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Rio de Janeiro
2016
MARCELO DE LIMA DA SILVA
Rio de Janeiro
2016
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
CDD – 025.1716
Dedico esse trabalho à memória dos meus
avós: Ilidia Brito e Genésio Brito. E meu
amado pai: Milton Brito da Silva, falecidos
durante a realização do curso. Exemplos de
força, superação, e, acima de tudo, de muito
amor. As boas lembranças fizeram com que eu
seguisse em frente apesar de todo o sofrimento
e saudade.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Francisca Rodrigues de Lima; à minha irmã e minha sobrinha, pelo amor e
compreensão nos momentos de ausência.
Ao meu orientador João Marcelo Ehlert Maia, pela paciência e pela atenção durante toda a
realização deste trabalho. Sempre disponível, exemplo de competência e profissionalismo.
A Mônica Garcia, minha chefe na Fundação Oswaldo Cruz, pelo incentivo e pela
compreensão das dificuldades na realização desse tipo de trabalho, o que fez com que
remarcássemos dezenas de reuniões.
Às bibliotecárias Angelina Pereira, Cláudia Araújo e Teresa Risi, pelas inúmeras solicitações
na elaboração de citações e referências bibliográficas e pelas buscas de material bibliográfico,
mesmo quando não solicitado. Amigas sempre disponíveis que ajudaram significativamente
na realização deste trabalho.
A Jeorgina Gentil, ex-chefe da Biblioteca de Obras Raras, pela amizade e disponibilidade para
inúmeras solicitações a respeito da história da Biblioteca de Obras Raras.
À equipe da Biblioteca de Obras Raras, em especial Maria Cláudia Santigado, atual chefe da
biblioteca, por disponibilizar a consulta do Formulário Médico sempre que solicitado, pelo
entusiasmo com a pesquisa e pelo recolhimento de informações indispensáveis, sem as quais
essa pesquisa não seria possível.
À senhora Cecília Catramby, pela generosidade e pelo carinho, por ter aceitado o convite para
visitar a biblioteca para conhecer o manuscrito e nossa pesquisa e, também, por fornecer
informações importantes a respeito da relação de Oswaldo Cruz e seu avô Joaquim Catramby,
responsável pela construção da estrada de ferro Madeira Mamoré.
Aos colegas de classe pelo compartilhamento das angústias, pelo apoio e carinho.
A Karina Cox e Valeria Becker pelo competente trabalho de revisão, por sua disponibilidade
para atuar em horários nada convencionais e por todo o apoio e carinho.
À minha equipe da Seção de Preservação, pelo carinho, amizade e entusiasmo com a pesquisa
e pela competência na realização dos serviços na nossa seção, nos poucos momentos de minha
ausência.
RESUMO
O objeto desta pesquisa é um livro raro e especial, integrante da Biblioteca de Obras Raras da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Trata-se do Formulário Médico, escrito em 1703 por
jesuítas. Esse livro é um manuscrito, composto por 225 páginas, nas quais estão descritas
receitas médicas para a cura de diversas doenças, através da utilização da fauna e da flora dos
locais onde as missões jesuíticas se instalaram. Além de traçar uma biografia dessa obra,
investigando sua trajetória no acervo da Fiocruz, a pesquisa também analisou a forma como o
Formulário Médico foi tratado no acervo ao longo de décadas. Ao abordar também esse
aspecto, esperamos contribuir significativamente para as reflexões sobre a responsabilidade
das instituições de guarda, em geral, no que diz respeito à forma e à preservação de tais obras
para o futuro.
ABSTRACT
The objective of this study is a rare book which is part of the rare book collection of the
Fundação Oswaldo Cruz. The book, entitled Formulário Médico, was written in 1703 by
Jesuits. It is a manuscript, composed of 225 pages, that describes medical prescriptions for the
cure of various diseases through the use of flora and fauna found in locations where the
Jesuits had missions.
In addition to tracing the biography of this book, investigating its trajectory in the Fiocruz
collection, our research examined how Formulário Médico was handled in the collection
during decades. By dealing with this aspect, we hope to make significant contributions to the
realization of the importance and responsibility of institutions which have collections such as
this one regarding the appropriate manner of preserving works like this manuscript for the
future.
KEY-WORDS
Figura 4 – Carimbo....................................................................................................18
Preservação.................................................................................................................21
Figura 10 – Chagas......................................................................................................31
Figura 13: Receyta ou grande Segredo para curar toda a corrupção de Erpez ou
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................11
2.1 Introdução..............................................................................................................28
ESTÉTICA DO MANUSCRITO...............................................................................85
3.1 Introdução..............................................................................................................85
OSWALDO CRUZ......................................................................................................96
4.1 Introdução..............................................................................................................96
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................116
REFERÊNCIAS.........................................................................................................124
11
APRESENTAÇÃO
Para contribuir com o nosso objetivo de investigar a trajetória do Formulário Médico desde a
sua chegada à Fundação Oswaldo Cruz, até o seu reconhecimento como objeto significativo e
diferenciado pela instituição, optamos por adotar as ideia de Igor Kopytoff, inspirados em seu
artigo “A biografia cultural das coisas”. Para Kopytoff a biografia de um objeto pode ser
focalizada em diferentes aspectos. Para este trabalho usaremos a perspectiva da biografia
cultural, que possibilitará entender a carreira do nosso objeto ao longo dos anos. Para
12
Assim sendo, o autor elucida algumas questões que devem ser abordadas para a elaboração da
biografia de um objeto:
Para ele existe uma expectativa das pessoas para uma biografia de determinado objeto,
revelando aspectos de diferentes julgamentos. Com isso, a biografia de um objeto, revela
também a forma como os objetos são culturalmente definidos e utilizados, revelando dados
culturais importantes.
As atribuições de valores aos objetos, assim como suas representatividades sociais são
alteradas de acordo com a posição que as “coisas” ocupam e geram discussões a respeito dos
valores que atribuímos a elas. Principalmente quando os valores humanos atuam em
processos que geram apropriação dos objetos, ou ainda, quando refletimos como os homens
se relacionam com as coisas e como se relacionam entre si, por meio dos objetos.
Além dessa contribuição, este estudo pretende também se constituir em mais uma
fonte de pesquisa para a análise das práticas médicas exercidas pelos jesuítas, já que livros
com essa configuração são de difícil acesso.
Por fim, contem também, discussões a respeito da restauração de livros raros, já que
esta técnica pode alterar a configuração dos objetos originais, contribuindo ou não para a
perda das marcas que um livro antigo possa apresentar. Trata ainda da responsabilidade das
instituições sobre os processos aplicados nesse sentido da preservação.
14
Segundo Rocha Lima1, Oswaldo Cruz possuía um ideal de cultivar ciência em alto
nível e amor pelo Instituto que criou e levava o seu nome.
Nosso objeto de pesquisa é parte desse acervo e foi escrito em 1703 por jesuítas, em
português. É composto por 225 páginas, nas quais estão descritas receitas médicas para a cura
de diversas doenças, através da utilização da fauna e da flora dos locais por onde as missões
jesuíticas se instalaram. Suas páginas de história são como provas do fazer médico no século
XVIII.
Ele atesta como a medicina foi aplicada por determinado grupo social e faz emergir
conhecimentos socioeconômicos e culturais de diferentes povos, uma vez que é testemunho
das relações sociais do passado. Sendo assim, sua descrição e análise são de interesse
científico e social.
1
LIMA, H. da Rocha. Com Oswaldo Cruz e Manguinhos. Impresso. Sem data e local de publicação. O impresso
pertence à Biblioteca de Obras Raras da FIOCRUZ.
15
Fonte: Catálogo antigo da Biblioteca de Ciências Biomédicas. Ficha elaborada na década de 1970.
O livro mede 36 centímetros de altura por vinte e seis de largura. Suas receitas
possuem certo padrão na apresentação: todas possuem um título, em sua maioria são
acrescidas com uma pequena introdução ou comentários a respeito da importância ou das
virtudes de determinado elemento. De título “Formulário Médico”, o manuscrito foi elaborado
em papel de trapo2 - tecnologia utilizada até o ano de 1850 -, fabricado manualmente com a
utilização de materiais que conferiam ao papel enorme resistência. Os papeis de trapo são
conhecidos pela qualidade de permanência.
Um livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro
pós-Gutenberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais – as do codex. Tanto
um como o outro são objetos compostos de folhas dobradas um certo número de
vezes, o que determina o formato do livro e a sucessão dos cadernos. Estes cadernos
são montados, costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernação. A
distribuição do texto na superfície da página, os instrumentos que lhe permitem as
identificações (paginação, numerações), os índices e os sumários: tudo isto já existe
desde a época do manuscrito. Isso é herdado por Gutenberg e, depois dele, pelo livro
moderno. (CHARTIER, 1999. p. 7)
2
Decomposição dos trapos por maceração, batidos com pesadas marretas e limpas em córregos limpos, para
retirada das impurezas. Misturadas as fibras da pasta resultante da maceração, retirava-se o excesso de água
cobrindo com panos ou feltros. Secavam e eram reencolados.
16
Ainda com relação ao papel do manuscrito, ao colocarmos suas folhas contra a luz
identificamos filigranas - mais conhecidas como marcas d’água - representadas por letras, em
dezenas delas.
As filigranas são importantes, pois por meio delas é possível identificar o fabricante, o
período e as formas de fabricação dos papeis, por testemunharem os processos pelos quais
foram gerados. Como neste exemplo:
Legenda: detalhe da marca d’água representada pela letra “B” em uma das páginas do manuscrito.
Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.
A época histórica em que uma folha de papel com marca d’água foi manufaturada
somente pode ser determinada mediante o cruzamento de diversas determinações e de
uma série de observações sobre a classe de fibras vegetais e outros ingredientes
eventualmente usados na preparação da pasta com a qual a folha foi formada; a
composição do papel; o processo produtivo utilizado; as ferramentas e utensílios usados
na manufatura das folhas. (RODÉS, 1996. p. 15).
representado e marcado por sua utilização. Essa informação foi essencial para que pudéssemos
encontrar a ligação entre o manuscrito e Oswaldo Cruz, como veremos no capítulo quatro.
Figura 4 - Carimbo
Legenda: detalhe do carimbo onde se lê: Oliveira Catramby, presente em três páginas do manuscrito.
Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz
O Formulário foi escrito em tinta ferrogálica3, espécie de tinta utilizada até o início do
século XX, composta por uma mistura de elementos químicos que, contendo um elemento
ferroso em sua composição, resultava na cor viva, de cobre. Por outro lado, sua composição
possui um efeito degradante para o papel e causou a destruição de documentos, ao longo da
história:
3
Esse tipo de tinta usa o sulfeto ferroso como fonte de ferro e o ácido tânico como fonte de tanino. Um grande
número de evidências apontam principalmente duas razões para a degradação: excesso de ferro usado nas
receitas e o meio ácido proveniente da reação de formação do pigmento. Esses dois componentes são essenciais
para o sistema de Fenton, que é responsável pela oxidação catalisada pelos íons de ferro. (SOUZA, 2008. p.1)
19
Seus cadernos foram organizados e costurados com um tipo de costura própria para
livros impressos, com utilização de tiras de couro formando nervuras (saliências em alto
relevo nas lombadas). O manuscrito não possui folha de rosto ou quaisquer outras
informações a respeito de sua autoria ou de seu título, além de uma inscrição (posterior à sua
fabricação), que diz: “Formulário Médico: achado em uma arca da Igreja de São Francisco de
Curitiba.” Por esse motivo, o manuscrito foi tratado tecnicamente sob a ótica da
biblioteconomia: classificado e catalogado com o título de Formulário Médico.
