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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE


HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

MARCELO DE LIMA DA SILVA

BIOGRAFIA DE UM LIVRO RARO: Manuscrito Jesuítico na Biblioteca de Oswaldo Cruz

Rio de Janeiro

2016
MARCELO DE LIMA DA SILVA

BIOGRAFIA DE UM LIVRO RARO: Manuscrito Jesuítico na Biblioteca de Oswaldo Cruz

Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional em


Bens Culturais e Projetos Sociais, do Programa de Pós-
Graduação em História, Política e Bens Culturais, da
Fundação Getúlio Vargas, como requisito para obtenção
do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. João Marcelo Ehlert Maia

Rio de Janeiro

2016
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Silva, Marcelo de Lima da


Biografia de um livro raro: manuscrito jesuítico na biblioteca de Oswaldo Cruz /
Marcelo de Lima da Silva. – 2016.
128 f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Pesquisa e Documentação de História


Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens
Culturais.
Orientador: João Marcelo Ehlert Maia.
Inclui bibliografia.

1. Patrimônio cultural – Proteção. 2. Manuscritos – Conservação e restauração.


3. Manuscritos – Preservação. 4. Livros raros – Conservação e restauração. 5.
Livros raros – Preservação. 6. Fundação Oswaldo Cruz. I. Maia, João Marcelo
Ehlert. II. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III.
Título.

CDD – 025.1716
Dedico esse trabalho à memória dos meus
avós: Ilidia Brito e Genésio Brito. E meu
amado pai: Milton Brito da Silva, falecidos
durante a realização do curso. Exemplos de
força, superação, e, acima de tudo, de muito
amor. As boas lembranças fizeram com que eu
seguisse em frente apesar de todo o sofrimento
e saudade.
AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente a José Maurício Sarmento pelo companheirismo e por me


proporcionar a realização de mais esse sonho.

À minha mãe, Francisca Rodrigues de Lima; à minha irmã e minha sobrinha, pelo amor e
compreensão nos momentos de ausência.

À professora Luciana Quillet Heymann, pela compreensão e pela motivação em um dos


momentos mais difíceis da minha vida: o falecimento dos meus avós e meu pai. Agradeço à
professora, também, pela indicação do meu orientador professor João Marcelo Ehlert Maia.

Ao meu orientador João Marcelo Ehlert Maia, pela paciência e pela atenção durante toda a
realização deste trabalho. Sempre disponível, exemplo de competência e profissionalismo.

A Mônica Garcia, minha chefe na Fundação Oswaldo Cruz, pelo incentivo e pela
compreensão das dificuldades na realização desse tipo de trabalho, o que fez com que
remarcássemos dezenas de reuniões.

Às bibliotecárias Angelina Pereira, Cláudia Araújo e Teresa Risi, pelas inúmeras solicitações
na elaboração de citações e referências bibliográficas e pelas buscas de material bibliográfico,
mesmo quando não solicitado. Amigas sempre disponíveis que ajudaram significativamente
na realização deste trabalho.

A Jeorgina Gentil, ex-chefe da Biblioteca de Obras Raras, pela amizade e disponibilidade para
inúmeras solicitações a respeito da história da Biblioteca de Obras Raras.

À equipe da Biblioteca de Obras Raras, em especial Maria Cláudia Santigado, atual chefe da
biblioteca, por disponibilizar a consulta do Formulário Médico sempre que solicitado, pelo
entusiasmo com a pesquisa e pelo recolhimento de informações indispensáveis, sem as quais
essa pesquisa não seria possível.

Às museólogas e colegas de trabalho, Anunciata Sawada e Márcia Portela, pelas informações


a respeito da história da Biblioteca de Obras Raras e do antigo museu.

À senhora Cecília Catramby, pela generosidade e pelo carinho, por ter aceitado o convite para
visitar a biblioteca para conhecer o manuscrito e nossa pesquisa e, também, por fornecer
informações importantes a respeito da relação de Oswaldo Cruz e seu avô Joaquim Catramby,
responsável pela construção da estrada de ferro Madeira Mamoré.

Aos colegas de classe pelo compartilhamento das angústias, pelo apoio e carinho.

A Karina Cox e Valeria Becker pelo competente trabalho de revisão, por sua disponibilidade
para atuar em horários nada convencionais e por todo o apoio e carinho.

À minha equipe da Seção de Preservação, pelo carinho, amizade e entusiasmo com a pesquisa
e pela competência na realização dos serviços na nossa seção, nos poucos momentos de minha
ausência.
RESUMO

O objeto desta pesquisa é um livro raro e especial, integrante da Biblioteca de Obras Raras da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Trata-se do Formulário Médico, escrito em 1703 por
jesuítas. Esse livro é um manuscrito, composto por 225 páginas, nas quais estão descritas
receitas médicas para a cura de diversas doenças, através da utilização da fauna e da flora dos
locais onde as missões jesuíticas se instalaram. Além de traçar uma biografia dessa obra,
investigando sua trajetória no acervo da Fiocruz, a pesquisa também analisou a forma como o
Formulário Médico foi tratado no acervo ao longo de décadas. Ao abordar também esse
aspecto, esperamos contribuir significativamente para as reflexões sobre a responsabilidade
das instituições de guarda, em geral, no que diz respeito à forma e à preservação de tais obras
para o futuro.

Palavras-chaves: obras raras; conservação; Fundação Oswaldo Cruz.

ABSTRACT

The objective of this study is a rare book which is part of the rare book collection of the
Fundação Oswaldo Cruz. The book, entitled Formulário Médico, was written in 1703 by
Jesuits. It is a manuscript, composed of 225 pages, that describes medical prescriptions for the
cure of various diseases through the use of flora and fauna found in locations where the
Jesuits had missions.

In addition to tracing the biography of this book, investigating its trajectory in the Fiocruz
collection, our research examined how Formulário Médico was handled in the collection
during decades. By dealing with this aspect, we hope to make significant contributions to the
realization of the importance and responsibility of institutions which have collections such as
this one regarding the appropriate manner of preserving works like this manuscript for the
future.

KEY-WORDS

Rare Book; Conservation; Fundação Oswaldo Cruz.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Ficha Catalográfica do Formulário Médico..............................................15

Figura 2 - Visão Geral do Manuscrito.......................................................................16

Figura 3 - Marca d’água.............................................................................................17

Figura 4 – Carimbo....................................................................................................18

Figura 5 - Visão geral do manuscrito encadernado e acondicionado em caixa para

Preservação.................................................................................................................21

Figura 6 - Detalhe da paginação.................................................................................22

Figura 7 - Nome da receita..........................................................................................23

Figura 8 - Receita em página inteira...........................................................................26

Figura 9 - Variação do tamanho das receitas..............................................................26

Figura 10 – Chagas......................................................................................................31

Figura 11 - Tratado terceiro........................................................................................34

Figura 12 - Triaga Brazilica........................................................................................36

Figura 13: Receyta ou grande Segredo para curar toda a corrupção de Erpez ou

gangrena e outras queixas ...........................................................................................41

Figura 14: O grande elixir estomacdal do Doutor Stoughton ou grande elixir

cordial para estamago preparado somente ...................................................................45

Figura 15: Estamago que doe........................................................................................48

Figura 16: Pingoz de Oleo de cupayba / Para falta antiga da regra..............................52

Figura 17: Dor de Dentez .............................................................................................55

Figura 18: Pedra de Andorinha e suas Virtudez .......................................................... 57

Figura 19: Fava de Santo Ignacio................................................................................. 61


Figura 20: Pedra de Viado Cordeal ..............................................................................65

Figura 21: Índice............................................................................................................68

Figura 22: Index ............................................................................................................71

Figura 23: Lista de Abreviação .....................................................................................74

Figura 24: Das Qualidades das Ervas em Geral.............................................................76


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................11

1. O Formulário Médico: características gerais.......................................................14

2. MANUSCRITO JESUÍTA: FORMULÁRIO MÉDICO.....................................28

2.1 Introdução..............................................................................................................28

2.2 Receitas ..................................................................................................................31

2.3 Síntese analítica das receitas.................................................................................79

3. RESTAURAÇÃO: ANÁLISE DA ALTERAÇÃO ESTRUTURAL E

ESTÉTICA DO MANUSCRITO...............................................................................85

3.1 Introdução..............................................................................................................85

3.2 Análise do processo de restauração......................................................................85

4. TRAJETÓRIA DO FORMULÁRIO MÉDICO NA FUNDAÇÃO

OSWALDO CRUZ......................................................................................................96

4.1 Introdução..............................................................................................................96

4.2 Uma nova pista da trajetória do manuscrito: como chegou à Fiocruz?.........100

4.3 A trajetória do manuscrito: após a chegada à Fiocruz.....................................105

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................116

REFERÊNCIAS.........................................................................................................124
11

APRESENTAÇÃO

“Sabe-se que no Brasil setecentista os jesuítas formavam importantes coleções de


cadernos manuscritos com receitas médicas. A maior parte dos manuscritos, porém,
se perdeu, à exceção, talvez, dos documentos conservados no Arquivo Romano da
Companhia de Jesus” (SANTOS, 2003. p. 33)

O Formulário Médico, objeto deste presente estudo, é um item da coleção de obras


raras e especiais da Biblioteca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A escolha do tema e a motivação para a pesquisa surgiram a partir do desenvolvimento


do meu trabalho como gestor de preservação da Seção de Preservação da Fiocruz.

Em visita à Biblioteca fui convidado a conhecer o manuscrito. A princípio, o que


chamou a atenção foram os seus elementos constitutivos: tipo de papel, pigmentos da escrita,
encadernação, entre outros elementos físicos. Num segundo momento, as formas de escrita, o
tipo de caligrafia, a beleza dos traços com a escrita corrente e bem elaborada. E, finalmente, a
curiosidade com relação ao seu conteúdo inédito aguçou o desejo de analisar o manuscrito por
acreditar que seu conteúdo pudesse elucidar o desenvolvimento das práticas médicas
desenvolvidas e aplicadas pelos inacianos, assim como as suas contribuições para o avanço
das artes médicas.

Sendo o único livro manuscrito da coleção, é considerado o mais importante em um


universo de três milhões de itens que compõem a rede de bibliotecas da Fiocruz. Essa
característica fez alguns questionamentos virem à tona: por que esse item é considerado o
mais importante dos acervos? Como passou a fazer parte da coleção? É considerado o mais
importante apenas por seus aspectos físicos, já que o conteúdo é desconhecido? O que o
Formulário Médico pode nos dizer a respeito da atuação dos jesuítas na América Portuguesa?
Será que o manuscrito poderia vir a se tornar o item mais importante da coleção, também por
seu conteúdo informacional?

Para contribuir com o nosso objetivo de investigar a trajetória do Formulário Médico desde a
sua chegada à Fundação Oswaldo Cruz, até o seu reconhecimento como objeto significativo e
diferenciado pela instituição, optamos por adotar as ideia de Igor Kopytoff, inspirados em seu
artigo “A biografia cultural das coisas”. Para Kopytoff a biografia de um objeto pode ser
focalizada em diferentes aspectos. Para este trabalho usaremos a perspectiva da biografia
cultural, que possibilitará entender a carreira do nosso objeto ao longo dos anos. Para
12

Kopytoff as “coisas” são sinalizadas como determinado tipo de “coisa” em um processo


cognitivo e cultural. Logo, as coisas sofrem mudanças circunstanciais e pelas funções que
assumem acabam se transformando também em produtos das ideias. Consequentemente, de
acordo com ele, olhando para as coisas pode-se saber das pessoas e das culturas.

Assim sendo, o autor elucida algumas questões que devem ser abordadas para a elaboração da
biografia de um objeto:

Far-se-iam perguntas similares às que se fazem às pessoas: Quais são, socialmente,


as possibilidades biográficas inerentes a esse “status”, e à época e à cultura, e como
se concretizam essas possibilidades? De onde vem a coisa, e quem a fabricou? Qual
a sua carreira até aqui, e qual é a carreira ideal para esse tipo de coisa, e quais são os
mercados culturais para elas? Como mudam os usos da coisa conforme ela fica mais
velha, e o que lhe acontece quando a sua utilidade chaga ao fim? (KOPYTOFF,
2088. p.92)

Para ele existe uma expectativa das pessoas para uma biografia de determinado objeto,
revelando aspectos de diferentes julgamentos. Com isso, a biografia de um objeto, revela
também a forma como os objetos são culturalmente definidos e utilizados, revelando dados
culturais importantes.

As atribuições de valores aos objetos, assim como suas representatividades sociais são
alteradas de acordo com a posição que as “coisas” ocupam e geram discussões a respeito dos
valores que atribuímos a elas. Principalmente quando os valores humanos atuam em
processos que geram apropriação dos objetos, ou ainda, quando refletimos como os homens
se relacionam com as coisas e como se relacionam entre si, por meio dos objetos.

A pesquisa está dividida em capítulos com a seguinte conceituação:

O primeiro capítulo descreve de forma detalhada nosso objeto, sobretudo os seus


aspectos físicos e constitutivos.

O segundo capítulo foi elaborado para complementar o primeiro com a inclusão da


descrição e da análise do conteúdo do Formulário Médico. Neste capítulo, elaboramos uma
descrição de receitas significativas do fazer médico dos jesuítas e, uma análise das receitas,
com base em literatura especializada. Utilizamos ainda o recurso visual, apresentando
imagens para que o leitor possa visualizar o nosso objeto de pesquisa.
13

No terceiro capítulo foi abordada a restauração do manuscrito. Analisamos o processo


sob o ponto de vista da interferência desta técnica na originalidade do objeto e nas marcas da
passagem do tempo.

No quarto capítulo descrevemos as formas pelas quais o manuscrito passou a integrar


o acervo da biblioteca, as suas formas de utilização ao longo dos anos e as suas representações
na instituição.

A presente pesquisa pretende contribuir para o enriquecimento das discussões a


respeito do lugar que o livro ocupa na sociedade, principalmente no âmbito dos livros raros.
Enfoca o objeto livro, mostrando que, ao contrário de fazerem parte de um grupo de objetos
estáticos aguardando para serem consultados em uma prateleira, são organismos vivos, com
suas próprias narrativas e vínculos afetivos.

Além dessa contribuição, este estudo pretende também se constituir em mais uma
fonte de pesquisa para a análise das práticas médicas exercidas pelos jesuítas, já que livros
com essa configuração são de difícil acesso.

Por fim, contem também, discussões a respeito da restauração de livros raros, já que
esta técnica pode alterar a configuração dos objetos originais, contribuindo ou não para a
perda das marcas que um livro antigo possa apresentar. Trata ainda da responsabilidade das
instituições sobre os processos aplicados nesse sentido da preservação.
14

1. O Formulário Médico: características gerais

Pioneira nas pesquisas experimentais em ciências biomédicas, a Fiocruz é um marco


na história das ciências no Brasil, lugar de fazer científico por excelência. Surgiu das mesmas
ideologias progressistas que, ao lado dos edifícios e das avenidas, construíram um novo Rio
de Janeiro nas gestões de Rodrigues Alves, presidente do País, e de Francisco Pereira Passos,
Prefeito da cidade, logo no início do século XX.

Segundo Rocha Lima1, Oswaldo Cruz possuía um ideal de cultivar ciência em alto
nível e amor pelo Instituto que criou e levava o seu nome.

Nomeado pelo presidente da república Diretor Geral de Saúde Pública, investiu na


formação de seus pesquisadores com uma série de medidas que visavam à circulação
informacional no seu corpo técnico. Para tal, quando rascunhou o esboço do Castelo
Mourisco, hoje maior símbolo da Fiocruz, destinou o terceiro andar para a construção de sua
biblioteca.

A rica coleção de obras raras possui uma documentação referente às Ciências


Biomédicas e à Saúde Pública que se inicia no século XVII e reúne um acervo com cerca de
40 mil exemplares, assim distribuídos: 16 mil exemplares de livros, 9 mil exemplares de teses
e 562 títulos de periódicos nacionais e estrangeiros, com aproximadamente 15 mil fascículos.
São obras que se estendem, cronologicamente, do século XVII ao XX e retratam
contribuições relevantes no âmbito das Ciências Biológicas, da Medicina, da História da
Ciência e da Saúde Pública.

Nosso objeto de pesquisa é parte desse acervo e foi escrito em 1703 por jesuítas, em
português. É composto por 225 páginas, nas quais estão descritas receitas médicas para a cura
de diversas doenças, através da utilização da fauna e da flora dos locais por onde as missões
jesuíticas se instalaram. Suas páginas de história são como provas do fazer médico no século
XVIII.

Ele atesta como a medicina foi aplicada por determinado grupo social e faz emergir
conhecimentos socioeconômicos e culturais de diferentes povos, uma vez que é testemunho
das relações sociais do passado. Sendo assim, sua descrição e análise são de interesse
científico e social.

1
LIMA, H. da Rocha. Com Oswaldo Cruz e Manguinhos. Impresso. Sem data e local de publicação. O impresso
pertence à Biblioteca de Obras Raras da FIOCRUZ.
15

Figura 1 - Ficha Catalográfica do Formulário Médico

Fonte: Catálogo antigo da Biblioteca de Ciências Biomédicas. Ficha elaborada na década de 1970.

O livro mede 36 centímetros de altura por vinte e seis de largura. Suas receitas
possuem certo padrão na apresentação: todas possuem um título, em sua maioria são
acrescidas com uma pequena introdução ou comentários a respeito da importância ou das
virtudes de determinado elemento. De título “Formulário Médico”, o manuscrito foi elaborado
em papel de trapo2 - tecnologia utilizada até o ano de 1850 -, fabricado manualmente com a
utilização de materiais que conferiam ao papel enorme resistência. Os papeis de trapo são
conhecidos pela qualidade de permanência.

Apesar de ser manuscrito, apresenta características de livros impressos no que diz


respeito à sua organização, composição estrutural em cadernos, costura e encadernação, como
retrata Chartier:

Um livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro
pós-Gutenberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais – as do codex. Tanto
um como o outro são objetos compostos de folhas dobradas um certo número de
vezes, o que determina o formato do livro e a sucessão dos cadernos. Estes cadernos
são montados, costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernação. A
distribuição do texto na superfície da página, os instrumentos que lhe permitem as
identificações (paginação, numerações), os índices e os sumários: tudo isto já existe
desde a época do manuscrito. Isso é herdado por Gutenberg e, depois dele, pelo livro
moderno. (CHARTIER, 1999. p. 7)

2
Decomposição dos trapos por maceração, batidos com pesadas marretas e limpas em córregos limpos, para
retirada das impurezas. Misturadas as fibras da pasta resultante da maceração, retirava-se o excesso de água
cobrindo com panos ou feltros. Secavam e eram reencolados.
16

Figura 2 - Visão Geral do Manuscrito

Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.

Ainda com relação ao papel do manuscrito, ao colocarmos suas folhas contra a luz
identificamos filigranas - mais conhecidas como marcas d’água - representadas por letras, em
dezenas delas.

As filigranas são importantes, pois por meio delas é possível identificar o fabricante, o
período e as formas de fabricação dos papeis, por testemunharem os processos pelos quais
foram gerados. Como neste exemplo:

As marcas GiorMagnani e AlMasso são comumente associadas em papéis utilizados


pela administração portuguesa, no final do século XVIII e ao longo de todo o século
XIX. Vale ressaltar que os Magnani, família de papeleiros da Péscia ainda em
atividade, produziram os mais antigos papéis do mundo, que atingiram reputação de
qualidade superior no século XVIII. (PINHEIRO, Ana Virgínia. Imagens na sombra:
análise das marcas d´água do manuscrito “A Conceição”, de Tomás António
Gonzaga. Em www.macua.org/coloquio/IMAGENS_NA_SOMBRA_Ana_Pinheiro
Acessado em: 10 de novembro de 2015).
17

Figura 3 - Marca d’água

Legenda: detalhe da marca d’água representada pela letra “B” em uma das páginas do manuscrito.
Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.

No caso do Formulário Médico, as marcas estão presentes em um terço das folhas,


aparecendo em diferentes pontos e se repetindo, sendo impossível a identificação do papeleiro.
Até porque, para identificarmos com precisão a origem das filigranas, seriam necessárias
informações das quais não dispomos, segundo Rodés:

A época histórica em que uma folha de papel com marca d’água foi manufaturada
somente pode ser determinada mediante o cruzamento de diversas determinações e de
uma série de observações sobre a classe de fibras vegetais e outros ingredientes
eventualmente usados na preparação da pasta com a qual a folha foi formada; a
composição do papel; o processo produtivo utilizado; as ferramentas e utensílios usados
na manufatura das folhas. (RODÉS, 1996. p. 15).

No manuscrito foi encontrado um carimbo, extremamente importante para a pesquisa, que


pensamos ser uma marca de propriedade, na qual é possível ler: “Oliveira Catramby”. O carimbo
atesta que o manuscrito, em algum momento, pertenceu a alguém cujo sobrenome foi
18

representado e marcado por sua utilização. Essa informação foi essencial para que pudéssemos
encontrar a ligação entre o manuscrito e Oswaldo Cruz, como veremos no capítulo quatro.

Figura 4 - Carimbo

Legenda: detalhe do carimbo onde se lê: Oliveira Catramby, presente em três páginas do manuscrito.
Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz

O Formulário foi escrito em tinta ferrogálica3, espécie de tinta utilizada até o início do
século XX, composta por uma mistura de elementos químicos que, contendo um elemento
ferroso em sua composição, resultava na cor viva, de cobre. Por outro lado, sua composição
possui um efeito degradante para o papel e causou a destruição de documentos, ao longo da
história:

A tinta ferrogálica é considerada a tinta de escrita mais usada na história ocidental


desde o Império Romano. Estudiosos em todas as áreas da ciência a utilizaram em
suas anotações pessoais e em documentos oficiais. Entretanto, devido a um excesso
de ferro encontrado em sua composição, na maioria das receitas históricas, esta tinta
degrada o papel levando a destruição dos documentos. (SOUZA, 2008. p. 1)

3
Esse tipo de tinta usa o sulfeto ferroso como fonte de ferro e o ácido tânico como fonte de tanino. Um grande
número de evidências apontam principalmente duas razões para a degradação: excesso de ferro usado nas
receitas e o meio ácido proveniente da reação de formação do pigmento. Esses dois componentes são essenciais
para o sistema de Fenton, que é responsável pela oxidação catalisada pelos íons de ferro. (SOUZA, 2008. p.1)
19

Seus cadernos foram organizados e costurados com um tipo de costura própria para
livros impressos, com utilização de tiras de couro formando nervuras (saliências em alto
relevo nas lombadas). O manuscrito não possui folha de rosto ou quaisquer outras
informações a respeito de sua autoria ou de seu título, além de uma inscrição (posterior à sua
fabricação), que diz: “Formulário Médico: achado em uma arca da Igreja de São Francisco de
Curitiba.” Por esse motivo, o manuscrito foi tratado tecnicamente sob a ótica da
biblioteconomia: classificado e catalogado com o título de Formulário Médico.

Encontramos uma folha com a seguinte informação: “tratado 3º de vários remédios


tirados dos apontamentos de R de B Ciebra”, o que nos leva a crer ser uma referência à
configuração do Formulário Médico, dividido em tratados, apesar de não termos encontrado
informações sobre os tratados 1º e 2º.

Este tipo de organização do conteúdo em tratados foi bastante comum nas


organizações das farmacopeias europeias do período, criadas com o objetivo de balizar a
utilização de substâncias e fórmulas para a preparação de medicamentos. A medicina luso-
brasileira no século XVII foi influenciada pela medicação Galena, especialmente a que se
refere às drogas vegetais descritas por Dioscórides e Galeno e, também, as dos boticários e
médicos seguidores daquele tipo de medicina. Logo, há uma familiaridade com as
farmacopeias editadas na Europa, as primeiras a criarem parâmetros para organização e
inventariação das drogas, conforme trata Pita e Pereira:

Em todas elas o denominador comum era, justamente, balizar as drogas a utilizar,


estabelecer parâmetros relativamente aos utensílios e operações farmacêuticas,
racionalizar a terapêutica e, ainda, como no caso português, ter um livro de estudo
para os futuros médicos e boticários. Deste modo, proporcionava-se uma melhoria
na prescrição médica, normalizava-se a prática farmacêutica em benefício da saúde
das populações. (PITA, 2005. p. 76)

O Formulário Médico, em sua estrutura e organização, índices, formas de preparo dos


medicamentos, indicações de tratamento e prescrições, segue as características das
farmacopeias pesquisadas. A indicação de “purgas”, “flambotobia”, por exemplo, está
presente em todas as farmacopeias consultadas. Contudo a influência da medicação galênica
foi o principal fator em comum entre elas e, segundo Abreu, foi uma das principais
características da medicina europeia no século XVIII.

Durante grande parte do século XVIII, a medicina luso-brasileira foi marcada pelas
influências da concepção hipocrática-galênica. A então denominada “patologia
humoral” concebia o corpo humano como um microcosmo por conter dentro de si as
qualidades dos quatro elementos da natureza [...] A influência do galenismo cabe
acrescentar ainda o papel da astrologia, da magia e das concepções sobrenaturais no
saber médico da época. (ABREU, 2007. p. 80)
20

A influência da literatura médica especializada também é identificada no manuscrito


através da referência ao médico Jose Curvo Semedo. De acordo com Santos (2003), Semedo
foi um dos médicos portugueses mais importantes e influentes do período, considerado um
dos primeiros médicos a introduzir a medicação química em Portugal. Publicou a “Poliantéia
Medicinal” em 1697, tendo quatro edições, a última em 1741. A obra é dividida em três
tratados, e possui 844 páginas.

O Tratado Primeiro da Poliantéia trata de vômitos e vomitórios; já os outros dois


tratados nos interessam bem mais, pois cuidam do antimônio e seus compostos
(Tratado Segundo) e da química e sua aplicação na confecção de remédios (Tratado
Terceiro). Vê-se aí claramente a influência dos iatroquímicos e das novas correntes
da química medicinal da época, apresentados lado a lado com a antiga teoria
farmacológica galênica. (SANTOS, 2003. p. 4)

Após estudar o manuscrito, verificamos que faltam as seguintes páginas: 1, 2, 60, 61,
62, 63, 73, 74, 76. Pela sequência das folhas não encontradas, somos levados a supor que os
assuntos que nelas constavam eram relacionados entre si, pois apontam para uma sequência
em determinados temas. Não foram arrancadas aleatoriamente, o que poderia sugerir perdas
não intencionais.

