ou através da intrusão em terras públicas, como caboclos e alguns descen-
dentes de imigrantes praticavam no Norte do Rio Grande do Sul (SILVA,
2009).
A Brazil Railway e sua subsidiária Lumber desenvolveram um cuida-
doso processo de cooptação das lideranças políticas dos respectivos esta-
dos para evitar embaraços legais e obter facilidades administrativas. O
vice-presidente do Paraná, Affonso Camargo, foi advogado da Lumber
enquanto exercia este cargo público. O coronel Henrique Rupp, superin-
tendente municipal de Campos Novos, foi inspetor de terras da Brazil
Railway, também na mesma época em que exercia seu mandato, no
período em que esta companhia expulsava os posseiros e proprietários
legítimos do vale do Rio do Peixe. O jovem advogado lageano Nereu
Ramos, filho do ex-governador Vidal Ramos era, em 1916, representante
oficial dos interesses da Lumber junto ao governo de Santa Catarina.11
Paralelamente às atividades da ferrovia, a sua subsidiaria Brazil
Lumber organizava um extenso processo de exploração de madeiras – arau-
cária, imbuia, cedro e jacarandá – existentes em grande quantidade na
região, a partir dos terrenos marginais à estrada concedidos pelo governo.
A Lumber montou duas serrarias na região, a primeira em Calmon, esta-
ção da estrada de ferro nas margens do Rio do Peixe, e a maior em
Três Barras, em outra estação da estrada de ferro do ramal União – São
Francisco, onde foi montado um verdadeiro complexo industrial, com
quatrocentos empregados permanentes, em sua maioria imigrantes euro-
peus.12 Além destes trabalhadores permanentes, a Lumber empregava sob
empreitada grande número de caboclos no corte e transporte de toras.
O processo de beneficiamento da madeira era completamente mecani-
zado, da extração ao corte de tábuas e dormentes. A Lumber construía
ramais ferroviários que adentravam as grandes matas, onde grandes loco-
motivas com guindastes e correntes gigantescas de mais de 100 metros
11
Ofício de Nereu Ramos à Secretaria Geral dos Negócios do Estado de Santa Catarina,
29 de abril de 1916. Ofícios Diversos à Secretaria Geral dos Negócios do Estado, 1916.
APESC. Mais tarde, Nereu Ramos sucedeu Carlos Luz na presidência da República.
12
Analisando as folhas de pagamento da Lumber em 1912, verificamos que entre os seus
400 empregados permanentes 20% possuíam nomes luso-brasileiros, 50%, nomes de
origem polonesa ou ucraniana e 30%, de origem alemã ou anglo-saxã. Documentos
Avulsos. Folhas de pagamento da Southern Brazil Lumber and Colonization. APESC.

128 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


arrastavam, para as composições de trem, as toras que jaziam abatidas por
equipes de turmeiros que anteriormente passavam pelo local. A explo-
ração industrial da madeira criou sérios prejuízos à coleta de erva-mate e à
subsistência de muitas famílias caboclas. Quando o guindaste arrastava as
grandes toras em direção à composição de trem, os ervais nativos e devo-
lutos, que existiam em meio às matas, eram talados por este deslocamento.
Além de explorar as terras recebidas como doação pela ferrovia, a
Lumber também adquiriu de particulares vastas extensões de pinheirais.
Apenas a família Pacheco vendeu mais de 16 mil hectares de terras à
Lumber na região contestada de Três Barras (DIACON, 1991). Os Pacheco
tornaram-se empregados da Lumber. Novamente ocorre um processo de
expulsão de posseiros, desta vez nos vales dos rios Negro e Iguaçu. Em
outras situações, eram realizados apenas contratos de corte com proprie-
tários da região (MACHADO, 2004). Ainda é difícil determinar o impacto
da construção da estrada de ferro nos vales do Rio do Peixe e do Iguaçu
e Negro. O fato de estas regiões serem objeto de disputa entre os Estados
agravou os conflitos. Isto implicará avaliação mais detida do acervo dos
cartórios de municípios destas regiões.
As novas regiões ocupadas pela empresa, depois de desmatadas, eram
loteadas e vendidas a colonos colocados na região pelo estado do Paraná,
principalmente poloneses e ucranianos. A intervenção da companhia atin-
gia em cheio o conjunto da região, significando para o caboclo a destrui-
ção das matas e ervais. Além do impacto econômico, houve o impacto
ambiental e, como resultado do processo de grilagem, um verdadeiro
processo de exclusão étnica. Porém, é necessário diferenciar as levas de
imigrantes anteriores a 1900 que, além de serem numericamente menos
significativas, frequentemente se integravam com maior facilidade à popu-
lação local. Estes imigrantes mais antigos, principalmente das regiões
de São Bento, Rio Negro e Canoinhas, aderiam com facilidade à “visão
de mundo” cabocla, seus descendentes mesclaram-se mais facilmente à
população nacional, além de muitos se estabelecerem como pequenos
posseiros na fronteira agrícola. Em sua maioria eram devotos de João
Maria e muitos atenderam voluntariamente ao chamado dos redutários
de Taquaruçu (MACHADO, 2004).
Para manter a disciplina de toda esta estrutura, a Lumber possuía um
corpo de segurança de mais de 300 guardas, o que representava, na época,
um efetivo superior ao do Regimento de Segurança de Santa Catarina,
que possuía, em 1910, 280 homens (incluindo banda de música, oficiais
e guarda dos prédios públicos da capital) espalhados por todo o estado.
Segundo Sebastião Costa, os empregados da Lumber “chegavam na mar-
ra na casa das pessoas e botavam pra correr dizendo que o governo tinha
dado aquela terra para eles. Quando não expulsava os moradores, a
Lumber simplesmente retirava a madeira sem pedir autorização e sem

O movimento do Contestado e a questão de terras 129


pagar. [...] Este pessoal todo começou a se revoltar” (Entrevista Sebastião
Costa, MACHADO, 2004).
Ao final da Guerra do Contestado, o presidente Wenceslau Brás pro-
moveu um acordo definitivo de limites entre Santa Catarina e o Paraná,
partilhando as regiões já descritas. Uma estranha cláusula (nº 9) definia
que, mesmo para os territórios que passavam naquele momento para a
jurisdição catarinense, se houvesse conflito por duplo registro de algum
imóvel, valeria aquele lavrado em cartório paranaense (COSTA, 1998).
Esta verdadeira aberração jurídica significava uma compensação e um
reconhecimento aos proprietários paranaenses (principalmente os coro-
néis Bley, Fabrício Vieira, Pacheco, de Paula, Amazonas Marcondes, Juca
Pimpão), que agiam há décadas na região contestada e contribuíram com
o emprego sistemático de suas forças privadas de vaqueanos civis para
a liquidação das “Cidades Santas” organizadas pelos seguidores de José
Maria.
Desta forma, procuramos, ao longo da rápida reflexão deste texto,
avaliar a questão de terras não apenas pelos preceitos legais e adminis-
trativos, mas dentro de contextos sociais, políticos e culturais decisivos
para o entendimento de uma história da propriedade (CONGOST, 2006).
Enfim, procuramos avaliar a política de terras em Santa Catarina num
período atravessado por distintas conjunturas políticas, além de dife-
rentes fases de desenvolvimento econômico e de avanço de sua fronteira
agropastoril. No entanto, é possível visualizar que uma série de práticas
de apossamento de terras, de adiamento e opção por uma legitimação
tardia, de aquisição de terras públicas e particulares, foram parte de uma
lógica de ocupação que vigorou ao longo de todo o período. Parte desta
lógica é claramente expressa pelas autoridades no privilégio às grandes
propriedades dos pecuaristas, na defesa da propriedade territorial em
menor dimensão, apenas quando se tratassem de imigrantes europeus
ligados aos circuitos mercantis e na exclusão da população rural pobre de
origem nacional.

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132 História do Campesinato na Fronteira Sul • Paulo Pinheiro Machado


7
A busca pela terra
e a migração dos colonos do Sul
para o Mato Grosso

Cristiano Desconsi

O objeto deste artigo é analisar a relação entre a busca pela terra e a


migração de colonos do Sul para o Mato Grosso. Para realizar tal obje-
tivo toma-se como referência o estudo iniciado em 2007 sobre o processo
migratório dos “sulistas” para o Norte do Mato Grosso, que é parte da dis-
sertação de mestrado defendida no CPDA/UFRRJ.1 O estudo compreen-
deu a migração enquanto processo social, o que significou primeiramente
tomar os atores (migrantes) e suas relações (familiares, amizade e conter-
râneos) como agentes coletivos focando a análise na dimensão “temporal”,
ou seja, as construções históricas do deslocamento e as conexões com os
“espaços” de origem (DESCONSI, 2011).
A análise do deslocamento geográfico, geralmente concebida em
termos nativos como deslocamento da família, utilizou a noção de traje-
tória de Bourdieu (1996), que por sua vez não se confunde com um
sentido puramente geográfico de trajetória. As trajetórias devem ser com-
preendidas no meio social onde as encontramos e interagindo com os
contextos sócio-históricos e outras forças estruturais e vetores que inter-
ferem no processo migratório (BOURDIEU, 1989). Mesmo que estejamos
tratando aqui neste trabalho de grupos familiares que se deslocam, estes
o fazem em meio a uma trama de relações sociais que envolvem outros

1
Sua realização foi possível através do Projeto “Sociedade e Economia do Agronegócio
– um estudo exploratório”, coordenado por Beatriz Heredia (IFCHS/UFRJ), Leonilde
Medeiros (CPDA/UFRRJ), Moacir Palmeira (MN/UFRJ) e Sérgio Pereira Leite (CPDA/
UFRJ), que teve o apoio da Fundação Ford, do CNPq e da Faperj.

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 133
migrantes e os não migrantes, o que forma as chamadas redes sociais
(TRUZZI, 2008).
A principal metodologia utilizada foi o trabalho de campo, que
durou de março a julho de 2008, considerando um tempo de 80 dias na
microrregião do Alto Teles Pires-MT, mais outros contatos estabelecidos
no ano de 2009 e 2010 nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
O instrumento de entrevistas dialogadas com as famílias (seja residentes
no Sul do Brasil ou no Mato Grosso) foi central neste estudo. Elas são
entendidas como práticas dos atores, além de sempre ser observado o
contexto, o local, quem e em qual condição as narrativas foram produ-
zidas. Agrega-se a isto como fontes um conjunto de informações secun-
dárias de bibliografias e outros materiais levantados pesquisa.
O artigo está dividido em seis partes: na primeira seção faz-se uma
breve contextualização do processo de (re)ocupação do Sul do Brasil
rumo ao Oeste, delimitando quem são os atores sociais chamados de
colonos do Sul que compõem os deslocamentos rumo ao Mato Grosso.
A segunda seção adentra na análise propriamente dita entre a busca por
terra ou mais terra e a migração para a fronteira agrícola. Os agricultores,
diante da chamada insuficiência de terras (associada à questão da herança
e à modernização conservadora), percebem nas áreas do Cerrado Mato-
Grossense a possibilidade do acesso à terra, fato que é acompanhado
dos elementos simbólicos da modernização agrícola. Na terceira seção
analisam-se as estratégicas de busca pela terra, agregando-se a reflexão
sobre a sua valorização monetária: este mecanismo apresenta a contra-
dição de, ao mesmo tempo em que permite o aumento exponencial do
patrimônio familiar, paralelamente é ele próprio o principal fator da
concentração da terra nas mãos de poucos proprietários e, consequen-
temente, de novos deslocamentos “mais à frente”. A quarta seção expõe
a relação entre a estratégia do trabalho agrícola (peões) em fazendas do
Mato Grosso pelos atores sociais em foco. A quinta problematiza o tema
da reprodução social, ou seja, a estratégia familiar de gerar um sucessor
em uma nova unidade familiar no Mato Grosso. A sexta seção discorre,
diante do que fora exposto nas seções anteriores, da possibilidade de
identificar os momentos cíclicos do desenvolvimento das regiões em
(re)ocupação. Os atores sociais acompanharam e ainda acompanham
este processo, visando sempre o “lugar e o momento certos”. Por fim, a
dinâmica apresentada neste artigo denota a condição de provisoriedade
dos colonos do Sul, inerente ao campesinato brasileiro – a reprodução se
dá historicamente a partir da mobilidade espacial.

134 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


1 Em direção ao Oeste do Brasil

No Brasil, a política de ocupação do território, baseada em pequenas


propriedades familiares e conduzida pelo Estado brasileiro (por intermé-
dio de empresas privadas ou não), foi gestada desde o início do século XX
nos estados do Sul, priorizando nestes moldes famílias de imigrantes euro-
peus (SEYFERTH, 1984). Comumente, os espaços “naturais” ou “marginais”
desta expansão foram os locais que permitiram o agrupamento de grupos
camponeses ou seu reagrupamento após o deslocamento a outras regiões.
Tratam-se, sobretudo, de áreas que eram compreendidas como de menor
importância e valor econômico para fazendeiros, empresários rurais na
estrutura fundiária brasileira. Dentre os destaques de áreas consideradas
prioritárias para estas políticas de ocupação estariam as regiões ainda em
fase de ocupação, carentes de desbravamento, povoamento e colonização,
que também foram definidas como áreas pioneiras (ZARTH, 2002).
As primeiras migrações de camponeses do Sul rumo aos estados da
região Centro-Oeste e Norte do Brasil, remontam a um período não
superior a 40 anos, que iniciou-se com os projetos de colonização promo-
vidos pelo Estado brasileiro durante os governos militares, que de certa
forma dão prosseguimento do movimento de ocupação chamado de
“Marcha para o Oeste” iniciado na era Vargas na década de 30 (SOUZA,
2001; SANTOS, 1993).2 Até a década de 70, os movimentos migratórios pro-
movidos inicialmente por projetos de colonização alcançavam o Sudoeste
e Oeste do Paraná. O Estatuto da Terra, em 1965, estabeleceu a base legal
da política de ocupação das áreas de fronteira. Nas décadas de 1970 e 1980
predominaram os projetos de colonização conduzidos pelas empresas
privadas que estruturaram os fluxos para o Centro-Oeste e Norte do
país (SANTOS, 1993; IANNI, 1989). De alguma forma, estes projetos
construíram um novo ordenamento fundiário no caso do Mato Grosso,
realocando populações existentes e estabelecendo outras nas mesmas
áreas. Como referência dos projetos usou-se os modelos de ocupação e
colonização desenvolvidos desde o início do século XX nos três estados do
Sul do Brasil (IANNI, 1989; BARROZO, 2010).
Mas afinal, quem são os “colonos do Sul” que vão constituir as frentes
de reocupação3 nos projetos de colonização no Norte do Mato Grosso? Os
atores são originários do Norte e Noroeste do Rio Grande do Sul, Oeste
de Santa Catarina e Sudoeste e Oeste do Paraná (DESCONSI, 2010). São

2
Para mais detalhes sobre o Projeto Marcha para Oeste, ver Souza (2001, p. 22-35) e
Santos (1993, p. 23-45).
3
A utilização do termo reocupação busca trazer a ideia de que esta região do Cerrado não
era uma área com vazios populacionais, visto que nesse espaço ocorreu o processo de
expropriação de grupos indígenas, especialmente com o início do projeto de Marcha
para o Oeste, iniciado em 1934 (SANTOS, 1993; BARROZO, 2010).

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 135
oriundos de comunidades de origem formadas a partir de projetos de
colonização, que desde o início construíram um ordenamento do espaço
social, analisando distinções socioculturais (religião, etnicidade) e con-
dição econômica. Estas comunidades, com estes elementos identitários em
comum, em meio à precariedade das condições dispostas nestes projetos de
ocupação, fortaleceram uma sociabilidade, assim como estratégias de repro-
dução familiar baseadas nelas mesmas, e no conflito diante de outros grupos
socioculturais distintos (SEYFERTH, 1992; RENK, 2000; SANTOS, 1993).
Os locais de origem formavam um espaço social construído a partir
das chamadas “linhas”, “comunidades” e/ou “capelas”. Os colonos de
descendência europeia (italianos, alemães, poloneses) residiam em áreas
de terra parceladas, estruturadas a partir de projetos de colonização
desenvolvidos entre as décadas de 1920 e 1960. Nestes termos, as gerações
anteriores aos camponeses que migraram para o Mato Grosso já haviam
participado do processo migratório para as chamadas “colônias velhas”
do Rio Grande do Sul (WOORTMANN, 1995).
A migração é parte constituinte da experiência histórica de repro-
dução do campesinato. As questões relacionadas às disputas pela terra
e à priorização de alguns grupos em detrimento de outros nos projetos
de (re)ocupação foram estruturais neste sentido. A marca da seletividade
no processo histórico de (re)ocupação das áreas nos três estados do Sul
do Brasil estabeleceu distinções sociais, econômicas e culturais entre os
grupos de camponeses. Vários estudos realizados sobre os processos de
colonização e ocupação da região Sul denotam o quão seletivo foi este
processo de expropriação dos caboclos que residiam nestas regiões, em
detrimento dos colonos (RENK, 2009; GEHLEN, 1998).
Ao ocorrerem os movimentos de (re)ocupação rumo ao Oeste do
Brasil, sob estes mesmos moldes e compondo um grupo específico de mi-
grantes dos três estados do Sul do Brasil, estas distinções acompanharam
o movimento que se reconfigurou na formação do novo espaço social
no Mato Grosso. O estudo ensejado por Santos (1993) identificou que os
caboclos não foram parte dos processos de colonização e menos ainda
foram chamados para tal “missão”, mesmo sendo parte do grande grupo
dos camponeses do Sul do Brasil. Da mesma forma, o estudo que realizei
sobre os pequenos proprietários do Mato Grosso na década recente
confirma a assertiva de que os caboclos do Sul, em regra, não compu-
seram e não compõem as frentes de (re)ocupação no Mato Grosso e
outros estados. Há casos raros de migrações de famílias de caboclos
acompanhando algum “colono forte”4 para o trabalho agrícola em fazen-
das (como peões), ou, em algumas situações, caboclos que migraram em
busca da terra nos projetos de assentamentos promovidos pelo Estado
brasileiro nas décadas recentes (DESCONSI, 2010).
4
Categoria utilizada como critério de distinção entre os próprios colonos. Para saber
mais ver Seyferth (1984).

136 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


Figura 1 – Mapas de localização das regiões de origem e destino.
Fonte: Portal da Mesorregião PGM, 2007.
Fonte: Microrregiões do Mato Grosso, Cunha, 2004.

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 137
2 A busca por “mais terra plana”

Martins (1981) afirma que os grupos camponeses do Brasil são grupa-


mentos que lutam para estar e entrar na terra, e que, na medida em que
são expropriados, com frequência buscam retornar para a terra, mesmo
que seja em áreas distantes daquelas em que saíram. Isto também é válido
para o deslocamento dos colonos do Sul, haja vista que um dos aspectos
centrais do seu deslocamento está na busca pela terra, ou na busca por
áreas de terra maiores que as que tinham acesso no local de origem ou
local anterior.
Para os colonos do Sul, os problemas relacionados à herança, à moder-
nização conservadora e à insuficiência de terras, colocam a migração
como estratégia para criar as condições de reproduzir novas unidades
familiares a partir do acesso à terra: “A migração interna dos colonos,
assim como a emigração de seus antepassados alemães, obedece a uma
mesma lógica, decorrente da mesma condição e de uma ideologia que
privilegia a terra como requisito de reprodução social” (WOORTMANN,
1995, p. 115). No Brasil, este caminho deve ser situado dentro de um pro-
cesso histórico, onde esta reprodução sempre esteve associada à migração
para novas fronteiras agrícolas (MARTINS, 1981).
Os colonos do Sul, hoje residentes no Mato Grosso, em suas narrativas
sempre enfatizam aspectos comparativos entre a situação atual em relação
àquela vivida antes de migrar. São elaborações coletivas dos migrantes e
suas redes sociais construídas a partir da experiência sobre a insuficiência
de terras: i) as condições limitantes para o cultivo da terra – “só tinha
morro, pedra, nem tudo dava para plantar” – fato que, em muitos casos,
está associado à degradação da fertilidade do solo e escassez de água; e
ii) os problemas gerados por ocasião da herança, onde o fracionamento
do lote (colônia) por mais de um filho, segundo os colonos, impede “uma
família se manter ali”.
A insuficiência de terras é considerada como ponto gerador de uma
condição de crise que tencionou muitos colonos do Sul para migrar. Há
narrativas que fazem menção ao local de origem ou anterior em que
residiam como lugares onde “não tinha mais de espaço”. A partir da
unidade produtiva, estas famílias percebem que a quantidade de área
de terra que possuíam era fator limitante para o aumento da produção
de acordo com o tipo de atividade agrícola desenvolvida. O que é rele-
vante complementar neste tema é que no período pós-70 dos modelos
produtivos de “grãos” (onde a cultura da soja é a mais importante), há
uma necessidade crescente de aumento da escala de produção para
obter “sobras”, e assim cresce a demanda por “mais terra” passível de
mecanizar, preferencialmente planas. Tedesco (1999), em estudos sobre a
agricultura familiar do Sul do Brasil, demonstra que uma das estratégias

138 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


dos agricultores visa à mecanização das terras de roça. Retirar as pedras,
fazer terraceamento, drenagens de banhados são técnicas utilizadas visan-
do aumentar ao máximo a área cultivada nos anos recentes. Isto passa a
ocorrer com maior intensidade na medida em que os processos produ-
tivos “modernos” tencionam cada vez mais para o aumento da escala de
produção, o que, para a maioria dos cultivos agrícolas, está associado à
necessidade de “mais área cultivada” (caso especialmente da soja, trigo e
milho).
Muitos agricultores entrevistados na pesquisa, hoje residentes no
Mato Grosso, relacionaram a pouca quantidade de terra para lavoura
com o cultivo de soja e milho e a atividade da pecuária leiteira. A relação
destas atividades produtivas parece estar associada ao aumento de escala
e para tal o aumento de área agricultável como uma condição. Como neste
período os preços das terras praticados no Sul do Brasil se mantêm em
níveis estáveis e elevados em relação a outras regiões do Brasil, ou ainda
não existe disponibilidade de áreas à venda, acessar mais terra nestas re-
giões se coloca como tarefa difícil de ser realizada e, desta maneira, torna-
-se um limitador da reprodução social da família.
A reflexão sobre a insuficiência de terra deve estar situada no contexto
histórico e, ainda, no espaço social ao qual se está fazendo referência. O
assentado Ildo Coraza (atualmente residente no Mato Grosso) afirma
que no Sul a área de terra “da família” na década de 70 era 20 hectares e
todos os membros (cinco irmãos) viviam e trabalhavam sobre esta área,
inclusive dois deles mesmo depois de casados. Neste sentido, desenvolve
uma reflexão temporal sobre esta necessidade “de mais terra”:
Na época, até com 5 hectares dava. Porque meu pai com 20 hectares criou
nove filhos e casou todos, deu alguma coisa para cada um, não terra, mas
casa, casamento e tal ele conseguiu. Hoje quem está lá com uma área de
20 hectares é pequeno e quase não sobrevive mais (Assentado, 1/7/2008).
Reflexão semelhante faz o assentado Lauro Marchiori, que ingressou
na luta pela terra em 1979, em Ronda Alta-RS, devido à falta de terra,
pois o pai tinha cinco filhos e dispunha de 20 hectares, naquela década:
“Meu pai na época, com os mesmos 20 hectares de terra, criou um monte
de filhos. Hoje, com 20 hectares como eu tinha, mal e mal dá pro casal se
manter” (Assentado, 3/7/2008).
No comparativo, os migrantes observam sua experiência vivida no
Sul em relação aos dias de hoje considerando a dificuldade de famílias
compostas pelo casal e mais um ou dois filhos se manterem na agricul-
tura, dispondo da mesma quantidade de área que seus pais tinham na
década de 70. Essas narrativas indicam que a necessidade de mais terra,
além da questão da herança, está vinculada aos sistemas produtivos ado-
tados na região, que já envolveram, nesse período, processos de moderni-

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 139
zação agrícola que se intensificaram especialmente “nas terras vermelhas
ou roxas”, que são as mais planas e de maior facilidade para a mecani-
zação dos cultivos (TEDESCO, 1999).
Nas representações coletivas associadas às áreas do Cerrado Mato-
-Grossense, o ideário da modernização agrícola aparece com maior vigor.
Se nas áreas do Sul do Brasil os agricultores já estavam na busca por
adequar os cultivos às técnicas modernas, o que demanda condições de
mecanizar as atividades, as áreas de “chapadão” do Cerrado trazem im-
plícita em si a possibilidade da mecanização. Paralelamente, mecanizar a
área passa a significar otimização do trabalho, menor penosidade e, por
sua vez, a possibilidade de ampliar com menos trabalho a área de terra
cultivada e a produção oriunda dela.
A propaganda das áreas em processo de colonização ou (re)ocupação
vinha associada a uma dimensão simbólica “do espaço”, característica do
Cerrado, e ao fato das terras “do chapadão serem fáceis de trabalhar com
o uso de máquinas” e estabelecer grandes áreas de lavouras. No entanto,
esta terra é reconhecida também como terra pobre, que necessita de “bas-
tante adubo”, diferente “das terras de mata”, onde geralmente as famílias
viviam antes de migrar para o Mato Grosso. Da mesma forma, o imagi-
nário social da modernização agrícola nas áreas do Cerrado vem associado
à possibilidade “de crescer”, como algo possível para todos os que para
ali migram e suas futuras gerações. O acesso à terra e a crescente busca
por mais terra são precondições para progredir. É a representação do
espaço supostamente vazio que passará a ser incorporado, é onde vai ser
estruturado o espaço social em conformidade com uma visão de mundo
destes atores (ZART, 1998).
Para estabelecer a reprodução familiar dos filhos, a estratégia baseia-
-se na acumulação de patrimônio, para fins de aquisição de novas áreas de
terra (TEDESCO, 1999; CARNEIRO, 2000). Acumular valores monetários,
soja e milho armazenado em cooperativas de produção agropecuária e
realizar trabalhos temporários para terceiros (peão), são algumas das
formas utilizadas. A moral estabelecida pelos colonos do Sul compreendia
que um filho ficaria com todo o patrimônio familiar, especialmente a terra,
e isso impediria o seu fracionamento, que também é compreendido como
sinônimo de enfraquecimento (WOORTMANN, 1990). No entanto, o que
ocorre na maior parte das famílias dos colonos do Sul no período recente
é que todos os filhos e filhas reclamam o seu direito à herança. Este fato
gera tensões diversas entre os pares e muitas vezes é fator que inviabiliza
a permanência de algum dos filhos no lote para constituir uma nova
unidade familiar (SILVESTRO, 2001; SPAVANELLO, 2008).
Na medida em que a compra de novas áreas não ocorre nas proximi-
dades onde a unidade familiar de produção se localiza, mas sim em
outros municípios ou estados, todo o esforço desprendido pela família

140 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


será direcionado para os investimentos na nova área de terra e sua
estruturação produtiva e habitacional para formar uma nova unidade
de produção. Em cada família de agricultores das colônias no Sul, houve
um esforço para adquirir lotes de terra e a estruturação deste novo lote,
visando viabilizar que pelo menos um dos filhos se reproduzisse na con-
dição de agricultor/proprietário. No entanto, o foco esteve em dar condi-
ções e apoio à constituição de uma nova unidade familiar em outra região,
onde, segundo percepção dos colonos, havia “mais espaço para crescer”,
caso do estado do Mato Grosso.
Este fato pode ser identificado no percurso das famílias de agricul-
tores que por vezes saem de regiões do Rio Grande do Sul, perpassando
diversas etapas migratórias até chegar ao Mato Grosso. Migrar repre-
senta a possibilidade do acesso à terra e o Mato Grosso é o lugar de opor-
tunidade. Nas novas fronteiras, um elemento central no “chamamento”
era a abundância de terras, que criava a perspectiva de as famílias alcan-
çarem um lote inicial, um espaço onde pudessem aumentar o patrimônio
familiar através da compra de novas áreas, acompanhando o desenvol-
vimento deste novo espaço (DESCONSI, 2011).

3 A valorização das terras

Nem sempre a compra de terra por colonos do Sul se desdobrou


em um movimento migratório. Embora a busca pela compra de áreas
de terra, seja em projetos de colonização ou lotes em projetos de assen-
tamentos rurais, é uma estratégia estabelecida desde os anos 70, nem
sempre este fato gerou nova migração para este lote. É comum encontrar
famílias que residem no Sul do Brasil e que possuem áreas de terra no
Mato Grosso. De alguma maneira, o lote adquirido é acima de tudo um
aspecto que fortalece a avaliação constante entre permanecer ou migrar.
Quando se analisa esse aspecto, é possível relativizar a questão da
reprodução social dos colonos do Sul nas décadas recentes. Nota-se que
a aquisição dos lotes em outros estados, na fronteira agrícola, em muitas
situações visou à valorização das terras e assim se constituiu uma situação
de acumulação de patrimônio e recursos visando criar condições para a
reprodução dos filhos em outros locais. Doravante, estas áreas poderiam
ser vendidas alguns anos após a sua compra por um valor muito superior
ao investido no momento da aquisição. Em muitos casos, permitiu
realizar investimentos na unidade de produção localizada no Sul do
Brasil. Normalmente, a valorização das terras também está associada ao
atributo da liquidez da terra, ou seja, não basta possuir uma área de terra
valorizada, é preciso que sempre haja compradores com boas condições
financeiras interessados em adquiri-las:

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 141
A liquidez da terra é um atributo muito apreciado pelos agricultores,
embora eles utilizem a terra para produção. Mas isso não impede que
olhem para sua propriedade como um ativo que proporciona certo
nível de segurança para sua família ante qualquer imprevisto futuro
(REYDON; PLATA, 2006, p. 35).
Nesse contexto, a terra passou a fazer parte das carteiras de ativos
dos agentes econômicos e a ser negociada em função das expectativas
de lucros monetários e aumento de patrimônio de seu proprietário.
Nesse sentido, não é estranho que muitos pequenos proprietários, ante
a expectativa de não ter os recursos necessários (crédito institucional,
tecnologia) para explorar sua lavoura ou perante uma boa proposta de
compra, decidam vender, formal ou informalmente, sua parcela de terra.
A liquidez da terra não é compreendida como algo importante
somente para enfrentar algum imprevisto futuro, como é o caso de pro-
blemas de saúde de membros da família. Com ela é que foi possível a
muitos proprietários buscar novas opções de investimentos, como foi o
caso do agricultor assentado, que com o dinheiro da venda de um lote em
projeto de assentamento recebido como pagamento de dívida, investiu no
estudo das filhas nas faculdades em Cuiabá. A possibilidade concreta de
tornar a terra um ativo, mesmo que isto não se realize efetivamente, vem
expressa nas narrativas que compõem os comparativos no momento da
migração e hoje. O cálculo que vai ser referência para pensar estratégias
de reprodução familiar inclui a terra, atribuindo a ela os elementos
simbólicos “do estar na terra”, “mexer com lavoura”, mas, paralelamente,
esta terra é contabilizada a partir de seu valor de troca no conjunto do
patrimônio alcançado pela família: “Mas eu, faz seis anos que consegui
um capital de um milhão de reais” (Chacareiro, 6/6/2008).
No Cerrado Mato-Grossense, os colonos do Sul que migram para estas
terras nos anos recentes sabem que, além da terra e do trabalho, terão que
ter “o recurso”, ou seja, o capital (dinheiro, crédito, insumos, máquinas),
a fim de “mexer com lavoura”. Zart (1998) afirma que a agricultura no
Cerrado já nasce moderna, considerando que a transformação de áreas
de vegetação nativa em áreas agrícolas ocorre diretamente dentro da
dinâmica da modernização da agricultura, ou seja, a derrubada da vege-
tação é seguida de incorporação de insumos e sementes melhoradas, meca-
nização agrícola que, em geral, serão utilizadas no cultivo de soja e milho
em larga escala. Nesse caso, pressupõem o uso de um aparato tecnológico
a fim de tornar a terra produtiva. Por exemplo, os custos para “abrir”5
a área de terra (ano 2009) em Nova Ubiratã-MT, conforme apontou o

5
O termo “abrir” significa a alteração da vegetação nativa do Cerrado, através dos
procedimentos da derrubada com tratores, remoção e retirada das raízes da área, em
muitos casos a queima, com o objetivo de deixar a terra apta para o cultivo mecanizado.

142 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


técnico da Empaer/MT, são os seguintes: para “abrir” o custo médio é de
R$ 300/ha e para a operação de enleirar R$ 350/ha. Depois dessas duas
operações agrega-se a recuperação de solo com insumos, cujo destaque
é o calcário. O somatório para “deixar a terra pronta” fica entre R$ 1.500
e R$ 1.800/ha, superando os valores do próprio lote nos primeiros anos.
Nesta mesma região de referência, o valor de um hectare “bruto” neste
mesmo ano era de R$ 400. Após a área “estar pronta” para o plantio de
mecanizado de soja, o valor saltou para R$ 3.000.
Nota-se que o processo de valorização das terras apresenta uma
latente contradição: se ele permitiu que os colonos do Sul ampliassem
suas áreas de terra, o patrimônio no desejo de criar melhores condições
para a geração seguinte, é esse mesmo processo que gerou a gradativa
expulsão e concentração fundiária em um curto período de tempo. Em
várias entrevistas realizadas em assentamentos rurais, identifica-se que as
trajetórias de vários colonos do Sul perpassaram várias regiões no próprio
Mato Grosso, exatamente devido ao fator da valorização das terras.
Grande parte das famílias que compunham o projeto de assentamento
que atualmente dá origem a Lucas de Rio Verde, é encontrada em muni-
cípios “mais à frente”, como é o caso de Tapurah, Ipiranga do Norte
e Tabaporã (DESCONSI, 2011). O assentado Mário Pascoali vendeu o
sítio no Paraná para adquirir três lotes de 70 hectares em área de proje-
tos de assentamentos. Em 1997, ele vendeu a posse dos três lotes que
dispunha e comprou nova área de terra em Ipiranga do Norte, que fica
“mais à frente”.6 Trata-se de um entre tantos outros colonos do Sul que
tinham sua unidade produtiva no município de Lucas do Rio Verde e
venderam estas áreas, não porque “quebraram”, mas porque tinham
áreas que variavam de 70 hectares a 300 hectares de terra e que sofreram
uma valorização abrupta na década de 1990 em diante. Os compradores
nestes casos foram fazendeiros vizinhos e/ou agricultores oriundos do
Sul do Brasil com maior disponibilidade de capital. Mais tarde, Mário
adquiriu posses em outro projeto de assentamento e trabalha atualmente
com 600 hectares de lavoura em Ipiranga do Norte. Estes fatos indicam
que a dimensão da terra, os lotes em assentamentos e as chácaras são
concebidas também como ativos financeiros de alta liquidez.
É notório que esta concepção não deve ser compreendida isolada-
mente, mas como resultado de uma confluência de fatores entre os quais
se destacam: a) temor de perda do lote por aspectos conflitivos nos assen-
tamentos rurais (posseiros, atitude dos funcionários estatais), forte apelo
e interesse de potenciais compradores, sejam fazendeiros ou mesmo
outros colonos do Sul mais capitalizados; b) falta de capital financeiro e

6
A categoria “mais à frente” expressa o movimento de reocupação rumo ao Norte do
Brasil.

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 143
acesso limitado ao crédito institucional e à assistência técnica (REYDON;
PLATA, 2006). Estas situações tencionam estes “pequenos” proprietários
rurais para a venda da terra e fazem estes agentes voltarem seu olhar
“para frente”, onde através dos recursos obtidos neste negócio, poderão
empreender nova migração para “recomeçar”.
É certo e identificado pelas famílias que pretendem migrar a impor-
tância de dispor de “recurso”, ou seja, capital ou valores monetários, tanto
para adquirir a área de terra quanto para desenvolver as atividades na
nova terra nos primeiros anos. Desta forma, para muitas famílias a única
forma de dispor de algum capital é vender sua área de terra (colônia, sítio
ou lote) antes de migrar. Esta medida aumenta as chances de adquirir
maior área de terra no novo local e permite não depender de recursos de
terceiros, porém rompe com uma condição real de retorno.
A relação entre a possibilidade de venda da terra e a migração pode
ser identificada também nos casos de agricultores que migraram no
período pós-90 para o Mato Grosso. A dificuldade de venda da terra no
Sul, ou seja, a possibilidade de torná-la um ativo financeiro que seria
investido na compra de terra no Mato Grosso, foi um fator que retardou
a migração em cinco das famílias estudadas. Camilo Bortolli, que migrou
no ano de 2002 para Ipiranga do Norte, havia negociado a compra de
um lote na região de Querência do Norte-MT no ano de 1999, porém,
sem a venda da terra no Sul, não dispunha de “recurso” suficiente para
o pagamento e “abertura” deste lote. Lauro Marchiori também aponta
dificuldade de venda da terra, que só se efetivou em 1997. Essa dificul-
dade, associada a questões familiares, adiaram a migração de sua família
para o Mato Grosso, que era planejada desde o ano de 1992 (DESCONSI,
2011).

4 Agricultores/peões no Mato Grosso

Nas trajetórias dos grupos estudados percebemos que o trabalho agrí-


cola, “de peão”, configurou-se como estratégia para acumular algum
“recurso” para o investimento na compra de área de terra (em assen-
tamentos ou chácaras), para investimentos iniciais sobre este lote, na
“arrancada” das atividades produtivas, ou ainda como estratégia para
incrementar a renda familiar (atividades não agrícolas, serviços desen-
volvidos fora do lote).
As décadas de 80 e 90 foram consideradas de intensa migração para
as áreas rurais do Norte do Mato Grosso. Conforme abordado nas seções
anteriores, algumas famílias se tornaram proprietárias de terra porque
carregavam em suas bagagens algum “recurso” acumulado e/ou foram
beneficiadas por políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento e

144 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


acesso à terra; outras famílias têm em suas trajetórias a passagem pelo
trabalho agrícola em fazendas da região ou pela formação das vilas e cida-
des como caminho de acesso à terra.
A categoria “peão” designa o trabalho de empregado submetido
a um patrão; designa acima de tudo o empregado agrícola, cujo local
de trabalho, em geral, está vinculado às fazendas; representa o trabalho
não autônomo, ou dito em termos populares “trabalhar para os outros”.
Recorrente é observar que a busca por esta forma de acumulação no
trabalho “fora” seria uma das poucas possibilidades para os migrantes
oriundos de unidades familiares do Sul que não acumularam o suficiente
para garantir a reprodução de uma nova unidade produtiva para os fi-
lhos. Entre as trajetórias de colonos que perpassaram em algum momento
pelo trabalho agrícola em fazendeiras, é possível destacar três formas:
a) Aqueles que migraram diretamente para o Mato Grosso para traba-
lhar em fazendas, em empregos agrícolas (peões). O trabalho “fixo”,
mas o objetivo era adquirir um lote de terra.
b) Aqueles que adquiriram um lote de terra mas não dispunham de
capital para a estruturação da unidade produtiva. Desta forma, traba-
lharam como peões a fim de acumular recursos para “abrir e deixar a
terra pronta” com vistas à atividade produtiva, custeando as despesas
decorrentes da produção e a manutenção familiar. Ao dispor do lote,
algum dos filhos ou todos os membros da família migraram para vilas
ou cidades próximas e se tornaram peões por determinado período
em fazendas da região.
c) Aqueles que mesmo sendo agricultores nos lotes dos assentamentos
rurais, continuaram a realizar serviços para terceiros, como forma de
incrementar a renda familiar diante da baixa capacidade de produção
com a cultura da soja em pequenas áreas.
O desenvolvimento de um expressivo grupo de pequenos agricultores
localizados em projetos de assentamentos rurais ou chácaras instaladas
em vilas e outros aglomerados foi uma das formas de fornecimento de
força de trabalho para a expansão dos grandes empreendimentos agrope-
cuários e fazendas. O lote de terra, em certa medida, garantia local de
residência da família e em muitos casos alguma renda da própria terra.
Assim, diferente do trabalhador assalariado individual que reside na
fazenda onde o salário deve garantir a sua reprodução familiar, no lote a
família possui os meios básicos de produção. Ao mesmo tempo, o meca-
nismo que assegurava que as fazendas tivessem esta força de trabalho
disponível foi a precariedade das políticas de Estado de estruturação e
infraestrutura dos projetos de colonização e/ou assentamentos de Refor-
ma Agrária.

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 145
Esta análise a partir das trajetórias sociais demonstra o quão tênue é a
divisão das categorias agricultor e peões ou assentados e assalariados rurais.
Diante do exposto, trata-se dos mesmos atores sociais que acionam em
suas trajetórias estas estratégias possíveis visando assegurar trabalho e
terra para reprodução social da família.

5 A reprodução geracional voltada para “fora” da colônia

Notem que está em construção neste artigo a argumentação de que


a reprodução social dos colonos do Sul volta-se “para fora” da unidade
de produção ou colônia inicial localizada no Sul do Brasil. Não se trata
somente de considerar que a nova geração dos filhos passa a incorporar
a migração para o meio urbano, abandonando a condição de agricultores,
mas de constatar que reproduzir a geração seguinte na condição de agri-
cultor/proprietário foi e é um desejo de muitas famílias, porém isto não
significa que o interesse maior é que isso ocorra no âmbito do lote ou
colônia localizada no Sul.
Esta constatação complementa o que já fora estudado por vários auto-
res no tema sucessão familiar, no qual a dimensão da crise da reprodução
familiar baseia-se na assertiva de que não há herdeiros para conduzir
a colônia dos pais, constituindo-se um novo núcleo familiar a partir do
casamento dos filhos, fato que ocorre marcado pela individualização dos
projetos de vida (CARNEIRO, 1998; SILVERSTRO, 2001; SPANEVELLO,
2008). Ressalto que nas décadas recentes, para os colonos do Sul, repro-
duzir-se como agricultor/proprietário pode significar muito se feito em
outro local. Nesta abordagem, a migração ganha outro sentido; não se
trata apenas de um movimento daqueles “desgarrados” da família, de
certa forma necessário para manter a totalidade, a indivisibilidade da
unidade produtiva e gestão e propriedade para um sucessor; a migração
e a compra de terras em outros estados, especialmente da fronteira agrí-
cola, passou a significar uma condição para efetivar a reprodução gera-
cional do(s) próprio(s) sucessor(es) de muitas unidades familiares do
Sul do Brasil. O filho “escolhido” não é o que fica no Sul, mas o que vai
constituir nova unidade familiar na fronteira agrícola. O paradoxo deste
fato é que na medida em que isso ocorre, há um rompimento no processo
sucessório desenvolvido por uma família no espaço da colônia no Sul, que
geralmente será vendida, arrendada por outro agricultor do Sul que vem
também buscando ampliar sua área de produção.
Outro aspecto deste movimento de reprodução social, cuja condição
é a migração de famílias ou dos filhos para outros estados, é que além da
perda da capacidade de trabalho nas unidades familiares da Sul, perdem
as comunidades rurais, as organizações dos agricultores familiares e os

146 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


pequenos municípios. Paralelamente, o movimento de reprodução social
como agricultores/proprietários “para fora” carrega consigo, com a mi-
gração ou com a perspectiva dela a partir da compra de um lote no Mato
Grosso, grande parte do capital e patrimônio acumulado pelas unidades
familiares de produção do Sul, o que é fator de empobrecimento desta
região. Este processo gera, como muito bem define Renk (2000), uma so-
ciodiceia às avessas, ou seja, após um período marcado pela grande odis-
seia do desenvolvimento produzido nas primeiras décadas de ocupação
das colônias, aparece uma tendência inversa, ou seja, um período de deca-
dência.
Renk (2000) identifica que o trabalho penoso e uma rotina constante
de trabalho “igual à da cidade”, porém com os riscos e incertezas das
atividades agropecuárias, são itens que descredenciam a reprodução fami-
liar a partir do lote dos pais para os filhos no Sul do Brasil. Há consciência
que para fazê-lo é necessário trabalhar com atividades de pecuária de
leite, suinocultura, avicultura integrada às agroindústrias, ou desenvolver
atividades como fruticultura e horticultura, que, além da penosidade do
trabalho, estabelecem uma rotina “onde não há sábado ou domingo de
folga”. Como contraponto a esta imagem, entre aqueles que desejaram
permanecer na terra, está a percepção de que no Mato Grosso a expecta-
tiva é de reproduzir-se como agricultores a partir de uma condição moder-
na, em que o elemento do trabalho penoso é parte constituinte apenas nos
anos iniciais após a migração.
No trabalho de campo realizado em 2008 no Norte do Mato Grosso,
constatei vários casos de famílias que migraram com recursos acumu-
lados no Sul do Brasil, máquinas, valores das safras, etc. Em outras
situações, por períodos longos de até 10 a 15 anos, todo o capital acumu-
lado no Sul foi sendo investido gradativamente no Mato Grosso.
O caso da família Coldebella é elementar neste sentido. O pai adqui-
riu uma área de 650 hectares de “puro Cerrado” em 1983 no atual município
de Sorriso. A área ficou desocupada até 1989, quando entre periódicas
idas e vindas entre o Rio Grande do Sul e o Mato Grosso, a família
começou a “abrir a área”. Em 1991 foram abertos 150 hectares, os quais
foram arrendados para terceiros para o plantio de arroz. Outros 150
hectares foram abertos em 1997 e depois mais 150 hectares em 2001. Da
área de terra de 40 hectares localizada em Tenente Portela-RS a família
foi acumulando algum capital para os investimentos desde o início da
abertura da área no Mato Grosso. De certa forma, podemos dizer que há
um sucessor desta família estabelecido na nova área. Paralelamente, a
unidade produtiva, localizada no Sul do Brasil, após o falecimento do pai,
foi vendida.
Não basta possuir uma área de terra. Para torná-la produtiva dentro
dos modelos produtivos atuais, é necessário dispor de capital para “abrir

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 147
o Cerrado”, realizar os plantios das primeiras culturas e investimentos
em máquinas e equipamentos. Além disso, é preciso dispor de uma área
de terra mínima para que, nestes moldes, a nova unidade familiar possa
persistir. Não havendo esta disposição, a tendência é que muitos colonos
do Sul passem muitos anos (casos de mais de 15 a 20 anos) acumulando
algum recurso, ou se estruturando gradativamente, no novo lote.

6 Buscar o momento certo e o lugar certo

A reprodução familiar pensada “para fora” da unidade produtiva


original também permite analisar e apontar o movimento cíclico em que
cada uma das regiões ocupadas desde o Sul ao Centro-Oeste e Norte
do Brasil perpassou. Na pesquisa desenvolvida em 2008, a partir das
trajetórias sociais de famílias de agricultores, foi possível identificar que o
movimento espacial não é linear, mas sim flexível e nem sempre obedece
a uma só direção. Paralelamente, foi possível identificar, de acordo com
as percepções dos migrantes, que há uma busca constante pelo “melhor
lugar” ou, como afirmou um dos entrevistados, “o lugar certo e o
momento certo” (DESCONSI, 2011).
Para ampliar a área de terra em cada momento histórico, as famílias
procuraram terras que fossem baratas, com condições climáticas e de solo
que permitissem o desenvolvimento de atividades agropecuárias, de fácil
aquisição, que tivessem algum acesso mínimo de estradas, que permitissem
a constituição de redes sociais (familiares, parentesco ou conterrâneos) e,
sobretudo, que tivessem, devido a estes e outros fatores, expectativas de
desenvolvimento econômico, cujas referências mais mensuráveis e simbó-
licas são baseadas nos preceitos da modernização e urbanização.
O local “bom para comprar terra” muda de acordo com cada momen-
to histórico de ocupação, colonização e constituição de cidades rumo ao
Oeste brasileiro. Assim, nas décadas de 50 e 60, o lugar “bom” eram os
municípios do Sudoeste e Oeste do Paraná; no início da década de 70 há
um direcionamento para a parte Oriental do Paraguai; depois, entre 75 a
80, segue rumo para as áreas de colonização em Rondônia, Goiás, Mato
Grosso, mais ao sul de cada um destes estados (RIPPEL, 2005). Há neste
meio ainda os projetos de ocupação na região da Transamazônica no
Pará, e assim por diante. Este movimento de compra de terras por colo-
nos do Sul chega às décadas de 90 e atual tendo como principal caminho
os projetos de assentamento de Reforma Agrária desencadeados nos go-
vernos FHC e Lula no Norte do Mato Grosso, Tocantins, Sul dos estados
do Maranhão, Piauí e Pará e ainda o Oeste baiano (LEITE; MEDEIROS,
2004).

148 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


O desejo de “crescer”, segundo a percepção dos colonos do Sul, só é
realizado pelo esforço desprendido por cada uma das famílias que vão
ocupar determinada região e que geram uma força coletiva com o mesmo
interesse. Na medida em que isto ocorre, os migrantes afirmam: “todos
crescem juntos”. O crescimento e desenvolvimento permitirão, nesta
tônica, gerar condições para que os filhos destes migrantes possam estar
em melhores condições que as vividas na geração anterior naquele local.
Constituir cidades, vilas, ampliar as possibilidades de “crescimento”
para as famílias. Logo, muitos daqueles que num primeiro momento
migraram para ampliar a área de terra, passaram a constituir negócios e
investimentos no espaço das cidades em desenvolvimento. Vale desta-
car que esse era o desejo das empresas colonizadoras. Os projetos de
colonização privados devem ser entendidos como empreendimentos
econômicos que visavam lucro aos seus proprietários. No tocante à cons-
trução simbólica do lugar de prosperidade, a seletividade de quem vai
compor os projetos é outro fator essencial. Na medida em que há o “cha-
mamento” aos migrantes do Sul com capital financeiro e boa reputação,
isso vai gerar o interesse para que outros comprem as terras e se instalem
no local. Em cada etapa do desenvolvimento destes projetos, desde a
constituição inicial da venda das parcelas da gleba, até a venda dos lotes
urbanos na constituição das cidades, a colonizadora ganha e barganha.
A reprodução familiar também tem este mesmo sentido – “para fora”
– quando pensada no caso dos filhos, cuja trajetória segue o “estudo”,
a busca por trabalho e a vida no meio urbano. Da mesma forma, os
recursos financeiros acumulados e o esforço desprendido pelo conjunto
da unidade familiar podem ser empregados para “formar” e/ou “colocar”
os filhos no meio urbano, nas cidades em expansão do Norte do Mato
Grosso. Este apoio vai desde recursos para custear os estudos, auxílios
para moradia na cidade, até ajuda para compra de terrenos, construção de
casas e casamento.
No processo migratório dos municípios do Sul para as regiões do
Mato Grosso e outros estados do Centro-Oeste, nas décadas de 90 e atual,
há um fluxo de pessoas cujo local de destino e inserção produtiva passa
a ser o espaço urbano, no setor agroindustrial e de serviços, e não mais o
meio rural como agricultores/proprietários. Nesta década ganha destaque
o processo de urbanização nesta microrregião, o que indica um número
maior de migrantes buscando inserção (trabalho e residência) diretamente
nos espaços urbanos das cidades que margeiam a BR-163 (CUNHA et
al., 2004). As cidades em expansão na região Norte do Mato Grosso são
os locais para onde se voltam os movimentos migratórios de jovens filhos
de colonos do Sul, tanto os migrados diretamente das regiões de origem,
quanto os filhos daqueles que são agricultores/proprietários ou peões no
próprio Mato Grosso.

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 149
Considerações finais

A análise realizada neste artigo indicou primeiramente que a insufi-


ciência de terras na região Sul foi fator que gerou a dimensão de crise e
tencionou muitas famílias para a migração. Este fator, além da questão da
herança, esteve vinculado a sistemas produtivos adotados na região Sul
do Brasil, que desde a década de 70 já utilizava os preceitos da moder-
nização agrícola.
Neste contexto, o Cerrado do Mato Grosso foi entendido como lugar
de terras baratas, o que permitia aos colonos do Sul ampliar a quan-
tidade de terras. O imaginário social sobre o Cerrado Brasileiro – o
local dos grandes “chapadões” – foi compreendido como “espaço para
crescer”, onde seria possível desenvolver atividades agrícolas baseadas
nos preceitos da modernização agrícola e paralelamente participar da
construção coletiva deste espaço social que se desdobraria na formação de
cidades em algumas décadas.
No que tange à luta por terra no Mato Grosso, agregou-se o sentido de
compreendê-la, também, como mecanismo de acumulação: a valorização
destas terras. Este elemento apresenta uma contradição, pois, ao mesmo
tempo em que possibilita a uma família um abrupto crescimento no valor
de seu patrimônio, de outra parte é a terra com alto valor de mercado e/ou
sua facilidade de se transformar em ativo financeiro um dos aspectos que
tenciona a concentração da terra e inviabiliza, em curto período de tempo,
a possibilidade de permanência no lote ou sítio por parte das famílias que
possuem menor capital (“recurso”). Neste caminho, os colonos do Sul
continuam a voltar o olhar para municípios e microrregiões localizadas
“mais à frente”. Os atores sociais pesquisados percebem este movimento
que poderia ser considerado cíclico e de curta duração. Neste sentido,
avaliam constantemente o “momento certo e o lugar certo” na fronteira,
ou seja, para onde poderia ser mais oportuna a migração diante das
suas condições econômicas, sociais e culturais, o “estar”, o que implica
decisão entre as possibilidades de permanecer ou migrar. Não alcançada
a mobilidade social desejada, isto tende a culminar por parte dos “pe-
quenos” em uma avaliação permanente entre migrar ou permanecer, confir-
mando a condição de provisoriedade como sinônimo de condição dos
migrantes (SAYAD, 1998).
Os assentamentos rurais, as chácaras, as fazendas e as cidades e vilas
em formação foram os espaços onde em geral as trajetórias perpassaram.
Paralelamente, nestes locais as famílias alternaram períodos de suas
vidas desempenhando o trabalho agrícola – de peão, além da condição de
proprietários rurais em chácaras e assentamentos. Vale destacar que todas
estas funções desempenhadas pelas famílias visam à acumulação de patri-
mônio a fim de reproduzir o grupo familiar.