Durante grande parte do século XVIII, a medicina luso-brasileira foi marcada pelas
influências da concepção hipocrática-galênica. A então denominada “patologia
humoral” concebia o corpo humano como um microcosmo por conter dentro de si as
qualidades dos quatro elementos da natureza [...] A influência do galenismo cabe
acrescentar ainda o papel da astrologia, da magia e das concepções sobrenaturais no
saber médico da época. (ABREU, 2007. p. 80)
20
Após estudar o manuscrito, verificamos que faltam as seguintes páginas: 1, 2, 60, 61,
62, 63, 73, 74, 76. Pela sequência das folhas não encontradas, somos levados a supor que os
assuntos que nelas constavam eram relacionados entre si, pois apontam para uma sequência
em determinados temas. Não foram arrancadas aleatoriamente, o que poderia sugerir perdas
não intencionais.
Sua estrutura física foi recuperada através da restauração realizada no ano de 2000 e o
seu estado de conservação é considerado bom. Algumas características do livro sugerem que
ele tenha passado por banhos de clareamento. Seu suporte em papel foi reconstituído através
de reenfibragem mecânica, na qual os rasgos e os buracos nas folhas foram preenchidos com
um novo papel, com cor e gramatura compatível com o original. A sua costura foi restaurada
em linha de algodão e recebeu uma encadernação inteira, em tecido na cor palha, além de
uma caixa para preservação em papel alcalino.
21
Legenda: até a página nove, com exceção das folhas faltantes, a paginação está correta, depois da página nove
a ordem pula para a página dezesseis.
Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.
Legenda: Detalhe do destaque no nome da receita. Primeira letra diferente das demais.
Fonte: Foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.
O caráter orientador do manuscrito fica evidente ainda nas primeiras páginas, pela
presença de tabelas explicativas, que poderiam estar organizadas juntamente com os índices,
no final do volume. No entanto, por serem consideradas importantes para a obtenção dos
24
remédios de forma fiel à fórmula, são apresentadas logo no início do conteúdo do manuscrito.
Como exemplificado a seguir na primeira página do manuscrito que apresenta uma tabela de
abreviações:
Abreviações
4
Não encontramos tradução para a palavra “apozimas”, porém, a partir da leitura das descrições, acreditamos ser
uma espécie de fórmula composta por, exatamente, seis componentes, utilizados nas formas quente ou fria,
conforme a indicação nas primeiras tabelas.
25
Apozimas
Apozimasgrandes.
Estas Apozimas Levãose os ingredientes muitas vezes diffirentes, conforme os
Males complicadoz dos enfermoz e as attençõez, que a elles se deve ter. Mas pore=
mos aqui algumas pera exemplar e ver quaizconvemmilhor ao doente
A página cinco trata das conservas, a seis dos pós e a sete das pedras - a pedra hume,
por exemplo -, juntamente com os xaropes. As orientações alternam-se, ora acrescentando
novos produtos, ora voltando a medicamentos já apresentados, como é o caso dos xaropes que
aparecem em diferentes páginas.
Legenda: Detalhe de uma receita que ocupa uma folha por completo.
Fonte: foto tirada pelo autor, na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz
Legenda: Detalhe da variação no tamanho das receitas. Na página da esquerda, a segunda receita
possui quatro linhas. Na página da direita a última receita ocupa doze linhas.
Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.
27
O Formulário Médico foi selecionado como objeto deste estudo por ser uma obra rara e
especial, considerado um dos livros mais importantes da Biblioteca.
Porque não somente os curam nas almas como pastores, pregando-lhes a doutrina duas vezes
por dia, confessando-os e administrando-lhes os sacramentos, enterrando os que morrem,
ajudando-os a bem morrer, mas os padres governam ainda no temporal e lhes dão ordem de
como hão de negociar suas roças e lavouras e remédio de vida e quando estão doentes, os
padres são seus médicos e enfermeiros e enfim se hão com eles como pais com filhos e tutores
com pupilos...
2.1 Introdução
O Formulário Médico é um livro manuscrito representativo da arte médica
desenvolvida e aplicada pelos inacianos em suas atividades de catequese. É, também,
testemunho das trocas culturais estabelecidas pelos inacianos nas diferentes sociedades que
compuseram o Império Colonial Português.
5
GUERREIRO, Padre Fernão. In: Relação Anual das Coisas que Fizeram os Padres da Companhia de Jesus
nas suas Missões do Japão, China, Tidore, Ternate, Ambóino, Malaca, Pegu, Bengala, Maduré, Costa da
Pescaria, Manar, Ceilão, Travancor, Malabar, Sodomala, Goa, Salcete, Lahor, Diu, Etiópia a alta ou
Preste João, Monomotapa, Angola, Guiné, Serra Leoa, Cabo Verde e Brasil nos anos de 1600 a 1609 e do
processo da conversão e cristandade daquelas partes: tiradas das cartas que os missionários de lá
escreveram. Nova Edição Dirigida e Prefaciada por Artur Viegas. Tomo I. 1600 a 1603. Coimbra: Imprensa da
Universidade. Livro Quarto. Capítulo Primeiro, pp. 373-375, 1930.
6
Em inventários das fazendas jesuíticas, todos os consultados descrevem livros na relação de bens. Gesteira
(2005), em sua pesquisa “As fazendas jesuíticas em Campos dos Goitacazes”, apresenta o inventário de
sequestro de bens e, dentre os itens relacionados, está descrita uma coleção de livros médicos, entre os quais
destacamos “Atalaya da vida contra as hostilidades da morte” e “Polyanthea Medicinal”, ambos de autoria de
João Curvo Semedo e “Pharmacopea lusitana”, de autoria de D. Caetano de Santo Antônio.
7
Segundo Pita (2005), no seu estudo “A bela idade da primeira farmacopéia portuguesa: 300 anos”, a medicação
galênica - ou decorrente dela - tinha por base as drogas tradicionalmente conhecidas na Europa, essencialmente
drogas vegetais, descritas por Dioscórides e Galeno. Para Abreu (2007), em seu artigo “Ilustrações,
experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal no século XVIII”,
“a então denominada ‘patologia humoral’ concebia o corpo humano como um microcosmo, por conter dentro si
as qualidades dos quatro elementos da natureza. A partir desta teoria, a regulação das três partes principais do
corpo – fígado, coração e cérebro – dependia do equilíbrio entre os quatro humores primários – sangue, cólera,
fleuma e melancolia”. (ABREU, 2007. p. 80).
29
O contato com as populações indígenas acabou exigindo deles novas atitudes. Com
o tempo o destino dos missionários de batina preta passou a ser o de enfrentar as
doenças e trazer a cura como missão, agora não mais restrita à dimensão apenas
espiritual, mas também à corporal e terrena. Essa foi a sina da ordem que,
enfrentando as epidemias, as razias portuguesas e espanholas, a carestia, num
cenário estarrecedor, se viu obrigada a reelaborar suas práticas e intervenções sob o
risco de ser ofuscada pelo poder dos pajés. (RESENDE, 2003. p. 232).
30
Pela natureza das suas atividades, os jesuítas produziram variados documentos, tais
como cartas, relatórios e até mesmo livros, que hoje são ricas fontes de informação a respeito
de várias áreas de interesse para a História, conforme pode ser percebida na análise dos
escritos de Padre Antônio Vieira, feita pela autora Eliane Cristina Deckmann Fleck:
8
“As cartas desempenhavam um papel fundamental na organização da Companhia de Jesus, pois, além do seu
caráter administrativo, faziam uma espécie de propaganda dos resultados da catequese ao redor do mundo,
servindo também para consolidar a identidade dos seus membros dispersos pelo globo. De acordo com sua
finalidade e com o nível de circulação, estavam divididas em duas categorias: as cartas principais e as hijuelas.
Nos anexos deviam ser tratados assuntos específicos da ordem, como a saúde dos padres, problemas como os
colonos, dificuldades de catequese, assuntos financeiros.” (GONÇALVES; PEREIRA, 2012. p.26).
31
2.2 Receitas
Figura 10 – Chagas
Transcrição:
A fórmula para Chagas é a primeira receita escolhida. Ela é bastante completa em suas
indicações e informações complementares e contém uma curiosidade: a sua indicação é tanto
para uso nas pessoas quanto nos cavalos. O manuscrito não possui nenhuma outra receita para
a cura de qualquer outro tipo de animal. Mas para a cura das doenças relacionadas ao cavalo,
possui ainda outras duas receitas, demonstrando uma preocupação com a saúde deste animal,
que se constituía como único meio de transporte dos missionários.
Estas várias formas de utilização e preparo, visando o processo final de cura, pode
demonstrar que o remédio, provavelmente, foi aplicado e experimentado em diversas fases da
doença e que sua atuação foi observada por longos períodos. Nota-se, também, a apresentação
de uma grande diversidade de substâncias que poderiam ser substituídas 9 , alcançando o
mesmo resultado. O que se deve, muito provavelmente, à dificuldade de acesso a algumas
ervas características de regiões específicas.
9
Em falta de maracujá [mirim] que em muitas partes o não hâ/se porá nas chagaz pôz de pedra negra do capão.
34
Transcrição:
Apesar das folhas referentes aos tratados 1º e 2º não terem sido localizadas, é possível
supor que o manuscrito foi dividido em tratados.
Como a única pista para analisar esse tratado é o autor citado em sua página foi
realizada uma pesquisa para identificar sua participação na medicina da época. Foi localizada
na Biblioteca Nacional de Portugal a seguinte referência: “narração cirúrgica de hum
carbúnculo maligno, que com felicidade se curou na cara, de Antônio Rodrigues Ciebra”.10
A partir daí, o tratado terceiro nos dá, também, a primeira indicação de que o
Formulário Médico é uma compilação e também aponta os cuidados que os Jesuítas
dispensavam à qualidade das suas receitas, atentando para as novas publicações e informações
que contribuíssem para o desenvolvimento das suas atividades.
10
CIEBRA, Antonio Rodrigues. Narração cirúrgica de hum carbúnculo maligno, que com felicidade se
curou na cara. Lisboa: Off. Francisco Luiz Ameno, 1760. Disponível em:
http://catalogo.bnportugal.pt/ipac20/ipac.jsp?session=14388S9568QW4.35008&menu=search&aspect=subtab11
&npp=20&ipp=20&spp=20&profile=bn&ri=&term=ciebra&index=.GW&aspect=subtab11&x=11&y=11#focus
36
Transcrição:
Triaga Brazilica
Noticia do Antidoto ou Nova Triaga Brazilica, que se faz no
Colegio da Companhia de Jesus da Bahia/ e Pryo de Janeyro/ com
as virtudez e propriedades della já experimentadaz
de 15 annos para câ em varias enfermidadez.
A Triaga Brazilica hê hum Antidoto, ou Panacêa composta á imitação
da Triaga de Roma, e de Veneza, e de varias plantas, Raizes, ervas e drogas do
nosso Brazil, que a natureza dotou de tão excellentes virtudez, que cada huma
por si sô pode servir em lugar da Triaga da Europa, poiz com algumas das Ra-
izes, de que se compoem este Antidoto se curão os Brazis de qualquer peçonha e
mordedura de animaez venenozos como tambem de outras enfermidadez só
com mastigallas: e a experiencia tem mostrado de 15 annoz para câ que Se
não hê melhor que a triaga da Europa, ao menoz não lhe hê inferior em couza
alguma; porque hê efficassissimo contra todo o veneno/ excepto os correrios/
como hê solimão e outroz semelhantes causticoz, ainda que contra estes da-
do Logo o pezo de 1 ate 2//8az ajuda a oz expellir com vomitoz e depoiz com Reme-
dioz anodînos, que se costumão applicar a semelhantes venenos, faz a cura
maiz facil e maiz segura.
Serve contra qualquer bebida de veneno, ou ervas frias, e venenosas mor-
deduras de cobras e outroz animaes peçonhentoz tomando pella boca o pezo
de 1 ate 2//8az em vinho caldo ou em qualquer couza potavel; e isto de 4 em 4
Horaz, até se sentir aliviado o enfermo; untando lhe tãobem com ella os pul-
soz, nariz, e coração e ponha na mordedura a modo de emplasto desfeito em Vinho,
ou sumo de Limão.