De acordo com a coordenadora da seção de obras raras da biblioteca da Fiocruz, Maria


Claudia Santiago, em reunião realizada no dia 23 de fevereiro de 2015, na biblioteca de
ciências biomédicas, o livro foi restaurado na década de 2000 e sua encadernação, na época
bastante degradada, foi substituída e hoje não há informações a respeito da encadernação
original.

Sua estrutura física foi recuperada através da restauração realizada no ano de 2000 e o
seu estado de conservação é considerado bom. Algumas características do livro sugerem que
ele tenha passado por banhos de clareamento. Seu suporte em papel foi reconstituído através
de reenfibragem mecânica, na qual os rasgos e os buracos nas folhas foram preenchidos com
um novo papel, com cor e gramatura compatível com o original. A sua costura foi restaurada
em linha de algodão e recebeu uma encadernação inteira, em tecido na cor palha, além de
uma caixa para preservação em papel alcalino.
21

Figura 5 - Visão geral do manuscrito encadernado e acondicionado em caixa para


preservação.

Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.

O documento apresenta a paginação original no canto superior direito de cada folha e


percebe-se que sua encadernação está parcialmente fora da ordem. Apesar de a equipe da
biblioteca sugerir que na restauração a ordem possa ter sido alterada, na análise concluímos
que o manuscrito já havia sido encadernado, parcialmente, fora da ordem antes desse
processo. Afirmamos isso porque nos processos de restauração de documentos encadernados,
normalmente os restauradores numeram as páginas a lápis, a fim de remontá-los exatamente
como na sua forma inicial e no Formulário Médico encontramos essa numeração a lápis, em
ordem crescente e correta do início ao fim, caracterizando o cuidado de remontá-lo na forma
como chegou ao processo de restauração.
22

Figura 6 - Detalhe da paginação

Legenda: até a página nove, com exceção das folhas faltantes, a paginação está correta, depois da página nove
a ordem pula para a página dezesseis.
Fonte: foto do autor, tirada na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.

No que diz respeito ao quesito da escrita, ela constitui um aspecto de relevância.


Percebemos a delicadeza dos traços escritos a partir da pena; letras elaboradas com enorme
exatidão e continuidade em todas as folhas, apesar da ausência de linhas. As primeiras letras
de cada página possuem uma diferenciação em relação às outras, escritas com formas bem
arredondadas e em maior tamanho.
23

Figura 7 - Nome da receita

Legenda: Detalhe do destaque no nome da receita. Primeira letra diferente das demais.
Fonte: Foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.

O documento apresenta dois índices. O primeiro inicia com o nome da substância ou


planta, seguido do número da página com a inscrição completa e forma de preparação do
medicamento. O segundo inicia pelo nome da doença, seguida do número da página com a
receita, o que indica uma preocupação para que os usuários pudessem encontrar mais
facilmente uma determinada receita ou fazer a pesquisa, de acordo com a doença ou com
medicamentos específicos.

O caráter orientador do manuscrito fica evidente ainda nas primeiras páginas, pela
presença de tabelas explicativas, que poderiam estar organizadas juntamente com os índices,
no final do volume. No entanto, por serem consideradas importantes para a obtenção dos
24

remédios de forma fiel à fórmula, são apresentadas logo no início do conteúdo do manuscrito.
Como exemplificado a seguir na primeira página do manuscrito que apresenta uma tabela de
abreviações:

Abreviações

A = ana = au par parya = igual a pezo, ou medida


dedoiz ou de muitozmedicamentoz
QS, SQ = quantũm sufficit = quanto for sufficiente )
QV= quantum
viz } quanto quizer, ou lhe
QP. = parecer
quantũplacet
B. M. ou M. } Balneo Maria: quehê cozer,
B. ou
Duplici vase } destilar hum vazo den[tro]
[ilegível ± 3 letras]
agua fervendo de outro. = - = - = - = - = - =
Tãobem se diz = duplici vase. = -
S. A = Secundumartem = conforme manda a arte
S. S.S. = Stractum Super Stractum
Vinumrectificato = Vinho destillado, e depoiz
tornado a destillar. Rectificar qualquer Licor he
depoiz de destillar, tornar a destillar. = . = . = . = . = .
=.=.
PH Legna= Nos medicamentos hê a
humidade
superflua de algum delles. . = . = . = . = . = . = . = . =
.=.=.

Fonte: Formulário Médico, 1703, p 2.

As páginas seguintes, até o início das receitas em ordem alfabética, fornecem


informações a respeito de como utilizar e compor os medicamentos, de acordo com as
especificidades e formas de extração das substâncias. A segunda página trata das qualidades
das ervas que deveriam ser utilizadas na forma quente e a página seguinte das ervas que
deveriam ser utilizadas na versão fria, seguidas da ervas temperadas e as apozimas4.

4
Não encontramos tradução para a palavra “apozimas”, porém, a partir da leitura das descrições, acreditamos ser
uma espécie de fórmula composta por, exatamente, seis componentes, utilizados nas formas quente ou fria,
conforme a indicação nas primeiras tabelas.
25

Apozimas

Apozimasgrandes.
Estas Apozimas Levãose os ingredientes muitas vezes diffirentes, conforme os
Males complicadoz dos enfermoz e as attençõez, que a elles se deve ter. Mas pore=
mos aqui algumas pera exemplar e ver quaizconvemmilhor ao doente

Fonte: Formulário Médico, 1703, p.4

A página cinco trata das conservas, a seis dos pós e a sete das pedras - a pedra hume,
por exemplo -, juntamente com os xaropes. As orientações alternam-se, ora acrescentando
novos produtos, ora voltando a medicamentos já apresentados, como é o caso dos xaropes que
aparecem em diferentes páginas.

As receitas, apresentadas em ordem alfabética no índice, começam apenas a partir da


página dezessete e essa ordem é aplicada apenas para a primeira letra, seguindo nessa lógica
até o final do conteúdo. Por exemplo, a primeira receita em ordem alfabética, conforme consta
no índice, é a da “azia”, seguida da fórmula para “asma” e “alporcas”.

A plasticidade da escrita não segue um padrão quanto às margens ou os recuos, o


número de parágrafos ou às linhas. Há receitas que começam no canto esquerdo, sem recuo,
ao passo que encontramos receitas que iniciam com recuos consideráveis. O livro possui
receitas extremamente simples, tanto nos aspectos de seus componentes, quanto na sua forma
de elaboração, muitas delas com apenas duas ou até mesmo uma linha. Entretanto, temos
também receitas minuciosamente descritas, com riquezas de detalhes nas formas de
preparação e utilização, chegando a ocupar até duas páginas.
26

Figura 8 - Receita em página inteira

Legenda: Detalhe de uma receita que ocupa uma folha por completo.
Fonte: foto tirada pelo autor, na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz

Figura 9 - Variação do tamanho das receitas

Legenda: Detalhe da variação no tamanho das receitas. Na página da esquerda, a segunda receita
possui quatro linhas. Na página da direita a última receita ocupa doze linhas.
Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz.
27

O Formulário Médico foi selecionado como objeto deste estudo por ser uma obra rara e
especial, considerado um dos livros mais importantes da Biblioteca.

Este livro apresenta aspectos representativos da medicina empírica do século XVIII e,


em sua análise, podem ser percebidos o acúmulo de conhecimento, o registro das observações
e experimentações na prática da medicina e, por fim, as relações entre as diferentes culturas
nos aspectos de cura do corpo. Não podemos esquecer que, no período mencionado, o
sobrenatural, o místico e o religioso eram recursos utilizados para explicar as origens das
doenças, conforme podemos entender pelo relato de Filgueiras (1999, p. 615) sobre o patamar
médico da época: “o conhecimento microscópico do organismo, de seu funcionamento a nível
celular, da etiologia, transmissão, desenvolvimento e cura das doenças estava na sua maior
parte ainda por vir”.

A seguir, continuaremos a análise, porém com foco no conteúdo de algumas receitas


deste formulário, selecionadas na tentativa de revelar as experiências e o processo de
construção da medicina dos jesuítas. É importante ressaltar que o conteúdo dessa dissertação
não pretende ser um estudo conclusivo desse processo, mas objetiva levantar algumas
questões iniciais para estabelecer um caminho para novas pesquisas envolvendo esse
documento precioso do acervo bibliográfico brasileiro.
28

Porque não somente os curam nas almas como pastores, pregando-lhes a doutrina duas vezes
por dia, confessando-os e administrando-lhes os sacramentos, enterrando os que morrem,
ajudando-os a bem morrer, mas os padres governam ainda no temporal e lhes dão ordem de
como hão de negociar suas roças e lavouras e remédio de vida e quando estão doentes, os
padres são seus médicos e enfermeiros e enfim se hão com eles como pais com filhos e tutores
com pupilos...

Padre Fernão Guerreiro5

2. MANUSCRITO JESUÍTA: FORMULÁRIO MÉDICO

2.1 Introdução
O Formulário Médico é um livro manuscrito representativo da arte médica
desenvolvida e aplicada pelos inacianos em suas atividades de catequese. É, também,
testemunho das trocas culturais estabelecidas pelos inacianos nas diferentes sociedades que
compuseram o Império Colonial Português.

Os jesuítas se deslocavam para os mais distantes continentes em busca da salvação das


almas, contribuindo para a expansão do cristianismo. Foram responsáveis, pela cura do corpo,
tanto que viajavam com literatura médica e seus preciosos manuscritos nas mesmas malas em
que levavam seus livros religiosos 6. Hábeis boticários, com avançados conhecimentos nas
artes médicas, farmacêuticas e botânicas, os jesuítas desenvolveram uma medicina decorrente
7
da medicação clássica galênica e criaram uma prática inovadora, a partir das
experimentações e incorporações de produtos de outras culturas, dos variados locais por onde
passavam em suas missões, fomentando uma medicina em constante modificação e adaptação.

5
GUERREIRO, Padre Fernão. In: Relação Anual das Coisas que Fizeram os Padres da Companhia de Jesus
nas suas Missões do Japão, China, Tidore, Ternate, Ambóino, Malaca, Pegu, Bengala, Maduré, Costa da
Pescaria, Manar, Ceilão, Travancor, Malabar, Sodomala, Goa, Salcete, Lahor, Diu, Etiópia a alta ou
Preste João, Monomotapa, Angola, Guiné, Serra Leoa, Cabo Verde e Brasil nos anos de 1600 a 1609 e do
processo da conversão e cristandade daquelas partes: tiradas das cartas que os missionários de lá
escreveram. Nova Edição Dirigida e Prefaciada por Artur Viegas. Tomo I. 1600 a 1603. Coimbra: Imprensa da
Universidade. Livro Quarto. Capítulo Primeiro, pp. 373-375, 1930.
6
Em inventários das fazendas jesuíticas, todos os consultados descrevem livros na relação de bens. Gesteira
(2005), em sua pesquisa “As fazendas jesuíticas em Campos dos Goitacazes”, apresenta o inventário de
sequestro de bens e, dentre os itens relacionados, está descrita uma coleção de livros médicos, entre os quais
destacamos “Atalaya da vida contra as hostilidades da morte” e “Polyanthea Medicinal”, ambos de autoria de
João Curvo Semedo e “Pharmacopea lusitana”, de autoria de D. Caetano de Santo Antônio.
7
Segundo Pita (2005), no seu estudo “A bela idade da primeira farmacopéia portuguesa: 300 anos”, a medicação
galênica - ou decorrente dela - tinha por base as drogas tradicionalmente conhecidas na Europa, essencialmente
drogas vegetais, descritas por Dioscórides e Galeno. Para Abreu (2007), em seu artigo “Ilustrações,
experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal no século XVIII”,
“a então denominada ‘patologia humoral’ concebia o corpo humano como um microcosmo, por conter dentro si
as qualidades dos quatro elementos da natureza. A partir desta teoria, a regulação das três partes principais do
corpo – fígado, coração e cérebro – dependia do equilíbrio entre os quatro humores primários – sangue, cólera,
fleuma e melancolia”. (ABREU, 2007. p. 80).
29

As farmacopeias, espécie de catálogo de receitas, eram um excelente suporte pelos


quais aprimoravam suas qualidades farmacêuticas que, por sua vez, serviram como base de
conhecimento teórico para a formulação de suas práticas.

Nas reduções brasileiras, os inacianos da Companhia de Jesus, se depararam com um


cenário diferente de tudo o que haviam conhecido. As doenças, sobre as quais nada sabiam,
dizimavam centenas de vidas anualmente. Os ameríndios não possuíam resistência
imunológica para as doenças trazidas pelos colonos e, assim, as enfermidades mais comuns e
de fácil tratamento em Portugal se transformavam em verdadeiras epidemias. Esse cenário
pode ser verificado em um relato, descrito em correspondência do Padre Jerônimo Porcel,
para o qual as doenças só poderiam ser manifestações satânicas.

Começava a enfermidade com uma intolerável dor de cabeça. Logo, torciam-se os


olhos e perturbava-se a razão. Estendia-se o mal até o pescoço e se tirava a
faculdade de tragar e falar. Depois saíam úlceras tão feias na garganta, que
infeccionavam com seu mau cheiro e tal grau o hálito, que o mesmo enfermo parecia
afogar-se entre insuportável sofrimento. Em seguida, se cobria todo o corpo com
uma erupção semelhante a lepra e nas entranhas se formavam uns vermes peludos de
aspecto asqueroso que causavam dores agudíssimas aos enfermos. Ao final, o rosto
inchava horrivelmente e arrebentava em chagas [...]. Para onde me voltava, via
senão chagas escuras, apostemas destilando pus e larvas, e em todas partes se me
apresentava o retrato da morte. (RESENDE, 2003. p. 233).

A partir dos problemas encontrados, os inacianos elaboraram processos próprios para o


desenvolvimento de suas atividades e viram na medicina um aliado no processo de angariar
almas. No entanto, devido à escassez de médicos, físicos ou barbeiros, os inacianos
assumiram os cuidados com o corpo, fazendo da medicina uma de suas atividades de maior
impacto. Para Resende (2003), as ações dos inacianos foram influenciadas pelas condições de
vida encontradas na colônia, que sempre produziam novas exigências de adaptação.

O contato com as populações indígenas acabou exigindo deles novas atitudes. Com
o tempo o destino dos missionários de batina preta passou a ser o de enfrentar as
doenças e trazer a cura como missão, agora não mais restrita à dimensão apenas
espiritual, mas também à corporal e terrena. Essa foi a sina da ordem que,
enfrentando as epidemias, as razias portuguesas e espanholas, a carestia, num
cenário estarrecedor, se viu obrigada a reelaborar suas práticas e intervenções sob o
risco de ser ofuscada pelo poder dos pajés. (RESENDE, 2003. p. 232).
30

As cartas e os escritos jesuíticos desempenharam papel indispensável na organização


da Companhia de Jesus, pois, por meio deles, a atuação da Ordem foi consolidada em todos
os continentes8.

Pela natureza das suas atividades, os jesuítas produziram variados documentos, tais
como cartas, relatórios e até mesmo livros, que hoje são ricas fontes de informação a respeito
de várias áreas de interesse para a História, conforme pode ser percebida na análise dos
escritos de Padre Antônio Vieira, feita pela autora Eliane Cristina Deckmann Fleck:

Desde que chegaram à América, os Jesuítas produziram documentos a respeito de


suas atividades de missionação. Teceram, nas cartas que enviavam a seus superiores
em Roma, relatos minuciosos sobre os avanços, os recursos e os problemas
enfrentados no contato com os indígenas e com sua conversão ao cristianismo.
Produziram, ainda, obras de caráter descritivo sobre a nova terra, seus habitantes e
também sobre a natureza americana. (FLECK, 2014. p. 670).

Um exemplar desta rica literatura de valor científico, histórico e cultural é justamente


o Formulário Médico.

8
“As cartas desempenhavam um papel fundamental na organização da Companhia de Jesus, pois, além do seu
caráter administrativo, faziam uma espécie de propaganda dos resultados da catequese ao redor do mundo,
servindo também para consolidar a identidade dos seus membros dispersos pelo globo. De acordo com sua
finalidade e com o nível de circulação, estavam divididas em duas categorias: as cartas principais e as hijuelas.
Nos anexos deviam ser tratados assuntos específicos da ordem, como a saúde dos padres, problemas como os
colonos, dificuldades de catequese, assuntos financeiros.” (GONÇALVES; PEREIRA, 2012. p.26).
31

2.2 Receitas
Figura 10 – Chagas

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


32

Transcrição:

Ou a ponta do cabo de huma penna. E se estiver o ardor forte estâ feito


o corimento: e quando não, continuarâ a ferver Advertindo que ha de de-
minuir tanto que fiquei em hum quartilho. Depoiz de frio coasse, e
guarda se em outro vidro para o uzo.
Modo de Applicar
Molharão hunz fioz na dita agua e os porão em simadas chagas, e
aSim estarão vinte e quatro horas. Passadas ellas se tirão e se poem ou-
troz outras 24 horas; e travesseiroz da mesma sorte. Então ja estarão
a chagas limpaz; e quando não se porão 4ª vez que forem necessarias
o que não serâ, se o cozimento for bem feito.
Observação
Sendo a chaga podre ou grangrenada, não se sente o medicamento
na 1ª vez; E na 2ª ja se sente e comesa a sair pegada nos fioz a carne
podre; e na 3ª ha de sentir grandez dorez por espaco de 3 horas lim-
paz ja as feridas e vermelhas, curão se então com o seguinte =
ReceitaHuma clara de ovo hum pouco de alvayade e sumo de maracujâ
mirim. Feito de tudo isto hum mixto se molharão huns fioz e lhe porão
nas chagas que em brevez diaz felismente as sara. Em falta de maracujâ
que em muitas partes o não hâ/se porâ nas chagaz pôz de pedra negra do
capão; ou poz de semente de mangue. A pedreneira para se poder moer
poem se primeiro no fogo e depoiz de bem quente lançasse em vinagre, e
moesse.
Outra
Para cavallos ou chagaz que sejão modernas partirão hum ou maiz li-
moez pello meyo, e os porão ao fogo em brazas com o partido para cima
lançandolhes primeiro e polverizando os com sal moido que os cubra. Depoiz
de meyo assados, irão pingando asim quentes sobre os cavallos, ou cha-
gaz, e depoiz os esfreguem com limão. Feito isto molharão huns fioz
em huma das metadez e os porão em sima da queixa asim de ma-
nhaã, como a tarde ou noite por espaço de 4 ou 6 dias; e no fim dellez
33

A fórmula para Chagas é a primeira receita escolhida. Ela é bastante completa em suas
indicações e informações complementares e contém uma curiosidade: a sua indicação é tanto
para uso nas pessoas quanto nos cavalos. O manuscrito não possui nenhuma outra receita para
a cura de qualquer outro tipo de animal. Mas para a cura das doenças relacionadas ao cavalo,
possui ainda outras duas receitas, demonstrando uma preocupação com a saúde deste animal,
que se constituía como único meio de transporte dos missionários.

A receita descreve os ingredientes que compõem a formulação e, em seguida, a forma


de preparo do remédio. Ensina, também, a maneira como o medicamento deverá ser aplicado
e a duração do tratamento. Além disso, explica a utilidade do remédio de acordo com o grau
de infecção da doença e indica a melhor forma de tratamento para as diferentes fases. No
final, o texto descreve, ainda, formas alternativas de utilização do medicamento, incluindo
novas substâncias, caso as primeiras não surtissem o efeito desejado. Nota-se nesta receita
uma característica específica. Ela apresenta uma descrição mais detalhada, por apresentar o
preparo e, também, por trazer opções de diversos ingredientes.

Estas várias formas de utilização e preparo, visando o processo final de cura, pode
demonstrar que o remédio, provavelmente, foi aplicado e experimentado em diversas fases da
doença e que sua atuação foi observada por longos períodos. Nota-se, também, a apresentação
de uma grande diversidade de substâncias que poderiam ser substituídas 9 , alcançando o
mesmo resultado. O que se deve, muito provavelmente, à dificuldade de acesso a algumas
ervas características de regiões específicas.

9
Em falta de maracujá [mirim] que em muitas partes o não hâ/se porá nas chagaz pôz de pedra negra do capão.
34

Figura 11 - Tratado terceiro

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


35

Transcrição:

Tratado 3º de vários remédios tirados dos apontamentos do R do B Ciebra.

Apesar das folhas referentes aos tratados 1º e 2º não terem sido localizadas, é possível
supor que o manuscrito foi dividido em tratados.

Como a única pista para analisar esse tratado é o autor citado em sua página foi
realizada uma pesquisa para identificar sua participação na medicina da época. Foi localizada
na Biblioteca Nacional de Portugal a seguinte referência: “narração cirúrgica de hum
carbúnculo maligno, que com felicidade se curou na cara, de Antônio Rodrigues Ciebra”.10

Baseando-se nesta informação e no fato de o documento conter mais de uma receita


para Carbúnculo, acreditamos que Antônio Rodrigues Ciebra possa ter sido uma referência
para o tratamento da doença, motivando o organizador do manuscrito a dedicar a ele um
tratado inteiro, baseado em seus comentários.

A partir daí, o tratado terceiro nos dá, também, a primeira indicação de que o
Formulário Médico é uma compilação e também aponta os cuidados que os Jesuítas
dispensavam à qualidade das suas receitas, atentando para as novas publicações e informações
que contribuíssem para o desenvolvimento das suas atividades.

10
CIEBRA, Antonio Rodrigues. Narração cirúrgica de hum carbúnculo maligno, que com felicidade se
curou na cara. Lisboa: Off. Francisco Luiz Ameno, 1760. Disponível em:
http://catalogo.bnportugal.pt/ipac20/ipac.jsp?session=14388S9568QW4.35008&menu=search&aspect=subtab11
&npp=20&ipp=20&spp=20&profile=bn&ri=&term=ciebra&index=.GW&aspect=subtab11&x=11&y=11#focus
36

Figura 12 - Triaga Brazilica

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


37

Transcrição:

Triaga Brazilica
Noticia do Antidoto ou Nova Triaga Brazilica, que se faz no
Colegio da Companhia de Jesus da Bahia/ e Pryo de Janeyro/ com
as virtudez e propriedades della já experimentadaz
de 15 annos para câ em varias enfermidadez.
A Triaga Brazilica hê hum Antidoto, ou Panacêa composta á imitação
da Triaga de Roma, e de Veneza, e de varias plantas, Raizes, ervas e drogas do
nosso Brazil, que a natureza dotou de tão excellentes virtudez, que cada huma
por si sô pode servir em lugar da Triaga da Europa, poiz com algumas das Ra-
izes, de que se compoem este Antidoto se curão os Brazis de qualquer peçonha e
mordedura de animaez venenozos como tambem de outras enfermidadez só
com mastigallas: e a experiencia tem mostrado de 15 annoz para câ que Se
não hê melhor que a triaga da Europa, ao menoz não lhe hê inferior em couza
alguma; porque hê efficassissimo contra todo o veneno/ excepto os correrios/
como hê solimão e outroz semelhantes causticoz, ainda que contra estes da-
do Logo o pezo de 1 ate 2//8az ajuda a oz expellir com vomitoz e depoiz com Reme-
dioz anodînos, que se costumão applicar a semelhantes venenos, faz a cura
maiz facil e maiz segura.
Serve contra qualquer bebida de veneno, ou ervas frias, e venenosas mor-
deduras de cobras e outroz animaes peçonhentoz tomando pella boca o pezo
de 1 ate 2//8az em vinho caldo ou em qualquer couza potavel; e isto de 4 em 4
Horaz, até se sentir aliviado o enfermo; untando lhe tãobem com ella os pul-
soz, nariz, e coração e ponha na mordedura a modo de emplasto desfeito em Vinho,
ou sumo de Limão.
Serve taobem para qualquer dor intrinseca, como de estomago, vomitoz, colica,
flatoz, e pontadaz, principalmente se forem cauzadas de frio: para Lom-
brigaz e qualquer humor corrupto, que se gera nos intestinos hê Remedio: e
para estancar camaras: para dores de Rins, bexigas, Arêa e pedra, porquanto
hê diuretica e faz ourinar; uzando amiudo couza de meia 8ª em aguas
apropriadas a estas doençaz.
Serve maiz para qualquer achaque da cabeça, cauzado de intemperança fria,
38

Paralezia, Epilepsiâ, Apoplexiâ Melancoliâ aplicando juntamente os Re-


medioz geraes, que se costumão. Hê boa para a putrifação do ar, contra as do-
enças epidemicas: nas febres malignas tem mostrado grande efficacia to-
mada Logo 1// 8ª em agua de cardo santo, ou outra qualquer agua cordeal,
e isto, 3 ou 4 vezes no dia. O mesmo faz nas bexigas, sarampão, ajudan-
do a natureza a expellillas para fora corregindo a mâ qualidade do
humor corrupto; e asim mesmo tomando a em tempo de Bexigaz,
ou de outraz doenças populares, e epidamicas, todas as menhãas em
pezo, em quantidade de mª// 8ª. Serve para a prezevacão Hos que uzarão
della nestes tempoz, ou não tiverão Bexigaz nem febres malignaz.

As triagas são receitas utilizadas por diversos grupos desde a antiguidade e ficaram
conhecidas pela sua eficácia contra muitas doenças e contra mordeduras de animais
venenosos, conforme indica Santos:

A maior parte dos autores, porém, considera que o termo origina-se do grego theriake
e do latim theriaca. A concepção inicial que se dá às triagas é a de antídoto contra a
mordida de serpentes e contra venenos em geral. Este sentido permeia sempre as
triagas. Posteriormente, entretanto, observa-se que estas receitas acabaram tornando-
se remédios universais (panaceias). (SANTOS, 2003. p. 44)

A Triaga contribuiu para a popularização de espécies naturais utilizadas nas práticas


médicas, não só no âmbito do Império Português, assim como em toda a Europa.

Já a Triaga Brasílica 11 foi inspirada nas triagas dos colégios de Roma e Veneza.
Desenvolvida no Colégio Jesuítico da Bahia 12 , com exceção de dois ingredientes, era
produzida com produtos nativos do Brasil. Foi um dos principais remédios secretos criados
pelos jesuítas, comercializado em outros continentes e sua presença no Formulário Médico
indica o compartilhamento de informações entre os inacianos.