150 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


Apontou-se que a centralidade da reprodução familiar dos colonos
do Sul, na condição de viabilizar com que algum dos filhos assuma a
condição de futuro agricultor/proprietário, aparece voltada “para fora”
da colônia inicial. Muda o sentido da migração – não se trata apenas de
um movimento daqueles “não escolhidos para ficar na colônia” a fim de
manter sua totalidade, indivisibilidade, além da gestão e propriedade
para um sucessor. A compra de terras no Mato Grosso e a relação com
migração passaram a significar uma condição para efetivar a reprodução
geracional do(s) próprio(s) sucessor(es) de muitos colonos do Sul do
Brasil.
Na medida em que um dos filhos assume o novo estabelecimento,
há forte tendência de arrendamento ou venda do lote que ficou no Sul.
Em outras palavras, a família criou condições para que um ou mais filhos
fossem agricultores, mas isso ocorreu em outro estado: no Mato Grosso.
Desta forma, talvez diferente do que ocorria entre as colônias velhas e
novas do Rio Grande do Sul, em que um filho permanecia na colônia e os
demais partiam para as novas terras, a tendência mais recente é o forta-
lecimento de uma nova unidade familiar no Mato Grosso. Em termos
do debate sobre sucessão, há uma crise estabelecida por não haver um
filho que ficará com a colônia inicial e, desta forma, com o tempo ela
desaparecerá. Paralelamente a isso, as riquezas acumuladas através traba-
lho nas colônias do Sul do Brasil ajudaram a estruturar a (re)ocupação
da fronteira no Mato Grosso. Isso acompanhou o processo histórico
de deslocamento de famílias de agricultores e a formação de unidades
familiares (e ou mesmo grandes fazendas) no novo espaço. Perdem, neste
sentido, os pequenos municípios, as comunidades das colônias.
Os deslocamentos de famílias ou de seus membros compõem a histó-
ria da formação dos grupos de camponeses das várias regiões do Brasil,
como estratégia de reprodução social inscrita em meio a processos de
expropriação dos setores dominantes da sociedade. Desta forma, esta
história é desregulada, é migrante, é itinerante, o deslocamento do pos-
seiro e do pequeno proprietário é determinado pelo avanço do capital
sobre a terra (MARTINS, 1981). Da mesma forma, as avaliações sobre os
deslocamentos e a decisão de se continuar rumando em direção a novas
áreas, de permanecer ou de retornar, fazem parte do cotidiano dessas
populações.

A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 151
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152 História do Campesinato na Fronteira Sul • Cristiano Desconsi


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A busca pela terra e a migração dos colonos do Sul para o Mato Grosso 153
8
Os colonos judeus no Brasil

Isabel Rosa Gritti

O s imigrantes judeus que se dirigiram ao Brasil no início do século


XX o fizeram movidos pelo desejo de construírem na nova pátria uma
existência livre de discriminações e preconceitos. Aqui, como ocorre com
os demais grupos étnicos, eles são desejados, porque necessários. A polí-
tica imigratória implementada pelo governo brasileiro tem como objetivo
atrair imigrantes dispostos ao trabalho agrícola, quer seja como trabalha-
dores assalariados, ou como pequenos proprietários.
No contexto da corrente imigratória europeia dos séculos XIX e XX,
os imigrantes judeus são os últimos a se estabelecerem no Brasil. Chegam
mais tardiamente que alemães, italianos e poloneses aqui instalados e
dedicados ao cultivo da terra. Os imigrantes judeus vindos para o Brasil
como trabalhadores agrícolas são assentados no Rio Grande do Sul em
duas colônias, a de Filipson e a de Quatro Irmãos, objetos de nosso estu-
do, neste texto, realizado a partir da análise da correspondência da Jewish
Colonization Association, companhia responsável pela vinda dos imigrantes
judeus ao Brasil. Esta correspondência encontra-se no Arquivo Histórico
Judaico Brasileiro de São Paulo.
A presença de judeus no Brasil é antiga. Estavam presentes ainda no
Brasil Colônia, eram os cristãos-novos, judeus convertidos compulsoria-
mente ao catolicismo para fugirem da inquisição. Porém, é no início do
século XX que a presença dos mesmos se torna numericamente significa-
tiva, precisamente a partir de 1904. Neste ano são assentados na Colônia
Agrícola de Filipson, no então município de Santa Maria, no Rio Grande
do Sul.
Os dados abaixo apresentados, fornecidos por Jeff Lesser, indicam
que, no final do século XIX, período em que a imigração europeia para o

154 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


Brasil foi mais intensa, a imigração judaica foi pouco significativa, tendo
crescido numericamente após a Primeira Guerra Mundial.

Tabela 1 – Imigração judaica e geral para o Brasil, 1881-1930

População População Imigração judaica


Ano %
total judaica mundial (%)
1881-1900 1.654.101 1.000 0,06 0,1
1901-1914 1.252.678 8.750 0,70 0,5
1915-1920 189.417 2.000 1,06 2,2
1921-1925 386.631 7.139 1,85 1,7
1926-1930 453.584 22.296 4,92 12,9
1931-1935 180.652 13.075 7,24 5,5
Fonte: LESSER, 1989, p. 91.

1 A Jewish Colonization Association e a imigração judaica para o Brasil

A vinda dos israelitas ao Brasil esteve diretamente ligada à ação da


Jewish Colonization Association, mais conhecida como ICA, companhia colo-
nizadora criada com o propósito de retirar os judeus do Leste Europeu e
assentá-los em países onde pudessem viver tranquilamente. Naquele mo-
mento a situação mais difícil era a dos judeus russos, vítimas de violentas
perseguições e agressões, conhecidas como pogroms. A Jewish Colonization
Association foi fundada em 1891 pelo barão Maurice de Hirsch e outros
importantes líderes judeus. Pela disponibilidade de capitais e pelas ações
por ela desenvolvidas ao longo do tempo, constituiu-se na mais impor-
tante e poderosa das companhias colonizadoras.
A ação e a presença da ICA no Brasil não diferem das demais compa-
nhias de imigração e colonização. A presença das mesmas se torna pos-
sível uma vez que, em 1882, o “governo autorizou a venda de terras
públicas aos particulares que se comprometessem a colonizá-las. Essa lei
provocou a tomada de posse, por particulares, de imensas regiões que
foram em seguida, vendidas aos imigrantes por um preço quatro vezes
maior” (MANFROI, 1975, p. 21-22).
A Jewish Colonization Association iniciou sua longa trajetória de ativi-
dades no Brasil e, mais especificamente, no Rio Grande do Sul, no ano
de 1902. Nesse ano comprou sua primeira propriedade no estado. Uma
área de 4.472 hectares, posteriormente ampliada para 5.500 hectares, em
Pinhal, no município de Santa Maria.
Esse primeiro núcleo judaico no Rio Grande do Sul foi denominado
de Filipson, em homenagem ao então vice-presidente da ICA e presidente

Os colonos judeus no Brasil 155


da Compagnie Auxiliare de Chemins du Fer au Brésil, empresa belga arren-
datária, na época, da rede da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
Em 1904, a ICA deu início à sua atividade de colonização. Inicialmente
instalou em Filipson 37 famílias judias, num total de 267 pessoas vindas
da Bessarábia, em lotes de 25 hectares de terra de campo e de mato. Além
disso, quando de sua chegada, os imigrantes receberam uma casa para
moradia, instrumentos de trabalho agrícola, duas juntas de bois, duas
vacas, um cavalo e, enquanto não pudessem viver do produto das colhei-
tas, a ICA lhes dava um suprimento em dinheiro, variável de acordo com
o número de pessoas da família (BACK, 1958, p. 275).
Muitos dos imigrantes israelitas que foram estabelecidos em Filipson
não tinham conhecimento do trabalho agrícola. Além disso, o terreno que
lhes fora destinado para ser cultivado era constituído de áreas de campo.
Esses terrenos, devido à sua pouca fertilidade, eram inadequados, na épo-
ca, ao cultivo agrícola. Desta forma, as colheitas revelavam-se cada vez
mais desanimadoras e a tão esperada prosperidade da Colônia Filipson não
aconteceu. Gradativamente, os colonos judeus ali instalados foram abando-
nando a Colônia e, em 1909, a mesma estava praticamente despovoada.
Os problemas vivenciados pelos israelitas instalados na Colônia
Filipson também vão ocorrer na Colônia Agrícola de Quatro Irmãos. A
Colônia Quatro Irmãos será a mais importante colônia agrícola da Jewish
Colonization Association no Brasil, pela intensidade das atividades ali
desenvolvidas e pelo tempo de atuação da mesma. Durante o tempo em
que permaneceu em Quatro Irmãos, de 1909 a 1962, a atividade domi-
nante será a da exploração florestal e a posterior venda dos terrenos.
Diante da necessidade de iniciar a colonização da Fazenda Quatro
Irmãos com elementos conhecedores da atividade agrícola, com o propó-
sito de evitar a repetição dos problemas vivenciados na Colônia Agrícola
de Filipson, a ICA decidiu que o primeiro grupo a ser instalado seria
composto por imigrantes estabelecidos em suas colônias argentinas,
detentores de uma certa experiência agrícola. Porém, os imigrantes esta-
belecidos nas colônias argentinas manifestaram-se desinteressados por
uma nova migração. Argumentaram não estarem dispostos a enfrentar
novos sacrifícios e aprendizagens num novo país. Mas o fator mais impor-
tante para a recusa de um novo processo migratório foram as notícias
pouco alentadoras que receberam do Brasil, o que fez com que tivessem
pouca confiança de alcançar uma situação de satisfação tão boa quanto a
de seus companheiros da Argentina.
Diante da dificuldade de obter imigrantes judeus na Argentina, a ICA
voltou-se para a Rússia, “onde há tantos infelizes que nada exigem a não
ser serem salvos das perseguições de que são vítimas” (GRITTI, 1997, p.
41). Desta forma, 33 colonizadores argentinos chegam a Quatro Irmãos
em 1912, precedidos por 60 famílias vindas da Bessarábia. Quando os

156 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


primeiros imigrantes começaram a chegar à Colônia Quatro Irmãos, as
casas não estavam prontas, e eles foram instalados em pousadas. Em 1913,
um segundo grupo de imigrantes oriundo novamente da Bessarábia, num
total de 43 famílias, chega a Quatro Irmãos, e agora os problemas caracte-
rizam-se pelo excesso populacional, uma vez que a Jewish Colonization
Association programou-se para a instalação inicial de um número aproxima-
do de 50 famílias. A avaliação da administração local da Jewish Colonization
Association foi de que, naquele momento, a Colônia contava com 300 famílias.
A afluência do elevado número de imigrantes que chegaram nos pri-
meiros anos da colonização de Quatro Irmãos deveu-se a uma forte pro-
paganda feita na Rússia pelos agentes das companhias colonizadoras, em
favor da imigração para o Brasil. A ICA não foi exceção. Marcos Iolovitch
conta que
numa clara manhã de abril de 19.., quando a estepe começara a
reverdecer à entrada alegre da primavera, apareceram espalhados, em
Zagradowka, pequena e risonha aldeia russa da província de Kersan,
lindíssimos prospectos, com ilustrações coloridas, descrevendo a excelên-
cia do clima, a fertilidade da terra, a riqueza e a variedade da fauna, a
beleza e exuberância da flora, dum vasto e longínquo país da América
denominado Brasil – onde uma empresa colonizadora israelita, intitulada
Jewish Colonization Association, mais conhecida por ICA, proprietária
duma grande área de terras, duma fazenda chamada Quatro Irmãos,
situada no município de Boa Vista do Erechim, estado do Rio Grande do
Sul, oferecia colônias, mediante vantajosas propostas, a quem se quisesse
tornar lavrador (IOLOVITCH, 1987, p. 9).

2 A colonização da Fazenda Quatro Irmãos

O sonho de “fazer a América” também foi um dos responsáveis pela


vinda dos imigrantes israelitas para Quatro Irmãos, os quais, já em 1913,
deram-se conta de que foram vítimas de agentes inescrupulosos. Em
1917, a corrente imigratória sofria uma estagnação quase total, enquanto
o abandono da Colônia era constante. Como medida emergencial, a Jewish
Colonization Association auxiliou financeiramente os imigrantes para que
procurassem outras áreas agrícolas ou se dispersassem pelas cidades do
Sul do país, ou mesmo retornassem ao continente europeu. Além disso,
outra alternativa considerada foi a da utilização dos imigrantes na cons-
trução do ramal férreo de propriedade da companhia, iniciado em 1912
e entregue ao tráfego em 1917, num total de 19 km, que propiciaria a
ligação da sede da Fazenda Quatro Irmãos à linha da Viação Férrea do
Rio Grande do Sul. Por este ramal seria transportada toda a madeira
extraída pela ICA na Fazenda.

Os colonos judeus no Brasil 157


A ocupação dos 93.885 hectares da Fazenda Quatro Irmãos, de pro-
priedade da ICA, por imigrantes israelitas revelou-se problemática duran-
te todo o período de atuação da mesma junto à Fazenda, isto é, de 1911,
quando deu início ao assentamento dos imigrantes por ela agenciados,
até 1962, ano em que encerrou definitivamente suas atividades em Quatro
Irmãos.
Como toda companhia colonizadora, a ICA
antes de receber os imigrantes, prepara-lhes os lotes coloniais construin-
do moradias, hortas, roças, etc. de modo a facilitar-lhe o trabalho no
período inicial de adaptação e mediante inventários, fornece-lhes fer-
ramentas agrícolas, animais e tudo o mais que é necessário para a agri-
cultura. Isto feito, a Associação lavra com os colonos contratos de
Promessa de Compra e Venda sobre os lotes por eles ocupados (BACK,
1958, p. 275).
Manter os colonos ligados à terra foi uma preocupação constante
dos administradores da companhia, por isso ela estabeleceu prazos
longos para que os colonos saldassem suas dívidas, além de não aceitar o
pagamento antecipado das anuidades correspondentes à dívida contraída
pela compra do terreno. Porém, verificou-se que a mesma preocupação
não existiu em relação às condições concretas oferecidas para o desempe-
nho da atividade agrícola.
Em se tratando de uma colonização agrícola levada a efeito por uma
companhia que possuía um “famoso staff de especialistas”, acredita-se
que a atividade agrícola deveria ser priorizada através de um projeto de
exploração racional e remunerada. Porém, o que se verificou foi uma su-
cessão de experimentos improdutivos. Ao já problemático início da ativi-
dade de colonização de Quatro Irmãos, juntou-se o descuido da ICA
na orientação técnica que deveria ser dada aos colonos, uma vez que as
condições de trabalho agrícola no Brasil diferiam daquelas conhecidas na
Europa.
A falta de orientação técnica aos colonos israelitas e o consequente e
constante insucesso agrícola devem ser atribuídos a pouca atenção que
a Jewish Colonization Association dispensava ao trabalho agrícola. Assim
é que, durante os dez primeiros anos de sua atividade colonizadora em
Quatro Irmãos, não contava a Colônia com elementos conhecedores da
atividade agrícola em seus quadros administrativos. Mesmo a presença de
um engenheiro agrônomo na Direção Local, a partir de 1922, não contri-
buiu para que a orientação técnica aos colonos fosse aprimorada, uma vez
que o mesmo ocupou-se tão somente das questões administrativas.

158 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


Figura 1 – Mapa de Quatro Irmãos.
Fonte: Arquivo Histórico Judaíco-Brasileiro de São Paulo.

Os colonos judeus no Brasil 159


Em 1915, a companhia constatou a impossibilidade do aumento da
produção agrícola sem a recuperação do solo, uma vez que os colonos
israelitas foram instalados em terras de campo que se revelaram impró-
prias para a agricultura, exceto ao cultivo da mandioca e do amendoim.
Ciente das colheitas medíocres obtidas pelos colonos que, por conse-
guinte, davam aos mesmos um magro e insuficiente retorno de seu
trabalho, o que os impossibilitava de recuperar o solo pela adubação mi-
neral, propôs uma adubação orgânica, através do esterco produzido pelo
gado bovino.
Em decorrência da baixa produção obtida pelos colonos israelitas, a
ICA realizou uma série de experimentos, com o propósito de estimular
os poucos colonos judeus lá existentes. Os experimentos foram os mais
variados, do incentivo à criação bovina, ao plantio de árvores frutí-
feras, inclusive a vinha, até a instituição de prêmios aos colonos que traba-
lhassem o maior número de hectares.
Como decorrência do êxodo constante, as áreas cultivadas sofreram,
de ano para ano, uma redução sensível em sua superfície. Significativos
de tal situação foram os dados apresentados pela administração local da
Jewish Colonization Association em seu relatório para o ano de 1924.

Tabela 2 – Hectares de terra ocupados e cultivados


pelos colonos judeus da Fazenda Quatro Irmãos, 1911-1924

Nº Superfície ocupada Total Não


Ano Cultivadas
colonos por colono de terras cultivadas
1911-1912 32 65 2080 41 2039
1912-1913 63 65 4095 62 4033
1913-1914 73 65 4745 38 4707
1914-1915 72 65 4680 809 3871
1915-1916 84 140 11760 783 10977
1916-1917 91 140 12740 434 12306
1917-1918 81 140 11340 380 10960
1918-1919 67 140 9380 571 8809
1919-1920 72 140 10080 214 9866
1920-1921 72 140 10080 391 9689
1921-1922 65 140 9100 280 8820
1922-1923 55 140 7700 207 7493
1923-1924 43 140 6020 129 5891
13 anos 870 1520 103800 4339 99461
Fonte: De Quatro Irmãos para Paris: 2º Rapport sur Quatros Irmãos, em 1 de novembro de 1924, p. 7, Cx. 33,
M. 2, AHJB-SP.

160 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


Pelos dados acima apresentados, o colono trabalhava apenas 4%
da superfície total de seu lote. Revelaram-se, desta forma, ineficazes as
precauções tomadas pela ICA a fim de assegurar-se da aptidão do imi-
grante para o trabalho agrícola, instalando-o primeiramente como loca-
tário por um período de três anos. Somente pagou com pontualidade
suas anuidades e demonstrou aptidão para o trabalho agrícola após este
período de estágio, pois o locatário recebia um Contrato de Promessa
de Venda. Ainda como garantia para que o colono cultivasse seu lote, o
Contrato de Promessa de Compra e Venda estabelecia que se dentro de
dois anos, a contar da data do contrato, o colono não tivesse feito nenhum
cultivo nos imóveis, o contrato seria rescindido.
O cultivo de uma superfície extremamente reduzida pode ser mais
bem compreendido se considerarmos que o colono israelita dedicava-
-se mais à pecuária que ao trabalho agrícola, o que não era inteiramente
do agrado da ICA, que não desejava a predominância da pecuária, mas
a busca, pelo colono, na pecuária, especialmente a bovina, de um rendi-
mento suplementar ao proporcionado pela atividade agrícola. A maior
dedicação dispensada à pecuária não se fazia acompanhar de rendi-
mentos maiores, uma vez que a criação era feita de forma extensiva, utili-
zando três hectares de pastagem por cabeça. Em 1924, a administração
local da companhia concluía que o benefício obtido da pecuária era fictício,
pois o colono não considerava os gastos de manutenção e de pastagem.
Considerando-se a utilização de três hectares de pastagem por cabeça
e tendo o colono, em média, com os cavalos, 50 cabeças de gado e 130
hectares de terreno, é perfeitamente compreensível que a maior parte
do lote fosse destinada à pecuária e não ao cultivo. Em relação à posse
do gado, Chwartzman diz: “Os animais fornecidos aos colonos pela ICA
eram marcados com a sua marca, e o colono era responsável pelo animal
até o reembolso do seu valor. O colono que quisesse vender o animal
deveria pagar á ICA o seu custo ou marcar outro animal em seu lugar,
como garantia do custo do outro. Também quando morria um animal,
era marcado outro no seu lugar. Os colonos que permaneceram na sua
colônia procuravam pagar o valor dos animais para poder dispor deles
livremente” (CHWARTZMAN, 1989, p. 6).
Analisando-se os contratos realizados com os colonos israelitas,
verifica-se que modificações eram constantemente introduzidas nos mes-
mos, não apenas com o objetivo de prender o colono à terra, mas, princi-
palmente, de assegurar para a companhia o controle da propriedade.
Nesse sentido, além da cláusula de retrovenda constante no Contrato de
Promessa de Compra e Venda, estabelecia a companhia que o colono só se
tornaria proprietário quando tivesse pago integralmente a dívida referida
no contrato e mais qualquer outra obrigação anterior ou posterior à sua
assinatura, contraída por qualquer motivo.

Os colonos judeus no Brasil 161


O Contrato de Promessa de Venda assegurava à ICA o ressarcimento
de todo e qualquer auxílio prestado ao colono. A dívida do mesmo para
com a companhia não advinha unicamente da compra do terreno, mas
também, e principalmente, do inventário, isto é, dos gastos realizados
com a construção da casa, a compra dos animais e das ferramentas agrí-
colas, bem como os gastos da viagem para o Brasil e dos subsídios aqui
recebidos. Pela cláusula número nove do referido contrato, a preferência
de pagamento é dada a toda dívida direta ou indiretamente contraída fora
do presente contrato.
Nas dívidas indiretamente contraídas com a companhia, foram incluí-
dos os empréstimos feitos pelos colonos junto à Sociedade Cooperativa
Mútua – que existiu durante um curto espaço de tempo, de 1917 até
1923. Uma parte do capital necessário para a constituição da Sociedade
Cooperativa foi emprestado pela ICA. Por isso, os colonos que se benefi-
ciaram dos auxílios concedidos pela cooperativa através de sua caixa de
empréstimos eram devedores da Jewish Colonization Association.

Figura 2 – Colonos reunidos em frente da cooperativa.


Fonte: Museu Judaico de Porto Alegre / ICJMC.

162 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


Quando da efetivação do Contrato de Promessa de Compra e Venda,
posterior ao de arrendamento, em que o colono é considerado como
locatário pelo período de três anos, é estabelecido, em anexo, o Contrato
de Inventário. Ao contrário do Contrato de Promessa de Compra e Venda,
o de inventário permite o pagamento, por antecipação, de quaisquer
anuidades ou todo o seu débito, sem o abatimento dos juros por vencer
nele incluídos. Todavia, a proibição do pagamento por antecipação das
anuidades correspondentes à sua dívida-terreno não se mostrou um
instrumento eficiente, pois não foi capaz de assegurar a permanência do
colono sobre seu lote.
A determinação da ICA em manter o controle sobre o terreno do
colono continua presente em 1930, quando ela introduz novas alterações
nos contratos semelhantes aos em uso em suas colônias da Argentina.
Agora os colonos serão considerados como locatários durante os oito
primeiros anos de sua instalação, e os rendimentos do corte da madeira
realizado no lote dos colonos devem ser trazidos em conta corrente ao
crédito dos mesmos. Este procedimento garante à ICA o reembolso dos
créditos de instalação fornecidos aos colonos.
Neste seu segundo núcleo colonial no Rio Grande do Sul, repetiu
a Jewish o mesmo erro cometido em Filipson. Instalou inicialmente
os colonos em terras de campo na época impróprias para a produção
agrícola. Este fato não fugiu à observação de Lassance Cunha, 1908, para
quem tal sistema diferia totalmente dos outros núcleos coloniais, uma vez
que eram estabelecidos em áreas de mato.
A instalação dos colonos em terra de campo é admitida pela ICA, em
1924, como um dos fatores que contribuíram para o fracasso da coloni-
zação. Ação que não se repetiu em 1926/27 na instalação de dois novos
núcleos de colonização na Fazenda Quatro Irmãos, respectivamente Barão
Hirsh e Baronesa Clara. Pelo fato de o terreno de campo apresentar-se
adequado, além da criação do gado, apenas ao cultivo do amendoim e da
mandioca, a Jewish Colonization Association estimulou o plantio dos mes-
mos com o objetivo de industrializá-los. Desta forma é que ela subsidiou
a construção de uma fábrica de azeite a partir do amendoim e de atafonas
para a produção de farinha de mandioca. Contudo, em 1922, cinco anos
após sua construção, a fábrica encontrava-se desativada pela falta de
matéria-prima.
Os imigrantes que foram instalados pela ICA nos primeiros anos
da colonização judaica de Quatro Irmãos são, em sua maioria, oriundos
da Bessarábia e vieram pelo mesmo motivo que as demais correntes
imigratórias que os antecederam: povoar e colonizar as áreas despovoa-
das do território gaúcho.
A Bessarábia nos é apresentada da seguinte forma por Lesser:

Os colonos judeus no Brasil 163


Uma província no Sudeste da fronteira do Império Russo, conhecida por
suas terras férteis. Esta região havia recebido uma invasão de agricultores
judeus, em meados de 1830, quando se tornou conhecida por possuir
terras disponíveis de baixo custo, que poderiam ser obtidas livremente.
A pesquisa para os colonizadores foi centralizada na agricultura da ICA,
estação Soroki, que tinha sido estabelecida, em 1900, como um modelo
experimental de centro de horticultura e vinha, para judeus e não judeus.
Pela Soroki escolhida como base de operação, a ICA sentiu que ela teria
poucos problemas recrutando agricultores, mas, infelizmente, no século
XX, a Bessarábia estava muito mudada. Cidades haviam surgido na
região e judeus haviam mudado para áreas urbanas. Por volta de 1920,
aproximadamente, dos 225.000 judeus na região, somente 4.500 eram
agricultores; em 1931, somente 4% dos judeus da Bessarábia trabalhavam
na profissão agrícola; assim, havia somente pequena concentração para
ser recrutada (1989, p. 33-34).
A maioria dos imigrantes judeus vindos das colônias argentinas não
se encontrava em situação diferente da dos seus patrícios bessarabienses.
A ignorância em relação ao trabalho agrícola e ao trato com os animais
era comum aos dois grupos, pois na Argentina os mesmos tinham sido
peões de outros colonos judeus nas terras da ICA (BACK, 1958, p. 275).
Esta condição de empregados de outros colonos judeus é também um
claro indicativo de que a situação das colônias agrícolas argentinas estava
longe de ser considerada como satisfatória.
Referindo-se aos motivos do fracasso da colonização agrícola de
Quatro Irmãos, Chwartzman, que foi funcionário da ICA de 1943 a 1961,
diz:
A maior parte dos colonos não entendia nada de agricultura e pecuária.
Os colonos que permaneceram na colônia foram com o tempo, adaptando-
-se e aprendendo com os caboclos a desmatar alguns capões, onde a terra
era fértil e não árida, como a do campo onde, por falta de conhecimento,
foram instalados (1989, p. 37).
Apesar dos esforços da companhia em proibir a sublocação dos ter-
renos, esta prática tornou-se constante entre os colonos judeus que
abandonaram seus lotes e se estabeleceram nas cidades e vilas vizinhas.
A produção agrícola não apresentava resultados satisfatórios e a ICA
procurava justificativas, ora dizendo que a falta de dedicação aos traba-
lhos agrícolas devia-se essencialmente aos subsídios que eram distribuí-
dos aos colonos, ora à especulação por eles feita sobre o gado. Porém,
o que se constata é o desamparo cada vez maior dos colonos, apesar de
estarem sob a proteção de uma companhia filantrópica.

164 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


Figura 3 – Rua principal de Quatro Irmãos.
Fonte: Museu Judaico de Porto Alegre/ICJMC.

Significativa é a posição assumida pela Jewish Colonization Association


em relação ao desmatamento das áreas florestadas existentes no terreno
do colono. As áreas florestadas estavam sob o controle da ICA, e o corte
das mesmas dependia de sua autorização. A causa da recusa da compa-
nhia em deixar que o colono explorasse livremente a madeira existente
era o temor de que isto encorajasse os colonos a abandonarem o trabalho
agrícola para viverem, de preferência, da venda das madeiras existentes
nas florestas. A colonização problemática e deficitária, até 1923, não
impediu que a instalação de serrarias particulares, por meio de contratos
de exploração florestal com a ICA, se efetivasse. Em 1922, metade da pro-
priedade da Fazenda Quatro Irmãos estava sendo usada para explorar
madeira e erva-mate para exportação, todas transportadas sobre as linhas
da Compagnie Aauxiliaire de Chemins du Fér au Brésil. A instalação das
serrarias e a consequente exploração florestal pela ICA comprovam que
o interesse primeiro da Jewish Colonization Association na Fazenda Quatro
Irmãos era a exploração florestal e a venda dos 93.845 ha da Fazenda a
judeus e a não judeus.
Embora alguns estudiosos da imigração judaica atribuam aos movi-
mentos revolucionários de 1923 e 1930, especialmente ao primeiro, a res-
ponsabilidade maior pelo fracasso da colonização judaica de Quatro
Irmãos, discordamos destes autores, uma vez que não podemos atribuir
exclusivamente a estes fatos a responsabilidade pelo malogro ocorrido na
referida Fazenda. Sem deixar de considerar os aspectos negativos produ-

Os colonos judeus no Brasil 165


zidos pelo movimento revolucionário na Colônia Agrícola de Quatro
Irmãos, a Revolução de 1923 foi, pelo que apresentamos acima, o golpe
final neste processo de colonização.
Voloch, em seu livro O colono judeu-açu, faz a seguinte análise da
Colônia Agrícola de Quatro Irmãos, antes da Revolução de 1923:
As poucas famílias de judeus que se encontravam nas colônias casavam
as filhas que iam constituir família nas cidades próximas. Os homens
jovens também partiam para as cidades e de lá mandavam recursos para
manter os velhos e os menores. Assim encontrou a Revolução de vinte e
três, vinte e quatro, a Colônia Quatro Irmãos. É verdade que ainda havia
uma fonte de renda valiosa, a madeira. Explorada em toras, dormentes
ou tábuas. Nem todas as colônias tinham matas frondosas, mas as que
possuíam pinheiros ou troncos de lei, vendiam-nos aos engenheiros,
donos das serrarias que então floresciam exportando para o Uruguai e
Argentina, por via férrea ou por balsas no caudaloso Rio Uruguai. Mas
isso enriquecia pouco, dava pouco trabalho industrial... os colonos
estavam pobres, pois da terra não se enriquece (s.d., p. 46).

3 O repovoamento da Fazenda Quatro Irmãos

Para dar novo impulso ao povoamento da Fazenda Quatro Irmãos, a


Jewish Colonization Association criou novos núcleos populacionais dentro
do referido domínio. A vivificação da colônia agrícola dar-se-á através
da instalação de israelitas europeus em dois novos povoados, o de Barão
Hirsch e o de Baronesa Clara. Convencida de que a principal causa das
dificuldades vivenciadas na colonização de elementos israelitas deveu-
-se à pouca ou nenhuma aptidão dos mesmos para o trabalho agrícola,
a ICA preocupou-se em realizar uma seleção mais rigorosa do imigrante
a ser instalado. E para concretizar este propósito, a Jewish mandou para
a Europa um imigrante israelita que prosperou na Colônia Agrícola de
Quatro Irmãos, dedicando-se à indústria madeireira.
Levando em consideração que a instalação dos colonos em terras de
campo frustrou a expectativa inicial, a companhia organizou a instalação
dos dois novos grupos populacionais exclusivamente em terras de mato,
mais adequadas para a produção agrícola, devido à sua fertilidade.
Outra providência tomada para que a atividade de colonização destes
dois novos núcleos apresentasse resultados positivos foi a de instalar os
colonos próximos uns dos outros e na menor distância possível dos seus
lotes. Construindo as habitações dos colonos próximas umas das outras,
formando assim pequenos povoados, não queria a ICA incorrer no erro
cometido anteriormente, ou seja, o de ter instalado os colonos distantes
uns dos outros, contribuindo, desta forma, para o desalento dos mesmos,

166 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


pois se sentiam e se encontravam isolados. Consequentemente, os serviços
comunais (escola, sinagoga, hospital) não podiam funcionar para um
pequeno número de habitantes.
Os imigrantes poloneses e lituanos selecionados pela Jewish Colonization
Association e destinados a povoar Barão Hirsch, chegam a Quatro Irmãos
em dois grupos. O primeiro deles chegou em junho de 1926, e o segundo,
grupo menor, chegou em setembro deste mesmo ano. O número total de
famílias vindas da Polônia e da Lituânia assentadas em Barão Hirsch é de
trinta e três.
Em 1927, as trinta e cinco famílias europeias, escolhidas como o grupo
anterior, na Polônia e na Lituânia, formaram o grupo Baronesa Clara,
em homenagem à esposa do barão Mauricio de Hirsch. O grupo Baro-
nesa Clara localizou-se próximo ao ramal férreo Quatro Irmãos/Erebango.
Antes da instalação dos imigrantes poloneses e lituanos, o local era
conhecido como Chalet. A proximidade do ramal férreo permitiu que os
colonos do grupo Baronesa Clara vendessem madeira à Viação Férrea
do Rio Grande do Sul, que ela utilizava como combustível. A venda da
madeira à Viação Férrea proporcionou aos mesmos uma renda suple-
mentar àquela do trabalho agrícola.
O rendimento obtido com as vendas foi elemento importante na
estabilização inicial do grupo. Processo inverso deu-se com os israelitas
de Barão Hirsch, que não dispunham de nenhuma renda, senão aquela
decorrente do cultivo da terra. Decepcionados, logo abandonaram Barão
Hirsch. Além de se localizarem distantes do ramal férreo, os lotes dos
colonos se apresentavam fragmentados, uma vez que as casas dos mes-
mos foram construídas sobre áreas de cinco hectares, conhecidas como
quintas, distantes dois a três quilômetros do restante do seu lote, o mesmo
acontecendo com o campo. O mais próximo encontrava-se a uma dis-
tância de cinco quilômetros.
Enfaticamente, a companhia afirmava que o desempenho dos grupos
Barão Hirsch e Baronesa Clara seria elemento fundamental para a
definição do rumo a ser dado à sua obra de colonização. Entretanto, esta
importância não foi além da intenção, pois a concretização do discurso
revelou-se extremamente deficitária. A estabilização dos grupos apresen-
tou-se problemática desde o início, quando não inexistente, como foi o
caso de Barão Hirsch.
Além de todos os problemas acima discutidos no processo de ins-
talação dos imigrantes judeus na Colônia Agrícola de Quatro Irmãos,
outra questão preocupava seriamente os colonos ainda lá existentes: a
dívida para com a Jewish Colonization Association. Dívida esta totalmente
desconhecida pelo colono. A ignorância em relação à sua situação frente
à companhia contribuiu de forma significativa para que o desânimo entre
os imigrantes instalados se acentuasse.

Os colonos judeus no Brasil 167


Figura 4 – Escola de Baronesa Clara.
Fonte: Museu Judaico de Porto Alegre/ICJMC.

Leitchic, diretor da ICA no Brasil, conclui seu relatório de 1932,


dizendo:
O fato de entregar os contratos a certos colonos poderá somente provocar
a aplicação e o esforço necessários nos outros colonos que querem tam-
bém ter seus contratos e saber para qual objetivo, afinal, e para quais
fins eles se encontram e trabalham sobre suas colônias; pois os colonos
sabem muito bem que, não sendo possuidores dos contratos, não podem
pagar suas anuidades, e em consequência, eles não podem considerar-se
como futuros proprietários, ao contrário, eles encontrar-se-ão sempre sob
a ameaça de uma expulsão eventual e diante de uma possibilidade da
perda de todos seus esforços e do tempo passado em Quatro Irmãos.
A Jewish Colonization Association cogitou, em 1931, liquidar sua obra no
Brasil, considerando, inclusive, a transferência dos colonos israelitas de
Quatro Irmãos para a Argentina. Porém, logo retifica sua posição, argu-
mentando que isto seria reconhecer o fracasso de toda a atividade iniciada
há quase vinte anos em Quatro Irmãos. Além disso, o “efeito desastroso
que provocaria esta medida em todos os meios judaicos teria uma reper-

168 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


cussão que conduziria a entraves o nosso trabalho em todas as nossas
outras obras de colonização”.
Entretanto, o principal argumento para que a ICA mantenha e conso-
lide seus estabelecimentos
é o resultado indireto que temos realizado e realizamos ainda. Referimo-
-nos à imigração brasileira que se encontra largamente facilitada e
encorajada por nossas obras de colonização. Pensamos que o Brasil
permanecerá no futuro um dos principais países de imigração do Novo
Mundo. O conselho lembrar-se-á, aliás, do número imponente de imi-
grantes que, até estes últimos anos e diante da crise atual, puderam,
graças ao concurso da HICEM1 entrar e ser colocado nas aglomerações
urbanas do Brasil. Nos tempos atuais, onde tantos países se fecham à
imigração judia, seria de temer que a liquidação definitiva de nossa
colonização brasileira não trouxesse um corte fatal a toda imigração judia
ao Brasil, e é fundamental sublinhar as consequências deploráveis de
semelhante perspectiva (ICA, 1931, p. 33).
A decisão da ICA de suspender a colonização de imigrantes israelitas
em 1931 não interferiu na corrente imigratória dirigida ao Brasil, uma vez
que, desde 1921, a companhia decidiu que sua atividade prioritária seria a
de auxiliar a entrada de judeus no país e não mais a de colonizar. A Tabela
3 nos mostra o número extremamente reduzido de imigrantes judeus ins-
talados em colônias agrícolas no Brasil até 1930, ano em que encerra sua
atividade de colonização agrícola nos 93.885 hectares da Fazenda Quatro
Irmãos.
Embora, a partir de 1930, a entrada de imigrantes judeus no Brasil
sofresse limitações com a adoção por parte do governo federal de uma
política imigratória restritiva, a resolução da ICA de não mais dedicar-se
à atividade de colonização de imigrantes israelitas não foi em decorrência
deste movimento revolucionário, mas deveu-se tão somente ao fato de a
atividade de colonização com imigrantes judeus ter-se apresentado, até
o momento, deficitária. Concomitante ao êxodo israelita ocorria, espe-
cialmente a partir de 1921, o afluxo de não israelitas à Fazenda.
Pelo que apresentamos no texto, concluímos que a causa principal
do fracasso ocorrido com a colonização judaica de Quatro Irmãos deveu-
-se ao abandono dos israelitas à sua própria sorte. Apesar de propalar
seus objetivos eminentemente humanitários, o comportamento da ICA
frente aos colonos israelitas por ela instalados em suas colônias agrícolas
no Rio Grande do Sul não diferiu da ação das demais companhias de

1
Três sociedades filantrópicas: HIAS – Hebrew Immigration Aid Society de Nova York;
ICA – Jewish Colonization Association de Paris e Londres; e, durante algum tempo,
EMIGDIREKT – Emigrations Direktion de Berlim; formaram em conjunto a HICEM para
ajudar os judeus em sua emigração da Europa para diversos países.

Os colonos judeus no Brasil 169


colonização que viam na atividade de imigração e colonização uma
forma de obter altos rendimentos. De 1930, ano em que encerra sua
atividade de assentamento de imigrantes judeus, até 1962, ano em que
a Jewish Colonization Association encerra suas atividades na Fazenda
Quatro Irmãos, a companhia dedicou-se à venda dos 93.985 hectares e à
exploração florestal da mesma, causa primeira da compra da Fazenda e
motivo dos elevados lucros auferidos por ela no Brasil. A transcrição do
documento abaixo comprova que o objetivo primeiro da ICA na Fazenda
Quatro Irmãos foi a exploração florestal.

Tabela 3 – Colonos israelitas instalados no Brasil


pela Jewish Colonization Association de 1904 a 1930

Quatro Irmãos Filipson


Colonos instalados Colonos Instalados
1912 73 1904 38
1913 120 1907 1
1914 101 1908 2
1915 3 1909 12
1916 9 1910 4
1917 10 1911 7
1918 3 1912 20
1919 4 1913 7
1920 2 1914 6
1921 – 1925 7
1922 – Total 104
1923 –    
1924 –    
1925 2    
1926 45    
1927 63    
1928 12    
1929 6    
1930 1    
Total 454  
Fonte: Correspondência de Quatro Irmãos para Paris, de 20 de março de 1931, n. 1118, Cx 12, M 3, AHJB-SP.

Apoiando o pedido da Legião da Boa Vontade, que solicitava à Jewish


Colonization Association a doação de um prédio e de uma pequena área

170 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isabel Rosa Gritti


de terra para a instalação, em Quatro Irmãos, de um estabelecimento de
recuperação de menores, o diretor de Quatro Irmãos argumentava, em
1962, que
à mercê de um pugilo de homens desprendidos e abnegados, a nossa
Associação, colaborando nessa ideia, estaria concluindo com chave
de ouro as suas atividades de longos anos em Quatro Irmãos. Apesar
de nossa inglória tarefa de colonização, é lamentável e inegável que o
povoado de Quatro Irmãos, depois que foram concluídas as atividades
de exploração de pinheiros que existiam na nossa Fazenda, tornou-se
uma vila de atividade inexpressiva e um aglomerado de gente humilde e
sem trabalho, onde impera a absoluta miséria. Uma infância abandonada
e faminta prolifera nas ruas semidesertas do povoado. Os adultos
vivem de pequenos expedientes, sem encontrar trabalho fixo. Quatro
Irmãos, não é hoje nem sombra daquele povoado promissor de 8 ou 10
anos atrás, quando as atividades extrativas de madeira proporcionavam
trabalho a dezenas de famílias. Não deixa, pois, de ser elogiável e, sobre
todos os pontos de vista, digna, essa idealização de amparo aos mais
desprotegidos da sorte (GRITTI, 1997, p. 150).

Referências
BACK, Leon. Imigração judaica no Rio Grande do Sul. In: BECKER, Klaus (Org.).
Enciclopédia riograndense. Canoas: Regional, 1958. v. 5.
CHWARTZMAN, Samuel. Dossiê. Acervo do Departamento de Memória, Instituto
Cultural Judaico Marc Chagall, Porto Alegre, 1089.
CUNHA, Ernesto Antonio Lassance. O Rio Grande do Sul: contribuição para o estudo de suas
condições econômicas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908.
GRITTI, Isabel Rosa. Imigração judaica no Rio Grande do Sul: a Jewish Colonization
Association e a colonização de Quatro Irmãos. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997.
IOLOVITCH, Marcos. Numa clara manhã de abril. 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 1987.
LESSER, Jeff. Pawns of the powerful: jewish immigration to Brazil,1904-1945. New York:
New York University, 1989.
MANFROI, Olivio. A colonização italiana no Rio Grande do Sul: implicações econômicas,
políticas e culturais. Porto Alegre: Grafosul/IEL, 1975.
VOLOCH, Adão. O colono judeu-açu – o romance da colônia Quatro Irmãos – RS. São
Paulo: Novos Rumos, s.d.

Os colonos judeus no Brasil 171


9
Campesinato negro
nas matas do Rio Grande do Sul

Marcio Antônio Both da Silva

O s assuntos que serão abordados ao longo deste artigo dizem respeito


ao campesinato negro e sua participação no processo de povoamento das
terras situadas no Norte/Noroeste do Rio Grande do Sul no período que
se estende entre 1889 a 1925. Tradicionalmente este espaço territorial é
conhecido como região de matas e tal nomenclatura advém do fato desta
região ter como vegetação preponderante a Mata Atlântica, sendo que as
áreas de campo ali não estão ausentes. Além desta característica, outra
peculiaridade da região é a de que, durante o período da Primeira Repú-
blica, ela foi alvo direto de um intenso processo de povoamento que teve
sua principal expressão na formação de uma série de núcleos coloniais
que abrigaram populações provindas da imigração europeia e também
descendentes de imigrantes que inicialmente haviam se estabelecido em
colônias que foram criadas no Rio Grande do Sul ao longo do século XIX –
São Leopoldo (1824) e Caxias do Sul (1875), por exemplo.
Os dados e análises que serão desenvolvidas dizem respeito à reali-
dade vivida pelos ex-escravos no espaço geográfico formado pelos muni-
cípios de Cruz Alta, Passo Fundo, Palmeira das Missões e Santo Ângelo,
os quais na época eram as maiores e mais importantes municipalidades
situadas na região. As fontes utilizadas são compostas basicamente das
Mensagens dos presidentes do Estado enviadas à Assembleia dos Repre-
sentantes, relatórios da Diretoria de Terras e Colonização (DTC) e alguns
processos-crime movidos nas comarcas destes municípios. De maneira ge-
ral, para entender a inserção das populações negras no povoamento da
região nas décadas iniciais do século XX, é importante que se faça um

172 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


retorno a períodos históricos anteriores. Neste sentido, ganham destaque
alguns processos que ocorreram no século XIX e que tiveram influência
direta no modo como as populações recém-saídas do cativeiro partici-
param na ocupação do território.
Em primeiro lugar, é importante termos em mente a forma como foi
percorrido o longo caminho que leva da proibição do tráfico negreiro até
a final emancipação dos escravos em 1888. Data da década de 1820 as
primeiras pressões realizadas pela Inglaterra no sentido de que o Brasil
proibisse a entrada de africanos escravizados em seu território. Contudo,
devido ao fato da economia brasileira estar assentada sobre o trabalho
escravo, sendo que a abolição do tráfico poderia criar problemas a ponto
de pôr em risco as bases produtivas nacionais, tais pressões não surti-
ram efeitos imediatos. Desta forma, a existência de uma legislação que
efetivamente proibiu a entrada de escravos no Brasil só veio a acontecer
em 1850, com a promulgação da Lei 581 de 04 de novembro (tradicio-
nalmente conhecida como Lei Eusébio de Queiroz), a partir da qual ficou
proibida a entrada de escravos no Brasil.
O ano de 1850, neste sentido, é paradigmático, visto que não só foi
proibido o tráfico de escravos, mas também data deste ano a promulgação
da Lei 601 de 18 de setembro, também conhecida como Lei de Terras, que,
além de estar intimamente ligada à proibição do tráfico negreiro, buscava
estabelecer uma regularidade à situação fundiária brasileira. Outro de
seus objetivos era garantir que, diante da emergente abolição da escra-
vatura e do aumento na entrada de imigrantes europeus no Brasil, estas
populações tivessem suas condições de acesso à terra limitadas de modo
a tornarem-se a mão de obra necessária para substituição do trabalho
escravo (MARTINS, 1981).
Todavia, o “cativeiro da terra” não significou de forma estrita que o
acesso à terra a partir de 1850 foi hermeticamente fechado, pois é impor-
tante se levar em conta que a existência de uma lei não significa ipsis
litteris a sua aplicação prática. Em outros termos, mesmo que a Lei de
Terras tenha imposto limites à apropriação territorial por parte das popu-
lações pobres que não tinham condições de pagar pelos territórios que já
ocupavam ou que vieram a ocupar, sua aplicabilidade não acontece do
dia para noite e o estabelecimento da propriedade privada da terra no
Brasil é resultado de um longo processo que envolve uma série de dis-
putas e conflitos. Nesta perspectiva, ocupa lugar de destaque a maneira
como aconteceu a ocupação das regiões de fronteira agrária, visto que
a Lei de Terras só passou a ter efeitos nestas regiões na medida em que
o processo de expansão da sociedade brasileira em sua direção se con-
solidou. Isto é, mesmo diante a existência da Lei, é importante que se leve
em conta que o processo de sua aplicação não foi o mesmo nas diferentes
regiões do Brasil. Ademais, nunca é impróprio lembrar que os preceitos

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 173


desta lei dificilmente foram respeitados, sendo que a propriedade da terra
no Brasil, especialmente da grande propriedade, foi realizada à revelia das
leis que tentaram, ao longo da história, regular o assunto (MOTTA, 2008).
Em segundo lugar, cabe apresentar outra questão, não menos impor-
tante do que a primeira, e que ajudará a refletir sobre a presença e atuação
da população negra na região de matas do Rio Grande do Sul. Trata-se
da relação dos escravos com a terra ainda no período da escravidão. Em
Escravo ou camponês? Ciro Flamarion Cardoso (2004) propõe de forma
inovadora para época (década de 1970) a aplicação dos termos/conceitos
“brecha camponesa” e “protocampesinato” para pensar as atividades
agrícolas realizadas por escravos em parcelas de terras que lhes eram
concedidas no interior das fazendas onde eram escravizados. De acordo
com o autor, esta atividade era realizada pelos escravos nos momentos em
que não estavam exercendo algum trabalho vinculado ao produto domi-
nante (cana-de-açúcar, café, etc.) e serviam para complementar sua ali-
mentação. Da mesma forma, o excedente desta produção também poderia
ser comercializado e, em alguns casos, o produto monetário provindo
deste comércio era utilizado para a compra de alforrias. As análises
desenvolvidas por Cardoso, cabe sublinhar, foram inspiradas em estudos
realizados por pesquisadores que se preocuparam em pensar questões
relativas à escravidão e à pós-emancipação no Haiti (Tadeusz Lepkowski)
e nas Antilhas (Sidney Mintz) e foram objeto de discussões e polêmicas
muito construtivas nos termos da historiografia sobre a escravidão no
Brasil.
Todavia, sem entrar em grandes pormenorizações sobre a produção
historiográfica que tem como tema a “brecha camponesa”, bem como
não é objetivo palmilhar as diferentes discussões que foram realizadas e
produzidas em torno do conceito, é impossível não concordar com Cardo-
so sobre o fato de que os escravos, tanto no Brasil como nas áreas coloni-
zadas por ingleses, franceses e espanhóis, tinham acesso a pequenas
porções de terras que cultivavam nos momentos em que não estavam
executando suas tarefas relativas à fazenda/plantation. Inclusive, alguns
estudos têm demonstrado que tal atividade era tão costumeira que,
muitas vezes quando os fazendeiros resolveram por negar tal possibili-
dade a seus escravos, tiveram de enfrentar sérios problemas de indisci-
plina e contestação (MACHADO, 1994). Ademais, a atividade agrícola
voltada para subsistência também era realizada por ex-escravos que
haviam alcançado sua liberdade por alforria ou por compra (GUIMA-
RÃES, 2006) e por escravos fugidos, seja em quilombos ou nas áreas de
fronteira agrária (GOMES, 2003).

174 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


O acesso à terra e o cultivo de pequenos roçados por escravos e ex-
-escravos no contexto do século XIX não estava presente apenas no Brasil,
mas também encontrou lugar nas diferentes regiões onde o trabalho
escravo existiu. Alexis de Tocqueville, por exemplo, em seus escritos
sobre a emancipação dos escravos nas colônias francesas, produzidos
por volta da década de 1840, propõe que, como a Inglaterra, a França
deveria emancipar os escravos de suas colônias, mas para isto precisaria
se espelhar na experiência inglesa para evitar os problemas enfrentados
pela Inglaterra quando proibiu a escravidão. Neste sentido, uma das
principais propostas realizadas por Tocqueville era de que, mediante
a emancipação dos escravos nos territórios coloniais franceses, deveria
ser expressamente proibido que eles obtivessem acesso à terra e assim
deixassem de trabalhar nas fazendas, resultando em prejuízo destas e da
própria metrópole. Nestes termos, para Tocqueville (1994, p. 111):
Enquanto todas as marcas da antiga escravidão não tiverem desapare-
cido completamente, os negros se inclinarão bem pouco a trabalhar para
um senhor. Preferirão viver independentes na sua própria terra, mesmo
que tal trabalho lhes renda bem pouco. No entanto, se os negros emanci-
pados forem proibidos de vagabundear ou de tentar obter um pequeno
pedaço de terra e forem, portanto, constrangidos a alugar seus serviços
para poder sobreviver, neste caso, a maioria permaneceria nas usinas e o
custo da produção destes estabelecimentos não se elevaria muito.
Se a constatação de que os escravos e ex-escravos durante o século
XIX, e mesmo em períodos anteriores, exerciam atividades agrícolas vol-
tadas à sua subsistência (“brecha camponesa”) é válida, como mostra
Cardoso, para o Sul dos Estados Unidos, para o Caribe britânico, francês,
espanhol e para o caso brasileiro, logo, ela pode ser aplicada para pensar
o caso dos escravos e ex-escravos que viviam na região de matas do
Rio Grande do Sul. Embora a presença de escravos não fosse maciça na
região, ela era significativa. Fato que fica claro se levarmos em consi-
deração os números do Censo de 1872, segundo os quais em Cruz Alta
viviam cerca de 2.701 escravos (lembrando que neste ano Palmeira das
Missões e Santo Ângelo eram distritos pertencentes a Cruz Alta) e o
número de escravos presentes em Passo Fundo era de 1.616 pessoas, pelo
que chegamos a um total de 4.317 escravos vivendo na região. Em termos
de distribuição por ocupação, ou seja, por atividade exercida, o Censo
fornece os seguintes números:

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 175


Tabela 1 – Escravos e suas atividades/ocupações de acordo com o Censo de 1872

Rio Grande do Sul Municípios


Ocupação Cruz Alta Passo Fundo
Homens Mulheres
H M H M
Artistas 112 02 00 00 02 00
Marítimos 268 00 00 00 00 00
Pescadores 25 00 00 00 00 00
Manufatores e fabricantes 05 00 00 00 00 00
Costureiros 26 2.613 00 122 00 10
Canteiros, calcet.,
09 00 00 00 00 00
mineir., e carouq.
Em metais 122 00 00 00 00 00
Em madeiras 433 00 19 00 06 00
Em tecidos 01 03 00 00 00 00
De edificações 332 00 16 00 00 00
Em couros e peles 32 00 00 00 00 00
De vestuários 77 00 00 00 00 00
De chapéus 13 00 00 00 00 00
De calçados 189 00 01 00 00 00
Lavradores 11.812 1.627 442 100 286 19
Criadores 00 07 00 00 00 07
Criados e jornaleiros 3.745 670 198 51 00 00
Serviços domésticos 4.430 13.965 96 355 180 267
Sem profissão 14.658 13.962 734 567 418 421
36.289 32.849 1.506 1.195 892 724
Totais 2.701 1.616
69.138
4.317
Dados disponíveis em: Departamento de Economia Universidade Federal de Pelotas – DECON – <http://ich.
ufpel.edu.br/economia/conteudo.php?pagina=15>.