Serve taobem para qualquer dor intrinseca, como de estomago, vomitoz, colica,
flatoz, e pontadaz, principalmente se forem cauzadas de frio: para Lom-
brigaz e qualquer humor corrupto, que se gera nos intestinos hê Remedio: e
para estancar camaras: para dores de Rins, bexigas, Arêa e pedra, porquanto
hê diuretica e faz ourinar; uzando amiudo couza de meia 8ª em aguas
apropriadas a estas doençaz.
Serve maiz para qualquer achaque da cabeça, cauzado de intemperança fria,
38
As triagas são receitas utilizadas por diversos grupos desde a antiguidade e ficaram
conhecidas pela sua eficácia contra muitas doenças e contra mordeduras de animais
venenosos, conforme indica Santos:
A maior parte dos autores, porém, considera que o termo origina-se do grego theriake
e do latim theriaca. A concepção inicial que se dá às triagas é a de antídoto contra a
mordida de serpentes e contra venenos em geral. Este sentido permeia sempre as
triagas. Posteriormente, entretanto, observa-se que estas receitas acabaram tornando-
se remédios universais (panaceias). (SANTOS, 2003. p. 44)
Já a Triaga Brasílica 11 foi inspirada nas triagas dos colégios de Roma e Veneza.
Desenvolvida no Colégio Jesuítico da Bahia 12 , com exceção de dois ingredientes, era
produzida com produtos nativos do Brasil. Foi um dos principais remédios secretos criados
pelos jesuítas, comercializado em outros continentes e sua presença no Formulário Médico
indica o compartilhamento de informações entre os inacianos.
11
Para Patricia Albano Maia, “A Triaga Brasílica era indicada para o tratamento de mordedura de qualquer
espécie de cobras, qualquer dor interna, estancar curso, epilepsia, apoplexia, melancolia, febres malignas,
bexigas, sarampo, histerias, doenças da madre”. (MAIA, 2011. p. 10).
12
“A Triaga Brasílica foi desenvolvida na Botica do Colégio da Bahia, com inspiração nas triagas produzidas
nas boticas dos colégios de Roma e de Veneza”. (MAIA, 2011, p.8)
39
Composta por 27 produtos que incluíam raízes e plantas, o medicamento ganhou fama
internacional e, segundo Maia, chegou a ser a segunda maior fonte de renda da Companhia de
Jesus.
Este era um medicamento polivalente com a função de curar doenças das mais
diferentes manifestações, formulado em imitação das triagas europeias, mas
enriquecido com as plantas do Brasil. Este segredo dos jesuítas, tão cobiçado,
constitui formulação típica do século XVIII, ou seja, de ser um remédio universal,
mas que já existia desde a antiguidade. (MAIA, 2011, p.8)
13
Parte da receita de Triaga Brasílica encontrada no Formulário Médico. Vale lembrar que a não normalização
da receita descrita é intencional, para que possa corresponder à localização das palavras no texto original.
40
As receitas de remédios secretos eram tratadas com cuidado, pois foram medicamentos
que exerceram enorme influência e muitos alcançaram fama e reconhecimento em todos os
continentes15. Os jesuítas disponibilizavam suas fórmulas secretas para seus irmãos e, com
isso, mantinham o controle do conhecimento e o monopólio de determinados remédios.
14
Receita da Triaga Brasílica presente na “Colleção de Várias Receitas”. Citada por Patrícia Albano Maia em
seu artigo “Práticas de cura no encontro de culturas: jesuítas e a circulação de receitas médicas”.
15
Vera Regina Beltrão Marques, no capítulo “Medicinas secretas: magia e ciência no Brasil setecentista”,
publicado no livro “Artes e ofício de curar no Brasil”, realiza um interessante estudo da história dos remédios
secretos. Para ela, os remédios secretos possuíam fórmulas singulares que pertenciam aos seus inventores; foram
remédios que alcançaram reconhecimento pelo poder de cura e elevava o status social do seu inventor. No lugar
das fórmulas eram propagados seus efeitos curativos. (MARQUES, 1999)
41
Figura 13 - Receyta de grande Segredo para curar toda a corrupção de Erpez ou Gangrena e
outras queixas
Transcrição:
muito fino e ferverâ com fogo brando atê ficar na medida das tres libras
de agua e fica feito este grande Remedio que depoiz de frio se guardarâ
em vidro bem tapado e dura com a sua virtude 6 annos. e quanto mais
antiga for melhor obra. E querendo a fazer maiz forte, se lança na ditta
agua 2// oitavas de solimão na mesma forma dita aSima e querendoa maiz
branda / quando se curarem chagas de pouca Corrupção/ se destempera
na forma que quizerem, com agua do cozimento das folhas de tanchage.
Como se uza desta agua
Hê molhando fioz, e pannos na dita agua morna e applicando os
em sima das chagaz podres e curando cada 24 horas e quando os fios
se pegarem sem molharão para se tirarem, com a agua do dito cozimento, ou
de farellos de trigo E aSim se irâ Curando, Lavando sempre a chaga com=
alguma das ditas aguas mornas atê atalhar a corrupção, e aparecer
43
carne vermelha e depoiz se cure a chaga com a dita agua sendo branda
ou com os Remendioz que a cada hum parecer etc
Advertencias
1ªQue se não ponha esta agua em cima de osso que estiver descuberto,
porque o faz negro, e fica emcapaz, de encarnar carne sobre elle ------//
2ªQue esta agua não se ponha por nenhum modo em parte que chegue aos
olhos e em partes da cabeça sô se applicarâ com grande necessidade.
miliares, pondo lhe pannos molhados nella não sendo muito branda
Algumas receitas de segredo, por sua importância, possuíam no título uma indicação
de utilização precedida da valorização do segredo, como é o caso da Receyta ou grande
Segredo para curar toda a corrupção de Erpez ou Gangrena e outras queixas.
[...] não andassem espalhados por todas as mãos; pois bem sabes, que revelados
estes, ainda que de uma botica para a outra, perdem toda estimação [...]. Pelo que
peço-te, que sejas muito acautelado e escrupuloso em não revelar algum destes
segredos; pois em consciência se não pode fazer, advertindo que são cousas essas
da religião, e não tuas. (MARQUES, 2003. p.179).
16
Com relação aos remédios secretos dos jesuítas, a autora justifica “O Jesuíta salientava a importância de manter
o segredo como algo da esfera do divino, da religião e não dos homens, algo que precisava manter-se em sigilo;
do contrário, os remédios perderiam sua “estimação”.” (MARQUES, 2003. p. 179).
17
“Trata-se de um documento manuscrito de 688 páginas numeradas, publicado em Roma no ano de 1766.
Apesar de possuir todas as licenças necessárias para a publicação, isto nunca aconteceu. Organizada em ordem
alfabética por nome de medicamento, é dedicada ao Coração Santíssimo de Jesus. Até o momento ainda não é
conhecido o nome do organizador da coleção”. (MAIA, 2011. p.1)
44
Figura 14 - O grande elixir estomacdal do Doutor Stoughton ou grande elixir cordial para o
estamago preparado somente
Transcrição:
O grande Elixir Estomacdal
Do Doutor Stoughton
Ou grande elixir Cordial para o estamago preparado Somente
por Seo filho Unico se pode achar como antes no antigo e original alma-
zem em Bartholameu Lane, junto da Bolza Real de Londres adonde
tem sido famozo Hâ tanto tempo, e se faz publico por authoridade de Sua Magestade
a Raynha Anna de glorioza memoria. Tem a dita hum cheyro muito agra-
davel e fino, ainda que hum pouco amargo ao gosto. Não hé purgativo, mas
Sim cordial o maiz excellente e deliciozo, e medecina bem conhecida e ma-
iz estimada por toda a Europa.
E porquanto tem havido pessoas, que pertendem fazer este Remedio. Huns com ti-
tulo de Elixir grande, outroz pello elixir do Doutor Stoughton, em enga-
no e grave prejuízo do publico, para que se conheça o que hê genuino e en
preparo se acharão nas minhas direçoens Sempre impresso hu Gual
em cujo crieulo Sobrão as palavras = Richarâ Stolighton in -
Bartholomevv Lane = e no meyo do mesmo = The only son = e a
boca de cada garrafinha se acharâ sellada com a mesma inscripção. assim
se pede a quem quizer ter o verdadeiro Elixir, e fazer uzo delle para sua
Saude, tome particular noticia desta advertência.
Deste Elixir se tomão 50 ou 60 goztaz pouco maiz ou menos, em hum
vazo de agua da fonte ou de châ ou de vinho branco com açucar, ou sem
elle huã hora antes de comer pella mayor parte
18No trabalho de Vera Maria Beltrão Marques, “Medicinas secretas: magia e ciência no Brasil setecentista”, a
autora faz uma análise histórica a respeito da construção da medicina dos remédios secretos. Nele a autora trata
das falsificações e do reconhecimento das autorias dos remédios secretos.
46
A receita também informa o local onde o remédio poderia ser adquirido e, com isso,
identificamos a sua produção em Londres, reforçando as teses de compartilhamento de
conhecimento.
Desta forma pode-se dizer que esta receita funciona, na verdade, mais como uma
advertência, do que como receita médica, pois o seu benefício é a indicação do uso correto do
remédio original e da sua forma de identificação.
47
Transcrição:
A partir da leitura das receitas, fica clara a recorrência com que as sangrias e ventosas
aparecem nas indicações de tratamento, o que nos faz pensar que tenha sido um recurso
bastante utilizado. Esta receita faz justamente referência à aplicação de sangrias nas veias,
ilustrando esta prática da época.
Percebemos nesta receita a incorporação dos elementos utilizados pelos índios nas
práticas curativas dos inacianos21. Encontramos referências a diversas substâncias, tais como a
mandioca, as raízes aromáticas, o urucum, a salsaparrilha, o cacau, os óleos de copaíba e de
andiroba, além de mel de pau e de castanhas, comprovando que os jesuítas observavam as
plantas e ervas utilizadas pelos ameríndios e as adaptavam em suas receitas.
19
Daniela Bueno Calainho, no texto “Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial”, fala das práticas das sangrias que
foram realizadas com a chegada dos primeiros jesuítas. “Anchieta tratou-os com sangrias e com extirpação das
partes do corpo já ‘corrompidas’ pela doença, procedimentos, por sinal, considerados como os mais eficazes pelo
médico Simão Pinheiro Mourão quando, em 1694, escreveu o Tratado único das bexigas e sarampo, na época o
trabalho mais completo e original sobre o assunto”. (CALAINHO, 2005. p. 70).
20
Para Edler “A terapêutica popular ministrada por índios, africanos e mestiços dominava amplamente a prática
curativa. O sopro e a sucção de forças ou espíritos malignos, o uso de amuletos e o emprego de palavras
mágicas, juntamente com a aplicação de poções, unguentos e garrafadas harmonizavam-se com o universo
espiritual sincrético”. (EDLER, 2010. p. 26).
21
Para Santos: “O processo de transmissão de conhecimentos das plantas medicinais aos jesuítas não deve ter
sido pontual e rápido, podendo ter ocorrido durante todo o século XVI e os próximos cento e cinquenta anos de
convívio com os brasilíndios.” (SANTOS, 2009. p. 33).
50
remédios e os princípios ativos das plantas e, da mesma forma, os padres passavam seus
conhecimentos aos índios, se beneficiando mutuamente.
Para ilustrar esse intercâmbio, encontramos passagens das receitas nas quais os
autores relacionam plantas aos índios: “mastiguese a raiz do alcassûz a que os Kiriris chamão
lacororodi”, “ou cozase a venca a que os Tapuyoz chmão Bansunhû”, “tomase erva Crista de
gallo A que os Kiriris chamarão ibehoyzhuaka”.
Transcrição:
22
Aqui a palavra Madre é empregada no sentido de vulva, órgão genital feminino.
53
Além desta, o manuscrito ainda apresenta dezenas de receitas que utilizam a Copaíba
de diferentes formas e com variações de temperatura. Por esta grande recorrência pode-se,
inclusive, afirmar que ela seja uma das substâncias mais utilizadas pelos inacianos.