11
Para Patricia Albano Maia, “A Triaga Brasílica era indicada para o tratamento de mordedura de qualquer
espécie de cobras, qualquer dor interna, estancar curso, epilepsia, apoplexia, melancolia, febres malignas,
bexigas, sarampo, histerias, doenças da madre”. (MAIA, 2011. p. 10).
12
“A Triaga Brasílica foi desenvolvida na Botica do Colégio da Bahia, com inspiração nas triagas produzidas
nas boticas dos colégios de Roma e de Veneza”. (MAIA, 2011, p.8)
39

Composta por 27 produtos que incluíam raízes e plantas, o medicamento ganhou fama
internacional e, segundo Maia, chegou a ser a segunda maior fonte de renda da Companhia de
Jesus.

Este era um medicamento polivalente com a função de curar doenças das mais
diferentes manifestações, formulado em imitação das triagas europeias, mas
enriquecido com as plantas do Brasil. Este segredo dos jesuítas, tão cobiçado,
constitui formulação típica do século XVIII, ou seja, de ser um remédio universal,
mas que já existia desde a antiguidade. (MAIA, 2011, p.8)

Antes da descrição da receita, o autor escreve uma página de propaganda do


medicamento, prescrevendo indicações. Informa a autoria da criação da fórmula sem dar
referência a alguém em especial, mas, sim, ao colégio da Companhia de Jesus da Bahia,
indicando, também, sua produção no colégio do Rio de Janeiro.

Noticia do Antidoto ou Nova Triaga Brazilica, que se faz no Colegio da Companhia


de Jesus da Bahia/ e Ryo de Janeyro/ com as virtudez e propriedades della já experimentadaz
de 15 annos para câ em varias enfermidadez. A Triaga Brazilica hê hum Antidoto, ou
Panacêa composta á imitação da Triaga de Roma, e de Veneza, e de varias plantas, raizes,
ervas e drogas do nosso Brazil, que a natureza dotou de tão excellentes virtudez, que cada
huma por si sô pode servir em lugar da Triaga da Europa, poiz com algumas das Raizes, de
que se compoem este Antidoto se curão os Brazis de qualquer peçonha emordedura de
animaez venenozos como tambem de outras enfermidadez só com mastigallas: e a experiencia
tem mostrado de 15 annoz para câ que Se não hê melhor que a triaga da Europa, ao menoz
não lhe hê inferior em couza alguma. 13

Interessante notar, também, nesse trecho acima transcrito, a indicação de “ervas e


drogas do nosso Brazil”, conceito usado para valorizar ainda mais o medicamento em sua
ação propagandista. Essa informação confirma, também, a troca de informações entre os
continentes, como afirma Calainho (2005, p.66): “levaram para a Europa o conhecimento das
virtudes terapêuticas de raízes, caules, folhas, cascas, sumos, polens, minerais e óleos, a
exemplo da quina, planta da região da Amazônia, que curava a malária e era conhecida como
mezinha dos padres da Companhia de Jesus.”

13
Parte da receita de Triaga Brasílica encontrada no Formulário Médico. Vale lembrar que a não normalização
da receita descrita é intencional, para que possa corresponder à localização das palavras no texto original.
40

O caráter propagandístico sugere que o medicamento poderia dividir o espaço de


comércio com outras triagas ou medicamentos. As receitas são exatamente as mesmas, com
pequenas variações na escrita, que provavelmente derivam de diferenças linguísticas por parte
de quem as copiou. Abaixo um exemplo desta questão, descrita por Patrícia Albano Maia14:

A Triaga Brasilica he um Antídoto ou Panacea composta, à imitação da Triaga de


Roma e de Veneza, de varias plantas, raízes, ervas e drogas do Brasil, que a
natureza dotou de tão excellentes virtudes, que cada huma por si só pode servir em
lugar da Triaga da Europa; pois com algumas raízes, de que se compoem este
Antídoto, se curao os Brazis de qualquer peçonha e mordedura de animais
venenosos, como também de varias enfermidades, só com mastiga-las. E a
experiência tem mostrado há tantos annos para cá que, se não he melhor que a
Triaga da Europa, ao menos não lhe he inferior em cousa alguma. (MAIA, 2011.
p.9)

É comum encontrarmos receitas precedidas por classificações do tipo:


“experimentada”, “atestada”, “muito utilizada”, “grande segredo” e “célebre”. As receitas
famosas ou de autoria de médicos, químicos ou padres conhecidos eram sempre
acompanhadas de algum comentário que servia como forma de propaganda. Essa forma de
propaganda era utilizada, principalmente, para os medicamentos chancelados como secretos.

As receitas de remédios secretos eram tratadas com cuidado, pois foram medicamentos
que exerceram enorme influência e muitos alcançaram fama e reconhecimento em todos os
continentes15. Os jesuítas disponibilizavam suas fórmulas secretas para seus irmãos e, com
isso, mantinham o controle do conhecimento e o monopólio de determinados remédios.

14
Receita da Triaga Brasílica presente na “Colleção de Várias Receitas”. Citada por Patrícia Albano Maia em
seu artigo “Práticas de cura no encontro de culturas: jesuítas e a circulação de receitas médicas”.
15
Vera Regina Beltrão Marques, no capítulo “Medicinas secretas: magia e ciência no Brasil setecentista”,
publicado no livro “Artes e ofício de curar no Brasil”, realiza um interessante estudo da história dos remédios
secretos. Para ela, os remédios secretos possuíam fórmulas singulares que pertenciam aos seus inventores; foram
remédios que alcançaram reconhecimento pelo poder de cura e elevava o status social do seu inventor. No lugar
das fórmulas eram propagados seus efeitos curativos. (MARQUES, 1999)
41

Figura 13 - Receyta de grande Segredo para curar toda a corrupção de Erpez ou Gangrena e
outras queixas

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


42

Transcrição:

Receyta ou grande Segredo para

curar toda a corrupção de Erpez

ou Gangrena, E outroas quei=


xas abaixo nomeadaz

Em hũa panella nova vidrada, que leve 10 L6 de agua ponhão

a ferver 2 maoz cheyas de folhas de tanchagem da mais vizioza e limpa


atê gastar 4 L6 todaz agua Para o que Se farâ hũa marca em hũa varit
nha, por onde der ou chegar agua de 6 libras, que estarâ na panella
com as dittas folhas: e então Se lançarão as outras 4 libras de agua

e vá ao fogo atê ficar na ditta medida. Então se coe. e lavada a mes=

ma panella lhe lancem dentro três libras da dita águas e farão


outra medida, como na primeira por onde der a agua das ditas tres libras
Então lhe lancem as outras tres libras da mesma agua e estando a=
Sim lhe lancem dentro da panella oitava e meya de solimão em pô

muito fino e ferverâ com fogo brando atê ficar na medida das tres libras

de agua e fica feito este grande Remedio que depoiz de frio se guardarâ
em vidro bem tapado e dura com a sua virtude 6 annos. e quanto mais
antiga for melhor obra. E querendo a fazer maiz forte, se lança na ditta
agua 2// oitavas de solimão na mesma forma dita aSima e querendoa maiz
branda / quando se curarem chagas de pouca Corrupção/ se destempera
na forma que quizerem, com agua do cozimento das folhas de tanchage.
Como se uza desta agua
Hê molhando fioz, e pannos na dita agua morna e applicando os
em sima das chagaz podres e curando cada 24 horas e quando os fios
se pegarem sem molharão para se tirarem, com a agua do dito cozimento, ou
de farellos de trigo E aSim se irâ Curando, Lavando sempre a chaga com=
alguma das ditas aguas mornas atê atalhar a corrupção, e aparecer
43

carne vermelha e depoiz se cure a chaga com a dita agua sendo branda
ou com os Remendioz que a cada hum parecer etc

Advertencias

1ªQue se não ponha esta agua em cima de osso que estiver descuberto,
porque o faz negro, e fica emcapaz, de encarnar carne sobre elle ------//
2ªQue esta agua não se ponha por nenhum modo em parte que chegue aos
olhos e em partes da cabeça sô se applicarâ com grande necessidade.

3º Que esta agua cura por modo de encantamento os cabrellos ou Erpez

miliares, pondo lhe pannos molhados nella não sendo muito branda

Algumas receitas de segredo, por sua importância, possuíam no título uma indicação
de utilização precedida da valorização do segredo, como é o caso da Receyta ou grande
Segredo para curar toda a corrupção de Erpez ou Gangrena e outras queixas.

Dando continuidade à questão do segredo, é importante ressaltar que ele estava


relacionado também a fatores sobrenaturais16, pois existia uma aura de misticismo em relação
aos remédios secretos. Revelar o segredo fazia com que, de alguma forma, o medicamento
não obtivesse sucesso na cura. Para os jesuítas, os remédios secretos estavam ligados ao poder
de Deus e, como tal, não deveriam ser revelados ou sua eficácia seria comprometida.

Possivelmente, vem daí a indicação de segredo no nome de algumas receitas, cujos


compartilhamentos eram acompanhados de uma série de cuidados como indicado no prólogo
da Colleção de Várias Receitas17, citado por Vera Regina Beltrão Marques, em seu livro “Artes e
ofício de curar no Brasil”. Nele, o autor adverte para a não publicação dos remédios de segredo:

[...] não andassem espalhados por todas as mãos; pois bem sabes, que revelados
estes, ainda que de uma botica para a outra, perdem toda estimação [...]. Pelo que
peço-te, que sejas muito acautelado e escrupuloso em não revelar algum destes
segredos; pois em consciência se não pode fazer, advertindo que são cousas essas
da religião, e não tuas. (MARQUES, 2003. p.179).

16
Com relação aos remédios secretos dos jesuítas, a autora justifica “O Jesuíta salientava a importância de manter
o segredo como algo da esfera do divino, da religião e não dos homens, algo que precisava manter-se em sigilo;
do contrário, os remédios perderiam sua “estimação”.” (MARQUES, 2003. p. 179).
17
“Trata-se de um documento manuscrito de 688 páginas numeradas, publicado em Roma no ano de 1766.
Apesar de possuir todas as licenças necessárias para a publicação, isto nunca aconteceu. Organizada em ordem
alfabética por nome de medicamento, é dedicada ao Coração Santíssimo de Jesus. Até o momento ainda não é
conhecido o nome do organizador da coleção”. (MAIA, 2011. p.1)
44

Figura 14 - O grande elixir estomacdal do Doutor Stoughton ou grande elixir cordial para o
estamago preparado somente

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


45

Transcrição:
O grande Elixir Estomacdal
Do Doutor Stoughton
Ou grande elixir Cordial para o estamago preparado Somente
por Seo filho Unico se pode achar como antes no antigo e original alma-
zem em Bartholameu Lane, junto da Bolza Real de Londres adonde
tem sido famozo Hâ tanto tempo, e se faz publico por authoridade de Sua Magestade
a Raynha Anna de glorioza memoria. Tem a dita hum cheyro muito agra-
davel e fino, ainda que hum pouco amargo ao gosto. Não hé purgativo, mas
Sim cordial o maiz excellente e deliciozo, e medecina bem conhecida e ma-
iz estimada por toda a Europa.
E porquanto tem havido pessoas, que pertendem fazer este Remedio. Huns com ti-
tulo de Elixir grande, outroz pello elixir do Doutor Stoughton, em enga-
no e grave prejuízo do publico, para que se conheça o que hê genuino e en
preparo se acharão nas minhas direçoens Sempre impresso hu Gual
em cujo crieulo Sobrão as palavras = Richarâ Stolighton in -
Bartholomevv Lane = e no meyo do mesmo = The only son = e a
boca de cada garrafinha se acharâ sellada com a mesma inscripção. assim
se pede a quem quizer ter o verdadeiro Elixir, e fazer uzo delle para sua
Saude, tome particular noticia desta advertência.
Deste Elixir se tomão 50 ou 60 goztaz pouco maiz ou menos, em hum
vazo de agua da fonte ou de châ ou de vinho branco com açucar, ou sem
elle huã hora antes de comer pella mayor parte

No estudo e descrição deste manuscrito, encontramos uma receita denominada O


grande Elixir Estomacal, na qual o organizador, além de citar o nome do autor do elixir,
apresenta um fator não identificado anteriormente: a falsificação de remédios. Verificamos na
literatura que, eventualmente, alguns jesuítas escreviam ao Rei de Portugal para relatar casos
de tentativa de falsificação de medicamentos ou de remédios que eram vendidos com o
mesmo nome dos remédios dos padres. (MARQUES, 2003)18.

18No trabalho de Vera Maria Beltrão Marques, “Medicinas secretas: magia e ciência no Brasil setecentista”, a
autora faz uma análise histórica a respeito da construção da medicina dos remédios secretos. Nele a autora trata
das falsificações e do reconhecimento das autorias dos remédios secretos.
46

Alguns medicamentos eram conhecidos pelo nome do seu inventor e vinham


acompanhados por propagandas, com o intuito de reforçar sua eficácia. A receita no
manuscrito revela estas duas características. Traz o nome do seu criador e, curiosamente,
informa que o remédio é produzido pelo filho do inventor da fórmula, o que indica o
falecimento do inventor, uma vez que a sua produção passou a ser realizada pelo seu sucessor.

A receita também informa o local onde o remédio poderia ser adquirido e, com isso,
identificamos a sua produção em Londres, reforçando as teses de compartilhamento de
conhecimento.

Na transcrição da receita, encontra-se clara a intenção de propaganda do remédio:


adonde tem sido famozo hâ tanto tempo, e se faz publico por authoridade de Sua Magestade a
Raynha Anna de glorioza memoria. E o mais interessante, denuncia uma falsificação da
fórmula: e porquanto tem havido pessoas, que pertendem fazer este remedio. Huns com titulo
de Elixir grande, outroz pello elixir do Doutor Stoughton, em engano e grave prejuízo do
publico. E mais, ainda ensina a identificar o verdadeiro elixir: para que se conheça o que hê
genuino e em preparo se acharão nas minhas direçoens sempre impresso hu Gual em cujo
crieulo sobrão as palavras Richarâ Stolighton in Bartholomevv Lane e no meyo do mesmo
The only son e a boca de cada garrafinha se acharâ sellada com a mesma inscripção.

Desta forma pode-se dizer que esta receita funciona, na verdade, mais como uma
advertência, do que como receita médica, pois o seu benefício é a indicação do uso correto do
remédio original e da sua forma de identificação.
47

Figura 15 - Estamago que doe

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


48

Transcrição:

Estamago que doe


O maiz velho galo, que ouver, ou galinha velha, posto a cozer com muito
sal, por huã noite inteira: comase pella menhaã e bebase o caldo quen-
te e logo cesserâ a dor.= Item Os troncoz daz couvez feitoz em cinza, piza-
dos com unto de porco, e poztoz sobre a dor.= Item ARuda pizada com a-
zeite, e manteiga ponhase sobre a dor.= Item Corno de veado queima-
do, digo limado, e dado a beber por espaço de 8 diaz.= Item Hum pan-
no quente, ou hua telha, ou tijolo quente, em hum panno ponhase so-
bre a dor.= Item Meter [mancha] em alguã vasilha com agua salgada, e se-
ja quente, quanto se puder sofrer.= Item Ingolir 5 graõz de pimenta da
India, e se for de huns brancoz, melhor será.= Item Ba[b]a branca en-
sopada em azeite bem quente, quanto se possa se portar.= Item Semente de
endro toztada pozta noz narizes, tira a dor do estamago, solucoz e vomi-
toz.= Item Tomem almecega, e huã clara de ovo, misturese com vinagre
e ponhase na boca do estamago:= Item cozer ortelaã com Raiz e folhaz,
e beber ã agua tira soluçoz.= Item Raiz de Artemija, e de lozna piza-
daz juntaz, misturese o sumo com mel, e desse a beber. Etc
49

A partir da leitura do manuscrito, é possível identificar elementos da arte médica


promovidos pelos inacianos com o desenvolvimento de suas atividades, também para os
aspectos interventivos. É sabido que, além do uso de plantas e ervas, alguns inacianos
exerciam as funções de cirurgiões, executavam pequenas cirurgias e a flamatobia 19 ,
procedimento técnico descrito na Medicina do século XVII e XVIII, que consistia na
realização de incisões que produziam sangramento no doente, para ajudar a aliviar os
sintomas. As sangrias foram utilizadas tanto pelos índios quanto pelos jesuítas. No caso dos
indígenas, as sangrias eram praticadas em seus rituais de cura20.

A partir da leitura das receitas, fica clara a recorrência com que as sangrias e ventosas
aparecem nas indicações de tratamento, o que nos faz pensar que tenha sido um recurso
bastante utilizado. Esta receita faz justamente referência à aplicação de sangrias nas veias,
ilustrando esta prática da época.

Percebemos nesta receita a incorporação dos elementos utilizados pelos índios nas
práticas curativas dos inacianos21. Encontramos referências a diversas substâncias, tais como a
mandioca, as raízes aromáticas, o urucum, a salsaparrilha, o cacau, os óleos de copaíba e de
andiroba, além de mel de pau e de castanhas, comprovando que os jesuítas observavam as
plantas e ervas utilizadas pelos ameríndios e as adaptavam em suas receitas.

Entre as substâncias incorporadas pelos Jesuítas, algumas obtiveram grande relevância


no tratamento de doenças, pois muitos dos remédios produzidos com as novas plantas foram
comercializados na Europa e, assim como a Triaga Brasílica, geraram lucros e
reconhecimento.

Os ameríndios contribuíram significativamente para a construção das artes médicas


desenvolvidas pelos inacianos. Foram responsáveis pela incorporação de plantas da América
Portuguesa que, por meio dos jesuítas, alcançaram enorme sucesso na Europa. Depois de
convertidos, os índios transmitiam aos inacianos seus conhecimentos sobre a produção de

19
Daniela Bueno Calainho, no texto “Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial”, fala das práticas das sangrias que
foram realizadas com a chegada dos primeiros jesuítas. “Anchieta tratou-os com sangrias e com extirpação das
partes do corpo já ‘corrompidas’ pela doença, procedimentos, por sinal, considerados como os mais eficazes pelo
médico Simão Pinheiro Mourão quando, em 1694, escreveu o Tratado único das bexigas e sarampo, na época o
trabalho mais completo e original sobre o assunto”. (CALAINHO, 2005. p. 70).
20
Para Edler “A terapêutica popular ministrada por índios, africanos e mestiços dominava amplamente a prática
curativa. O sopro e a sucção de forças ou espíritos malignos, o uso de amuletos e o emprego de palavras
mágicas, juntamente com a aplicação de poções, unguentos e garrafadas harmonizavam-se com o universo
espiritual sincrético”. (EDLER, 2010. p. 26).
21
Para Santos: “O processo de transmissão de conhecimentos das plantas medicinais aos jesuítas não deve ter
sido pontual e rápido, podendo ter ocorrido durante todo o século XVI e os próximos cento e cinquenta anos de
convívio com os brasilíndios.” (SANTOS, 2009. p. 33).
50

remédios e os princípios ativos das plantas e, da mesma forma, os padres passavam seus
conhecimentos aos índios, se beneficiando mutuamente.

Para ilustrar esse intercâmbio, encontramos passagens das receitas nas quais os
autores relacionam plantas aos índios: “mastiguese a raiz do alcassûz a que os Kiriris chamão
lacororodi”, “ou cozase a venca a que os Tapuyoz chmão Bansunhû”, “tomase erva Crista de
gallo A que os Kiriris chamarão ibehoyzhuaka”.

Também são várias as substâncias e plantas exclusivas do Brasil citadas em


publicações médicas europeias e farmacopeias, conforme relata Marques:

As farmacopeias foram importantes disseminadoras dos saberes sobre plantas


medicinais do ultramar em geral, e do Brasil em especial, haja vista as novas plantas
que se divulgavam em suas páginas. Considerando a circulação das mesmas pelo
Reino, perceber-se-á que esses saberes chegavam aos quatro continentes,
espraiando-se pelos domínios portugueses. (MARQUES, 2003. p. 4).
51

Figura 16 - Pingoz de Oleo de cupayba / Para falta antiga da regra

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


52

Transcrição:

Pingoz de Oleo de cupayba por espaço de 3 ou 4 diaz. = Item


ostraz mal assadas, e comidaz. = Item Cozimento de Manjerona be-
bido = Item Sumo de Mangerona com vinho. = Item Sangrar oz
pêz na veya da Madre, e lancarlhe juntamente ventozas da parte
de dentro. = Item As folhaz, e flor, da erva Santa Maria bebida em caxim-
bo. = Item Trez Raízes de pairar, que tem semilhança com bananei-
raz, e tem contaz pretaz assadaz, e comidaz he bom. Etc
Para falta antiga da Regra
Ventozas sarjadaz nas barrigaz das pernaz = Item Ajunça
cozida, e depoiz tomar com ella defumadouroz, cura a frieldade
e desopila, e tambem faz vir a Regra. = Item Hum aratel de fa-
rinha de trigo; hum aratel de açúcar branco: hum aRatel de gerge-
lim metido tudo em pannela nova e no forno, com a boca tapada.
Fação destez pôz papaz com manteiga de vaca, e demnaz a comer
â doente logo milhora = Item Artemija pozta na veya da madre
= Item Sumo de alfavaca misturado com vinho. = Item Semen-
te de Mostarda pizada muito bem com mel de Iatey, e dada A
beber em Agoa Morna. Etc
Para estancar a Regra demaziada
Esterco de cabraz pizado com cabeçaz de alhoz, e posto na-
boca da Madre22. = Item Coral pizado, e bebido em vinho, ou em-
agoa. = Item Alhoz porroz, pizados com folhaz, e do Sumo botar
ajuda pello vazo. = Item As Rans queimadaz, e piladaz
depoiz de feitaz em pô, lancem ou tragão ao pescoço que logo es-
tancarâ. E se quiserem ver isto por experiencia lancem estes

22
Aqui a palavra Madre é empregada no sentido de vulva, órgão genital feminino.
53

Outro produto recorrente nas publicações médicas do período, apresentado pelos


jesuítas e utilizado por muitas gerações pelos índios foi a Cabayba, ingrediente principal que
nomeia a receita ilustrada.

Além desta, o manuscrito ainda apresenta dezenas de receitas que utilizam a Copaíba
de diferentes formas e com variações de temperatura. Por esta grande recorrência pode-se,
inclusive, afirmar que ela seja uma das substâncias mais utilizadas pelos inacianos.

O Óleo de Copaíba também está presente em dezenas de farmacopeias europeias,


constituindo-se em uma das grandes contribuições dos povos indígenas para a Medicina
Jesuítica, reafirmando a troca de informações e a consequente divulgação das plantas
brasileiras mundo afora. Vera Regina B. Marques descreve o nome de plantas exclusivas do
Brasil divulgadas na Europa: “abutua, ananaz, andá, angelim ou andira, goma anime, cana de
açúcar, bálsamo de copaíba, inhames, cacau, cajú, canafístula, goiaba, jaborandi, genipapo,
manga, manacá, mangaba, mechoacão, orelha de onça, raiz de cipó, raiz de mil homens, raiz
de tambuape, salsaparrilha, e tantas outras.” (MARQUES, 2003. p. 2).
54

Figura 17 - Dor de Dentez

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


55

Transcrição:

Dor de dente
Deoz te salve, lua nova não te vi senão agora. Quando te comerem
loboz e serpentes, então me doerão os dentes. Em nome do Padre e do Filho,
e do Espirito Santo Amem
Para quem cair no mar ou no Rio se não afogar
O que estiver de fora e lhe dezeja acodir e não pode, comecarâ a Rezar o Salve
Rainha atê aquellas palavras = Esses teoz olhoz mizericordiozos a nós
volvei = e nunca a acabarâ, tornando ao principio, dando tempo a que
venha alguém a livrallo e entretanto não morrerâ [a]fogado. etc
Incendio
Quando houver algum incendio perguntarâ algum dos que o virem para
outro, olhando para o fogo = Quando foy dia de Natal. E respondendo
o outro o dia, em que for. etc pouco a pouco se irâ aplacando a ira
do fogo e não passarâ adiante. Deus super ona etc

Interessante perceber que a prática da Medicina Jesuítica não se constituiu apenas por
receitas com a utilização de plantas. Algumas formas de cura podem se aproximar dos rituais
indígenas, em especial com relação aos cânticos e aos usos de palavras milagrosas.

Veja-se esse exemplo para a “Dor de Dentez”. Enquanto em algumas receitas,


conforme já foi analisado, são descritas dezenas de formas para tratar a dor a partir do uso
plantas ou substâncias, esta receita apresenta uma espécie de cântico composto por uns
poucos versos, como o remédio para a cura.

Na mesma página ainda temos outras duas receitas- “Para quem cair no mar ou no Rio
se não se afogar” e “Incendio”, ambas com a mesma formulação, muito próximas da estética
das simpatias23.

23Para Edler, no Brasil colonial: “os remédios iam da oração à purga ou à sangria, passando pelos exorcismos,
fórmulas mágicas, talismãs, ervas, minerais e substâncias de origem animal. Para um mesmo fenômeno, os
pacientes invocavam explicações múltiplas (a intervenção divina não excluía a ação de causas naturais), e se
sentiam livres para chamar todo tipo de terapeutas.” (EDLER, 2010. p. 40).
56

Figura 18 - Pedra de Andorinha e suas Virtudez

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


57

Transcrição:

Pedra de Andorinha e suas Virtudez


Na cabeça da Andorinha se achão duas pedrinhas mui pequenas:
huma branca, e outra vermelha, cujas virtudez são as seguintez. Quem trouxer
consigo a pedra branca não serâ molesto de sede, e se a tiver na boca, sem-
pre a terâ fresca. Para fluxo de sangue pondoa ao pescoço, Logo estanca.
Para facilitar os partos ãs mulheres. Para cursos, provocaos a pedrinha
branca Lançada em agua algum tempo, e beber a dita agua: esteja huma
noite na agua. Tambem tira a gota e febre, se a tiver. E para outras
muitas doenças serve essa pedrinha trazendoa comsigo.
Ourinar
Quem não poder ourinar, tome tres palmitoz bem picadoz, e cozaoz sem
sal atê ficarem bem desfeitoz, e beba deste mingao huma tigella da India
cheya. Hê Remedio Singular.
Boubas
Darão ao enfremo 3 xaropez purgativoz de Ialapa, Sene, e Raiz de
avenca e acucar mascevado em tres dias e no 4º huma purga de Ialapa
/que são 2 vezez/ e no 5º ou 6º dia tomem a massa purgativa, que abaixo
se diz, ate se acabar. Descançando hum dia, no outro tomem outra pur-
ga de Ialapa.
Massa para o dito achaque ou para outro
qualquer de Galico, ou feridaz.
_ Huma 8ª de Salsa parrilha: 8/8ª de Sene: 4/8ª de Ialapa, tudo
feito em pô. Fação hum clarificado de meya Libra de acucar, e estando
58

“Pedra de Andorinha e suas Virtudez” é um exemplo de receita “médico-mágica”, na qual um


elemento físico recebe uma conotação mágica, capaz de curar. Ela faz referência a duas
“pedrinhas” encontradas na cabeça da andorinha, que pensamos ser uma proeminência
presente na cabeça da ave ou algum tipo de sinal típico da espécie. O aspecto importante a ser
analisado é a descrição da carga místico-religiosa, que faz referência à utilização dessas
“pedras” de diferentes formas, para a cura de diferentes males. A presença do aspecto místico
misturado ao religioso é tão marcante que, ao final da receita, o autor descreve que para a cura
de qualquer mal, basta estar de posse da “pedrinha trazendo a comsigo”, dando a elas uma
conotação de amuleto. A receita deixa claro ainda que existem duas “pedrinhas”, uma na cor
branca e outra vermelha. Contudo, apenas a branca possui função de utilidade, indicando o
motivo pelo qual o título aparece no singular.