Segundo os dados do Censo de 1872, a maior parte dos escravos que


viviam na região, 2.140 indivíduos, entre homens e mulheres, não tinha
profissão definida. A ocupação “serviços domésticos” está em segundo
lugar no quadro das funções que mais têm presença escrava e é compos-
ta por 898 pessoas. Já em terceiro lugar vêm os “lavradores”, categoria
composta por 847 indivíduos. Ao se levar em conta que os “sem profis-
são” provavelmente exerciam diferentes tarefas, uma vez que é difícil crer

176 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


que não executavam nenhum tipo de trabalho, dentre tais atividades tam-
bém podem constar os serviços agrícolas. Da mesma forma, os escravos
dedicados aos “serviços domésticos” igualmente poderiam exercer ativi-
dades vinculadas à agricultura. Fato este que é indicativo de que a maior
parte dos escravos que viviam na região de matas do Rio Grande do Sul
estava de forma direta e indireta envolvida com a agricultura. Eram,
portanto, pessoas treinadas nas lides agrícolas e que no pós-abolição,
provavelmente, continuaram encontrando na agricultura meios para sua
manutenção e inserção social.
Outros dois fatores importantes para compreender a inserção das
populações negras no processo de ocupação das terras da região de matas
dizem respeito ao problema das fontes e da expansão da colonização com
imigrantes e seus descendentes. Quanto à questão das fontes, cabe des-
tacar que a partir de 1888 os registros sobre a presença negra no Rio Gran-
de do Sul, que anteriormente já eram limitados, se tornam ainda mais
escassos, especialmente na documentação oficial (mensagens presiden-
ciais e relatórios da DTC, por exemplo). Já nos processos-crime, o silêncio
não é regra e, embora de forma dispersa, é possível encontrar indícios que
ajudam a entender o lugar social que os negros ocupavam ou ao qual eles
foram paulatinamente sendo enquadrados.
O problema do silêncio sobre os negros no pós-abolição já foi objeto
de reflexão tanto para o caso brasileiro (CUNHA; GOMES, 2007) como
para outros contextos em que houve a presença de trabalho escravo
(COOPER; HOLT; SCOTT, 2005). Neste sentido, Rebecca Scott (1991), ao
analisar a atuação das populações negras em Cuba no pós-emancipação,
destaca que “apesar de juridicamente recusarem a personalidade do
escravo”, as sociedades escravistas do século XIX deixaram bem mais
vestígios escritos sobre os negros do que “as sociedades supostamente
livres” que a seguiram. Segundo Scott, a ausência de registros pode ser
explicada, entre outras coisas, pelo fato de que os vínculos entre empre-
gadores e trabalhadores, no pós-emancipação, eram mais efêmeros e
alcançavam existência basicamente no pagamento de salários. Assim, tra-
balhadores e empregadores, diferentemente do que ocorria no período da
escravidão, não mais estavam ligados uns à vida dos outros por longos
períodos de tempo. Desta forma, alerta Scott (1991, p. 234), “a falta de
documentos coloca um problema para a elaboração de um retrato da
sociedade pós-emancipação, e tem-se de confiar de modo excessivamente
desproporcional em inferências de fontes estatísticas e em observações de
contemporâneos inevitavelmente subjetivas”.
Esta ausência, para o caso brasileiro, também encontra suporte em
outros fatores. Em trabalho anterior (SILVA, 2011), no qual discuto de
forma mais detalhada o problema, busquei demonstrar que além da
efemeridade das relações de trabalho estabelecidas entre os ex-escravos e

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 177


seus empregadores, atuaram de forma direta na definição do silêncio os
interesses relativos à necessidade da conformação de uma mão de obra
disciplinarizada e disposta a vender sua força de trabalho. Isto é, não
falar desta população significava também esconder os processos arbitrá-
rios aos quais ela estava submetida. Da mesma forma, os silêncios sobre a
presença negra ajudavam na resolução de problemas vinculados a regula-
rizar a situação de um contingente significativo de pessoas estabelecidas
em determinados espaços territoriais sem ter documentos para comprovar
o domínio legítimo das terras que ocupavam, bem como sem condições
financeiras para compra-las. Ademais, deve-se dar a devida importância à
hegemonia das teorias raciais no período, especialmente as interpretações
da sociedade brasileira feitas a partir destas teorias, cujo resultado mais
significativo foi a elaboração da teoria do branqueamento, segundo a
qual, dentro de um determinado espaço de tempo, o Brasil se tornaria
uma nação essencialmente branca. Logo, pode-se supor que aos olhos de
quem produzia a documentação, não havia porque tratar de um grupo
populacional fadado a desaparecer.
A colonização com imigrantes é o quarto fator importante para com-
preender o processo aqui sob análise. Seus principais reflexos foram a
fundação de colônias na região e a chegada de um contingente popula-
cional bastante significativo provindo da imigração e da migração interna.
Juntamente com o avanço da colonização ocorre um aumento conside-
rável no valor do preço das terras, bem como ganha velocidade a sua
mercantilização. Neste sentido, em 1909, Hemetério Velloso da Silveira
(promotor público e importante liderança política em Cruz Alta no perío-
do) escrevia que devido à colonização da região com imigrantes: “é
surpreendente o modo por que o solo missioneiro, que há 48 anos, encon-
tramos na maior parte desvalorizado, ou constando ainda de prédios rús-
ticos baratíssimos, hoje, ninguém os adquire, senão por bem alto preço”
(SILVEIRA, 1979, p. 145). Do mesmo modo, em 1899, Augusto Pestana,
funcionário de Estado encarregado pela Comissão Verificadora de Posses
em Cruz Alta, Passo Fundo e Santo Ângelo, escrevia:
[...] ultimamente tem-se desenvolvido de um modo espantoso o negócio
de terras nesta ubérrima região. Tem havido muitas compras e vendas de
terras, dizendo todos pretenderem colonizar as terras que adquirem. Tem-
-se fundado 3 ou 4 colônias particulares. As terras de cultura têm aumen-
tado de valor de modo espantoso. Tem-se vendido colônias de 25 hectares
a razão de 2, 3, e até 4 réis por metro quadrado. Tem-se medido grandes
áreas de matos e dividido em colônias que já têm sido vendidas. Esses ma-
tos em geral têm pertencido a diversas pessoas. Se não se tratar já de veri-
ficar o direito de propriedade dos que se dizem donos dessas terras e as
têm vendido, mais tarde será esse serviço cheio de dificuldades, tornando-
-se assim muitíssimo moroso e complicado (PESTANA, 1899, p. 248).

178 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


As informações presentes neste trecho iluminam muito sobre o
processo de ocupação das terras da região de matas do Rio Grande do
Sul, pois não foi sem a realização de arbitrariedades e pelo uso da coerção
que os matos pertencentes “a diversas pessoas”, os quais eram vendidos
e revendidos “à razão de 2, 3 e até 4 réis por metro quadrado”, foram
marcados, demarcados e “elevados” à condição de propriedade privada.
Assim, ao “verificar” e realizar o “direito de propriedade” daqueles que
se diziam donos das terras da região – tarefa que cabia ao Estado – uma
parcela significativa da população local foi objeto de expropriação. Por
seu turno, as populações negras recém-saídas do cativeiro, além de terem
que lidar com uma sociedade que, desde suas origens, via na cor da pele
um símbolo de status social (LIMA, 2003; MATTOS, 1995), teriam de lutar
pela sua sobrevivência com a única coisa que lhes tinha restado: sua liber-
dade. Contudo, ela não significava muita coisa se levarmos em conta os
processos sociais que estavam em curso na época.
Tais constatações, somadas às análises produzidas pela produção
historiográfica que trata do tema e aos dados disponibilizados pelas
fontes aqui analisadas, permitem a proposição de que poucas foram as
oportunidades que os negros tiveram de se manterem na terra no pós-
-emancipação, sendo que, no caso específico da região de matas do Rio
Grande do Sul, elas se resumiam a: (1) se tornarem agregados ou trabalha-
dores assalariados nas fazendas onde antes eram escravizados; (2) rece-
berem por herança, devido aos serviços prestados ou por manterem
alguma relação de parentesco com seus antigos donos, pequenos lotes de
terras – situação muito bem analisada e documentada no estudo de Elione
Guimarães (2009) para o caso do município de Juiz de Fora em Minas
Gerias; (3) encontrarem nas regiões de fronteira agrária possibilidades de
se estabelecerem como cultivadores de pequenas áreas; e (4) conseguirem,
por meio da compra, adquirir pequenas extensões de terras, mas de todas
provavelmente esta foi a prática menos usada, diante da pobreza destes
homens e mulheres recém-saídos da condição de cativos. Alternativas
outras são possíveis de terem sido colocadas em prática, mas diante da
falta de informações nas fontes é difícil arrolá-las.
Além das possibilidades elencadas, os egressos da escravidão também
poderiam se integrar em alguma comunidade quilombola. Não encontrei
registros específicos nas fontes analisadas sobre presença de quilombos na
região, mas, neste caso, o presente ajuda a conhecer o passado, pois algu-
mas comunidades negras foram atualmente reconhecidas na região, logo,
a alternativa aqui levantada é válida. Estudos relevantes neste sentido
foram realizados por Rosane Rubert (2005; 2007); Rodrigo Weimer (2007);
Gilberto Ferreira da Silva; José Antônio dos Santos; e Luiz Carlos Cunha
Carneiro (2009). O Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul, organizado
pela Secretaria de Planejamento, Gestão e Participação Cidadã, dá uma

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 179


boa ideia da localização dos quilombos já reconhecidos no estado. De
qualquer forma, como veremos dentro em pouco, algumas das possibi-
lidades aqui apresentadas foram efetivamente executadas pelos negros
que viviam na região. Entretanto, elas nunca foram garantia de perma-
nência na terra, logo, da manutenção da sua condição camponesa e/ou,
nos termos de Cardoso, protocamponesa.

A efemeridade da condição camponesa dos ex-escravos no contexto


da região de matas do Rio Grande do Sul na Primeira República

Se no período da escravidão o acesso a terras de cultivo para subsis-


tência era permitido aos escravos, no período pós-emancipação as coisas
mudam e o ingresso à terra dos recém-emancipados foi definido por
outros critérios e teve como um de seus eixos de sustentação a Lei de
Terras de 1850. Neste sentido, a lei dá conta de realizar no Brasil aquilo
que Alexis de Tocqueville indicava ao governo francês caso resolvesse
abolir a escravidão em suas colônias, isto é, impossibilitar que os egressos
do cativeiro tivessem acesso fácil à terra. Fato que, por seu turno, aponta
para o quanto os processos sociais que ocorreram no Brasil na virada
do século XIX para o XX não estavam desvinculados de situações que
ocorriam em outros contextos que também conheceram a escravidão.
Ademais, demonstra que as discussões e soluções adotadas para a
questão da mão de obra e da aquisição da terra no pós-emancipação não
eram uma particularidade brasileira (COSTA, 1999).
No que diz respeito à questão das terras, uma das principais mudanças
que caracterizaram a passagem da Monarquia à República foi a de que, a
partir da Constituição de 1891, coube aos Estados Federativos elaborarem
suas próprias legislações para regularizar a situação da propriedade
fundiária em seus territórios. Embora não tenham ocorrido mudanças
profundas, uma vez que a maioria das leis de terras estaduais foi elabo-
rada e tomou como ponto de partida a Lei de Terras de 1850, o fato de
a incumbência de administrar o processo de apropriação territorial ter
ficado sob responsabilidade dos Estados, como mostra Lígia Osório Silva
(1996), proporcionou maior margem de manobras para as elites agrá-
rias locais garantirem seus interesses de apropriação de grandes áreas ter-
ritoriais. Em outros termos, a descentralização proporcionada pela adoção
do regime federativo dificultou ainda mais a possibilidade que os lavra-
dores pobres em geral e os egressos da escravidão em particular tinham
de conseguirem se estabelecer em um pedaço de terra, por pequeno que
fosse.
Com base na abertura possibilitada pela primeira Constituição repu-
blicana, em 1899 foi aprovada a Lei de Terras estadual do Rio Grande

180 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


do Sul. De acordo com o regulamento da Lei, aprovado em 4 de julho
de 1900, o serviço de terras públicas ficaria sob direção e fiscalização da
Secretaria Estadual dos Negócios das Obras Públicas (SENOP). No que
tange à questão da terra, era tarefa da secretaria zelar pelo patrimônio
territorial do Estado, extremar o domínio público do particular, expedir
títulos de domínio de terras e, para cumprir estas e outras obrigações,
poderia pedir auxílio aos agentes do Ministério Público, às autoridades
policiais e aos agentes fiscais do Estado. Segundo os termos da Lei, tam-
bém seriam nomeadas algumas comissões especiais – as Comissões Verifi-
cadoras – que se responsabilizariam pela discriminação e verificação das
terras ocupadas, medição e legitimação de posses (PAROBÉ, 1899 apud
IOTTI, 2001, p. 752-754).
Todavia, muitas das prescrições da Lei de Terras estadual não eram
possíveis de serem colocadas em prática, justamente em função do modo
como se desenvolvia o processo de povoamento. A impossibilidade de
aplicar o texto da lei em sua totalidade estava vinculada também às pres-
sões que o governo do estado sofria por parte dos grandes proprietários
que viam na sua aplicação um entrave na efetivação de seus interesses de
apossamento. Da mesma forma, os lavradores pobres não ficaram imóveis
e, a seu modo, exerceram pressão no sentido de que algumas alterações
fossem realizadas. Tais circunstâncias levaram à expedição de um grande
número de decretos e instruções que buscavam solucionar situações que a
Lei de Terras não conseguia resolver ou que, ao fim e ao cabo, eram resul-
tado das tentativas de sua implantação.
No relatório da DTC de 1919, por exemplo, Carlos Torres Gonçalves
(1919, p. 360) registrava que “modificações sucessivas introduzidas no
último Regulamento de 4 de julho de 1900 foram fazendo sentir a neces-
sidade da reforma do mesmo, afim de harmonizá-lo com as condições
atuais dos serviços”. Necessidade que, na medida em que o século XX
avança, ganhou cada vez mais importância, sendo que em 1923, pelo
Decreto 3.004 de 10 de agosto, foi aprovado novo regulamento de terras
públicas, o qual, segundo o secretário da SENOP, consolidou as modi-
ficações entendidas como necessárias para “atualizar” e “aperfeiçoar” o
Regulamento de 1900 e “dispôs sobre as condições fundamentais mais ge-
rais e estáveis dos serviços, deixando os detalhes de execução destas para
instruções que já se achavam quase concluídas” (PINTO, 1923, p. LIII). As
mudanças, de acordo com o secretário de Obras Públicas, Idelfonso Soares
Pinto, foram feitas a partir da experiência adquirida ao longo dos anos
e, como fica visível na citação, a experiência também determinava que o
novo regulamento deveria se preocupar apenas com problemas mais fun-
damentais, enquanto que os “detalhes” seriam regulados por “instruções”.
Em outras palavras, o que o secretário de Obras Públicas chama de
“detalhes” pode ser traduzido por problemas, os quais foram peculiares

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 181


ao processo de ocupação do espaço e constituição dos limites entre
propriedade pública e privada da terra no Rio Grande do Sul. Um exem-
plo disso pode ser encontrado no relatório da comissão verificadora de
posses do município de Jaguari, datado de 1902. Nele, Vespasiano de Sou-
za Almeida (1902, p. 113-119), então responsável pela comissão, descreve
a legitimação de uma posse em nome de Jacob Luiz Laydner, o qual “não
havia residido um só dia e nem cultivado a área requerida”, mas mesmo
assim, a partir do uso de uma série de estratagemas, havia conseguido
legitimar a posse em seu nome. Segundo o chefe da comissão, a área tinha
em torno de 800 hectares, era habitada a mais de 30 anos por “pobres agri-
cultores”, que acreditavam estar estabelecidos em terrenos do governo e “em
virtude da mais odiosa das espertezas, veem-se obrigados judicialmente
a abandonarem suas lavouras e verem incendiados seus ranchos e seus
estabelecimentos” (Idem, ibidem). Vespasiano de Almeida conclui que
sobravam motivos para o governo mandar reverter tal posse ao domínio
do Estado, contudo, no relatório, não consta se isso realmente foi feito.
Encontrei outro exemplo descritivo da situação vivida pelos lavra-
dores pobres no processo de apropriação territorial da região em um
processo-crime datado de 1923 e movido na comarca de Santo Ângelo.
Este processo é muito interessante porque a situação descrita em suas
folhas trata de demonstrar, entre outras coisas, a inserção de um negro
– provavelmente ex-escravo – nas disputas pela terra. Segundo consta
no processo-crime, o jornaleiro Antônio Pacheco havia se estabelecido
em uma área de terra situada no distrito de Limeira, município de Santo
Ângelo, que supostamente pertencia a Silvino José Vargas, a quem Pache-
co dizia ser seu “patrão”. Entretanto, em uma manhã de fevereiro de 1923,
foi violentamente obrigado a retirar-se desta área por Procópio Fraga, o
qual também afirmava ser o proprietário da área.
Diante disto, Silvino José de Vargas (brasileiro, casado, residente no
quarto distrito de Santo Ângelo, lugar denominado Limeira, patrão de
Antônio Pacheco) abriu queixa contra Procópio Francisco Fraga, Edgar
Francisco Fraga, João Luiz Gonçalves e Gaudêncio Hipólito, residentes
no mesmo distrito, acusando-os de expulsarem e atearem fogo na casa de
seu agregado. Procópio Fraga (51 anos de idade, casado, criador) declarou
em interrogatório ser inocente em relação ao ato, visto estar na vila de
Santo Ângelo no momento em que ocorreu o crime. Francisco Fraga, filho
de Procópio (com 21 anos de idade, solteiro e criador), também declara
inocência, pois afirmou que estava na cidade acompanhando seu pai no
momento do crime (AHRS, Processo-crime nº 1.563. Cartório Civil Crime.
Município de Santo Ângelo, 1923. Maço 56).
A versão de Antônio Pacheco (33 anos de idade, jornaleiro) é a seguin-
te: disse que “morava em um rancho de capim e paredes de barro, sito
em campos de propriedade de Silvino”, que numa manhã de fevereiro de

182 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


1923, chegou ao seu rancho Procópio Fraga, que “lhe perguntou com que
ordem o depoente ali morava, tirava madeira dos matos e fizera lavoura”,
ao que respondeu que “por ordem de seu patrão, Silvino Vargas”. Diante
da resposta, Fraga respondeu que os referidos campos não eram de Silvino,
mas sim dele. No mesmo dia, pelas quatro horas da tarde, Procópio,
“acompanhado de seu filho Edgar conhecido como Nenê, Gaudêncio
de tal e um tal João Doce, cujo nome verdadeiro o depoente não sabe”
chegaram a seu rancho. Nesse momento, Procópio, de revólver em punho,
após perguntar a Antônio se já havia desocupado o rancho, recebendo
resposta negativa, apeou de seu cavalo e, seguido por seus companheiros,
todos armados de revólver e espada, agrediram Antônio e exigiram que ele
desocupasse o rancho imediatamente. Assim, diante a atitude ameaçadora
de seus agressores, Antônio “não lhes opôs resistência alguma, tendo
apenas tirado um colchão e uma lata contendo banha, quando o rancho
ia caindo, pois João Doce havia cortado com um machado os respectivos
esteios” (Idem). Em seguida, o rancho foi incendiado e o “depoente ficou
no campo com sua amásia Diamantina Ramoni, sendo mais tarde, às oito
horas da noite, recolhidos à casa de seu patrão” (Idem).
No depoimento do acusado João Luiz Gonçalves constam alguns
outros fatores importantes, tanto para entender a situação quanto o con-
texto em que ela aconteceu: ao ser perguntado pelo advogado de defesa
de Procópio Fraga se o rancho de Antônio estava ou não nos campos
fechados de Procópio, João responde que sim. Ou seja, o que está em
jogo é propriedade destes campos, visto que Silvino, o autor da queixa e
“patrão” de Antônio, alegava que aqueles campos eram seus. O mesmo
advogado faz uma pergunta mais esclarecedora ainda, visto ter aconte-
cido em 29 de novembro de 1923 e o processo ter sido instaurado em
abril do mesmo ano: “perguntado se o depoente conhece o preto Antô-
nio Pacheco [...] e se pode informar quem seja ele e onde mora atual-
mente?” (Idem). Isto é, sete meses após ser aberto o processo e terem
sido questionadas uma série de testemunhas, aparece a cor de um dos
envolvidos e ela é lembrada exatamente pelo advogado de defesa. João
responde que conhecia Antônio porque o tinha visto duas vezes e “não
sabia quem ele seja nem onde mora hoje” (Idem). Na mesma data, novem-
bro de 1923, Hilário Pinto (60 anos, viúvo, criador) é chamado a depor
como testemunha dos fatos ocorridos com Antônio Pacheco. O advogado
de defesa pergunta-lhe se os campos onde estava o rancho eram ou não
cercados por Procópio, o que respondeu afirmativamente. Também lhe é
perguntado “se conhecia o preto Antônio Pacheco” e se podia dizer quem
era ele. Sua resposta é que o conhecia “agora e que esse negro é novato lá,
portanto, não pode dizer quem ele é” (Idem). Conforme Hilário, naquele
momento Pacheco estava morando em Espinilho, outro distrito de Santo
Ângelo.

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 183


Artur Motta (33 anos, casado, funcionário público, testemunha de de-
fesa) também afirma que os campos onde estava o rancho eram cercados
por Procópio. Da mesma forma, confirma que Procópio, no dia do crime,
estava na vila de Santo Ângelo e que pernoitou em sua casa. Quando é
perguntado se “conhecia o preto Antônio Pacheco e se podia informar
quem seja ele?” Artur responde que conhecia e que antes de ele ir “para
o quarto distrito onde morava de agregado de Silvino Vargas, residiu no
oitavo distrito, de onde foi expulso pelas autoridades dali por ser gatuno
contumaz e de mui péssimos costumes” (Idem). No seu depoimento,
Motta também relata que Silvino havia lhe contado que “tinha feito aque-
le rancho para garantir uma posse que estava sendo disputada por Procó-
pio” e que fora o próprio Silvino quem havia incendiado o rancho e
atribuía a culpa a Procópio para “fazer mal àquele” (Idem). Outras teste-
munhas são arroladas, mas as versões não mudam e, em dezembro de
1923, após análise do processo, o juiz considera improcedente a denúncia
por falta de provas que legitimassem a acusação.
Como é possível verificar, o processo-crime traz informações interes-
santes sobre o movimento de apropriação de terras na região, visto que
além de mostrar as disputas locais pela propriedade, evidencia como
os grupos egressos da escravidão poderiam entrar nela e, nesse caso, a
atuação de Antônio Pacheco é esclarecedora. Um primeiro ponto que
chama atenção é o de que Pacheco é procedente do 8º distrito e, a convite
de Silvino José Vargas, se estabelece como agregado no 4º distrito de San-
to Ângelo em uma posse que estava em disputa. Além disso, segundo a
acusação, Procópio, também interessado na propriedade desta posse,
expulsa Pacheco e incendeia o rancho onde ele morava. Por seu turno, a
questão não se encerra aí, pois Antônio Pacheco segue adiante e, segundo
o depoimento de um dos envolvidos, tinha se mudado para outro distrito
onde, provavelmente, também havia se instalado como agregado. Outra
situação interessante é a da cor ausente e presente, uma vez que ela pre-
pondera justamente quando o advogado ou as testemunhas de defesa
querem criminalizar Pacheco.
O vivido por Antônio Pacheco não é um caso isolado, mas bastante
comum na época. Apenas é muito difícil encontrar uma grande quanti-
dade de fontes que deem conta de apresentar tais acontecimentos com o
mesmo grau de detalhes. De uma maneira particular, as situações pelas
quais passou Pacheco ajudam a compreender os relatos mais genéricos
presentes nas fontes, especialmente nas oficiais, onde o detalhamento não
é regra. Ademais, ficam evidentes no processo-crime as dificuldades de
ingresso à terra peculiares ao contexto e ao período.

184 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


Além de se estabelecerem como agregados de algum “patrão”, outra
alternativa de inserção social e de garantia de sobrevivência posta em prá-
tica pelos negros era trabalhar na coleta e produção de erva-mate. A atra-
ção que esta possibilidade exercia nas populações da região e de fora dela
era tão forte que, segundo Hemetério Velloso da Silveira (1979, p. 326),
[...] uma grande multidão de homens pobres, procedente da Fronteira Sul
e de outros pontos, atraídos pela notícia da extraordinária abundância e
superioridade da erva-mate; para aí concorreu, procurando arranchar-se
como agregados das grandes propriedades rurais, ou dentro dos matos
baldios, ou mesmo comprando frações de campos, para criações em pe-
quena escala.
A exploração e a atração exercida pela erva-mate não era uma peculia-
ridade dos anos iniciais do século XX. Ainda durante o período escravo-
crata há registros de mão de obra cativa exercendo atividades nos ervais
da região. No relatório da SENOP de 1899, por exemplo, Nelson Coelho
Leal (engenheiro responsável pela Comissão Verificadora de Posses e
de discriminação de terras públicas no município de Santa Cruz) relata
uma situação que envolve alguns ex-escravos e Carlos Trein Filho. Este
último buscava legitimar uma área de 2.960 hectares que alegava ter
comprado de João Fidêncio, o qual havia requerido a legitimação da área
em 1882 a partir da medição de terras que dizia serem ocupadas por “seus
agregados”: Viríssimo Bibiano da Fontoura e Miguel Severo. Neste local,
Trein pretendia estabelecer uma colônia identificada no relatório como
Colônia Preta. O juiz comissionário de Santa Cruz julgou verdadeiras as
alegações e considerou que as posses haviam sido estabelecidas antes do
Regulamento de Terras de 1854 (PAROBÉ, 1899, p. 226-233) e reconheceu
a propriedade destas terras em nome de Carlos Trein.
Na continuidade do relato, Coelho Leal apresenta dois dos indivíduos
arrolados no processo e descreve o modo como se dava a sua inserção nas
estruturas sociais e econômicas da época. Viríssimo Bibiano tinha cerca
de 70 anos de idade, até o ano de 1864 era escravo de D. Dorteia Pacheco
e “ia seguidamente ao erval com vários cargueiros e aí demorava-se al-
gum tempo fabricando erva-mate. Em 1870, mudou-se para o erval, onde
estabeleceu-se com a família” (Idem, ibidem). Miguel Severo, já falecido
em 1899, escravo do capitão Cirino Severo, “libertou-se em 1871, mais ou
menos, seguindo pouco depois para o erval, onde estabeleceu-se” (Idem).
Em outros termos, aqui temos um exemplo preciso de que mesmo após
alcançarem sua liberdade/libertação os ex-escravos continuaram exercen-
do as mesmas atividades que executavam quando viviam na condição de
cativos. Entretanto, neste momento tinham que lidar com o processo de
mercantilização e privatização das terras onde há tempos residiam e das
quais foram sendo paulatinamente expulsos.

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 185


Imagem 1 – Fabricação de erva-mate.
Fonte: GONÇALVES, 1909, Anexos.

No caso envolvendo o “preto Antônio Pacheco”, antes citado, também


está presente outra característica comum aos grupos de lavradores pobres
que viviam na região, isto é, a mobilidade. As incertezas sobre a perma-
nência em um determinado território levavam esta população a não se
fixar por muito tempo em um mesmo lugar. Aos olhos dos governantes,
a falta de sedentarismo era um problema que deveria ser combatido e
invariavelmente é apresentada como sinônimo de criminalidade ou de
falta de aptidão para o trabalho (SILVA, 2011). Por seu turno, a não per-
manência por muito tempo em um mesmo território, antes de ser sinô-
nimo de vadiagem e criminalidade, é resultado do tipo de agricultura
praticado por tais populações, visto que as técnicas usadas – sistema
de roça – levavam ao esgotamento da fertilidade da terra muito rapida-
mente,1 fato que exigia o constante avanço para dentro da zona de matas
em busca de novas terras, bem como, no caso dos ervateiros, de novos
ervais.

1
Para aprofundar as análises sobre a racionalidade dos diferentes sistemas agrários, ver:
BOUSERUP, 1987.

186 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


Neste sentido, em 1890, na comarca de Palmeira das Missões, é movi-
do processo-crime contra José Marceliano (preto, solteiro, com 23 anos
de idade, jornaleiro, natural do Rio Grande do Sul), o qual ajuda a com-
preender como a referida mobilidade acontecia na prática. Marceliano
é acusado de, em conjunto com sua mãe e irmãos, furtarem animais da
propriedade de um fazendeiro local de nome Fernando Westphalen.
Segundo consta na denúncia, os acusados cometeram o furto quando
estavam realizando mudança do município de Palmeira para o de Vacaria
e o número de animais roubados era de oito, entre cavalos e muares. No
interrogatório, Maria Eufrágia (40 anos de idade, mais ou menos, viúva,
jornaleira, de Santa Catarina e que não sabia ler nem escrever) conta que
José Marceliano era seu filho e havia “pegado três cavalos de Fernando
Westphalen ou de gente de sua casa, assim como pegou mais uma mula
ou macho que encontraram na estrada e ajuntou com os animais que
traziam na recolhida” (AHRS. Processos-crime 98. Cartório Civil Crime.
Município de Palmeira das Missões, 1890. Maço 08).
José Marceliano é interrogado e, diverso do que traz a denúncia,
afirma que é natural de Lages-SC e que “não iam fugidos, mas de mudan-
ça para Vacaria, onde se havia criado e por necessidade foi que furtou os
animais, tendo em mente restituí-los a seus donos” (Idem). Marceliano
também afirma que quando entrou nos campos de Westphalen “escolheu
animais que não fossem da marca dele, isto por gratidão a benefícios
recebidos do mesmo” (Idem). Um irmão de Marceliano de nome Virgílio
(16 anos de idade, mais ou menos, solteiro, jornaleiro, brasileiro, nascido
em Cruz Alta, não sabia ler nem escrever) afirma em interrogatório que
não sabia que os animais eram furtados, pois só os tinha visto na noite
em que haviam partido em direção a Vacaria. Na continuidade do pro-
cesso são interrogados mais um irmão e uma irmã de Marceliano, ambos
nascidos em Cruz Alta: ele de nome João, com 11 anos de idade e ela de
nome Maria, com 20 anos de idade. Os dois dizem ser verdade o fato
de os animais terem sido furtados, mas afirmam não saber a quem per-
tenciam.
Embora no restante do processo-crime não exista mais informações
sobre a cor dos envolvidos, além daquela presente na denúncia escrita
pelo promotor público da comarca, a partir dessa única referência é
possível propor que se tratava de uma família de negros. Os depoimentos
também possibilitam conhecer melhor a inserção dessa família, uma vez
que Marceliano diz ter furtado os animais por necessidade e que escolheu
aqueles que não pertencessem a Fernando Westphalen, porque dele havia
recebido benefícios. Quanto à mobilidade, ela fica visível se tomarmos o
local de nascimento dos diferentes interrogados, pois Marceliano e sua
mãe dizem ser naturais de Santa Catarina, os outros filhos(as) de Maria
Eufrágia nasceram em Cruz Alta e todos estavam de mudança para

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 187


Vacaria, onde José Marceliano diz ter se criado, sendo que, no momento do
crime, todos residiam no segundo distrito de Palmeira das Missões.
Como chamei atenção anteriormente, a partir de 1890 a região é alvo
de um intenso processo de colonização levado a cabo tanto pela iniciativa
privada como pelo Estado. Para se ter uma ideia, o movimento de
chegada de pessoas é tão intenso que a população dos quatro municípios
que em 1872 era de 34.822 habitantes, salta para 284.777 pessoas em 1920,
ou seja, num intervalo de tempo de 48 anos a população cresceu cerca de
8 vezes seu montante inicial (FEE, 1981). Juntamente com este fenômeno,
como já foi destacado, ocorre um aumento significativo no valor das ter-
ras da região e, de maneira concomitante, também aumentam as pressões
do Estado a fim de que o problema da propriedade fundiária seja regula-
rizado, uma vez que a comercialização das terras devolutas era uma
importante fonte de rendas para o Estado. Isto tanto é verdade que em
1898 o presidente do estado Antônio Augusto Borges de Medeiros,
escrevia: “os lucros pecuniários que aufere o Estado da venda de suas
terras aumentam na razão direta da sua crescente prosperidade agrícola”
(MEDEIROS, 1898, p. 23). Segundo dados constantes na mensagem de
Medeiros, apenas a Comissão Verificadora de Posses de Santa Cruz
havia reivindicado para o Estado uma área de 19.315 hectares de terras,
as quais, “calculadas aquém do seu justo valor, ainda assim representam
uma soma muito superior a 200:000$000 réis; ao passo que é de 28:048$694
réis a despesa feita pela referida comissão” (Idem, ibidem).
Como fica visível, a venda de terras era um negócio bastante rentável
que interessava não só ao Estado, mas também aos proprietários parti-
culares de terras. A população proveniente da imigração e os descen-
dentes de imigrantes, por sua vez, eram compradores de terras em
potencial, visto que, segundo dados do relatório da DTC, em 1925, a
população colonial do Rio Grande do Sul somava o total de 924.000 habi-
tantes, sendo que 600.000 viviam em núcleos fundados pelos poderes
públicos e 324.000 em áreas de colonização privada (GONÇALVES,
1925, p. 357). Em termos sociais, estes números não representam apenas
o aumento da densidade demográfica na região, mas ajudam a entender
alguns dos resultados do processo colonizador. Por exemplo, na medida
em que os núcleos coloniais foram sendo fundados e o número de habi-
tantes da região aumentava os problemas relativos à apropriação terri-
torial, também se tornavam mais visíveis. Um desses problemas é o da
intrusão, cuja referência nas fontes se torna maior na medida em que o
processo se consolida. A intrusão era o ato levado a cabo por pessoas que
sem a prévia autorização do governo ou dos proprietários particulares
estabeleciam-se em terrenos e os exploravam para fins de subsistência,
sendo que ao fazerem isso passavam a ser genericamente identificadas
como intrusas.

188 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


Quando acontecia em áreas particulares, a intrusão poderia ser resol-
vida por vias administrativas ou jurídicas. No primeiro caso, de acordo
com Carlos Torres Gonçalves, os “legítimos proprietários” procuravam
solucionar a questão realizando acertos, muitas vezes intermediados
pelos funcionários da DTC. A segunda opção era a “menos comum”, po-
rém a mais conflituosa, visto que “os proprietários particulares, munidos
previamente de ordens de despejo judicial, procuram executá-las, sur-
gindo daí incidentes desagradáveis” (GONÇALVES, 1916, p. 119). Torres
Gonçalves estimava que o número de intrusos vivendo no Rio Grande do
Sul, por volta de 1916, era de cerca de 50.000 pessoas. Esta cifra indicava
que para tratar do assunto o Estado deveria se colocar “no ponto de vista
geral da coletividade” e reconhecer “o caráter complexo desses fatos e
a sua delicadeza”. Tais ponderações a respeito da intrusão, cabe subli-
nhar, não eram fruto de uma noção de Estado ideal baseado em fins
humanitários como geralmente as fontes dão a entender, mas de uma
opção político-administrativa, cujo objetivo era definir a governabilidade
e a tranquilidade no estado.
O próprio Torres Gonçalves demonstra a pertinência da constatação
quando escreve que “se o governo realizasse ou consentisse no despejo
das 5 ou 6 dezenas de milhares de intrusos espalhados pelo território do
estado, arriscar-se-ia a provocar uma explosão social comparável à que
acabam de sofrer os estados irmãos de Santa Catarina e Paraná” (GON-
ÇALVES, 1916, p. 119). Em outras palavras, temia-se o risco de acontecer,
em território rio-grandense, um conflito semelhante ao que foi o do
Contestado. Tal receio não é expresso apenas por Torres Gonçalves. Em
1915, o presidente do estado, Salvador Ayres Pinheiro Machado, relatou
à Assembleia dos Representantes o envio de uma tropa da brigada
militar até a fronteira do estado com Santa Catarina, objetivando conter
o possível avanço dos “rebeldes do Contestado” em direção ao Rio Gran-
de do Sul (MACHADO, 1915, p. 10). Assim, para evitar qualquer tipo
de problema que pudesse vir a perturbar a ordem, Torres Gonçalves
aconselhava que o Estado deveria continuar tomando medidas no sentido
de satisfazer alguns dos interesses dos intrusos, já que, ao fim e ao cabo,
eram “agricultores essencialmente comparáveis aos demais colonos”
(GONÇALVES, 1916, p. 119). Era necessário, no entanto, incutir-lhes mais
profundamente a noção de propriedade e suas benesses.
Embora os dados das fontes não sejam claros a este respeito, pode-
-se inferir que uma parte considerável da população egressa do cativeiro
acabou sendo enquadrada na categoria dos intrusos, sendo assim, foram
objeto de constante controle por parte do Estado e seus funcionários. A
necessidade de tornar os intrusos proprietários fixados à terra, já que
eram “agricultores comparáveis aos demais colonos”, também se esten-
dia ao conjunto da população rio-grandense que vivia da agricultura,

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 189


mas que a praticava com o fim da subsistência e de maneira itinerária.
Uma das iniciativas tomadas neste sentido foi executada em 1915 com a
fundação da Colônia Santa Rosa. Inicialmente, esta colônia era habitada
por cerca de 3.000 nacionais,2 os quais tiveram seus lotes demarcados
e, para evitar que os vendessem – já que era ideia corrente que eles não
tinham “amor à terra”, antes preferiam ficar vagando de um ponto a ou-
tro no estado – os títulos de propriedade que recebiam eram inalienáveis
por 5 anos.
Os referidos “nacionais” eram camponeses pobres e não é sem funda-
mento propor que entre os 3.000 inicialmente estabelecidos na Colônia
Santa Rosa também estivessem presentes alguns ex-escravos e seus des-
cendentes. O ato de reconhecer aos nacionais a possibilidade de se torna-
rem proprietários das terras que ocupavam, além de garantir a tranquilidade
do processo, visto que a prática da expulsão, como alertava Gonçalves,
não era a mais indicada, não os isentava de terem de pagar para o Estado
pelos lotes que ocupavam. Ademais, era interesse transformar estas
pessoas em agricultores produtivos, assim, as mais diferentes estratégias
foram usadas, tais como festas e eventos voltados a comemorar os “suces-
sos” de tais práticas. Neste sentido, em 1917 Torres Gonçalves escrevia
que, devido às políticas de povoamento adotadas pelo Estado, um “gran-
de número de indivíduos que eram quase nômades” encontravam-se
“fixados em suas propriedades dando impulso ao movimento agrícola do
estado”, bem como haviam se transformado “de antigos ocupantes de ter-
ras em colonos regulares” (GONÇALVES, 1917, p. XVI). Mais um exem-
plo interessante nesta perspectiva foi a realização da “festa dos nacionais”
promovida pela DTC e que aconteceu na Colônia Santa Rosa em 1918.
Neste ano, o número de habitantes na colônia era de 6.058 indivíduos,
sendo que deste montante 5.100 eram nacionais. A festa tinha por inten-
ção mostrar e comemorar “o exemplo e o estímulo” desta população em
aceitar a proteção oferecida pelo governo do estado (GONÇALVES, 1918,
p. 310).
Ao realizar a “festa dos nacionais”, o Estado buscava comemorar os
êxitos que alcançou em transformar “ocupantes de terras” em “colonos
regulares”, isto é, mesmo entre as populações que eram consideradas as
menos capazes de “cooperar para o bem comum” (nacionais, negros, indí-
genas, etc.) era possível encontrar formas de incentivá-las a superar o
atraso em que se encontravam. Contudo, na realização desta meta, muitos
2
A palavra “nacionais” é corriqueiramente utilizada nas fontes para identificar as
populações que viviam no interior do Rio Grande do Sul, na sua maioria composta por
mestiços ou descendentes pobres de colonizadores portugueses. Na literatura sobre a
questão, estas pessoas também são identificadas com os termos “caboclos”, “caipiras”,
“cabras”, etc. Cabe destacar que os adjetivos utilizados para nominar esta população
variam de acordo com a região do Brasil com a qual se está trabalhando.

190 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


“ocupantes de terras”, como era o “preto Antônio Pacheco”, ao invés de se
transformarem em “colonos regulares”, tornaram-se intrusos, tiveram suas
moradas incendiadas, sofreram os mais diferentes tipos de violência e, no
final, foram expropriados. Evidentemente que isto não aconteceu do dia
para noite, mas na medida em que o século XX avançou, as possibilidades
de ingresso à terra cada vez mais perderam espaço de realização.

Imagem 2 – Festa dos nacionais, Colônia Santa Rosa, 24-2-1918 – cortejo cívico.
Fonte: GONÇALVES, 1918. Anexos.

Por fim, são estes fatores somados a outros mais que sustentam
a hipótese central deste artigo, isto é, na medida em que as áreas de
fronteira agrária foram sendo incorporadas, as possibilidades das popula-
ções negras se manterem na terra foram sendo extintas, logo, a condição
camponesa dos negros era efêmera, uma vez que para sua realização a
terra é necessária, senão como propriedade, pelo menos as possibilidades
de acesso a ela, como ocorria no período da escravidão, devem existir.
Hipótese que ganha ares de constatação ao levarmos em conta as
situações vividas pelo “preto Antônio Pacheco”, que se estabeleceu em
uma posse que estava em disputa, é alvo de violências e segue adiante
na sua condição de agregado. De José Marceliano, que furtou alguns
animais de um fazendeiro local por necessidade quando estava de mudança
de um município a outro, muito provavelmente em busca de melhores
condições de vida ou de minimamente garantir sua sobrevivência e de

Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 191


seus familiares. De Viríssimo Bibiano da Fontoura e de Miguel Severo,
os quais de trabalhadores cativos nos ervais da região passaram a
trabalhadores livres nestes mesmos ervais, mas tiveram as terras onde
residiam legitimadas em nome de Carlos Trein Filho, sendo impossível
hoje recuperar detalhes sobre o que aconteceu com eles e suas famílias
após este fato.
Cabe ainda enfatizar que mesmo aqueles descendentes de escravos
que conseguiram permanecer na terra, independentemente dos meios
que tenham utilizado para conseguir isto, não estavam livres das pressões
características do processo de povoamento. Dentre elas, sobressai o
controle exercido por parte do Estado que, na defesa de determinados
interesses e imbuído da ideia de progresso que era tão cara para época,
não poupou esforços na busca de mudar os hábitos destas pessoas a
fim de que viessem a se tornar “úteis socialmente”. Em outros termos,
agricultores fixados à terra, dóceis e respeitadores da propriedade privada
– “colonos regulares” – para usar a nominação empregada pelo diretor da
DTC. Fato que nos remete a outra questão: estas populações não foram
expropriadas apenas da terra, mas também de seus costumes e tradições,
lembrando que tudo foi realizado em nome da “ordem e do progresso”.

Fontes e referencial bibliográfico


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192 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


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Campesinato negro nas matas do Rio Grande do Sul 193


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194 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcio Antônio Both da Silva


10
Juventude rural
e modernização da agricultura:
tensões entre extensão rural e movimentos sociais
na região Oeste de Santa Catarina (1970-1985)

Claiton Marcio da Silva

1 Considerações iniciais... ou a atualidade de um antigo tema

O texto ora apresentado não tem por objetivo realizar uma discussão
sobre uma experiência social distante no tempo. Pelo contrário, embora
ocultada pela memória dos movimentos sociais, memória vencedora,
a tônica da ação extensionista através dos Clubes 4-S ainda se reveste e
se atualiza. O momento em que retomo essa discussão sobre juventude
rural coincide com um determinado contexto econômico e político em que
o processo de sucessão no campo declina a olhos vistos. Estima-se, nas
palavras do diretor geral da Secretária de Agricultura de Santa Catarina,
Airton Spies, que aproximadamente 20% das pequenas propriedades do
estado não possuem sucessores diretos.1 Neste contexto, as experiências
do passado, como os Clubes 4-S, são romantizadas, ganham elogios e re-
tornam com certa força; as contradições, por outro lado, são “esquecidas”
e os modelos tradicionais que foram duramente criticados são retomados
com novas vestimentas.
Em outras palavras, de acordo com as observações das autoridades
governamentais e seus representantes que se alternam no governo do es-
tado, os jovens não querem permanecer no campo. E este não é um fenô-
meno exatamente novo, mas agora ocorre de uma forma diferente do que se
observou anteriormente, quando da difusão da agroindústria e da mecani-
zação da agricultura no Oeste de Santa Catarina após 1970. A evasão

1
Airton Spies, diretor-geral da Secretaria de Estado da Agricultura. Programa Conversas
Cruzadas, 20 jan. 2011. TVCOM, Santa Catarina.

Juventude rural e modernização da agricultura: tensões entre extensão rural e movimentos sociais na região Oeste de Santa Catarina... 195
das jovens mulheres fornecem a singularidade destes tempos, retratados
inclusive por documentários como o dirigido por Ilka Goldshmidt e Cas-
semiro Vitorino intitulado Celibato no Campo (Margot Produções, Brasil,
2010). Nas décadas anteriores, eram os jovens casais que ocupavam as
margens dos centros urbanos, instalavam-se nas proximidades das agroin-
dústrias ou – principalmente os jovens solteiros – procuravam emprego
em restaurantes no litoral catarinense ou na região Sudeste do Brasil.
Embora a tarefa do historiador não seja entendida de forma consen-
sual como ferramenta para modificar a realidade em que vivemos, sabe-se
que uma pesquisa pode fornecer elementos para a reflexão sobre questões
atuais e, neste caso, dos problemas enfrentados pela agricultura. Os ques-
tionamentos abordados pela pesquisa nas ciências humanas podem
demonstrar a existência de uma determinada visão romântica sobre a agri-
cultura familiar que persiste nas instituições estatais e privadas; também,
soluções “milagrosas” são apresentadas a todo momento. A solução
que se pretende atualmente em Santa Catarina por parte da Secretaria
de Estado da Agricultura é a instalação de internet em propriedades
rurais de Santa Catarina como forma de incentivar a permanência do
jovem no campo.2 Imagino que, isoladamente, esta iniciativa não alcan-
çará os resultados desejados, exceto se estiver cercada por atividades
que garantam maior renda e qualidade de vida para os jovens agricul-
tores; e lhes garanta a reprodução social dos mesmos como camponeses,
auxiliando na manutenção de aspectos da cultura, dos modos de fazer,
entre outros.

2
Airton Spies, diretor geral da Secretaria de Estado da Agricultura. Programa Conversas
Cruzadas, 20 jan. 2011. TVCOM. De acordo com o jornal Pauta, em outubro de 2011,
“a Secretaria de Estado da Agricultura e da Pesca anunciou o Programa de Inclusão
Digital destinado às comunidades rurais. O anuncio aconteceu no estande da
Secretaria na Exposição-Feira Agropecuária, Comercial e Industrial de Chapecó”
(jornal Pauta, 2011). O objetivo do projeto é oferecer internet banda larga e telefonia
fixa às comunidades rurais e, com isso, promover o acesso de pequenos produtores
aos recursos da tecnologia de informação. A experiência terá início em Chapecó e será
estendida para outros 19 municípios. Cerca de 50 mil moradores rurais serão atendidos
na primeira fase do programa. O investimento total do governo estadual passa dos R$
40 milhões até o final de 2011. Por município, serão investidos R$ 150 mil. A partir de
segunda-feira (17), oito torres serão instaladas em, no máximo, 55 dias. Até o final de
2014, o governo do estado pretende disponibilizar internet e telefonia para todas as
propriedades rurais. Segundo o secretário de Estado da Agricultura e da Pesca, João
Rodrigues, o projeto irá integrar comunidades, complementar renda, gerar massa crítica,
oportunizar novas colocações no mercado de trabalho, além de dinamizar o acesso a informações
e a conhecimentos capazes de ampliar os horizontes dos cidadãos (grifo meu). O projeto
também integra os esforços da Secretaria para combater o êxodo rural e segurar o
jovem no campo, ressalta Rodrigues. Ver Secretaria da Agricultura lança programa
de Inclusão Digital. Disponível em: <http://www.jornalpauta.com.br/new.php?id_
materia=13263>. Acesso em: 23 nov. 2011.

196 História do Campesinato na Fronteira Sul • Claiton Marcio da Silva


Em resumo, as atuais políticas de incentivo à permanência dos jovens
no campo são filhas do processo de industrialização iniciado após 1945
e aprofundadas com o que chamamos de globalização. Por muito tempo
incentivou-se a evasão do jovem do campo para engrossar as fileiras da
agroindústria, e apenas aqueles “tecnicamente aptos” permaneciam no
meio rural. Com o aprofundamento das tensões deste modelo na década
de 1980, o caminho inverso tem se tornado muito mais árduo de ser alcan-
çado, em função de que as políticas propostas não levam em consideração
questões fundamentais para a reprodução do modo de vida camponês,
questões estas muito melhor entendidas pelos movimentos sociais do que
pelas políticas de Estado.
Portanto, este é um estudo de um processo que não foi concluído.
Embora os Clubes 4-S não existam oficialmente em Santa Catarina, a
maneira de atuação das empresas de extensão rural em relação aos jovens
ainda segue uma linha semelhante, mesmo que, por vezes, crítica.

2 Clubes 4-S, extensão rural e ditadura militar no Brasil

Ao analisar o programa de Clubes 4-S, implantado pela Associação


de Crédito e Extensão Rural de Santa Catarina – órgão responsável pe-
la implantação e desenvolvimento da extensão rural no estado a partir
de 1957 e sua preocupação com a constituição de um novo jovem rural
em Santa Catarina – o argumento central é que, embora esses clubes te-
nham sido criados ainda no início do século XX nos Estados Unidos,
foram difundidos no Brasil durante a década de 19503 e alcançaram seu
auge durante o período do Regime Militar (1964-1985). Neste contexto,
a ACARESC propôs a construção de um jovem rural disciplinado e
alinhado aos interesses da nação e seu eminente processo de industriali-
zação – através da racionalização das técnicas agrícolas e difusão de insu-
mos considerados modernos – reorganizando o modelo de Clubes 4-S de
acordo com os interesses do Estado. Por outro lado, a não continuidade
desse trabalho de forma oficial durante a década de 1980 foi ocasionada
por fatores como a crise do discurso extensionista, a eclosão dos movi-
mentos sociais no campo e o distanciamento entre os objetivos oficiais e os
objetivos dos próprios integrantes dos clubes.
3
Em 1951 existiam clubes de juventude rural próximos ao modelo 4-H na cidade de
Santa Rita do Passa Quatro, interior do estado de São Paulo. Na verdade, estes eram
chamados de Clubes AIA, uma vez que foram organizados pela American International
Association for Economic and Social Development (AIA), agência filantrópica fundada por
Nelson Rockefeller em 1946. A própria AIA realizou um acordo com o governo de
Minas Gerais em 1948 para a formação da Associação de Crédito e Assistência Rural
de Minas Gerais (ACAR) e, em 1952, no município de Rio Pomba, a ACAR fundou
oficialmente o primeiro Clube 4-S no Brasil.

Juventude rural e modernização da agricultura: tensões entre extensão rural e movimentos sociais na região Oeste de Santa Catarina... 197
O período abordado é importante para o entendimento do processo
de difusão do modelo de Clubes 4-S por todas as regiões do estado
de Santa Catarina na década de 1970 e a posterior crítica à abordagem
extensionista da agricultura no Brasil nas décadas de 1970 e 1980. Não
por acaso, este período confunde-se com o aprofundamento da ditadura
militar com o Ato Institucional 5 (AI-5, de 13 de dezembro de 1968) e o
“lento e gradual” processo de abertura política, o que, inclusive, possi-
bilitou a crítica ao pensamento quatroessista, principalmente nos primei-
ros anos da década de 1980.
Para se ter uma ideia da expansão desses clubes durante o período em
questão, no ano de 1979, 71 dos 197 municípios catarinenses realizavam
trabalhos com Clubes 4-S. Naquele período, a extensão rural em Santa
Catarina atingiu um número recorde de agricultores, comparando com
dados de até meados da década de 1980: 104.633 famílias assistidas.
Neste contexto, os clubes 4-S surgiam a cada dia, sendo que, apenas em
1982, formaram-se 348 clubes espalhados por todo o estado, com cerca de
12.500 sócios (ACARESC, 1981-1982, p. 9). Mais especificamente, foi na
região Oeste do estado de Santa Catarina que se concentraram as aten-
ções para o trabalho com esses clubes durante a década de 1970. Em
1978, das 16 equipes de extensionistas de Juventude Rural da ACARESC
responsáveis pela organização dos Clubes 4-S, 12 atuavam nessa região
do estado, que havia inaugurado seu primeiro escritório regional na pri-
meira metade da década de 1960. Embora os primeiros Clubes 4-S tenham
surgido no estado ainda na década de 1960, sabe-se da existência dessa
forma de trabalho com juventude rural na região Oeste desde 1972 –
Clube 4-S Aliança Juvenil, da comunidade de Sede Figueira, município de
Chapecó – resistindo até a atualidade, embora não pertencendo mais às
agências oficiais de extensão rural.
A sigla 4-S significa: Saber, Sentir, Servir e Saúde. Na realidade, se trata
de uma adaptação para a língua portuguesa da sigla 4-H (Head, Heart,
Hands e Health), denominação que recebem esses clubes nos Estados
Unidos. Nesta perspectiva, a tradução para o português procurou se apro-
ximar aos significados da sigla norte-americana 4-H, ou seja: Cabeça
(head), metáfora de conhecimento ou Saber; Coração (heart) para Sentir;
Mãos (hands) para Servir; e Saúde (health). Essa forma de trabalho surgiu
nos primeiros anos do século XX nos Estados Unidos, e após o Smith-Lever
Act de 1914, lei que organizou diversas práticas voltadas à agricultura
sob o nome de Extension Service (extensão rural, na adaptação brasileira
do termo), esses clubes começaram a tomar uma forma institucionalizada.
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), mais especificamente em
1917, o Extension Service e, por consequência, os Clubes 4-H começaram a
receber mais verbas em virtude da necessidade de aumento da produção
agrícola para suportar o então período de conflito.

198 História do Campesinato na Fronteira Sul • Claiton Marcio da Silva


Assim como o modelo de extensão rural, que tem por objetivo
introduzir novas técnicas e tecnologias aos agricultores, os Clubes 4-H
estão baseados no princípio de “aprender a fazer, fazendo” (learning by
doing), ou seja, o aprendizado é guiado pela prática, pela experiência,
característica predominante no emergente pensamento pragmático norte-
-americano. Através da experiência de lidar com novas técnicas, de
acordo com o extensionismo, são possibilitadas as mudanças desejadas
na maneira de organizar a produção por parte dos agricultores. Essa for-
ma de organização racional da produção significa muito mais do que
simplesmente o ato de produzir economicamente; significa também o ge-
renciamento global da propriedade, principalmente nos aspectos compor-
tamentais e sanitários. Em outras palavras, nas décadas posteriores,
procurou-se intervir nos comportamentos dos agricultores em relação
à higiene pessoal e à estrutura sanitária da propriedade rural, tendo em
vista a necessidade de construir um trabalhador saudável e, com isso,
capaz de levar adiante a tarefa de produzir de forma adequada à crescente
demanda guiada cada vez mais pela ótica de produção capitalista.