Transcrição:
Dor de dente
Deoz te salve, lua nova não te vi senão agora. Quando te comerem
loboz e serpentes, então me doerão os dentes. Em nome do Padre e do Filho,
e do Espirito Santo Amem
Para quem cair no mar ou no Rio se não afogar
O que estiver de fora e lhe dezeja acodir e não pode, comecarâ a Rezar o Salve
Rainha atê aquellas palavras = Esses teoz olhoz mizericordiozos a nós
volvei = e nunca a acabarâ, tornando ao principio, dando tempo a que
venha alguém a livrallo e entretanto não morrerâ [a]fogado. etc
Incendio
Quando houver algum incendio perguntarâ algum dos que o virem para
outro, olhando para o fogo = Quando foy dia de Natal. E respondendo
o outro o dia, em que for. etc pouco a pouco se irâ aplacando a ira
do fogo e não passarâ adiante. Deus super ona etc
Interessante perceber que a prática da Medicina Jesuítica não se constituiu apenas por
receitas com a utilização de plantas. Algumas formas de cura podem se aproximar dos rituais
indígenas, em especial com relação aos cânticos e aos usos de palavras milagrosas.
Na mesma página ainda temos outras duas receitas- “Para quem cair no mar ou no Rio
se não se afogar” e “Incendio”, ambas com a mesma formulação, muito próximas da estética
das simpatias23.
23Para Edler, no Brasil colonial: “os remédios iam da oração à purga ou à sangria, passando pelos exorcismos,
fórmulas mágicas, talismãs, ervas, minerais e substâncias de origem animal. Para um mesmo fenômeno, os
pacientes invocavam explicações múltiplas (a intervenção divina não excluía a ação de causas naturais), e se
sentiam livres para chamar todo tipo de terapeutas.” (EDLER, 2010. p. 40).
56
Transcrição:
Considerando esse aspecto místico, pode-se perceber uma nova relação de troca mais
específica, agora entre os jesuítas e pajés ou feiticeiros – forma com que os padres se referiam
aos pajés. Acredita-se que eles não utilizavam o termo pajés por não aceitarem a autoridade
que isso indicava. Assim sendo, os classificavam como feiticeiros.
Entre este gentio tupinambá há grandes feiticeiros... vivem em casa apartada cada
um por si, a qual é muito escura e tem a porta muito pequena, pela qual não ousa
entrar ninguém... nem de lhe tocar em coisa dela... A estes feiticeiros chamam os
tupinambás de pajés... [Quando os pajés] lhe dizem: “Vai que hás de morrer”, ao que
chamam “lançar a morte”...são tão bárbaros que se vão deitar nas redes pasmados,
sem quererem comer; e de pasmo se deixam morrer, sem haver quem lhes possa tirar
da cabeça que podem escapar do mandado dos feiticeiros... (SOARES, 1971. p.
274).
24
Resende, em seu capítulo do livro “Artes e ofícios de curar no Brasil”, reflete que: “para os padres, os pajés
personificavam o pecado capital do gentio porque eram a própria encarnação satânica. Por isso mesmo, padre
Duran ordenou a todos que se dedicassem com afinco a ‘destruir essa peste’. Esse tom imperativo tinha um
sentido bastante revelador: os ‘feiticeiros’ eram, pela natureza e papel que exerciam entre os guaranis, o esteio da
resistência indígena à presença jesuítica”. (RESENDE, 2003. p. 244).
59
Feiticeiro e feitiço. Quem quizer que o feiticero não continue neste oficio, e fique
incapaz e pifio dêlhe na testa com hum ovo bem choco de Sorte que lho aRebente:
Pôz de tatagyba meya atê huã oitava dados a beber em aguardente da te rra, Com a
qual vomitarâ tudo Repetindo varias vezes. E quando os vomi= tos Sejaõ
desmaziadoz os Atalharâ comendo huã pequena porção de massa de milho; ou
mastigar o mesmo milho, e engolindo. etc. (Formulário Médico, 1703. 93p.)
Por outro lado, encontramos também referências que deixam claro que a intenção dos
jesuítas, no primeiro momento, era a conversão e o batismo dos pajés25, já que, segundo eles,
a conversão de um deles significava a conversão de todos os outros.
Essa relação dúbia será um pouco mais explorada na descrição da próxima receita.
25
Resende (2003), em seu estudo no qual analisou correspondências trocadas entre os jesuítas, descreve a relação
entre os padres e os pajés. Em relatos detalhados, com as citações das cartas, a autora expõe a relação entre eles:
jesuítas e pajés, incluindo relatos de pajés convertidos que se tornaram fundamentais para o processo de batismo
de toda a tribo.
60
Transcrição:
Uma das receitas encontradas no Formulário Médico causou estranhamento, visto que
não havia sido identificada na literatura nenhuma relação de apropriação dos conhecimentos
transmitidos por pajés aos jesuítas. A apropriação de saberes dos ameríndios pelos inacianos -
e vice-versa - é percebida, mas nada se sabe a respeito da relação de transmissão de
conhecimentos entre os padres e feiticeiros.
Porém, essa disparidade fica menos evidente a partir da receita médica “Fava de Santo
Ignacio”, cuja leitura foi uma descoberta, por sugerir que as relações dos inacianos com os
feiticeiros poderia, em algum momento, ser de compartilhamento de conhecimentos.
26
Os jesuítas classificavam os pajés e xamãs como “filhos do demônio”; “representantes do mal”; embusteiros”;
“enganadores”. Contudo, a forma mais comum de serem tratados era por “feiticeiros”, como podemos observar
na carta de José de Anchieta em 1555: “os que fazem estas feitiçarias, que são muito apreciadas dos índios,
persuadem-lhes que em seu poder está a vida ou a morte; não ousam com tudo isto aparecer deante de nós
outros, porque descobrimos suas mentiras e maldades” (ANCHIETA, 1988, p. 83)
63
dos conhecimentos indígenas, não indicavam a autoria. Citavam apenas os nomes dos
produtos e uma breve descrição de suas virtudes.
Outra curiosidade é constar na receita o termo “brucha”, também, até então, não
identificado na literatura.
Mais curioso ainda é o fato de que a receita, ao mesmo tempo em que foi
compartilhada por um feiticeiro, possui em suas virtudes a qualidade de combater bruxas e
feiticeiros. Aqui se pode até imaginar que a receita teria sido compartilhada por um pajé
convertido. No entanto, se fosse esse o caso, porque haveria a necessidade de persuadi-lo,
uma vez que na receita está escrito que foi conseguida a “muito custo”?
Mais uma vez chega-se à conclusão de que estas relações eram pautadas pela
dubiedade.
64
Transcrição:
Observa-se uma receita curta, composta por seis linhas, com breve descrição. No
entanto, duas referências chamam a atenção: “Curvo” e “Polianthêa”.
Além disso, a receita atesta e comprova que o ato de medicar não era puramente um
ato de caridade e, sim, a construção e controle de um conhecimento que se transformava em
poder. A citação acima ajudou também para provar que os jesuítas acompanhavam os avanços
no campo da medicina e incluíam os remédios químicos em sua literatura.
27
João Curvo Semedo formou-se na Universidade de Coimbra. Exerceu clínica em Lisboa. Foi médico da Casa
Real e Familiar do Santo Ofício. Foi também medico da Real Câmara de Dom João V e clínico dos conventos e
das principais casas fidalgas. Considerado um dos maiores médicos do seu período tendo publicado os seguintes
títulos: “Tratado da Peste”; “Polianteia Medicinal”; “Atalaya da vida contra as hostilidades da morte”;
“Observações médicas doutrinais de cem casos gravíssimos”; “Manifesto feito aos amantes da saúde”; “Memória
dos remédios esquesitos que da Índia e outras partes podem dar purgas estando os humores crus”, entre outros.
66
Figura 21 - Índice
Transcrição:
Bichoz bernez f. 61
Calloz f. 88 [?]
Canelladaz f.
Cobra f. 83V
Transcrição:
INDEX
Dos pezos em [ilegível]
que se usão nas [ilegível]
caz f. 2 e 3.
A
Accidentez que chamão syncope f. 60V Das qualidades de
Açucar Rozado f. 78V ervas f. 30V, f. 2
Agoa de Inglaterra para Maleytaz f. 6 Diaz criticos f. 7
Agoardente açucarada f. 78
Agoardente concertada f. 78 Vide Roza soliz Daz qualidadez
Agoa de Ambar f. 78 daz ourinaz [ilegível]
Agoa de Galico de Madama f. 78 Daz qualidadez [ilegível]
Agoa Luminoza f. 78V varias ervas e misturas [?]
Agoa salgada para vomitar f. 60V f. 58V
Ajudaz para a doença da Biccha e febrez ma- f.
lignaz f. 7V
Apozimaz grandez para Galicos f. 4V, f. 5
Alporcaz f. 42V, 77, 105V
Almorreymaz f. 46, 77, 105, 122
Ar. Apoplexîa f. 11, 77V, 104, 104V
ARuda suaz virtudez f. 66
71
B
Baço f. 78V, 106V Vide obstrução
Bafo f. 106V Vide Fedor de boca
Balçamo Apopletico como se faz f. 60V
Banha de flor como se faz f. 60V, 107V
Bebedice f. 47, 79, 107V
Beber antimonio f. 52
Belidaz f. 12, 45, 72, 107
Bexigaz f. 13
Além dos dois índices, o manuscrito possui uma lista de abreviação, figura apresentada
a seguir.
72
Transcrição:
Transcrição:
No trabalho de Edler (1999, p.28), são descritas as doenças mais comuns entre os
índios, das quais destacamos: “as febres, as desinterias, as dermatoses, os pleurises e o bócio
endêmico como sendo moléstias prevalentes”, além das doenças trazidas pelos colonizadores:
“sarampo, varíola, rubéola, escarlatina, tuberculose, febre tifóide, malária, gripe”.
28
“As boticas dos colégios jesuítas foram inigualáveis, em qualquer parte onde estivessem. O inventário dos
bens da Fazenda denominada Santo Ignácio nos Campos Novos, que foi sequestrada aos regulares da Companhia
denominada Jesus. Segundo inventário datado de 1775, compondo a botica encontramos a seguinte listagem de
medicamento: hum papel com cinquenta e dois vomitórios de quintilio, 17 purgas de jalapa, 18 vomitórios de
tártaro, 7 purgas de rezina, 5 purgas de batata, um estojo com duas lancetas, 12 papelinhos de pírolas Angélicas,
7 purgas de rum, huma libra e quatorze oitavas de basilicão, hum dito de óleo rozado, 1 vidrinho de óleo de
copaíba, 1 lata de triaga brasílica, 1 lata de trementina, escarrador, 2 vidros de óleo de amêndoas, lancetas, libra e
meia de salsaparrilha, ungüento de chumbo, alambiques, almofarizes de mármore, ferro e marfim, armários,
frascos e potes de várias cores e amanhos, balanças, pesos, medidas, tachos de cobre, de barro, bacias, prensas,
tenazes, enfim, todo um aparato técnico para a confecção dos medicamentos. (GESTEIRA; TEXEIRA, 2009. p.
131).
78
remédios. Os jesuítas eram hábeis boticários e, segundo Serafim Leite (1938), foram os
melhores de sua época.
É certo que a arte médica dos jesuítas foi auxiliar no processo de angariar almas.
Contudo, a necessidade e a urgência com os cuidados com o corpo físico, considerando a
proliferação de epidemias, talvez tenha sido a principal motivação para a aplicação da
Medicina dos inacianos.
Grande parte dos processos médicos executados pelos padres, assim como as receitas e
as formas de aplicação, diagnósticos e prescrições de tratamentos, podem ser observados nos
manuscritos, sistematicamente produzidos e registrados com riqueza de detalhes. Esse objeto
de estudo é um exemplar deste tipo de literatura.