Considerando esse aspecto místico, pode-se perceber uma nova relação de troca mais
específica, agora entre os jesuítas e pajés ou feiticeiros – forma com que os padres se referiam
aos pajés. Acredita-se que eles não utilizavam o termo pajés por não aceitarem a autoridade
que isso indicava. Assim sendo, os classificavam como feiticeiros.

Entre este gentio tupinambá há grandes feiticeiros... vivem em casa apartada cada
um por si, a qual é muito escura e tem a porta muito pequena, pela qual não ousa
entrar ninguém... nem de lhe tocar em coisa dela... A estes feiticeiros chamam os
tupinambás de pajés... [Quando os pajés] lhe dizem: “Vai que hás de morrer”, ao que
chamam “lançar a morte”...são tão bárbaros que se vão deitar nas redes pasmados,
sem quererem comer; e de pasmo se deixam morrer, sem haver quem lhes possa tirar
da cabeça que podem escapar do mandado dos feiticeiros... (SOARES, 1971. p.
274).

O que encontramos na literatura especializada foram descrições dos embates entre


jesuítas e pajés, considerando que os missionários dedicavam suas forças à destruição do
poder simbólico dos xamãs sobre as tribos24.

Encontramos, inclusive, o trecho de uma receita no próprio Formulário Médico, que


enfatiza esse embate, apresentando uma fórmula contra feitiços.

24
Resende, em seu capítulo do livro “Artes e ofícios de curar no Brasil”, reflete que: “para os padres, os pajés
personificavam o pecado capital do gentio porque eram a própria encarnação satânica. Por isso mesmo, padre
Duran ordenou a todos que se dedicassem com afinco a ‘destruir essa peste’. Esse tom imperativo tinha um
sentido bastante revelador: os ‘feiticeiros’ eram, pela natureza e papel que exerciam entre os guaranis, o esteio da
resistência indígena à presença jesuítica”. (RESENDE, 2003. p. 244).
59

Feiticeiro e feitiço. Quem quizer que o feiticero não continue neste oficio, e fique
incapaz e pifio dêlhe na testa com hum ovo bem choco de Sorte que lho aRebente:
Pôz de tatagyba meya atê huã oitava dados a beber em aguardente da te rra, Com a
qual vomitarâ tudo Repetindo varias vezes. E quando os vomi= tos Sejaõ
desmaziadoz os Atalharâ comendo huã pequena porção de massa de milho; ou
mastigar o mesmo milho, e engolindo. etc. (Formulário Médico, 1703. 93p.)

Por outro lado, encontramos também referências que deixam claro que a intenção dos
jesuítas, no primeiro momento, era a conversão e o batismo dos pajés25, já que, segundo eles,
a conversão de um deles significava a conversão de todos os outros.

Essa relação dúbia será um pouco mais explorada na descrição da próxima receita.

25
Resende (2003), em seu estudo no qual analisou correspondências trocadas entre os jesuítas, descreve a relação
entre os padres e os pajés. Em relatos detalhados, com as citações das cartas, a autora expõe a relação entre eles:
jesuítas e pajés, incluindo relatos de pajés convertidos que se tornaram fundamentais para o processo de batismo
de toda a tribo.
60

Figura 19 - Fava de Santo Ignacio

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


61

Transcrição:

Fava de Santo Ignacio


Regimento e virtudez de como se deve aplicar confor-
me a experiencia o tem mostrado nas excellentes
virtudez, de que aqui se faz menção: e na china hê
costume muito provavel a uzança da dita fa-
va, queate o do__ico lhe coztou muito a desco-
brir por meyo de hum grande feiticey-
ro as suas virtudez
1ª. Serve esta fava para mordedura de cobra, trazendo-se comsigo: e aproveitando
bebida em vinho ou aguahuma pouca della Relada para as suas mordeduras
2ª. Serve para não chegar a si nenhuma brucha, ou feiticeyra, trazendo consigo.
3ª. Serve a dita bebida contra os maleficioz de feitiçoz, ou embruchadoz, para fazer
Lançar pella boca, quando estejãojadadoz que para se prezervardellez
basta trazer comssigo sempre a ditta fava.
4ª. Serve para o mal contagiozo, e ar corrupto a que alguns chamão=Ruim Vento.
5ª. Serve, e tem efficaz virtude para Rebater, e tornar em si as pessoas de accidentez,
que procedem do Ar, a qual fava moida se dâ em vinho.
6ª. Serve para as febres ardentes e friozgrandez, a qual se applicamoida ou Relada
em vinho para as que são de frio: de quentura se administrão em agua.
7ª. Contra a tosse do estamagohêefficaz dada em vinho, ou agua conforme della pro-
ceder A cauza.
8ª. Hêutilissima para fazer que baixe efficazmente o menstroãs Mulheres dada em vi-
nhomoida, ou Relada: e tãobem se dã na mesma forma ãs mulheres, que estan-
do de parto, não podem parir.. e sempre que tomarão este Remedio se acharão
62

Livres do mal, quepadecião.


9ª. HêRemedio para as pessoas fleumaticaz que no tempo dos accidentez à tomarem
em vinho , ou agua as alliviarâ, fazendoas botar as fleumas, que muitas vezes lhe im-
pedem a Respiração.
10ª. Sehuma pessoa quizer saber conhecer a brucha, ou feiticeyra, traga na mão
a dita Fava, ou chegue com ella ã tocar ã pessoa sospeita, queella Logo fugi-
râ, e não consentirâ, que lhe toquem com ella.
11ª. Tambemhêefficaz tomada em vinho para os que padecem enfadozoscursoz
procedidoz de frio, e para os que são de quentura se darão em agua.
12ª. Aproveyta muito as dores de colica, para as quaes se tomarâ Relada em
vinho para frioz, e em agua para os que procedem de quentura.
13ª. Tem grande virtude para qualquer peçonha que se dêopella boca se com tempo
seaproveytarem da dita fava tomada Relada ou em pô em vinho.

Uma das receitas encontradas no Formulário Médico causou estranhamento, visto que
não havia sido identificada na literatura nenhuma relação de apropriação dos conhecimentos
transmitidos por pajés aos jesuítas. A apropriação de saberes dos ameríndios pelos inacianos -
e vice-versa - é percebida, mas nada se sabe a respeito da relação de transmissão de
conhecimentos entre os padres e feiticeiros.

Porém, essa disparidade fica menos evidente a partir da receita médica “Fava de Santo
Ignacio”, cuja leitura foi uma descoberta, por sugerir que as relações dos inacianos com os
feiticeiros poderia, em algum momento, ser de compartilhamento de conhecimentos.

A receita descreve um compartilhamento de informação entre um feiticeiro 26 e um


padre jesuíta. É interessante notar que os inacianos, ao incorporarem às receitas substâncias

26
Os jesuítas classificavam os pajés e xamãs como “filhos do demônio”; “representantes do mal”; embusteiros”;
“enganadores”. Contudo, a forma mais comum de serem tratados era por “feiticeiros”, como podemos observar
na carta de José de Anchieta em 1555: “os que fazem estas feitiçarias, que são muito apreciadas dos índios,
persuadem-lhes que em seu poder está a vida ou a morte; não ousam com tudo isto aparecer deante de nós
outros, porque descobrimos suas mentiras e maldades” (ANCHIETA, 1988, p. 83)
63

dos conhecimentos indígenas, não indicavam a autoria. Citavam apenas os nomes dos
produtos e uma breve descrição de suas virtudes.

No entanto, aqui aparece a referência a um “grande feiticeyro”, um fato que parece


inédito. Ainda na mesma descrição, outra informação relevante pode ser iluminada: “coztou
muito a descobrir por meyo de hum grande feiticeyro”, demonstrando que a receita pode não
ter sido apropriada indevidamente e, sim, transmitida com consentimento e pelo uso de
persuasão, através de motivações desconhecidas, mas que suscitam outras formas de relação
que não a de conflito.

Outra curiosidade é constar na receita o termo “brucha”, também, até então, não
identificado na literatura.

Mais curioso ainda é o fato de que a receita, ao mesmo tempo em que foi
compartilhada por um feiticeiro, possui em suas virtudes a qualidade de combater bruxas e
feiticeiros. Aqui se pode até imaginar que a receita teria sido compartilhada por um pajé
convertido. No entanto, se fosse esse o caso, porque haveria a necessidade de persuadi-lo,
uma vez que na receita está escrito que foi conseguida a “muito custo”?

Mais uma vez chega-se à conclusão de que estas relações eram pautadas pela
dubiedade.
64

Figura 20 - Pedra de viado cordeal

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


65

Transcrição:

Pedra de viado= Cordeal.


Tem as mesmas virtudez, que aponta o curvo na sua Polianthêa=ma Xarope
paramelancolicoz: Dor de estamagoSuppressão de ourinas: Dor de
cólica: Febres malignas: Contra veneno: LetimoCordeal para tu-
do. Alegra o coração. E para muitazmaizmolestias, principalmen-
te de mulheres. Raspasehuma migalha, e bebesse em agua mor-
na. Tomase em qualquer tempo.

Na pesquisa, buscava-se também um exemplo de receita que pudesse ser relacionada a


publicações médicas, para evidenciar a importância da literatura especializada nas atividades
dos jesuítas e possibilitar o entendimento da forma como os inacianos construíram a sua
própria literatura médica. Pedra de viado cordeal foi a selecionada para tal.

Observa-se uma receita curta, composta por seis linhas, com breve descrição. No
entanto, duas referências chamam a atenção: “Curvo” e “Polianthêa”.

Após pesquisas, descobrimos que Curvo é o sobrenome de João Curvo Semedo 27 ,


médico da Casa Real e Familiar do Santo Ofício, médico da Real Câmara de Dom João V e
clínico dos conventos e das principais casas fidalgas. Na literatura, foi identificado um
considerável número de citações a ele, como a descrita a seguir:

Contudo, sabe-se que diversos medicamentos químicos circularam em Portugal


desde os inícios do século XVII, tendo-se dado um aumento da divulgação destes
medicamentos com a fixação em Portugal de químicos e destiladores estrangeiros
que comercializavam medicamentos químicos. A publicação da obra de João Curvo
Semedo (1635–1719) Polyanthea Medical (1697) e os trabalhos divulgadores de
Francisco da Fonseca Henrique (1665–1731) foram muito importantes na introdução
da medicação química entre nós. (PITA; PEREIRA, 2005. p. 76).

Além disso, a receita atesta e comprova que o ato de medicar não era puramente um
ato de caridade e, sim, a construção e controle de um conhecimento que se transformava em
poder. A citação acima ajudou também para provar que os jesuítas acompanhavam os avanços
no campo da medicina e incluíam os remédios químicos em sua literatura.

27
João Curvo Semedo formou-se na Universidade de Coimbra. Exerceu clínica em Lisboa. Foi médico da Casa
Real e Familiar do Santo Ofício. Foi também medico da Real Câmara de Dom João V e clínico dos conventos e
das principais casas fidalgas. Considerado um dos maiores médicos do seu período tendo publicado os seguintes
títulos: “Tratado da Peste”; “Polianteia Medicinal”; “Atalaya da vida contra as hostilidades da morte”;
“Observações médicas doutrinais de cem casos gravíssimos”; “Manifesto feito aos amantes da saúde”; “Memória
dos remédios esquesitos que da Índia e outras partes podem dar purgas estando os humores crus”, entre outros.
66

Figura 21 - Índice

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


67

Transcrição:

Bichoz bernez f. 61

Bichoz dos pêz f. 79V

Bichoz das madrez f. 72V Vide Vareja

Bostellaz f. 12, 49, 107 Vide Tinha

Boubaz f. 14, 66V, 71V, 79V, 107V

Borroes de tinta para se tirarem f. [riscado]V

Bichos de chagas podrez e dos narizes f.67

Barriga endurecida f. 111V

Cabelloz para não cahir e nascer f. 81

Cadeyraz f. 88 [?] Vide Ciatica

Calloz f. 88 [?]

Camaraz de sangue f. 80, 109

Camaraz brancaz f. 14, 80V, 108V, 122V

Cancro f. 15V, 49V, 87, 108, 116

Canelladaz f.

Carbuncolo f. 15V, 82, 110V

Cardo santo, suaz virtudez f. 57V

Carnozidadez f. 111 Vide Dor de Pedra

Carocinhoz para Maleitaz f. 70V

Cazoullas como se faz admiravel f. 61

Catarro f. 35 Vide Estillicidio

Caustico para Lombinhoz, cancroz,


68

sinaez, e veRugaz f. 68 [?], 62V

Cavalloz doenças f. [ilegível], 51V, 67V, 108

Cisões f. [ilegível] Vide Maleytaz

Chagaz f. 16, 81V Vide Feridaz

Chagaz no Membro f. 82 Vide Cavalloz

Cesso, vede Sesso f. 82V, 108V

Ciatica, vede Siatica f. 82V

Cobra f. 160, 53V, 111V

Cobra f. 83V

[...] f. 17, 108V

[...] f. 17, 83, 7V Vide Dor de Estomago

[...] do corpo f. 114V

No caso do Formulário Médico, há dois índices: o primeiro descreve em ordem


alfabética as doenças, seguidas do número das páginas onde as receitas relacionadas estão
descritas.

Nesse índice, é possível identificar remissivas correlacionando uma mesma substância


para receitas diferentes, destinadas a doenças diversas. No caso das “Chagas”, por exemplo, o
manuscrito possui duas receitas encontradas nas páginas 16 e 81. Na mesma linha
mencionada, logo após os números das páginas, temos a remissiva: “vide feridaz”. Logo, as
receitas para feridas podem ser utilizadas também para a cura das Chagas.
69

Figura 22- Index

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


70

Transcrição:

INDEX
Dos pezos em [ilegível]
que se usão nas [ilegível]
caz f. 2 e 3.
A
Accidentez que chamão syncope f. 60V Das qualidades de
Açucar Rozado f. 78V ervas f. 30V, f. 2
Agoa de Inglaterra para Maleytaz f. 6 Diaz criticos f. 7
Agoardente açucarada f. 78
Agoardente concertada f. 78 Vide Roza soliz Daz qualidadez
Agoa de Ambar f. 78 daz ourinaz [ilegível]
Agoa de Galico de Madama f. 78 Daz qualidadez [ilegível]
Agoa Luminoza f. 78V varias ervas e misturas [?]
Agoa salgada para vomitar f. 60V f. 58V
Ajudaz para a doença da Biccha e febrez ma- f.
lignaz f. 7V
Apozimaz grandez para Galicos f. 4V, f. 5
Alporcaz f. 42V, 77, 105V
Almorreymaz f. 46, 77, 105, 122
Ar. Apoplexîa f. 11, 77V, 104, 104V
ARuda suaz virtudez f. 66
71

Arteria cortada f. 47V


Asma f. 10, 46V, 77V, 106
Azia f. 10
Antimonio como se faz f. 104V
Aspereza da lingoa f. 119V

B
Baço f. 78V, 106V Vide obstrução
Bafo f. 106V Vide Fedor de boca
Balçamo Apopletico como se faz f. 60V
Banha de flor como se faz f. 60V, 107V
Bebedice f. 47, 79, 107V
Beber antimonio f. 52
Belidaz f. 12, 45, 72, 107
Bexigaz f. 13

O segundo índice, também em ordem alfabética, descreve o nome da receita ou


medicamento, seguido do número da página onde a receita está descrita, com a forma de
preparo e as indicações para tratamento. Assim como o índice anterior, este também possui
remissivas agrupando as receitas comuns a uma mesma doença: “asma f. 10, 46v, 77v, 106”.
“baço f. 78v, 106v Vide obstrução”

Além dos dois índices, o manuscrito possui uma lista de abreviação, figura apresentada
a seguir.
72

Figura 23 - Lista de Abreviação

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


73

Transcrição:

A = ana = au par parya = igual a pezo, ou medida


de doiz ou de muitoz medicamentoz
QS, SQ = quantũm sufficit = quanto for sufficiente )
QV= quantum
viz
} quanto quizer, ou lhe parecer
QP. = quantũ
placet
B. M. ou M. B. } Balneo Maria: que hê cozer, ou
Duplici vase } destilar hum vazo den[tro] [ilegível ± 3 letras]
agua fervendo de outro. = - = - = - = - = - =
Tãobem se diz = duplici vase. = -
S. A = Secundum artem = conforme manda a arte
S. S. S. = Stractum Super Stractum
Vinum rectificato = Vinho destillado, e depoiz
tornado a destillar. Rectificar qualquer Licor he
depoiz de destillar, tornar a destillar. = . = . = . = . = . = . = .
PH Legna = Nos medicamentoz hê a humidade
superflua de algum delles. . = . = . = . = . = . = . = . = . = . = .

De forma geral, a presença de dois índices e da lista, com observações remissivas,


indicam grande organização na elaboração textual e na estrutura de constituição do
manuscrito.
74

Figura 24 - Das qualidades das ervas em geral

Fonte: foto tirada pelo autor na Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz


75

Transcrição:

Das qualidades daz ervas em geral

Quentes Quentes Quentes


Abrotano. Alcassuz. Aroeyra.

Acipreste. Alecrim. Brabasco.

Agrivens. Alfavaca. Betonica.

Agrimonia Alforjaz. Canela.

Aipo. Ameoz. Cardo santo.

Alcaparras Artemiza Cebolaz de qualquer casta.

Alcaravea. Arruda. =.=.=.=.=.=.=.=

Celidonia. Giesta. [O]regaos

Centauria. Hizopo. Ortelaan.

Cinoura. Hermodatilaz. Parietaria.

Coentro. Igrgelim. Peonia.


Coliquintiõ Ipericon; erva de S. João) Pimenta.

Cominhos. Li[ilegível] Poejo.

Coroa de Rey. Laranjas; a casca. Porro; erva.

Couve. Laudano. Rabano.

Cidra; a casca de fora. Limão; a casca. Rabacas

Cravo da India. Linhaça. Rosmaninho.

Epitome. Losna. Ruda

Endros Louro. Ruiva; erva.

Engos Lupuloz; ou pe de galo, erva ) Salva.

Erva de S. João. Macaãs de cipreste ) Sabina.

Erva Baboza. Macella. Salsa.

Erva do tabaco. Madre sylva. Saturião

Erva doze. Maleita; erva. Segurelha.


76

Há também listagens de agrupamentos por tipologias relacionadas à utilização das


plantas e ervas nas formas quentes, frias ou temperadas. No caso de “Apozimas grandes”,
acredita-se que sejam a reunião de seis ervas, que devem ser cozidas e delas extraídas uma
espécie de chá. Nas listagens, ainda encontram-se os ensinamentos de como produzir
compostos, tais como: “conserva purgativa”, “pôs contra maleitas”, “água de Inglaterra para
maleitas”, “Pôs electuarios contra febrez malignas”, “Pedra Imperial” e, finalmente, os
“xaropes”.
77

2.3 Síntese analítica das receitas

Apesar da função principal da Companhia de Jesus não ser a de exercer a medicina,


pela existência do Formulário Médico e pela análise das receitas fica evidente que os jesuítas
se dedicaram fortemente ao seu exercício.

Impulsionados pelo movimento da Contrarreforma, os jesuítas desbravaram os


territórios de domínio português, com o intuito de promover o cristianismo. Uma vez sob a
proteção da Coroa portuguesa, as atividades dos jesuítas contribuíram para a ampliação do
Império. Nos locais mais inóspitos, construíram colégios, hospitais, enfermarias, boticas.
Ensinavam a ler e escrever, ensinavam o cultivo de alimentos, ao mesmo tempo em que
impuseram a ordem social da metrópole.

A catequização dos índios da América: “imundos”, “animalescos”, “incestuosos”,


“canibais”, “polígamos” no imaginário europeu foi o principal objetivo da Ordem. O cenário
encontrado pelos missionários foi aterrador. As epidemias, principalmente as trazidas pelos
colonos, para as quais os ameríndios não possuíam resposta imunológica, devastavam tribos
inteiras e, como se não bastasse, encontraram ainda doenças desconhecidas na metrópole que,
juntas, foram responsáveis por milhares de mortes.

No trabalho de Edler (1999, p.28), são descritas as doenças mais comuns entre os
índios, das quais destacamos: “as febres, as desinterias, as dermatoses, os pleurises e o bócio
endêmico como sendo moléstias prevalentes”, além das doenças trazidas pelos colonizadores:
“sarampo, varíola, rubéola, escarlatina, tuberculose, febre tifóide, malária, gripe”.

Os missionários não podiam exercer atividades médicas e cirúrgicas, com exceções em


casos de necessidade ou ato de caridade. Contudo, devido às condições encontradas e dada a
escassez de médicos, os jesuítas assumiram a responsabilidade com a saúde física e se
transformaram em verdadeiros médicos, cirurgiões e enfermeiros. Com o suporte de suas
boticas28, que podem ser comparadas a verdadeiros laboratórios, produziam toda a sorte de

28
“As boticas dos colégios jesuítas foram inigualáveis, em qualquer parte onde estivessem. O inventário dos
bens da Fazenda denominada Santo Ignácio nos Campos Novos, que foi sequestrada aos regulares da Companhia
denominada Jesus. Segundo inventário datado de 1775, compondo a botica encontramos a seguinte listagem de
medicamento: hum papel com cinquenta e dois vomitórios de quintilio, 17 purgas de jalapa, 18 vomitórios de
tártaro, 7 purgas de rezina, 5 purgas de batata, um estojo com duas lancetas, 12 papelinhos de pírolas Angélicas,
7 purgas de rum, huma libra e quatorze oitavas de basilicão, hum dito de óleo rozado, 1 vidrinho de óleo de
copaíba, 1 lata de triaga brasílica, 1 lata de trementina, escarrador, 2 vidros de óleo de amêndoas, lancetas, libra e
meia de salsaparrilha, ungüento de chumbo, alambiques, almofarizes de mármore, ferro e marfim, armários,
frascos e potes de várias cores e amanhos, balanças, pesos, medidas, tachos de cobre, de barro, bacias, prensas,
tenazes, enfim, todo um aparato técnico para a confecção dos medicamentos. (GESTEIRA; TEXEIRA, 2009. p.
131).
78

remédios. Os jesuítas eram hábeis boticários e, segundo Serafim Leite (1938), foram os
melhores de sua época.

É certo que a arte médica dos jesuítas foi auxiliar no processo de angariar almas.
Contudo, a necessidade e a urgência com os cuidados com o corpo físico, considerando a
proliferação de epidemias, talvez tenha sido a principal motivação para a aplicação da
Medicina dos inacianos.

Grande parte dos processos médicos executados pelos padres, assim como as receitas e
as formas de aplicação, diagnósticos e prescrições de tratamentos, podem ser observados nos
manuscritos, sistematicamente produzidos e registrados com riqueza de detalhes. Esse objeto
de estudo é um exemplar deste tipo de literatura.

Percebe-se, também, grande organicidade nos índices e nas remissivas, sobretudo na


ordenação em tratados, o que demonstra metodologia e normatização. O documento não foi
escrito de forma aleatória, obedeceu a critérios de formulação, que refletem a forma de
organização do conhecimento dos inacianos quanto à utilização de fármacos.

Ainda sob a perspectiva da análise de sua forma, nota-se que os manuscritos eram
documentos que se construíam permanentemente, ressaltando seu caráter de compilação.

Verificam-se receitas com as inscrições “do mesmo autor”, o que foi uma primeira
evidência de que sua elaboração passou por um organizador.

Nesta análise, também foi possível perceber outro aspecto que caracteriza uma
compilação. Por exemplo, a formulação “receita da celebre massa que se uza no Brazil para
Galico”, dá a entender que a receita foi copiada de um manuscrito de outro local, diferente
dos territórios coloniais portugueses na América, evidenciando que o documento foi
composto a partir de receitas copiadas de diferentes fontes, possivelmente de diferentes
lugares.

E por fim, uma das maiores evidências de que o manuscrito é uma compilação é a
receita “Remedioz para os doentes de pedra Tirados de Varios Autores pello Doutor
Francisco Dias Castelhano, que escreveo insignemente das Enfermidades dos Rins, e bixiga.
Medicamentos Símplices”. Aqui não restam dúvidas de que se trata de uma coleção de receitas
de diferentes fontes, compiladas de vários autores pelo Doutor Francisco Dias Castelhano.
Logo, não seria estranho afirmar que estamos diante de uma compilação da compilação.
79

Em algumas receitas, observa-se que, além dos nomes dos médicos, existem
referências de “mestre” ou “grande mestre”, o que sugere que os padres podem ter recebido
treinamentos profissionais ou ensinamentos práticos.

Partindo desse princípio, ao contrário do que dizem alguns historiados, a Medicina


Galênica não foi a única a influenciar a desenvolvida pelos jesuítas. No Formulário Médico
encontramos uma referência a Curvo Semedo, um dos maiores e mais renomados médicos
portugueses, responsável pela introdução dos remédios químicos em Portugal. A receita
também faz referência a uma publicação deste autor: Poliantéia Medicinal, editada em 1697,
que para Filgueira (1999), seu êxito foi grande, tendo merecido mais quatro edições, a última
delas em 1741.

As referências aos médicos especialistas (citados em receitas) e a Curvo Semedo são


provas concretas de que a Medicina aplicada por eles foi empírica sim, porém com um
referencial teórico científico. E mais do que isso, mostra que os padres estavam atentos para
os avanços no campo das Ciências Médicas. Não foram negligentes com as mudanças, muito
pelo contrário, se utilizavam delas para acompanhar e evoluir suas práticas de cura.