3 O Oeste de Santa Catarina:


a invenção do “celeiro catarinense” na década de 1970

O Oeste de Santa Catarina do início da década de 1970 assistiu cada


vez mais ao direcionamento político que reforçava uma ideia de que o
espaço urbano não podia perder determinados laços com o meio rural.
Isso porque o campo foi caracterizado como um lugar de “atraso” técnico
e tecnológico, em oposição ao espaço urbano (lugar de desenvolvimento).
Os discursos procuravam ressaltar a necessidade de sincronia entre
campo e cidade: transformando, modernizando as técnicas de produção
do campo brasileiro, o desenvolvimento alcançaria outros espaços. Em
outras palavras, civilizaria colonos e caboclos oestinos.
Já em 1929, com a viagem do governador Adolfo Konder à região
Oeste de Santa Catarina, procurou-se “marchar para o Oeste” e “legitimar
o reconhecimento do poder emanado do centro político-administrativo”.
Esse foi um momento, além da busca de construção de uma identidade
na região com o povoamento de colonos do Rio Grande do Sul, que pro-
curou intervir no sentido de “implantar a civilização no Oeste de Santa
Catarina” (FLORES; SERPA, 1999, p. 215). A própria criação da Secre-
taria dos Negócios do Oeste (SNO, a única no Brasil) na década de 1950
envolveu a legitimação do governo estadual sobre uma região “descontente”
com a atuação de seus governantes e que antes fora parte do Território
Federal do Iguaçu (HASS, 2001). Sendo o Oeste de Santa Catarina objeto
de preocupação das autoridades do estado em outros momentos, também
tornou-se efetivamente objeto do olhar extensionista na década de 1970.

Juventude rural e modernização da agricultura: tensões entre extensão rural e movimentos sociais na região Oeste de Santa Catarina... 199
Na década de 1970, de acordo com a ACARESC, o “problema número
um” da agricultura catarinense seria “a baixa produtividade do trabalho
humano, resultante do baixo nível de conhecimentos da tecnologia de
produção e comercialização das safras. Ainda hoje é pouco expressivo o
número de agricultores que estão modernizando suas empresas rurais e
comercializando com sucesso”, destacaria o relatório. Ainda nessa linha
de argumentação, a publicação da ACARESC apontou que “os levanta-
mentos sobre os índices de sanidade das populações rurais catarinenses
têm demonstrado alta incidência de verminose, decorrente da falta de
hábitos de higiene adequados” (ACARESC, [1977], p. 19-20).4 Se estes
eram alguns dos principais problemas da agricultura catarinense a serem
enfrentados, de acordo com a argumentação dessa instituição, a situação
ganhava contornos mais dramáticos na região Oeste, o que justificaria a
concentração de escritórios em Herval do Oeste, Joaçaba e Videira ainda
na década de 1950 (OLINGER, 2006, p. 22), difundindo-se por toda a re-
gião principalmente na década de 1970.
Neste período, de acordo com a economista Evelize Espírito Santo
(1999, p. 88), a região Oeste passou a ser considerada o “celeiro catari-
nense” devido à grande quantidade de grãos produzidos, sendo a princi-
pal produtora de feijão, milho, soja, trigo, batata, mandioca, bovinos de
leite, suínos e aves do estado, representando mais de 50% do Valor Bruto
da Produção Agropecuária Catarinense. A agroindústria, existente na
região desde a década de 1940, se moderniza e se difunde naquela década,
e com ela cada vez mais a região recebe incentivos da política agrícola
governamental do período:
O principal instrumento de política agrícola, de 1964 até meados da
década de 80, foi o crédito rural subsidiado vinculado às grandes pro-
priedades, sendo que em Santa Catarina os estímulos do crédito foram
destinados principalmente às agroindústrias de aves e suínos. Em 1970,
o grupo Sadia implanta no Oeste Catarinense o sistema de integração
para produzir aves através da parceria com os produtores, o qual foi
posteriormente utilizado pelas demais empresas ali instaladas na década
de 70, não só para a produção de aves, mas também de suínos (ESPÍRITO
SANTO, 1999, p. 87-88).
De acordo com a posição do governo federal no início da década
de 1970, fazia-se necessário sincronizar o passo entre a agricultura e a
indústria no país. Para o então Ministro da Fazenda, Delfim Neto, “uma

4
De acordo com sugestão da ex-extensionista Siomara Marques, na década de 1980
esses problemas não eram tão agudos, principalmente no Oeste de Santa Catarina.
Algumas comunidades mistas (caboclos e descendentes de europeus) tinham essas
características, mas o importante é destacar que os relatórios da ACARESC eram
genéricos demais. MARQUES, Siomara. Entrevista. Laranjeiras do Sul, dez. 2010.

200 História do Campesinato na Fronteira Sul • Claiton Marcio da Silva


agricultura forte multiplicará as oportunidades que este país tem para
alcançar, com rapidez, o seu desenvolvimento pleno”. Palavras estas
proferidas no lançamento nacional do programa “Plante que o Gover-
no Garante”, do qual Chapecó foi palco no início dos anos 70. Isso signifi-
caria, segundo Delfim Neto, que “nós precisamos crescer estimuando ao
mesmo tempo a expansão industrial e o fortalecimento da agricultura”
(CELEIRO CATARINENSE, 1970, p. 17).
Pode-se observar que a participação do Estado neste contexto deu-se
enquanto “agente financiador da modernização da agricultura, [...] atra-
vés do sistema de crédito rural subsidiado, que [...] estimulou a moderni-
zação e, por outro lado, foi considerado o elemento central para explicar
as desigualdades na modernização” (ESPÍRITO SANTO, 1999, p. 101). Ou
seja, os agricultores que tiveram acesso a crédito farto e barato estiveram
“incluídos” no processo de modernização da agricultura. Os outros
foram excluídos, ou mantiveram-se “atrasados” frente a este processo.
Assim, temos nos trabalhos com extensão rural um elemento de poder,
que procura formar novos sujeitos “técnicos” e discipliná-los a produzir
e viver no campo, objetivando que a “economia nacional não falhe”
(CELEIRO CATARINENSE, 1970, p. 17). Como se pode observar, o Estado
(através de seus representantes ou intelectuais) acompanhou de perto os
trabalhos de extensão rural.
Esses representantes do governo militar, que se instaurou no Brasil a
partir de 1964, expunham a maneira de alcançar os objetivos propostos: “é
por isso que estamos aqui, os Ministros da Agricultura e da Fazenda, para
dizer aos senhores que plantem mais. Que o façam buscando melhoria
de produtividade, através do uso de fertilizantes, de equipamento agrí-
cola, de semente selecionada” (CELEIRO CATARINENSE, 1970, p. 18). Mas
se, nesse momento, o Oeste de Santa Catarina era desenhado enquan-
to o principal produtor agrícola no estado, as resistências e a mudança do
contexto político no final daquela década apontam para um questiona-
mento das práticas modernizadoras da agricultura, dos Clubes 4-S e da
extensão rural. Este processo ficou mais evidenciado no início da década
de 1980, como será debatido a seguir.

4 A crise da extensão rural e dos Clubes 4-S

Se a década de 1970 assistiu a um processo de crise da extensão rural


no Brasil, o período posterior ao início da crise coincide com o momento
em que os Clubes 4-S se desenvolveram efetivamente no Oeste de Santa
Catarina e em outras regiões do estado. Observo que a crise do discurso
extensionista, dirigida ao jovem rural, foi contundente no início da década
de 1980. Foi neste momento que as discussões aconteceram, e que a

Juventude rural e modernização da agricultura: tensões entre extensão rural e movimentos sociais na região Oeste de Santa Catarina... 201
extensão rural e os demais interessados resolveram questionar-se sobre as
experiências de trabalhos com a juventude rural. Foi também um período
em que os movimentos sociais afloraram no campo, principalmente
no Oeste de Santa Catarina, com a organização das oposições sindicais,
Movimento dos Sem Terra (MST), do Movimento das Mulheres Agricul-
toras (MMA, atualmente Movimento das Mulheres Camponesas) e mes-
mo do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
O surgimento desses movimentos sociais também esteve ligado aos
impactos econômicos e sociais trazidos pelo processo de modernização da
agricultura no Oeste de Santa Catarina. Isso ocorreu porque “a introdução
de variedades melhoradas de sementes, exigentes em insumos modernos,
importados e de alto custo, resultou também em benefícios para as pro-
priedades de maior tamanho, marginalizando, e não raras vezes, forçan-
do, pequenos agricultores a abandonar a atividade” (ESPÍRITO SANTO,
1999, p. 99).
No processo de mobilização dos agricultores excluídos pelo processo
modernizador, as pastorais ligadas à Igreja Católica entraram em ação,
procurando reunir e discutir sobre a situação desfavorável dos pequenos
agricultores. As práticas modernizadoras da extensão rural fomentaram
o surgimento de movimentos sociais na região Oeste, envolvendo muitos
dos excluídos por este processo. A região também foi lugar onde a esquer-
da católica5 se fez presente e, neste sentido, aponta-se uma rivalidade
entre grupos de jovens (da Igreja Católica) e os Clubes 4-S. De acordo
com os relatos de um ex-quatroessista e que posteriormente vinculou-se
à Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das estratégias utilizadas pelos
grupos católicos para impor sua forma de trabalhar com a juventude rural
no início da década de 80 foi a seguinte: eleger uma pessoa do grupo de
jovens, ou ligada a este, para assumir a diretoria de um Clube 4-S. Assim
sendo, quando esta diretoria com visão crítica tomasse posse, o grupo
“implodiria” o Clube 4-S, ou seja, encerrava suas atividades. Essa versão
foi confirmada por uma ex-extensionista que trabalhou na ACARESC de
1983-1986, no município de Pinhalzinho, que, por outro lado, demonstra
que nesta região a própria Igreja incentivava a participação dos jovens
nestes clubes, mas com uma visão crítica.6
Num contexto de críticas à extensão rural e aos Clubes 4-S, produ-
ziram-se no início da década de 1980 relatórios apontando para possíveis
soluções da crise em encontros da ACARESC. Na segunda metade da
década de 1970, em termos de adesão, a ACARESC conseguia ainda
atrair um número significativo de jovens para os Clubes – o Encontro de
5
Para Campigotto (1996, p. 1), a esquerda católica é a ala da Igreja Católica ligada à
Teologia da Libertação. Reúne leigos, padres, religiosos e bispos que assumiram uma
postura teológica em torno da opção preferencial pelos pobres.
6
MARQUES, Siomara. Entrevista. Laranjeiras do Sul, dez. 2010.

202 História do Campesinato na Fronteira Sul • Claiton Marcio da Silva


Juventude Rural em Chapecó em 1978 reuniu cerca de 8.500 sócios 4-S
de todo o estado de Santa Catarina. No entanto, no início dos anos 80 a
história foi diferente. O Encontro de Extensão Rural de 1982, realizado
em Morro das Pedras (Florianópolis), apontou sobre a situação dos
trabalhos de extensão rural no estado, incluindo os Clubes 4-S. Contando
com a participação de pessoas interessadas no trabalho de extensão rural,
incluindo jovens rurais, o panorama apresentado no encontro foi diferente
do discurso que adentrou no campo com a ação extensionista. Naquele
momento, a extensão rural e os Clubes 4-S voltaram o olhar para si e
começou-se a constituir um discurso não apenas sobre as possibilidades,
mas sobre as dificuldades:
Chegou um momento em que o agricultor ficou até arisco quando
vinha uma pessoa de fora. Quer dizer que, temos um dado aí – quando
o cachorro apanha água quente, depois atira nele água fria ele também
já corre. Então, de tanta coisa que apareceu, o agricultor ficou arisco.
Acreditou no trabalho da extensão rural, mas nela também havia algu-
mas falhas e, hoje, numa maneira diferente de educação popular que
muitas entidades também estão desenvolvendo, eles estão abrindo os
horizontes e o pessoal começa a falar, a se abrir, discutir, analisar os fatos,
tomar soluções, quer tomar parte das decisões. Isto favorece e hoje, eles
comentam esses erros que estão influenciando (EMATER/ACARESC,
1982, [s.p.]).
No início da década de 1980, os cursos de formação de extensionistas
passaram a ser influenciados por leituras críticas da intervenção junto
aos agricultores. Livros de Paulo Freire foram discutidos, principalmente
Pedagogia do oprimido e, posteriormente, Extensão ou Comunicação, ambos
publicados pela Editora Paz e Terra, ligada à Igreja Católica (Entrevista
com MARQUES, 2010). Por dentro da estrutura estatal de extensão rural
sintonizou-se o discurso com o dos movimentos de resistência. Um episó-
dio importante, neste sentido, foi o caso da peste suína africana na região
Oeste: surgida em 1978, supostos focos da doença foram identificados
na região Sul do país, inclusive nesta região, e “diante da suspeita de
existência da peste, a propriedade era interditada e os suínos eram
exterminados a tiros de fuzil por pelotões do exército [...]. Também eram
exterminados os suínos das propriedades mais próximas” (POLI, 1998, p.
68). Com o passar do tempo, a partir de um suposto foco da doença, as
propriedades eram acompanhadas de perto por dois agentes da Pastoral –
um ligado à CPT (Comissão Pastoral da Terra) e outro ao CIMI (Conselho
Indigenista Missionário) – destacados pela Diocese de Chapecó. Neste
sentido, os agentes procuraram organizar “os camponeses para protestar
e resistir”, pois houve indícios, segundo estes agentes, que a “suposta
peste foi uma estratégia para a eliminação definitiva da produção autô-
noma de suínos na região” (POLI, 1998, p. 69).

Juventude rural e modernização da agricultura: tensões entre extensão rural e movimentos sociais na região Oeste de Santa Catarina... 203
Formavam-se movimentos de protesto no momento em que se
divulgava a localização de um foco ou uma determinação de extermínio:
“aos poucos, as ações do exército foram praticamente inviabilizadas devi-
do à onda de protestos que desencadearam [...] Paralelamente, a Igreja
procurou fazer um trabalho de informação e conscientização dos campo-
neses da região, orientando-os a protestar e resistir” (POLI, 1998, p. 69).
Mesmo não sendo apontado como uma crítica direta à extensão rural, este
episódio foi decisivo para a organização dos agricultores, como confirma
o relato de um agente de pastoral: “Eu acho que foi decisivo na luta aqui.
Que o processo de mobilização de 78 e 79 é que deu fôlego para que as
outras organizações avançassem, deslanchassem. Fortaleceu o trabalho
que a Igreja tava fazendo, fortaleceu o trabalho de oposições sindicais, de
renovação dos sindicatos que estavam surgindo” (apud POLI, 1998, p. 69).
Deve-se considerar que este foi um processo que envolveu muitas
discussões sobre a situação desfavorável dos pequenos agricultores na
região Oeste de Santa Catarina frente às consequências do processo de
modernização da agricultura, e sempre contando com a Diocese de Cha-
pecó na organização dos debates. Assim, os colonos foram chamados ao
debate sobre sua situação de expropriação ou de endividamento, e como
procurei ressaltar anteriormente, a ACARESC é representante legítima da
extensão rural no estado e, portanto, alvo de críticas.
Neste período, outros olhares dirigiram-se à extensão rural por parte
de seus integrantes:
Numa reunião que fizemos numa comunidade, num comitê 4-S, convi-
dados que fomos para participar da reunião, perguntamos por que os
agricultores não participavam mais, e um agricultor disse: “porque a
ACARESC não queria a verdade, tempo atrás”, e explicou porque – é
que foi feita uma lavoura demonstrativa na propriedade dele, de soja, e
quando estava pronto só para colher, o extensionista foi lá medir a área e
o resultado foi de 44 sacas por hectare. Depois o agricultor colheu o resto
do hectare e ensacou e foi vender e só deu 33 bolsas. Então já houve uma
coisa contrária, aí. Naquela vez que o extensionista tirou a medida para
saber quando dava por hectare, numa pequena área, deu uma diferença
de 11 sacos, – o extensionista tirou 44 e o agricultor, quando foi vender,
só deu 33. Então o agricultor denunciou para o extensionista – olha lá,
eu vendi o meu soja e só deu 33 bolsas. E então, o extensionista bateu nas
costas do agricultor e falou: – olha, você fica bem quietinho e diga que
deu 44. O agricultor ficou calado um tempo, mas depois denunciou para
os companheiros, dizendo: eu não posso ficar calado, deixar os compa-
nheiros na mentira, vou ter que dizer a verdade. 33 e não 44. Então, foi
um fato que se comentou e se alastrou. As vezes, um pequeno fato difi-
culta muito a participação do agricultor (EMATER/ACARESC, 1982,
[s.p.]).

204 História do Campesinato na Fronteira Sul • Claiton Marcio da Silva


Estas críticas passaram a circular nos debates envolvendo a ação
extensionista em geral e os Clubes 4-S em particular. A extensão rural
passou a ser criticada no início dos anos 80, como nos mostram os
relatórios do período: não são apenas os grupos de jovens da Igreja que
concorriam com os Clubes 4-S. A ACARESC estava perdendo a legi-
timidade nos trabalhos com a juventude rural, afinal, no exemplo da expe-
riência progressista da prefeitura de Lages, difundiu-se os Clubes 5-L, em
oposição aos 4-S ligados à ACARESC (EMATER/ACARESC, 1982, p. 71):
Estão fazendo do Clube 4-S de Campos Novos, um meio de arrumar
votos para o PDS, e que as lideranças da comunidade, que tem clube
4-S está inclusive se voltando contra a Cooperativa, não sei por que
motivo, e inaugurações que eu fui do Clube 4-S que é hoje, ouvi mais um
coquetel político, do que juventude e Cooperativismo, de colaboração
de Associativismo, dentro do sistema eu não fui na última, mas recebi
informações, mas que foi uma coisa. Eu não concordo que se misture, o
jovem com o político partidário, não concordo com isso, não aceito [...],
vou dizer na frente do supervisor, não vou mais em nenhuma fundação
de Clube 4-S, eu pessoalmente não vou, e os técnicos da Cooperativa pos-
sivelmente não irão; se existir esse carnaval político, toda a vez que
existir uma fundação de clube 4-S (EMATER/ACARESC, 1982, p. 48).
O PDS (Partido Democrático Social) foi fundado em torno de mem-
bros oriundos principalmente da antiga ARENA (Aliança Renovadora
Nacional), partido de sustentação do governo militar entre 1964 e 1979. A
utilização político-eleitoral da ACARESC começou a ser denunciada com
maior ênfase: “Só sei dizer quando tem uma fundação, Santa Terezinha,
Santa Lúcia do Clube 4-S fui convidado, estava lá até o coletor do
distrito, e o presidente da associação dos engenheiros agrônomos não foi
convidado, para a mesa”, relatou um agricultor. “Isso aí é discriminação,
acho que estava lá como num cargo de classe, não como político, e todos
do PDS foram convidados, só porque ele é do outro lado, agora presi-
dente da Associação do Núcleo dos Engenheiros Agrônomos, não foi
convidado” (EMATER/ACARESC, 1982, [s.p.]). Diante dessa situação de
ingerência, caso um candidato de oposição assumisse tanto o governo do
estado quanto uma prefeitura, “[...] vai criar sérios problemas, devido a
esse tipo de trabalho, esta conotação, que a ACARESC está dando, politi-
camente” (EMATER/ACARESC, 1982, [s.p.]). Ao ser representada enquanto
uma instituição com fins eleitorais, a ACARESC ganhou adversários
político-eleitorais, principalmente provindos dos movimentos sociais em
questão.

Juventude rural e modernização da agricultura: tensões entre extensão rural e movimentos sociais na região Oeste de Santa Catarina... 205
Considerações finais

Na década de 1980, o discurso de intelectuais da extensão rural, como


Glauco Olinger, se alterou. Na década de 1970 os fertilizantes e demais
aparatos da agricultura “moderna” foram difundidos, por isso as práticas
precisavam ser revistas:
Quanto às técnicas de trabalho e produção a serem empregadas, sabe-se
que, durante muito tempo, principalmente nos últimos 30 anos, a tecno-
logia que os órgãos de pesquisa vinham recomendando para ser difun-
dida entre os agricultores centrava-se no uso intensivo dos chamados
insumos modernos, principalmente o uso de corretivos, fertilizantes,
agrotóxicos e máquinas agrícolas. Era essa a diretriz para se racionalizar
a agricultura e isto foi feito, honestamente, pela maioria dos técnicos
envolvidos na pesquisa e na extensão rural (OLINGER, 1987, p. 69).
Racionalizar o emprego de técnicas e tecnologias na agricultura catari-
nense: este objetivo foi alcançado. Porém, as coisas mudam: “a tecnologia
que se vinha usando está sendo alterada. Já existe muito controle de
doenças e pragas que reduzem o uso de agrotóxicos. Por exemplo, o com-
bate da lagarta de cana-de-açúcar, com uma mosca, que é o inimigo
natural da praga, hoje é largamente utilizado nos grandes canaviais de
São Paulo” (OLINGER, 1987, p. 69).
A modernidade do campo em meados da década de 1980 já não era
a mesma das décadas anteriores, pois os produtos químicos não mais
representavam aquilo que há de mais moderno: “A agricultura biológica
é altamente moderna, e não atrasada. Quando se volta a usar o esterco
orgânico, a fazer o composto, não se trata de voltar a uma prática
antiga, mas sim de racionalizar a agricultura” (OLINGER, 1987, p. 70).
A adoção de uma prática deslegitimada pela extensão rural ao longo de
décadas (o uso de esterco para a adubação, por exemplo) não equivale ao
retorno dessa mesma prática, mas a sua reelaboração e racionalização. É
necessário que essa prática “arcaica” seja testada, comprovada, para que
seja legitimada enquanto uma prática moderna. E também pode-se pensar
que a dualidade entre “campo versus cidade”, “moderno versus arcaico”
permanece nos discursos, mesmo que práticas consideradas modernas, na
década de 1970, representassem sua oposição na década de 1980.
Os produtos químicos, por exemplo, que por muito tempo significaram
modernidade para o agricultor, foram substituídos pelos orgânicos. Des-
te modo, “na hora de se orientar o agricultor, deve-se dar preferência à
adoção de processos biológicos no controle das doenças e pragas da
lavoura, sempre que possível. O mesmo vale quanto ao uso de adubo
orgânico, em relação aos produtos químicos” (OLINGER, 1987, p. 70).
Mas muito permaneceu: “Eles (os técnicos) precisam permanecer junto

206 História do Campesinato na Fronteira Sul • Claiton Marcio da Silva


ao agricultor, o maior tempo possível, convivendo e fazendo as demons-
trações com ele, fazendo com que ele repita e corrija o que precisar ser
corrigido. Esta é a filosofia que deve presidir a ação extensionista”
(OLINGER, 1987, p. 70).
Em meu argumento, mesmo com tantas críticas e revisões, a filosofia
tradicional da extensão não foi completamente abandonada, princi-
palmente pelos grupos dirigentes: ainda permanece a ideia de que o
extensionismo deveria se encarregar de levar conhecimento técnico ao
agricultor e, atualmente, a internet pode ser vista pelo governo estadual
como uma importante ferramenta neste sentido. Tradicionalmente
procurou-se constituir o extensionismo enquanto a “ponte” que leva o
conhecimento comprovado ao agricultor, mesmo um contexto de crise, de
revisão de métodos, por isso determinadas ideias permanecem e precisam
ser revisadas.

Referências
Documentação governamental
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Documentação da extensão rural


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208 História do Campesinato na Fronteira Sul • Claiton Marcio da Silva


11
Trajetórias camponesas:
resistências, exclusões, êxodos
e tentativas de reinserção

Edemar Rotta

E ste artigo retrata a trajetória dos camponeses na Fronteira Noroeste


do estado do Rio Grande do Sul. Resistências, exclusões, êxodos e tenta-
tivas de reinserção marcaram e marcam a vida dos camponeses ao longo
da história. O texto concentra sua análise a partir do processo de moder-
nização da agricultura, iniciado em meados da década de 1960, por
entender que ele intensifica as formas de exclusão/resistência/êxodos e
tentativas de inserção. O texto é construído a partir da trajetória acumu-
lada de estudos sobre a região nos processos de pesquisa, elaboração de
dissertação de mestrado e tese de doutoramento. Porém, também retrata
vivências e histórias de vida contadas ao longo de mais de trinta anos de
convivência nesta região.
O texto inicia com uma breve reflexão sobre a crise do modelo de
colonização implantado na região a partir da segunda metade do século
XIX, com base na pequena propriedade, na agropecuária e agroindústria
familiar e no pequeno comércio. Em seguida, evidencia-se o processo de
modernização da agricultura, com base no pacote tecnológico da revo-
lução verde. Fecha-se o texto com a análise do processo de reestruturação
produtiva ocorrido a partir da década de 1980 e os reflexos para a reali-
dade atual.

1 A crise do modelo da colonização

A década de 1950 pode ser colocada como um divisor de águas na


sociedade regional. O modelo de organização social construído a partir

Trajetórias camponesas: resistências, exclusões, êxodos e tentativas de reinserção 209


dos referenciais da colonização com imigrantes europeus não ibéricos1 e/
ou seus descendentes, especialmente provenientes das colônias velhas
e das novas colônias do Planalto Rio-Grandense, alcançou seu período
áureo com o “ciclo do suíno”. Porém, já começaram a se esboçar as difi-
culdades de reprodução da agricultura familiar, do pequeno comércio e
da indústria tradicional (ROTTA, 1999). O esgotamento das terras novas
levou a uma intensificação do uso daquelas áreas próprias para a agri-
cultura existentes na propriedade. A pouca rotatividade dos produtos
cultivados, dada a necessidade de alimentar os suínos e produzir o que
tinha demanda no mercado, e a ausência de técnicas de preservação e
correção do solo ocasionaram a queda da produtividade agrícola2, levan-
do ao aumento do custo de produção do suíno e à perda da competiti-
vidade em relação a outras regiões do estado.
Abaixo o perfil do suíno produzido neste período na região:

Figura 1 – Criação de suínos na propriedade de Henrique Gassen, Santa Rosa, 1940.


Foto cedida por Arnaldo Gassen.

1
Referindo-se aos descendentes de europeus não provenientes dos países da Península
Ibérica (Portugal e Espanha), mas de outros países da Europa.
2
Conforme Kappel (1967, p. 2), a produtividade média do milho na região, em 1920, era
de 2.100 kg/ha e reduziu-se para 1.200 kg/ha, em 1966.

210 História do Campesinato na Fronteira Sul • Edemar Rotta


O crescimento da população e o aumento do custo de reprodução da
unidade familiar, em função das novas necessidades de habitação, ves-
tuário, alimentação, educação e saúde, combinados com a queda na lucra-
tividade da produção de suínos, ameaçavam a reprodução da unidade
familiar agrícola. As atividades urbanas dependiam, em grande parte, do
desempenho das atividades agrícolas e não representavam uma alterna-
tiva capaz de absorver a mão de obra excedente na agricultura. A falta
de alternativas na própria região levou muita gente a migrar para outros
estados à procura de novas terras para produzir, bem como alternativas
de trabalho.
A integração das economias regionais e a formação de um mercado
nacional unificado, implementadas pela política desenvolvimentista
(BRUM, 1993) do governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-
1960), romperam as barreiras ao livre fluxo de mercadorias e capitais, inten-
sificando a concorrência. As áreas mais próximas ao mercado consumidor
ou melhor dotadas de infraestrutura básica (produção de matéria-prima,
energia, transportes, comunicação, serviços e mão de obra qualificada),
tornaram-se mais atrativas ao investimento de capital e capazes de con-
correr com maior eficiência no mercado. A economia gaúcha, como um
todo, enfrentou dificuldades para adequar-se aos novos padrões impos-
tos pela concorrência, que exigiam acréscimos de produtividade e incorpo-
ração de novas tecnologias (CANO, 1990; FEE, 1976, 1983, 1990; TARGA,
1989; CARRION JR., 1986).
A perda da competitividade em relação a outras regiões do estado do
Rio Grande do Sul aparecia como o principal problema a ser superado
pela economia regional. A pergunta era: como recuperar a competitivi-
dade? A solução proposta pelo empresariado comercial e industrial urba-
no passava pela modernização das atividades econômicas da região e pela
conquista de novos mercados (Associação de Municípios da Grande Santa
Rosa, 1974, p. 1225-1227).

2 A modernização como alternativa à crise e como novo modelo

O processo de modernização da agricultura, implantado no Brasil a


partir da década de 1960, provocou fortes impactos e rupturas na cons-
tituição da sociedade regional. A incorporação de novas técnicas de traba-
lho e produção, o processo de modernização dos instrumentos e das
formas de produzir e a modificação das posturas individuais e coletivas
em torno do trabalho e da organização social, aliadas à industrialização
dos produtos gerados pela agricultura e pela pecuária e à criação de
uma indústria de máquinas e equipamentos de suporte, permitiram um
reposicionamento em relação ao mercado estadual e nacional, uma inte-

Trajetórias camponesas: resistências, exclusões, êxodos e tentativas de reinserção 211


gração ao mercado internacional, bem como a disputa por espaços em
mercados altamente competitivos.

Figura 2 – Um dos marcos do processo de modernização


da agricultura regional – a Operação Tatu. 1967.
Na propriedade de Paulo Carlos Fischer, Santa Rosa-RS, com a presença
do governador do Estado do Rio Grande do Sul, Walter Perachi Barcellos,
John T. Murdoc, representando a USAID, o engenheiro agrônomo da ASCAR,
Paulo Kappel e o presidente da Associação Rural de Santa Rosa, Pedro Carpenedo.
Fonte: ROTTA, 1999, p. 77.

Um Editorial do Correio do Povo retrata bem a importância e o signi-


ficado da “Operação Tatu”:
Seria exagero dizer-se que, como o programa a ser executado, de melho-
ramento do solo agricultável de Santa Rosa, entre o Rio Grande do Sul
em nova fase de sua economia rural? Certamente não será excesso, mas
simples justiça. Que outras comunas se voltem para o problema, porque
o empirismo não pode prevalecer, na economia dos tempos correntes.
Quem não cuidar da produtividade da terra; quem não imprimir um
cunho técnico à sua produção; quem não se adaptar aos novos rumos e às
novas exigências da realidade, tenderá a sofrer decepções e malogro, que
poderão ser de consequências irreversíveis (Correio do Povo, 20 ago. 1967,
p. 4).

212 História do Campesinato na Fronteira Sul • Edemar Rotta


A integração a este processo de modernização deu nova feição à
centralidade ética do trabalho, que adquiriu uma feição industrial moder-
na. A aliança entre a ciência e a técnica permitiu novas formas de controle
do tempo, dos processos, dos instrumentos e do gerenciamento da pro-
dução, gerando aumentos significativos de produtividade e de qualidade
dos produtos. As empresas, as instituições, as pessoas e os grupos sociais
que incorporaram mais rapidamente essa nova concepção passaram a
servir de referência para os demais, ainda mais se conseguissem ocupar
uma posição de destaque no mercado. A afirmação da concepção indus-
trial moderna de trabalho como dominante e determinante alterou o perfil
da sociedade regional. Ou seja, não era mais suficiente trabalhar e ser
trabalhador, mas sim trabalhar e ser trabalhador com determinado perfil,
dentro de determinado padrão apresentado como modelo a ser seguido.
As novas formas de organização do trabalho estenderam-se para as outras
esferas da sociedade que, aos poucos, modificaram os padrões anteriores
fundados na tradição e nos costumes herdados dos antepassados (ROTTA,
1999).
As novas formas de organização (cooperativas, sindicatos e associa-
ções profissionais) substituíram as formas primárias de solidariedade
baseadas na família, no compadrio e na vizinhança. Os laços e o vínculo
afetivo deram lugar aos vínculos profissionais e de interesses. O costume
foi substituído pela convenção e pelo direito. Cada vez mais os partici-
pantes das relações sociais orientaram suas ações de forma racional,
referente a fins3 estabelecidos ou acordados com seus semelhantes.
A generalização de relações fundadas em “contratos de mútuos
direitos e obrigações”, formalmente constituídos, passou a substituir as
relações informais com base na palavra e na idoneidade moral daqueles
que participavam da relação. O contrato de trabalho passou a reger as
relações entre empregados e empregadores. A relação entre o agricultor
e a instituição financeira passou a ser regulada por contratos de financia-
mento, custeio, empréstimo, entre outros. O agricultor e a agroindústria
passaram a celebrar contratos de “integração”, no qual se definiam as
mútuas responsabilidades. As cooperativas, que em muitos casos repre-
sentavam um papel semelhante ao das agroindústrias, não agiam dife-
rentemente em relação a seus associados. As relações entre vendedor e
consumidor passaram a orientar-se por contratos de compra e venda.
Na medida em que se generalizaram as relações contratuais, adqui-
riram importância as instituições e os profissionais encarregados de regu-
lar os acordos estabelecidos, zelar pelo seu cumprimento, defender as
partes que se achavam lesadas ou ainda propor novas bases para esses
contratos. Foi o caso de um conjunto de instituições e repartições públicas

3
No sentido dado por Weber (1997).

Trajetórias camponesas: resistências, exclusões, êxodos e tentativas de reinserção 213


ou privadas ligadas aos poderes Legislativo, Executivo ou Judiciário, que
agiam através de instâncias locais ou regionais, e os profissionais ligados
a elas, principalmente os funcionários públicos e os advogados. Esses
profissionais passaram a representar grande parcela da população urbana
regional e influíram decisivamente no tipo de comportamento que se
estabeleceu nesse meio.
As relações de solidariedade e ajuda mútua perderam espaço para as
relações de competição, guiadas pelos critérios da eficiência e da produti-
vidade. Os “mais eficientes”, “organizados” e “produtivos” se estabeleceram,
progrediram, encontraram espaço e conquistaram poder. Os outros sucum-
biram, perderam suas terras, seu emprego, sua possibilidade de partici-
pação e ascensão social. As desigualdades sociais e o processo de exclusão
foram justificados pela diferença de desempenho individual. A sociedade
regional assumiu, definitivamente, feições tipicamente capitalistas.
Não dá para negar que a modernização deu novo impulso à agricul-
tura, oportunizou o crescimento da indústria metal mecânica, da indústria
de alimentos e do comércio, que concentravam grande parte da riqueza
gerada na região. Porém, ela não deixou de estar inserida no processo de
“modernização conservadora” que ocorreu em nível de Brasil (AGUIAR,
1986). Processo que previa a modernização da atividade agrícola sem
mexer na estrutura de posse da terra. Tratava-se de integrar a agricultura
ao desenvolvimento industrial que se processava no país, transformando-
-a em consumidora de produtos industriais, produtora de alimentos a
baixos preços para a população urbana, liberadora de mão de obra para
a indústria e produtora de excedentes exportáveis para equilibrar a
balança de pagamentos, deficitária em função da importação de bens de
capital. Para viabilizar esse processo foi decisiva a intervenção do Estado,
especialmente através da ação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope-
cuária (EMBRAPA), do Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Exten-
são Rural, (no caso do RS a ação da EMATER), do Sistema Nacional de
Crédito Rural, da política de preços mínimos e do Programa de Garantia
da Atividade Agropecuária (PROAGRO).
Com a modernização da agricultura e o desenvolvimento da agroin-
dústria é que se ampliou o trabalho assalariado urbano. A implantação
de indústrias de máquinas e implementos agrícolas e indústrias transfor-
madoras dos produtos agrícolas, aliada à necessidade de nova infraestru-
tura de armazenamento, transporte e comunicação e a reestruturação
dos serviços, especialmente os de assistência técnica, comércio e financia-
mento, disseminaram o trabalho assalariado. Alguns municípios, tais
como Santa Rosa, Cruz Alta, Santo Ângelo, Ijuí, São Luiz Gonzaga, Três de
Maio, Panambi e Horizontina, passaram a representar polos microrregionais
de concentração de indústrias e serviços que deram suporte a essa nova
realidade e atraíram a população que evadia do meio rural.

214 História do Campesinato na Fronteira Sul • Edemar Rotta


O crescimento do trabalho assalariado urbano desencadeou a forma-
ção dos sindicatos de trabalhadores em diferentes setores. Os profissionais
liberais começaram a se ligar às suas organizações corporativas e os pró-
prios empresários buscaram fortalecer sua organização. Essa organização
na defesa de seus interesses demonstra certo grau de consciência de
classe e/ou categoria profissional, somente possível pela identificação ou
contraposição a outras classes e/ou categorias profissionais. O processo
de urbanização não significou apenas uma grande concentração de pes-
soas num relativo espaço geográfico, mas também o alastramento de um
modo e de um tipo de vida que começou a se tornar dominante no Brasil
na segunda metade do século XX, ou seja, um modo de vida urbano-
-industrial em que predominam relações de trabalho assalariadas e uma
maior especialização das diferentes atividades através da divisão do tra-
balho.
No espaço urbano se estruturou um sistema de prestação de servi-
ços na área educacional (com as escolas públicas, confessionais e de fun-
dações comunitárias), na área da saúde (com consultórios médicos e
dentários, clínicas especializadas e os hospitais comunitários), na área de
transportes, construção civil, sistema financeiro, lazer, repartições públi-
cas federais, estaduais e municipais. Esse conjunto de serviços contribuiu
para a dinamização da economia regional e a consolidação de um novo
espaço de trabalho e atração de investimentos.
Davidovich (1994) observa, porém, que o estilo de vida urbano impli-
cou, no Brasil, grande ampliação do terciário, no qual se incluem ativi-
dades pertinentes à circulação do capital e das mercadorias, tais como o
sistema bancário e de transporte, a organização publicitária e comercial
e os serviços públicos e administrativos. Mas, passaram a existir também
ocupações de baixa produtividade, tais como biscateiros, vendedores
autônomos e empregos domésticos, que, muitas vezes, recebiam remune-
ração inferior ao salário mínimo oficial, gerando uma população que
tendia a aumentar o contingente dos excluídos.
Essa situação é observada na região Noroeste. O expressivo aumento
da população urbana a partir da década de 1970 trouxe grandes proble-
mas para as cidades que não foram planejadas para acolhê-los. A falta de
infraestrutura (luz, água, esgotos, iluminação pública, etc.), os serviços
públicos precários, a falta de programas para a construção da casa pró-
pria, a especulação imobiliária e a ausência de trabalho remunerado para
todos, geraram uma situação tensa e insustentável no espaço urbano.
Esta situação é bem descrita em relatório realizado pela Fundação
de Integração e Desenvolvimento do Noroeste do Rio Grande do Sul
(FIDENE) em conjunto com a Secretaria do Trabalho e Assistência Social
(STAS) a respeito da cidade de Santa Rosa.

Trajetórias camponesas: resistências, exclusões, êxodos e tentativas de reinserção 215


Na maior parte das vilas, 49,09% de seus moradores têm emprego fixo,
20,00%, têm emprego temporário e outros 30,90% dos moradores vivem
de biscates. Essa situação se agrava quando se constata que em 54,54%
das vilas os trabalhadores têm como renda familiar média até um salário
mínimo regional. Somente em 34,54% das vilas os trabalhadores têm
como renda familiar média até dois salários mínimos. E, 10,90% das vilas
seus moradores recebem até 3 salários mínimos regionais. Essas médias
de salários devem suportar os custos para manutenção de famílias que
têm no mínimo 5 pessoas, com reflexos diretos portanto, nas condições
de vida que são na grande maioria precaríssimas. Esses níveis de salários
não permitem a satisfação das necessidades básicas nem de alimentação
e nem de saúde, da habitação, do transporte e do lazer (FIDENE/STAS,
1985, p. 91).
O novo modelo que se afirmou como hegemônico na região, fundado
na racionalidade industrial moderna e viabilizado pelo processo de inser-
ção competitiva no mercado nacional e internacional por via da moderni-
zação da agricultura e da agroindustrialização, revelou-se mais excludente
do que o modelo anterior. A exclusão ocorreu a partir das novas formas
de organização e divisão do trabalho, de inserção no mercado, de acesso
ao conjunto de direitos legais estabelecidos no novo ordenamento jurí-
dico-institucional, de participação no sistema político e de acesso à
distribuição da renda social gerada. O novo paradigma tecnológico,
fundado na ciência aliada à técnica, excluiu do acesso ao trabalho e à terra
aqueles que não conseguiram, por motivos diversos, incorporar os prin-
cípios da racionalidade industrial moderna, ou os relegou a atividades
“marginais”. Isso ocorreu especialmente com os agricultores familiares
e assalariados urbanos, mas atingiu, com menor intensidade, os comer-
ciantes e os industriais.
Aos índios e caboclos, excluídos a partir do momento em que se
afirmou o modelo da recolonização com base nos descendentes de euro-
peus não ibéricos, somaram-se os excluídos desse novo processo: agricul-
tores familiares sem capital suficiente para investir em modernização,
que foram excluídos da agricultura, migrando para a cidade em busca
de emprego ou permanecendo à margem e produzindo para pequenos
espaços do mercado local; assalariados urbanos que não ganhavam o
suficiente para suprir adequadamente suas necessidades básicas; desem-
pregados que, de uma ou de outra forma, tentavam garantir sua sobrevi-
vência exercendo atividades no mercado informal de trabalho; pequenos
e médios comerciantes que não resistiram à concorrência; pequenos e
médios industriais sem capital suficiente para investir no processo de
modernização.

216 História do Campesinato na Fronteira Sul • Edemar Rotta


3 A reestruturação produtiva e as novas tendências
a partir da década de 1980

Ao final de década de 1970, tornaram-se claras as dificuldades de


manutenção da “ordem mundial” gestada no pós-guerra, tanto do lado
capitalista quanto do socialista (LIPIETZ, 1991). Os modelos de desen-
volvimento entraram em crise em função dos problemas internos e da
emergência de um novo cenário internacional. Essa crise foi sentida no
Brasil, de forma mais intensa, a partir da década de 1980 e, na região
Noroeste, na segunda metade dessa mesma década. A crise tornou claras
as vulnerabilidades do modelo anterior e passou a exigir da sociedade
local diagnóstico mais aprofundado para produzir clareza dos problemas,
vislumbrar alternativas e mobilizar os atores sociais para colocá-las em
prática.
Após duas décadas de expressivo crescimento econômico, impul-
sionado pelo processo de modernização da agropecuária e da agroindús-
tria, a região defrontou-se com sinais evidentes do esgotamento desse
modelo. O crescimento do endividamento do país e a consequente perda
da capacidade do Estado em manter a política protecionista, fundada nos
subsídios, incentivos e financiamentos, fizeram com que os agentes pro-
dutivos locais fossem “jogados” em uma economia de mercado sem terem
criado as condições indispensáveis para tal.
O processo de reestruturação do capitalismo internacional gerou
novas bases de produção e competitividade, forçando a redefinição das
indústrias locais, que passaram a ter que adotar novas tecnologias, novos
processos de trabalho e novas formas de se inserir no mercado. Nesse
processo, muitas viram suas condições reduzidas e foram forçadas a aliar-
-se ou a transferir seu controle acionário a grandes empresas transna-
cionais para continuar existindo. Com isso, perderam sua autonomia e
tornaram-se mais vulneráveis ainda às constantes flutuações do mercado
internacional. Essa nova realidade também trouxe consequências diretas
para os trabalhadores, no sentido de ampliar o trabalho precário e aumen-
tar o desemprego.
A economia gaúcha, em razão da opção adotada no período pós-
-1964, de se inserir na economia nacional e internacional via agricultura
de exportação e indústria subsidiária ao centro dinâmico do eixo São
Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte, ficou cada vez mais suscetível às
flutuações cíclicas da economia nacional e internacional. Essa condição
agravou-se ainda mais com a intensa crise vivida pelo governo estadual,
que perdeu completamente sua capacidade de fomentar a economia local
(FARIA, 1994).
O modelo da modernização gerou um processo de trocas desiguais que
foi, gradativamente, descapitalizando os agentes econômicos e limitando

Trajetórias camponesas: resistências, exclusões, êxodos e tentativas de reinserção 217


sua capacidade de realizar novos investimentos. A compra de tecnolo-
gias, de insumos e de instrumentos modernos para a realização do trabalho
superava, em muito, o preço obtido com a venda das mercadorias produ-
zidas. Agricultores e industriais foram endividando-se constantemente na
tentativa de se manter na atividade. O endividamento fez com que outra
parcela significativa da produção fosse direcionada para o pagamento de
juros, reduzindo ainda mais sua capacidade de manutenção e de reprodução.
Em grande parte, os avanços alcançados com as atividades da
agropecuária moderna e da indústria não foram estendidos aos outros
setores da economia em razão de uma falta ou de uma deficiente arti-
culação com os mesmos. As trocas entre os setores também não foram
no sentido de dinamizá-los, mas sim de transferir renda de uns para os
outros. Com isso, o crescimento de uns acabou significando a falência de
outros. Como exemplo simples, pode-se considerar que para manter os
lucros das indústrias transformadoras (leite, suínos, grãos, etc.), os produ-
tores de matérias-primas foram sendo descapitalizados.
A opção pela monocultura e pela mecanização das atividades agrí-
colas, numa região de estrutura fundiária assentada na pequena proprie-
dade, com pouca capacidade de investimento e de absorção da mão de
obra, acabou gerando a liberação excessiva de contingentes populacionais
para os centros urbanos. As cidades da região, em sua maioria de
pequeno porte, não tiveram condições de absorver a população exce-
dente que passou a migrar para outras regiões do estado e do país. A
migração significou a saída de recursos humanos e materiais que seriam
indispensáveis para o futuro da região. A falta de perspectivas no espaço
regional fez ainda com que grande parte da população jovem passasse a
buscar alternativas de trabalho e de futuro em outros locais. Essa saída
acabou levando contingentes expressivos da mão de obra especializada e
mais dinâmica presente no espaço local. Em termos de desenvolvimento
regional, esta é uma situação altamente negativa.
A região Noroeste do RS apresenta um conjunto de fatores que tem
dificultado a atração de investimentos e colocado a mesma à margem dos
principais corredores econômicos do país. Entre estes pode-se destacar
a deficiência de infraestrutura em termos de distância dos principais
portos de exportação; a falta de acesso asfáltico a muitos municípios; a
dependência exclusiva do transporte rodoviário (a via férrea, embora
existindo ramal até a região, está subutilizada); a ausência de linhas
aéreas regulares de passageiros e cargas; a dependência tecnológica que
faz da região um receptáculo passivo de ciência e tecnologia vindas de
fora e com enormes custos econômicos e sociais; entre outros.
Estes aspectos destacados acima podem estar na raiz da explicação
da crise que a região viveu a partir do final da década de 1980. Uma
crise que esteve ligada a uma conjuntura internacional de redefinição do

218 História do Campesinato na Fronteira Sul • Edemar Rotta


capitalismo, a uma realidade brasileira e gaúcha de esgotamento do an-
tigo modelo de desenvolvimento, mas que também decorreu de aspectos
vividos localmente, como se tentou demonstrar. Alguns passos interes-
santes já foram dados na tentativa de superar essa crise e repor a região
em patamares diferenciados em relação às outras regiões do estado e
do país. Entre estes se destaca o processo de planejamento do desenvol-
vimento, através da mobilização dos diferentes atores, especialmente via
Conselhos Regionais de Desenvolvimento; a mobilização pela ampliação
do acesso ao ensino técnico, tecnológico e superior, especialmente o
público e gratuito; a diversificação e integração da matriz produtiva
regional; a busca de investimentos em infraestrutura; a criação de ambien-
tes social, econômico e político capazes de construir consensos mínimos
necessários para a realização de projetos coletivos; entre outros.
A região já conseguiu diminuir sua dependência em relação à
monocultura da soja, especialmente através do fortalecimento da pecuária
leiteira, da suinocultura, da produção de hortigranjeiros, da agroindus-
trialização e do fortalecimento de outros ramos industriais (móveis, tecidos,
construção civil...) no meio urbano. Apesar disso, é importante consi-
derar como desafio o fato de que o grande parque da indústria metalme-
cânica ainda é bastante vulnerável às flutuações do mercado da soja e
altamente dependente de duas grandes empresas situadas na região. A diver-
sificação, já iniciada por algumas empresas regionais, precisa avançar.
A região avançou na implantação de políticas sociais (saúde, educa-
ção, habitação e assistência), que têm contribuído para a melhoria da quali-
dade de vida da população local e podem transformar-se em elementos
decisivos na potencialização dos arranjos produtivos locais. As políticas
sociais qualificam as pessoas para enfrentar os desafios na medida em
que ampliam sua capacidade de manusear informações, ler e interpretar
o mundo, produzir conhecimentos, desenvolver habilidades produtivas,
exercer a criatividade e a inovação. Da mesma forma, contribuem para
que tenhamos uma população mais saudável, disposta e empenhada em
buscar soluções para seus problemas. Elas também ampliam as oportu-
nidades de negócios, investimentos e espaços de trabalho e criam um
ambiente favorável ao crescimento econômico com maior equidade social.
Da mesma forma, já se avançou muito na geração de postos de traba-
lho e renda através do fomento de atividades cooperativas e associativas,
especialmente via geração de novos empreendimentos da economia soli-
dária. Esses empreendimentos têm contribuído para retomar uma das carac-
terísticas históricas dessa região, que foi o associativismo, que estava um
pouco esquecido em função da disseminação de uma cultura capitalista e
individualista. A retomada do espírito associativo, comunitário, solidário
e participativo pode significar um passo importante na rearticulação da
região com vistas à definição de seu projeto de desenvolvimento. Gran-

Trajetórias camponesas: resistências, exclusões, êxodos e tentativas de reinserção 219


de parte das soluções que a região encontrou, em seus momentos críticos
anteriores, esteve ligada à capacidade associativa da população local. Como
exemplos podem ser citadas as experiências dos frigoríficos regionais para
a industrialização da carne suína, as cooperativas que visavam dar supor-
te às culturas de grãos e as indústrias metalúrgicas no desafio de produzir
máquinas e implementos para dar suporte às atividades agropecuárias.
Uma região só pode alavancar seu processo de desenvolvimento a
partir do reconhecimento de seu patrimônio histórico, social, político, eco-
nômico, cultural e ambiental. Na medida em que a região conhece a si
própria ela é capaz de recobrar os ensinamentos do passado, descobrir
suas potencialidades e projetar, coletivamente, o seu futuro. O futuro
não é dádiva e nem destino, mas uma construção coletiva de homens e
mulheres que ousam enfrentar seus desafios.

Considerações finais

A história da região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul retrata


bem as múltiplas faces de um processo de resistências, exclusões, êxodos
e tentativas de reinserção que marcaram e marcam a vida dos diversos
atores que participaram e participam da formação da sociedade regional.
Os condicionantes internos e externos são conformados pela ação dos
atores, dando origem a trajetórias que podem ser analisadas na perspectiva
da identificação de suas características. As diversas leituras representam
contributos essenciais para a preservação da memória, a reconstituição
da história e produção de clareza a respeito dos processos vivenciados. A
leitura aqui apresentada insere-se neste propósito.
A Fronteira Noroeste do Rio Grande do Sul representa uma das
regiões do estado que possui o maior contingente de população residindo
e produzindo no meio rural. Também evidencia expressivas experiências
de agricultura familiar, pequenas agroindústrias e empreendimentos coope-
rativos. Pode ser interpretada como uma região na qual o urbano e o rural
mesclam-se e interpenetram-se, evidenciando processos contraditórios,
mas interdependentes.
De forma semelhante, a região também pode ser vista como um espaço
no qual os camponeses convivem intensamente com os trabalhadores ur-
banos, partilhando experiências associativas, profissionais, educacionais
e de cunho social. Em muitos casos, pessoas da mesma família convivem
diretamente com esta duplicidade. Neste sentido, constitui-se como
espaço especial para a realização de pesquisas nas quais pode-se analisar
as interinfluências produzidas na relação entre o camponês e o traba-
lhador urbano. Talvez este seja um grande desafio a ocupar agendas de
historiadores e de cientistas sociais.

220 História do Campesinato na Fronteira Sul • Edemar Rotta


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Trajetórias camponesas: resistências, exclusões, êxodos e tentativas de reinserção 223


12
Fronteiras fluídas:
florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região

Eunice Sueli Nodari

E studar uma região sem uma análise da natureza se torna uma história
incompleta, uma vez que toda a intervenção humana gera alterações.
Miguel M. X. de Carvalho alerta que não podemos incorrer no mesmo
erro de alguns historiadores que, na tentativa de contar os atos heroicos
dos imigrantes de enfrentamento com o desconhecido, nesse caso as flo-
restas, não mencionam que:
Povos indígenas viveram por séculos no planalto sul-brasileiro, produ-
zindo queimadas para cultivar lavouras e caçando animais selvagens.
No entanto, por mais que enfatizemos a ação indígena em alterar o meio
ambiente, as fotografias e relatos do início do século XX e do século XIX
mostram inegavelmente o avançado estágio de sucessão ecológica das
florestas com araucária, com árvores imensas e com uma abundância
e diversidade da fauna muito superiores ao que existe hoje em dia. Ou
seja, é razoável supor que a convivência das populações indígenas com a
floresta com araucária tenha ocorrido de uma forma “sustentável”, sem
degradar significativamente o meio ambiente por séculos (CARVALHO,
2010, p. 39).
Desta forma, a chegada dos imigrantes para as áreas de florestas do
Rio Grande do Sul no século XIX e a migração de seus descendentes para
o Norte do estado e para o Oeste de Santa Catarina significou mudanças.
Mudanças estas que ocorreram não somente nos grupos humanos já
estabelecidos, como também acarretou alterações na flora e na fauna da
região, além de exigir adaptações das práticas socioculturais dos dife-
rentes grupos.