Ainda sob a perspectiva da análise de sua forma, nota-se que os manuscritos eram
documentos que se construíam permanentemente, ressaltando seu caráter de compilação.
Verificam-se receitas com as inscrições “do mesmo autor”, o que foi uma primeira
evidência de que sua elaboração passou por um organizador.
Nesta análise, também foi possível perceber outro aspecto que caracteriza uma
compilação. Por exemplo, a formulação “receita da celebre massa que se uza no Brazil para
Galico”, dá a entender que a receita foi copiada de um manuscrito de outro local, diferente
dos territórios coloniais portugueses na América, evidenciando que o documento foi
composto a partir de receitas copiadas de diferentes fontes, possivelmente de diferentes
lugares.
E por fim, uma das maiores evidências de que o manuscrito é uma compilação é a
receita “Remedioz para os doentes de pedra Tirados de Varios Autores pello Doutor
Francisco Dias Castelhano, que escreveo insignemente das Enfermidades dos Rins, e bixiga.
Medicamentos Símplices”. Aqui não restam dúvidas de que se trata de uma coleção de receitas
de diferentes fontes, compiladas de vários autores pelo Doutor Francisco Dias Castelhano.
Logo, não seria estranho afirmar que estamos diante de uma compilação da compilação.
79
Em algumas receitas, observa-se que, além dos nomes dos médicos, existem
referências de “mestre” ou “grande mestre”, o que sugere que os padres podem ter recebido
treinamentos profissionais ou ensinamentos práticos.
remédio de segredo do século XVIII, como registra Santos (2003, p 46.):” Sem dúvida, a
Triaga Brasílica pode ter sido realmente o medicamento mais famoso no Brasil no século
XVIII. Foi referida por muitos autores como o “medicamento extraordinário” das terras
brasílicas.”
A Triaga Brasílica foi tão significativa que, segundo Santos (2003), após a expulsão
dos jesuítas, Marquês de Pombal, ordenou o saqueamento do Colégio da Bahia à procura de
sua fórmula, porém, sem sucesso 29 . A receita, no entanto, foi descoberta anos depois no
manuscrito “Colleção de várias receitas e segredos particulares da nossa companhia de
Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil. Compostas e experimentadas pelos melhores
médicos e boticários mais celebres que tem havido nestas partes. Aumentada com alguns
índices e notícias muito curiosas e necessárias para a boa direção e acerto contra
enfermidades.”, no Archivum Romanum Societatis Lesu, em Roma. Acreditava-se ser a única
receita existente, até a presente pesquisa, já que o Formulário Médico possui a receita,
idêntica à descrita no manuscrito em Roma.
29
Quando o Colégio da Bahia foi saqueado e seqüestrado em julho de 1760, por ordem dada pelo Marques de
Pombal, o desembargador incumbido da ação judicial comunicava a seus superiores e ao próprio Marques que
havia feito as diligências necessárias para se apossar da botica do Colégio e de algumas receitas particulares,
entre as quais se achava a Triaga Brasílica. Nessa época, a Triaga já havia se tornado quase lendária. Mas a
receita, porém, não apareceu na Botica, nem em lugar algum na Bahia: foi encontrada mais tarde na Collecção
de Receitas no Arquivo Romano da Companhia de Jesus.
(Santos, 2003, p16)
81
da Europa e das mais usadas que vêm da Ásia, da África e da América, em 1718, do mesmo
autor; “Farmacopéia Tubalense Químico-Galênica”, de Manuel Rodrigues Coelho;
“Pharmacopoeia Contracta”, editada em latim, de autoria de Jacob de Castro Sarmento, em
1749; “Farmacopéia Portuense”, de Antônio Rodrigues Portuga”; “Farmacopéia Dogmática,
médico-química, teórico-prática”, de João de Jesus Maria.
Por muitos anos, a atuação dos padres jesuítas da Companhia de Jesus dividiu opiniões
entre os historiadores. Segundo Fleck, havia uma tradição na historiografia que classificava a
Ordem de forma negligenciada, associando as suas atividades à oposição aos avanços no
campo da Ciência Moderna. Visão que se altera, sobretudo, a partir dos anos noventa com a
produção de novos estudos voltados para a discussão. A este respeito, Fleck em suas reflexões
sinaliza:
O fato é que, mesmo diante desta divergência no que diz respeito à atuação dos padres
jesuítas, é inegável que os inacianos desenvolveram uma ciência muito particular, que
contribuiu significativamente em vários campos do conhecimento. E destacamos através da
transcrição e análise das receitas que compõem esse objeto de pesquisa, sua incontestável
contribuição para o desenvolvimento das Ciências Médicas nos territórios coloniais
portugueses na América.
A transcrição e a análise aqui realizadas têm como objetivo valorizar este objeto de
estudo, não somente por seus aspetos físicos ou de antiguidade, mas, principalmente, pelo fato
82
de realçar a importância dos acervos bibliográficos e sua preservação, por se tratar de uma
rica fonte de informação e conhecimento.
“Não lhes concedemos que façam dos Índios Cristãos à sua vontade, querendo
servir-se deles a torto e a direito. Mas como esta é guerra antiga, e no Brasil não se
acabará senão com os mesmos Índios, trabalha-se todo possível pela sua defensão,
pera que, com isto se salvem os predestinados.
José de Anchieta” (ANCHIETA apud VIOTTI, 1966. p. 220)
3.1 Introdução
Este pode ser o caso de livros com perdas de suporte, folhas rasgadas e soltas; que
tenham sofrido com infestações de insetos e apresentem buracos; de livros com as páginas
manchadas, que impeçam a sua leitura; de obras que tenham passado por desastres naturais,
tais como enchentes ou incêndios; e, principalmente, de livros com suas estruturas físicas
comprometidas.
Cabem aqui considerações a respeito das atividades de restauração e sua relação com
as nomenclaturas: preservação; conservação; restauração. A preservação de forma geral pode
ser entendida como toda e qualquer atividade, interventiva ou preventiva, relacionada aos
livros. Quando falamos sobre restauração, conservação, encadernação, controle de agentes de
degradação, estamos falando sobre preservação. Pode ser vista como uma grande área que
abrange todas as atividades que visam salvaguardar um livro.
Por exemplo, sabemos que em 1703 as encadernações não apresentavam o aspecto das
atuais, principalmente pela presença de materiais, tais como, o tecido. A partir dessas
premissas, perguntas foram feitas para nortear a análise da sua restauração e verificar até que
ponto houve uma alteração estrutural e estética desse bem cultural raro.
Em que momento de sua trajetória o manuscrito foi restaurado? Por que e por quem?
Como era o livro originalmente? Onde estão os seus registros?
Pela análise das alterações realizadas no objeto, pensamos ter sido a restauração a
maior transformação pela qual o manuscrito passou em toda a sua história.
Para levantar dados a partir destas questões, procuramos conversar com Jeorgina
Gentil30, ex-chefe da Biblioteca, que trabalhou diretamente com o manuscrito na década de
1980. Nessa conversa realizada na Biblioteca de Ciências Biomédicas – ICICT da Fiocruz,
em 10 de Novembro de 2015, foram levantadas informações sobre o estado de conservação do
manuscrito antes da restauração, o qual, em suas palavras, estaria “completamente solto e com
muitas perdas de suporte”.
Nesse processo, levantamos uma informação mais precisa de que o manuscrito fora
restaurado por volta de 2000, para que pudesse vir a fazer parte da exposição “A Ciência e a
Saúde Pública”, em comemoração aos cem anos da Fundação Oswaldo Cruz, da qual fizeram
parte apenas os materiais considerados raros e especiais.
30
Graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1982),
especialista em Indexação da Informação pela Universidade Santa Úrsula (1990), mestre em Ciência da
Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, convênio IBICT (1996) e doutora em Informação,
Comunicação em Saúde pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
(ICICT), da Fundação Oswaldo Cruz (2014). Atualmente é servidora da Fiocruz, onde atua como bibliotecária e
pesquisadora da Biblioteca de Manguinhos (Ciências Biomédicas) do Icict/Fiocruz.
86
como, por exemplo, a solicitação para a restauração de algumas obras do acervo; sua
justificativa e o projeto básico.
Temos aqui duas questões apresentadas. A primeira seria em relação aos critérios
usados para selecionar as obras a serem restauradas. Não foram localizados estudos
preliminares para avaliar a necessidade da restauração dos livros, de acordo com os níveis de
degradação das estruturas físicas. Após a avaliação de todas as obras descritas no projeto
básico e mais tarde restauradas, percebemos que elas não receberam o mesmo tipo de
tratamento. Algumas receberam apenas tratamento de conservação e não de restauração 32 ,
demonstrando, de certa forma, a motivação estética do pedido de restauração, visando a sua
aparência física para a exposição das obras33.
Afinal, não consta do processo uma proposta de tratamento das obras. A proposta
deveria conter informações de caráter administrativo e técnico, necessárias para o julgamento
de sua qualificação, além de informar detalhadamente a forma como os tratamentos seriam
aplicados, quais os tipos de materiais seriam utilizados, assim como listar os equipamentos
necessários para a realização dos serviços.
31
De acordo com as regras de compras ou prestação de serviços para instituições públicas as contratações até 8
mil reais não precisam passar por processo licitatório.
32
Conservação: é um conjunto de ações estabilizadoras que visam desacelerar o processo de degradação de
documentos ou objetos, por meio de controle ambiental e de tratamentos específicos (higienização, reparos e
acondicionamento). Restauração: é um conjunto de medidas que objetivam a estabilização ou a reversão de
danos físicos ou químicos adquiridos pelo documento ao longo do tempo e de seu uso, intervindo de modo a não
comprometer sua integridade e seu caráter histórico. (CASSARES, 2000, p.12).
33
Não estamos afirmando que as motivações estéticas foram as únicas consideradas no processo de restauração
do Formulário Médico. Pensamos, sim, que o manuscrito, pelas informações obtidas, necessitava realmente desta
atividade. Contudo, fomos levados a acreditar nessa hipótese através do estudo dos documentos presentes no
processo, ao comparar o tratamento recebido pelo manuscrito com o de outros livros que receberam tratamento
de conservação e não de restauração.
87
Não está especificada, também, a obrigatoriedade dos testes de solubilidade, que são
de extrema importância para a certificação de que nenhuma tinta de escrita venha a reagir nos
banhos, uma vez que uma centena de pigmentos e tintas de escritas são solúveis em água.
Por fim, não consta nenhuma informação quanto ao tipo de linha e a sua forma de
costura, a aplicação do cabeceado, nem em relação à encadernação.
34
O papel é um material constituído em maior parte por celulose. Um processo de deterioração desse material
consiste na despolimerização da celulose devido às reações de hidrólise ácida, tornando o papel quebradiço. Um
dos meios de controlar ou evitar esta deterioração na restauração de bens culturais é através de banhos aquosos
com Ca(OH)2. (SILVA; FIGUEIREDO JUNIOR, 2012. p.1)
35
Consiste em um procedimento mecânico para preencher as áreas com perdas do papel, deve-se calcular a
gramatura das folhas do livro e calcular a quantidade de fibra a ser utilizada para preencher a área da máquina
que será utilizada. (GIORDANO, 2008. p. 17)
88
Estes são alguns exemplos de informações técnicas que deveriam constar do projeto
básico para este tipo de serviço. A importância de um projeto básico bem executado está na
garantia de que a empresa contratada realizará as atividades conforme as especificações
técnicas. Esta é a melhor ferramenta para que a empresa contratada possa executar seus
serviços com segurança e, também, o melhor instrumento de gestão do processo pela
instituição.
Pelo cronograma de trabalho notamos que o prazo para a execução dos serviços foi de
sete meses, considerando a restauração de treze obras raras, sendo quatro delas compostas por
dois volumes. O Formulário Médico foi restaurado na primeira etapa, juntamente com outros
quatro livros, no período de dois meses, o que nos parece insuficiente para a execução das
atividades de forma eficiente36.