Amparados pelos conhecimentos teóricos, os jesuítas mantiveram com os índios uma


relação de troca que influenciou o seu fazer médico. Os índios foram responsáveis pela
introdução de produtos e plantas até então, desconhecidos pelos inacianos, que quando
incorporados em sua Medicina, foram responsáveis pela consolidação e projeção da Ordem no
cenário médico dos setecentos.

Outra característica relevante na construção da Medicina Jesuítica foi a organizada


rede de compartilhamento de informações mantidas entre eles. As receitas descreviam de
forma cuidadosa os produtos, indicando, inclusive, as alternativas de substituição de
ingredientes no caso da dificuldade em conseguir determinada erva característica de uma
localidade específica. A substituição se fazia necessária para que os padres de outras
reduções, em outras cidades, países ou continentes, pudessem obter o mesmo resultado no
tratamento de determinada doença. Centenas de receitas presentes no manuscrito descrevem
formulações com opções de troca de produtos.

Os jesuítas também trocavam uns com os outros as novas descobertas, ensinando as


composições e a forma de obtenção dos remédios. Por essa característica, os jesuítas foram
responsáveis pela divulgação de plantas brasileiras e seus usos farmacêuticos em toda Europa,
como evidencia o caso da Triaga Brasílica, medicamento que se tornou o mais importante
80

remédio de segredo do século XVIII, como registra Santos (2003, p 46.):” Sem dúvida, a
Triaga Brasílica pode ter sido realmente o medicamento mais famoso no Brasil no século
XVIII. Foi referida por muitos autores como o “medicamento extraordinário” das terras
brasílicas.”

A Triaga Brasílica foi tão significativa que, segundo Santos (2003), após a expulsão
dos jesuítas, Marquês de Pombal, ordenou o saqueamento do Colégio da Bahia à procura de
sua fórmula, porém, sem sucesso 29 . A receita, no entanto, foi descoberta anos depois no
manuscrito “Colleção de várias receitas e segredos particulares da nossa companhia de
Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil. Compostas e experimentadas pelos melhores
médicos e boticários mais celebres que tem havido nestas partes. Aumentada com alguns
índices e notícias muito curiosas e necessárias para a boa direção e acerto contra
enfermidades.”, no Archivum Romanum Societatis Lesu, em Roma. Acreditava-se ser a única
receita existente, até a presente pesquisa, já que o Formulário Médico possui a receita,
idêntica à descrita no manuscrito em Roma.

Além da Triaga, cuja criação é comprovada em documentos do Colégio Jesuítico da


Bahia, em dezenas de outras receitas temos o nome de ervas e comentários que associam os
seus ingredientes às localidades onde poderiam ser encontradas. O que nos dá indícios de que
foram escritas no Brasil: “yma de folha muida, a que chamão matapasto, e na Bahia
chamarão boçoura”; uma outra menciona São Paulo: “cozão a erva picão, a que em São
Paulo dão o nome de tirimimdî”.

Ao apresentar ao mundo plantas do Brasil, os inacianos contribuíram, de forma


inegável, para o enriquecimento das farmacopeias europeias, que incluíram em suas páginas a
flora brasiliense. Na edição da Farmacopéia Lusitana Reformada, de 1711, encontram-se
referências às plantas exclusivas dos territórios coloniais portugueses na América, como a
Salsaparrilha. A Botânica do Brasil apresentada pelos jesuítas pode ser identificada no
trabalho de Vera Regina Beltrão Marques (1999), nas seguintes farmacopeias: “Farmacopéia
Ulissiponense”, “Galênica e Química”, do Frances João Vigier, de 1716; “História das Plantas

29
Quando o Colégio da Bahia foi saqueado e seqüestrado em julho de 1760, por ordem dada pelo Marques de
Pombal, o desembargador incumbido da ação judicial comunicava a seus superiores e ao próprio Marques que
havia feito as diligências necessárias para se apossar da botica do Colégio e de algumas receitas particulares,
entre as quais se achava a Triaga Brasílica. Nessa época, a Triaga já havia se tornado quase lendária. Mas a
receita, porém, não apareceu na Botica, nem em lugar algum na Bahia: foi encontrada mais tarde na Collecção
de Receitas no Arquivo Romano da Companhia de Jesus.
(Santos, 2003, p16)
81

da Europa e das mais usadas que vêm da Ásia, da África e da América, em 1718, do mesmo
autor; “Farmacopéia Tubalense Químico-Galênica”, de Manuel Rodrigues Coelho;
“Pharmacopoeia Contracta”, editada em latim, de autoria de Jacob de Castro Sarmento, em
1749; “Farmacopéia Portuense”, de Antônio Rodrigues Portuga”; “Farmacopéia Dogmática,
médico-química, teórico-prática”, de João de Jesus Maria.

Os jesuítas foram os primeiros a descrever a riqueza da flora e da fauna da América


Portuguesa. Com a contribuição dos índios, e a partir da relação de respeito que
desenvolveram, elaboraram uma medicina rica e inovadora. Vieram com a missão de
catequizar e, a partir do caos encontrado, se viram obrigados a sarar o corpo para curar as
almas. E o resultado desse delicado processo de formação de práticas de cura, pode ser
verificado através de seus manuscritos médicos, considerados verdadeiros arquivos
informacionais.

Por muitos anos, a atuação dos padres jesuítas da Companhia de Jesus dividiu opiniões
entre os historiadores. Segundo Fleck, havia uma tradição na historiografia que classificava a
Ordem de forma negligenciada, associando as suas atividades à oposição aos avanços no
campo da Ciência Moderna. Visão que se altera, sobretudo, a partir dos anos noventa com a
produção de novos estudos voltados para a discussão. A este respeito, Fleck em suas reflexões
sinaliza:

As reflexões em torno das múltiplas atividades exercidas pelos membros da


Companhia de Jesus sempre dividiram as opiniões dos historiadores. Por mais de
quatro séculos, recaiu sobre a Ordem uma apreciação negativa, associando-se a ela a
oposição a qualquer inovação no campo da ciência moderna. Essa tradição
historiográfica se alterou significativamente a partir dos anos 1990, em decorrência
de uma série de pesquisas que, com base em documentação acessada nos arquivos
da Companhia de Jesus, em Roma e na América, destacaram o inegável papel
desempenhado pelos jesuítas na história intelectual do Renascimento, desde inícios
da era moderna, e sua influência no conhecimento médico e farmacêutico vigente na
atualidade. (FLECK, 2014. p. 668).

O fato é que, mesmo diante desta divergência no que diz respeito à atuação dos padres
jesuítas, é inegável que os inacianos desenvolveram uma ciência muito particular, que
contribuiu significativamente em vários campos do conhecimento. E destacamos através da
transcrição e análise das receitas que compõem esse objeto de pesquisa, sua incontestável
contribuição para o desenvolvimento das Ciências Médicas nos territórios coloniais
portugueses na América.

A transcrição e a análise aqui realizadas têm como objetivo valorizar este objeto de
estudo, não somente por seus aspetos físicos ou de antiguidade, mas, principalmente, pelo fato
82

de realçar a importância dos acervos bibliográficos e sua preservação, por se tratar de uma
rica fonte de informação e conhecimento.

No próximo capítulo, iremos analisar o processo de restauração do manuscrito e


verificar sua interferência na originalidade do objeto.
83

3 RESTAURAÇÃO: ANÁLISE DA ALTERAÇÃO ESTRUTURAL E ESTÉTICA DO


MANUSCRITO

“Não lhes concedemos que façam dos Índios Cristãos à sua vontade, querendo
servir-se deles a torto e a direito. Mas como esta é guerra antiga, e no Brasil não se
acabará senão com os mesmos Índios, trabalha-se todo possível pela sua defensão,
pera que, com isto se salvem os predestinados.
José de Anchieta” (ANCHIETA apud VIOTTI, 1966. p. 220)

3.1 Introdução

Por que os livros são restaurados? Sob a ótica de conservadores-restauradores, a


resposta técnica seria: restauramos livros que tenham passado por condições de guarda
inadequada e, uma vez afetados, apresentem níveis de degradação que interferiram na sua
legibilidade ou na sua consulta.

Este pode ser o caso de livros com perdas de suporte, folhas rasgadas e soltas; que
tenham sofrido com infestações de insetos e apresentem buracos; de livros com as páginas
manchadas, que impeçam a sua leitura; de obras que tenham passado por desastres naturais,
tais como enchentes ou incêndios; e, principalmente, de livros com suas estruturas físicas
comprometidas.

Temos aqui duas questões: a primeira é qual a intenção de restaurar determinado


objeto, que na maioria das vezes é a melhor possível. A segunda é como a restauração deverá
ocorrer e sob quais princípios?

Todas estas questões colocadas estão relacionadas ao processo de preservação e


restauração do Formulário Médico, fazem parte de sua história e merecem um destaque
especial.

Cabem aqui considerações a respeito das atividades de restauração e sua relação com
as nomenclaturas: preservação; conservação; restauração. A preservação de forma geral pode
ser entendida como toda e qualquer atividade, interventiva ou preventiva, relacionada aos
livros. Quando falamos sobre restauração, conservação, encadernação, controle de agentes de
degradação, estamos falando sobre preservação. Pode ser vista como uma grande área que
abrange todas as atividades que visam salvaguardar um livro.

Por conservação entendemos todas as medidas interventivas tais como: higienização,


acondicionamento e encadernação, entre outras, que visam estabilizar os processos de
degradação.
84

Entendemos a conservação preventiva como um conjunto de medidas estratégicas, não


interventivas, que visam identificar agentes de degradação e seu devido controle, antes que
afetem os documentos, como, por exemplo, o controle de umidade e de temperatura.

Finalmente, entendemos a restauração como um processo interventivo, que utiliza


tratamentos químicos para a estabilização das estruturas dos livros, ou para devolver suas
condições de uso e manuseio. É um processo que utiliza a aplicação de tratamentos químicos
que afeta de forma profunda as estruturas funcionais e estruturais dos documentos.

Para a nossa análise estamos tratando apenas da atividade de restauração, sem a


abordagem de conceitos da área da preservação. Nosso foco foi analisar o processo de
restauração aplicado no Formulário Médico, como e de que forma esse processo interviu ou
alterou as configurações do manuscrito, apresentando como as práticas foram aplicadas, desde
a solicitação do serviço pela instituição, passando pelo desenvolvimento, até o resultado final.

3.2 Análise do processo de restauração

O ponto de partida para uma análise do processo de restauração do nosso objeto de


estudo está na forma como ele se apresenta hoje: restaurado, com suas estruturas refeitas,
encadernado e acondicionado em uma caixa. Além desses aspectos, outras características
atuais são relevantes.

Por exemplo, sabemos que em 1703 as encadernações não apresentavam o aspecto das
atuais, principalmente pela presença de materiais, tais como, o tecido. A partir dessas
premissas, perguntas foram feitas para nortear a análise da sua restauração e verificar até que
ponto houve uma alteração estrutural e estética desse bem cultural raro.

Em que momento de sua trajetória o manuscrito foi restaurado? Por que e por quem?
Como era o livro originalmente? Onde estão os seus registros?

A transformação pela qual o Formulário Médico passou, objeto este carregado de


marcas do tempo, de marcas de uso e de informações reveladoras, resultou em um documento
restaurado, com uma nova encadernação, bastante distanciado das suas características
originais.
85

Do ponto de vista da sua restauração, as características atuais do Formulário Médico


trouxeram à tona uma questão: até que ponto a restauração como uma renovação pode ser
priorizada em detrimento das formas de registro de informação e de memória?

Pela análise das alterações realizadas no objeto, pensamos ter sido a restauração a
maior transformação pela qual o manuscrito passou em toda a sua história.

Para levantar dados a partir destas questões, procuramos conversar com Jeorgina
Gentil30, ex-chefe da Biblioteca, que trabalhou diretamente com o manuscrito na década de
1980. Nessa conversa realizada na Biblioteca de Ciências Biomédicas – ICICT da Fiocruz,
em 10 de Novembro de 2015, foram levantadas informações sobre o estado de conservação do
manuscrito antes da restauração, o qual, em suas palavras, estaria “completamente solto e com
muitas perdas de suporte”.

Para encontrar o registro da data de restauração do manuscrito, que era desconhecida,


foram confrontadas informações dos atuais servidores, com as já levantadas e de
conhecimento da equipe técnica. Assim, determinamos o período provável da restauração:
entre o final da década de 1980 e o início do ano 2000. Essa definição foi necessária para que
pudéssemos pesquisar nos arquivos permanentes, já que todos os processos da Fiocruz estão
arquivados em ordem cronológica.

Nesse processo, levantamos uma informação mais precisa de que o manuscrito fora
restaurado por volta de 2000, para que pudesse vir a fazer parte da exposição “A Ciência e a
Saúde Pública”, em comemoração aos cem anos da Fundação Oswaldo Cruz, da qual fizeram
parte apenas os materiais considerados raros e especiais.

Localizamos o processo que deu início à restauração do Formulário Médico, datado de


27 de janeiro de 2000, com o memorando de número 019/BM, no qual consta uma solicitação
para a diretoria do Instituto, de contratação de uma empresa para a execução de restauração
do acervo de Obras Raras, no qual o Formulário estava incluído. Junto ao memorando, segue
uma série de documentos que compõem o processo de número 25380.00602/200-79.
Anexados ao processo, foram localizados vários documentos de interesse para este estudo

30
Graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1982),
especialista em Indexação da Informação pela Universidade Santa Úrsula (1990), mestre em Ciência da
Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, convênio IBICT (1996) e doutora em Informação,
Comunicação em Saúde pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
(ICICT), da Fundação Oswaldo Cruz (2014). Atualmente é servidora da Fiocruz, onde atua como bibliotecária e
pesquisadora da Biblioteca de Manguinhos (Ciências Biomédicas) do Icict/Fiocruz.
86

como, por exemplo, a solicitação para a restauração de algumas obras do acervo; sua
justificativa e o projeto básico.

O primeiro documento analisado foi o memorando com a solicitação da restauração de


livros raros, fundamentando a justificativa do pedido no valor histórico e informacional dos
livros. Nesse documento, consta uma observação definindo que os livros deveriam ser
restaurados por uma empresa de “alto nível de qualidade técnica” e, em seguida, aparece o
nome de uma empresa que, segundo o documento, foi a única a apresentar qualidade técnica
compatível.31

Temos aqui duas questões apresentadas. A primeira seria em relação aos critérios
usados para selecionar as obras a serem restauradas. Não foram localizados estudos
preliminares para avaliar a necessidade da restauração dos livros, de acordo com os níveis de
degradação das estruturas físicas. Após a avaliação de todas as obras descritas no projeto
básico e mais tarde restauradas, percebemos que elas não receberam o mesmo tipo de
tratamento. Algumas receberam apenas tratamento de conservação e não de restauração 32 ,
demonstrando, de certa forma, a motivação estética do pedido de restauração, visando a sua
aparência física para a exposição das obras33.

A segunda questão estaria ligada à classificação da empresa enquanto a única a


apresentar capacidade técnica necessária, uma vez que não foi localizado nenhum documento
que atestasse a sua comprovação técnica.

Afinal, não consta do processo uma proposta de tratamento das obras. A proposta
deveria conter informações de caráter administrativo e técnico, necessárias para o julgamento
de sua qualificação, além de informar detalhadamente a forma como os tratamentos seriam
aplicados, quais os tipos de materiais seriam utilizados, assim como listar os equipamentos
necessários para a realização dos serviços.

31
De acordo com as regras de compras ou prestação de serviços para instituições públicas as contratações até 8
mil reais não precisam passar por processo licitatório.
32
Conservação: é um conjunto de ações estabilizadoras que visam desacelerar o processo de degradação de
documentos ou objetos, por meio de controle ambiental e de tratamentos específicos (higienização, reparos e
acondicionamento). Restauração: é um conjunto de medidas que objetivam a estabilização ou a reversão de
danos físicos ou químicos adquiridos pelo documento ao longo do tempo e de seu uso, intervindo de modo a não
comprometer sua integridade e seu caráter histórico. (CASSARES, 2000, p.12).
33
Não estamos afirmando que as motivações estéticas foram as únicas consideradas no processo de restauração
do Formulário Médico. Pensamos, sim, que o manuscrito, pelas informações obtidas, necessitava realmente desta
atividade. Contudo, fomos levados a acreditar nessa hipótese através do estudo dos documentos presentes no
processo, ao comparar o tratamento recebido pelo manuscrito com o de outros livros que receberam tratamento
de conservação e não de restauração.
87

A solicitação dos serviços, no projeto básico, não apresenta a forma como as


atividades seriam executadas e orienta apenas a realização de limpeza, banho de
desacidificação e reintegração mecânica com reforço, dando a entender que, provavelmente,
não houve a contribuição de um conservador-restaurador na sua realização. Afinal, nele não
vem especificado o tipo de limpeza, como ela deveria ocorrer e quais os materiais que seriam
aplicados na atividade. Por exemplo, a limpeza pode ser realizada com ou sem a aplicação do
pó de borracha e, se utilizada, deveria constar a forma como deveria ser aplicada, qual o tipo
de pressão a ser empregada, uma vez que o pó de borracha pode apagar eventuais marcas ou
anotações no suporte. Além disso, deveria indicar o tipo de trincha a ser utilizada, assim como
o tipo de pelo dos pinceis, elemento que se escolhido incorretamente poderia vir a danificar o
suporte papel.

Quanto aos banhos de desacidificação34, normalmente são aplicados após os banhos de


limpeza e não aparecem especificados. Não existe, também, especificação com relação ao PH
para o banho de desacidificação, muito menos a temperatura da água ou o número de banhos.
Alguns componentes das tintas podem, por meio da água, sofrer ligações químicas que,
mesmo não provocando perda, causam o esmaecimento das cores, deixando-as mais fracas,
principalmente se aquela temperatura não for controlada.

Não está especificada, também, a obrigatoriedade dos testes de solubilidade, que são
de extrema importância para a certificação de que nenhuma tinta de escrita venha a reagir nos
banhos, uma vez que uma centena de pigmentos e tintas de escritas são solúveis em água.

Já a reintegração mecânica com reforço35 não apresenta nenhuma orientação quanto à


sua forma de aplicação. Deveriam estar descritos os tipos de polpas de celulose, a gramatura
do papel, assim como a cor. Também não existem informações a respeito dos tipos de colas
para a reencolagem do papel após a lavagem e reintegração.

Por fim, não consta nenhuma informação quanto ao tipo de linha e a sua forma de
costura, a aplicação do cabeceado, nem em relação à encadernação.

34
O papel é um material constituído em maior parte por celulose. Um processo de deterioração desse material
consiste na despolimerização da celulose devido às reações de hidrólise ácida, tornando o papel quebradiço. Um
dos meios de controlar ou evitar esta deterioração na restauração de bens culturais é através de banhos aquosos
com Ca(OH)2. (SILVA; FIGUEIREDO JUNIOR, 2012. p.1)
35
Consiste em um procedimento mecânico para preencher as áreas com perdas do papel, deve-se calcular a
gramatura das folhas do livro e calcular a quantidade de fibra a ser utilizada para preencher a área da máquina
que será utilizada. (GIORDANO, 2008. p. 17)
88

Estes são alguns exemplos de informações técnicas que deveriam constar do projeto
básico para este tipo de serviço. A importância de um projeto básico bem executado está na
garantia de que a empresa contratada realizará as atividades conforme as especificações
técnicas. Esta é a melhor ferramenta para que a empresa contratada possa executar seus
serviços com segurança e, também, o melhor instrumento de gestão do processo pela
instituição.

Parece-nos, assim, que todas as decisões a respeito da restauração ficaram a cargo da


empresa contratada, já que não foram especificadas, detalhadamente, as formas como os
serviços deveriam ser aplicados, nem os materiais empregados.

Pelo cronograma de trabalho notamos que o prazo para a execução dos serviços foi de
sete meses, considerando a restauração de treze obras raras, sendo quatro delas compostas por
dois volumes. O Formulário Médico foi restaurado na primeira etapa, juntamente com outros
quatro livros, no período de dois meses, o que nos parece insuficiente para a execução das
atividades de forma eficiente36.

Por conta do processo de análise, tivemos acesso aos restauradores responsáveis pelo
tratamento e fomos informados que a empresa que executou a restauração não existe mais.
Solicitamos a busca por informações remanescentes e fomos orientados a procurar por
eventuais documentos ou registros fotográficos. Um dos restauradores informou ter sido
responsável pela encadernação, mas, infelizmente, não se lembrava do aspecto do manuscrito
para nos relatar. Pediu então que entrássemos em contato com um segundo técnico, que talvez
pudesse apresentar algum documento referente às atividades aplicadas no processo. Entramos
em contato com a restauradora em questão por e-mail e, após algum tempo, recebemos a
resposta de que não havia nenhum documento ou registro fotográfico do livro, anterior ao
processo de restauro. Assim como o primeiro restaurador, informou não se lembrar dos
aspectos estéticos do manuscrito.

Apesar de solicitado, nenhum deles fez nenhuma consideração a respeito da forma


como os tratamentos foram realizados, nem apresentaram qualquer justificativa para os
procedimentos aplicados.

36
Os processos de restauração são demorados, requerendo bastante atenção na aplicação de cada atividade e, de
acordo com nossa experiência, consideramos os prazos fixados para a restauração do Formulário Médico, curtos.
89

Além da análise das questões técnicas, existem uma série de facetas com relação à
representatividade do manuscrito enquanto repositório informacional, que também não foram
especificadas.

Antes do processo de efetivação de uma restauração, deve haver um diagnóstico, no


qual cada item deve ser minuciosamente analisado: as marcas de uso, as marcas da passagem
do tempo e, consequentemente, a degradação dos materiais orgânicos.

O diagnóstico deveria começar com a inspeção detalhada da obra. Todas as páginas


deveriam ser cuidadosamente analisadas para a elaboração desse diagnóstico, que é composto
pela inscrição de várias fichas, que passam a fazer parte da história do objeto, como
testemunho das intervenções aplicadas, conforme afirma Giordano:

Os modelos das fichas podem variar de acordo com as características mais comuns
das obras tratadas em uma instituição ou ateliê, ou do estilo profissional. O
importante é que as informações sejam registradas. Durante todo o processo, esta
documentação acompanhará a obra e suas informações serão constantemente
complementadas.
Após a documentação, faz-se a análise dos procedimentos mais adequados para o
tratamento. No caso de livros, as situações podem variar de acordo com o estado de
conservação em que a obra se encontra e as intervenções podem ser mais ou menos
invasivas. Por isso, os próximos procedimentos que serão descritos nem sempre são
comuns a todas obras. (GIORDANO, 2008. p. 12)

Portanto, todas as características que possam atuar como fontes de informações


históricas devem ser preservadas, já que não temos como prever as demandas de pesquisas
futuras. Alguém, por exemplo, que venha a estudar as encadernações dos livros produzidos
pelos jesuítas, não encontrará nenhuma informação no Formulário Médico, pois, a partir da
sua restauração, nada se sabe quanto à encadernação original.

Ainda tratando da encadernação, surgem as seguintes questões: como era a


encadernação original do manuscrito? Havia uma encadernação? De que material era feita?
Com a perda da encadernação perderam-se estas possibilidades de pesquisa. Essas
informações sobre o suporte original deveriam constar de algum relatório e, caso fossem
substituídas, a original deveria estar guardada e disponível para consulta, por fazer parte da
história de um documento raro. Se o material tivesse sido preservado, poderíamos, por
exemplo, identificar o trabalho artístico do encadernador, os materiais utilizados e até mesmo
a sua origem.

Certamente, tratava-se de uma encadernação em couro. Mas que tipo de couro?


Pergaminho? Através de uma amostra microscópica poderíamos descobrir o tipo de animal
cuja pele foi utilizada e, assim, sua provável origem. Ou então, relacionar essa informação
90

com as peles de outros animais, de outras encadernações de manuscritos jesuíticos e


identificarmos, por exemplo, os fornecedores e suas formas de aquisição.

As manchas também apresentam aspectos reveladores sobre os documentos. Como


foram tratadas as manchas que identificamos hoje no manuscrito? Existem algumas páginas
do Formulário Médico que apresentam manchas suaves que, evidentemente, foram manchas
pesadas para que suas marcas tivessem permanecido mesmo após os banhos. Que tipo de
manchas eram essas? O que poderiam revelar? Análises microscópicas poderiam revelar o
tipo de produto presente no manuscrito.

Suas páginas estão esmaecidas. Em algumas, a leitura do conteúdo está comprometida.


O esmaecimento das tintas de escrita pode ocorrer a partir do tratamento de banhos e
clareamento. As manchas que o manuscrito apresentava poderiam ser marcas de uso, e
poderiam, também, revelar algo sobre a história do manuscrito, mas nenhuma amostra foi
preservada. Para Brooks uma mancha pode ser importante porque:

Posso tirar uma amostra microscópica dessas fibras, e nós podemos analisá-las e,
talvez, aprender o que causou essa mancha; minha primeira hipótese seria vinho.
Mas uma análise completa poderia fornecer pistas de onde o livro estava quando
aconteceu isso. E, se não formos capazes de desvendar isso agora, talvez daqui a
cinquenta ou quinhentos anos, quando as técnicas de laboratório estiverem mais
avançadas, meu colega no futuro o fará. Mas se eu apagar quimicamente essa
mancha – o tal “dano” -, perderíamos a chance de conhecer o fato para sempre.
(BROOKS, 2008. p.26)

Avaliando o código de ética 37 do conservador-restaurador em seu item 9, essas


questões vêm apontadas, principalmente, quanto à importância das amostras para futuras
pesquisas:

O conservador-restaurador nunca deve remover materiais originais ou acrescidos dos


bens culturais, a não ser que seja estritamente indispensável para a sua preservação,
ou que eles interfiram em seu valor histórico ou estético. Neste caso será retirada
uma amostra, que embora mínima, possibilite a identificação do problema. Para tal,
será solicitado o consentimento do proprietário ou responsável legal. O material
removido deve ser, se possível, conservado, como parte da documentação do bem
cultural. (CÓDIGO DE ÉTICA. p.3)

Dando continuidade à análise, passamos a nos perguntar sobre os materiais agregados.