224 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


1 O Rio Uruguai: elo de conexão ou de separação?

As regiões da Serra, do Planalto, do Alto Uruguai do Rio Grande do


Sul e a região Oeste de Santa Catarina, até o final do século XIX e início
do século XX, eram cobertas por duas florestas: a Floresta Estacional
Decidual (FED) e a Floresta Ombrófila Mista (FOM) ou Floresta com
Araucária, ambas no domínio da Mata Atlântica. A separação entre as
florestas dos dois estados se dá por uma questão geográfica, ou seja, o Rio
Uruguai. Rio que por sua grandeza e importância acabou sendo descrito
por diversos autores que o conheceram, como é o caso de Othon D’Eça,
um dos integrantes da comitiva do então governador do estado de Santa
Catarina, Adolpho Konder, em viagem de reconhecimento da região, no
ano de 1929:
Singramos novamente o Uruguai e nos encharcamos nas suas belezas
sempre renovadas. À medida que o rio desce, muda de aspecto, vai se
tornando mais largo, mais rumoroso. As margens já não têm aquelas
barrancas abruptas, afogadas de troncos mortos e de lianas; aquele
tumulto de galhos que lembram lanças cruzadas num entrevero entre
selvagens [...] (D’EÇA, 1992, p. 45).

Figura 1 – Rio Uruguai, com uma balsa exportando madeira.


Suas margens são cobertas pela Floresta Estacional Decidual.
Acervo: CEOM.

Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 225


O botânico Padre Balduíno Rambo, em sua obra A fisionomia do Rio
Grande do Sul, também descreve o rio, sendo a observação feita num voo
de exploração, na década de 1930:
De repente um espelho brilhante, no extremo oeste, interrompe a coberta
monótona de verdura. É o filho das selvas rio-grandenses, o Uruguai.
Com a velocidade de 180 km horários nos aproximamos dele. Mais ao
sul, mais ao norte, no meio aparecem novos espelhos brilhantes; ligam-
-se, concatenam-se, unem-se numa faixa ininterrupta. Do outro lado,
negrejam as selvas de Misiones, coroadas de pinheiros. Entramos no vale
do rio, muito largo e raso. Seguimos acima. De repente, a faixa clara de
água se estreita, reduz-se a uma linha branca de espuma entre largos
patamares de rocha preta e nua: o Salto de Mucunã [...] (RAMBO, 2005,
p. 332).
E o encantamento gerado, não somente pelo rio, mas também pela
vegetação das florestas, pode ser analisado nas próximas duas citações
de visitantes na região. A primeira delas foi observada em 1879, pelo
alemão Maximiliano Beschoren na região do Alto Uruguai, no estado do
Rio Grande do Sul, quando se encontrava numa expedição para levan-
tamentos topográficos visando à instalação de futuras colônias.
A maior parte da floresta é de mato branco, perto dos campos e das
florestas de araucárias nas elevações, formando ilhas dentro do extenso
mar de floresta de folha caduca. Como colunas de um templo, erguem-se
os troncos das araucárias em direção ao céu, e sobre ela abaúla-se o teto
formado pela coroa de folhas transparentes (BESCHOREN, 1989, p. 104).
Pela descrição se deduz que a dominância é de uma área da Floresta
Estacional Decidual, praticamente contígua à Floresta Ombrófila Mista
(com araucárias). A denominação de mato branco dá-se devido à falta de
araucária, nomeada de mata preta. Enquanto a citação a seguir, datada de
1929, feita por um dos integrantes da comitiva do governador de Santa
Catarina, faz referência a uma região onde predominava a Floresta com
Araucárias:
A floresta é maravilhosa. Pinheiros de grossura e altura estonteantes.
Vimos exemplares de mais de um metro e meio de diâmetro. Hervaes
que irrompem na pequena roçada feita para a picada. Árvores preciosas
de inúmeras qualidades, especialmente o cedro. Desse caminho estreito
e cheio de empecilhos, raramente se lobriga um pedaço de céu (COSTA,
1929, p. 29).
Na Figura 2, pode-se observar uma imagem completamente distinta
daquela vista por Costa em 1929. Num período de 20 anos a paisagem
mudou completamente, graças à atuação das companhias colonizadoras
em conjuntos com os proprietários de serrarias. De que forma os autores

226 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


que lamentam a falta do progresso reagiriam? Justificariam o desmata-
mento desenfreado em nome do mesmo?

Figura 2 – Serraria de Nilo Sudbrack, em 1951.


Acervo: Museu de Maravilha-SC.

Os dois autores acima citados, em épocas distintas, fazem referência


à exuberância florestal e deixam evidente como entendiam a falta de
colonos nos dois lados do Rio Uruguai, pois somente eles poderiam trazer
o tão almejado progresso econômico, que passava pela exploração dos
recursos naturais ali existentes ou a serem plantados.
Beschoren considerava o Vale do Goio-En, “o mais abençoado pela
natureza” e sob o seu olhar faz a descrição que segue:
No meu ponto de vista, é o Vale, em toda a sua extensão florestal do
imenso Uruguai, o mais abençoado pela natureza, a parte mais privile-
giada de toda a província.
O que falta são apenas trabalhadores capacitados. Quem aqui se estabe-
lecer e tiver vontade de trabalhar, logo verá seu esforço recompensado,
ainda mais se dispuser de capital para instalar uma fábrica de aguar-
dente, serraria, moinho ou indústria de café (BESCHOREN, 1989, p. 52).
Para Costa, a construção de estradas e a presença mais efetiva do go-
verno reverteriam em benefícios para a região que estava percorrendo, o
caminho da colônia de Mondai até o rio Pepery:

Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 227


Com a rodovia, com a linha telegráfica, que o governo patrioticamente
está construindo, chegarão os colonos, os imigrantes, os obreiros da civi-
lização e, com estes, a fortuna da região e o progresso de um trecho fada-
do pela natureza para ser um verdadeiro éden (COSTA, 1929, p. 31).

Figura 3 – Rio Uruguai, marco divisor.


Na margem direita (ao pé da foto) o município de Itapiranga, Santa Catarina;
na margem esquerda área pertencente ao Rio Grande do Sul. Ano de 1937.
Acervo: Museu Municipal de Itapiranga-SC.

Enquanto cada um dos dois autores fez uma análise da situação da


região em foco – Beschoren preocupado com o Rio Grande do Sul e Costa
observando o lado catarinense – tem-se um terceiro interlocutor, que é
José Arthur Boiteux, que singra o Rio Uruguai, ao lado de Costa, em 1929,
observando as duas margens com atenção e encantamento:
E continuava a apetecida viagem, enlevados pela paisagem que nos
ladeava, uma margem o Rio Grande do Sul, a outra Santa Catharina;
barrancas altas, onde de longe em longe, espiando as balsas lentas que
descem para S. Thomé, na Argentina, surgem telhados escuros, ou algum
fio de fumo assignala uma tênue mancha humana naquelas mattarias
vastas e desertas (BOITEUX, 1931, p. 17).
Como não analisar estas duas áreas conjuntamente, que são tão seme-
lhantes em relação à flora, fauna e mesmo sobre aspectos da sua ocupação
pelos humanos? A História Ambiental nos permite ousar e ultrapassar

228 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


fronteiras que afinal são fluídas e são feitas pelos humanos que assim as
veem; já os demais seres que a História Ambiental se propõem a estudar
não veem estas barreiras. Como apontou Donald Worster, as temáticas da
História Ambiental frequentemente desafiam uma delimitação espacial
mais tradicional, baseada nas fronteiras nacionais e, acrescentaríamos, nas
fronteiras políticas em geral (WORSTER, 1991, p. 199). Essas delimitações
baseadas em atributos naturais certamente fazem parte do intento da
História Ambiental de entender a natureza como algo ativo e dinâmico,
que tem influência na sociedade e cultura humana, muitas vezes defi-
nindo as escolhas humanas.
O Rio Uruguai acabou servindo de deslocamento para as diferentes
populações humanas, para alguns animais e plantas. Os indígenas
moviam-se do Rio Grande do Sul para o Oeste de Santa Catarina, assim
faziam também os caboclos coletores de erva-mate com suas agricul-
turas de subsistência e, por último, os migrantes descendentes de euro-
peus. Não podendo esquecer o uso do Rio Uruguai para o escoamento
da produção agrícola, e principalmente para a exportação das madeiras
para a Argentina. As alterações feitas na natureza por todos estes gru-
pos causaram impactos e devem ser avaliadas no seu contexto. Deve
haver a preocupação em discutir as circunstâncias das mudanças sofri-
das pelas florestas, pela fauna, pelo solo, assim como a introdução de
diferentes culturas agrícolas e seus efeitos nas bacias hidrográficas e
outros elementos da paisagem. A mudança da ocupação indígena e
cabocla para a europeia abrange mudanças importantes, às vezes já
discutidas sob diferentes perspectivas, e só recentemente sob o viés da
História Ambiental. Entres estas novas abordagens que analisam os
seus efeitos na flora e na fauna, pode ser citada a pesquisa que trata do
uso das terras comunais para a criação de porcos à solta, que se alimen-
tavam de pinhões e frutas. Esta prática teve que ser abandonada gradati-
vamente com a chegada dos imigrantes, pois os mesmos vinham com
práticas bem distintas em relação à criação de animais, que deveriam
permanecer nas terras dos proprietários, em cercas, além do fato que as
terras comunais acabaram sendo transformadas em lotes comerciais
para venda. A pesquisa de Marlon Brandt e Eunice S. Nodari, ao analisar
comunidades tradicionais, demonstra que havia entre o grupo uma forma
de cumplicidade e de auxílio mútuo:
A criação de animais à solta era outra prática realizada pela população
cabocla onde as relações de auxílio mútuo eram imprescindíveis. As
posses formadas pelos moradores, embora possuíssem caráter privado,
eram exploradas de forma coletiva nessas atividades, pelo fato da divisão
das terras não possuir cercas – e isso persistiu em muitas regiões até o
início da colonização [...] (BRANDT; NODARI, 2011, p. 84).

Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 229


No que se refere à flora, pode ser citada a extração da erva-mate com
métodos tradicionais pelas comunidades caboclas que, no decorrer do
processo da chegada de imigrantes, acabou sendo transformada, como
apontam Marcos Gerhardt e Eunice S. Nodari:
A colonização das áreas florestais dos planaltos rio-grandense, catari-
nense e paranaense, a privatização das terras e o cultivo de ervais, por
um lado, mudou profundamente a paisagem e as relações socioeconô-
micas, mas, por outro lado, colocou caboclos e colonos em contato e sua
convivência significou aprendizagens mútuas, inclusive sobre o manejo
florestal, as técnicas agrícolas e as interações com o ambiente natural
(GERHARDT; NODARI, 2009, p. 2680).
Estes contatos mencionados nos dois exemplos acima não se deram
de imediato e em todos os locais, e não significaram uma convivência
pacífica, pois em grande parte do Oeste Catarinense, se constatou até a
primeira metade do século XX, “não somente uma destruição do antigo
modo de vida de seus ocupantes anteriores, de devastação da floresta,
mas também uma história de resistência, de protesto daqueles que estão
habitando a área, nesse caso os caboclos” (NODARI, 2009, p. 59). En-
quanto que para os novos habitantes significava uma história “de sonhos
e esperanças daqueles que estão adentrando a fronteira, ou seja, os teutos
e ítalos, que tentam recriar na região a sua cultura étnica” (NODARI,
2009, p. 59).

2 A natureza: atração, estabelecimento de colonos e suas consequências

As colonizadoras, em suas propagandas para atrair os futuros colonos,


usavam como uma das formas de atraí-los a descrição da área e a possibi-
lidade de ganhos econômicos. Como exemplo, pode-se observar no Mapa
1, o anúncio das terras da Empresa Colonizadora Ernesto F. Bertaso. As
demais companhias colonizadoras também faziam os seus anúncios, e
algumas delas, inclusive, em outras línguas, especialmente em italiano e
em alemão (RADIN, 2009, p. 150).
A Companhia Colonizadora Angelo de Carli, Irmão & Cia, que vendia
os lotes das colônias de Irany e Ressaca, descrevia a área anunciando o
tipo de floresta existente: “E as terras das fazendas de Ressaca e Irany, são
em sua maioria cobertas de mata branca, adaptáveis à cultura de todos os
gêneros coloniais, e dos mais Famosos Hervais ainda em ser desta região”
(Colonização Angelo de Carli, Irmão & Cia., s.d.).

230 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


Mapa 1 – Propaganda da Empresa Colonizadora Ernesto F. Bertaso, divulgando as suas
propriedades no Oeste de Santa Catarina.
Acervo CEOM – Fundo Bertaso.

Além das colonizadoras que anunciavam as suas terras, podemos citar


autores como Maria Rhode, que em seu livro de memórias Wie eine Frau
eine Urwaldsiedlung wachswen sah, relata aspectos do cotidiano da Colônia
Porto Novo (Itapiranga), onde viveu nas décadas de 1920 a 1940, e men-
ciona a importância econômica das florestas para a época e para o futuro
da região:

Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 231


Também no futuro o comerciante de madeira em Porto Novo ainda
desempenhará um importante papel, principalmente para os novos imi-
grantes na terra ainda disponível no interior, onde toda riqueza natu-
ral ainda intocável está à mão. Com os lucros racionais, respectivamente
com o reflorestamento sistemático, o comerciante de madeira pode, em
todo momento, permanecer como uma fonte de renda para a região e sua
população (ROHDE, s.d., p. 302).
No que se refere a informações mais gerais da região, temos o Guia
do Estado de Santa Catarina, com ampla circulação. No ano de 1935, no
município de Chapecó, em relação aos aspectos de interesse da História
Ambiental, destacam-se:
Clima – óptimo em todo o município [...]
Flora – Herva matte em grande abundancia, Pinheraes, Cedro, Imbuia,
cabriúva, canella, louro, Sassafra preta, amarella e crespa, gabiroba.
Minerais – grandes jazidas de cristaes de quartzo e pedras preciosas
como amethista, topázio e diamantes; ferro, argila branca.
Fontes thermo-minerais – Em São Domingos (Rio S. Domingos), Saltinho,
Taguarussú, Prata, Ilha Redonda, (R. Uruguay), Aguinhas, Águas Mara-
vilhosas, (R. Chapecó), sendo as do rio Chapecó sulphurosas e radioac-
tivas (GUIA DO ESTADO, 1935, p. 247-249).
No guia do mesmo ano a exploração dos recursos naturais, assim
como a agropecuária, é relatada como:
Agricultura – produz em grande escala canna de açúcar, milho, fumo,
algodão; em menor escala, trigo, centeio, cevada, feijão, alfafa, batatas
inglezas.
Indústria pastoril – O município é grandemente pastoril tendo muitas
fazendas de criação.
Exportação – A madeira é exportada grande quantidade para a República
da Argentina sendo feito o transporte por meio de jangadas pelo rio Uru-
guay. Exporta também fumo, fumo, banha e algodão. A herva matte é
exportada em grande quantidade via Herval pela estrada de ferro e via
Dionysio Cerqueira para a Argentina (GUIA DO ESTADO, 1935, p. 247-
249).
No guia do ano de 1940, os dados apresentados são idênticos, e
com a inclusão na parte da flora das “plantas medicinaes” (GUIA DO
ESTADO, 1940, p. 282-283). A menção às plantas medicinais existentes na
região vem ao encontro de depoimentos coletados, em que as entrevistas
mencionavam a importância de chás feitos de ervas, para ajuda na cura de
pessoas. Emília Kleimann, uma das entrevistadas em 1998, antiga mora-
dora de Itapiranga, comenta: “ Mas tinham umas senhoras que enten-
diam muitas coisas de chás, elas trouxeram pacotões junto, não sabiam se
tinham ou não”. Estes conhecimentos tradicionais dessas senhoras pro-

232 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


vinha de contatos com as populações indígenas e caboclas que eram as
conhecedoras das plantas de cada região. O abandono das comunidades
nos primeiros anos da colonização acabou contribuindo para que houves-
se um maior contato com as comunidades tradicionais, que haviam sido
deslocadas para lugares mais ermos.

3 As florestas como protagonistas da história

No decorrer do texto foram mencionadas as duas florestas que encan-


taram os visitantes, mas que também, no entender dos mesmos, neces-
sitavam ser ocupadas por colonos, em nome do progresso para a região.
Os próximos parágrafos serão dedicados à descrição das florestas e ao que
sobrou delas no decorrer do processo da ocupação.
Num primeiro momento as florestas eram vistas com um misto de
deslumbramento e incerteza. Afinal se estava no meio dela, como mostra
Maria Rohde: “Sem contar a gigantesca altura das árvores da floresta.
Nunca tinha visto árvores dessa altura. Eu estava dominada por esta
impressionante natureza” (ROHDE, 1996, p. 56).
Todavia, ela também significava dificuldades para ocupação. A flo-
resta representava barreiras a serem vencidas, pois era necessário espaço
para a construção e também para o cultivo. Paulo Ramminger, um dos
primeiros moradores de Porto Feliz, atual Mondai, relembra as reações da
sua mãe:
Descansamos em cima de um tronco de árvore no meio da selva e ainda
hoje vejo a imagem de minha mãe que, encarando a mata virgem, não
resistiu às lágrimas. Nunca esquecerei esta imagem. Ela certamente pres-
sentiu o que iríamos sofrer até alcançar um razoável bem-estar (KOELLN,
1980, p. 48).
Gradativamente as matas da região seriam derrubadas, tendo em
vista a implantação de lavouras e pastagens e, principalmente, a ação das
serrarias para a exportação das madeiras, que tinha a Argentina como
principal mercado comprador. Afinal, “entra ano, sai ano, as maiores e
mais valiosas árvores da floresta são derrubadas, feitas em toras e levadas
por caminhos de arrasto ou pelos afluentes até o Uruguai. E então no rio
são formadas gigantescas balsas” (ROHDE, 1996, p. 121).
Em 1940, no município de Chapecó, o preço do m3 em tora de cedro
e louro era 122$000, enquanto uma cabeça de suíno vivo tinha o valor de
90$000 (IBGE, 1942). Esses dados são importantes por demonstrar que o
cedro e o louro tinham o mesmo preço e que o valor das madeiras crescia
enormemente depois que chegavam à serraria (RUSCHEL et al., 2003, p.
162).

Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 233


Desde o início da atuação das companhias colonizadoras estava
evidente que um dos objetivos era o aproveitamento das riquezas flores-
tais, e para isto montaram toda a infraestrutura, como a construção de
serrarias, estradas e até a organização do transporte das madeiras. A Em-
presa Colonizadora Ernesto F. Bertaso, por exemplo, se subdividiu em uma
série de empresas menores, em serrarias, olarias e cooperativas madei-
reiras.
A Companhia Territorial Sul Brasil, desde os primeiros contratos de
compra e venda, tinha cláusulas nos mesmos que evidenciavam a atenção
dada à exploração madeireira, como este de 1931:
O comprador fica obrigado de estabelecer-se nas terras contractadas,
plantar, e construir casa, podendo tirar tanta madeira das terras contrac-
tadas, que necessário for para suas benfeitorias, porém não pode vender
madeira de forma alguma antes de possuir a competente escriptura pu-
blica (CIA. SUL BRASIL, 1931).
Eli Bellani, em suas pesquisas, encontrou o registro de 109 serrarias
legalmente estabelecidas no município de Chapecó, no período de 1936 a
1945 (BELLANI, 1991, p. 100). A maior parte delas, trinta e duas, tinha a
sua localização na sede do município (Chapecó), onde estava estabelecida
a Companhia Colonizadora Ernesto F. Bertaso, seguido de Passarinhos,
onde estava localizada a Cia. Territorial Sul Brasil (22), e em terceiro
Guatambu (21). Entre as empresas “acham-se firmas madeireiras de pe-
queno, médio e grandes portes para a época e as condições regionais exis-
tentes” (BELLANI, 1991, p. 101).
Sendo em tão grande número, os madeireiros da região, na tentativa
de proteger seus interesses, fundaram em 1941
uma sociedade dos madeireiros deste município e dos municípios vizi-
nhos ao nosso, no estado do Rio Grande do Sul. A sociedade, que tomou
o nome de Sociedade Madeireira Chapecoense Limitada, terá por reunir
todos os exportadores da região para em esforço conjunto, procurarem
a defesa da classe, empenho mútuo e melhoria dos preços nos mercados
consumidores. Já se acham organizados e aprovados os estatutos e eleita
a diretoria que regerá os destinos da sociedade (MADEIREIROS, 1941).
A Sociedade Madeireira Chapecoense Limitada foi substituída em 9
de setembro de 1944 com criação da Cooperativa Madeireira do Vale do
Uruguai Ltda., praticamente pelos mesmos associados, madeireiros de
Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. De acordo com correspondência
endereçada ao presidente do Instituto Nacional do Pinho, em 1947, a
cooperativa “congrega 80 produtores, com cerca de cento e vinte serrarias
localizadas em ambas as margens do Rio Uruguai, trabalhando em caráter
efetivo, há longos anos” (CORRESPONDÊNCIA, 1947, fl. 1). No relatório
de 1972, a diretoria reafirma que: “Podemos dizer, repetindo o que afir-

234 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


mamos em 1971, que a nossa cooperativa atravessa uma fase de ótima
solidez e com todos os compromissos em dia” (RELATÓRIO, 1973).

4 Mata branca (Floresta Estacional Decidual) e a Mata preta


(Floresta Ombrófila Mista): da botânica para a História Ambiental

A Floresta Estacional Decidual (FED), anteriormente denominada de


Floresta Subtropical do Rio Uruguai, conhecida pelos colonizadores como
a mata branca, em oposição à mata preta (FOM), onde há a ocorrência de
pinhais, compreende uma superfície aproximada de 47.000 km2 (LEITE;
KLEIN, 1990, p. 128). Estende-se ao longo do curso médio e superior
do Rio Uruguai, em altitude mínima de 200 metros, e subindo seus
múltiplos afluentes, até uma altitude de 600 a 800 metros. Esta região
entra em contato com a Mata dos Pinhais no Oeste do Planalto Ocidental
Catarinense e Extremo Norte do Rio Grande do Sul, estendendo-se para
o leste dos vales formados pelo Rio Uruguai até aproximadamente o
entroncamento dos rios Pelotas e Canoas. A FED apresenta várias des-
continuidades subtropicais situadas na vertente sudeste do Planalto
das Araucárias, sobretudo nos divisores dos grandes rios como Peperi-
-Guaçu e Rio das Antas, onde a largura da abrangência chega nos limites
máximos de até 50 km e os divisores do Rio Chapecó e Rio Irani, onde a
largura restringe-se a um cordão marginal de apenas 2 a 3 km. Rambo, ao
descrever a fisionomia vegetal do Rio Grande do Sul, menciona que a “[...]
a mata virgem do Alto Uruguai começa nas margens do Ijuí, desenvolve-
-se no extremo nordeste no maior núcleo de mato fechado do Estado,
liga-se entre Passo Fundo e Lagoa Vermelha, ao longo dos afluentes do
Taquari, à mata da fralda da serra, e reduz-se a um cordão marginal no
Rio Pelotas” (RAMBO, 2005, p. 268).
Supõe-se que, até a metade do século XX, a abundante oferta de
espécies madeiráveis fez com que elas fossem desprezadas. Segundo
o madeireiro J. M. R., que chegou ao Extremo Oeste de Santa Catarina
em 1949, “o louro, o cedro, a grápia, o angico, a caroba e a canela loura
foram as espécies de madeiras serradas com o maior valor comercial,
sendo que o diâmetro mínimo das madeiras exploradas variou entre 20
e 40 cm” (RUSCHEL, 2001). Porém, como os estoques florestais das espé-
cies de maior valor foram fortemente reduzidos, e visto a progressiva
demanda por madeira, as espécies de menor importância para a primeira
fase foram paulatinamente valorizadas. Estima-se que a FED seja um
dos ecossistemas mais devastados do Brasil, com o agravante de que no
estado de Santa Catarina não existe nenhuma reserva legal desta tipologia
(RUSCHEL et al., 2003, p. 153). Levantamentos recentes indicam que
restam dela menos de 3%, na forma de fragmentos de tamanho muito

Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 235


reduzido e com constantes pressões antrópicas que ameaçam a total des-
truição desses remanescentes.
A Floresta Ombrófila Mista, também conhecida como Mata de Arau-
cária, Mata dos Pinhais ou Floresta com Araucária, é uma das fitofisiono-
mias que compõem o bioma Mata Atlântica. Originalmente ocupava em
torno de 200.000 km2, abrangendo cerca de 37% do estado do Paraná,
31% de Santa Catarina e 25% do Rio Grande do Sul. A Floresta Ombrófila
Mista abrangia um total de 40.807 km2, ou seja, 42,5% da vegetação do
estado de Santa Catarina. E a “sua marcante presença na paisagem cata-
rinense contribuiu para modelar a cultura regional, fazendo do pinheiro
brasileiro e de outras espécies características desse ecossistema temas
de canções, de literatura e de festas populares, influenciando inclusive
a culinária local” (MEDEIROS, 2004, p. 27). O pinheiro brasileiro,
Araucaria angustifolia, representa mais de 40% dos indivíduos arbóreos,
apresentando valores de abundância, dominância e frequência bem
superiores às demais espécies componentes desta associação (SCHAFFER;
PROCHNOW, 2002). Esta tipologia florestal resguarda diversas espécies
da fauna e flora hoje seriamente ameaçadas de extinção (MEDEIROS et
al., 2005, p. 36). Hoje, estima-se que os remanescentes de Floresta Ombró-
fila Mista, nos estágios primários ou mesmo avançados, não perfazem
mais de 0,7% da área original, o que a coloca entre as tipologias mais
ameaçadas do bioma Mata Atlântica (MEDEIROS et al., 2005, p. 36). De
acordo com o processo de criação da Estação Ecológica da Mata Preta
no estado de Santa Catarina, outro problema que se apresenta é a insufi-
ciente representação da Floresta Ombrófila Mista em unidades de conser-
vação, seja federal ou estadual. Os parques e reservas nacionais, estaduais,
municipais e particulares existentes em Santa Catarina, cobrem apenas 2%
do território, área insuficiente para garantir a conservação da biodiver-
sidade existente nas florestas do Estado (MINISTÉRIO do Meio Ambiente,
2005, v. 1, p. 17).
Para concluir este texto, mas não colocar um ponto final, pois a Histó-
ria Ambiental é um processo contínuo, esperamos que os leitores tirem as
suas conclusões sobre o processo de devastação das florestas da região.
E após a leitura das discussões textuais, baseadas em fontes primárias,
secundárias e de análises, façam-no através das duas próximas imagens
finais. A Figura 4 ilustra a transformação da paisagem através da inter-
venção humana no decorrer do século XX, quando ainda existia um pouco
de esperança para a floresta e os seres que nela habitavam, apesar de já se
encontrar rodeada de plantações feitas pelo homem.

236 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


Figura 4 – Estrada no interior de Concórdia, s.d.
Acervo: Museu Municipal de Concórdia.

A Figura 5 mostra uma história que iniciou no final do século XIX,


tendo continuidade no século XX e no século XXI. É muito para ser anali-
sado, pois as florestas sumiram no horizonte das monoculturas.

Figura 5 – Município de Abelardo Luz, junho de 2005.


Foto de Pedro Marcon Lindenmeyer. Acervo: LABIMHA/UFSC.

Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 237


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238 História do Campesinato na Fronteira Sul • Eunice Sueli Nodari


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Fronteiras fluídas: florestas, Rio Uruguai e a ocupação da região 239


13
Os caboclos e a história da paisagem

Marcos Gerhardt

No conceito de paisagem está um dos muitos pontos de ligação entre


o trabalho de geógrafos e de historiadores. A paisagem é natural, segu-
ramente, mas muito dela é criação e constante reconstrução feita pelos
grupos sociais humanos. Ela tem, portanto, uma dimensão temporal,
histórica e cultural. Empregar o conceito de paisagem para conhecer
e analisar a história do Noroeste do estado do Rio Grande do Sul nos
últimos séculos é o objetivo deste texto. Este adota a abordagem da Histó-
ria Ambiental, um tema da historiografia contemporânea que valoriza e
busca o diálogo com a Geografia, a Biologia, a Agronomia e várias outras
ciências, pois acredita-se que somente assim é possível compreender a
complexidade desta região do estado. Busca-se uma abordagem mais
inclusiva, que acompanhe a capacidade da História Ambiental de “am-
pliar a análise histórica e trazer novas perspectivas para o estudo de anti-
gos problemas historiográficos” (PÁDUA, 2010, p. 94).
Na paisagem do Planalto Noroeste Rio-Grandense do século XIX
predominou a densa Floresta Estacional Decidual, caracterizada pela
grande variedade de espécies vegetais, com destaque para imponentes
árvores que formavam o dossel. A Floresta Ombrófila Mista, ou Floresta de
Araucárias com sub-bosque de outras espécies, também estava presente na
região. Estas duas formações florestais, chamadas simplesmente de mato
pela população local, ocupavam espaços distintos e eram marcantes nas
duas margens do Rio Uruguai (VELOSO; RANGEL FILHO; LIMA, 1991;
NODARI, 2009). Os campos, as várzeas e banhados, as picadas, os muitos
arroios e rios que afluíam para a margem esquerda do Rio Uruguai,
também compunham um mosaico de ecossistemas interligados com a

240 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcos Gerhardt


floresta. Neste ambiente viviam, além das plantas, variados animais,
outras formas de vida como os micro-organismos e, também, pessoas.
Poucos viajantes intelectuais visitaram a região no século XIX, mas
se tem o testemunho de alguns que a descreveram. No final da década
de 1880, o cronista Evaristo Affonso de Castro registrou a existência de
árvores como pinheiro (Araucaria angustifolia), cedro, louro, cabriúva,
canela, angico, guarapiapunha, ipê, guajuvira, timbaúva, quebracho, pai-
neira, cambará, rabo-de-bugio, cereja, araçá, pitanga, guabiroba e uvaia,
bem como a presença de tamanduá, anta, veado, porco, paca, cutia, jagua-
tirica, gato, leão-baio, “guarachaim”, lontra, variados tatus, bugio e cinco
espécies de veados. Em sua lista incluiu ainda aves como o macuco, uru,
“inhandú”, saracura, jacu e também abelhas como a mumbuca, guarupú,
manduri, tubuna, “mandaguahy”, vora, “jeiehy”, mirim, mirim-guaçú,
iratim, irauçu, iramirim, irapuá e a mandaçaia. Por fim, a diversidade de
peixes nativos registrada pelo cronista formou uma longa e variada lista
(1887, p. 68-205).
A visão de Castro estava orientada pela utilidade que cada espécie
tinha ou poderia ter para os humanos e visava reunir argumentos em favor
da colonização da região, mas forneceu uma descrição em que a biodi-
versidade é evidente. Biodiversidade ou diversidade biológica “significa
a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo,
dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas
aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo
ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas”
(CDB, 1992, p. 9). Considerando que os ecossistemas e as florestas do
Noroeste da então província do Rio Grande do Sul, configuradas em
torno da bacia do Rio Uruguai, estavam conectadas às florestas de toda
bacia hidrográfica formada pelos rios Paraná, Iguaçu, Paraguai e muitos
outros, se pode supor a ocorrência de fluxos de animais, sementes, pólen
e genes nesta ampla área e, portanto, a existência de significativa variabi-
lidade genética. Tinha-se, enfim, uma importante biodiversidade que
tornava aquele ambiente estável e resiliente, ou seja, capaz de se recuperar
das perturbações que sofria.
Outro autor, Hemetério José Velloso da Silveira, escreveu em 1909
sobre a variedade de vegetação, inclusive flores e plantas medicinais, que
podia ser encontrada no território que pertenceu às missões jesuíticas (p.
134-137). Também o viajante e botânico sueco Carl Axel Magnus Lindman
descreveu o mato do Vale do Rio Ijuí em 1893, que “existia em todo o seu
grandioso isolamento”, “cercado de campos extensos”, formando cama-
das de diferentes alturas, nas quais “Grupos grandiosos e ricos de cipós
encontram-se nos logares apropriados dos andares mais altos” e onde
havia “grande abundância em taquarussú [de] várias espécies” que “cres-
cem em moitas extensas sobre áreas de vários hectares. Seus colmos da

Os caboclos e a história da paisagem 241


grossura de um braço estão afastados uns dos outros, mas formam arcos
completos da altura de 10 metros e enchem a matta até o chão com sua
folhagem verde-clara, densa e abundante” (p. 198-202).
Duas populações humanas numericamente predominantes habitaram
o Noroeste Rio-Grandense no século XIX: os indígenas das etnias cain-
gangue e guarani e os caboclos. Aos indígenas o governo da província
dirigiu políticas de aldeamento oficial, visando seu confinamento e controle,
ao que as populações indígenas reagiram e foram derrotadas (ZARTH,
1997, p. 40-41). Pode-se ter alguma compreensão das tensões envolvendo
os índios caingangues, os proprietários de terras e o governo provincial
lendo a parte que trata da catequese em um relatório oficial:
O director geral dos indios, por officio datado de 8 de Abril do anno
proximo passado, participou-me havarem-se sublevado os do aldeamento
de Inhacorá, no município de Santo Angelo […]. A notícia deste successo
consta resumidamente do seguinte:
Estando-se a proceder á medição das terras de criar e de cultura
pertencentes ao capitão Fernando Westphallen e outros, situadas no
lugar denominado – São João – os índios que occupão terras que distão
mais de legoa d’aquelas, procurarão embaraçar o andamento da citada
medição, pretextando serem suas as do referido capitão, segundo declarou
em data de 24 de Março de 1877 o juiz commissario.
O diretor interino do aldeamento de Inhacorá em officio de 31 do mesmo
mez confirmou o que disse o juiz commissario; accrescentando que os
indios havião assaltado a propriedade de João Rodrigues da Fonseca […].
O brigadeiro Portinho, dando conta da incumbencia que lhe fôra
commetida, informou que o cacique Fongue e sua tribo, composta de 200
almas, ha annos estão de motu próprio, contra as ordens do governo,
arranchados nas costas que limitão Inhacorá com os Campos Novos,
pois que devião estar no aldeamento de Nonohay, onde se acha o
director, distando o mencionado arranchamento cerca de 20 legoas do
aldeamento.
Da citada informação soube mais a presidencia que os referidos
indios havião invadido as posses de mattos que ficão proximas ao seu
arranchamento, pertencentes a um indivíduo de nome Rollim, com o
proposito de fazerem alli erva matte, não attendendo ás intimações do
proprietario para recuarem desse intento (Relatório, 1873, p. 73-74).
Onde as autoridades e os proprietários ressaltaram a violência e rela-
taram desobediência, também se pode perceber resistência dos índios, um
projeto de colonização excludente e a necessidade de espaço e de acesso
a bens naturais, neste caso à erva-mate, que o modo de vida daquelas
populações necessitava. O esforço que fez o governo da província para
disciplinar, confinar e submeter os índios à sua autoridade e despovoar o
território também fica evidente no documento.

242 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcos Gerhardt


Caboclo é um dos nomes dados ao povo que descendeu do cruza-
mento de luso-brasileiros pobres, de indígenas e de africanos vindos ao
Sul como escravos. Ele também era chamado de brasileiro, nacional,
moreno, pelo duro ou “pessoa de cor”. A ele foram associados, preconcei-
tuosamente, atributos como: pobre, preguiçoso, isolado geograficamente,
morando precariamente, imprevidente, relapso, perigoso, intruso e pos-
seiro. Por outro lado, a historiografia tem denominado esta população de
trabalhadores livres, lavradores nacionais, lavradores pobres ou campo-
neses nacionais, em um esforço conceitual de inclusão. Francisco de Assis
Pereira de Noronha, avaliando o livro de Evaristo de Castro e transpa-
recendo seu preconceito, assim se referiu aos caboclos:
Pelo seu vicio de origem, pela grande dessiminação e pela abundancia de
gado, caça, peixe e fructas, a população em geral é indolente e extraor-
dinariamente preguiçosa. Póde-se calcular, sem o menor receio de
exageração, que entre 100 homens validos, 80 são vadios, ao ponto que
nem a fome e a nudez os obriga ao trabalho, e d’estes 80 vadios, 40 pelo
menos são ladrões.
O único trabalho para que elles se prestão, é o costeio dos animaes nas
fazendas de criar, e este é feito de maneira tal, que os fazendeiros os
aturão por não acharem outra gente. Para os trabalhos agricolas são
absolutamente inserviveis. Não se pode obter o trabalho de uma semana
seguida de qualquer d’estes vadios; e que trabalho! Este mesmo equivale
a 5 ou 6 horas por dia.
Percorrendo a região, ou seja nos campos, ou seja nas mattas, o viajante
vê, aqui e ali, uma pequena cabana, ás vezes coberta, toda esburacada.
Encostado á cabana, um fecho com meia duzia de varas, tanto quanto
seja sufficiente para recolher o cavallo; fecho a que dão o pomposo
nome de mangueira. Além d’isto nada mais; Não existe a mais pequena
plantação de um único vegetal util (CASTRO, 1887, p. IX).
Noronha comentou ainda a abundância de gado, peixes, caça e frutas,
indicando uma das formas de sustento dessa população. Para o autor,
a disponibilidade de bens naturais era a causa da preguiça dessa gente.
Os caboclos faziam, contudo, o cultivo de alimentos em roças de coivara,
espaços tomados do mato pelo machado e pelo fogo, temporariamente
férteis. As práticas agrícolas dos caboclos são uma herança dos indígenas,
fazem parte de um conjunto de informações produzidas e conservadas,
essenciais à vida no ambiente, que incluem a identificação de espécies, a
atribuição de nomes e o conhecimento dos usos possíveis (DEAN, 1996).
Considerando o ambiente de floresta inóspito para os humanos, inclu-
sive para os indígenas que abriam clareiras para suas aldeias (DEAN,
1996, p. 28), pode-se deduzir que as roças e habitações dos caboclos
localizavam-se, em geral, na orla do mato ou na margem dos rios. Talvez
habitassem o interior do mato quando foragidos e procurados por algum

Os caboclos e a história da paisagem 243


crime praticado ou desejando escapar do recrutamento forçado para os
frequentes conflitos militares.
Segundo Ivaldo Gehlen, a terra também era considerada um bem
natural, lugar de viver, necessária à subsistência familiar e de posse provi-
sória, pois não tinham a propriedade legal (1998, p. 125-126). O trabalho
coletivo e as práticas de sociabilidade e solidariedade também faziam
parte da vida dos caboclos, como relatou o cronista Evaristo de Castro
(1887, v. 2, p. 278-279). A Figura 1 retrata o índio Silvestre Joaquim da
Rosa, morador da região de Ijuí na década de 1920. Em seu modo de
vida caboclo a habitação foi construída com bambu e outros materiais de
origem vegetal. A necessidade de escoras indica que o rancho tinha algum
tempo de uso e que precisava de reparos ou de substituição. No pátio
varrido Silvestre tocava violão e posava para a foto vestindo uma roupa
que não parece ser a cotidiana. Ao seu lado estavam a chaleira de ferro
e a cuia de mate. O forno de barro, que se assemelhava à arquitetura de
um cupinzeiro, era um indício do uso de lenha e do consumo de pão, pos-
sivelmente de milho, mas que também poderia servir para preparar
outros alimentos assados. A floresta, as capoeiras e os cultivos estavam
mesclados na área próxima da casa e se caracterizavam pela biodiver-
sidade. Este modo de vida lembra a ideia dos mínimos necessários para
viver que Antonio Candido percebeu entre os caipiras do interior de São
Paulo (2001, p. 103).
Conforme o historiador Paulo Afonso Zarth, o trabalho na produção
da erva-mate (Ilex paraguariensis), um bem natural coletado nos ervais
nativos e preparado durante o inverno, vinculava o caboclo ao mercado,
permitindo obter algum dinheiro com o qual comprava outros bens neces-
sários (1997, p. 173). A atividade ervateira tinha destacada importância
econômica para a província, pois era vendida em grande quantidade
para os mercados da Argentina, Uruguai e Chile (LINHARES, 1969). A
extração acontecia em ervais públicos sob o controle e tributação da admi-
nistração municipal e exigia poucas ferramentas e equipamentos, con-
feccionados pelo próprio trabalhador com materiais encontrados no
ambiente (ZARTH, 2002, p. 170). O processamento posterior era feito
em engenhos de mate como aquele instalado no erval de Santo Cristo
na metade do século XIX pelo francês Luiz Perié (ZARTH, 1997, p. 122;
Inventário post mortem de Luiz Perié, 1851). Deve-se considerar ainda
como uma prática da época a extração de folhas da Ilex pelo caboclo, em
pequena escala, seguida do preparo da erva-mate para consumo próprio e
para a venda no mercado local.

244 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcos Gerhardt


Figura 1 – Modo de vida.
Fonte: JAUNSEM, s.d. MADP.

É possível que os caboclos criassem, além do cavalo de transporte,


animais domésticos para alimento, como galinhas, porcos e bovinos.
Mesmo sem dados demográficos suficientes, é razoável afirmar que popu-
lação residente no Noroeste Rio-Grandense, embora alterasse o ambiente
no qual vivia, não produzia mudanças profundas e permanentes, ou seja,
não avançava além da capacidade de recuperação da natureza, de sua
resiliência. Em suas roças, quando abandonadas depois de algum tempo
de cultivo, o mato voltava a crescer e novas áreas eram desmatadas para a
agricultura. Como posseiros na terra, essa mobilidade era possível, a agri-
cultura tinha uma racionalidade própria (BOSERUP, 1987, p. 77 apud
ZARTH, 1997, p. 130) e era ambientalmente sustentável. Pode-se supor
que a caça e a pesca praticadas não comprometiam a reprodução das espé-
cies animais que habitavam os matos, banhados, campos e rios da região.
Certamente os caboclos colhiam frutos, extraíam mel, retiravam madeira
dos matos, tanto para a construção de habitações e de currais quanto para
lenha, coletavam plantas curativas ou de condimento para o uso ou para
a venda, mas em quantidade que não afetava a manutenção da floresta.
Dos campos obtinham o capim-rabo-de-burro (Andropogon bicornis L.) ou
capim-sapê (Imperata brasiliensis Trin.) para cobrir as habitações.

Os caboclos e a história da paisagem 245


Algumas vilas e cidades se destacavam enquanto pontos de maior
aglomeração humana no Noroeste da província no século XIX: Cruz
Alta, Palmeira das Missões e remanescentes das reduções jesuítas, princi-
palmente Santo Ângelo e São Miguel. Assim se completa uma sucinta
descrição da paisagem, feita de acordo com o conceito do geógrafo Milton
Santos: “Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a
paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que
a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores,
movimentos, odores, sons, etc.” (1991, p. 61). Esta paisagem, construída
pela natureza e pela ação humana até o século XIX, foi drasticamente
transformada a partir do início do século 20, como veremos a seguir.

Figura 2 – Áreas florestais e colônias de predominância germânica


no Norte do Rio Grande do Sul.
Fonte: ROCHE, 1969, p. 128.

A passagem de século foi marcada pelo fim da escravidão e da


monarquia no Brasil e pela continuidade da colonização por imigrantes
europeus no Rio Grande do Sul. No Norte e no Noroeste do estado uma

246 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcos Gerhardt


sequência de projetos de colonização foram implantados, com destaque
para as colônias oficiais: Ijuhy fundada em 1890, Guarany em 1891,
Erechim em 1908, Ijuizinho em 1910, São João Batista em 1912 e Santa
Rosa, criada em 1915. Por iniciativa privada também foram fundadas
diversas colônias, como: Boi Preto em 1897, Neu Württemberg (hoje Panam-
bi) em 1899 e Serro Azul (Cerro Largo) em 1902. O mapa reproduzido na
Figura 2 ajuda a compreender a localização dos projetos de colonização e
os situa em relação às áreas de vegetação original.
A construção da ferrovia avançou com rapidez no Noroeste Rio-
-Grandense. A partir de Cruz Alta, que integrava a linha Marcelino Ramos-
-Santa Maria, o trem chegou a Ijuí em 1911, a Catuípe em 1915, a Santo
Ângelo em 1921, a Giruá em 1928 e, em sua extensão máxima, a Santa
Rosa em 1940, como se pode observar na Figura 2. Este meio de transporte
diminuiu o isolamento e facilitou a colonização e o escoamento dos pro-
dutos coloniais.

Figura 3 – Desmatar e abrir espaço para a roça.


Fonte: JAUNSEM, 1927, MADP.

Os imigrantes que vieram para viver no Noroeste do estado removeram


grandes áreas de floresta, ampliaram a área de cultivo agrícola e a pro-
dução de alimentos, aumentaram a densidade demográfica, viabilizaram

Os caboclos e a história da paisagem 247


a vida de suas famílias em pequenos lotes rurais e modificaram profun-
damente a paisagem (Figura 3). Como argumentou a historiadora Eunice
Nodari, é preciso considerar “que povos diferentes escolheram formas
distintas de interagir com o ambiente circundante e que suas escolhas
têm ramificações não somente na comunidade humana, mas também no
ecossistema maior” (2010, p. 137). Vários documentos da época permi-
tem compreender a visão predominante entre colonos e administradores
das colônias desta parte do Rio Grande do Sul, para os quais aquele era
um ambiente naturalmente rico, intocado e improdutivo, que precisava
ser desbravado e ordenado. Para eles havia uma natureza capaz de
fornecer riquezas e apta a produzir por meio da agricultura e do trabalho.
Entendia-se como um desperdício conservar o ambiente devoluto. O
progresso da sociedade era percebido na civilização e na ordenação do
ambiente, ou então, na vitória da ação humana, do trabalho e da tecno-
logia sobre a natureza, visível nas roças, nas estradas, nas vilas e cidades
(GERHARDT, 2009). A paisagem estava sendo recriada. Um documento
escrito em 1924 por imigrantes instalados na Colônia Serra do Cadeado
ajuda a compreender a concepção da época:
No fim da segunda década o retrato da colônia é bem mais agradável.
Ao longo das ruas já não há mais a mata selvagem. Bonitas residências
de colonos, rodeadas de laranjais em flor, pessegueiros e ameixeiras mos-
tram claramente o progresso. Em verdes campos pastam vacas gordas,
cavalos e terneiros (1824-1924: FESTSCHRIFT, 1924).
Um padre de origem polonesa, Antoni Cuber, conviveu com os
moradores da Colônia Ijuhy e registrou suas impressões sobre a paisagem
que encontrou em 1898, no início da colonização, na qual “estendem-se
magníficas florestas, cujas espessas matarias, até há pouco tempo, só eram
conhecidas pelos animais selvagens e pelos bugres” (1975, p. 12). Adiante
em seu testemunho ele descreveu com detalhes a flora e a fauna regionais.
Deste se destaca que:
Durante a época que procede as chuvas ecoam pelas matas os uivos
plangentes de macacos que aqui são representados por muitas varie-
dades. Os porcos do mato causam consideráveis estragos nas roças, eis
que surgem sempre em varas numerosas. O tigre anda ordinariamente
no encalço deles, arrebatando os exemplares extraviados do bando [...]. O
tamanduá bandeira (grande) e o tamanduá mirim (pequeno) são verda-
deiros “papa formigas” se encarregam de destruir as enormes quantida-
des e variedades de formigas que aqui existem. Os colonos não deveriam
jamais abater esse animal, pois ele é muito útil. O tatu (couraçado) vive
em grande número nas campinas e nos matos; possui uma carcaça bem
dura e unhas compridas; quando é perseguido enterra-se profunda e
imediatamente. O tatu é caçado com o auxílio de cachorros; sua carne é
excelente (CUBER, 1975, p. 32-33).

248 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcos Gerhardt


Este padre reafirmou a existência de importante biodiversidade na
região, antes registrada pelos cronistas Castro e Silveira. Ao mesmo tem-
po informou a prática da caça entre os colonos, revelou preocupação
com a perda e a conservação de algumas espécies e percebeu as transfor-
mações nos ecossistemas e na paisagem que a colonização realizava.
Cuber, entretanto, estava impregnado pela visão etnocêntrica e não reco-
nheceu a importância da população cabocla, que conviveu com os colonos
em Ijuí. Semelhante postura teve o botânico Lindman em 1893, ao escre-
ver que:
No Rio Grande do Sul existe ainda matta intacta e primitiva, verdadeira
matta virgem. Sabe-se, por exemplo, que nas colonias alemãs e italianas
ainda há florestas no mesmo estado em que foram entregues pelos agri-
mensores do governo, que foram as primeiras pessoas civilisadas que
entraram com os seus auxiliares nestas mattas incognitas e cheias de
animaes bravios, para as medir e dividir em lotes ou propriedades,
abrindo nellas as primeiras ‘picadas’ ou linhas divisorias. Muitos destes
lotes florestaes demarcados ainda não estão occupados, e outros ha em
que o proprietario pode designar mattas em que elle, o primeiro dono,
nunca entrou com o seu machado, e onde talvez nunca pisasse pé hu-
mano (1974, p. 180).
A visão etnocêntrica, que valoriza somente a atuação de uma ou de
poucas etnias na construção da história, aparece inclusive e infelizmente
em textos de história municipal escritos por memorialistas e historiadores
que, por vezes, são lidos nas escolas. Os fragmentos transcritos a seguir
são exemplos disto:
Demorou... somente a partir de 1920, este “ser homem” veio dar “outra
vida” aos prodígios naturais [...]
É com a chegada do homem da foice, do machado, [da] enxada, que,
realmente se abrem as portas da história de Tucunduva... (CLAUSS, 1982,
p. 24-25).
Ainda no século atual, Crissiumal integrava Palmeira das Missões, era
uma área inexplorada. A partir de 1930, porém, o esgotamento das terras
e a elevada densidade populacional das denominadas “colônias velhas”
determinou um verdadeiro êxodo para as zonas de terras ainda virgens e
inicia-se a ocupação de Crissiumal.
O nome adviria de “criciúma” tipo de junco abundante no local. Povoa-
do, principalmente por elementos de origem germânica, a agricultura,
a suinocultura e outras atividades tomam tal impulso que já em 1954,
desmembrando-se de Três Passos, Crissiumal se constitui em município
(FAMURS, 2011).
Os caboclos que viviam no Noroeste do Rio Grande do Sul muito
antes de iniciar a colonização oficial eram detentores de um conhecimento
sobre a natureza que foi parcialmente transmitido aos colonos, pois era

Os caboclos e a história da paisagem 249


útil e indispensável naquele ambiente. Várias são as fontes que indicam
a existência deste conhecimento: o próprio Lindman registrou que
“Notavel é a affirmação dos brasileiros – que um ‘taquaral’ é [sinal] de
terra ruim” (1974, p. 203). Hemeterio J. Velloso da Silveira, se referindo
ao Rio Conceição no caminho entre Cruz Alta e Santo Ângelo, observou
que “N’alguns dias, bem cedo, ouve-se de longe um fragor desuzado do
desempenhar das agoas. ‘É signal certo da chuva’ dizem os habitantes do
logar” (1909, p. 217). A imigrante Vitória Megier relatou a existência de
tigres na Colônia Ijuhy na década de 1890 e que os caboclos ensinaram
sua família a fazer fogo durante a noite para afastar esse animal (Entre-
vista, s. d.).
A toponímia, que é o estudo dos nomes atribuídos aos lugares, ajuda
a identificar os grupos sociais que participaram da construção de uma
paisagem. Muitos dos nomes de lugares, localidades, rios e arroios têm
origem indígena, como: Pirapó, Ijuí, Ubiretama e Buricá. Estes nomes
foram atribuídos pelos indígenas e perpetuados pelos caboclos e colonos,
revelando uma importante interação humana com a natureza. Neste
sentido temos a afirmação de Warren Dean, cujo trabalho se tornou uma
referência para os historiadores dedicados à História Ambiental, para
quem
homens da Mata Atlântica, como todas as suas outras criaturas, haviam
armazenado, durante 12 mil anos, seus próprios estoques de informação.
Cada grupo havia atribuído nomes a centenas de espécies para as
quais encontravam algum uso e sobre as quais conheceram os hábitats,
estações, hábitos e, ainda, relações com outras espécies (1996, p. 83).
No Rio Grande do Sul podem ser encontradas localidades rurais
denominadas de faxinal, como o Passo do Faxinal. Nesta região a deno-
minação está de acordo com o conceito de “Trecho alongado de campo
que penetra a floresta” (FERREIRA, 1999, p. 885), ou seja, espaço de
transição entre o campo coberto por variada vegetação rasteira ou de
baixo porte e o mato ou floresta. O faxinal assim conceituado é um lugar
periférico na pecuária extensiva, preterido para a criação de gado, mas era
menos inóspito que a floresta e foi frequentemente habitado por caboclos.
No município de Porto Xavier se percebe que a colonização incor-
porou parte da população cabocla, fixando-a em lotes rurais. Contudo, se
pode perceber uma nítida divisão do território: nas linhas Taquarussu e
nas seções Dourados e “D”, onde a topografia e os lotes rurais têm formas
irregulares, há uma concentração de famílias de caboclos; por outro lado,
as linhas Depósito e São Carlos foram predominantemente habitadas
por descendentes de imigrantes europeus que se estabeleceram ali como
colonos. Naquele município é evidente o uso de duas denominações
distintas: as linhas e os rincões. Os nomes das linhas foram atribuídos

250 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcos Gerhardt


pelos projetos de colonização após a medição e a delimitação precisas.
Os rincões – Rincão Comprido, Rincão dos Machados, Barro Preto – são
nomes criados em época anterior, a partir de características da paisagem
ou da população habitante. Em alguns casos as denominações são
compostas: Linha Faxinal, Linha Pedra Lisa, Linha Montanha, revelando
as mudanças e as permanências na construção da paisagem (ESTUDOS
AMBIENTAIS, 2003).

Figura 4 – Santa Rosa.


Fonte: BERNARDES, 1950, p. 390.