Por conta do processo de análise, tivemos acesso aos restauradores responsáveis pelo
tratamento e fomos informados que a empresa que executou a restauração não existe mais.
Solicitamos a busca por informações remanescentes e fomos orientados a procurar por
eventuais documentos ou registros fotográficos. Um dos restauradores informou ter sido
responsável pela encadernação, mas, infelizmente, não se lembrava do aspecto do manuscrito
para nos relatar. Pediu então que entrássemos em contato com um segundo técnico, que talvez
pudesse apresentar algum documento referente às atividades aplicadas no processo. Entramos
em contato com a restauradora em questão por e-mail e, após algum tempo, recebemos a
resposta de que não havia nenhum documento ou registro fotográfico do livro, anterior ao
processo de restauro. Assim como o primeiro restaurador, informou não se lembrar dos
aspectos estéticos do manuscrito.
36
Os processos de restauração são demorados, requerendo bastante atenção na aplicação de cada atividade e, de
acordo com nossa experiência, consideramos os prazos fixados para a restauração do Formulário Médico, curtos.
89
Além da análise das questões técnicas, existem uma série de facetas com relação à
representatividade do manuscrito enquanto repositório informacional, que também não foram
especificadas.
Os modelos das fichas podem variar de acordo com as características mais comuns
das obras tratadas em uma instituição ou ateliê, ou do estilo profissional. O
importante é que as informações sejam registradas. Durante todo o processo, esta
documentação acompanhará a obra e suas informações serão constantemente
complementadas.
Após a documentação, faz-se a análise dos procedimentos mais adequados para o
tratamento. No caso de livros, as situações podem variar de acordo com o estado de
conservação em que a obra se encontra e as intervenções podem ser mais ou menos
invasivas. Por isso, os próximos procedimentos que serão descritos nem sempre são
comuns a todas obras. (GIORDANO, 2008. p. 12)
Posso tirar uma amostra microscópica dessas fibras, e nós podemos analisá-las e,
talvez, aprender o que causou essa mancha; minha primeira hipótese seria vinho.
Mas uma análise completa poderia fornecer pistas de onde o livro estava quando
aconteceu isso. E, se não formos capazes de desvendar isso agora, talvez daqui a
cinquenta ou quinhentos anos, quando as técnicas de laboratório estiverem mais
avançadas, meu colega no futuro o fará. Mas se eu apagar quimicamente essa
mancha – o tal “dano” -, perderíamos a chance de conhecer o fato para sempre.
(BROOKS, 2008. p.26)
através dos anos? Não sabemos, pois nenhum tipo de marca, com exceção do carimbo, foi
preservada.
O manuscrito deveria estar com elevado nível de sujidade, motivo pelo qual no projeto
básico foi solicitada a higienização. A costura, provavelmente, estava solta, conforme
consultas feitas a servidores da biblioteca, fato reafirmado pela costura atual, que é totalmente
nova. As folhas apresentavam perda de suporte, registro e ataque biológico. Devido às
características dos buracos, podemos afirmar que sofreu ataque de brocas38.
38
“A broca é um inseto da Ordem Coleóptera, conhecida cientificamente pelos nomes Dorcatoma bibliophagus
e Tricorynus herbarius e possui quatro estágios de vida: ovo, larva, pupa ou crisálida e imago ou adulto, sendo
que o combate a uma das fases não garante a eliminação dos indivíduos em outras fases. O inseto mais comum
pertence à família Anobídeos que, em sua fase larvária, ataca livros e documentos, tornando-se um dos mais
nocivos insetos bibliófagos. Apresenta como característica principal a produção - pelas larvas - de túneis
arredondados nas folhas dos livros, que seguem um padrão em zigue-zague bem definido e visível”.
(CARDOSO, 2005, p.1)
93
Restaurar um livro ao que ele era quando foi feito é falta de respeito com sua
história. Penso que temos que aceitar um livro da maneira como o recebemos das
gerações passadas; e, até certo ponto, os danos e o desgaste refletem essa história.
Do modo como vejo, meu trabalho é torná-lo estável o suficiente para que possa ser
manuseado com segurança e estudado, só consertando o que for absolutamente
necessário. (BROOKS, 2008. p.26).
A restauração deve estar aliada a estudos sobre a história do objeto caso contrário, irá
produzir uma incoerência na tentativa de restaurar um determinado objeto, ao mesmo tempo
em que apaga sua história, conforme afirma Brandi:
4.1 Introdução
A literatura produzida pelos jesuítas é bastante rara – livros manuscritos com receitas
médicas com as mesmas configurações do Formulário Médico - salvo por poucos arquivos
preservados, como é o caso do Arquivo de Roma. Os manuscritos jesuíticos são
extremamente escassos e difíceis de serem encontrados, especialmente a literatura médica por
eles produzida, uma vez que se tornaram suportes para a guarda de fórmulas secretas e de
remédios de segredos, que alcançaram enorme fama e despertaram a cobiça, por isso, eram
guardados a sete chaves. Não é difícil encontrar na literatura especializada exemplos de
medicamentos que constavam das receitas dos inacianos que foram pirateados, adulterados ou
até mesmo vendidos. Por não manterem contato com os livros que continham as fórmulas
originais. Há também relatos na literatura de cartas endereçadas à Corte portuguesa com
solicitações da intervenção:
Pedra Cordial ou de Gaspar António. Esta tinha tamanha notoriedade e, por isso
grande valor econômico, que passou a ser falsificada ou imitada por boticários de
Goa, que a exportavam, principalmente, para o Reino. Tal prática lesava os jesuítas,
que possuíam a sua autêntica fórmula secreta e, portanto, o seu monopólio de
produção e comercialização. Obviamente que os irmãos da Companhia de Jesus
começaram a reclamar junto ao rei a respeito das falsificações, e por causa dessas
queixas o rei determinou em Carta Régia ao Governador da Índia que não fossem
mais exportadas as pedras cordiais que não fossem as verdadeiras. Justificava tal
medida dizendo que os boticários de fora da Ordem produziam as pedras sem
conhecer todos os ingredientes que as compunham e sem saber o exato modo de
prepará-las. (CALAINHO, 2011. p.7)
Seja como for, há indícios de que seus escritos desapareceram, certamente porque em
grande parte foram levados com eles na ocasião de sua expulsão do país. Contudo, alguns
permaneceram sob circunstâncias desconhecidas, talvez escondidos, para se manterem a
salvo. Por isso, poucos exemplos dessa literatura chegaram até os dias atuais e acredita-se
que outros poucos possam estar ainda guardados em bibliotecas ou arquivos espalhados pelo
Brasil, sem sequer terem sido descobertos.
95
Essa aura de mistério torna o Formulário Médico um objeto de pesquisa ainda mais
interessante. Quando nos deparamos com a inscrição como a registrada nele: “achado em uma
arca da Igreja de São Francisco de Curitiba”, não podemos deixar de pensar a trajetória desse
manuscrito, desde 1703 até os dias atuais.
Supomos que sua divulgação tenha ocorrido de forma gradativa ao longo dos anos,
mas verificamos que, a partir dos anos oitenta, passou a ser citado em publicações de
diferentes meios de comunicação. Uma das primeiras referências encontradas foi uma matéria
no Jornal do Brasil39, datada de oito de novembro de 1981. Nela, o autor (não informado),
descreve o interesse do governo, logo após a expulsão dos jesuítas, em tomar posse das
receitas médicas indicadas para a cura da impotência. O autor afirma, ainda, que o Formulário
Médico foi o único manuscrito a conter essas receitas.
39
Fundação Oswaldo Cruz tem biblioteca com obras raras de Margrave, Post e Barleu. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, n. 214, p.27, 8 nov., 1981. (1º Caderno).
96
Como ou por quem foi descoberto? Para onde foi levado depois de encontrado? Como
chegou à Fundação Oswaldo Cruz?
Muitas são as perguntas sem respostas com relação ao percurso do manuscrito antes de
sua inserção no acervo do Instituto Oswaldo Cruz. Portanto, para a realização dessa pesquisa,
iniciamos o processo de análise da sua trajetória, a partir de sua chegada na biblioteca.
Para traçar a história desse livro na coleção de obras raras, voltamos aos primórdios da
formação da biblioteca. Para isso, foi necessário analisar as publicações e documentos
produzidos por ex-funcionários, os documentos administrativos produzidos pela Biblioteca,
além dos trabalhos que contam a história da formação do acervo. Contamos, também, com a
colaboração de servidores em atividade e, também, de alguns aposentados.
Oswaldo Cruz, comprometido com seu ideal de construir ciência em alto nível,
investiu recursos financeiros e esforços para que a informação científica mais atualizada em
termos de saúde, na época, circulasse entre o corpo técnico da instituição. Para tal,
implementou uma série de atividades que visavam à formação e qualificação de sua equipe.
Quando rascunhou o esboço do Castelo Mourisco, hoje maior símbolo da Fundação, destinou
o terceiro andar para a construção de sua biblioteca, formada, inicialmente, por coleções de
periódicos estrangeiros e nacionais, acrescidos de uma pequena coleção existente antes de sua
chegada e de obras trazidas por ele no período de sua formação no Instituto Pasteur. A
biblioteca iniciou suas atividades em um galpão e, em 1909, passou a ocupar um dos espaços
mais privilegiados do castelo, destinado a receber a biblioteca e os laboratórios científicos,
após o andamento das obras iniciadas 1904 e concluídas em 1918. (SOUSA, 2006, p.61).
A biblioteca possui apenas um exemplar de livro de tombo, mas de acordo com seus
registros, fica clara a existências de outros. A biblioteca passou por uma série de mudanças ao
longo dos anos, incluindo alterações dos espaços de guarda. Passou por duas transferências
até que, em 1995, foi instalada, definitivamente, no prédio da Biblioteca de Ciências
Biomédicas. Segundo a equipe atual da biblioteca, os livros de tombo podem ter se perdido
nos processos de mudanças ou poderiam estar no acervo da Biblioteca de Ciências
Biomédicas, onde o único exemplar existente foi encontrado.
40
A nomenclatura “Livro do Tombo” tem a mesma origem que a expressão “Tombamento”. Originam-se do
Direito Português, onde a palavra tombar tem o sentido de registrar, inventariar, inscrever bens nos arquivos do
Reino. Tal inventário era inscrito em livro próprio, que era guardado na Torre do Tombo, a Torre Albarrã,
localizada no Castelo de São Jorge, em Lisboa, Portugal. (XAVIER, 2013 p.2).
98
Overmeer trabalhou na biblioteca até o ano de sua morte em 1944. Logo, nos
interessamos em verificar se houve continuidade dos seus registros. Encontramos todos os
livros de registro posteriores a Overmeer, produzidos por sua substituta, um ano após sua
morte. Como os livros de registros elaborados por Emília Bustamante iniciam com o registro
de número 21.777, concluímos, portanto, que esse número foi o último dos registros de
Overmeer. Da mesma forma, o registro do Formulário Médico não foi localizado, o que nos
levou a concluir que ele estaria nos primeiros livros de tombo, já desaparecidos.
O manuscrito foi consultado inúmeras vezes por mim e cada manuseio objetivou uma
determinada intenção. Por vezes, avaliamos a sua estrutura física, em outras, o seu estado de
conservação e, por fim, a descrição do seu conteúdo. Em uma das últimas consultas, após
pensarmos que haviam se esgotado todas as possibilidades de encontrar algum novo
elemento, nos deparamos com um carimbo, sempre visto, contudo, nunca percebido. O
carimbo está presente nas três páginas inicias. Dois deles estão esmaecidos, provavelmente,
resultado do processo de restauração, uma vez que a tinta é solúvel em água. O terceiro, que
está um pouco mais legível, permitiu a sua leitura: Oliveira Catramby.
41
José Antunes Rodrigues de Oliveira Catramby nasceu em 3 de janeiro de 1828 na cidade de Braga, Portugal.
Oficial da marinha portuguesa, chegou ao Brasil em 1849 e naturalizou-se brasileiro em 1851. Trabalhou com
Rui Barbosa no inventário da partilha dos bens da família imperial, por ocasião da proclamação da República.