Existia algo dentro do manuscrito como, por exemplo, um pedaço de papel com alguma
anotação? Uma folha seca? Um marcador de página que pudesse dar pistas de sua utilização
37
Elaborado a partir dos Códigos do International Council of Museums - ICOM, do American Institute of
Conservation - AIC, do European Federation of Conservator-Restorers' Organizations - ECCO e de
DUVIVIER, Edna May de A. Código de Ética: um enfoque preliminar, in: Boletim da Associação Brasileira
de Conservadores-Restauradores de Bens Culturais - ABRACOR, Ano VIII, N. 1 - Julho/1988, Rio de Janeiro,
RJ, Brasil
91

através dos anos? Não sabemos, pois nenhum tipo de marca, com exceção do carimbo, foi
preservada.

Não identificamos no processo qualquer relatório. Procurávamos por dois,


especificamente: o primeiro deveria ter sido feito antes do restauro, no qual deveriam constar
as condições do manuscrito antes de qualquer tratamento. Deveriam estar descritos os tipos de
danos apresentados, os agentes, a forma e o tipo de encadernação, além de conter fotografias
de todas as páginas, frente e verso, e da encadernação.

O primeiro procedimento que se deve realizar antes de qualquer interferência é uma


documentação detalhada da obra, que consiste no registro fotográfico e no
fichamento - buscando descrever minuciosamente o estado de conservação em que a
obra se encontra. A documentação fotográfica abrange três etapas: o estado de
conservação da obra antes da interferência, registro do processo de restauro e a obra
após o tratamento. Este procedimento tem como finalidade auxiliar o restaurador
durante o trabalho e servir de material para posterior estudo sobre os procedimentos
realizados, pois constará do relatório final que será entregue juntamente com a obra.
(GIORDANO, 2008, p.10)

O registro fotográfico é imprescindível em um processo de restauração, pois por meio


das fotos, seria possível elaborar um diagnóstico detalhado das condições do manuscrito antes
da sua restauração. Esse procedimento é importante também para a contratante que, com ele,
pode verificar se as etapas do projeto foram executadas e aplicadas como desejado, além de
servir como fonte de informação no futuro.

O segundo relatório seria o de execução. Nele deveriam estar presentes informações a


respeito da aplicação das atividades, dos materiais e dos equipamentos utilizados, os tipos de
cola, de papel, além de outras informações de caráter técnico, que serviriam como orientação
para futuras intervenções, estudos ou pesquisa histórica. De acordo com Morelato et al
(2007):

Antes de iniciar qualquer ação ou intervenção em uma obra, o conservador-


restaurador deve colher todas as informações capazes de gerar e salvaguardar o
conhecimento a seu respeito, além de levar a cabo um acurado exame de sua
composição e estado de conservação, recorrendo para isso, se necessário, a
instituições e técnicos de outras áreas, nacionais ou internacionais. Os resultados
desse exame devem ser extensamente anotados e documentados, fotograficamente,
por meio de gráficos, mapas, tabelas e análises estatísticas. Baseado nesses dados, o
restaurador elaborará um relatório sobre a peça e estabelecerá o procedimento a ser
seguido, o qual deverá ser apresentado ao proprietário ou guardião legal do bem.
Toda essa documentação comporá um dossiê, propriedade intelectual do
conservador, que passará a ser parte integrante do bem cultural em questão.
(MORELATTO et al, 2007. p.62)
92

Com relação à encadernação, não pudemos realizar um diagnóstico, já que a


encadernação atual e moderna serve apenas como forma de proteção e, portanto, não se
configura como parte integrante do que podemos chamar de registro de informação acerca do
passado e da história do objeto enquanto conjunto original.

Com relação ao miolo ou corpo do livro, através de análises detalhadas, chegamos a


um diagnóstico, elaborado através dos tratamentos aplicados e baseado nas informações e nas
marcas presentes no manuscrito. Vale ressaltar que esse diagnóstico é diferente daquele que
deve ser realizado diretamente no objeto, antes de qualquer tipo de intervenção.

O manuscrito deveria estar com elevado nível de sujidade, motivo pelo qual no projeto
básico foi solicitada a higienização. A costura, provavelmente, estava solta, conforme
consultas feitas a servidores da biblioteca, fato reafirmado pela costura atual, que é totalmente
nova. As folhas apresentavam perda de suporte, registro e ataque biológico. Devido às
características dos buracos, podemos afirmar que sofreu ataque de brocas38.

A proposta para tratamento do manuscrito deveria ser baseada em informações como


fragilidade, folhas soltas, paginação irregular, oxidação das tintas de escrita, perda de suporte,
manchas diversas, aliadas às características históricas do objeto, que deveriam, ainda, constar
do diagnóstico inicial.

Os processos que antecederam a restauração deveriam ter contemplado as questões


artísticas e históricas, originais, relacionadas ao manuscrito, sempre privilegiando a menor
intervenção e priorizando os componentes originais. Afinal, os livros são mais do que uma
reunião de materiais orgânicos, são produtos das ideias. O valor do manuscrito não está
apenas no seu conteúdo informacional, mas também nos seus valores histórico e artístico.
Todo o manuscrito, enquanto material físico é testemunho de processos culturais que
registram a história do seu passado.

E a partir dessas premissas, deveriam ter sido propostas intervenções de caráter


estrutural, apenas para devolver as suas condições de manuseio, preservando ao máximo os
seus elementos originais.

38
“A broca é um inseto da Ordem Coleóptera, conhecida cientificamente pelos nomes Dorcatoma bibliophagus
e Tricorynus herbarius e possui quatro estágios de vida: ovo, larva, pupa ou crisálida e imago ou adulto, sendo
que o combate a uma das fases não garante a eliminação dos indivíduos em outras fases. O inseto mais comum
pertence à família Anobídeos que, em sua fase larvária, ataca livros e documentos, tornando-se um dos mais
nocivos insetos bibliófagos. Apresenta como característica principal a produção - pelas larvas - de túneis
arredondados nas folhas dos livros, que seguem um padrão em zigue-zague bem definido e visível”.
(CARDOSO, 2005, p.1)
93

Ao invés disso, o processo de restauração aplicado ao Formulário Médico alterou de


forma relevante seus aspectos físicos e substituiu as marcas da passagem do tempo, as marcas
relacionadas à história do objeto, enfim, suas marcas de uso. Geraldine Brooks escreveu com
maestria em seu livro “As memórias do livro” sobre nosso pensamento com relação à
aplicação dos processos de restauro:

Restaurar um livro ao que ele era quando foi feito é falta de respeito com sua
história. Penso que temos que aceitar um livro da maneira como o recebemos das
gerações passadas; e, até certo ponto, os danos e o desgaste refletem essa história.
Do modo como vejo, meu trabalho é torná-lo estável o suficiente para que possa ser
manuseado com segurança e estudado, só consertando o que for absolutamente
necessário. (BROOKS, 2008. p.26).

A “Carta do restauro: fundamentação teórica do restauro”, muito embora não seja


destinada diretamente aos acervos bibliográficos, contém os princípios da restauração que
podem, perfeitamente, ser transportados para o universo dos livros:

Devem-se evitar as tentativas de renovação da obra. Os embelezamentos, as


maquilhagens, as cosméticas, as modernizações generalizadas e todas as formas de
se reconduzir ao novo, de reparação ou de presumível procura do estado original da
obra, são operações que nada têm a ver com a conservação. Em todos os casos,
deve-se considerar que os sinais da passagem do tempo são valores históricos e
estéticos de extraordinária eficácia. Deve-se respeitar, na execução de qualquer
gênero de obra, o princípio da intervenção mínima.
Na aplicação de qualquer técnica, mesmo que pouco invasiva e reversível, deve-se
parar um pouco antes da perfeição, evitando-se, por esta forma, exceder-se ou
exagerar-se. (PRIMO, 1999. p. 130)

A restauração deve estar aliada a estudos sobre a história do objeto caso contrário, irá
produzir uma incoerência na tentativa de restaurar um determinado objeto, ao mesmo tempo
em que apaga sua história, conforme afirma Brandi:

O Restauro constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra na sua


consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas a sua
transmissão para o futuro. O restauro deve objetivar restabelecer a unidade potencial
da obra de arte, até onde for possível, sem produzir uma falsificação histórica ou
artística e sem apagar todo traço da passagem do tempo deixado na obra de
arte (BRANDI, 2008, p.35)

Partindo da análise do estado no qual encontramos o Formulário Médico, entendemos


que a restauração foi algo impactante na sua história. Essas reflexões foram realizadas com o
objetivo de contribuir para que fatos como este não ocorram de forma geral nas instituições.
No caso do manuscrito, o seu conteúdo está preservado e, apesar de algumas páginas estarem
esmaecidas, permanece completo, garantindo, ainda, a possibilidade de absorção do seu
importante legado histórico, o que permite, inclusive, a consecução desta pesquisa.
94

4 TRAJETÓRIA DO FORMULÁRIO MÉDICO NA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Ancorados pela filosofia e prática médica europeia de um lado, e de outro pela


terapêutica indígena, com seu amplo uso da flora nativa, os jesuítas foram os reais
iniciadores do exercício de uma medicina híbrida que se tornou marca no Brasil
Colonial. (GURGEL, 2009. p. 117).

4.1 Introdução

A literatura produzida pelos jesuítas é bastante rara – livros manuscritos com receitas
médicas com as mesmas configurações do Formulário Médico - salvo por poucos arquivos
preservados, como é o caso do Arquivo de Roma. Os manuscritos jesuíticos são
extremamente escassos e difíceis de serem encontrados, especialmente a literatura médica por
eles produzida, uma vez que se tornaram suportes para a guarda de fórmulas secretas e de
remédios de segredos, que alcançaram enorme fama e despertaram a cobiça, por isso, eram
guardados a sete chaves. Não é difícil encontrar na literatura especializada exemplos de
medicamentos que constavam das receitas dos inacianos que foram pirateados, adulterados ou
até mesmo vendidos. Por não manterem contato com os livros que continham as fórmulas
originais. Há também relatos na literatura de cartas endereçadas à Corte portuguesa com
solicitações da intervenção:

Pedra Cordial ou de Gaspar António. Esta tinha tamanha notoriedade e, por isso
grande valor econômico, que passou a ser falsificada ou imitada por boticários de
Goa, que a exportavam, principalmente, para o Reino. Tal prática lesava os jesuítas,
que possuíam a sua autêntica fórmula secreta e, portanto, o seu monopólio de
produção e comercialização. Obviamente que os irmãos da Companhia de Jesus
começaram a reclamar junto ao rei a respeito das falsificações, e por causa dessas
queixas o rei determinou em Carta Régia ao Governador da Índia que não fossem
mais exportadas as pedras cordiais que não fossem as verdadeiras. Justificava tal
medida dizendo que os boticários de fora da Ordem produziam as pedras sem
conhecer todos os ingredientes que as compunham e sem saber o exato modo de
prepará-las. (CALAINHO, 2011. p.7)

Seja como for, há indícios de que seus escritos desapareceram, certamente porque em
grande parte foram levados com eles na ocasião de sua expulsão do país. Contudo, alguns
permaneceram sob circunstâncias desconhecidas, talvez escondidos, para se manterem a
salvo. Por isso, poucos exemplos dessa literatura chegaram até os dias atuais e acredita-se
que outros poucos possam estar ainda guardados em bibliotecas ou arquivos espalhados pelo
Brasil, sem sequer terem sido descobertos.
95

Essa aura de mistério torna o Formulário Médico um objeto de pesquisa ainda mais
interessante. Quando nos deparamos com a inscrição como a registrada nele: “achado em uma
arca da Igreja de São Francisco de Curitiba”, não podemos deixar de pensar a trajetória desse
manuscrito, desde 1703 até os dias atuais.

O Formulário Médico sempre foi considerado um livro de extrema importância para a


Biblioteca de Obras Raras da Fundação Oswaldo Cruz. Seu valor histórico, fez com que fosse
exaustivamente apresentado, exposto e divulgado. Quando levantamos informações a respeito
do manuscrito, logo nas primeiras buscas, encontramos a referência a um livro raro. Emília
Bustamante, chefe da biblioteca em 1945, registrou em 1954 que o manuscrito já era
consagrado e já estava inserido no pequeno departamento de obras raras da Biblioteca.
Considerando que ela substituiu o primeiro bibliotecário do Instituto em 1945 e que o
Formulário Médico já estava registrado nessa ocasião, supomos que o documento já possuía
uma posição diferenciada com relação a outros itens da coleção, ainda início do século XX.

Supomos que sua divulgação tenha ocorrido de forma gradativa ao longo dos anos,
mas verificamos que, a partir dos anos oitenta, passou a ser citado em publicações de
diferentes meios de comunicação. Uma das primeiras referências encontradas foi uma matéria
no Jornal do Brasil39, datada de oito de novembro de 1981. Nela, o autor (não informado),
descreve o interesse do governo, logo após a expulsão dos jesuítas, em tomar posse das
receitas médicas indicadas para a cura da impotência. O autor afirma, ainda, que o Formulário
Médico foi o único manuscrito a conter essas receitas.

Não é possível confirmar a afirmação do autor, principalmente porque não


conhecemos, no Brasil, outro manuscrito com as mesmas características do Formulário
Médico para verificarmos se apenas ele apresenta receitas para a questão da impotência.
Contudo, é importante notar que o manuscrito possui três receitas para essa finalidade.

Por conter receitas de medicamentos secretos, principalmente a da Triaga Brasílica,


que se acreditava existir apenas no arquivo de Roma, é perfeitamente plausível a ideia de que
o manuscrito tenha sido escondido, propositalmente, para mantê-lo a salvo e com seus
segredos preservados.

39
Fundação Oswaldo Cruz tem biblioteca com obras raras de Margrave, Post e Barleu. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, n. 214, p.27, 8 nov., 1981. (1º Caderno).
96

Como ou por quem foi descoberto? Para onde foi levado depois de encontrado? Como
chegou à Fundação Oswaldo Cruz?

Muitas são as perguntas sem respostas com relação ao percurso do manuscrito antes de
sua inserção no acervo do Instituto Oswaldo Cruz. Portanto, para a realização dessa pesquisa,
iniciamos o processo de análise da sua trajetória, a partir de sua chegada na biblioteca.

Para traçar a história desse livro na coleção de obras raras, voltamos aos primórdios da
formação da biblioteca. Para isso, foi necessário analisar as publicações e documentos
produzidos por ex-funcionários, os documentos administrativos produzidos pela Biblioteca,
além dos trabalhos que contam a história da formação do acervo. Contamos, também, com a
colaboração de servidores em atividade e, também, de alguns aposentados.

Oswaldo Cruz, comprometido com seu ideal de construir ciência em alto nível,
investiu recursos financeiros e esforços para que a informação científica mais atualizada em
termos de saúde, na época, circulasse entre o corpo técnico da instituição. Para tal,
implementou uma série de atividades que visavam à formação e qualificação de sua equipe.
Quando rascunhou o esboço do Castelo Mourisco, hoje maior símbolo da Fundação, destinou
o terceiro andar para a construção de sua biblioteca, formada, inicialmente, por coleções de
periódicos estrangeiros e nacionais, acrescidos de uma pequena coleção existente antes de sua
chegada e de obras trazidas por ele no período de sua formação no Instituto Pasteur. A
biblioteca iniciou suas atividades em um galpão e, em 1909, passou a ocupar um dos espaços
mais privilegiados do castelo, destinado a receber a biblioteca e os laboratórios científicos,
após o andamento das obras iniciadas 1904 e concluídas em 1918. (SOUSA, 2006, p.61).

Assuerus Hyppolitus Overmeer foi o primeiro responsável pela Biblioteca. Convidado


por Oswaldo Cruz para exercer a função, iniciou suas atividades em 1909 e esteve à frente da
biblioteca por 35 anos. Foi um dos responsáveis por transformá-la em uma referência,
recebendo elogios e agradecimentos, registrados por dezenas de pesquisadores da Fundação
em sua época:

Overmeer mostrava-se extremamente cordial, auxiliando-me a encontrar muitos dos


volumes que eu procurava. Por causa do seu espírito disciplinador [...] pintava-se
Overmeer como um aterrador guarda de livros. Era, sim, um protetor dos mesmos e,
estou certo, se não fosse sua vigilância e seu rigor, a biblioteca do Instituto Oswaldo
Cruz não teria se transformado na grande instituição que todos admiramos.
(CHAGAS FILHO, apud SOUSA, 2006. p.34)

O estudo da atuação de Overmeer foi fundamental para o desenvolvimento da


pesquisa, uma vez que ele foi o primeiro a organizar sistematicamente a biblioteca com
97

tratamento biblioteconômico. Iniciou a sua estruturação funcional e programou o tratamento


do acervo de forma técnica, adotando as normas de classificação da Biblioteca Apostólica
(SOUSA, 2006, p.66). Elaborou o sistema da biblioteca, fornecendo um número de registro
para cada livro. Criou um catálogo de assuntos, que permitiu a rápida recuperação da
informação aos pesquisadores e usuários, além de divulgar as coleções, muitas delas
completamente desconhecidas. A documentação produzida por Overmeer foi a primeira a ser
pesquisada. Para identificar o registro do Formulário Médico, recorremos ao Livro do
Tombo40 para levantar informações a respeito da sua data de entrada na coleção, assim como
da sua procedência.

No Livro do Tombo, encontramos informações importantes com relação à origem dos


documentos como, por exemplo, se a sua forma de aquisição foi feita através de compra ou
por meio de doação. De acordo com o sistema da biblioteca, caso o acervo fosse originado de
doação, registrava-se o nome do doador, a data da doação, além das informações de autor,
título, local de impressão e data da publicação.

A biblioteca possui apenas um exemplar de livro de tombo, mas de acordo com seus
registros, fica clara a existências de outros. A biblioteca passou por uma série de mudanças ao
longo dos anos, incluindo alterações dos espaços de guarda. Passou por duas transferências
até que, em 1995, foi instalada, definitivamente, no prédio da Biblioteca de Ciências
Biomédicas. Segundo a equipe atual da biblioteca, os livros de tombo podem ter se perdido
nos processos de mudanças ou poderiam estar no acervo da Biblioteca de Ciências
Biomédicas, onde o único exemplar existente foi encontrado.

Durante quatro meses, percorremos os quatro armazéns da Biblioteca de Ciências


Biomédicas, buscando encontrar os livros de tombo.

Nossa atenção se concentrou no acervo chamado de retrospectivo, no qual o único


exemplar existente foi encontrado. O livro de tombo produzido na gestão de Orvemeer é
referente aos anos 1911 a 1914. Inicia no registro de número 4.006 e vai até o registro 7.012.
O livro foi datilografado e possui 181 folhas, nas quais buscamos encontrar o registro do
Formulário Médico, sem sucesso.

40
A nomenclatura “Livro do Tombo” tem a mesma origem que a expressão “Tombamento”. Originam-se do
Direito Português, onde a palavra tombar tem o sentido de registrar, inventariar, inscrever bens nos arquivos do
Reino. Tal inventário era inscrito em livro próprio, que era guardado na Torre do Tombo, a Torre Albarrã,
localizada no Castelo de São Jorge, em Lisboa, Portugal. (XAVIER, 2013 p.2).
98

Overmeer trabalhou na biblioteca até o ano de sua morte em 1944. Logo, nos
interessamos em verificar se houve continuidade dos seus registros. Encontramos todos os
livros de registro posteriores a Overmeer, produzidos por sua substituta, um ano após sua
morte. Como os livros de registros elaborados por Emília Bustamante iniciam com o registro
de número 21.777, concluímos, portanto, que esse número foi o último dos registros de
Overmeer. Da mesma forma, o registro do Formulário Médico não foi localizado, o que nos
levou a concluir que ele estaria nos primeiros livros de tombo, já desaparecidos.

Verificamos, também, todos os livros que compõem o primeiro catálogo de assuntos


da biblioteca, produzido por Overmeer e sua equipe. No catálogo de assuntos, estão descritas,
entre outras informações, os números de registros. Nossa esperança era a de encontrar, ao
menos, referências ao Formulário. O catálogo está distribuído em 37 livros, com
aproximadamente trezentas páginas cada um. No catálogo de assuntos, são descritos temas
comuns a diferentes livros, seguidos da referência e número de registro. Buscamos nos trinta e
sete livros e não foram encontradas referências aos assuntos presentes no objeto deste estudo.
Acreditamos que sua ausência se deva ao fato dele não ser uma publicação periódica.

4.2 Uma nova pista da trajetória do manuscrito: como chegou à Fiocruz?

O manuscrito foi consultado inúmeras vezes por mim e cada manuseio objetivou uma
determinada intenção. Por vezes, avaliamos a sua estrutura física, em outras, o seu estado de
conservação e, por fim, a descrição do seu conteúdo. Em uma das últimas consultas, após
pensarmos que haviam se esgotado todas as possibilidades de encontrar algum novo
elemento, nos deparamos com um carimbo, sempre visto, contudo, nunca percebido. O
carimbo está presente nas três páginas inicias. Dois deles estão esmaecidos, provavelmente,
resultado do processo de restauração, uma vez que a tinta é solúvel em água. O terceiro, que
está um pouco mais legível, permitiu a sua leitura: Oliveira Catramby.

Considerando ser o carimbo uma marca de propriedade, consequentemente, Oliveira


Catramby poderia ser o sobrenome de um antigo proprietário que tinha por hábito marcar seus
livros.

A atenção ao carimbo abriu um caminho totalmente novo para buscar a história do


manuscrito, já que não existe, em âmbito institucional, a prática de utilização de carimbos em
livros, especialmente, os carimbos de propriedade. E, caso houvesse, certamente seria
referente ao Instituto e, posteriormente, à Fundação, mas nunca a um sobrenome específico.
99

A Fiocruz possui centenas de livros com carimbos de propriedade, porém, todos


recebidos através de doações efetuadas pelos próprios representados ou por parentes em caso
de falecimento do doador.

Ao trazer revelado o sobrenome de um possível proprietário, talvez pudesse revelar,


também, as formas pelas quais passou a fazer parte da coleção. Por meio de uma informação
da chefe da biblioteca, foi identificado um fundo da Família Oliveira Catramby no Arquivo da
Fundação Casa de Rui Barbosa, dentro do qual consta documentos relacionados a José
Antunes Rodrigues de Oliveria Catramby41. Como o acervo está disponível na base de dados
online acessamos todos os documentos que compõem o fundo, na tentativa de identificar a
existência de algum carimbo idêntico ao encontrado no manuscrito, ou de documentos que
pudessem manter alguma relação com Oswaldo Cruz ou com o Instituto. Percebemos, pelas
datas, que a relação entre José Antunes Rodrigues de Oliveira Catramby e Oswaldo Cruz seria
pouco provável. Apesar disso, pesquisamos os documentos e, infelizmente, nada foi
encontrado. No entanto, essa busca não foi em vão. Encontramos na pesquisa uma outra
pessoa chamada Joaquim Oliveira Catramby que, pela data, poderia ter relação com Oswaldo
Cruz. A pesquisa, então, se direcionou ao segundo Oliveira Catramby identificado. Ele foi um
arquiteto carioca que, em 1905, venceu uma concorrência do Ministério da Indústria, Viação e
Obras Públicas para a construção da estrada de ferro que ligaria o Brasil à Bolívia.

De acordo com Ferreira, autor do livro “A ferrovia do Diabo”, a construção ocorreu


entre os anos de 1907 e 1912. Segundo ele, a empresa vencedora do edital tinha como
proprietário Joaquim Oliveira Catramby, que terceirizou para a firma norte-americana May,
Jekyll & Randolph, passando a se chamar, mais tarde, de Madeira-Mamoré Railway
Company, fundada em Portland nos EUA. De acordo com Ferreira, mesmo após a
terceirização, Joaquim Oliveira Catramby permaneceu como responsável pelas obras frente ao
governo brasileiro.

A ferrovia deveria ter 400 quilômetros de extensão para a expansão do escoamento da


borracha produzida na Amazônia. Para tal, recebeu milhares de trabalhadores de diversas
partes do mundo e, conforme Ferreira destaca em seu livro, um dos grandes problemas

41
José Antunes Rodrigues de Oliveira Catramby nasceu em 3 de janeiro de 1828 na cidade de Braga, Portugal.
Oficial da marinha portuguesa, chegou ao Brasil em 1849 e naturalizou-se brasileiro em 1851. Trabalhou com
Rui Barbosa no inventário da partilha dos bens da família imperial, por ocasião da proclamação da República.
Catramby foi também um dos fundadores do Hospital D. Luiz I, da Real Sociedade Beneficente Portuguesa do
Pará e da Companhia de Navegação Fluvial de Marajó. Oficial da Ordem da Rosa foi tesoureiro da Sociedade de
Geografia, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, procurador do Duque de Saxe e dos príncipes
de Saxe. (Fundação Casa de Rui Barbosa).
100

enfrentados na obra foi o das epidemias - responsáveis pela morte de milhares de


trabalhadores -, tais como a malária e a febre amarela. Estima-se que as doenças tropicais,
durante o período de cinco anos de construção da ferrovia, foram responsáveis por centenas
de milhares de mortes.

A partir das informações a respeito das epidemias e considerando que nessa época o
Instituto Oswaldo Cruz já era a grande referência no tratamento das doenças tropicais,
achamos possível que Joaquim Catramby possa ter mantido algum tipo de relação profissional
com Oswaldo Cruz, podendo vir a ser o “Oliveira Catramby” que encontramos carimbado no
Formulário Médico.

A partir daí, a pesquisa foi direcionada para encontrar alguma relação entre Oswaldo
Cruz e Joaquim Oliveira Catramby.

No artigo “A Ferro e Sangue”, publicado na Revista de História datada de 1 de agosto


de 2012, a autora Cristina Romanelli, relata que o sanitarista Oswaldo Cruz foi contratado em
1910 para conter o avanço desenfreado das epidemias, emitindo um relatório a respeito das
condições de vida e da saúde dos trabalhadores da construção da estrada de ferro Madeira-
Mamoré.

A partir daí, nos arquivos da Casa de Oswaldo Cruz, foi encontrado um dossiê
chamado Madeira-Mamoré. Uma vez que o fundo Oswaldo Cruz é classificado em séries
compostas por centenas de documentos, foram criados parâmetros para balizar a presente
pesquisa. Adotou-se um marco temporal entre 1910 e 1913, abrangendo o ano da passagem de
Oswaldo Cruz pela construção da estrada de ferro, até um ano após sua construção. Dentro do
fundo, buscamos as seguintes séries: correspondências, documentos complementares e
documentos pessoais.