O mapa reproduzido na Figura 4 representa graficamente o muni-


cípio de Santa Rosa em 1949, antes de sua fragmentação motivada pela
emancipação dos municípios vizinhos. O modelo de colonização em
pequenos lotes familiares rurais, ordenado em linhas e travessões ou
seguindo o curso de rios e arroios, pode ser claramente percebido no
traçado das estradas e dos caminhos vicinais, bem como na proximidade
geográfica de vilas e povoados. A paisagem colonial foi construída sobre um
espaço que não era virgem ou intocado e formou uma camada sobreposta
(SCHAMA, 1996, p. 17) que não fez desaparecer a paisagem anterior. O

Os caboclos e a história da paisagem 251


geógrafo Leo Waibel empregou o conceito de paisagem cultural para se
referir àquela criada pelos colonos, em oposição à paisagem natural,
pouco transformada pelos caboclos e indígenas, vistos como integrantes
da natureza (1949). Este conceito é inadequado para a História Ambiental
e “mostra-se, agora, bastante prejudicial a um amplo entendimento da
relação homem/natureza” (SILVA, 1997, p. 209).
Os colonos geraram novos conhecimentos, produziram uma apreciável
quantidade e variedade de produtos para consumo familiar, abasteceram
o comércio regional e industrializaram alguns setores. Mas isto não repre-
sentou uma ruptura com o modo de vida caboclo e com suas técnicas
agrícolas. Ao contrário, na convivência os colonos aprenderam
com eles, adaptaram conhecimentos e lentamente moldaram a
paisagem colonial (SCHNEIDER, 2008). Isto porque a “A paisagem não
se cria de uma só vez, mas por acréscimos, substituições; a lógica pela qual se fez um objeto
no passado
era a lógica da produção daquele momento. Uma paisagem é uma
escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades dife-
rentes, é uma herança de muitos diferentes momentos” (SANTOS, 1991, p.
61).
Por fim, é preciso lembrar que os historiadores também escrevem
sobre o presente e o fazem com base no quanto conhecem da experiência
social vivida. Em um balanço histórico das mudanças realizadas no No-
roeste do Rio Grande do Sul nos últimos 120 anos, pode-se dizer que
houve profundas mudanças em vários aspectos. Além dos elementos
visíveis da paisagem recriada existem elementos que a integram, mas que
são menos evidentes. Um deles é a substancial perda de biodiversidade
que ocorreu no início do século 20, se aprofundou com a modernização
da agropecuária das décadas de 1960 e 70 e se agrava com a introdução
contemporânea imprudente dos transgênicos na agricultura e na pecuária
(ANDRIOLI; FUCHS, 2010; NODARI, 2011). Pesquisas mostram que
existe uma significativa perda de diversidade durante os últimos 100 anos
(HAMMER; ARROWSMITH; GLADIS, 2003, p. 241), inclusive de recur-
sos genéticos que desapareceram definitivamente. Animais e plantas
que habitavam o Noroeste Rio-Grandense no século XIX, que foram des-
critas com admiração pelos cronistas, conhecidas e utilizadas pelos indí-
genas e caboclos, essenciais para a adaptação dos imigrantes ao novo
ambiente, desapareceram ou estão sendo extintas. Isto vale para as espé-
cies silvestres – afetadas pelas mudanças ambientais – e para plantas
cultivadas e animais criados.
Um exemplo é o milho das variedades crioulas que caboclos e colonos
plantavam na região, guardando as melhores espigas como sementes
para o ano seguinte. A opção pelo monocultivo de poucas cultivares de
milho e soja de alta produtividade mudou a paisagem rural, tornou-a
mais homogênea e reduziu a variabilidade genética, pois se perderam

252 História do Campesinato na Fronteira Sul • Marcos Gerhardt


aquelas sementes. A conservação ou a perda de recursos genéticos
também altera sensivelmente a paisagem. Um estudo de pesquisadores
europeus estima “que os recursos genéticos vegetais que são atualmente
cultivados representam somente 25% da diversidade mundial que estava
em uso no início do século 20” (IÖW et al., 2004, p. 3). Em outras palavras:
a agrobiodiversidade característica dos lotes coloniais, onde se plantava
e se criava uma considerável variedade de vegetais e animais, que teve
um prejuízo em relação ao modo de vida caboclo, continua diminuindo
rapidamente. A recriação da paisagem rio-grandense é um processo que
prossegue e se acelera, gerando altos rendimentos para alguns e prejuízos
sociais e ambientais para a maioria.

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Os caboclos e a história da paisagem 255


14
Águas que geram energia e luta

Dirceu Benincá

1 Energia e desenvolvimento

Vivemos em um período de crescimento econômico e tecnológico sem


precedentes. Nesse contexto, as demandas por energia se tornam cada vez
maiores. Atualmente, os combustíveis fósseis ainda são a principal fonte
energética em nível global. Cerca de 30% de toda a energia gerada no
mundo está baseada no petróleo. De acordo com o Ministério de Minas e
Energia, em 2008 a matriz energética brasileira estava assim constituída:
37,4% de petróleo e derivados; 15,8% de derivados da cana-de-açúcar; 14,9%
de hidroeletricidade; 12% de lenha e carvão vegetal; 9,3% de gás natural; 6%
de carvão mineral; 3,2% de outras energias renováveis e 1,4% de urânio.
As hidrelétricas são responsáveis por cerca de 90% do total da eletri-
cidade produzida em nosso país. Quanto às grandes barragens, que
seguem se multiplicando, prevalece o discurso de que elas são indispen-
sáveis para acelerar o crescimento econômico e dar sustentação ao desen-
volvimento social. O assunto, entretanto, tem-se configurado sempre mais
polêmico, uma vez que as hidrelétricas tornaram-se foco de interesses
vantajosos tanto de governos, quanto de agências financiadoras e empre-
sas construtoras.
“Hoje quase metade dos rios do mundo tem ao menos uma grande
barragem”.1 No Brasil, são poucos os rios de médio e grande portes que
ainda não foram barrados no mínimo em um ponto para a instalação de
usinas hidrelétricas. Segundo alguns autores, a construção de barragens
é uma forma de colonização moderna, onde o “outro”, forte e estranho,
1
Cf. Comissão Mundial de Barragens. Barragens e desenvolvimento – um novo modelo
para tomada de decisões. Tradução de Carlos Afonso Malferrari, 2000. Disponível em:
<http://www.fboms.org.br/old/doc/resumo_barragens.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2011.

256 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


impõe seu projeto. Apropriando-se dos bens naturais e do território,2
subordina, silencia e expulsa compulsoriamente as populações locais. Aí a
água é transformada em energia; a energia, em mercadoria; a mercadoria,
em consumismo e o consumismo passa a ser visto como sinônimo de
“desenvolvimento” e “progresso”. Porém, os atingidos por barragens têm
outra percepção acerca das hidrelétricas: “Eles falam que é progresso.
Realmente é progresso para dois ou três”. “É aquele progresso que veio
pra acabar com a gente.”3
Referindo-se à orientação capitalista que tem motivado a construção
de muitas barragens, Sevá Filho et al. (1990, p. 18-19) afirmam: “Levantam
a bandeira do ‘progresso’, após terem baixado os decretos e as agressões
da ‘ordem’, e o progresso tem que ser como eles pensaram e decidiram.
Enquanto os descontentes e os prejudicados viram ‘problemas’, que não
merecem mais do que soluções baratas, as responsabilidades sociais dos
empreendedores, e do próprio Estado, vão por água abaixo, junto com as
regiões inteiras que são afogadas”. Sob o comando de grandes empresas
que, muitas vezes, vêm de fora para trazer o “progresso” ao país, são repro-
duzidos riscos e rastros de calamidade. Assim, “a cada obra, mais gente
empobrece, enlouquece, fica sem alternativas... a não ser que comece, dura-
mente e sem descanso, a construir a sua própria alternativa, uma outra via”.
McCully (apud SILVA, 2007, p. 54) explica que “as grandes barragens
são muito mais do que máquinas que geram eletricidade e armazenam
água. São expressões de concreto, rocha e terra da ideologia dominante
na era tecnológica: ícones do desenvolvimento econômico e do progresso
científico, à altura das bombas nucleares e dos automóveis”. Todavia,
enquanto empresas construtoras visam o território com interesses econô-
micos, as comunidades residentes veem nele um espaço de sustentabi-
lidade. Mantêm com o lugar uma profunda identificação e o reconhecem
como ambiente de vida e chão de sua história.
A perspectiva do desenvolvimento capitalista tem produzido diversos
tipos de problemas, como demonstra Souza (1992, p. 15):
No Brasil, o desenvolvimento constituiu-se basicamente num duplo
processo de produção da desigualdade em nível social: através do autori-
tarismo político e do descaso ou destruição sistemática dos recursos
naturais disponíveis em abundância no país. Começamos por destruir os
povos indígenas que aqui viviam em paz com a natureza. Depois, ope-
ramos o desenvolvimento através da força de trabalho escravo, destruin-
do gente para mover a economia e acumular riqueza para uns poucos.
2
Raffestin (1993) emprega o conceito “espaço” para identificar uma área geográfica e o
conjunto do patrimônio natural que ela contém, e refere-se a “território” para designar
a utilização do espaço por determinados sujeitos sociais.
3
Respectivos depoimentos dos atingidos por barragens Claudiano José da Silva e Eunice
Fonseca da Silva. In: Vídeo Organização e resistência: a saga dos atingidos por barragens.
Produção: MAB. Realização: Alter Mídia, 2005.

Águas que geram energia e luta 257


A lógica intrínseca deste sistema de produção gera a primeira contra-
dição, que consiste na mais-valia a partir da exploração da mão de obra
(trabalho não pago) para obter lucro. A segunda contradição ocorre na
medida em que o capitalismo se apropria dos recursos naturais; utiliza-
-os de forma ilimitada e distribui os impactos de modo desigual, subme-
tendo as classes sociais menos favorecidas aos maiores riscos e perigos.
Trata-se, pois, de uma relação antagônica entre capital e meio ambiente;
uma apropriação destrutiva do espaço e da natureza. Enquanto a primei-
ra contradição – “mais-valia do trabalho” – provoca crises de superpro-
dução, a segunda – “mais-valia natural” – desencadeia crises de custos.
No Brasil, com o processo de industrialização, explorou-se de forma
cada vez mais perversa a força de trabalho e o meio ambiente. Aprovei-
tando o vasto potencial de muitos rios, ainda no período da ditadura
militar, o governo optou por alicerçar a expansão industrial do país na
megaeletricidade. O Estado, então, assumiu o papel de planejador e em-
preendedor de grandes projetos desenvolvimentistas, com políticas centra-
lizadoras, autoritárias e intimamente ligadas aos interesses do capital
transnacional. O modelo estatal de energia promoveu a ocupação violenta
de territórios; gerou sérios impactos ambientais; praticou graves agressões
culturais e físicas contra populações tradicionais; ampliou o êxodo rural e a
subsequente marginalização social. Tudo em nome do progresso da Nação!
Na década de 1990, consubstanciou-se o Plano Nacional de Energia
Elétrica baseado na implantação de grandes barragens e aprofundou-se
o modelo neoliberal associado à dinâmica das privatizações. Com isso,
houve aumento das tarifas de energia e geração de desemprego no
setor elétrico brasileiro. Este sistema se consolidou a partir do Programa
Nacional de Desestatização,4 criado em 1990 pelo presidente Fernando
Collor de Mello. Em 1995, com as Leis Federais 8.987 e 9.074, regula-
mentou-se o regime de concessão de obras e serviços públicos a empresas
privadas. O Estado passou a operar como um agente financiador na cons-
trução de hidrelétricas, apoiando e subsidiando grandes empresas através
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
No ano 2000, a Comissão Mundial de Barragens (CMB) registrava a
existência de 594 grandes barragens no Brasil. A estas deve-se somar mais
494 hidrelétricas de grande porte previstas pela Eletrobrás para instalação
até 2015, além de múltiplas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs).
Segundo síntese elaborada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens
4
A Lei 8.031, de 12 de abril de 1990, instituía o Plano Nacional de Desestatização, tendo
entre outros objetivos, os seguintes: “Reordenar a posição estratégica do Estado na eco-
nomia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo
setor público; contribuir para modernização do parque industrial do País, ampliando
sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da eco-
nomia”.

258 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


(MAB)5 – com base em dados do Ministério das Minas e Energia e da
Eletrobrás – 1.443 projetos de barragens estão inventariados ou com
estudo de viabilidade para serem construídos até o ano 2030 no país. No
governo Lula, as barragens passaram a ser tratadas como mecanismos de
Aceleração do Crescimento.
A propósito do quadro gerado pelo sistema capitalista, José Helio
Mecca6 afirma: “Ou fazemos uma transformação profunda nas matrizes
produtivas, sobretudo na indústria, na agricultura, no jeito de lidar com
o meio ambiente, ou não haverá alternativas. Não existe nenhum planeta
que possa aguentar o grau de consumismo e destruição que temos hoje.
Esse modelo de desenvolvimento se baseia na exploração e no saqueio
da natureza: minério, floresta, água e energia. A energia e a água são as
duas coisas mais cobiçadas e necessárias”. Daí a importância de pensar
alternativas ao desenvolvimento vigente.

2 Barragens e seus impactos

Não obstante se afirme que as hidrelétricas produzem “energia lim-


pa”, sabe-se que elas provocam uma gama de problemas de ordem social,
ambiental e simbólica. Normalmente, as barragens inundam vastas áreas
de terras, destroem florestas, extinguem espécies animais e forçam a
saída de muitas famílias. De acordo com o MAB, a cifra dos expulsos de
suas propriedades e locais de vida por tais projetos supera um milhão
de brasileiros, sendo que cerca de 70% deles não têm seus direitos garan-
tidos.7 Dessa maneira, acabam por aumentar o contingente dos sem-
-terra, sem-trabalho e sem perspectivas, ampliando a fome, a miséria e
a violência. Em vários casos, as obras não são precedidas pelos Estudos
de Impacto Ambiental (EIA), o que torna imensurável e impagável o con-
junto dos danos causados pelas barragens.
Entre os principais impactos desses empreendimentos, a Comissão
Mundial de Barragens destaca os prejuízos nos meios de subsistência
de milhões de pessoas que dependem das funções naturais e da pesca; a
grande quantidade de pessoas deslocadas que não foram reconhecidas
(ou cadastradas) como tal e, portanto, não foram reassentadas nem inde-
nizadas; e a quase sempre inadequada indenização onde ela foi feita. Em
situações de cadastro adequado, muitas famílias não foram incluídas
5
Estudo publicado na cartilha intitulada Energia, Desenvolvimento e Soberania – análises e
debates. ANAB, 2007, p. 27.
6
Membro da coordenação nacional do MAB. Entrevista concedida dia 05 de outubro de
2007.
7
Cf. <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/11/459049.shtml>. Acesso em: 8
maio 2011.

Águas que geram energia e luta 259


nos programas de reassentamento. Aquelas que foram reassentadas,
raramente tiveram seus meios de subsistência restaurados, já que os
programas de reassentamento em geral concentram-se na mudança física,
ignorando a recuperação econômica e social dos deslocados.8
Marco Antônio Trierveiler9 explica que esses cenários se estabelecem
em virtude de que as empresas utilizam um conceito patrimonialista,
pelo qual reconhecem como atingido somente quem possui propriedade
escriturada. São excluídos, por exemplo, “os sem-terra, a professora da
escola que fechou, o freteiro do leite que ficou sem a frota, o pequeno
comércio que se inviabilizou, etc. Para os que consideram com direito,
as empresas é que definem qual é o direito; se será em dinheiro, em
reassentamento ou carta de crédito. Tem uma forte tendência de dar em
dinheiro. Se a pessoa quer permanecer na terra, a segunda política é a
carta de crédito porque aí espalha as famílias”, afirma ele. E acrescenta:
“Uma empresa que tem interesse em construir uma barragem, ela mesma
contrata o EIA/RIMA.10 Isso já é um vício no Brasil, cabendo a essa
empresa fazer o levantamento físico, definir as áreas alagadas, e dizer
quem é ou não atingido”.
A partir de pesquisas realizadas em nível mundial, o relatório da
CMB/2000 demonstra que os grupos vulneráveis e as gerações futuras
tendem a arcar com os maiores custos sociais e ambientais das barragens.
Entre tais grupos, são citados: povos indígenas, tribais e minorias étnicas;
populações que moram perto de represas, bem como pessoas deslocadas
e comunidades a jusante, mulheres e crianças. O relatório menciona os
efeitos adversos sobre a saúde, os meios de subsistência e o convívio
social. Registra ainda que, nas comunidades atingidas, muitas vezes foi
verificado o aumento da desigualdade de gênero, sendo as mulheres
geralmente discriminadas na partilha dos benefícios. “A não contabi-
lização desses impactos e o não cumprimento dos compromissos assumi-
dos levaram ao empobrecimento e sofrimento de milhões de pessoas. Isso
tem gerado em todo o mundo uma oposição crescente às barragens por
parte das comunidades afetadas”.11

8
Cf. Comissão Mundial de Barragens. Barragens e Desenvolvimento – Um Novo Modelo
para Tomada de Decisões. Disponível em: <http://www.fboms.org.br/old/doc/resumo_
barragens.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2011.
9
Membro da coordenação nacional do MAB. Entrevista concedida dia 28 de outubro de
2009.
10
Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).
11
Cf. Comissão Mundial de Barragens. Barragens e Desenvolvimento – Um Novo Modelo
para Tomada de Decisões. Disponível em: <http://www.fboms.org.br/old/doc/resumo_
barragens.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2011.

260 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


Em relação aos danos provocados pelas barragens, Daiane Höhn12
assegura: “As mulheres sofrem os maiores impactos antes, durante e
depois da construção. Quando é feito o anúncio da barragem, as mulheres
sentem um abalo mais forte porque elas têm um apego muito maior com
o ambiente. Em muitos casos, os homens preferem sair e as mulheres não.
Isso acaba gerando conflito na família [...]. Os homens negociam mais fácil
a terra”. Segundo ela, em Rondônia, entre outras consequências diretas
constatadas no processo de construção das barragens Santo Antônio e
Jirau, estão: o aumento da prostituição, da gravidez precoce, do comércio
e consumo de drogas, da violência e dos acidentes.
As barragens também causam desestruturação de comunidades,
rompimento de laços familiares e grupais, traumas diversos, desenraiza-
mento cultural, perda do vínculo espacial, doenças (malária, dengue e
outras), depressão e até casos de suicídio em virtude de transtornos psí-
quicos. A inundação de florestas, cidades, escolas, cemitérios, igrejas e ou-
tros espaços interferem negativamente sobre os atingidos, constituindo-se
em formas explícitas de agressão e violência simbólica.

Torres da Igreja São Pedro – Itá-SC.


Foto: Rafael Ubachupel.

12
Daiane Carlos Höhn, da coordenação do MAB. Entrevista concedida dia 15 de julho de
2009.

Águas que geram energia e luta 261


“As grandes barragens são uma ameaça à população desde o início
do projeto até muito tempo depois da construção, pois as famílias
que moram nas proximidades do lago vivem constantemente com a
insegurança do rompimento, seja por problemas técnicos, seja por causa
das enchentes como foi o caso da barragem de Algodões”.13 A referida
barragem, no Norte do Piauí, rompeu-se no dia 27 de maio de 2009,
inundando a cidade de Cocal da Estação e destruindo, segundo o MAB,
pelo menos 500 casas. Dentre os casos mais sérios de impactos gerados
por hidrelétricas está o de Tucuruí-PA, construída sem a realização do
EIA/RIMA. O represamento do rio causou a expulsão compulsória de
milhares de famílias. De acordo com Luiz Dalla Costa14,
lá houve de tudo: um péssimo tratamento da questão social; erros de co-
tas d’água; uso do Agente Laranja (o mesmo que foi utilizado na Guerra
do Vietnã) para desfolhar a floresta; desvio de dinheiro público pela em-
presa Capemi; proliferação de mosquitos etc. Tucuruí era uma cidade
pequena com aproximadamente 8 mil habitantes e passou a ter 60 mil pes-
soas. Criou-se um sério problema urbano. A energia de Tucuruí é distri-
buída de modo subsidiado às grandes exploradoras de minério na região.
Ao transformar rios em extensos lagos também ocorre a dilapidação
de belezas naturais e a morte de espécies inteiras de peixes. De acordo
com Patrick McCully, diretor executivo da Rede Internacional dos
Rios (IRN, em inglês), “há evidências mais do que suficientes de que
as grandes barragens são a maior fonte de poluentes que agravam a
mudança climática”. Os cálculos feitos por Ivan Lima, do National Institute
for Space Research, mostram que as 52 mil represas existentes no mundo
“contribuem com mais de 4% do aquecimento global devido ao impacto
das atividades humanas”.15 A estimativa de pesquisadores deste instituto
é de que as grandes represas emitem cerca de 104 milhões de toneladas de
gás metano (CH4) a cada ano.
Para Philip M. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Ama-
zônia (Inpa), as hidrelétricas são “fábricas de metano”: “Uma tonelada
de CH4 provoca 25 vezes mais impacto sobre o efeito estufa que uma
tonelada de CO2 (gás carbônico)”.16 Na somatória das emissões, o Brasil se
encontra entre os 17 países maiores poluidores do planeta. Vale ressaltar,
portanto, que existe profunda relação entre o modelo de desenvolvimento

13
Cf. Jornal do MAB, n. 9, edição de junho de 2009, p. 5.
14
Membro da coordenação nacional do MAB. Entrevista concedida em 07 de novembro
de 2008.
15
Disponível em: <http://www.ecoportal.net/content/view/full/69416>. Acesso em: 6 maio
2011.
16
Disponível em: <http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2008/Hidreletricas%20fabricas%2
0de%20metano.pdf>. Acesso em: 6 maio 2011.

262 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


econômico adotado e a temperatura da terra. É sabido que o aquecimento
provoca alterações nos ecossistemas, uma série de doenças, agressões ao
meio ambiente, além da morte de milhares de pessoas todos os anos. Em
alguns locais, barragens romperam-se ou provocaram sismos, ocasionan-
do sérios danos.
Frequentemente, as empresas construtoras identificam as populações
residentes como entraves. Os Relatórios de Impacto Ambiental (RIMAs),17
redigidos por técnicos de empresas de consultoria contratadas pelas agên-
cias encarregadas das obras, via de regra limitam-se a “prever impactos
em termos de prejuízos materiais, resultantes da ação do Estado, expres-
sos em uma linguagem quantitativa a ser traduzida em valores de indeni-
zações. As populações são vistas como obstáculos a serem removidos pelo
menor custo possível. É significativo que os ‘modernos’ manuais técnicos
refiram-se aos atingidos como ‘interferências’ nos projetos” (MORAES,
1992, p. 100).
Com a construção de barragens, constatam-se paradoxos sociais e
ambientais. Em nome do desenvolvimento, inúmeras famílias são atingi-
das e prejudicadas largamente, muitas vezes nem podendo usufruir dos
benefícios da energia gerada nos locais de onde foram expulsas. “Nesse
cenário, é comum a constatação de vilas situadas debaixo das grandes
linhas de transmissão sendo ainda iluminadas com a queima de diesel e,
também, de grandes indústrias sendo subsidiadas com dinheiro público
para a exploração de minérios e produção de grãos destinados ao exterior,
visando quase unicamente atender ao capital especulativo e ao equilíbrio
da balança de pagamentos” (SANTOS, 2008, p. 118). No aspecto ecológico,
o paradoxo se institui na medida em que empresas que, por um lado,
promovem graves impactos com as hidrelétricas, por outro propagam
discursos de responsabilidade ambiental e desenvolvimento sustentável.
Na Amazônia, essa dinâmica tende a se fortalecer com a implantação
da Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana
(IIRSA),18 alinhada com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
que inclui a construção das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, no Rio
Madeira.19 Acerca dos desdobramentos dessas obras, o senador boliviano
17
O RIMA passou a ser exigido a partir de 23 de janeiro de 1986 pelo Conselho Nacional
do Meio Ambiente (CONAMA), que estabeleceu a Resolução 001 para operacionalizar a
Lei Federal 6.938 de 31 de agosto de 1981.
18
A IIRSA é um megaprojeto baseado no livre fluxo de capitais para o mercado externo.
Surgiu em uma reunião de presidentes sul-americanos em agosto de 2000, em Brasília,
e tem como objetivo realizar ações conjuntas para impulsionar a integração e o desen-
volvimento sociopolítico e econômico da região. A orientação principal é facilitar a
exportação de produtos primários para portos do Atlântico, Pacífico e Caribe.
19
De acordo com as empresas proponentes da barragem de Santo Antônio, o reservatório
inundará uma área de 271 km2 e a usina terá uma potência instalada de 3.150 MW. Já
a barragem de Jirau deverá alagar uma área de 258 km2 e ter uma potência instalada

Águas que geram energia e luta 263


Abrahan Cuellar Araujo20 afirma: “Compreendemos que há necessidade
de desenvolvimento, mas ele não pode ser feito expulsando a população e
destruindo o meio ambiente”.

As obras da barragem Santo Antônio, em Porto Velho-RO,


retratam o acentuado impacto ambiental (22 de julho de 2009).
Foto: Jaime Carlos Patias

No processo de construção de algumas barragens, como em Jirau,


foram flagrados casos de trabalhadores vivendo em condições degra-
dantes. Noutros lugares também foram registrados sérios problemas com
operários trabalhando em regime de superexploração ou situação análoga
à escravidão; com jornadas longas de trabalho extenuante; falta de
equipamentos de segurança; má qualidade da alimentação; e violação de
outros direitos. Segundo o MAB, o desrespeito aos direitos dos atingidos
e o agravamento da situação social ocorre em diversos locais, como

de 3.300 MW. A energia produzida será transportada para grandes centros industriais
e comerciais do país. Há previsão de instalação de 2.450 km de linhas de transmissão
para conduzir a energia até a rede nacional integrada, em Araraquara-SP. Em abril
de 2007, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) previu que as obras de Santo
Antônio e Jirau juntas demandariam R$ 25,72 bilhões, além do custo adicional estimado
entre R$ 10 e R$ 15 bilhões para as linhas de transmissão.
20
Entrevista concedida dia 29 de janeiro de 2009 durante o Fórum Social Mundial em
Belém-PA.

264 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


verificado com a barragem de Acauã, localizada na bacia do Rio Paraíba,
que deslocou cerca de 4.500 pessoas.21
O episódio mais impressionante de desprezo do governo brasileiro
pelas questões ambientais e pelos direitos humanos na construção de
barragens parece ter sido o de Balbina, no Rio Uatumã-AM. “Balbina foi
projetada para fornecer energia para Manaus, inundou 2.360 km2 e gerou
uma média de, somente, 112 MW (com capacidade instalada de 250 MW).
A barragem forçou o reassentamento de um terço do povo indígena
uaimiri-atroari” (Switkes, 2008, p. 21). No âmbito nacional, Balbina é tida
como a obra mais desproporcional, considerando-se a sua extensão com
a capacidade de geração de energia. São histórias dramáticas que não
corroboram com as promessas de desenvolvimento social (para todos)
feitas pelas empresas.

3 MAB: surgimento, identidade e trajetória

No final dos anos 1970 e alvorecer da década de 1980, os atingidos


por barragens começaram a se organizar em três regiões do país: Sul,
Nordeste e Norte. Diante da construção da hidrelétrica de Itaipu-PR,
os agricultores expropriados criaram o Movimento Justiça e Terra com
a finalidade de reivindicar justa indenização de suas propriedades. O
movimento estruturou-se a partir da assembleia convocada pela Comis-
são Pastoral da Terra (CPT), realizada dia 16 de outubro de 1978, que
reuniu 1.500 pequenos agricultores para discutir as indenizações irrisórias
oferecidas pela construtora. Em julho de 1980, os atingidos acamparam
diante do escritório da empresa, exigindo negociação sobre as indeniza-
ções. Foi o primeiro acampamento da história dos atingidos no Brasil.22
Na região Sul, na bacia do Rio Uruguai, em dezembro de 1979 foi
criada uma Comissão de Barragens em oposição à construção das hidre-
létricas de Itá e Machadinho. A partir de 1980, passou a se chamar
Comissão Regional de Barragens e, posteriormente, Comissão Regional
de Atingidos por Barragens (CRAB). Nessa região, a Eletrobrás previa
instalar 25 hidrelétricas até 2010, o que iria expulsar cerca de 200 mil
pessoas de vários municípios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
“Pela primeira vez as populações ameaçadas de deslocamento começaram

21
Disponível em: <http://www.carnelegal.mpf.gov.br/noticias/noticias_new/noticias/noticias
-do-site/copy_of_meio-ambiente-e-patrimonio-cultural/mpf-pb-e-cddph-realizaram-
audiencia-publica-com-deslocados-pela-barragem-de-acaua-1>. Acesso em: 6 maio 2011.
22
No Sul, anterior a Itaipu, agricultores já tinham sido atingidos por outras hidrelétricas,
como é o caso de Passo Real, no Rio Jacuí-RS, inaugurada em 1973.

Águas que geram energia e luta 265


a se mobilizar e organizar antes do início da obra”.23 A articulação contou
com a ajuda de segmentos da Igreja Católica, sobretudo lideranças da
CPT, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), de
alguns sindicatos combativos, membros da Fundação Alto Uruguai de
Pesquisa e Ensino Superior (FAPES) de Erechim e outras organizações
sociais.
Marco significativo no processo de conscientização sobre o projeto das
barragens na bacia do Rio Uruguai foi a 6ª Romaria da Terra, realizada
em 15 de fevereiro de 1983 no distrito de Carlos Gomes, município de
Viadutos-RS. O evento reuniu cerca de 20 mil pessoas e teve como tema
“Águas para a vida, não para a morte”, expressão que mais tarde seria
inscrita na bandeira do MAB. Outra ação importante da CRAB, em 1984,
foi a coleta de mais de um milhão de assinaturas no abaixo-assinado inti-
tulado “Não às barragens”, entregue ao Ministro Extraordinário de Assuntos
Fundiários, visando pressionar a Eletrosul e o governo contra a execução
de tais projetos. A CRAB protagonizou diversas ações diretas para obsta-
culizar a construção das hidrelétricas.24 Em 1987, obteve um acordo com a
Eletrosul pelo qual a empresa construtora se comprometia a realizar nego-
ciações coletivas, atrelar o cronograma das obras com a solução dos pro-
blemas socais e possibilitar reassentamento coletivo a todos os atingidos.
No Nordeste, organizou-se o Polo Sindical de Trabalhadores Rurais
do Submédio São Francisco, com a primeira concentração de atingidos em
agosto de 1979, em Petrolândia-PE. A trágica situação social provocada
pela construção da barragem de Sobradinho-BA levou a iniciativas para
enfrentar as ameaças e impactos que seriam gerados pela barragem de
Itaparica, no médio São Francisco, entre Pernambuco e Bahia. “Vale a
pena destacar o fato de que, contrariamente ao que havia acontecido no
Sul do país, não se constituiu aqui uma forma de organização específica
dos atingidos, mas uma articulação intersindical para levar adiante
a luta”.25 Com o apoio de segmentos da Igreja e entidades sociais, os
atingidos realizaram sucessivas manifestações públicas exigindo direitos
diante da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF).
23
Cf. Movimento dos Atingidos por Barragens. Manual do atingido: uma história de
organização e luta – parte 1. Realização: Laboratório Estado, Trabalho, Território
e Natureza / Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional / Universidade
Federal do Rio de Janeiro – ETTERN/IPPUR/UFRJ. Coordenação: Carlos Vainer e Flávia
Braga Vieira. s.d., p. 4.
24
Entre elas: várias passeatas, concentrações e romarias; quebra e remoção de marcos
fixados pela empresa para delimitar o perímetro do lago; pressão sobre as autoridades
e abaixo-assinados. Também, “a partir de 1987, uma nova forma de luta ganhou
destaque: o confronto com a Eletrosul por meio da retenção de funcionários da
empresa” (VIANNA, 1992, p. 35).
25
Cf. Movimento dos Atingidos por Barragens. Manual do atingido: uma história de
organização e luta – parte 1. Coordenação: Carlos Vainer e Flávia Braga Vieira. s.d., p. 3.

266 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


No final de 1981, na região Norte surgiu o chamado Movimento dos
Expropriados pela Barragem de Tucuruí-PA. A barragem inundou 2.830
km2 e deslocou mais de 25 mil pessoas. Ainda em 1978, a Eletronorte –
responsável pela obra – à revelia de qualquer acordo ou esclarecimento
à população atingida, começou a cadastrar as famílias para efeitos de
indenização. “Em 1981 a empresa dava por concluídas as indenizações
e oferecia uma pequena ajuda para aqueles atingidos que optassem por
abandonar a área por conta própria. Os poucos reassentados enfrentavam
uma realidade bem distinta do que havia sido prometido”.26
Diante dessa situação, o movimento desencadeou diversas ações. Em
1982 promoveu sucessivos acampamentos em frente aos escritórios da
empresa, reivindicando reassentamento, indenizações justas e ressarci-
mento de prejuízos. Na organização da população, tanto a montante
quanto a jusante da barragem, tiveram destacado papel os sindicatos
de trabalhadores rurais dos municípios afetados. Na região Norte,
sobressaiu-se também a experiência dos atingidos pela construção da
barragem de Balbina, no Rio Uatumã-AM, iniciada em meados de 1970.
As primeiras resistências se deram de formas diversas, em várias
regiões do Brasil. Os estados do Sul, entretanto, se destacaram no proces-
so de organização e articulação política diante dos projetos hidrelétricos.
Num primeiro momento, a ideia defendida pelos atingidos era “não” às
barragens e “sim” à permanência na terra. Após a constatação de que a
construção das hidrelétricas era inevitável, incorporou-se à luta as reivin-
dicações por indenizações coletivas e justas. Nessas primeiras reações, a
questão ecológica ainda não aparecia como algo relevante.
Em março de 1991, em Brasília, realizou-se o Primeiro Congresso
Nacional de Atingidos por Barragens, com a criação oficial do MAB, con
gregando experiências existentes em várias partes do Brasil. O movimento
adquiriu, então, uma dimensão e uma função nacional, visando organizar
e mobilizar as lutas em defesa dos direitos dos atingidos. O evento foi
encerrado em 14 de março, sendo estabelecida esta data como Dia Na-
cional de Luta contra as Barragens.27 Constituído como um espaço de
resistência, o MAB “revela-se não apenas no papel que desempenha, ao
lado de outras forças sociais, na luta contra a expropriação no campo,
mas na sua particularidade de tocar na política de produção de energia
elétrica, ponto nevrálgico do desenvolvimento do modo de produção
capitalista no Brasil, especialmente da estratégia baseada nos grandes pro-
jetos” (MORAES, 1992, p. 100).

26
Ibid., p. 2.
27
Disponível em: <http://www.mabnacional.org.br/?q=historia>. Acesso em: 6 maio 2011.

Águas que geram energia e luta 267


Atualmente, o movimento está presente em 17 estados do Brasil28 e
se articula com organizações de atingidos de outros países.29 Também se
integra de forma orgânica à Via Campesina30 e interage com a Comissão
Mundial de Barragens,31 com o Banco Mundial, o Banco Interamericano
de Desenvolvimento e outras agências multilaterais. Ao caracterizar o
MAB, Gilberto Cervinski32 diz tratar-se de um movimento que aglutina
três propósitos: (1) É reivindicatório – no sentido de que luta pela conquista
e garantia de direitos para os atingidos; (2) É político – na medida em
que discute alternativas ao modelo energético; (3) É popular – uma vez
que trabalha na organização do povo com vistas à transformação social.
Luiz Dalla Costa33 acrescenta ainda o predicado ecológico. Segundo ele,
embora nunca tenha advogado para si o título de ambientalista, pela sua
atuação o MAB se comporta como um movimento socioambiental.
Podemos identificar várias fases na trajetória do MAB, cada qual com
suas respectivas inflexões, expressas na variação do teor dos discursos e
das práticas da sua coordenação e de seus militantes. A partir dos anos
1990, o movimento começa a questionar com mais tenacidade a matriz
energética adotada no Brasil. A propósito, a resolução final do Primeiro
Congresso Nacional de Atingidos por Barragens (Brasília, 1991) foi a de
seguir lutando no sentido de impedir a construção de novas barragens.
Com isso, pretendia-se também forçar a busca de fontes alternativas
de energia e a solução para as inúmeras questões sociais e ambientais
pendentes de barragens já construídas ou em construção.
Em março de 1997, o MAB realizou o I Encontro Internacional de Atin-
gidos por Barragens, em Curitiba-PR, com a participação de representantes
28
Os estados onde o MAB está organizado são: Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Paraíba, Ceará, Sergipe, Piauí, Bahia,
Goiás, Tocantins, Rondônia, Pará, Minas Gerais e Maranhão.
29
Entre os países que possuem lutas mais expressivas contra as barragens destacam-se: Ar-
gentina, Paraguai, Colômbia, México, Chile, Nicarágua, Guatemala, Tailândia e Índia.
30
A Via Campesina é um movimento internacional que congrega organizações campo-
nesas de pequenos e médios agricultores, mulheres rurais e comunidades indígenas e
negras da Ásia, África, América e Europa. Luta pela reforma agrária e pela soberania
alimentar; pela preservação do meio ambiente e da biodiversidade; pela produção de
alimentos ecológicos e saudáveis, isto é, sem agrotóxicos e sem transgênicos. Defende o
comércio justo, a agricultura familiar sustentável, a biossegurança, a ética na política, o
aprimoramento da cidadania, etc.
31
A Comissão Mundial de Barragens (CMB) ou World Commission on Dams (WCD) foi
criada em maio de 1998 com representantes do Banco Mundial, governos, empresas e
organizações não governamentais para analisar os conflitos dos projetos de represas,
propor soluções e estabelecer critérios e parâmetros diante da construção de grandes
hidrelétricas. O MAB participa dessa organização desde a sua fundação.
32
Membro da coordenação nacional do MAB. Entrevista concedida dia 17 de julho de
2008.
33
Entrevista concedida dia 01 de maio de 2008.

268 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


de movimentos sociais e ONGs de 20 países. O evento ratificou o 14 de
março como Dia Internacional de Luta Contra as Barragens. Os partici-
pantes comprometeram-se a constituir e fortalecer redes regionais e interna-
cionais para alcançar os objetivos estabelecidos. Na Declaração de Curitiba,
afirmam:
Nossas lutas comuns nos convenceram de que é necessário e possível
dar por encerrada a era das barragens destrutivas. Também é necessário
e possível implementar modos alternativos, equitativos, sustentáveis e
efetivos de abastecimento de energia e de gestão de recursos hídricos. [...]
Devemos avançar em direção a uma sociedade na qual seres humanos e
natureza não mais sejam submetidos à lógica do mercado, onde o único
valor é o das mercadorias e o único objetivo o lucro. Devemos avançar
em direção a uma sociedade que respeite a diversidade, e seja fundada
em relações justas e equitativas entre as pessoas, as regiões e as nações.34
A trajetória do movimento vem sendo marcada basicamente por
ações em duas perspectivas. Por um lado, pela resistência em manter a
população no meio rural, presevar a natureza, garantir indenizações e
reassentamentos justos. Esse procedimento caracterizou sobremaneira
uma primeira fase em que os atingidos se restringiam a dizer “não às
barragens”. Por outro lado, resistindo aos “imperativos do progresso”,
o movimento foi percebendo também a necessidade de pensar ações
propositivas para um novo projeto energético, mais democrático, justo,
respeitador do meio ambiente e capaz de contemplar a participação dos
afetados nas decisões acerca da construção de hidrelétricas.
No atual período, face o aprofundamento do sistema de mercado,
o movimento denuncia com veemência a cobrança de altas tarifas da
energia elétrica, utilizando slogans como: “O preço da luz é um roubo – a
vítima é você!”; “Água e energia não são mercadorias”; “Água e energia
são para a soberania” e outros. O combate à visão mercadológica do
capital foi assumindo cada vez mais centralidade no MAB, como revela
o trecho da música Energia pra que e pra quem?:35 “Este modelo pra energia
ao nosso povo não convém. É uma mercadoria e deveria ser um bem.
Quem mora perto da barragem quer energia e não tem. Então esta energia
é pra que e para quem?”.
Nos últimos anos, o movimento vem discutindo com mais intensidade
acerca dos elementos que devem compor o novo projeto energético e um
projeto popular de desenvolvimento social. Seus principais objetivos são:

34
Cf. Movimento dos Atingidos por Barragens. Manual do atingido: uma história de
organização e luta – história da luta internacional contra barragens. Coordenação:
Carlos Vainer e Flávia Braga Vieira. s.d., p. 4-5.
35
A autoria da música é de Jadir Bocacina, da coordenação do MAB/PR e Valter Israel da
Silva, da direção nacional do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA).

Águas que geram energia e luta 269


resistir à construção de barragens que provocam danos sociais e ambien-
tais; lutar para que nenhuma barragem seja construída sem acordo com a
população; defender a permanência do povo na terra; reivindicar garantia
de justa indenização ou reassentamento aos atingidos; proporcionar
formação aos integrantes do movimento; ampliar o número de militantes,
etc. O MAB defende que a energia e os recursos hídricos sejam contro-
lados democraticamente pelos trabalhadores e pela sociedade. Combate o
modelo de desenvolvimento capitalista e propugna pela implantação de
outro sistema social identificado com o socialismo.
De acordo com membros da coordenação, o movimento não possui
estatuto nem ata de fundação. Porém, no seu II Encontro Nacional, reali-
zado em março de 2006 na cidade de Curitiba-PR, os participantes des-
tacaram dez pontos-chave que chamam de “ideias centrais”, as quais
retratam a identidade, os princípios organizativos, os objetivos e as dire-
trizes do movimento.36 Na ocasião, o MAB reafirmou sua posição contrá-
ria à privatização da água e da energia e defendeu o direito de gratuidade
pelo uso da energia até o consumo de 100 kWh para a população de baixa
renda, pagando preço justo pelo que gastar a mais.37
Desde 2005, vem divulgando a campanha pela redução da tarifa da
energia, a qual ganhou destaque em 2007 através do plebiscito nacional
popular proposto por movimentos sociais, partidos, sindicatos, organis-
mos, pastorais da Igreja e outras organizações em vista da anulação do
leilão da Companhia Vale do Rio Doce. Entre as quatro questões do ple-
biscito, constou a seguinte: “Você concorda que a energia elétrica continue
sendo explorada pelo capital privado, com o povo pagando até 8 vezes
mais que as grandes empresas?”. Em 2008, a Assembleia Popular se empe-
nhou em popularizar a referida campanha. Neste mesmo ano, o movi-
mento desencadeou trabalho pela implantação da tarifa social da energia
para famílias que consomem até 220 kW/mês.
No circunscrito contexto, o MAB põe em relevo a ideia de que só a
oposição aos grandes empreendimentos hidrelétricos e a luta pelos direi-
tos dos atingidos não garantem a transformação da sociedade. Por isso,
busca aglutinar forças para combater as diretrizes do setor elétrico e do
moledo energético, bem como lutar contra toda forma de exploração dos
que ele denomina sistematicamente “inimigos da classe trabalhadora”.
Neste sentido, também passa a investir com mais afinco na formação – das
coordenações e militantes – baseada nos princípios do socialismo. Seus
dirigentes entendem ser necessária uma “revolução socialista no Brasil”
para os que consideram o movimento uma ferramenta apta a contribuir.
36
Disponível em: <http://www.mabnacional.org.br/menu/ideias_encontro_nacional2.html>.
Acesso em: 7 maio 2011.
37
Disponível em: <http://www.mabnacional.org.br/menu/ideias_encontro_nacional2.html>.
Acesso em: 9 maio 2011.

270 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


Em suma, o Movimento dos Atingidos por Barragens surge a partir de
um argumento social, dado que as pessoas atingidas se encontram diante
de uma ameaça iminente de perderem suas terras, suas benfeitorias e
seu ambiente de vida pela construção das hidrelétricas. Depois, contudo,
ele se constitui em um efetivo instrumento político – com embasamento
ideológico – e um espaço de formulação de propostas alternativas acerca
da questão energética e do modelo de desenvolvimento da sociedade.

4 Resistências, conquistas e proposições

Diante das acusações de que o MAB procura bloquear o desenvol-


vimento econômico e perturbar a ordem social, José Hélio Mecca38
declara: “Nós não somos contra as barragens em si. Somos contra o jeito
com que elas são feitas, para quê servem e quem paga os danos que essas
obras causam, uma vez que não levam em conta todos os prejuízos sociais
e ambientais”. Segundo diversos militantes do movimento, as empresas
construtoras buscam criar confusões, divisões e inimizades entre os
próprios moradores dos locais das obras, com o objetivo de desarticular a
resistência às barragens.
O MAB insere-se entre os movimentos da chamada globalização contra-
-hegemônica (SANTOS, 2005), na proporção em que reúne grupos e seg-

38
Cf. Vídeo Organização e resistência – a saga dos atingidos por barragens, 2005.

Águas que geram energia e luta 271


mentos historicamente excluídos e, com eles, fomenta mecanismos de resis-
tências aos processos de vitimização impostos pelos empreendimentos
hidrelétricos. Significa dizer que contribui para transformar subordi-
nações e heranças reprimidas em identidades de resistência coletiva. O
sociólogo Manuel Castells (2003, p. 4-5) postula a identidade de resistência
como aquela que é constituída por atores em posições/condições desva-
lorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação.
A trincheira de resistência – ou identidade defensiva – dos “oprimi-
dos” torna possível a manutenção, o resgate ou a conquista de direitos, o
que, em última análise, significa a sobrevivência enquanto indivíduos e a
afirmação da cidadania. A identidade de resistência, formada em meio às
tensões e conflitos, pode se transformar em identidade de projeto. No caso,
os “atingidos” por barragens podem transmudar da condição passiva – de
objetos a que são muitas vezes relegados – para a posição de sujeitos sociais.
De acordo com Antônio Sousa Ribeiro,39 “toda resistência é um ato
determinado pelas relações de poder dominante. A inteligência dos
atingidos por barragens está em saber ocupar as brechas do sistema. Eles
podem sair fortalecidos dos contextos de conflitos, mas isso depende da
sua organização e da capacidade de superar possíveis traumas e obter
avanços em relação à situação que viviam antes”. Ao resistirem, os atin-
gidos também imprimem modalidades de democracia participativa e
exercitam a cidadania política e ecológica. Assim, o MAB constitui-se em
espaço dos que são expulsos de seu espaço; voz dos destituídos de sua
voz; sobrenome dos que aprenderam a lutar; grito dos que se veem obri-
gados a gritar contra as desordens geradas em nome do progresso.
Entre as ações desenvolvidas pelo MAB para defender seus direitos,
estão: discussão nas bases, assembleias regionais, articulação com atingidos
de outros estados, marchas, jornadas de lutas, protestos, manifestações
em portas de empresas construtoras, campanhas, etc. Quando as reivindi-
cações não são atendidas, o movimento chega a ocupar canteiros de obras.
Ao longo de sua trajetória de organização e luta, os atingidos por bar-
ragens obtiveram relevantes conquistas, como: adiamento da construção
de diversas hidrelétricas; cancelamento de alguns projetos, a exemplo da
hidrelétrica de Salto Capanema-PR; alteração de projetos originais, como
nos casos da barragem de Machadinho-RS e Salto do Yucumã;40 para-
lisação de obras, permitindo mais tempo para as negociações; criação de
39
Professor catedrático do Grupo de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra (Portugal), co-coordenador do Núcleo de Estudos Culturais
Comparados do Centro de Estudos Sociais (CES), diretor da Revista Crítica de Ciências
Sociais, co-coordenador do programa de doutoramento em Pós-Colonialismos e Cida-
dania Global. Entrevista concedida dia 9 de junho de 2009.
40
O Salto do Yucumã é a maior queda longitudinal do mundo, com 1.800 metros de
extensão, situado na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina.

272 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


coalizões regionais, nacionais e internacionais com alteração de cronogra-
mas e formato de obras; consecução de justas indenizações; viabilização de
políticas de atendimento às famílias realocadas, etc.; avanços no reconhe-
cimento dos direitos dos atingidos e garantia de reassentamentos coletivos.

Ameaçados pela usina de Tijuco Alto, do Vale do Ribeira-SP,


protestam em frente ao IBAMA, em São Paulo-SP.
Foto: www.mabnacional.org.br.

Dando corpo a seus pleitos, o movimento ganha visibilidade e reconhe-


cimento social. Pesquisa feita pelo Ibope,41 em 2008, revelou que, nas
metrópoles, o MAB é conhecido por 31% dos entrevistados, dentre os quais
60% são favoráveis ao movimento e 66% concordam com seus objetivos.
Comentando sobre o resultado da pesquisa, a coordenação do MAB afir-
ma: “Mesmo que a maioria das pessoas conheça os movimentos sociais
pela TV e que, na maioria das vezes, ela nos represente de forma negativa,

41
A pesquisa foi encomendada pela Companhia Vale do Rio Doce sobre os movimentos
sociais do campo e realizada entre 26 de abril e 6 de maio de 2008. Foram entrevistadas
2.100 pessoas maiores de 16 anos em metrópoles, cidades e regiões do interior de vários
estados brasileiros. A pesquisa foi divulgada pelo jornal O Globo em 15 de junho de
2008.

Águas que geram energia e luta 273


69% dos entrevistados afirmam que os movimentos sociais estão ganhan-
do força na sociedade, o que é positivo para nós, na medida em que
somos vistos como organizadores de setores excluídos da sociedade”.42
Por outro lado, o movimento apresenta limitações de diversas ordens,
identificadas com a incapacidade de mobilizar o conjunto da população
impactada e discutir amplamente as situações geradas pelas barragens,
além da dificuldade de conscientizar politicamente os atingidos para
empreender as resistências necessárias. Isso também ocorre em face de
que “a gente se vê premido pela situação do povo massacrado econômica,
cultural e socialmente e, muitas vezes, nem conseguimos dar conta das
urgências e emergências.”43 De todo modo, Aurélio Vianna, Jean-Pierre
Leroy e Ricardo Tavares afirmam que “em todas as regiões onde surgi-
ram esses movimentos, houve tomada da direção dos sindicatos de traba-
lhadores rurais ‘pelegos’, a criação de sindicatos, a eleição de vereadores,
em síntese, aconteceu o questionamento do poder local”.44
Na trajetória de lutas dos atingidos registram-se também muitas der-
rotas nos mais diferentes locais, âmbitos e níveis. No entendimento de
membros da coordenação, a principal derrota que a sociedade brasileira
e o movimento sofreram foi o processo de privatização do setor elétrico,
associado ao desmonte das políticas públicas. Com isso, consolidou-se
e expandiu-se o modelo dos grandes projetos hidrelétricos, sem que a
população pudesse questionar e intervir nessa forma de produzir energia.
No que tange aos diversos limites existentes no MAB, membros de sua
coordenação reconhecem deficiências na articulação entre o aspecto
sociopolítico e o ambiental.
O movimento combate radicalmente o capitalismo e apregoa a neces-
sidade de transformações “pela raiz”, traduzidas em profundas revoluções
estruturais. Embora sem muita clareza na tipologia e no detalhamento
pragmático, o MAB propugna e luta pela construção do socialismo. A par
dessa “utopia”, afirma ser preciso construir outro modelo de desenvol-
vimento. Um desenvolvimento – e não mero crescimento – que seja econo-
micamente justo, socialmente igualitário e ecologicamente sustentável.
No que se refere à questão energética, propõe, reivindica e se empenha
na construção de um novo projeto capaz de reduzir os impactos sociais,
ambientais, econômicos e simbólicos. Aponta a importância do repoten-
ciamento das hidrelétricas mais antigas; a necessidade de reparos e manu-
tenção na estrutura de distribuição para diminuir o “vazamento” de energia;

42
Cf. Jornal do MAB, n. 5, junho de 2008, p. 8.
43
Cf. Luiz Dalla Costa. Entrevista concedida dia 01 de maio de 2008.
44
Cf. Lutas de resistência ou lutas por um novo modelo de sociedade? In: Federação de
Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). Barragens – questão ambiental e
luta pela terra. Revista Proposta, Rio de Janeiro, n. 46, set. 1990, p. 56.

274 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


a incorporação das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs); a utilização
de fontes alternativas (menos agressivas ao meio ambiente), como a eólica,
solar, biomassa, etc.
A coordenação do movimento entende que o ponto central da questão
energética não são as tecnologias ou as fontes utilizadas, mas o modelo
adotado. Na opinião de Gilberto Cervinski,45
não adianta ter alternativas de fontes energéticas se elas forem contro-
ladas pelas grandes empresas transnacionais. Nós defendemos a cons-
trução da soberania energética [...]. As nossas hidrelétricas e os nossos
rios não podem estar privatizados. O preço da luz deve ser reduzido
porque é injusto o que é cobrado da população. Por outro lado, tem
que resolver a dívida social deixada pela construção das hidrelétricas,
indenizando as famílias que já foram atingidas. O dinheiro público deve
ser investido para beneficiar a população brasileira. Pensamos também
que é importante que as fontes energéticas sejam diversificadas para que
tenha um menor impacto ambiental e social possível.
Em síntese, além de prosseguir com a posição contrária à construção
de grandes barragens, o MAB propõe e luta em vista de que a água e a
energia estejam a serviço e sob o controle da população; para que seja
superada a visão mercadológica em relação a elas; e que sejam extintos os
subsídios aos grandes consumidores. Defende a institucionalização do di-
reito da energia a toda população brasileira, bem como a criação de subsí-
dios para as famílias de baixa renda e a isenção de pagamento às que
consomem até 100 kW/mês. Sugere a busca de fontes energéticas pelos
critérios de economia e sustentabilidade ambiental. Enfim, no conjunto
de suas proposições, consta a democratização dos processos de planeja-
mento, organização da produção e distribuição da energia, envolvendo a
participação ativa e efetiva da população brasileira.

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45
Entrevista concedida dia 29 de outubro de 2009.