Catramby foi também um dos fundadores do Hospital D. Luiz I, da Real Sociedade Beneficente Portuguesa do
Pará e da Companhia de Navegação Fluvial de Marajó. Oficial da Ordem da Rosa foi tesoureiro da Sociedade de
Geografia, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, procurador do Duque de Saxe e dos príncipes
de Saxe. (Fundação Casa de Rui Barbosa).
100
A partir das informações a respeito das epidemias e considerando que nessa época o
Instituto Oswaldo Cruz já era a grande referência no tratamento das doenças tropicais,
achamos possível que Joaquim Catramby possa ter mantido algum tipo de relação profissional
com Oswaldo Cruz, podendo vir a ser o “Oliveira Catramby” que encontramos carimbado no
Formulário Médico.
A partir daí, a pesquisa foi direcionada para encontrar alguma relação entre Oswaldo
Cruz e Joaquim Oliveira Catramby.
A partir daí, nos arquivos da Casa de Oswaldo Cruz, foi encontrado um dossiê
chamado Madeira-Mamoré. Uma vez que o fundo Oswaldo Cruz é classificado em séries
compostas por centenas de documentos, foram criados parâmetros para balizar a presente
pesquisa. Adotou-se um marco temporal entre 1910 e 1913, abrangendo o ano da passagem de
Oswaldo Cruz pela construção da estrada de ferro, até um ano após sua construção. Dentro do
fundo, buscamos as seguintes séries: correspondências, documentos complementares e
documentos pessoais.
Guiados pela certeza de que a conexão entre Oswaldo Cruz e a importante e respeitada
família Oliveira Catramby não seria uma coincidência, levantou-se a hipótese de que Joaquim
Catramby pudesse ter presenteado Oswaldo Cruz com o manuscrito, como forma de
agradecimento pelos serviços médicos prestados aos trabalhadores da Ferrovia. Para
direcionar a busca, passamos a procurar alguma carta de doação.
O carimbo com a identificação da família Catramby era o maior indício dessa ligação.
Contudo, a existência de um documento que corroborasse essa ideia seria importante para que
pudéssemos sair do campo das especulações.
Não satisfeitos com os insucessos das pesquisas, optamos por ampliar a busca, agora
voltada para a família Catramby. Desenhamos como estratégia a localização de descendentes
que pudessem nos dar informações. Procuramos, também, a coleção de possíveis livros
pertencentes a Joaquim, com o intuito de encontrar o mesmo carimbo impresso no Formulário
Médico. Afinal, se esse fosse um hábito do Joaquim, certamente outros livros teriam a mesma
marca, cuja função era a de registrar a propriedade.
Buscamos nas redes sociais pessoas com o sobrenome Catramby e enviamos a todas
elas uma pequena apresentação de nossa pesquisa. Foram obtidas duas respostas. Uma pessoa
chamada Pedro Catramby informou acreditar ser descendente da família e nos indicou sua
mãe para maiores esclarecimentos. A outra resposta veio de Cyro Catramby, afirmando ser
bisneto de Joaquim Catramby, da Madereira Mamoré. Este contato também nos indicou sua
mãe, Cecília Catramby, como sendo a pessoa mais indicada para fornecer informações sobre o
seu bisavô. Segundo ele, sua mãe - neta de Joaquim Catramby - mantém a guarda de
documentos relacionados à história da família, entre eles, documentos, livros e obras de arte.
Por sorte, por ocasião das festas de final de ano, Cecília Catramby, que reside no Distrito
Federal, estava no Rio de Janeiro, e pudemos convidá-la para conhecer pessoalmente a
Fiocruz, a pesquisa e o manuscrito.
102
Ainda na entrevista, Cecília nos informou que, tanto seu avô, quanto seu bisavô eram
grandes colecionadores de obras de arte e tinham por hábito a doação. De acordo com ela,
esta foi uma atividade recorrente e doavam especialmente para amigos. Citou, como exemplo,
as doações feitas pela família Oliveira Catramby de móveis e objetos pertencentes à Família
Imperial, para que fossem incorporados ao acervo do Museu Imperial, em Petrópolis.
Como a Família Catramby não possui mais a biblioteca que pertencia ao seu bisavô -
e posteriormente ao seu avô, Joaquim Catramby -, mesmo tendo acesso a informações
preciosas, não conseguimos identificar a existência de outros livros para que pudéssemos
confrontar os carimbos e, assim, nos auxiliar diretamente em nossa pesquisa.
Ainda de acordo com os relatos da Sra. Cecília, havia uma relação entre seu avó e
Oswaldo Cruz que, segundo ela, estiveram juntos em diferentes ocasiões. Contou-nos que
havia uma estratégia para medicar os trabalhadores, já que grande parte deles se recusava a
aceitar a medicação. Portanto, antes de receber o pagamento pelos serviços, cada trabalhador
era obrigado a se medicar com os remédios ministrados por Oswaldo Cruz. Essas informações
reforçaram a suspeita de que o manuscrito teria sido um presente dado por Joaquim a
Oswaldo e confirmaram, ainda mais, a atuação de Oswaldo Cruz no processo de construção
da ferrovia.
103
Após se inteirar um pouco mais sobre a pesquisa, Cecília Catramby sugeriu que o
manuscrito teria pertencido ao seu bisavô, o colecionador de obras de arte e bibliófilo José
Antunes Rodrigues de Oliveria Catramby. Ela achou possível que o manuscrito tenha sido
transferido para o seu avô, Joaquim Catramby, e que este, por sua vez, tenha presenteado
Oswaldo Cruz, em consideração aos serviços prestados na construção da estrada de ferro.
Independentemente de como a transmissão do manuscrito entre Joaquim Catramby e Oswaldo
Cruz possa ter ocorrido, e mesmo não possuindo documentos que comprovem como ele
chegou ao acervo da Fiocruz, somos levados a crer que essa seja a origem do manuscrito e a
forma como ele chegou até nós. Para possibilitar a continuidade da pesquisa, passamos a
considerar como premissa que essa foi a trajetória do Formulário Médico, até sua chegada à
biblioteca.
Portanto, voltamos o nosso olhar para a etapa seguinte: entre a entrada do manuscrito
no acervo do Instituto e o seu processamento técnico por Overmeer.
Já que não existem documentos que possam ajudar a construir a trajetória desse
período, sua análise também foi uma tarefa difícil. Não sabemos quando o livro passou a estar
disponível para consulta, quando se tornou destaque na coleção ou quando e como passou a
integrar o setor de Obras Raras, citado por Bustamante, em seu artigo.
Como não existem documentos que comprovem, não foi possível analisar a sua
inserção no setor de Obras Raras, mas certamente houve um processo de reconhecimento do
seu valor.
Neste período, o museu estava ligado à biblioteca, dirigida por Emilia Bustamante.
Funcionava no primeiro andar do Castelo e, entre outros objetos, expunha livros da Biblioteca
de Obras Raras. De acordo com nossa entrevistada, o funcionário Luiz Fernando, além de
trabalhar diretamente com as obras raras e conhecê-las muito bem, era responsável pelo
museu. Relatou, também, que os trabalhadores da biblioteca constantemente transitavam pelo
42
“Graduada em Educação Artística pela UFRJ em 1979 e em Museologia pela UFRJ em 1983, possui
especialização em Ciência das Artes pela Universidade Municipal de Artes de Kyoto, Japão (1990) e Mestrado
em Ensino de Biociências e Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz (2014). Atualmente, é Tecnologista em
Saúde Pública no Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos (LITEB), IOC-Fundação
Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Museologia e Educação Artística, com ênfase em Ciência das Artes,
atuando principalmente nos seguintes temas: ciência e arte, criatividade, educação não formal, museologia,
preservação de memória, preservação e conservação de acervos, ficção científica e gênero”. Texto retirado da
Plataforma Lattes.
105
museu, o que fazia com que os livros saíssem da biblioteca para serem expostos, sem nenhum
critério, previamente, determinado.
Ainda de acordo com Anunciata, o Formulário Médico foi um dos livros expostos no
museu por iniciativa de Luiz Fernando, que era a pessoa que determinava quais livros
deveriam ou não ser expostos. Ele o fazia de acordo com experiências baseadas em seu
conhecimento, talvez por ser o profissional mais próximo e conhecedor dos livros raros e
especiais.
Ela ainda sugeriu que procurássemos a reserva técnica do museu para identificar as
imagens que registraram as exposições. Entramos em contato com o servidor Pedro Paulo
Soares, chefe do serviço de Museologia e responsável pela reserva técnica, que informou
existir uma quantidade expressiva de slides, incluindo registros do interior do museu, dos
objetos e dos livros expostos nessa década. Disponibilizou o material para consulta, que não
pode ser realizada, por não estar organizado nem processado tecnicamente ou separado por
categorias. Além disso, não estão disponíveis equipamentos, tais como o conta fio, leitor de
slides ou projetor. Desta forma não foi possível realizar a pesquisa em tempo hábil.
pigmentos de forma tão irregular. Além disso, os danos por radiação são comuns a livros e
documentos expostos.
Revelou, ainda, que ela e Luiz Fernando - trabalhadores agora alocados formalmente
no museu e não mais na biblioteca -, por meio de uma reunião, decidiram que o Formulário
Médico deveria voltar para a biblioteca. Com isso o livro foi retirado da exposição
permanente e o devolvido à biblioteca de obras raras.
Segundo Anunciata, o acervo não era valorizado, principalmente por não haver
divulgação e, também, como deixa claro em suas palavras, porque “ninguém dava a mínima
para esse acervo”. A exposição de obras raras no museu era uma das poucas atividades
promovidas para divulgar as obras consideradas especiais, e essa escolha sempre foi uma
prerrogativa dos funcionários.
Analisando estas informações, percebe-se que, até a década de 1970, o manuscrito não
era muito conhecido e que, a partir deste período, sua divulgação começa a aumentar
gradativamente, principalmente com a sua inserção no catálogo corrente da Biblioteca de
Ciências Biomédicas. Percebemos que o movimento de divulgação do manuscrito se deu,
inicialmente, pelos esforços dos funcionários da biblioteca e, aos poucos, foi ganhando
visibilidade e se firmando enquanto uma importante fonte de informação histórica a respeito
da medicina dos jesuítas.
Uma das primeiras citações externas do manuscrito, como já informado, foi o artigo:
“Fundação Oswaldo Cruz tem Biblioteca com Obras Raras de Margrave, Post e Barleu”, há
107
um subtítulo chamado: “Receitas dos jesuítas”, no qual o autor fala sobre as características do
livro, além de citar duas de suas receitas, uma para impotência e a famosa receita da “Triaga
Brasílica”.
43
Congresso realizado em Berlim em setembro de 1907.
108
Em 1999 foi dado início ao Projeto Ciência, Natureza, Saúde: um olhar construído a
partir das Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos, para a divulgação e a disseminação da
coleção, considerado por Bortoletto e Sant’ Anna como sendo um:
44
A restauradora contratada na ocasião do Projeto não realizou intervenções de restauro em livros. Aplicou
atividades de conservação, tais como: higienização e acondicionamento. Na ocasião o Formulário Médico já
estava em adiantado estado de degradação.
109
foram expostos apenas os materiais considerados raros e especiais, com destaque para o
“Formulário Médico”, que se tornou extensamente conhecido e apreciado após sua
apresentação na exposição “A Ciência e a Saúde Pública”. A partir da leitura da apresentação
da exposição pudemos verificar que o Formulário Médico, agora tratado no âmbito de um
projeto museográfico bem delineado, foi relacionado às descobertas científicas e ao avanço
das ciências médicas:
TRABALHOS ACADÊMICOS
ARTIGOS CIENTÍFICOS
REPORTAGENS ON-LINE
Combate pela Preservação. Matéria publicada no site do Bom Dia Brasil, da Rede Globo.