Com relação aos documentos da construção da estrada de ferro, encontramos dois


dossiês: o Dossiê 06: “Combate à malária durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-
Mamoré”, localizado na série “Correspondência” e subsérie “Pessoal”. E o Dossiê 09:
“Documentos relativos à construção da Ferrovia Madeira-Mamoré”, na série “Instituto
Oswaldo Cruz”.

Iniciamos o estudo pelos documentos referentes à construção da estrada de ferro, já


que o número de documentos é incomparavelmente inferior ao das séries “Correspondências”,
101

“Cartas” e “Documentos complementares”. Seguimos a pesquisa com a intenção de localizar


um documento do período que atestasse algum tipo de relação entre eles.

Guiados pela certeza de que a conexão entre Oswaldo Cruz e a importante e respeitada
família Oliveira Catramby não seria uma coincidência, levantou-se a hipótese de que Joaquim
Catramby pudesse ter presenteado Oswaldo Cruz com o manuscrito, como forma de
agradecimento pelos serviços médicos prestados aos trabalhadores da Ferrovia. Para
direcionar a busca, passamos a procurar alguma carta de doação.

Apesar de extensa pesquisa nos arquivos da Casa de Oswaldo Cruz, nenhum


documento que conectasse o Formulário Médico diretamente a Oswaldo Cruz e Joaquim
Catramby foi encontrado. Considerando verdadeiras as nossas suposições, conjecturamos que
a doação possa ter ocorrido de várias formas, sem ter sido documentada.

O carimbo com a identificação da família Catramby era o maior indício dessa ligação.
Contudo, a existência de um documento que corroborasse essa ideia seria importante para que
pudéssemos sair do campo das especulações.

Não satisfeitos com os insucessos das pesquisas, optamos por ampliar a busca, agora
voltada para a família Catramby. Desenhamos como estratégia a localização de descendentes
que pudessem nos dar informações. Procuramos, também, a coleção de possíveis livros
pertencentes a Joaquim, com o intuito de encontrar o mesmo carimbo impresso no Formulário
Médico. Afinal, se esse fosse um hábito do Joaquim, certamente outros livros teriam a mesma
marca, cuja função era a de registrar a propriedade.

Buscamos nas redes sociais pessoas com o sobrenome Catramby e enviamos a todas
elas uma pequena apresentação de nossa pesquisa. Foram obtidas duas respostas. Uma pessoa
chamada Pedro Catramby informou acreditar ser descendente da família e nos indicou sua
mãe para maiores esclarecimentos. A outra resposta veio de Cyro Catramby, afirmando ser
bisneto de Joaquim Catramby, da Madereira Mamoré. Este contato também nos indicou sua
mãe, Cecília Catramby, como sendo a pessoa mais indicada para fornecer informações sobre o
seu bisavô. Segundo ele, sua mãe - neta de Joaquim Catramby - mantém a guarda de
documentos relacionados à história da família, entre eles, documentos, livros e obras de arte.
Por sorte, por ocasião das festas de final de ano, Cecília Catramby, que reside no Distrito
Federal, estava no Rio de Janeiro, e pudemos convidá-la para conhecer pessoalmente a
Fiocruz, a pesquisa e o manuscrito.
102

A visita acorreu no dia 23 de dezembro, na Seção de Obras Raras da Biblioteca. Ao


verificar o carimbo no manuscrito, Cecília afirmou ser de sua família o sobrenome descrito.
Informou que não possui a coleção de seu avô, pois ao longo dos anos, por conta dos
processos de herança, os livros, documentos e obras de arte da família foram divididos,
vendidos ou doados. Contudo, afirmou que o carimbo não lhe era estranho. A visita durou
cerca de quatro horas, nas quais a Sra. Cecília Catramby contou a história da sua família, a
origem do sobrenome Catramby, a atuação de seu avô na construção da estrada de ferro, além
de várias outras histórias de Joaquim Catramby em sua vida pública. Ao comentarmos sobre
José Rodrigues de Oliveira Catramby, cujos documentos estão presentes no acervo da
Fundação Casa de Rui Barbosa, a Sr. Cecília logo o identificou afirmando tratar-se de seu
bisavó, pai de Joaquim Oliveira Catramby. Por meio dessa entrevista, entendemos que se
tratava de uma família tradicional no Rio de Janeiro da época, que mantinha relações pessoais
com Dom Pedro II, fato confirmado nos arquivos da Casa de Rui Barbosa, onde encontramos
documentos relacionando os Catramby à Família Imperial.

Ainda na entrevista, Cecília nos informou que, tanto seu avô, quanto seu bisavô eram
grandes colecionadores de obras de arte e tinham por hábito a doação. De acordo com ela,
esta foi uma atividade recorrente e doavam especialmente para amigos. Citou, como exemplo,
as doações feitas pela família Oliveira Catramby de móveis e objetos pertencentes à Família
Imperial, para que fossem incorporados ao acervo do Museu Imperial, em Petrópolis.

Como a Família Catramby não possui mais a biblioteca que pertencia ao seu bisavô -
e posteriormente ao seu avô, Joaquim Catramby -, mesmo tendo acesso a informações
preciosas, não conseguimos identificar a existência de outros livros para que pudéssemos
confrontar os carimbos e, assim, nos auxiliar diretamente em nossa pesquisa.

Ainda de acordo com os relatos da Sra. Cecília, havia uma relação entre seu avó e
Oswaldo Cruz que, segundo ela, estiveram juntos em diferentes ocasiões. Contou-nos que
havia uma estratégia para medicar os trabalhadores, já que grande parte deles se recusava a
aceitar a medicação. Portanto, antes de receber o pagamento pelos serviços, cada trabalhador
era obrigado a se medicar com os remédios ministrados por Oswaldo Cruz. Essas informações
reforçaram a suspeita de que o manuscrito teria sido um presente dado por Joaquim a
Oswaldo e confirmaram, ainda mais, a atuação de Oswaldo Cruz no processo de construção
da ferrovia.
103

Após se inteirar um pouco mais sobre a pesquisa, Cecília Catramby sugeriu que o
manuscrito teria pertencido ao seu bisavô, o colecionador de obras de arte e bibliófilo José
Antunes Rodrigues de Oliveria Catramby. Ela achou possível que o manuscrito tenha sido
transferido para o seu avô, Joaquim Catramby, e que este, por sua vez, tenha presenteado
Oswaldo Cruz, em consideração aos serviços prestados na construção da estrada de ferro.
Independentemente de como a transmissão do manuscrito entre Joaquim Catramby e Oswaldo
Cruz possa ter ocorrido, e mesmo não possuindo documentos que comprovem como ele
chegou ao acervo da Fiocruz, somos levados a crer que essa seja a origem do manuscrito e a
forma como ele chegou até nós. Para possibilitar a continuidade da pesquisa, passamos a
considerar como premissa que essa foi a trajetória do Formulário Médico, até sua chegada à
biblioteca.

4.3 A trajetória do manuscrito: após a chegada à Fiocruz

Portanto, voltamos o nosso olhar para a etapa seguinte: entre a entrada do manuscrito
no acervo do Instituto e o seu processamento técnico por Overmeer.

Já que não existem documentos que possam ajudar a construir a trajetória desse
período, sua análise também foi uma tarefa difícil. Não sabemos quando o livro passou a estar
disponível para consulta, quando se tornou destaque na coleção ou quando e como passou a
integrar o setor de Obras Raras, citado por Bustamante, em seu artigo.

A Seção de Livros inclui um pequeno Departamento de Obras Raras que só podem


ser consultadas na Biblioteca. Entre elas podemos citar: Pisonis. G. – De Medicina
Bralisieni, 1648; Redi – Experimenta circa generationem insectorum, 1671; De
Laport et Gory – Histoire Naturalle et iconographic des insectes coleopteres, 1837;
um Formulário Medico (manuscrito) de 1703, encontrado na Igreja de São Franciso
de Curitiba. (BUSTAMANTE, 1958, p.14)

Sabemos que na época inicial da biblioteca, as publicações mais consultadas eram os


periódicos internacionais da área de saúde e que esse tipo de publicação possuía a primazia
entre todas as atividades desenvolvidas pela biblioteca. Segundo Sousa (2006), Oswaldo Cruz
se encarregava pessoalmente da análise de alguns periódicos e solicitava a distribuição dos
artigos de seu interesse entre o seu corpo técnico, com o qual se reunia todas as quartas-feiras
para discussão de seus conteúdos. Essa rotina ficou conhecida como “as mesas de quarta–
feira”.

O Formulário Médico possui características opostas às das publicações periódicas da


época, que buscavam o estado da arte da medicina internacional e traziam informações sobre
as últimas pesquisas em curso. O manuscrito remete ao passado, a um tipo de medicina
104

muitas vezes baseada na crendice, com a utilização de produtos considerados inadequados,


sendo, portanto, representativo de uma medicina rudimentar, sem fundamentos científicos, se
comparada às grandes descobertas do início do Século XX, como, por exemplo, o uso
corrente do microscópio. Daí concluímos que não foi nesse período que o manuscrito passou a
ter visibilidade na Fiocruz.

Emilia Bustamente, substituta de Overmeer, de fato foi a primeira pessoa a falar do


Formulário Médico, em uma publicação de 1958. Contudo, no artigo ela se refere ao
manuscrito já com a classificação de especial, consolidado e inserido no setor de Obras Raras
da biblioteca. Portanto, já era um livro com uma posição privilegiada e estava alocado em um
local diferenciado em relação aos demais livros da coleção, recebendo cuidados especiais.

Como não existem documentos que comprovem, não foi possível analisar a sua
inserção no setor de Obras Raras, mas certamente houve um processo de reconhecimento do
seu valor.

Por indicação da servidora, museóloga e tecnologista em saúde pública, Márcia


Fernandes Portela, entrevistamos a Sra. Anunciata Sawada 42 a respeito da relação dos
trabalhadores da biblioteca com o manuscrito na década de setenta. Através da entrevista,
identificamos informações importantes com relação ao manuscrito e sua visibilidade na
coleção. De acordo com ela, no início da década de setenta, Vinicius Fonseca, então
Presidente do Instituto, determinou a criação de um museu e, para isso, contratou três
museólogos, entre eles, Luiz Fernando Fernandes Ribeiro, que viria a se destacar pelo enorme
conhecimento e interação com as obras raras da biblioteca da Fiocruz.

Neste período, o museu estava ligado à biblioteca, dirigida por Emilia Bustamante.
Funcionava no primeiro andar do Castelo e, entre outros objetos, expunha livros da Biblioteca
de Obras Raras. De acordo com nossa entrevistada, o funcionário Luiz Fernando, além de
trabalhar diretamente com as obras raras e conhecê-las muito bem, era responsável pelo
museu. Relatou, também, que os trabalhadores da biblioteca constantemente transitavam pelo

42
“Graduada em Educação Artística pela UFRJ em 1979 e em Museologia pela UFRJ em 1983, possui
especialização em Ciência das Artes pela Universidade Municipal de Artes de Kyoto, Japão (1990) e Mestrado
em Ensino de Biociências e Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz (2014). Atualmente, é Tecnologista em
Saúde Pública no Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos (LITEB), IOC-Fundação
Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Museologia e Educação Artística, com ênfase em Ciência das Artes,
atuando principalmente nos seguintes temas: ciência e arte, criatividade, educação não formal, museologia,
preservação de memória, preservação e conservação de acervos, ficção científica e gênero”. Texto retirado da
Plataforma Lattes.
105

museu, o que fazia com que os livros saíssem da biblioteca para serem expostos, sem nenhum
critério, previamente, determinado.

Ainda de acordo com Anunciata, o Formulário Médico foi um dos livros expostos no
museu por iniciativa de Luiz Fernando, que era a pessoa que determinava quais livros
deveriam ou não ser expostos. Ele o fazia de acordo com experiências baseadas em seu
conhecimento, talvez por ser o profissional mais próximo e conhecedor dos livros raros e
especiais.

Ela ainda sugeriu que procurássemos a reserva técnica do museu para identificar as
imagens que registraram as exposições. Entramos em contato com o servidor Pedro Paulo
Soares, chefe do serviço de Museologia e responsável pela reserva técnica, que informou
existir uma quantidade expressiva de slides, incluindo registros do interior do museu, dos
objetos e dos livros expostos nessa década. Disponibilizou o material para consulta, que não
pode ser realizada, por não estar organizado nem processado tecnicamente ou separado por
categorias. Além disso, não estão disponíveis equipamentos, tais como o conta fio, leitor de
slides ou projetor. Desta forma não foi possível realizar a pesquisa em tempo hábil.

Assim sendo, não foi possível mapear a construção museográfica e o contexto


referentes à utilização do Formulário Médico. Na entrevista, Anunciata informou que a
exposição, da qual o Formulário fez parte, era dividida em temas e o manuscrito foi exposto
na seção “Introdução da Medicina no Brasil”. Não sabemos quais páginas foram expostas ou
se havia a passagem das folhas em diferentes períodos.

Voltamos a analisar o manuscrito, buscando identificar as páginas que foram expostas,


a partir da fotodegradação - processo pelo qual a luz, natural ou artificial, causa uma
degradação no papel. A radiação, emitida de forma constante nas folhas do papel, faz com que
as tintas de escrita fiquem esmaecidas, ou seja, ficam mais claras em relação às não expostas,
livres da ação da radiação.

Identificamos as seguintes páginas com um esmaecimento acentuado: página 14,


iniciada pela receita de “Tinta de escrever”; página 29, com uma receita para “Febre”; página
28, com uma receita para “Gripe”; página 30, para “Fígado”; e página 31, com uma receita
para “Frialdadez”. Na página 14, a propósito, a leitura se dá com muita dificuldade e,
comparando-a com outras páginas, fica clara a ação da luz, pois a diferença de tonalidade de
uma página para outra é significativa. Assim sendo, podemos supor que estas páginas citadas
possam ter sido expostas, porque não haveria outra explicação para o esmaecimento dos
106

pigmentos de forma tão irregular. Além disso, os danos por radiação são comuns a livros e
documentos expostos.

Já na década de 1980, o museu foi institucionalizado e desvinculado da biblioteca,


passando a ser subordinado ao Centro de Apoio Tecnológico - CAT. Contudo, o manuscrito
permaneceu no museu, em exposição permanente e, segundo a entrevistada - que lembra bem
do Formulário Médico e do tempo que ficou exposto -, não houve nenhuma solicitação por
parte da biblioteca para que o manuscrito voltasse a integrar o acervo.

Revelou, ainda, que ela e Luiz Fernando - trabalhadores agora alocados formalmente
no museu e não mais na biblioteca -, por meio de uma reunião, decidiram que o Formulário
Médico deveria voltar para a biblioteca. Com isso o livro foi retirado da exposição
permanente e o devolvido à biblioteca de obras raras.

Segundo Anunciata, o acervo não era valorizado, principalmente por não haver
divulgação e, também, como deixa claro em suas palavras, porque “ninguém dava a mínima
para esse acervo”. A exposição de obras raras no museu era uma das poucas atividades
promovidas para divulgar as obras consideradas especiais, e essa escolha sempre foi uma
prerrogativa dos funcionários.

Quando perguntamos a respeito do Formulário Médico, informou que era pouco


divulgado e conhecido e que em várias ocasiões eles próprios tratavam de apresentá-lo sempre
que recebiam alguma visita.

Ao que parece os funcionários da biblioteca foram os primeiros a divulgar o


manuscrito, iniciando, desta forma, o processo de dar a visibilidade e a importância que o
livro viria a alcançar, mais tarde, na coleção.

Analisando estas informações, percebe-se que, até a década de 1970, o manuscrito não
era muito conhecido e que, a partir deste período, sua divulgação começa a aumentar
gradativamente, principalmente com a sua inserção no catálogo corrente da Biblioteca de
Ciências Biomédicas. Percebemos que o movimento de divulgação do manuscrito se deu,
inicialmente, pelos esforços dos funcionários da biblioteca e, aos poucos, foi ganhando
visibilidade e se firmando enquanto uma importante fonte de informação histórica a respeito
da medicina dos jesuítas.

Uma das primeiras citações externas do manuscrito, como já informado, foi o artigo:
“Fundação Oswaldo Cruz tem Biblioteca com Obras Raras de Margrave, Post e Barleu”, há
107

um subtítulo chamado: “Receitas dos jesuítas”, no qual o autor fala sobre as características do
livro, além de citar duas de suas receitas, uma para impotência e a famosa receita da “Triaga
Brasílica”.

Parece-nos, também, que o manuscrito acompanhou o movimento de crescimento e


reconhecimento da Biblioteca de Obras Raras. De acordo com Bortoletto e Sant’ Anna, em
seu artigo: “A história e o acervo das obras raras da Biblioteca de Manguinhos”, o
crescimento e a expansão da biblioteca se deram de forma gradual ao longo dos anos.

Com a morte de Overmeer, em 1946, a direção da biblioteca é assumida por Emilia


Machado de Bustamente, até 1965, voltando à direção da biblioteca entre 1971 e 1976. Tendo
contribuído significativamente para o seu crescimento, Emília Bustamante foi a responsável
pela publicação de trabalhos importantes para a divulgação da biblioteca e, em sua gestão, foi
criado o primeiro catálogo de periódicos da biblioteca, em 1959. Além disso, foi a primeira a
falar sobre o manuscrito, com a publicação de um artigo.

Ainda conforme Bortoletto e Sant’ Anna, o crescimento da biblioteca sempre esteve


ligado ao sucesso das atividades desenvolvidas pelo Instituto. Assim foi em 1907, com o
recebimento da medalha de ouro na Exposição Internacional do “XIV Congresso de Higiene e
Demografia de Berlim”43. A partir desse prêmio, a biblioteca aumentou consideravelmente o
número de títulos, saltando de 3.000 títulos, em 1909, para 160.000, em 1957. O número de
consultas acompanhou o movimento de crescimento da biblioteca: em 1944, foram 1.000
consultas mensais, saltando para 19.000, em 1957 e para 35.000, em 2000. Em 1965, a
biblioteca atingiu o número de 279.000 volumes, saltando para 373.000 no ano 2000.

Os números expressivos se relacionam muito mais aos periódicos da área de saúde,


pois, nos períodos informados, a questão das obras raras ainda era incipiente. Foi somente a
partir da década de oitenta que a as coleções ditas especiais se tornaram uma questão
recorrente.

Um marco nessa direção foi a criação do convênio entre a biblioteca e a Financiadora


de Estudos e Projetos (FINEP), que possibilitou a realização de um grande projeto de
identificação e tratamento das obras raras do acervo da Biblioteca de Manguinhos.

43
Congresso realizado em Berlim em setembro de 1907.
108

O projeto viabilizou a contratação de duas bibliotecárias, um auxiliar de biblioteca,


uma 44restauradora e um consultor da área de conservação de acervos documentais.
Foram tratados tecnicamente, até o término do projeto, em 1992, 1.226 títulos de
obras consideradas raras ou especiais, em um universo de oito mil volumes de livros
potencialmente raros. (RODRIGUES, 2007, p. 182)

Como resultado do projeto, em 1992, foi publicado o primeiro “Catálogo de Obras


Raras e Especiais da Biblioteca de Manguinhos”. Em consulta ao catálogo, percebemos que o
Formulário Médico não fez parte da publicação. Desta forma, consultamos a servidora
Georgina Gentil Rodrigues, chefe da biblioteca entre 2002 e 2006, para nos esclarecer o
porquê o manuscrito não fazer parte do primeiro catálogo. Segundo ela, entre os critérios de
seleção estabelecidos pelos organizadores para a inclusão de obras no catálogo, estava o de
incluir apenas obras impressas. Vale ressaltar que a decisão em não incluir o manuscrito no
catálogo de 1992 foi consensual não esteve ligada a nenhum critério de raridade bibliográfica.

Segundo Bortoletto e Sant’ Anna, em 1995, com a transferência de parte do acervo


para o novo edifício, a biblioteca do Castelo passa a ser destinada apenas para a guarda de
obras raras e especiais, e dá-se início, então, a um processo para a elaboração de ações
integradas de disseminação da informação científica.

Por um lado, a biblioteca preocupou-se em ter os olhos voltados para o futuro,


adequando-se às novas políticas e tecnologias de informação e, por outro lado, não
deixou de considerar seu passado... Os resultados envolvem a contínua ampliação do
acervo, a disponibilização da informação de forma rápida e eficiente, através de
publicações impressas, banco de dados, sites da internet, bibliotecas virtuais.
(BORTOLETTO; SANT’ ANNA, 2002, p.192).

Em 1999 foi dado início ao Projeto Ciência, Natureza, Saúde: um olhar construído a
partir das Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos, para a divulgação e a disseminação da
coleção, considerado por Bortoletto e Sant’ Anna como sendo um:

Conjunto documental, de reconhecido valor histórico e científico, que permaneceu


por muito tempo desconhecido e inacessível na própria instituição, permitirá um
efeito multiplicador sobre a qualidade e o volume das pesquisas produzidas no
campo das ciências biomédicas, da saúde pública e da história das ciências no
Brasil. (BORTOLETTO; SANT’ ANNA, 2002, p.189)

Já nos anos 2000, por iniciativa do Centro de Informação Científica e Tecnológica - ao


qual a biblioteca é subordinada -, foram realizadas duas exposições em comemoração aos 100
anos da Fundação Oswaldo Cruz. As exposições foram chamadas, respectivamente, de “Terra
e Gente do Brasil” e “A Ciência e a Saúde Pública”. Contaram com a utilização do acervo da
Biblioteca de Obras Raras, que incluiu livros, revistas, gravuras, fotos e manuscritos. Nelas,

44
A restauradora contratada na ocasião do Projeto não realizou intervenções de restauro em livros. Aplicou
atividades de conservação, tais como: higienização e acondicionamento. Na ocasião o Formulário Médico já
estava em adiantado estado de degradação.
109

foram expostos apenas os materiais considerados raros e especiais, com destaque para o
“Formulário Médico”, que se tornou extensamente conhecido e apreciado após sua
apresentação na exposição “A Ciência e a Saúde Pública”. A partir da leitura da apresentação
da exposição pudemos verificar que o Formulário Médico, agora tratado no âmbito de um
projeto museográfico bem delineado, foi relacionado às descobertas científicas e ao avanço
das ciências médicas:

A proposta dessa segunda exposição “A Ciência e a Saúde Pública” é apresentar


alguns marcos importantes da história das ciências biomédicas e da saúde pública no
mundo e no Brasil. Dentro desse campo vastíssimo que trata dos conhecimentos e
das descobertas científicas no mundo moderno, selecionamos autores, conceitos e
teorias que geraram debates e controvérsias fundamentais para o advento da ciência
e que até hoje tem impacto na nossa vida cotidiana. (CATÁLOGO, 2000. p.1)

Em 2004, a Biblioteca de Manguinhos, incluindo a seção de Obras Raras, passa a


integrar a Rede de Bibliotecas da Fiocruz, o que ampliou o acesso aos acervos por meio de
novas tecnologias e da participação da Rede na socialização da informação, conforme descrito
no primeiro artigo do regulamento:

Art. 1º - A Rede de Bibliotecas da Fiocruz, vinculada ao Instituto de Comunicação e


Informação Científica e Tecnológica em Saúde - ICICT, é um organismo cujo
objetivo é reunir, articular e integrar as bibliotecas da Fiocruz, visando potencializar
e agilizar o intercâmbio e o uso de informações e expandir o seu acesso e
disponibilidade, para atender às necessidades e demandas de informação da
comunidade científica e tecnológica em saúde, assim como a sociedade em geral.
(REGIMENTO, 2004. p.1)

Todas essas iniciativas tiveram papel importante na consolidação da Biblioteca de


Manguinhos como uma biblioteca de referência e percebemos que as iniciativas voltadas para
o desenvolvimento e expansão das bibliotecas, especificamente da Rede de Bibliotecas da
Fiocruz, foram fundamentais para a divulgação e disseminação da informação dos seus
acervos para além das fronteiras da instituição e, mais do que isso, para a divulgação dos
acervos para o público em geral.
Estamos convencidos de que as medidas mencionadas foram fundamentais para que
pudéssemos ter acesso ao Formulário Médico, esquecido por muitos anos em uma arca e,
posteriormente, no armazém da Biblioteca de Obras Raras. De fato, percebemos que o grande
número de citações ao manuscrito, interna e externamente, ocorreram a partir do final da
década de oitenta e, principalmente, após a publicação do catálogo de obras raras de 2005, no
qual o Formulário Médico está descrito.
O Catálogo de Obras Raras foi, sem dúvida, um importante meio de divulgação para o
Formulário Médico, apresentando o manuscrito a um grande público:
110

Mesmo na era da automação e da pesquisa bibliográfica computadorizada, sua


importância e utilidade são indiscutíveis. Preparado por uma equipe profissional
altamente capacitada, este Catálogo divulga, no Brasil e no Exterior, uma parcela
importante da herança cultural preservada na Biblioteca de Manguinhos.
(CATÁLOGO, 1992. p.1).

No processo de buscar a trajetória de visibilidade do nosso objeto de estudo, e após


uma extensa busca, encontramos apenas dois artigos citando o manuscrito, com uma diferença
de 40 décadas entre eles. A primeira referência encontrada no artigo de Emilia Bustamente -
chefe da biblioteca em 1945 - e a segunda referência, no artigo do Jornal do Brasil, já
mencionado, datado de 1981. Não podemos afirmar que foram as primeiras referências
públicas dadas ao manuscrito, mas certamente foram as mais antigas que encontramos,
referindo-se a ele como uma obra rara e especial.
A partir delas o número de referências que identificamos, em sua grande maioria,
ocorreram a partir dos anos de 2000. São elas:

TRABALHOS ACADÊMICOS

SOUSA, Alexandre Medeiros Correia de. Estudo de uma experiência de fluxo


informacional científico no Instituto Oswaldo Cruz: A mesa das quartas-feiras.
Dissertação (Mestrado em PPGCI) - Universidade Federal Fluminense, 2006. p.110

GUIMARÃES, Ana Márcia Rodrigues Corrêa. Bibliotecas e Divulgação científica: quatro


casos da Rede Fiocruz. (Monografia) - Especialização em Divulgação da Ciência, da
Tecnologia e da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz, 2013. p.81

PERUZZO, Tarcila. A Seção de Obras Raras da Bbiblioteca de Ciências Biomédicas da


Fiocruz e a Memória Institucional da Saúde Pública no Brasil. 96 f. Dissertação
(Mestrado em Ciência da Informação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro, 2013.