Águas que geram energia e luta 275


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276 História do Campesinato na Fronteira Sul • Dirceu Benincá


15
Camponesas em luta:
possibilidades de serem sujeitos políticos

Isaura Isabel Conte

Por meio deste artigo, pretendemos trazer alguns elementos relaciona-


dos ao contexto de luta das mulheres do campo, com olhar específico
ao Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) do Rio Grande do Sul.
Contudo, elucidaremos brevemente alguns aspectos gerais sobre: a) o que
é o campesinato e sua diferença e/ou divergência com o agronegócio; b)
mulheres camponesas na história do Brasil; c) organizações de mulheres
no Rio Grande do Sul. Por último, objetivando o sentido desta escrita,
descreveremos sobre as mulheres do MMC, suas lutas, conquistas, resis-
tências e enfrentamentos.
Salientamos, desde já, que as reflexões aqui apresentadas são oriun-
das de pesquisas bibliográficas e documentos do MMC, bem como nos
utilizamos da dissertação de Mestrado em Educação apresentada na Uni-
juí, cuja pesquisa se realizou no MMC/RS. Somado a isto, tivemos também
por base informações decorrentes da inserção militante no MMC e Via
Campesina.
A Via Campesina do Rio Grande do Sul surgiu “oficialmente” por
ocasião do primeiro Fórum Social Mundial, acontecido em 2001 em Porto
Alegre, pois já havia relações estabelecidas e lutas conjuntas entre os
movimentos do campo. No momento atual, aglutina as seguintes orga-
nizações: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Movi-
mento dos Atingidos por Barragens (MAB); Comissão Pastoral da Terra
(CPT); Movimento de Mulheres Camponesas (MMC); Movimento dos
Pequenos Agricultores (MPA); Pastoral da Juventude Rural (PJR) e Fede-
ração dos Estudantes de Agronomia (FEAB). Vale ressaltar que, enquanto
organizações de mulheres, tanto dos movimentos mistos quanto do
Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR/RS que veio a ser

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 277


o MMC), havia articulações de lutas e pautas conjuntas, especialmente
pela Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR),
a qual aglutinava mulheres de vários movimentos populares camponeses
e sindicais existentes no Brasil, desde o início da década de 90. De acordo
com Ribeiro (2010), a Via Campesina é um movimento internacional,
fundado em Mons, Bélgica, em 1993, que congrega organizações agrícolas,
mulheres rurais e comunidades indígenas da Ásia, África, América e
Europa. É um movimento pluralista, formado por organizações nacionais
e regionais, com autonomia (CONTE; MARTINS; DARON, 2009).
Optamos por demarcar a diferenciação entre o campesinato e o agro-
negócio por se tratar de oposição entre ambos os campos, pois, de acordo
com Ribeiro (2010), baseada em estudos de Octavio Ianni, trata-se da
configuração do agronegócio como terra de negócio versus o campesinato
como terra de trabalho. Logo: se o agronegócio aumenta, o campesinato
retrocede, e vice-versa, pelo fato de haver disputa de terra e território para
a consolidação e manutenção de ambos os setores, que historicamente
estiveram em disputa entre si, ainda que o termo agronegócio seja, con-
ceitualmente, relativamente novo no Brasil.
Assim, ao nos referirmos ao agronegócio, estamos falando de grandes
extensões de terra com significativo investimento em capital, desde o
volume de recursos públicos em créditos até a utilização de máquinas
modernas. Mediante esses fatores, há pouca e cada vez menos geração de
postos de trabalho neste setor, cuja produção é orientada grandemente
para exportação de commodities.
Estes fatores podem ser comprovados por dados apresentados no
Censo Agropecuário de 2006, conforme o Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA, 2009). Segundo este ministério, a agricultura familiar/
camponesa no Brasil detém 24,3% das terras e produz mais de 70% dos
alimentos consumidos por brasileiros(as). Por outro lado, é demonstrado
que a agricultura não familiar concentra quase 70% das terras agricultá-
veis. Mesmo com pouca terra a agricultura familiar gera 40% do PIB da
produção agrícola.
Os movimentos sindicais rurais, filiados à Central Única dos Traba-
lhadores (CUT), à Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar
da Região Sul (Fetraf/Sul) ou à Confederação dos Trabalhadores na Agri-
cultura (Contag), utilizam o termo agricultura familiar e o mesmo acontece
com setores governamentais ou ONGs ligadas ao campo. Com relação
ao governo, entretanto, já está sendo utilizado o termo agricultura campo-
nesa em pequena medida. Contudo, a utilização de um ou de outro
termo (agricultura familiar ou camponesa) enquanto diferenciação se dá
devido ao caráter político construído por cada um dos campos, os quais
demarcam espaço no cenário nacional ou até internacional, pois, basica-
mente, em termos de legislação e de políticas públicas, não há diferen-

278 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


ciação. O antagonismo, entretanto, desse tipo de agricultura, definida
como até quatro módulos fiscais de terra, se dá com relação ao agrone-
gócio, cuja delimitação de quantidade de terra ainda não foi demarcada
no Brasil, e por isto há latifúndios de mais de 70.000 ha no estado do Rio
Grande do Sul, onde a média das pequenas unidades de produção é de
14,5 ha.
Em se tratando de geração de postos de trabalho, a agricultura fami-
liar/camponesa garante 74,4% de pessoas ocupadas no campo, ao passo
que a agricultura não familiar emprega cerca de 25,6% da mão de obra
agrícola (entre médias e grandes propriedades juntas). Assim, temos 15,3
pessoas ocupadas por 100 ha na agricultura familiar/camponesa e 1,7 pes-
soas por 100 ha na agricultura não familiar. Dados do mesmo censo
mostram ainda que a agricultura camponesa gera um valor bruto de pro-
dução por área total (VBP) de R$ 677,00/ha, que é 89% superior ao gerado
pela agricultura não familiar (R$ 358/ha).
De acordo com Carvalho (2005), a grande diferença entre agronegócio
e agricultura camponesa, é que no primeiro trata-se de pessoas empre-
gadas e patrões, numa relação de assalariamento, o que nem sempre
significa carteira assinada e direitos dos trabalhadores assegurados. No
campesinato, trata-se de mão de obra do núcleo familiar, constituindo
uma economia não capitalista camponesa, em que os membros do grupo
em geral detêm a posse de pequenas parcelas de terra e produzem em
grande medida para o autoconsumo, com comercialização e trocas da
produção excedente.
Para o autor, uma família de camponeses é aquela que, tendo acesso à
terra e aos recursos naturais, resolve seus problemas reprodutivos a partir
da produção rural-extrativista, agrícola e não agrícola, desenvolvida de
tal modo que não se diferencia o universo da que decide sobre alocação
do trabalho e da que sobrevive com o resultado desta. Segundo este mes-
mo autor, não é possível falar em campesinato desconsiderando as várias
maneiras e os diferenciados modos de produção e reprodução configu-
rados no/do campo.
De acordo com Motta e Zarth (2008, p. 7), o campesinato é frequen-
temente tratado na história como um resíduo. Afora isto, os autores
apresentam várias possibilidades de conceituação para o termo, conside-
rando-o como categoria analítica e histórica, o que vem a contrapor
olhares preconceituosos. A partir disso, os autores afirmam a constituição
do campesinato por “poliprodutores, integrados ao jogo de forças sociais
do mundo contemporâneo”.
Em se tratando da diversidade de jeitos do campesinato se fazer e se
refazer, não esquecendo os entrelaçamentos dos diversos formatos, Motta
e Zarth argumentam que:

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 279


A diversidade da condição camponesa por nós considerada inclui os
proprietários e os posseiros de terras públicas e privadas; os extrativistas
que usufruem dos recursos naturais como povos das florestas, agroextra-
tivistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos
que agregam atividade agrícola, castanheiros, catadoras de coco babaçu,
açaizeiros; os que usufruem dos fundos de pasto até os pequenos arren-
datários não capitalistas, os parceiros, os foreiros, os que usufruem a
terra por cessão; quilombolas e parcela dos povos indígenas que se inte-
gram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os
povos nas fronteiras no Sul do país; agricultores familiares mais espe-
cializados, integrados aos modernos mercados e os novos poliprodutores
resultantes dos assentamentos de reforma agrária (p. 9).
Como se pode perceber, é bastante complexa a conceituação do que
são os camponeses e as camponesas, mas, para esclarecer um pouco mais,
o MMC conceitua a mulher camponesa como
aquela que produz alimento através da agricultura diversificada do nú-
cleo familiar, garantindo auto sustento e renda. É a pequena agricultora,
a pescadora artesanal, a quebradeira de coco, a extrativista, arrendatária,
meeira, ribeirinha, posseira, boia-fria, diarista, parceira, sem terra, acam-
pada e assentada, assalariada rural e indígena (2004, p. 2).
Feitas brevemente as devidas diferenciações e conceituações entre
agricultura camponesa/campesinato e agronegócio, tratamos de recorrer,
também de forma sintética, sobre aspectos, por nós considerados relevantes,
em relação às mulheres camponesas no Brasil. Partindo do pressuposto da
produção de alimentos/subsistência nos grupos familiares sem posse da
terra, consideramos como camponesas, respeitando obviamente suas
autodenominações, as índias e negras, quilombolas ou não, como as pri-
meiras agricultoras.
De acordo com Ribeiro (1995), a divisão sexual do trabalho prevalecia
nas tribos indígenas brasileiras desde a invasão colonial, o que fazia
com que as mulheres, desde muito cedo, trabalhassem mais do que os
homens, ficando sob responsabilidade delas o trabalho das lavouras, com
exceção à primeira derrubada da mata. Desse modo, eram as mulheres
que mantinham grande conhecimento sobre o amansamento de espécies
comestíveis, plantio, colheita e armazenamento. Maestri e Fiabani (2008),
que se dedicam grandemente a estudos da população negra no Brasil,
descrevem que não só no Brasil, mas por toda a África, o esforço agrícola
era principalmente tarefa feminina.
Na contemporaneidade, além das índias e negras, contou-se com a
presença da imigração europeia de forma especial, da qual as mulheres
que se somaram no trabalho campesino, especialmente nos estados do Sul

280 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


do país, segundo Joana Pedro (2004), trouxeram significativa contribuição
com técnicas e conhecimentos, acima de tudo com a participação ativa
no trabalho nas lavouras. A autora relata que as mulheres imigrantes,
além de ter muitos filhos para garantia da mão de obra, o que também
era uma exigência do sistema devido à demanda de produção de gêneros
alimentícios, desempenhavam o trabalho na lavoura somado ao trabalho
doméstico, confecções, preparo de alimentos, entre outros, muitas vezes
noite adentro.
Neste sentido, não temos dúvida de que as mulheres foram e conti-
nuam sendo essenciais no que tange ao campesinato e à maneira de ele se
desenvolver, o que é também corroborado por Carvalho (2003), quando
afirma que cerca de 80% da alimentação das pessoas desde a era primitiva
aos dias atuais foi e continua sendo responsabilidade das mulheres.
Segundo este estudioso, não há dúvida de que foram as mulheres que
desenvolveram a agricultura no mundo.
Contudo, apesar de sobrecarregadas de trabalhos e filhos(as), as mu-
lheres camponesas não ficaram alheias aos processos de luta e de resis-
tência no campo, tampouco foram totalmente submissas, apesar de todas
as proibições devido ao patriarcado.
Muraro (2002) destaca que o patriarcado se estabelece a partir das
sociedades agrárias, tendo forte vínculo com o surgimento da proprie-
dade privada. Desse modo, os homens passaram ao domínio da cultura
(esfera pública), ao passo que as mulheres foram relegadas ao reino da
natureza, sendo consideradas impuras e incapazes. Com o patriarcado
as mulheres perderam suas funções de reconhecimento e poder nos
grupos sociais e foram forçadas a reproduzir a dominação sobre si
mesmas. Gebara (2002) descreve esta opressão como elemento cultural
hegemônico, que faz com que o centro da memória e da história das
mulheres seja o masculino, considerado superior. A autora afirma que até
que Deus continuar sendo, em nossa cultura, masculino, e, portanto, os
homens seus representantes, as mulheres continuarão sendo secundárias
e inferiores.
Nos processos de luta desencadeados por elas, no entanto, na maioria
dos casos durante muito tempo, constata-se que os méritos eram atribuídos
aos homens, ao passo que havia e, de certa forma, ainda há dificuldade
em aceitar o protagonismo das mulheres, em campos marcadamente tidos
como masculinos. Este fato pode ser ilustrado com a fala de uma lide-
rança comunitária que se referia ao início da greve de mais de sessenta
mil cortadores(as) de cana, organizados sem a presença sindical no muni-
cípio de Dobrada-SP:

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 281


O comecinho da greve em 1983 foi no canavial. Até parece que teria sido
uma mulher na roça que levantou uma bandeira [...], eu nem sei se foi o
facão ou alguma palavra de ordem. Esta mulher parou uma turma e aí, a
coisa foi parando assim em cadeia (SILVA, 2004, p. 569).
A mesma autora destaca que foram as mulheres boias-frias no Brasil,
as primeiras a puxar greves e piquetes enfrentando os falatórios do povo
e a proibição dos maridos, além da polícia a serviço dos patrões. Ressalta,
ainda, que grande parte das que se colocaram em luta, eram solteiras, viú-
vas ou separadas, sendo que os sindicalistas em sua maioria as conside-
ravam mais uma ameaça do que aliadas.
Giulani (2004) argumenta que as mulheres trabalhadoras rurais tive-
ram dificuldade de se organizar por dentro de sindicatos da categoria,
tanto é que suas organizações, em grande medida, surgiram de pastorais
sociais da Igreja Católica, as quais já eram coordenadas por mulheres.
Pelo constatado a partir de análise documental, esses processos organiza-
tivos, evidenciados a partir do início da década de 80, de modo especial,
fizeram com que surgisse, por exemplo, o que veio a ser o MMC.
A mesma autora (p. 645) afirma que “prevalecia a convicção de que
as mulheres fossem as principais depositárias e reprodutoras dos valo-
res patriarcais dominantes na sociedade rural brasileira” e, talvez, isso
servisse de argumento para os sindicalistas. De outro modo, dentre aque-
las que foram entrando e assumindo alguns raros cargos importantes
nos sindicatos, poucas eram as que “participavam das negociações e só
excepcionalmente representavam a categoria fora da entidade, mesmo as
que tinham um alto nível de escolaridade, muitas vezes superior ao dos
dirigentes” (p. 661).
Segundo estudos realizados e a própria participação ativa na militân-
cia permite-nos afirmar que as mulheres camponesas do RS, no início da
década de 1980, decidiram criar um movimento autônomo, devido ao
fato de não ter espaços em estruturas mistas, além de que, nas primeiras
experiências de organização, as lideranças masculinas tentavam conduzir
as lutas das mulheres. O fator da autonomia revela-se, nas análises do
movimento, como sendo de extrema importância, tanto é que aparece em
praticamente todos os documentos consultados por ocasião da pesquisa
em vista da dissertação de Mestrado.
Ficou destacado o fato de que as mulheres do MMC acreditam serem
sujeitos de sua história em organizações em que elas próprias aprenderam
e aprendem a coordenar e dirigir. Dessa forma, nos dias atuais, as mili-
tantes não negam o acúmulo histórico de lutas como aprendizado indivi-
dual e coletivo, e afirmam que se empoderam na medida em que se
desafiam a estar em locais até então considerados masculinos. Revelam
ter convicção de não permitir mais serem sombra dos homens, como fora

282 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


a vida de suas mães e avós e, por isso, enfatizam a importância do movi-
mento, dirigido por elas mesmas, apesar das dificuldades.
Com relação às mulheres formarem movimentos consistentes de
trabalhadoras rurais ou camponesas, grande parte dos relatos revelam
que isso se deu no início da década de 80 no Brasil, sendo que, anterior
a esse período, sua invisibilidade era quase total. Uma das maiores con-
quistas dos vários segmentos de lutas das mulheres camponesas foi o
reconhecimento da profissão como trabalhadoras rurais, algo que só acon-
teceu com a pressão de vários movimentos de mulheres frente à Consti-
tuição Federal de 1988 (CONTE; MARTINS; DARON, 2009).
Em se tratando do surgimento de formas de organização de mulheres
camponesas no estado do Rio Grande do Sul, Paludo (2002) destaca que
os movimentos de mulheres nascem de três tendências diferentes, a
saber: (a) o Movimento das Margaridas, do início da década de 1980; (b)
Mulheres da Fetag, organizadas por dentro da base sindical dos sindi-
catos de trabalhadores rurais filiados a esta instituição e; (c) as mulheres
que compuseram a Organização das Mulheres da Roça (OMR) com apoio
de setores progressistas da teologia da libertação, apoiadas por setores
ligados à CUT e algumas lideranças da Emater/RS.
A situação em que as mulheres empobrecidas do campo se encon-
travam no início da década de 80, quando foi criada a OMR, revela o
seguinte contexto: de um lado, elas estavam sem direitos por não serem
reconhecidas como trabalhadoras e, de outro; sentindo-se culpadas de sua
situação, já que a maioria não conseguia entender os motivos da condição
precarizada. O fato de ser mulher da roça empobrecida tornava-se um
condicionamento, mas muitas delas, a partir da participação e inserção
nas primeiras organizações populares, começaram a perceber que a reali-
dade poderia ser diferente (CONTE; MARTINS; DARON, 2009).
De acordo com as autoras, em 1989, as mulheres ligadas à OMR deci-
diram consolidar uma organização autônoma, visto que até então estavam
vinculadas a sindicatos e igrejas em grande medida. Assinala-se ainda o
fato da dependência também econômica frente ao andamento das lutas
que vinham desencadeando. Surge, assim, o primeiro encontro estadual
do MMTR/RS, cujo tema do encontro foi “Mulher que luta organizada
gera nova sociedade”. Pode-se observar que essa palavra de ordem está
estampada em camisetas que algumas militantes usam ainda hoje como
simbologia de extrema importância. Na sede do movimento, essa mesma
frase encontra-se em um quadro na parede, assim como na capa de uma
das cartilhas produzidas pelo movimento. Neste encontro é reafirmada
a luta de classes articulada à luta de gênero, pois as mulheres estavam
convictas da necessidade de transformações na estrutura econômica e
também cultural.

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 283


Foto: Acervo do Arquivo do MMC.

Segundo pudemos acompanhar, e também fazendo parte da luta das


mulheres como militante da OMR, originou-se o Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais (MMTR/RS), sendo transformado em MMC/RS no
ano de 2004, por ocasião do primeiro congresso nacional do movimento
ocorrido em Brasília, de 05 a 08 de março de 2004, do qual pudemos
participar, inclusive desde seus preparativos. Com este congresso, o MMC
passa a ser um movimento nacional e na ocasião, em 2004, contava com
a presença de mulheres de quatorze estados da federação. Atualmente
o MMC está organizado em vinte e dois estados, com maior ou menor
intensidade segundo as possibilidades organizativas.
Desde o surgimento do movimento em questão até os dias atuais,
pode-se constatar que o mesmo passou por transformações significativas,
como, por exemplo, o fato de se constituir uma organização feminista
além de camponesa, sendo que, desde o início da organização, estava
explícita a luta pela libertação das mulheres. Desde o início da OMR
(1983-1989), esta organização entende e explicita que “as mulheres devem
participar e comandar, desenvolvendo seu papel político na sociedade”
(CONTE; MARTINS; DARON, 2009, p. 97).

284 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


Na sequência, vamos tratar de forma mais detalhada o caminho
segundo é possível mostrar de forma escrita, que o MMC, partindo da
OMR e do MMTR, trilhou enquanto trajetória e lutas, se consolidando
como movimento classista e feminista.

O Movimento de Mulheres Camponesas e sua trajetória de lutas no RS

Ao iniciarmos esta sessão, retomaremos parte das ideias do início do


texto, sobre a diferenciação entre agricultura camponesa versus agrone-
gócio e as breves pinceladas sobre a história das mulheres no Brasil, ou
melhor, como elas aparecem na história. Assim, salientamos que esta reto-
mada se dá em vista de compreendermos melhor porque partimos destes
marcos e não de outros, para falar do surgimento e da trajetória de lutas
do MMC.
A diferenciação entre dois campos antagônicos (campesinato e
agronegócio) se dá pelo fato de que este é um dos elementos constitutivos
do movimento, ou seja, quando as mulheres da roça, em suas primeiras
formas de organização popular, buscaram aglutinar suas necessidades e
transformá-las em lutas, identificaram-se primeiramente como empobre-
cidas do campo. Logo, parte-se de um recorte de classes, pois, se existem
pobres, é porque existem ricos, que tomaram para si o que deveria estar
distribuído entre a grande parcela da população, inclusive camponesa.
Assim, agronegócio/latifúndio é opositor aos interesses dos(as) campo-
neses(as) e o avanço de um significa a morte ou retrocesso do outro.
Mesmo no início da década de 1980, as mulheres empobrecidas do
campo reunidas na OMR conseguiram entender que o Estado em todas
as suas configurações privilegiava “os grandes”, pois, mulheres (especial-
mente elas) e homens camponeses não tinham garantias de direitos as-
segurados e sequer eram reconhecidos como categoria profissional. O
reconhecimento da profissão de agricultores(as)/trabalhadores(as) rurais
se deu com a aprovação da Constituição Federal de 1988, devido à grande
pressão popular.
Ao olharmos para a história das mulheres, mesmo de forma brevís-
sima, desvelamos as camponesas sobrecarregadas de trabalho, com relação
aos homens, responsáveis pela produção de subsistência, geradoras de
filhos(as) para mão de obra e pouco visíveis em termos de protagonismo,
seja nas lutas populares em espaço de liderança, seja em reconhecimento
pelos seus trabalhos. A soma da exploração sofrida enquanto classe e a
opressão de gênero foi o motivo para a formação das organizações que
levaram ao que é atualmente o MMC.
Com relação às organizações de mulheres camponesas no RS, num
primeiro momento, percebe-se desejo/necessidade de espaço para pode-

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 285


rem, coletivamente, buscar saídas diante da situação que lhes afligia
enquanto mulheres. Neste aspecto, aparece o recorte de gênero na luta
classista, pois elas, enquanto empobrecidas, juntam-se como setor especí-
fico para forjar o espaço que até então não haviam encontrado nas institui-
ções que faziam parte (igrejas e alguns sindicatos de trabalhadores rurais),
mesmo advindo daí algum apoio.
Diante do exposto, ressaltamos o contexto latino-americano em que
eclodem os movimentos populares, devido ao fato de que
as oligarquias liberais do final do século XIX e início do século XX teriam
feito de conta que constituíam Estados, mas apenas organizaram algu-
mas áreas da sociedade para promover um desenvolvimento subordi-
nado e inconsciente; fizeram de conta que formavam cultura nacional e
mal constituíram cultura de elite, deixando de fora enormes populações
indígenas e camponesas que evidenciam sua exclusão em mil revoltas
(CANCLÍNI, 1998, p. 25).
A colocação do autor se refere a um contexto genérico, mas o caso do
MMC não foge a esta realidade, pois seu surgimento e também de outros
movimentos camponeses que nasceram entre o final da década de 1970 e
o início dos anos 80 é devido a um momento em que eclode a necessidade
de mudança/transformação devido à profunda e dolorosa exclusão social,
conforme também explicita Martins: “nos movimentos sociais dos últi-
mos anos, a condenação da propriedade, que excede as necessidades de
quem a tem, deriva da privação do trabalho que ela impõe aos que dela
precisam trabalhar. Privação que aparece como privação do direito à
vida” (1989, p. 22). As mulheres camponesas sentiam também esta priva-
ção com relação aos direitos, ao preço justo dos produtos produzidos por
elas, sendo que nos primeiros passos da OMR, ao se darem conta desta
realidade, também iniciaram uma série de outros questionamentos à
sociedade, sobre o “papel” das mulheres da roça, a falta de acesso à saúde
de qualidade e educação pública para além das escolas de anos iniciais,
que era o que havia em algumas comunidades rurais (CONTE, 2011).
De acordo com Daron (2003), que desenvolveu pesquisa no então
MMTR/RS, foi na construção deste movimento que lutou-se pela visibili-
dade social das mulheres. Por isso desencadearam amplos processos de
luta pelo direito ao reconhecimento da profissão de trabalhadoras rurais
e, junto a isto, o direito de aposentadoria aos 55 anos para mulheres e
60 para homens, salário maternidade e acesso à documentação pessoal e
profissional – o bloco de notas da família rural, conhecido como “Modelo
15”, o qual comprova a venda de produtos da roça e por meio dele é feito
desconto de 2,3% do valor destes, que é a contribuição para a previdência
rural dos segurados(as) especiais. Segundo a pesquisadora:

286 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


Nesse processo de lutas é que se firmou a construção do movimento
autônomo de mulheres. Refletindo e cantando músicas como “pra mudar
a sociedade do jeito que a gente quer, participando sem medo de ser
mulher”, “entrei na luta, da luta eu não fujo, pelos direitos, da luta eu
não fujo, pela igualdade, da luta eu não fujo, pra construir uma nova
sociedade”, participando das lutas e dos momentos de formação, as
mulheres trabalhadoras alimentavam-se de uma forte mística e convic-
ção, que lhes dava forças para enfrentar a dureza da sua realidade e das
lutas que vinham travando como organização. O movimento foi sendo
espaço aglutinador de milhares de vozes femininas ocultadas e silen-
ciadas por uma sociedade machista e burguesa (DARON, 2003, p. 66).
Ao estudar e pesquisar o MMC recentemente, podemos constatar que
na constituição do movimento, a busca pela conquista de direitos ser-
viu também de justificativa para as mulheres saírem de casa, para além
de suas comunidades no início da década de 80. De acordo com a fala de
uma pesquisada, naquele momento uma mulher que saísse de casa preci-
sava se justificar e ser respaldada, tanto pela família quanto pela comuni-
dade, mas foi a partir disso que elas descobriram a amplitude de um
universo muito além do espaço privado e, posteriormente, que as lutas
deveriam ser para além dos direitos.
Nesse sentido, as mulheres camponesas deixaram claro na pesquisa
que uma coisa é a conquista e garantia dos direitos na lei, o que não
é pouco, e outra é a implementação destes na prática. Por isso, quando
falavam da importância do movimento, ressaltaram também a luta por
direitos, a conquista e a necessidade de se manterem organizadas para a
efetivação dos direitos conquistados.
Com relação a esses aspectos, ficou evidenciado que a contribuição do
feminismo deu-se mais indireta que diretamente no início da constituição
da organização, mas parece ter sido fundamental para fomentar ousadias,
dar passos e aglutinar forças, como da OMR com o MMTR/RS e, poste-
riormente, com MMC Brasil em 2004.
Paludo (2002), ao fazer uma síntese da trajetória do movimento até o
período de 2002, constata três momentos principais, sendo: (a) sua cons-
tituição inserida no bojo das lutas populares de resistência no Brasil; (b)
um segundo momento com destaque na busca de direitos, valorização e
participação, opção pelo movimento autônomo; e (c) um terceiro, em que
ficou evidenciado gênero, classe e projeto popular, síntese da identidade.
Atualmente, e após pesquisa somada à nossa inserção militante no MMC,
poderíamos acrescentar seguramente um quarto momento do movimen-
to, entendido como a ampliação do movimento em parâmetro nacional e
as lutas centrais definidas contrapondo a violência do capital e do patriar-
cado.

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 287


Assim, em nosso olhar, a partir da contribuição de Paludo e Daron,
por serem também pesquisadoras e contribuidoras de longa data do
movimento, apresentamos a seguinte síntese: 1ª fase do movimento: cons-
tituição da OMR até 1989. As lutas centrais se deram no sentido de
desvelamento da situação de abandono e invisibilidade das mulheres
camponesas, desde o âmbito de suas famílias e comunidades; nesta fase,
foram aprendendo que poderiam dizer suas palavras e sentimentos e,
com isto, na constituição do coletivo, conseguiram fazer reflexões e as
primeiras sistematizações acerca de si e de suas vidas.
Desse modo, as maiores conquistas políticas foram: desafiar o poder
patriarcal familiar para saírem de casa e se deslocar até outros municípios
ou regiões; começar a dizer o que pensavam e, neste sentido, saber que
podem, fazendo também com que outras pessoas entendessem que mu-
lher pensa politicamente e pode se expressar, inclusive publicamente; e
aprenderam a transformar reclamações individuais em pautas políticas
coletivas. Foi a saída da invisibilidade, no bojo da efervescência popular,
conforme já destacava Daron.
Segunda fase: constituição do MMTR/RS, de 1989 a meados da década
de 1990. Afirmação de um patamar significativo, passando de organização
para movimento num momento de muitos questionamentos, inclusive
por parte de movimentos mistos do campo da esquerda. As mulheres
responderam com a palavra de ordem “Nós não queremos favores, nossa
história a gente faz!”. Foi o auge da luta por direitos e pela efetivação
destes na prática, com muitos embates com setores públicos (prefeituras,
agências do INSS, STRs, etc.).
Neste contexto, as mulheres perceberam que não conseguiam acessar
os direitos por falta de documentos pessoais e profissionais, e então,
juntando-se com mulheres de outros movimentos na campanha nacional
“Nenhuma trabalhadora rural sem documentos”, deram início às primei-
ras articulações em nível de país, o que possibilitou leituras amplas sobre
a realidade das camponesas. As mobilizações foram intensas nas regiões,
fortalecendo o MMTR/RS, e desse modo foi acontecendo a politização das
mulheres que se encorajavam e prosseguiam marchas, acampamentos,
forçando audiências para serem ouvidas pelos poderes instituídos, afinal
por aí se dava a efetivação dos direitos. Nesta fase, o MMTR/RS começou
a fazer parte de articulações de mulheres na América Latina, como a
CLOC (Cordinadora Lationamericana de Organizaciones Campesinas).
As bandeiras gênero e classe já estavam bem definidas, conforme
pontua Paludo (2002), e no delinear do que chamamos de 3ª fase do
movimento, estava posto, fortemente, o tema da saúde/acesso ao Siste-
ma Único de Saúde (SUS). A partir da luta por saúde, surgiu o questiona-
mento sobre o “modelo de agricultura” e as lutas começaram a centrar

288 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


neste foco, ou seja, na denúncia do modelo baseado na Revolução Verde, e
em contraposição pautavam a agroecologia.
Este período compreendeu mais ou menos entre 1993 até o final da
década de 1990, sendo fortes as críticas e embates às políticas neoliberais,
sentidas pelas camponesas diretamente com o fechamento de escolas
rurais e nucleação na educação, além de todo um sistema também infor-
matizado que se colocava a serviço do capitalismo. Surgiam impedimentos
burocráticos e as leis de fiscalização e legislação sanitária impediam a
viabilidade da geração de renda de muitos produtos de base agrícola.
Naquilo que chamamos de 4ª fase, por onde passam as lutas centrais
do MMC, compreende-se o período mais ou menos do ano de 2000 em
diante, em que o marco foi a grande derrota das forças camponesas na
batalha contra os transgênicos num governo (Lula) que se dizia popular.
Aí percebeu-se a força do capital transnacionalizado. Nesta fase, as
mulheres do MMC centraram forças em lutas contra o modelo de agri-
cultura vigente, pelo fato dele privilegiar o agronegócio, os monocultivos
à base de agrotóxicos, e continuar a expulsão de famílias do campo.
Cria-se a Via Campesina em 2001 por ocasião do primeiro Fórum Social
Mundial ocorrido em Porto Alegre, no sentido de somar forças e fortalecer
alianças entre os movimentos populares camponeses.
Esta fase estende-se aos dias atuais, e tem-se a criação do MMC Brasil
como marco das lutas que passam a ser nacionalizadas na constituição
e da maior explicitação da identidade feminista e camponesa do movi-
mento. As mulheres do MMC, em aliança política com as mulheres da
Via Campesina, mais a junção das mulheres do Movimento dos Trabalha-
dores Desempregados (MTD), fortaleceram pautas e lutas conjuntas, e o
feminismo era um elemento aglutinador das demandas da luta classista
que se faziam, também com forte cunho feminista neste período.
Desse modo, muitas mulheres camponesas dos diversos movimentos
fortaleceram-se como lideranças e desencadearam enfrentamentos radi-
cais contra a imposição do capital no campo. Exemplos disso foi a ação
das mulheres camponesas contra a empresa Aracruz Celulose e Papel,
que culminou na destruição de mudas e do laboratório de sementes trans-
gênicas clonadas, que seriam utilizadas para o plantio de eucalipto para
pasta de celulose a ser exportada.
Desta tão comentada ação com enorme repercussão nacional e interna-
cional, ocorrida em 2006, segue-se fazendo lutas conjuntas das mulheres
contra este mesmo modelo de agricultura e sociedade, com embates
profundos em 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011. Nestes anos aparece o foco
da luta contra violência com muita força. As mulheres camponesas
denunciam nas suas várias ações conjuntas da Via Campesina – da qual o
MMC é parte – a violência do sistema patriarcal (do aumento da violência
nas suas variadas formas cometida contra as mulheres) e da violência do

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 289


sistema capitalista, que de um lado impede a produção, o acesso à terra
aos camponeses(as) e, de outro, possibilita ao agronegócio continuar
desmatando, poluindo e destruindo o ambiente e concentrando terras.
Em 2011 a denúncia das lutas conjuntas das mulheres foi contra o
uso abusivo de agrotóxicos, que fez com que o Brasil fosse colocado em
primeiro lugar no ranking como o país que mais utilizou agrotóxico no
mundo entre 2009 e 2010, ultrapassando a marca de um bilhão de litros de
veneno. Um elemento importante sobre as lutas das mulheres é que além
de ações conjuntas e pautas específicas de cada movimento, destacamos
o fato de que as lutas e enfrentamentos com os devidos focos não se dão
mais em um estado, mas em todos em que há organizações de mulheres
ligadas à Via, com maior ou menos intensidade, segundo a força de
cada movimento em cada local. Isto tem possibilitado que a pauta dos
movimentos, e acima de tudo das mulheres, seja ouvida e percebida pela
sociedade em geral.
Neste sentido, por mais que os movimentos populares do campo não
têm conseguido muitos avanços no campo dos direitos nos últimos perío-
dos, avalia-se que se não continuassem tais lutas a situação do povo da
roça estaria muito pior, pois ao menos tem-se conseguido resistir brava-
mente frente às forças do capital e suas estratégias, não poucas vezes
com apoio total de governos, como se já não bastasse o investimento de
empresas transnacionais.

Algumas considerações

Uma das principais metas do MMC desde seu surgimento é que as


lutas centrais e os espaços de atuação enquanto movimento levem as
mulheres envolvidas à libertação, ou seja, que as mulheres possam se
fazer sujeito político na atuação, rompendo com o estereótipo de mulher
da roça atrasada e pensada por outros. Diante disso, reflete-se acerca da
cultura machista que também as perpassa, pelo fato de estarem inseridas
na sociedade patriarcal. Manter-se como organização de mulheres é uma
maneira privilegiada de enfrentar o patriarcado.
Análises sobre como se apresenta a cultura e a sociedade são perma-
nentes no MMC, em vista de que as mulheres, a partir de suas vivências e
experiências, possam apresentar avanços de consciência crítica enquanto
organização e, por isso, afirmam que as mudanças culturais precisam
acontecer junto às de classe, como também afirma Mészáros (2002).
Em vista de maior entendimento e esclarecimento rumo às transfor-
mações almejadas pelo MMC, tem-se a prática de elaborar cartilhas, com
escritas razoavelmente simples, para subsidiar encontros e debates entre
camponesas e demais pessoas da sociedade. Mediante isso, acredita-se

290 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


que esse é um dos modos de potencializar a educação popular, possibi-
litando aprendizados coletivos desde os grupos de mulheres das
comunidades, além de proporcionar crescimento individual mediante
momentos de estudo, pois não se faz luta qualificada sem estudar.
Além do estudo, outro elemento importante para manter o movi-
mento e as lutas que se tem desencadeado por meio dele é a mística,
devendo ser entendida muito além de um momento pontual de ritual
celebrativo do movimento. Ela anima para seguir na luta e faz parte de
cada militante nas suas ações cotidianas. De modo geral, a mística possui
um papel importante de negar aquilo que oprime os seres humanos e, por
outro lado, anima e aponta para o novo em construção.
No movimento, desde seu surgimento, prima-se pelo compartilha-
mento de tarefas desde a casa das militantes, pois considera-se signifi-
cativa esta parte em vista da construção de relações igualitárias de gênero,
por isso, o cuidado de crianças ou idosos deve ser compartilhado com os
homens. O movimento trabalha na perspectiva de que as mulheres devam
ter tempo para si, para se concentrar em momentos de estudos e debates.
Isso requer que seu filho(a) esteja bem cuidado por outras pessoas e não
apenas por elas, por não serem as únicas responsáveis pelos filhos e filhas.
A dinâmica de gestão do próprio movimento torna-se um grande
exercício em que se aprende, além de administrar a entidade e comandá-
-la diante das lutas, e, assim, força-se o compartilhamento de tarefas em
casa e na unidade de produção, por causa do tempo dedicado à militância
política. Essa atuação em campos distintos, em que se misturam o político,
o individual, o coletivo, o público, o privado e a dimensão do amor à luta
(causa) e ao afeto pessoal familiar, faz com que se pense e repense na
singularidade/subjetividade e objetividade das pessoas e das situações o
tempo todo.
Ao olhar para ao movimento, fica evidente que as camponesas se
fazem sujeitos históricos, e, acima de tudo, sujeitos políticos pelo fato de
suas teimosias e rebeldias resistirem frente à hegemonia da sociedade
pelas lutas que tem desencadeado e mantido ao longo dos tempos. No
caso das mulheres camponesas do MMC, a luta para permanecer no pouco
de terra que possuem é expresso naquilo que chamam de luta por um
projeto de agricultura camponesa, evidenciado na cartilha da Soberania
Alimentar, da Agricultura Camponesa e no Documento Político da Cam-
panha de Produção de Alimentos Saudáveis, ilustrado com a frase “luta
por outro modelo de sociedade”, o que consta, também, na própria mis-
são do movimento.
Segundo indicou nossa pesquisa já mencionada, as mulheres campo-
nesas do MMC constroem processos de libertação a partir de processos
coletivos, mas também em embates individuais/familiares no âmbito das
relações de gênero que estabelecem. Para tanto, afirmam, em primeiro

Camponesas em luta: possibilidades de serem sujeitos políticos 291


plano, a conscientização, qual se dá na participação da vida do movi-
mento. Segundo pudemos entender, as mulheres se libertam quando
ousam sair do espaço privado (casa/filhos) e aprendem sobre a amplitude
do mundo.
Junto a isso, ao se referir ao processo de libertação, explicitam a
importância da experiência, seja de outras companheiras que estão “mais
à frente”, ou com relação ao acúmulo de lutas anteriores. Relatam que ter
autonomia (documentos pessoais, profissionais, acesso à terra e aos direi-
tos) é fundamental para conseguirem a libertação, que, segundo enten-
dem, é ser livre sem precisar pedir favor.
Apesar dos avanços legais ocorridos com a Constituição Federal
de 1988, com relação às mulheres e aos homens do campo, no Brasil há
ainda muito que avançar em termos de reconhecimento e acesso a polí-
ticas públicas. Em 2001, Alie van der Schaaf, ao pesquisar o MMTR/RS,
pontuou:
A organização do movimento garantiu a representação política das traba-
lhadoras rurais e sua atuação teve uma contribuição essencial na visibili-
dade do trabalho das pequenas produtoras, apontando para a inserção
desigual da categoria na esfera pública e privada a apresentando alterna-
tivas. Esse espaço não possui somente grande valor simbólico, mas tam-
bém levou a resultados concretos (2001, p. 263).
No momento atual, não se pode negar que há certa dificuldade em se
manter no movimento, pois não é algo tão fácil se identificar como quem
está na luta contra o capital e o patriarcado, porém, há também realização
pessoal em fazer parte da organização.
O MMC se diz feminista em constituição e, nesse sentido, não dá
para omitir que o modo de se construir feminista recebe contribuição do
coletivo de mulheres da Via Campesina, ao passo que também contribui
com este, por causa das várias articulações conjuntas. Juntamente com as
mulheres da Via Campesina ou com o todo desses movimentos, o MMC
possui maior força e segurança de pautar e se colocar contra o agrone-
gócio e os projetos de morte. Assim, as mulheres camponesas do MMC
questionam e enfrentam, além do modelo vigente de produção, a própria
democracia, no sentido de fazê-la avançar, sendo um aporte fundamental
de estudos, segundo ideias de István Mészáros.
Nas comunidades, as mulheres do MMC potencializam conhecimentos
sobre as plantas medicinais e realizam oficinas, com trocas de mudas e
sementes além de outros objetos. Desse modo, constituem resistências e
enfrentamentos silenciosos contra o modelo agrícola imposto. Assim,
refletem sobre tais fatos e os põem no bojo do cuidado com o ambiente,
bandeira também assumida pela Via Campesina. A isto se referem como
projeto de vida, que vem contrapor o agronegócio, o projeto de morte.

292 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


Junto ao cuidado do ambiente, e já não falam em meio ambiente por
entendê-lo não em separado das pessoas e suas práticas, as mulheres do
MMC politizam o cuidado no sentido de dizer que ele é importante diante
das novas relações que experimentam e constroem rumo à mudança para
a sociedade que acreditam. Dessa forma, no MMC há possibilidades de
construção do poder a partir do coletivo em luta, espaço e tempo, em que
ao experimentar o novo com o engajamento, se cria consciência crítica e
passa-se a ser uma nova mulher.
O fazer-se liderança no movimento tem a ver com empoderamento,
pois as mulheres se empoderam quando conseguem ter informações,
argumentos e atitudes em que demonstram ser possível fazer diferente,
contestando a hegemonia do capital e do patriarcado. O empoderamento
vai se consolidando na medida em que as mulheres vão se libertando das
situações de opressão, ou ao menos entendendo a situação e o porquê de
a sociedade funcionar nesta lógica.
Assim, o processo de libertação das mulheres do MMC vai se dando
de forma dialética entre o privado e o público, atravessado por conflitos,
em que se avança no processo de consciência crítica, o qual empurra
para ações em vista do novo, daquilo que ainda se tem para construir, no
enfrentamento das desigualdades de classe, gênero e raça, sem esquecer
as relações com a natureza.

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294 História do Campesinato na Fronteira Sul • Isaura Isabel Conte


16
Organização cooperativa
na agricultura familiar

Walter Frantz

Pretendo falar sobre a relação entre organização cooperativa e agricul-


tura familiar, especialmente a de origem colonial. Considero válido voltar
no tempo e falar sobre essa relação a partir da vivência e da experiência.
Segundo Jörn Rüsen (2007, p. 60), “o saber histórico torna-se o meio de
uma comunicação”, através do qual a percepção de si e do outro se põe
em movimento, tornando o passado vivo. Descontextualizados, os seres
humanos não podem enxergar e nem entender nem a si próprios. “Lem-
brar-se daquilo que era e de como se tornou o que é, faz plausível, para o
sujeito, tornar-se outro” (RÜSEN, 2007, p. 61). Certamente, venho influen-
ciado por valores e preferências, por uma visão de mundo e por moti-
vações, que orientam meu esforço de pesquisa e reflexão. Isto é, não me
desfiz da esperança de poder construir caminhos alternativos à economia
concorrencial e individualizada pela organização cooperativa. A realida-
de social e ambiental impõe o desafio da alternativa. A abordagem tam-
bém incorpora dados de pesquisa, realizada junto a associados de uma
cooperativa de comercialização de produtos agrícolas, nascida do proces-
so de modernização do cultivo do trigo, na década de 1950.1
Afirmam Menga Lüdke e Marli André (1986, p. 3) que, sendo a pes-
quisa uma atividade humana e social, reflete “a carga de valores, preferên-
cias, interesses e princípios que orientam o pesquisador”. O texto precisa
ser lido, levando em consideração ser o movimento cooperativo uma força

1
Pesquisa realizada em 2000/2001. As entrevistas transcritas estão nos arquivos pessoais
do autor.

Organização cooperativa na agricultura familiar 295


social com potencial ainda não de todo explorado, diante dos enormes
desafios sociais e econômicos de nossa época.
Nasci em um grupo social que sempre depositou no associativismo
e na organização cooperativa uma esperança de poder melhorar, através
de suas múltiplas práticas, a sua condição de vida. De certo modo, a
fragilidade das condições materiais de subsistência condicionava o pro-
cesso de socialização, os valores, o comportamento, a visão de mundo de
seus integrantes. O espaço da cooperação, certamente, alimentou muitos
sonhos e proporcionou muitas decepções a milhares de famílias. Porém,
sem os adequados conhecimentos, os agricultores não chegaram a cons-
tituir maior poder de ação em suas organizações cooperativas. De modo
geral, foram submetidos a outros poderes.
O grande dilema dos colonos foi a falta de informação e conheci-
mento, fazendo-os dependentes em suas relações sociais e econômicas.
Diante disso, foram levados a ter que acreditar, simplesmente, naquilo
que lhes era dito.2 A relação entre conhecimento e poder foi a grande
lição que veio das práticas do movimento cooperativo. Entretanto, não
se pode negar a importância dessas experiências para o campo de lutas
e movimentos sociais que, ao longo das últimas décadas, marcaram a vi-
da na agricultura familiar. Certamente as raízes de conquistas realizadas
podem ser encontradas nas lutas históricas por organização e poder de
ação por parte dos agricultores. Sob esse aspecto, as vivências e expe-
riências tiveram um sentido pedagógico.

1 Agricultura familiar

A caracterização da agricultura familiar, ainda que sucintamente, é


essencial para a compreensão de sua relação com o cooperativismo. Res-
guardada a discussão mais específica sobre a agricultura camponesa
(SABOURIN, 2009), pode-se dizer que a agricultura familiar, na região
Noroeste do Rio Grande do Sul, nasceu do processo de ocupação das ter-
ras iniciada ao final século XIX com a chegada dos primeiros colonos. Na
região, foram instalados núcleos populacionais de diferentes etnias de
origem europeia (ZARTH, 2009). Porém, a maioria dos colonizadores já
era oriunda das antigas colonizações do estado, chamadas “Colônias Ve-
lhas”.3 A maioria das famílias dos agricultores foi assentada em lotes de
25 hectares, desenvolvendo-se uma agricultura de ocupação familiar. Isto
é, nas unidades econômicas a força de trabalho predominante foi familiar
2
Marie von Ebner-Eschenbach, contista austríaca, 1830-1916, cunhou a frase: Wer nichts
Weiss, muss alles glauben. Quer dizer: Quem nada sabe, precisa acreditar tudo.
3
Designação dada às primeiras colonizações de imigrantes de origem europeia, no
estado do Rio Grande do Sul.

296 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


(ROCHE, 1969). Entretanto, no decorrer do tempo, a estrutura fundiária
original foi bastante alterada por diversos fatores, entre os quais: a
repartição histórica dos lotes entre herdeiros, a concentração das áreas de
terras pela mecanização, a expansão da cultura da soja, a racionalidade
econômica capitalista, o êxodo rural.
Hoje, a agricultura familiar, mesmo com boa produtividade, passa a ser
muito desafiada em termos de sobrevivência ou mesmo inviável para
muitas atividades de produção, no contexto das relações de mercado e
das políticas que delas decorrem. Pelo avanço da ciência e tecnologia,
decorre um poder de mercado que impõe grandes transformações aos
modos tradicionais de fazer agricultura familiar (FRANTZ, 2009, p. 171).
Mas, diante desse contexto de mudanças e transformações, como se
pode caracterizar e conceituar a agricultura familiar atualmente? Com
certeza, não é algo que se possa fazer sem polêmica, diante das alterações
históricas do sentido da produção, provocadas pela inserção à economia
de mercado capitalista. Afirmam Carlos Guanziroli e outros (2001, p. 50)
que é uma questão complexa em razão da grande diversidade, desde o
meio físico até os “diferentes tipos de agricultores, que têm interesses
particulares, estratégias próprias de sobrevivência e de produção e que,
portanto, respondem de maneira diferenciada a desafios e restrições
semelhantes”. Portanto, existem diferentes entendimentos, condicionados
por circunstâncias de tempo e lugar, tamanho de área ou contratos de tra-
balho temporário.4
Certamente não existe um conceito fechado sobre agricultura familiar,
embora ainda possam ser reconhecidas algumas características comuns,
tais como: propriedade dos meios de produção, terra como meio de subsis-
tência e não apenas como capital, predominância do trabalho de membros
da família, atividades de produção, simultaneamente, voltadas à subsis-
tência e ao mercado, maior autonomia à organização do trabalho.
Quanto ao sentido do trabalho na agricultura familiar dos colonos,
é preciso dizer que se trata de algo com duplo propósito: subsistência e
mercado. A realização de um ou outro, dependeu sempre da disponibi-
lidade de meios como a fertilidade da terra, o acesso ao mercado compra-
dor e de mão de obra disponível. Além disso, com relação ao trabalho,
também é necessário observar que era utilizado trabalho de terceiros na
implantação das unidades econômicas familiares, principalmente para a
derrubada da floresta ou para atender os picos de plantio e colheita. Isto
é, essas atividades eram realizadas com trabalhadores de origem cabo-
cla, incorporados ao mundo do trabalho rural em condições muitas vezes
precárias e de exploração do máximo da mais-valia (ZARTH, 2009, p.
4
Fonte: <http://www.cepea.esalq.usp.br/especialagro/EspecialAgroCepea_9.doc>. Acesso
em: 23 jun. 2011.

Organização cooperativa na agricultura familiar 297


54-56). Também com essa mesma finalidade era utilizada mão de obra
não familiar, oriunda de famílias de colonos pobres e necessitados ou
de famílias com excesso de mão de obra, diante da envergadura de suas
próprias unidades econômicas familiares. Esse trabalho, muitas vezes,
era pago com produtos. Isto é, com uma pequena fatia de seu trabalho.
Além disso, em fases subsequentes da agricultura regional, em algumas
economias, era utilizada mão de obra de agregados ou parceiros, isto é,
de famílias de agricultores pobres às quais era concedida a exploração
de terras, normalmente exauridas ou excedentes ou de difícil cultivo. O
pagamento da cessão das terras era feito pela prestação de serviços aos
proprietários das áreas ou pela repartição dos produtos obtidos nessas
áreas.5
No caso da agricultura familiar camponesa, em alguns aspectos distin-
ta da agricultura familiar dos colonos, o conceito se refere a uma categoria
social e econômica que incorpora compreensões e convicções políticas,
como no caso do Movimento dos Agricultores Sem Terra (MST). O uso
do termo camponês revela uma visão política tensionada quanto ao uso e
posse da terra (SABOURIN, 2009). Pela politização da agricultura familiar
procura-se reconhecimento, afirmação de poder e espaço nas políticas pú-
blicas. Aproximam-se e se identificam colonos e camponeses com o obje-
tivo da luta por conquistas sociais e econômicas.6
A existência de agricultura camponesa no Brasil nem sempre foi reco-
nhecida, tendo sido objeto de debates entre diferentes abordagens teóricas.
Eric Sabourin, em seus estudos sobre o mundo rural brasileiro, confirma a
existência de uma agricultura camponesa, embora “parte da intelligentsia
brasileira”, até os anos 1990, tenha negado sua existência (2009, p. 39).
Escreve Sabourin (2009, p. 22): “No Brasil, a agricultura camponesa se
implantou nos interstícios dos espaços ocupados pela grande agricultura
de plantação ou pela pecuária extensiva”. Segundo o autor (2009, p. 33), a
agricultura camponesa tem diferentes origens sociais e técnicas de produ-
ção. Ao se referir ao Nordeste, cita a agricultura indígena, os trabalhadores
da agricultura colonial e os trabalhadores ou pequenos colonos livres.
A agricultura familiar foi, historicamente, mais um lugar para as neces-
sidades e o interesse das pessoas que para os interesses do capital, ainda
que estivesse incorporada à lógica do mercado capitalista. [...] a história
da agricultura familiar, no Brasil, é uma história de pessoas, de famílias,
de pequenos agricultores, de uma população que circulou, através das
5
A partir de 1970, passei a prestar serviços em escritório de sindicato de trabalhadores
rurais. Muitos agricultores familiares, sindicalizados ou não, solicitavam a confecção de
contratos entre as partes, definindo seus direitos e deveres.
6
Essa aproximação é possível observar nas Romarias da Terra, especialmente, a 35ª
Romaria da Terra a ser realizada em Santo Cristo dia 21 de fevereiro de 2012 com o
tema “Agricultura familiar camponesa: Vida com Saúde”.

298 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


gerações, por diferentes tempos e lugares, na esperança de construir
suas condições de vida, tanto na dimensão econômica como na dimensão
cultural e social. Uma boa parte dessa história se confunde com a luta
pela inserção no contexto maior, fornecendo mão de obra e alimentos
baratos (FRANTZ, 2009, p. 170).
Em 24 de julho de 2006, com a Lei federal 11.322, foram reconhecidos
e definidos os conceitos da agricultura familiar e do agricultor familiar
no Brasil. Em seu artigo 3º, a lei considera agricultor familiar aquele
que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos
seguintes requisitos: I – não detenha, a qualquer título, área maior do que
4 (quatro) módulos fiscais; II – utilize predominantemente mão de obra
da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou
empreendimento; III – tenha renda familiar predominantemente origi-
nada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento
ou empreendimento; IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento
com sua família. A lei foi uma conquista dos movimentos sociais, brota-
dos da luta pelo reconhecimento da agricultura familiar e camponesa.
O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), em suas manifesta-
ções sobre o Censo Agropecuário publicado em 2009, revela uma antiga
discussão sobre o emprego de terminologias e a identidade de categorias
culturais, sociais e econômicas que compõem a agricultura familiar. A
manifestação revela diferentes entendimentos e posicionamentos políticos
no espaço da agricultura familiar. Reflete diferenças históricas e políticas
que se traduzem, inclusive, em diferentes movimentos e organizações, no
espaço do que é denominado por agricultura familiar. Afirma o MPA: “O
censo traz uma novidade de extrema importância para nós, camponeses:
pela primeira vez, ele retratou a realidade da ‘agricultura familiar’ brasi-
leira, que nós chamamos de agricultura camponesa”.7
A agricultura familiar, também denominada agricultura camponesa
(SABOURIN, 2009), ocupa um lugar de importância na economia de pro-
dução alimentar no Brasil. Em 2009, foram publicados os resultados do
último Censo Agropecuário, realizado em 2006 e 2007. Os dados revelam
que a agricultura familiar produz 87% da mandioca, 70% do feijão, 46%
do milho, 34% do arroz, 58% do leite, 59% da carne suína e 50% das aves
produzidas no campo brasileiro. Entretanto, 84,4% dos estabelecimentos
rurais brasileiros, enquadrados na agricultura familiar, possuem apenas
24,3% do território ocupado no campo brasileiro.8 Segundo o ex-ministro
do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, verifica-se

7
Fonte: <http://mpabrasiles.wordpress.com/2010/02/18/censo-agropecuario-confirma-
agricultura-camponesa-e-a-principal-produtora-de-alimentos-do-pais/>. Acesso em: 24
jun. 2011.
8
Censo Agropecuário de 2009, IBGE.