Publicado em 19 de outubro de 2001. Matéria sem autoria. Disponível em: <
g1.globo.com/bomdiabrasil/0MUL829126-16020,00-
COMBATE+PELA+PRESERVACAO.html> acesso em: 10 no. 2015.
MELO, Káthia. G1 revela “tesouros” escondidos do Rio nos 450 anos da cidade. Publicada
em 25 de março de 2015. Disponível em < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-
anos/noticia/2015/03/g1-revela-tesouros-escondidos-do-rio-nos-450-anos-da-cidade.html >.
Acesso em: 10 nov. 2015.
MATÉRIA EM REVISTA
A cura pela natureza: Formulário Médico de 1703 descreve doenças e inclui receitas
indígenas. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n.118, jul., 2015.
(Seção Almanaque. p. 86).
PROGRAMAÇÃO EM EVENTOS
Informativo na Programação da Semana Fluminense do Patrimônio 2011. De 15 a 19 de
agosto. Para a chamada de uma exposição no salão de leitura da Biblioteca de Obras Raras.
CATÁLOGOS
Catálogo da Exposição: A ciência e a Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz, 2000
Catálogo de Obras Raras e Especiais da Biblioteca de Manguinhos. Fundação Oswaldo Cruz.
Projeto Overmeer 2005.
PANFLETOS
Panfleto de divulgação com a tradução de uma de suas receitas. Traduzido pela professora
Maria José Azevedo Santos. Professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade
de Coimbra. Circulação interna, 2013.
PALESTRAS
DIVULGAÇÃO EM SITES
Site do Instituto de Comunicação e Informação Cientifica e tecnológica em Saúde – ICICT.
Biblioteca de Manguinhos: Sobre a biblioteca de Obras Raras. Obras raras Assuerus
Overmeer. - Publicado em: 10/01/2008. Texto de autoria de André.
Site do Instituto de Comunicação e Informação Cientifica e Tecnológica em Saúde – ICICT.
Biblioteca de Manguinhos na seção: fonte de informação Obras Raras - Publicado em:
11/08/2009. Texto de autoria de Rafael Vinícius.
Publicação no site da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca: Fiocruz abriga acervo
na área de saúde pública. Publicado em 20 de abril de 2009.
Relatório de atividades do ICICT, 2011-2012 na seção informação e comunicação. Subseção
rede de bibliotecas da Fiocruz. Publicado no site do Instituto de comunicação e Informação
Cientifica e tecnológica em Saúde. Publicado em 2012.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desenhamos, a partir das investigações realizadas por conta deste estudo, duas grandes
linhas de análise do manuscrito. A primeira foi a sua classificação como uma obra rara,
portanto, ligada à sua materialidade e ao seu conteúdo, fundamentada por meio das suas
características físicas e de constituição, representativas dos processos históricos que
atravessou. A segunda linha que trilhamos foi a da questão simbólica do manuscrito. Mais do
que um livro raro, fonte de informações históricas, percebemos que o manuscrito exerce uma
espécie de fascínio sobre quem o conhece, pois, ao longo dos anos, passou a ser um objeto de
celebração, distanciado das suas meras funções de livro, devido a uma forte carga de
representatividade.
O Formulário Médico recebeu a classificação de obra rara por possuir valor especial,
agregado a diferentes fatores, tais como a sua antiguidade e, em um segundo momento, por
sua ligação aos jesuítas. Independentemente das motivações, o importante é perceber o
tratamento especial dispensado ao livro, hoje tido como patrimônio cultural documental da
Fiocruz. E, como afirma Jeudy, o patrimônio está relacionado ao passado que precisa ser
perpetuado:
A ideia de patrimônio apresenta-se como uma evidência, pois assim como todo
indivíduo viveria mal sem memória, também uma coletividade precisa de uma
representação constante do seu passado. (JEUDY, 1990. p.6)
Com essa perspectiva, foi criado, na década de 1980 pela Biblioteca Nacional, o Plano
Nacional de Restauração de Obras Raras - PLANOR, cujo conteúdo apresenta critérios de
raridade bibliográfica, de forma a orientar o estudo de obras raras e especiais em bibliotecas:
O PLANOR surgiu das pesquisas sobre livro raro e sua importância histórica,
empreendida por um grupo de jovens bibliotecárias guiadas pelo carisma e pela
competência da bibliotecária Cely de Souza Soares Pereira. (PINHEIRO, 1989, p.
XX).
De maneira bastante simplificada, pode-se dizer que livro raro é aquele difícil de
encontrar por ser muito antigo, ou por tratar-se de um exemplar manuscrito, ou
ainda por ter pertencido a uma personalidade de reconhecida projeção e influência
no país e mesmo fora dele (por exemplo: imperadores, reis, presidentes), ou
reconhecidamente importante para determinada área do conhecimento (física,
biologia, matemática e outras). (RODRIGUES, 2007. p.115).
As obras raras são assim definidas por possuírem um número restrito de exemplares,
muitos considerados únicos, outros com poucos exemplares conhecidos. Essas características
fazem com que este tipo de obra receba um tratamento diferenciado, devido à sua
impossibilidade de substituição, caso sejam perdidos. Pinheiro sistematizou os seguintes
critérios para a raridade bibliográfica:
1 limite histórico:
1.1 todo o período que caracteriza a produção artesanal de impressos (...) do século
XV, princípio da história da imprensa, até antes de 1801, marco do início da
produção industrial de livros.
1.2 todo o período que caracteriza a fase inicial da produção de impressos em
qualquer lugar – por exemplo, o século XIX -, quando foram publicados os
primeiros “incunábulos” brasileiros, com a criação da Imprensa Régia. (...)
2 aspectos bibliográficos dos volumes produzidos artesanalmente, independente da
época de publicação (...).
3 valor cultural:
3.1 edições limitadas e esgotadas, especiais e fac-similares, personalizadas e
numeradas, críticas, definitivas e diplomáticas (...).
3.2 edições de clássicos, assim considerados nas histórias das literaturas específicas
(...).
4 pesquisa bibliográfica:
4.1 nas fontes de informação bibliográficas (...);
4.2 nas fontes de informação comerciais, que vão avaliar, em espécie, cada unidade
bibliográfica – o preço passa a ser indicador de “raridade”.
5 característica do exemplar – referindo-se àqueles elementos acrescentados a
unidades bibliográficas em período posterior a sua publicação:
116
Nota-se que os critérios para raridade bibliográfica estão relacionados aos aspectos
físicos, sobretudo para livros antigos, por refletirem as formas manuais pelas quais foram
produzidos e por apresentar em sua constituição, elementos utilizados em outras épocas.
Como por exemplo, a utilização do papel de trapo, produzido até 1850, ou os livros escritos
em tinta ferrogálica, muito utilizada até o final do século XIX. Contudo, os assuntos dos quais
os livros tratam também são fundamentais para a sua classificação como obras raras, pois a
sua procura é o que os tornam desejados. A partir daí, nos perguntamos como um livro pode
ser considerado o mais importante de uma coleção e o seu conteúdo permanecer inédito?
Essa relação dos objetos que perdem sua função de utilidade e recebem a função de
significado e de representação é o que Pomian chama de semióforo, uma categoria de
pensamento criada pelo autor para explicar a capacidade que os objetos possuem de
representar o invisível.
Para ele, existe um processo mutuamente exclusivo, em que os objetos perdem sua
utilidade, ao mesmo tempo em que recebem significado: passam à posição de objeto
representativo; quanto mais significado ganham, menos utilidade têm. Os objetos, assim,
passam a representar o invisível, criando uma espécie de ponte entre dois mundos distintos.
Um visível e outro invisível, um com utilidade o outro com significado, que se revelam
através do olhar:
O semióforo desvela seu significado quando se expõe ao olhar. Tiram-se assim duas
conclusões: a primeira é que um semióforo acede a plenitude do seu ser semióforo
quando se torna uma peça de celebração; a segunda, mais importante, é que a
utilidade e o significado são reciprocamente exclusivos: quanto mais carga de
significado tem um objeto, menos utilidade tem, e vice versa. (POMIAN, 1984.
p.72)
A partir do momento em que o nosso objeto de estudo foi relacionado ao seu passado
jesuítico, o que tornou possível o seu entendimento, seja quanto aos processos médicos, ou
quanto as suas relações sociais e culturais, o manuscrito adquiriu um novo significado e
passou a ser um objeto de celebração do passado. Contudo a celebração do passado por meio
de significados atribuídos a um determinado objeto sofre variações, o que faz com que os
semióforos possam ser vistos de formas diferentes por determinados grupos. O
estabelecimento de laços com o invisível, (POMIAN, ANO, p. 73) assim como a procura do
significado, depende do observador, já que, por meio dele são estabelecidas as relações. Ou
seja, o significado de um semióforo para uns, pode não ser o mesmo para outros. Ainda no
caso do Formulário Médico, seu ser semióforo para nós é um e para outros observadores pode
e, certamente, será diferente.
Aqui cabe pontuar o papel da biblioteca enquanto mantenedora desse objeto carregado
de significado que representa o passado, pois, para Pomian, a posse de um semióforo eleva
seus proprietários a uma posição de destaque na hierarquia social:
Certamente, por este motivo a biblioteca se orgulhe tanto em contar com esse objeto
em sua coleção e talvez isso explique o fato do livro ser citado sempre que se fala da
Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz. Quando realizamos nossa pesquisa de identificação das
citações ao manuscrito, percebemos que as informações são voltadas para a posse do
manuscrito jesuítico, datado de 1703, pela biblioteca, em detrimento de seu conteúdo. Com
isso, ficou claro que, na verdade, o que se apresenta é o que ele representa em termos de
“status” para a instituição. A biblioteca expõe a obra para afirmar a sua importância enquanto
proprietária de um objeto tão significativo, um objeto de celebração do passado.
A Instituição sempre manteve uma posição ativa no que diz respeito à preservação de
seus acervos. Prova disso foi a criação da Casa de Oswaldo Cruz45, uma unidade técnico-
científica dedicada à preservação da memória institucional da FIOCRUZ. O Instituto de
Comunicação e Informação Científica e Tecnológica – ICICT, através da gestão de acervos
bibliográficos, realiza a gestão de preservação dos acervos da Rede de Bibliotecas da
FIOCRUZ. Para isso, possui um programa de gestão de preservação focado na conservação
preventiva de documentos e na conservação com a aplicação de pequenos reparos em livros
correntes. Contudo, processos de restauração são não aplicados pela gestão de acervos, o que
faz com que, eventualmente, possam ser solicitados estes serviços por meio de licitações ou
de projetos especiais. Nossa análise e estudo enfocou o processo de restauração do Formulário
Médico, que, apesar de necessário, deveria ter tido como resultado, além do livro restaurado,
um processo documental, detalhado, de todas as fases do projeto. Vale ressaltar que em
nossas pesquisas encontramos outros títulos restaurados, por outras empresas, onde o
processo foi realizado como desejado, constando nele todos os documentos do tratamento,
inclusive, os registros fotográficos. A partir desta pesquisa, a gestão de acervos bibliográficos,
em conjunto com a Biblioteca de Ciências Biomédicas, decidiu criar parâmetros, normas e
critérios para a realização de qualquer tipo de restauração em seus acervos.
Para nós, a realização dessa pesquisa possibilitou uma aproximação com a instituição,
na medida em que estudamos, sistematicamente, sua história, sua missão e sua
responsabilidade com a preservação de seu patrimônio. Foi igualmente gratificante realizá-la,
pela possibilidade de entrar em contato com servidores dedicados, que além de seu
comprometimento, doaram afeto na execução de suas atividades na Biblioteca de Obras Raras
da Fundação Oswaldo Cruz.
45
A casa de Oswaldo Cruz é dedicada à preservação da memória da Fiocruz e às atividades de pesquisa, ensino,
documentação e divulgação da história da saúde pública e das ciências biomédicas. Fonte: Casa de Oswaldo
Cruz. http://www.coc.fiocruz.br/index.php/institucional/quem-somos. Acessado em: 02 abril 2016.
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