ARTIGOS CIENTÍFICOS

BORTOLETTO, Maria Élide; SANT’ANA, Marilene Antunes. A história e o acervo das


Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos 2002. Revista História, Ciência, Saúde. Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, v.9 (1), 187-203, jan.-abr, 2002.

RODRIGUES, Jeorgina Gentil; ALCANTARA, Heloísa Helena Freixas de. Socialização do


acesso à Coleção de Obras Raras da Fiocruz. Anais da Biblioteca Nacional. VII ENAR -
Encontro Nacional de Acervos Raros. Rio de Janeiro. Anais da Biblioteca Nacional, v. 123,
p. 105-110, 2007.
RODRIGUES, Georgina Gentil. O espelho do tempo: uma viajem pelas estantes do acervo de
obras raras da biblioteca de Manguinhos. Revista perspectiva em ciência da informação.
Rio de Janeiro, v.12. n.3. Set/Dez. 2007.
111

GESTEIRA, Heloisa Meireles; TEIXEIRA. Alessandra dos Santos. As fazendas jesuíticas em


Campos dos Goitacazes: práticas médicas e circulação de ideias no império português
(séculos XVI ao XVIII). Clio - Série Revista de Pesquisa Histórica. Pernambuco, n. 27-2,
2009

REPORTAGENS ON-LINE
Combate pela Preservação. Matéria publicada no site do Bom Dia Brasil, da Rede Globo.
Publicado em 19 de outubro de 2001. Matéria sem autoria. Disponível em: <
g1.globo.com/bomdiabrasil/0MUL829126-16020,00-
COMBATE+PELA+PRESERVACAO.html> acesso em: 10 no. 2015.
MELO, Káthia. G1 revela “tesouros” escondidos do Rio nos 450 anos da cidade. Publicada
em 25 de março de 2015. Disponível em < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-
anos/noticia/2015/03/g1-revela-tesouros-escondidos-do-rio-nos-450-anos-da-cidade.html >.
Acesso em: 10 nov. 2015.
MATÉRIA EM REVISTA
A cura pela natureza: Formulário Médico de 1703 descreve doenças e inclui receitas
indígenas. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n.118, jul., 2015.
(Seção Almanaque. p. 86).
PROGRAMAÇÃO EM EVENTOS
Informativo na Programação da Semana Fluminense do Patrimônio 2011. De 15 a 19 de
agosto. Para a chamada de uma exposição no salão de leitura da Biblioteca de Obras Raras.
CATÁLOGOS
Catálogo da Exposição: A ciência e a Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz, 2000
Catálogo de Obras Raras e Especiais da Biblioteca de Manguinhos. Fundação Oswaldo Cruz.
Projeto Overmeer 2005.
PANFLETOS
Panfleto de divulgação com a tradução de uma de suas receitas. Traduzido pela professora
Maria José Azevedo Santos. Professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade
de Coimbra. Circulação interna, 2013.
PALESTRAS

Palestra da historiadora Heloisa Meireles Gesteira, pesquisadora titular do Museu de


Astronomia e Ciências Afins, professora do programa de Pós-graduação em História da
Unirio e professora adjunta da PUC-Rio. Intitulada “Práticas médicas e circulação de saberes
na América portuguesa: reflexões sobre um caderno de receitas atribuído aos jesuítas”. Salão
de leitura da Biblioteca de Manguinhos em 9 de agosto de 2014.
Curso Interno ministrado pelo professor: Fabiano Cataldo Azevedo. 1º Curso de Introdução à
Gestão de Coleções bibliográficas Especiais. De 01 a 03 de setembro de 2014. Fundação
Oswaldo Cruz.
112

DIVULGAÇÃO EM SITES
Site do Instituto de Comunicação e Informação Cientifica e tecnológica em Saúde – ICICT.
Biblioteca de Manguinhos: Sobre a biblioteca de Obras Raras. Obras raras Assuerus
Overmeer. - Publicado em: 10/01/2008. Texto de autoria de André.
Site do Instituto de Comunicação e Informação Cientifica e Tecnológica em Saúde – ICICT.
Biblioteca de Manguinhos na seção: fonte de informação Obras Raras - Publicado em:
11/08/2009. Texto de autoria de Rafael Vinícius.
Publicação no site da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca: Fiocruz abriga acervo
na área de saúde pública. Publicado em 20 de abril de 2009.
Relatório de atividades do ICICT, 2011-2012 na seção informação e comunicação. Subseção
rede de bibliotecas da Fiocruz. Publicado no site do Instituto de comunicação e Informação
Cientifica e tecnológica em Saúde. Publicado em 2012.

É possível verificar com facilidade que o grande número de citações ao manuscrito


ocorrem, com mais frequência, a partir dos anos 2000. Apesar da busca exaustiva não
podemos afirmar que as citações encontradas são as únicas existentes. De qualquer forma,
elas servem para fortalecer a tese de que a projeção do manuscrito esteve ligada à projeção da
Biblioteca de Obras raras. Mais do que isso, o manuscrito é utilizado para elevar o nível de
representação da biblioteca, na rede e na sociedade. Seja como for, o Formulário Médico é um
livro solicitado em diferentes ocasiões e, sempre que se fala do acervo e seus itens, ele hoje
está presente.

Interessante notar que as referências ao manuscrito estão ligadas diretamente à sua


importância enquanto documento histórico e repositório de informações a respeito da
formação da medicina dos jesuítas. Podemos afirmar que, até o momento, não existe nenhum
estudo diretamente ligado ao seu conteúdo. Nossa análise inicial nessa dissertação pretende,
portanto, ser uma etapa inicial para chamar a atenção para o conteúdo informacional do
manuscrito e as mais diversas facetas de pesquisa que ele pode proporcionar.

O Formulário Médico está disponível para consultas. Evidentemente, por se tratar de


uma obra rara, possui restrições, mas sua função enquanto repositório informacional está
assegurada. Com o objetivo de divulgar o seu conteúdo informacional, está em curso um
projeto, elaborado pela Biblioteca de Obras Raras, com a intenção de transcrever e publicar o
conteúdo do Formulário na íntegra e, desta forma, possibilitar que as suas informações,
possam gerar novos conhecimentos.
113

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção da biografia do Formulário Médico na Fundação Oswaldo Cruz foi um


excelente exercício que destacou os livros e suas relações com as instituições de guarda.
Costumamos imaginar os livros apenas enquanto suporte para informação, como objetos
estáticos, parados e encerrados no tempo. Mas o que um livro pode oferecer além do seu
conteúdo informacional?

Dissertar sobre a história do manuscrito é, também, poder apresentar, em parte, as


formas como ele foi utilizado e quais as motivações desse uso, mais especificamente pela
Biblioteca de Obras Raras da Fundação Oswaldo Cruz.

Desenhamos, a partir das investigações realizadas por conta deste estudo, duas grandes
linhas de análise do manuscrito. A primeira foi a sua classificação como uma obra rara,
portanto, ligada à sua materialidade e ao seu conteúdo, fundamentada por meio das suas
características físicas e de constituição, representativas dos processos históricos que
atravessou. A segunda linha que trilhamos foi a da questão simbólica do manuscrito. Mais do
que um livro raro, fonte de informações históricas, percebemos que o manuscrito exerce uma
espécie de fascínio sobre quem o conhece, pois, ao longo dos anos, passou a ser um objeto de
celebração, distanciado das suas meras funções de livro, devido a uma forte carga de
representatividade.

O Formulário Médico recebeu a classificação de obra rara por possuir valor especial,
agregado a diferentes fatores, tais como a sua antiguidade e, em um segundo momento, por
sua ligação aos jesuítas. Independentemente das motivações, o importante é perceber o
tratamento especial dispensado ao livro, hoje tido como patrimônio cultural documental da
Fiocruz. E, como afirma Jeudy, o patrimônio está relacionado ao passado que precisa ser
perpetuado:

A ideia de patrimônio apresenta-se como uma evidência, pois assim como todo
indivíduo viveria mal sem memória, também uma coletividade precisa de uma
representação constante do seu passado. (JEUDY, 1990. p.6)

Todas as representações ligadas ao manuscrito foram construídas e sua importância e


destaque são o resultado de um longo processo, consciente e intencional. Livros,
especificamente os considerados raros e especiais, são definidos como importantes fontes
históricas, o chamado “patrimônio documental”. Le Goff (2003, p.110) registra que
114

“documentos só passam a ser fontes históricas depois de estarem sujeitos a tratamentos


destinados a transformar sua função de mentira em confissão de verdade”.

Assim sendo, a raridade bibliográfica está ligada às ideias de memória e patrimônio e


funciona como uma metodologia que visa criar critérios para a identificação de características
especiais, estabelecendo uma distinção entre os livros. Afinal, quando classificados em obras
raras, os livros são separados dos demais itens da coleção e recebem um tratamento
diferenciado, tanto nos aspectos da biblioteconomia - e aqui nos referimos aos procedimentos
técnicos da área -, quanto aos locais de guarda e suas formas de preservação. Uma vez
classificados como raros, são criados critérios para o seu manuseio, são tirados de circulação
e, na maioria das bibliotecas, sua consulta é restrita, concedida ou não, através de solicitações
especiais.

Com essa perspectiva, foi criado, na década de 1980 pela Biblioteca Nacional, o Plano
Nacional de Restauração de Obras Raras - PLANOR, cujo conteúdo apresenta critérios de
raridade bibliográfica, de forma a orientar o estudo de obras raras e especiais em bibliotecas:

O PLANOR surgiu das pesquisas sobre livro raro e sua importância histórica,
empreendida por um grupo de jovens bibliotecárias guiadas pelo carisma e pela
competência da bibliotecária Cely de Souza Soares Pereira. (PINHEIRO, 1989, p.
XX).

De acordo com Pinheiro, a metodologia para a raridade bibliográfica era inexistente


nas bibliotecas brasileiras. A autora, chefe da Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional,
publicou, em 1989, o livro: “O que é livro raro”. A publicação ficou bastante conhecida e logo
se tornou uma referência para o assunto. E já que estamos tratando de um livro raro,
buscamos o apoio da literatura especializada para identificar os critérios associados ao
manuscrito para a identificação de sua raridade. Afinal, por que o Formulário Médico é
considerado um livro raro?

Em princípio, pensamos que a chancela de raridade do manuscrito se deu pela sua


antiguidade. Estávamos inclinados a achar que um livro raro seria o mesmo que um livro
antigo. Contudo, a partir do estudo da literatura especializada, notamos que apenas a
antiguidade é um critério insuficiente para a caracterização de uma obra rara. Percebemos,
então, que um dos principais critérios para estabelecer a raridade de um livro é a sua procura,
pois o interesse faz com que os livros sejam desejados por muitos. No caso do manuscrito, ele
é especialmente raro por ser um livro difícil de ser encontrado e acessado. Além disso,
existem uma série de fatores complexos, que fazem com que determinado livro seja
classificado como raro. E com relação ao nosso objeto não é diferente. Para Pinheiro (1989,
115

p.44) “cada livro é um universo restrito de manifestações culturais – originais e


acrescentadas”, portanto sujeito à relatividade. Já para Rodrigues, o livro é raro quando:

De maneira bastante simplificada, pode-se dizer que livro raro é aquele difícil de
encontrar por ser muito antigo, ou por tratar-se de um exemplar manuscrito, ou
ainda por ter pertencido a uma personalidade de reconhecida projeção e influência
no país e mesmo fora dele (por exemplo: imperadores, reis, presidentes), ou
reconhecidamente importante para determinada área do conhecimento (física,
biologia, matemática e outras). (RODRIGUES, 2007. p.115).

Aqui o autor apresenta, também, os critérios de raridade relacionados aos processos de


produção dos livros, especialmente os antigos, que carregam em si as marcas de sua produção
artesanal e são representantes do fazer cultural de um determinado período.

De acordo com a literatura, podemos afirmar que o Formulário Médico, em sua


história antiga ou recente, foi e é considerado raro por uma série de fatores. Destacamos a
dificuldade de encontrar esse tipo de obra, extremamente escassa, uma vez que só
conhecemos pouquíssimos exemplares com características semelhantes. Destacamos,
também, o fato de se tratar de um manuscrito produzido artesanalmente, assim como a
natureza dos seus componentes físicos: papel de linho, marcas d’água e tinta de escrita
(ferrogálica).

As obras raras são assim definidas por possuírem um número restrito de exemplares,
muitos considerados únicos, outros com poucos exemplares conhecidos. Essas características
fazem com que este tipo de obra receba um tratamento diferenciado, devido à sua
impossibilidade de substituição, caso sejam perdidos. Pinheiro sistematizou os seguintes
critérios para a raridade bibliográfica:

1 limite histórico:
1.1 todo o período que caracteriza a produção artesanal de impressos (...) do século
XV, princípio da história da imprensa, até antes de 1801, marco do início da
produção industrial de livros.
1.2 todo o período que caracteriza a fase inicial da produção de impressos em
qualquer lugar – por exemplo, o século XIX -, quando foram publicados os
primeiros “incunábulos” brasileiros, com a criação da Imprensa Régia. (...)
2 aspectos bibliográficos dos volumes produzidos artesanalmente, independente da
época de publicação (...).
3 valor cultural:
3.1 edições limitadas e esgotadas, especiais e fac-similares, personalizadas e
numeradas, críticas, definitivas e diplomáticas (...).
3.2 edições de clássicos, assim considerados nas histórias das literaturas específicas
(...).
4 pesquisa bibliográfica:
4.1 nas fontes de informação bibliográficas (...);
4.2 nas fontes de informação comerciais, que vão avaliar, em espécie, cada unidade
bibliográfica – o preço passa a ser indicador de “raridade”.
5 característica do exemplar – referindo-se àqueles elementos acrescentados a
unidades bibliográficas em período posterior a sua publicação:
116

5.1 marcas de propriedade (...);


5.2 dedicatórias de personalidades famosas e/ou importantes. (PINHEIRO apud
SANT’ANA, 2001).

Nota-se que os critérios para raridade bibliográfica estão relacionados aos aspectos
físicos, sobretudo para livros antigos, por refletirem as formas manuais pelas quais foram
produzidos e por apresentar em sua constituição, elementos utilizados em outras épocas.
Como por exemplo, a utilização do papel de trapo, produzido até 1850, ou os livros escritos
em tinta ferrogálica, muito utilizada até o final do século XIX. Contudo, os assuntos dos quais
os livros tratam também são fundamentais para a sua classificação como obras raras, pois a
sua procura é o que os tornam desejados. A partir daí, nos perguntamos como um livro pode
ser considerado o mais importante de uma coleção e o seu conteúdo permanecer inédito?

Ao longo da pesquisa, confirmamos a questão identificada antes do início dos


trabalhos: o conteúdo do manuscrito não foi explorado sob o ponto de vista histórico, pois ele
é tratado, apenas, como um manuscrito com receitas médicas jesuíticas. Mas e as suas
receitas? É claro que o fato de ter sido escrito pelos jesuítas pode parecer suficiente para
demonstrar a importância histórica do manuscrito. Mas outras características com relação ao
seu conteúdo podem oferecer e revelar vários tipos de conhecimento. Afinal, o que são as
receitas e como elas se apresentam? Quais as suas relações com a história da evolução das
artes médicas? O que podem revelar sobre as trocas sociais e culturais de sua época?

Para nós, o estudo do conteúdo informacional do manuscrito foi revelador e


extremamente relevante enquanto repositório informacional sobre as relações dos jesuítas
com os povos indígenas, além de ser um testemunho das práticas médicas por eles executadas.
As citações localizadas durante a pesquisa tratam apenas da posse do manuscrito pela Fiocruz.
Não localizamos qualquer trabalho de análise dos dados e das informações presentes no
manuscrito a respeito da atuação dos padres jesuítas nos territórios portugueses na América.
Não conhecemos qualquer outro livro com as mesmas configurações, com exceção do
manuscrito citado nesse estudo, chamado “Coleção de Várias Receitas” - publicação
preservada no Arquivo Jesuítico de Roma. Publicação essa, extensamente citada na literatura
especializada quando as práticas médicas criadas e difundidas pelos inacianos são
mencionadas. Pensamos que o Formulário Médico mereça um lugar de destaque como este,
devido ao papel desempenhado por esse tipo de documento, à Companhia de Jesus, na criação
de redes de compartilhamento de informação entre os irmãos da Ordem, como, também, pela
descrição de seus processos de apropriação de plantas para fins medicinais, além de suas
117

contribuições para o estudo da produção médica experimental, científica no Brasil do período,


conforme afirmação de Fleck:

Suplantando a visão da “profunda vocação missionária”, as obras de Furlong


apresentam a Companhia de Jesus como fundamental para o estudo e a compreensão
da história e da cultura do período colonial americano, não somente por ter
desenvolvido “um projeto científico próprio”, mas por ter contribuído
significativamente para os estudos das humanidades e das ciências realizados nos
séculos seguintes. (FLECK, 2014. p. 680).

A identificação da ausência de trabalhos de análise do conteúdo do Formulário Médico


foi o que motivou o capítulo 2, de descrição do conteúdo. Não tivemos a intenção de fazer
apologia à Companhia de Jesus. A intenção foi a de situar o leitor quanto ao tipo de
documento, alvo de nossas pesquisas, para justificar a importância no tratamento deste tipo de
obra. Estamos contando a história do manuscrito. Logo, é fundamental demonstrar o tipo de
importância dispensada ao nosso objeto de pesquisa e o que ele pode oferecer enquanto fonte
de saber. Portanto, a análise do seu conteúdo foi realizada no sentido de cobrir essa lacuna,
sem a pretensão de exaurir o tema, mas, sim, a de levantar, de forma provocativa, a riqueza
que sua análise pode conter. Buscamos, assim, analisar algumas receitas representativas do
fazer médico dos jesuítas e mostrar o manuscrito enquanto suporte de informação
privilegiada, além do seu papel de servir como testemunho dos processos de formação da arte
médica exercida pelos inacianos. Já que nosso trabalho se propôs a realizar a biografia deste
livro na Fundação Oswaldo Cruz, achamos importante apresentar, a partir do estudo desse
objeto, mesmo que de forma superficial, o tipo de informação e conhecimento gerados por ele
e com isso fortalecer a sua representatividade.

A segunda linha de análise que desenhamos, conforme citado anteriormente, tratou da


questão simbólica ligada ao manuscrito, que ao longo dos anos passou a ser um objeto de
celebração, distanciado das suas funções de livro, por conta de uma forte carga de
representatividade de sua época.

Essa relação dos objetos que perdem sua função de utilidade e recebem a função de
significado e de representação é o que Pomian chama de semióforo, uma categoria de
pensamento criada pelo autor para explicar a capacidade que os objetos possuem de
representar o invisível.

Produto inevitável do funcionamento da própria linguagem, a oposição entre o


visível e o invisível não só permite, mas sugere, ao que parece, que se atribua a este
último uma superioridade em relação ao primeiro, um certo poder de fecundidade.
Ela leva, então, a interessar-se por tudo aquilo que, de uma maneira ou de outra,
parece ligado ao invisível e, em particular, aos objetos que se pensa que o
representem. (POMIAN, 1984. p.69)
118

Para ele, existe um processo mutuamente exclusivo, em que os objetos perdem sua
utilidade, ao mesmo tempo em que recebem significado: passam à posição de objeto
representativo; quanto mais significado ganham, menos utilidade têm. Os objetos, assim,
passam a representar o invisível, criando uma espécie de ponte entre dois mundos distintos.
Um visível e outro invisível, um com utilidade o outro com significado, que se revelam
através do olhar:

O semióforo desvela seu significado quando se expõe ao olhar. Tiram-se assim duas
conclusões: a primeira é que um semióforo acede a plenitude do seu ser semióforo
quando se torna uma peça de celebração; a segunda, mais importante, é que a
utilidade e o significado são reciprocamente exclusivos: quanto mais carga de
significado tem um objeto, menos utilidade tem, e vice versa. (POMIAN, 1984.
p.72)

O Formulário Médico, desta forma, é um mediador entre dois mundos, é um objeto


físico que carregado de significado, deixa de exercer a função de livro e é celebrado enquanto
um semióforo, ou seja, um objeto representativo.

A partir do momento em que o nosso objeto de estudo foi relacionado ao seu passado
jesuítico, o que tornou possível o seu entendimento, seja quanto aos processos médicos, ou
quanto as suas relações sociais e culturais, o manuscrito adquiriu um novo significado e
passou a ser um objeto de celebração do passado. Contudo a celebração do passado por meio
de significados atribuídos a um determinado objeto sofre variações, o que faz com que os
semióforos possam ser vistos de formas diferentes por determinados grupos. O
estabelecimento de laços com o invisível, (POMIAN, ANO, p. 73) assim como a procura do
significado, depende do observador, já que, por meio dele são estabelecidas as relações. Ou
seja, o significado de um semióforo para uns, pode não ser o mesmo para outros. Ainda no
caso do Formulário Médico, seu ser semióforo para nós é um e para outros observadores pode
e, certamente, será diferente.

Aqui cabe pontuar o papel da biblioteca enquanto mantenedora desse objeto carregado
de significado que representa o passado, pois, para Pomian, a posse de um semióforo eleva
seus proprietários a uma posição de destaque na hierarquia social:

É fácil de compreender então que a aquisição de semióforos, a compra de obra de


arte, a formação de bibliotecas ou de coleções, é uma das operações que, ao
transformar a utilidade em significado, permitem a quem tenha uma alta posição na
hierarquia da riqueza ocupar uma posição correspondente na do gosto ou do saber,
sendo as peças de colecções, como se viu, símbolo de pertença social, senão de
superioridade. (POMIAN, 1984. p.80)
119

Certamente, por este motivo a biblioteca se orgulhe tanto em contar com esse objeto
em sua coleção e talvez isso explique o fato do livro ser citado sempre que se fala da
Biblioteca de Obras Raras da Fiocruz. Quando realizamos nossa pesquisa de identificação das
citações ao manuscrito, percebemos que as informações são voltadas para a posse do
manuscrito jesuítico, datado de 1703, pela biblioteca, em detrimento de seu conteúdo. Com
isso, ficou claro que, na verdade, o que se apresenta é o que ele representa em termos de
“status” para a instituição. A biblioteca expõe a obra para afirmar a sua importância enquanto
proprietária de um objeto tão significativo, um objeto de celebração do passado.

Percebemos, assim, como o desenvolvimento da biblioteca interferiu nas formas de


representação do manuscrito, na maioria das vezes, utilizado para ressaltar a sua importância
por possuir uma obra tão significativa nos aspetos culturais e históricos, sobretudo a partir dos
anos 2000, já que, até esse período o grande esforço foi realizado pelos funcionários da
biblioteca neste sentido, em decorrência dos longos anos sem a devida valorização.

A busca por informações a respeito da trajetória do manuscrito foi um exercício


extremamente prazeroso, pois, através das conversas que mantivemos ao longo dos meses
com servidores em exercício e outros já aposentados, pudemos reviver as relações dos
funcionários com a biblioteca e com a obra. Além disso, tivemos a oportunidade de criar
ligações, desconhecidas até então, quando buscamos identificar o momento em que o livro foi
inserido na coleção.

Realizar a biografia do Formulário Médico foi, também, demonstrar seu tratamento ao


longo dos anos, revelando a forma como a instituição cuidou e preservou o manuscrito. Ao
analisar o processo de restauração aplicado na obra, no ano 2000, percebemos que o processo
realizado foi interventivo, alterando as configurações originais do manuscrito e causando
danos superiores aos sofridos pelo livro, ao longo dos seus mais de trezentos anos de
existência. Essa análise também foi realizada, porque a maneira como a restauração foi
conduzida é bastante representativa quanto à forma como a biblioteca, enquanto guardiã do
manuscrito, cuidou de sua preservação e também gerou consequências quanto à evolução das
técnicas de preservação em âmbito institucional.

A presença do manuscrito no acervo da instituição estimulou a criação de diretrizes


para os processos de restauração, pois possibilitou a reflexão a respeito da responsabilidade
com a guarda e preservação de seu acervo. As discussões proporcionadas pela restauração do
manuscrito foram importantes para se pensar nos futuros projetos que envolvam a restauração.
120

A Instituição sempre manteve uma posição ativa no que diz respeito à preservação de
seus acervos. Prova disso foi a criação da Casa de Oswaldo Cruz45, uma unidade técnico-
científica dedicada à preservação da memória institucional da FIOCRUZ. O Instituto de
Comunicação e Informação Científica e Tecnológica – ICICT, através da gestão de acervos
bibliográficos, realiza a gestão de preservação dos acervos da Rede de Bibliotecas da
FIOCRUZ. Para isso, possui um programa de gestão de preservação focado na conservação
preventiva de documentos e na conservação com a aplicação de pequenos reparos em livros
correntes. Contudo, processos de restauração são não aplicados pela gestão de acervos, o que
faz com que, eventualmente, possam ser solicitados estes serviços por meio de licitações ou
de projetos especiais. Nossa análise e estudo enfocou o processo de restauração do Formulário
Médico, que, apesar de necessário, deveria ter tido como resultado, além do livro restaurado,
um processo documental, detalhado, de todas as fases do projeto. Vale ressaltar que em
nossas pesquisas encontramos outros títulos restaurados, por outras empresas, onde o
processo foi realizado como desejado, constando nele todos os documentos do tratamento,
inclusive, os registros fotográficos. A partir desta pesquisa, a gestão de acervos bibliográficos,
em conjunto com a Biblioteca de Ciências Biomédicas, decidiu criar parâmetros, normas e
critérios para a realização de qualquer tipo de restauração em seus acervos.

Para nós, a realização dessa pesquisa possibilitou uma aproximação com a instituição,
na medida em que estudamos, sistematicamente, sua história, sua missão e sua
responsabilidade com a preservação de seu patrimônio. Foi igualmente gratificante realizá-la,
pela possibilidade de entrar em contato com servidores dedicados, que além de seu
comprometimento, doaram afeto na execução de suas atividades na Biblioteca de Obras Raras
da Fundação Oswaldo Cruz.

45
A casa de Oswaldo Cruz é dedicada à preservação da memória da Fiocruz e às atividades de pesquisa, ensino,
documentação e divulgação da história da saúde pública e das ciências biomédicas. Fonte: Casa de Oswaldo
Cruz. http://www.coc.fiocruz.br/index.php/institucional/quem-somos. Acessado em: 02 abril 2016.
121

REFERÊNCIAS

ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das


transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, n.
15, jul/dez. 2007.

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