Organização cooperativa na agricultura familiar 299


uma tendência de valorização da agricultura familiar também por parte
da FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimen-
tação.9
Certamente, na região do Noroeste do Rio Grande do Sul, também
existem diferentes origens daquilo que amplamente pode-se denominar
de agricultura familiar. Além disso, com certeza existe uma história de
preconceitos e conflitos entre essas diferentes origens, especialmente com
relação à posse da terra, ao trabalho e às técnicas de cultivo. A agricul-
tura familiar na região não tem uma origem comum e nem pacífica. Está
atrelada e submetida a um jogo histórico de interesses, porém, nem sem-
pre suficientemente conscientes as partes envolvidas.
Trata-se de uma problemática histórica que requer pesquisa, estudo
em ambientes escolares e debates públicos. Com relação a essa questão
histórica, Paulo Afonso Zarth (2009, p. 53) escreve:
A história da agricultura da região Noroeste do Rio Grande do Sul é
permeada por diversas questões de caráter cultural, político e ideológico
que interferem profundamente nas propostas de desenvolvimento regio-
nal. A tecnologia e o acesso à terra estão entre os principais pontos de
discussão ao longo da história da ocupação do território. Do ponto de
vista étnico-cultural, a população da região é multiétnica, dando origem
a discriminações com consequências graves para os grupos menos orga-
nizados e com menos poder.
Porém, não tenho como objetivo aprofundar a discussão sobre a histó-
ria dessa problemática da agricultura familiar e camponesa no Noroeste
Gaúcho.10 Embora nem a história da agricultura familiar dos colonos e
nem a da organização cooperativa, na região, possam ser suficientemente
compreendidas sem a consideração dessa problemática. Aqui importa
enumerar características da agricultura familiar dos colonos, especialmen-
te tendo em vista a abordagem do sentido do movimento cooperativo
que dela nasceu. Embora nascido da agricultura familiar, o movimento
se tornou mais uma “linha de transmissão” das forças do mercado em
relação à economia dos colonos. Instrumentalizado pela economia de
mercado e a serviço da modernização do campo, a criatura passou a abri-
gar o criador. Isto é, as cooperativas passaram a ter o “mando” sobre os
rumos da agricultura familiar (FRANTZ, 1980).
9
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17987
&boletim_id=949&componente_id=15342>. Acesso em: 30 jun. 2011.
10
Para maior conhecimento dessa problemática recomenda-se a leitura de ZARTH, P.
A. Colonos imigrantes e lavradores nacionais no Sul do Brasil: projetos de ocupação
da terra em conflito. In: MOTTA, Márcia Menendes, ZARTH, P. A. (Org.). Formas de
resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história Con-
cepções de justiça e resistência nas repúblicas do passado (1930-1960). São Paulo; Brasí-
lia: UNESP; NEAD, 2009. v. 2, p. 223-242.

300 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


Em termos amplos, como principais características da agricultura
familiar dos colonos podem ser citadas a propriedade familiar da terra e
o uso predominante do trabalho dos membros da família na produção.
Portanto, caracteriza-se pela unidade entre trabalho e propriedade dos
meios de trabalho. Essa identidade entre quem trabalha e a propriedade
dos meios de produção estão a serviço da vida das pessoas que nela traba-
lham, embora o projeto de colonização também tivesse uma motivação
econômica distinta dos interesses das pessoas assentadas, vindos dos
interesses da crescente industrialização do país.
Entretanto, apesar dessa motivação econômica externa e distinta,
inicialmente a produção estava mais relacionada com o que eram neces-
sidades, desejos e interesses das pessoas. Tratava-se de um processo que
integrava as pessoas, amarrando-as por valores associativos ou pela proxi-
midade de vizinhança e parentesco. Na relação social do processo produtivo
predominava a necessidade e a busca pela vida, mais do que a lógica que
decorre do mercado, orientada pela concorrência dos capitais investidos.
Esse sentido do processo de produção e distribuição orientava as ações e
as interações das pessoas. Isto é, ao processo produtivo eram agregados
valores e significados que provinham das necessidades e dos desejos da
vida e não apenas do capital investido.
Porém, importa observar que a ocupação das terras ocorreu no
contexto de um processo de constituição dos polos nacionais de desenvol-
vimento voltados à industrialização. “A agricultura familiar, desde logo,
passou a ter funções nesse processo de afirmação de uma economia capi-
talista. Afirmou-se como fornecedora de alimentos baratos” (FRANTZ,
2009, p. 140-142). A inserção à lógica capitalista produziu, passo a passo,
uma ruptura entre a unidade do trabalho e a propriedade dos instru-
mentos de trabalho. O trabalho passou a ter outro sentido ou significado
na vida das pessoas. “Nos espaços sociais e econômicos destruídos, flores-
ce a cultura do individualismo e, assim, abre-se o espaço para a afirmação
da lógica do capital. O capital ocupa, cada vez mais, os espaços da econo-
mia e da cultura” (FRANTZ, 2009, p. 177).
Com exceção da fase inicial de ocupação dos lotes, produzia-se para
vender e vendia-se para comprar. Porém, chegava a ser uma economia
de mercado? Não era uma economia de mercado de fato, embora fosse
constituída por razões de mercado. Não se tinha a força da organização
ou o poder nas relações econômicas de comércio que garantissem a
renda suficiente para depender das relações de mercado. Produzia-se
de tudo porque não se conseguia “gerar” ou obter os meios monetários
necessários à compra do que se necessitava ou desejava para viver.
Tinha-se mão de obra e terra, mas não se tinha como “produzir” os sufi-
cientes meios de troca, isto é, recursos monetários. Por isso, eram obri-
gados à autossuficiência pela insuficiência do “poder de compra”. Nem

Organização cooperativa na agricultura familiar 301


a organização de cooperativas resolvia essa questão: a falta de poder nas
relações de “comércio externo”. Do esforço por produzir os meios mone-
tários para a inserção ao mercado, especialmente consumidor, nasceram
cooperativas de venda e compra de produtos.
Na verdade, desde o começo o colono estava destinado a se transfor-
mar em força de trabalho de um projeto com motivação econômica maior.
Esse foi o projeto maior da colonização, isto é, da ocupação das terras.
Como tal era ele próprio uma mercadoria, comprada pelo projeto de
ocupação do território, pela expansão das fronteiras do capital. Sob esse
aspecto coube à economia familiar colonial a função de preparar as con-
dições para essa expansão.
Atualmente, as atividades da produção primária passam a ser controla-
das, sempre mais, pelo poder da ciência e da tecnologia a serviço do
capital, abrindo-lhe espaços de poder político. A agricultura não está
mais voltada para o agricultor, suas necessidades e interesses. Predo-
minam os interesses do capital e o agricultor a eles adere. O ritmo e
sentido de suas atividades são ditados, sempre mais, pela lógica do
capital e não do trabalho, especialmente, através do poder da ciência e
da tecnologia. O agricultor perdeu o controle sobre o que faz. O poder
de controle das atividades não está mais nas mãos dos agricultores, mas
do poder de quem controla a ciência e a tecnologia, relativas à produção
agropecuária. O trabalho do agricultor é apenas um componente da
fórmula, que visa como resultado a acumulação de capital. A produção
de soja é um exemplo disso. É um setor da produção agrícola, cada
vez mais, dominado pelo poder das grandes organizações. Hoje, espe-
cialmente, esse poder se expressa pela comercialização das sementes
transgênicas (FRANTZ, 2009, p. 179).
Com o atrelamento da produção agrícola ao sentido capitalista, isto
é, ao mercado de lógica capitalista, o “mundo” da agricultura familiar
sofreu transformações radicais. Produzir e viver passou a ter outras
referências e orientações, que não provêm mais das necessidades e desejos
da vida, mas da lógica de uma ordem que tem o lucro e a remuneração
do capital investido como referência de orientação. Esse novo contexto da
produção desfaz o sentido associativo do trabalho e o privatiza, isto é, os
indivíduos passam a ter como referência a valorização de seu trabalho nas
relações de mercado, em que o associativo e o cooperativo serão apenas
instrumentos de controle de custos e não mais valores de vida.
A agricultura familiar deixou de ser uma instituição de abrigo às pessoas
para se tornar um espaço de economia, atrelada à racionalidade do mer-
cado capitalista, isto é, a busca do lucro. No lugar de uma economia de
acolhimento à vida das pessoas, de uma economia do humano, afirma-se,
sempre mais, a lógica da economia capitalista (FRANTZ, 2009, p. 178).

302 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


Antes, a capacidade produtiva estava nas pessoas associadas, neces-
sitadas e interessadas. Agora, essa capacidade está nas máquinas, nas
tecnologias, orientada pelos interesses do capital, pelos interesses dos
investimentos financeiros. Os agricultores familiares foram desatrelados
do sentido original do trabalho e da cooperação para serem atrelados e
submetidos aos novos fatores coordenadores da produção, oriundos do
mundo do capital.
A incorporação da agricultura familiar à lógica do mercado capitalista
produziu rupturas em seus fundamentos tradicionais, vinculados às
necessidades das pessoas e na forma de conduzir as suas atividades,
como produção e troca de sementes entre as famílias, etc. (FRANTZ,
2009, p. 179).
A penetração do capitalismo na agricultura familiar ameaça destruir
as relações associativas e cooperativas, que permitem resistência à inser-
ção ao sentido capitalista da vida. A degradação dos valores culturais
associativos e a alienação poderão vir a ser mais destrutivas que a pobre-
za material de parte da população rural. Os ganhos materiais pela inserção
à economia de mercado capitalista podem não compensar em termos de
qualidade de vida, diante da perda dos valores do coletivo da agricul-
tura familiar pela afirmação de uma cultura do individualismo e do con-
sumismo. O processo produtivo está sendo sempre mais separado das
necessidades dos trabalhadores, e, pela introdução de novos fatores de
produção, submetido e instrumentalizado pelos interesses de uma nova
ordem, a ordem do capital. Aos indivíduos resta a resistência pela espe-
rança na reorganização cooperativa, no contexto do processo da desinte-
gração social, da derrocada dos “laços e redes humanas”, segundo Zygmunt
Bauman (2001). Haverá uma nova chance ao movimento cooperativo?
No entanto, a organização cooperativa como instrumento de defesa,
de esperança e de resistência faz parte da história da agricultura fami-
liar. Sob muitos aspectos, pode-se dizer que a agricultura familiar se
transformou em uma “atividade de esperança”, procurando se viabilizar
através de “nichos de mercado” ou através de políticas públicas de
reconhecimento e apoio. Apesar das decepções com muitas experiências
cooperativas e de suas limitações, não morre a esperança no coopera-
tivismo. A necessidade de se construir poder nas relações econômicas,
sob controle dos associados, alimenta a esperança na cooperação como
meio de valorização do trabalho e de seu poder de compra. Sempre de
novo, afloram novas organizações cooperativas. Hoje, o apelo à econo-
mia solidária e às iniciativas alternativas de organização cooperativa
materializa o desafio à reconstrução de relações associativas e coopera-
tivas, na economia de parcelas significativas da agricultura familiar.

Organização cooperativa na agricultura familiar 303


2 Práticas cooperativas na colônia

Historicamente, o movimento social pela organização cooperativa não


foi um bloco único. A história do movimento cooperativo revela a face
das dificuldades e lutas dos seres humanos por produzir, especialmente,
suas condições materiais de vida. O movimento tomou formas e sentidos
de organização, segundo as estruturas sociais, as concepções políticas, as
categorias econômicas, as nacionalidades e as crenças religiosas, as dife-
rentes concepções e interpretações do sentido da cooperação.
Na agricultura familiar sempre existiu uma estreita relação com o
movimento cooperativo: uma relação histórica, marcada por esperança e
decepções. A relação associativa dos agricultores entre si, através da coope-
ração, de alguma maneira, sempre apareceu como um elemento importante
de organização de suas economias, seja como necessidades ou interesses.
Os seus atores esperavam encontrar na organização cooperativa um ins-
trumento de poder de atuação nas relações econômicas de compra e
venda em defesa de seus interesses. Depositava-se confiança no movi-
mento cooperativo, apesar de práticas frustrantes de seu gerenciamento.
A década de 1950, marcadamente, foi uma época de formação de
muitas pequenas cooperativas mistas nas regiões de colonização do
Noroeste do Rio Grande do Sul. Essas cooperativas tinham abrangência
local, isto é, predominantemente, eram associações de agricultores oriun-
dos de comunidades próximas, nascidas dos núcleos de colonização.
Nasciam dos problemas que as famílias dos agricultores enfrentavam
em suas atividades econômicas de comercialização da produção ou de
abastecimento de seu consumo. Da história do movimento cooperativo
dos colonos, recordo-me de discussões ocorridas sobre o que acontecia
nos espaços das relações comerciais. A relação de venda da produção e
da compra de mercadorias, muitas vezes, constituía-se em um espaço de
relações pouco transparentes e, por isso, de desconfiança. Eram relações
dominadas pelos comerciantes, intermediários na cadeia das relações
econômicas mais amplas. Dominavam, em grande parte, as informações,
as relações de comunicação, o fluxo da circulação financeira, as políticas
de formação de preços. Seguidamente afloravam insatisfações com relação
à compra e venda de produtos, seja por causa dos preços baixos ou pela
demora do pagamento nas vendas, ou seja, pelos preços altos nas compras
para o consumo das famílias. Discutia-se muito sobre os problemas e as
dificuldades nas relações de mercado, representadas ou projetadas na
figura do comerciante. Os agricultores discutiam com entusiasmo e espe-
rança sobre a criação de cooperativas, possuídos de indignação pelo que
lhes acontecia nas relações comerciais que praticavam. Consideravam-se
explorados nas relações comerciais, expropriados pelos mecanismos da
compra e da venda, através dos preços tidos como injustos. Aqui convém

304 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


lembrar que havia pouca clareza com relação ao processo inflacionário
e seus efeitos sobre preços e poder de compra, dificultando a gestão de
suas economias. Além disso, muitos comerciantes se beneficiavam desse
processo, acumulando ganhos, tanto na compra de produtos como na
venda de bens de consumo.
No entanto, também discutia-se muito sobre as próprias cooperativas,
isto é, sobre sua gestão, seu controle, sobre a participação dos associados
na entrega da produção. Diante das dificuldades de mercado, dos proble-
mas de gestão, das crises financeiras das cooperativas, que não eram
coisas raras, associados desviavam a entrega da produção, estabelecendo
relações comerciais com intermediários, isto é, na concorrência.
Através do comerciante, ou melhor, do comércio, se concretizavam
relações de controle, de influência, de poder, às quais os agricultores
reagiam, procurando opor-se pela articulação de mecanismos próprios de
defesa e ação. Era uma discussão, às vezes, áspera e forte. Outras vezes, o
clima era carregado de tristeza e preocupação, especialmente diante dos
baixos preços e das dificuldades imediatamente daí decorrentes. Mas,
outras tantas, através dos mecanismos de associação, animavam-se os
agricultores com a sensação de poderem influir nas relações de mercado
nesse jogo de poder. A organização cooperativa lhes inspirava confiança
e lhes dava esperança. Organizavam as cooperativas como expressão de
confiança em si mesmos, como luta por dias melhores, como reação e
defesa, no duro jogo pela vida na agricultura familiar, contra a exploração
que diziam sofrer na venda e na compra daquilo que era o fruto de seu
trabalho e daquilo que necessitavam para viver.
A energia e o esforço por organizar cooperativas alimentavam-se
da esperança de poder traçar o futuro, de influir na construção de dias
melhores. Através dessas iniciativas de autodeterminação de regras e
procedimentos, de auto-organização, imaginavam construir e garantir
relações comerciais mais justas e confiáveis.11 As cooperativas eram a
expressão da vontade de construir relações comerciais de poder a serviço
das economias familiares. Tinham as cooperativas um sentido econômico
e um significado político. A organização cooperativa era expressão da
vontade política de querer construir poder sobre as relações econômicas.
A cooperação nas antigas colônias, sob diversas formas práticas,
muitas vezes ocupou um lugar central na vida das pessoas e nas comuni-
dades, especialmente quando se tratava da venda de seus produtos, do
abastecimento das suas necessidades de consumo, ou mesmo quando se
11
Com relação ao associativismo e aos primórdios do cooperativismo no Brasil, a partir
das experiências dos agricultores, nas comunidades de colonização, é recomendado
ler: RAMBO, Arthur Blasio. O Associativismo teuto-brasileiro e os primórdios do
cooperativismo no Brasil. Perspectiva Econômica, São Leopoldo, Unisinos, v. 23, n. 62-
63, jul./dez. 1988, p. 3-276. (Série Cooperativismo n. 24-25)

Organização cooperativa na agricultura familiar 305


tratava de garantir serviços ou infraestruturas necessárias e não disponi-
bilizadas pelos, quase sempre, inexistentes serviços públicos estatais.
A ausência do poder público muitas vezes era preenchida pelas inicia-
tivas comunitárias, fundadas na associação e na cooperação, adquirindo,
assim, essas práticas certa dimensão pública não estatal, isto é, eram ativi-
dades que geravam benefícios a todos os moradores. Educavam-se, desse
modo, os agricultores para a cidadania. Lançavam as raízes do que hoje se
denomina de espaços públicos ampliados.
Certamente essa dimensão pública não estatal dava sentido e signifi-
cado às práticas cooperativas dos agricultores de economia familiar,
indo além dos objetivos apenas econômicos. Muitos aspectos da vida
das pessoas e da organização das comunidades se relacionavam com as
práticas da cooperação. As práticas cooperativas dos colonos não po-
dem por isso ser reduzidas simplesmente a um conteúdo apenas econô-
mico, isto é, de compra e venda de produtos. Elas contêm, certamente,
conteúdos culturais, políticos, sociais e até psicológicos, com raízes na
história da colonização. Por isso, sem a compreensão histórica da coloni-
zação, é difícil o entendimento do comportamento e das expectativas dos
associados frente às práticas cooperativas nas regiões coloniais do Rio
Grande do Sul.
Nas comunidades surgidas dos núcleos de colonização, a igreja, a
escola e a cooperativa representavam, muitas vezes, as instituições e as
formas sociais de organização mais importantes, além da família. Histori-
camente, no meio rural, isto é, nos espaços da organização cooperativa
dos núcleos de colonização, confrontados com as contradições das
condições de sobrevivência e reprodução social, exercia-se com mais liber-
dade a contestação e a crítica do que na organização escolar ou na da
igreja, onde as sutilezas da dominação e da alienação eram mais facil-
mente aceitas, embasadas na tradição da obediência. Na organização
cooperativa se ensaiava, mais facilmente, a capacidade da negação, da
contestação, do questionamento, da afirmação de identidade própria,
diante das práticas contraditórias, possibilitando conhecimento, aprendi-
zagem e educação. Os erros e as falhas nas práticas cooperativas provo-
cavam reações, críticas, enquanto que na organização da escola e da igreja
essa capacidade de negação era mínima, segundo vivências históricas.
Aos agricultores associados era mais fácil contestar a gestão das
cooperativas, instituída por eles, que criticar a autoridade religiosa ou
divina ou da ciência. Os agricultores eram educados no temor a Deus, isto
é, à autoridade da igreja, e na crença da verdade incontestável da ciência,
isto é, da autoridade da escola. No entanto, a gestão das cooperativas
estava ao alcance de sua maior ou menor participação. Afinal, era obra
deles. Esse complexo processo social de relação com a fé, a ciência e a
política, certamente é indicador da estreita relação entre poder e educação.

306 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


Assim, nos processos das lutas e conflitos sociais dos núcleos de
colonização, construía-se conhecimento, aprendizagem e educação tam-
bém nos espaços da cooperação. Na organização social das famílias dos
pequenos agricultores, a cooperação era uma prática que se impunha
frente às dificuldades, o esforço coletivo para sobreviver. As práticas
de cooperação eram as lições da “escola da vida” que funcionava,
muitas vezes, nos espaços da organização cooperativa. Aprendia-se pela
avaliação crítica dessas práticas, desenvolviam-se os que dela soubes-
sem fazer uso construtivo. A cooperativa era, assim, ao mesmo tempo, um
lugar de negócios e um lugar de produção de conhecimento, de aprendi-
zagem, de educação. O conhecimento, a aprendizagem, a educação,
fluíam pelas vias das relações de poder que se organizavam e manifes-
tavam nas práticas políticas de comunicação e negociação, na busca das
informações, nas práticas da comercialização dos produtos, enfim. A ação
das relações de poder ensinava sobre os lugares e condições sociais das
pessoas.
Ao recorrer à memória e a depoimentos de antigos associados, espe-
cialmente de pequenas cooperativas de compra e venda do meio rural,
além de questões mais práticas da organização cooperativa, da ordem
material, como a venda de produtos e o abastecimento de artigos de
consumo, afloraram outros aspectos de ordem cultural, política e educa-
tiva. A respeito da relação comercial dos agricultores com os comerciantes
intermediários, foi possível colher, registrar e extrair o seguinte depoi-
mento de uma das “testemunhas” entrevistadas:
O intermediário sempre está presente na nossa porta, ele vive a vida dele,
ele não é uma cooperativa; numa cooperativa eu sempre ainda procuro
de ter os meus direitos como associada, como participante, agora se eu
vou num comerciante, eu estou vendendo o meu produto, eu somente
vendo e está terminada a minha cooperativa; a gente nasceu dentro dela,
é assim que a gente tem vez e voz; então eu sempre acho ainda que o
cooperativismo é o melhor sistema que existe, apesar de que existem os
outros, vamos supor que eles pagam menos ou que paguem mais, mas
aí então a gente sempre ainda procura a cooperativa, não é? Sempre tem
alguém que vai pagar um pouco mais, se nós não tivéssemos cooperativa,
eu acho, eu não sei se o produtor teria como, eu acho que ele ia ser usado
muito e eles iam pagar o que eles iam querer; e uma cooperativa ainda
assegura os preços, por isso nós ainda sempre somos cooperativistas.
Canso de falar para os filhos também que se liguem sempre ainda a
uma cooperativa porque ela, ela sempre é um meio que ainda tu podes
conversar e apesar de tudo; agora num comerciante tu vais, tu não tens
o que dizer porque ele é o dono da coisa e uma cooperativa sempre é um
conjunto de pessoas que vão defender, que vão pensar no assunto, vão
estudar e falam com as pessoas (Entrevistado 1).

Organização cooperativa na agricultura familiar 307


A organização cooperativa, além do seu sentido econômico, consti-
tuía-se, assim, em uma escola,12 onde se gerava conhecimento, produzia-
-se aprendizagem a respeito da vida na realidade social, certamente, com
profundo reflexo no processo de educação mais amplo da sociedade,
deitando as raízes de muitos de seus valores e comportamentos sociais
atuais.
Do ponto de vista dos objetivos econômicos da cooperação, deve-se
lamentar e condenar as falhas das práticas cooperativas. Porém, do ponto
de vista de um amplo processo de educação que nasce da consciência da
contradição, da crítica e da autocrítica, esse processo social da capacidade
de negação, de contestação, de questionamento, não é desprezível.
A partir da década de 1950, a economia agropecuária da região passou
a ser atrelada aos interesses dos polos nacionais de desenvolvimento
urbano e industrial, dinamizados pela política de associação ao capital
estrangeiro (ZARTH, 2009). Essa relação recompôs, isto é, condicionou o
processo de seu desenvolvimento. Iniciou-se algo como uma “revolução
agrícola” na região. Ao lado da agricultura colonial e da pecuária tradi-
cional surgiu, incentivada pelo governo, a moderna lavoura do trigo,
baseada no uso de máquinas e capital financeiro. Em seguida, a ela
associou-se a lavoura de soja.
Diante do esgotamento das bases da economia de colonização, da
necessidade de sua reprodução e sem gerar um projeto alternativo pró-
prio, a agricultura familiar colonial aderiu ao modelo de modernização
proposto pelas políticas oficiais. A adesão da agricultura familiar ao
binômio trigo-soja também levou à incorporação de cooperativas locais
tradicionais às cooperativas de trigo e soja de atuação regional. No
entanto, muitas delas encerraram suas atividades com a chegada da mo-
dernização agrícola e a atuação das cooperativas regionais.
Entre 1960 e 1969, no território polarizado pela cidade de Santa
Rosa, na região Noroeste, foram fundadas 30 cooperativas agrícolas e
fechadas 20. Entre 1967 e 1969, na mesma região, foram fundadas ape-
nas 3 cooperativas e fechadas 16. Em 1969, nas regiões polarizadas
pelas cidades de Santa Rosa, Santo Ângelo e Cruz Alta, no Noroeste do
estado, existiam 86 cooperativas agrícolas. Entretanto, em 1978, em toda
a região Noroeste, existiam somente mais 31 cooperativas agrícolas,
conforme tabela abaixo. Das 31 cooperativas agrícolas, 12 levavam o nome
de cooperativas tritícolas, em 1978. Na região Noroeste, ainda hoje, as
cooperativas agrícolas estão entre as maiores do estado do Rio Grande do
Sul (FRANTZ, 1980).
No cenário do binômio trigo-soja, a jusante e montante da moderni-
zação agrícola, nasceram as cooperativas regionais de armazenagem e

12
No sentido de um sistema de organização e práticas e de doutrinação.

308 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


comercialização de insumos e produtos agrícolas. As cooperativas de trigo
e soja foram um importante fator de viabilização dessa modernização e
de capacitação para a concorrência mercantil. A bandeira do novo projeto
cooperativo quanto à adesão dos agricultores ao projeto de moder-
nização agrícola eram aceitas como uma solução para a agricultura fami-
liar em crise. Renova-se a esperança da agricultura familiar colonial e sua
confiança em iniciativas cooperativas. Além disso, a euforia pela moder-
nização deixava pouco espaço aberto para posturas críticas que pudessem
ser veiculadas em relação às políticas oficiais ou aos projetos hegemônicos
de cooperativismo.

3 O caminho da nova esperança

Pelos caminhos da pesquisa empírica, o texto segue o trilho da espe-


rança da agricultura familiar colonial, ouvindo manifestações de associa-
dos de uma cooperativa, que pode ser considerada como um exemplo
histórico típico de práticas do cooperativismo na agricultura familiar na
região a partir de sua modernização. No centro de atenção da pesquisa es-
tiveram questões que dizem respeito, especialmente, aos seguintes aspectos:
•Ao conceito e visão de cooperativismo que os associados têm;
•À percepção do sentido e do significado prático de uma organização
cooperativa, por parte dos associados, no momento atual;
•À participação dos associados na gestão de cooperativas;
•À razão e à validade da cooperação e, portanto, à fidelidade e compro-
misso para com a organização cooperativa, na ótica dos agricultores
associados;
•À avaliação, isto é, à percepção dos principais problemas do coopera-
tivismo atual.
De um universo de 6457 associados, vinculados, operacionalmente,
a unidades de serviços da cooperativa, no Noroeste do RS, tomou-se
uma amostra aleatória simples, por sorteio, através da geração de núme-
ros aleatórios. Foram aplicados 162 questionários,13 através de uma entre-
vista semidiretiva, com questões relacionadas ao cooperativismo e à
organização cooperativa, à percepção de associado e as suas relações
com a cooperativa. A partir do universo das respostas, foram elaboradas
categorias para sua classificação que, codificadas, permitiram produzir
percentuais estatísticos.

13
Os questionários estão nos arquivos do pesquisador e os dados produzidos estão no
Relatório Técnico enviado à FAPERGS – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio Grande do Sul.

Organização cooperativa na agricultura familiar 309


Além dos questionários, foram realizadas 26 entrevistas abertas, todas
gravadas e transcritas,14 procurando constituir “testemunhas” de con-
firmação ou não dos resultados da pesquisa de campo, seguindo uma
metodologia de trabalho, embasada na interlocução e argumentação de
diferentes saberes, entendimentos e leituras da realidade.
É importante lembrar que os entrevistados, de modo geral, tinham
longa experiência de debate sobre cooperativismo, através do Movimento
Comunitário de Base de Ijuí, que teve no associativismo e no coopera-
tivismo suas bandeiras de mobilização, especialmente no decorrer dos
anos de 1960 (FRANTZ, 1980).
A maioria dos entrevistados tinha muitos anos de experiência comum
em práticas cooperativas, permitindo afirmar-se, portanto, que a opinião
colhida tem uma ampla base histórica: 66,6% tinham acima de quarenta
anos de idade e 64,6% tinham mais de vinte anos de associação. Esse
pode ser um indicador de confiabilidade e de fidelidade. Do total dos
entrevistados, 24,1% eram mulheres. A maioria dos entrevistados – 77,5%
– era de pequenos proprietários com até 50 ha de terra. Apenas 7% dos
entrevistados tinham mais de 100 ha. Esse aspecto pode ser um indicador
para a busca de segurança, de construção de poder e força, diante das
dificuldades de competição individual no mercado. Como a maioria é de
pequenos proprietários, pode-se encontrar nesse fato uma razão expli-
cativa para a predominância da percepção política dos entrevistados com
relação à organização cooperativa.
A pesquisa revelou que as economias familiares eram, de certo
modo, ainda bem diversificadas, embora a produção de soja fosse predo-
minante: 93,2% dos entrevistados produziam soja. Considerado o tama-
nho das propriedades e a predominância do cultivo da soja, pode-se,
facilmente, compreender ou concluir pela fragilidade de escala das econo-
mias familiares, diante da competição com as propriedades maiores,
produtoras de soja. A produção de soja é um espaço cada vez mais
competitivo no mercado. Essas dificuldades, certamente, condicionam a
sua adesão ao cooperativismo e lhe emprestam uma conotação política,
isto é, valorizam a união, a associação, mais que o instrumento empre-
sarial em si. A organização aparece como um instrumento de defesa, de
luta, diante das suas fraquezas e dificuldades como pequenas economias.
Apesar da diversificação, a entrega dos itens de produção na coope-
rativa para a sua comercialização é em número reduzido. Disso se pode
concluir que a diversificação é mais voltada à subsistência das famílias.
Existe, portanto, uma economia de subsistência, isto é, uma economia
complementar, familiar, uma economia de suporte, não monetarizada.

14
O texto da transcrição das entrevistas está nos arquivos do pesquisador.

310 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


A fidelidade na entrega da produção de soja era alta, considerando-
-se, especialmente, os anos de crise da cooperativa. Existe confiabilidade
em relação à cooperativa: 83,3% dos entrevistados entregavam soja;
49,4% entregavam toda a produção na cooperativa. Isso revela que o agri-
cultor se sente mais seguro ao comercializar sua produção através da
cooperativa: 55,3% entrevistados disseram que se sentem mais fortes
participando em cooperativas, por causa da segurança que estas oferecem.
Apenas 5,7% citaram a comercialização como fator de força que os levava
à participação. O associado sente mais a segurança do que vantagens na
comercialização.
Na entrevista, procurou-se também captar a percepção que os
entrevistados tinham sobre cooperativismo, isto é, procurou-se captar o
sentido e o significado da prática cooperativa por parte dos associados.
Procurou-se saber a respeito do “núcleo” de fundamentação do conceito
de cooperativismo: 46,9% dos associados revelaram uma percepção polí-
tica do cooperativismo, isto é, valorizam a questão associativa; 30% das
respostas indicaram uma visão empresarial e 10% indicaram uma noção
paternalista. Os dados revelaram também que os novos associados tinham
uma visão mais política (58,8%) e menos empresarial (23,5%). Depois de
alguma experiência, a visão política diminui muito (22,2%), em favor da
percepção empresarial (44,4%), mas aumenta também a visão paternalista
que vê na cooperativa uma ajuda (22,2%). O tempo de experiência de
associado “recoloca” a percepção política em primeiro plano (49,1%),
diminuindo a visão paternalista (3,8%), mas faz “surgir” uma visão de
independência (1,9%); as visões política e paternalista perdem pontos
para a visão empresarial (37,7%) com o correr do tempo. Os dados permi-
tem concluir por significados de ordem mais política, como defesa, segu-
rança, e não apenas de ordem operacional, de instrumentalização do
sentido econômico da cooperação, embora haja uma relação estreita entre
os significados da existência da cooperativa e o objetivo dos associados.
A existência da cooperativa ultrapassa os aspectos econômicos da coope-
ração.
Perguntados sobre a validade do cooperativismo no mundo atual,
onde predomina o individualismo e a competição, 92,9% dos entrevis-
tados responderam pela validade do cooperativismo.15 Esse resultado
confirma a tendência atual do surgimento de muitas novas cooperativas
e de que a crise das cooperativas não abalou o espírito cooperativo. No
15
Em 1983, uma pesquisa junto a 30 associados da Cotrijuí, indicou que 83,33% teriam
dificuldades para exercer suas atividades econômicas sem a cooperativa. Dos entre-
vistados, 93,34% afirmaram que nunca pensaram em abandonar a cooperativa. Na
época, 80,5% dos associados da Cotrijuí tinham menos de 50 ha de terra, sendo a soja
sua maior produção. Para maiores informações: FRANTZ, Walter. Participação em orga-
nizações cooperativas. Ijuí: Ed. Unijui, 2001.

Organização cooperativa na agricultura familiar 311


entanto, 62,1% dos que responderam pela validade do cooperativismo
o fizeram com algum condicionante. Isso revela uma visão mais crítica
com relação à gestão: 30,7% dos condicionamentos pela validade do
cooperativismo estão embasados em aspectos operacionais e administra-
tivos. Têm seu foco na empresa. Isso significa que os associados esperam
resultados práticos do cooperativismo: 65,6% dos associados encontraram
o que queriam e 24% encontraram em parte o que buscavam na coopera-
tiva. Esse é um indicador de importância para as economias dos associados,
considerando-se que a maioria tem pequenas economias, com dificuldades
de competição em termos individuais. É um indicativo de que a coopera-
tiva representa força e poder para os associados.
Com relação à visão de cooperativismo, de sua validade, uma das
“testemunhas” entrevistadas afirma o seguinte, deixando transparecer uma
crítica ao individualismo e uma “profissão de fé” na cooperação como
força construtora de futuro:
Eu acho que hoje em dia esse individualismo que nós vivemos ele não
tem um futuro, nós temos que cooperar, nós temos que trabalhar em
parcerias, nós temos que trabalhar em cooperativas, porque aí nós temos
a nossa força, eu acho que isso pra mim ainda é a única saída que existe
(Entrevistado 2).
Entretanto, dos associados entrevistados 149 apontaram 211 diferentes
problemas, apenas 6 entrevistados disseram que não veem problemas e
8 não responderam. Os principais problemas apontados são de ordem
financeira (29,4%), de ordem moral, isto é, honestidade, corrupção, opor-
tunismo, individualismo, etc. (15%), de ordem administrativa (9,9%), de
capacidade de competição e concorrência (9%), de preços (9%), de partici-
pação e poder na gestão (8%). Foram também apontados problemas de
comunicação (4,3%), de formação/educação (3,3%) e de orientação téc-
nica ao associado (1,9%). De acordo com a pesquisa, os problemas se
localizam: 59,7 na empresa, 12,3% na associação e na empresa, 9,7% na
associação e 7,8% no mercado. Os problemas apontados precisam ser
relacionados com a experiência da situação histórica da cooperativa e não
com o momento atual.
Perguntados sobre as principais vantagens da participação em coope-
rativas: 36,6% apontaram vantagens relacionadas com a economia, 26,8%
com a educação, 17% com a assistência técnica e 11,1% tinham uma
posição crítica, afirmando ter tido poucas ou nenhuma vantagem. Se divi-
dirmos estas mesmas respostas por seus indicativos de poder ou educa-
ção, então teremos 62,7% das respostas relacionadas ao espaço de poder
e 22,2% ao campo da educação. Isto é, a maioria dos associados relaciona
participação com poder: 96,8% dos entrevistados reconhecem que a orga-
nização cooperativa representa força e poder, sendo que 60,6% dos

312 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


entrevistados reconhecem força e poder no sentido político da organi-
zação cooperativa e 25,2% no sentido econômico. Porém, apenas 0,6%
citam a legislação como base de força e poder. Isso quer dizer que os asso-
ciados acreditam em si mesmos como fonte de poder e força e menos na
lei.
Dos entrevistados, 91,1% concordaram que é importante a partici-
pação atuante do associado para o funcionamento de uma cooperativa.
Valorizam a participação, a presença do associado na discussão sobre o
funcionamento da organização cooperativa: 58,5% fundamentaram a im-
portância da participação atuante para o bom funcionamento de uma
cooperativa nos aspectos políticos. Isto é, uma cooperativa é uma associa-
ção de pessoas que não podem ficar afastadas do funcionamento de uma
cooperativa. Os dados da pesquisa revelaram que 62,8% dos associados
acreditam que conseguem influenciar a forma de administração da coope-
rativa. Somado esse resultado aos que acreditam poder influenciar em
parte, então o percentual sobe para 76,9%: é um indicador de democracia
e, portanto, de poder.
Na entrevista foi perguntado como o associado consegue influenciar
a forma de administração da cooperativa: 121 entrevistados responderam
a pergunta. Destes, 51,2% acreditam poder influenciar pela participação
política, isto é, pelo diálogo, pela comunicação entre os associados, pela
união dos associados; através de reuniões; pela presença em discussões;
tendo transparência, o associado consegue e pode dar sugestões.
Os dados indicam que os associados valorizam a participação, a demo-
cracia, a comunicação. Os representantes foram lembrados como canal
de influência (16,5%); as estruturas formais de participação, isto é, assem-
bleias gerais, foram lembradas por 8,2%. O associado não acredita muito
na possibilidade de influir pela participação econômica: 5,7%. Portanto,
a ameaça individual de deixar a cooperativa por insatisfação representa
pouco poder. Na explicação desses dados deve ser levado em conta o
fato da maioria dos entrevistados ter pequenas economias que enxergam
na cooperativa um instrumento de força política, mais que econômica,
quando levado para o terreno de cada um.
Para 73,2%, a participação de práticas cooperativas representa uma
espécie de “escola para a vida”; 19,1% concordam em parte com a afir-
mação e apenas 7,6% discordam, isto é, 92,3% percebem na participação
de uma cooperativa um processo educativo. Além disso, 92,4% dos
entrevistados concordam que é importante uma preparação, uma forma-
ção para a participação do associado na cooperativa. Esse dado mostra
a importância a ser dada à educação para a cooperação. O associado
valoriza a formação para a cooperação. Entre os diversos conteúdos apon-
tados para a formação, 27,8% dos entrevistados apontaram a temática

Organização cooperativa na agricultura familiar 313


do associativismo e cooperativismo. Certamente, nisso se pode ler uma
expressão de esperança na cooperação.
Com relação à aprendizagem e à educação pela participação na coope-
rativa, assim se expressou uma das “testemunhas” entrevistadas:
Eu sempre acho um espaço de participação dentro da comunidade para
fazer algo, aprendendo e ensinando, porque todas às vezes que fui
numa reunião, todas as vezes que a gente foi discutir uma coisa a gente
aprende uma coisa (Entrevistado 3).
Enfim, os dados permitem algumas conclusões: existe confiabilidade
e fidelidade entre os associados com relação à organização cooperativa; a
organização cooperativa representa segurança, especialmente para os pe-
quenos proprietários; existe espírito cooperativo e valorização da organi-
zação cooperativa e isso pode também ser interpretado como resultado
das fragilidades das economias familiares; existe um predomínio da
percepção do sentido político da organização cooperativa, independente
das faixas etárias; porém, com o passar do tempo, com mais experiência,
os associados tendem a ter uma visão também mais empresarial do coope-
rativismo; a maior base de força e poder das organizações cooperativas
está na união, na associação de seus integrantes; o cooperativismo é valo-
rizado, apesar do individualismo e da competição no mundo atual; a crise
das cooperativas de trigo e soja não abalou o espírito cooperativo dos
entrevistados; a validade do cooperativismo está, predominantemente,
embasada em aspectos operacionais, empresariais; os preços não são
os maiores problemas do cooperativismo; os dados confirmam que
organizações cooperativas são campos de educação e espaços de poder; os
associados veem em si mesmos uma base de força e poder na organização
cooperativa e não na legislação: revelam autoconfiança e valorização da
participação política; os associados priorizam a segurança em sua adesão
ao cooperativismo; a associação produz a sensação de mais força e poder;
a transparência é um fator de segurança, de confiabilidade, portanto de
equilíbrio da organização cooperativa; participação gera a sensação de
força e poder nos associados; os associados priorizam segurança e não
apenas preço.
Para finalizar, pode-se dizer que, apesar do sentido econômico espe-
cífico das práticas cooperativas, nelas se revelam muitos significados para
a vida em comunidade. Certamente, aos que se ocupam, meramente, com
questões operacionais do sentido econômico das organizações coope-
rativas, os esforços por captar e compreender significados culturais da
cooperação pode parecer menos importante. Entretanto, sem penetrar
no campo dos valores, dos princípios, dos comportamentos, enfim, dos
significados das organizações cooperativas, o sentido econômico da
cooperação pode correr o risco de se estreitar demais, isolando-o dos

314 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


seus próprios significados sociais e reduzindo-o a dimensões técnicas ou
quantidades numéricas de quadros estatísticos.
O foco das práticas de gestão das organizações cooperativas está mais
no processamento dos resultados econômicos da cooperação. Sem dúvida,
isso é central, pois, trata-se do objetivo fundamental da cooperação. No
entanto, organizações cooperativas são fenômenos sociais complexos e
ambivalentes. São iniciativas carregadas de necessidades, desejos e inte-
resses. O seu sentido está relacionado à economia dos associados. Porém,
como complexidade social, carrega em si vários e diferentes significados.
Afirma Pedro Demo (2002, p. 18 e 20): “Complexidade não parece ser
apenas modo de se organizar. É igualmente modo de ser [...]. A realidade
se diz ambígua quando possui estrutura difusa, não linear, caótica,
apresentando-se como autêntica unidade de contrários. [...] campo de
força ou de energia [...]”.
As organizações cooperativas são estruturas que nascem da arti-
culação e da associação de indivíduos que se identificam por interesses ou
necessidades comuns, buscando o seu fortalecimento pela organização e
instrumentalização, com vistas a objetivos e resultados específicos, nor-
malmente de ordem econômica. Porém, em sua dinâmica refletem a
ambivalência da realidade social que as compõe. “A realidade se diz
ambivalente quando sua dinâmica manifesta direções opostas no mesmo
todo” (Demo, 2002, p. 21). As questões sociais, políticas e culturais que
perpassam a natureza associativa e o caráter instrumental das práticas
cooperativas, além das questões econômicas, produzem essa dinâmica de
direções contrárias, no espaço da organização cooperativa.
Portanto, as cooperativas organizadas pelos agricultores, além de seu
sentido econômico prático, vêm carregadas de outros significados, con-
forme se pode verificar pela manifestação de associados:
Uma cooperativa ainda é o melhor caminho pra nós, porque nós não
podemos viver solitários, sozinhos, independentes de todos. Nós sempre
temos que nos ligar a alguém porque uma pessoa sozinha no mundo
não é nada. Eu participo de estudos bíblicos, tenho reuniões, participo
assim de várias entidades, eu me ligo muito, me sinto bem e o que me
dói na alma é que tantas pessoas estão sem aquela participação que tanto
necessitam. Acho que cada vez que vou a um lugar estou aprendendo.
Eu não vejo hoje uma entidade que poderia substitui isso, aqui, porque
nós não temos outra entidade a não ser cooperação, cooperativa. Pode
que surja, a gente não vai estar contra, mas eu acho que isso é uma
maneira de fazer o futuro do nosso país (Entrevistado 4).
A cooperação promove o encontro com o outro. Assim, organização
da cooperação, ao tirar o indivíduo de seu mundo particular, relacio-
nando-o com os outros, pelos laços sociais da interação, desperta a res-

Organização cooperativa na agricultura familiar 315


ponsabilidade social, fundamental ao desenvolvimento do ser humano
e de seus espaços sociais de vida. A organização cooperativa tem um
sentido de construção do coletivo, que lhe advém da natureza associativa.
Na interação cooperativa dinamizam-se processos sociais de educação
e formação, ora mais técnicos, ora mais políticos. Isso não apenas por
que nelas se promove a atividade educativa com vistas à capacitação
para a cooperação, mas por que, nos diferentes espaços da organização
cooperativa, a educação decorre das relações sociais que ali se processam
e dinamizam, tendo em vista os interesses, as intenções, as necessidades
dos associados e as ações decorrentes dessa trama social complexa.
Nos espaços sociais da organização cooperativa, os associados desen-
volvem processos complexos de influência entre si; desenvolvem senti-
mentos, ideias, valores, comportamentos, conhecimentos, aprendizagens,
estruturas de poder de atuação, através do qual se comunicam e se
influenciam. Da dinâmica dessas relações nascem ações no espaço da
economia, da política, constituindo-se, assim, as práticas cooperativas em
processos educativos e em processos de poder.
Pode-se perceber a questão do poder nas organizações cooperativas
como um conjunto de relações presentes nos processos formais de fun-
cionamento de uma cooperativa, sejam eles de domínio, uso e controle
do conhecimento, de saber tecnológico, de produção, uso e controle da
informação, de comunicação, de administração ou de operação técnica
das atividades e objetivos da cooperativa. A questão do poder está nesses
espaços da organização, entre as pessoas ou grupos de associados.
Além disso, organizações cooperativas podem ser espaços de poder
que permitem influir sobre o processo de distribuição dos resultados da
produção. Aqui está uma das razões mais importantes para a existência de
uma cooperativa: construir poder de participação, de influência e decisão.
As organizações cooperativas sempre foram desafiadas por operações
técnicas de produção, armazenagem, industrialização e comercialização,
isto é, por questões vinculadas à economia dos seus associados. Porém,
também sempre existiram os desafios de ordem política, de natureza
cultural e social. Hoje, as organizações cooperativas continuam, cada
vez mais, sendo confrontadas e exigidas pelas muitas transformações
de ordem política, de natureza cultural e social, pelas quais passa a
sociedade. Especialmente, o fenômeno da intensificação da globalização
traz muitos novos desafios. Isso exige também de seus associados e diri-
gentes sempre novos conhecimentos, mais capacidade de articulação,
maior identificação coletiva e responsabilidade social. Todos são confron-
tados, cada vez mais, com novos e maiores problemas, diante das trans-
formações em curso.

316 História do Campesinato na Fronteira Sul • Walter Frantz


Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire.
2002.
FRANTZ, Walter. Genossenschaftsentwicklung und genossenschaftliche Erziehung. Eine
Fallstudie aus Brasilien. Anuário de Educação, Sociedade e Política na América Latina,
Universidade de Münster, República Federal da Alemanha, Editado por Achim Schrader e
Horst Bahro, 1980.
______. Reflexões em torno da agricultura familiar. In: ANDRIOLI, Antônio, Inácio (Org.).
Tecnologia e agricultura familiar: uma relação de educação. Ijuí: Editora Unijuí, 2009. p. 137-
187.
GUANZIROLI, Carlos et al. Agricultura familiar e reforma agrária no século XXI. Rio de
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LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São
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RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.
SABOURIN, Eric. Camponeses do Brasil: entre a troca mercantil e a reciprocidade. Rio de
Janeiro: Garamond, 2009.
ZARTH, Paulo Afonso. História, agricultura e tecnologia no noroeste do Rio Grande do
Sul. In: ANDRIOLI, Antônio, Inácio (Org.). Tecnologia e agricultura familiar: uma relação de
educação. Ijuí: Editora Unijuí, 2009. p. 51-75.

Organização cooperativa na agricultura familiar 317


AUTORES
Claiton Marcio da Silva. Doutor em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz
(COC/Fiocruz) e Professor Adjunto de História da Fronteira Sul na Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS/Chapecó).
Cristiano Desconsi. Mestre em Ciências Sociais pelo CPDA – Uinversidade Federal
Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ (2009) com o foco de pesquisa em processos migratórios.
Atualmente é consultor técnico do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
– PNUD com atuação em políticas públicas para a agricultura familiar junto ao Ministério
do Desenvolvimento Agrário na área de Crédito Rural do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar.
Delmir J. Valentini. Doutor em História das Sociedades Ibéricas e Americanas pela
PUCRS. Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS. Autor de diversas
publicações sobre o Contestado, entre as quais Da cidade santa a corte celeste: memórias de
sertanejos e a Guerra do Contestado (Caçador SC: Universidade do Contestado, 1998).
Dirceu Benincá. Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, com estágio no Centro
de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra/Portugal. Desde fevereiro de 2010
exerce a função de Coordenador Administrativo da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS) – Campus Erechim. É autor de diversos livros, entre os quais: CEBs: nos trilhos
da inclusão libertadora (Paulus, 2006, em coautoria); Reciclando a (des)ordem do progresso
– ARCAN: uma alternativa socioambiental (IFIBE, 2006); Em tempos de travessia – leituras do
cotidiano (IFIBE, 2007); Universidade e suas fronteiras (Org.). Outras expressões (2011); Energia
& cidadania – a luta dos atingidos por barragens (Cortez, 2011); além de diversos artigos
científicos.
Edemar Rotta. Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Mestre em
Sociologia pela UFRGS. Doutor em Serviço Social pela PUCRS. Pesquisador na área
de desenvolvimento regional. Integrante dos Grupos de Pesquisa CNPq “Teorias e
Processos de Desenvolvimento”; “Grupo de Pesquisa em Economia do Bem-Estar Social” e
“Sistemas de Proteção Social e Fronteiras”.
Eunice Sueli Nodari. Professora Associada do Departamento de História da Universidade
Federal de Santa Catarina. Graduada em História pela UPF/RS (1976), Mestre em História
Europeia pela University of California – Davis (EUA) (1992) e Doutora em História do
Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999). Coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC e leciona no Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq
– “Laboratório de Imigração, Migração e História Ambiental”. É bolsista de produtividade
em Pesquisa do CNPq.
Isabel Rosa Gritti. Professora Adjunta da Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus
Erechim-RS. Mestre e doutora em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS). Autora do livro Imigração judaica no Rio Grande do Sul
(Porto Alegre, Martins Livreiro, 1997).
João Carlos Tedesco. Doutor em Ciências Sociais. Professor do Programa de Mestrado
em História da UPF. Autor de diversas publicações: Terra, trabalho e família: racionalidade
produtiva e ethos camponês (Editora da UPF); Colonos, carreteiros e comerciantes: o Alto
Taquari no início do século XX (Porto Alegre, EST Edições); Um pequeno grande mundo: a
família italiana na região colonial (Porto Alegre, Acirs e UPF Editora).
Joel João Carini. Doutor em Desenvolvimento Rural (UFRGS). Mestre em História pelo
PPGH da UPF. Professor do Instituto Federal Farroupilha, campus Santo Augusto.

318 História do Campesinato na Fronteira Sul • Autores


José Carlos Radin. Doutor em História pela UFSC. Professor da Universidade Federal da
Fronteira Sul – UFFS, Campus Chapecó. Autor de diversas publicações sobre imigração,
entre elas o livro Representações da colonização (Chapecó, Argos, 2009).
José Manuel P. Palazuelos Ballivián. Mestre em Agroecossistemas pela Universidade
Federal de Santa Catarina (2000). Assessor do Conselho de Missão entre Indígenas
(COMIN) na temática de sustentabilidade étnica junto aos povos kaingang e guarani
na Região Sul do Brasil. Publicações: Artesanato indígena kaingang e guarani – territórios
Região Sul (São Leopoldo, Oikos, 2011); Abelhas nativas sem ferrão – guia do professor
(São Leopoldo, Oikos, 2008); Cultura, ambiente e bioidiversidade – guia do professor (Belo
Horizonte, UFMG/FALE, 2006).
Alexandra Carvalho P. de Palazuelos. Graduanda do curso de Licenciatura em Sociologia
pela Universidade Federal de Santa Maria. Publicações: Gente não é chuva (Tenente
Portela, Unijuí, 2008).
Márcio Antônio Both da Silva. Professor dos cursos de Graduação e de Mestrado
em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Mestre em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor em História pela Universidade
Federal Fluminense. Autor do livro Babel do Novo Mundo (Rio de Janeiro, Editora Unicentro
e UFF).
Marcos Gerhardt. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do CNPq e integrante do “Laboratório
de Imigração, Migração e História Ambiental” (www.labimha.ufsc.br), sob a orientação da
Profa. Dra. Eunice Sueli Nodari e co-orientação do Prof. Dr. João Klug. Mestre em História
pela UEL. Autor do livro História ambiental da Colônia Ijuhy (Ijuí, Ed. Unijuí. 2009).
Isaura Isabel Conte. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), linha de pesquisa “Trabalho, Movimentos Sociais e Educação”, sob
orientação da Dra. Marlene Ribeiro. Mestra em Educação pela Universidade Regional
do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí). Militante do Movimento de Mulheres
Camponesas – MMC.
Paulo Pinheiro Machado. Professor do Departamento de História da Universidade
Federal de Santa Catarina onde leciona no Programa de Pós-Graduação em História. Autor
de diversas publicações, entre elas Lideranças do contestado: a formação e a atuação das
chefias caboclas (1912-1916) (Campinas, Editora da Unicamp, 2004).
Paulo Afonso Zarth. Doutor em História pelo PPG da Universidade Federal Fluminense.
Professor Visitante da CAPES na Universidade Federal da Fronteira Sul. (UFFS). Autor
de diversas publicações, entre elas Do arcaico ao moderno (Editora Unijuí). Colaborou na
organização da coleção História Social do Campesinato Brasileiro, publicada pela UNESP
e NEAD/MDA.
Tau Golin. Historiador e jornalista. Professor dos cursos de Graduação e Mestrado em
História da Universidade de Passo Fundo, onde coordena o Núcleo de Documentação
Histórica. Autor de diversos livros, entre os quais A Guerra Guaranítica e A Fronteira.
Coordenou a publicação da História Geral do Rio Grande do Sul (PPGH-UPF-UERGS), em
seis volumes, publicados pela Editora Méritos.
Walter Frantz. Nascido na agricultura familiar, marcada pela esperança na organização
cooperativa, estudou cooperativismo no Chile e na Alemanha. Fez doutorado em
Sociologia da Educação, na Universidade de Münster, na Westfália. Hoje, é professor
do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais e do Programa de Pós-Graduação em
Educação nas Ciências, Unijuí.

Autores 319

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