Vous êtes sur la page 1sur 39

História da Igreja Medieval

Antes de ascender aos céus, Nosso Senhor pediu aos Apóstolos que fizessem discípulos entre todas as nações,
ensinando-as a observar tudo o que Ele lhes tinha ordenado. Isso significava também impregnar o tecido social com o
suave odor de Cristo, iluminando e orientando as realidades temporais com a força do Evangelho.

Foi o trabalho que a Igreja empreendeu na Idade Média, resgatando o Ocidente da barbárie e inserindo os homens na
Cidade de Deus, a fim de dar-lhes a eternidade quando não mais vivessem na história.

Os iluministas e humanistas chamaram esses mil gloriosos anos de “idade das trevas", numa tentativa patética de
difamar a Igreja. O que faziam, no entanto, era cortar o próprio galho em que estavam sentados. Afinal, a Igreja que
eles criticavam era a Mãe e Mestra que tinha gerado as instituições de que desfrutavam e construído a civilização de
que se alimentavam.

A história da Igreja medieval, assim como todas as histórias com atores humanos, é cheia de nuances, personagens
controversas e momentos conturbados. Alguns episódios particularmente difíceis até parecem dar em um beco sem
saída. No fim, porém, se confirma a promessa de Cristo de que as portas do inferno não prevalecerão contra a Sua
Igreja e o próprio Deus intervém na história, por meio de Seus santos.

Mirabilis Deus in sanctis suis, diz o salmista. Deus é realmente maravilhoso nos Seus santos. Perscrutar a vida de
homens e mulheres que entregaram a própria vida para viver a vida de Cristo é o alicerce mais seguro para
compreender a história eclesiástica. E é esse caminho que o curso História da Igreja Medievaldeseja seguir. Entre
também nessa aventura.

Aula Título Duração Data

1 O santo dos novos tempos 28:57 Agosto 24, 2014


2 A conversão de Clóvis, rei dos francos 26:23 Setembro 02, 2014
3 São Gregório Magno e a reconquista da Europa 27:14 Outubro 08, 2014
4 As expansões islâmicas e a defesa da Europa 25:34 Outubro 19, 2014
5 Carlos, o grande 27:03 Outubro 26, 2014
6 Disputas religiosas no Oriente: o monotelismo e a iconoclastia 29:43 Novembro 05, 2014
7 Os vikings e a Batalha de Edington 29:09 Novembro 13, 2014
8 Cluny e a reforma da Igreja 29:28 Dezembro 05, 2014
9 Cruzadas 32:23 Dezembro 17, 2014
10 Ascensão e queda dos Templários 26:24 Fevereiro 25, 2015
11 Ordens mendicantes 25:12 Março 19, 2015
12 A Inquisição 32:13 Junho 17, 2015
13 As universidades 28:26 Junho 21, 2015
14 O Nominalismo de Ockham 25:32 Julho 14, 2015
15 O cativeiro de Avignon e o grande cisma do Ocidente 27:29 Setembro 09, 2015
16 A Peste Negra 26:04 Outubro 06, 2015
17 Para entender o Renascimento 26:19 Outubro 23, 2015
18 Um humanista no trono de São Pedro 25:46 Novembro 15, 2015
1. O santo dos novos tempos
Versão áudio
Em um jardim de Milão, no final da Idade Antiga, um homem se convertia à fé cristã. Seu nome era Agostinho e a sua
obra, um legado que mudaria não só a história da Igreja, como toda a humanidade.

Venha conhecer, nesta 1.ª aula de História da Igreja Medieval, "o santo dos novos tempos", que viu cair o Império
Romano e nascer a gloriosa Idade Média. Aulas
A Idade Média é o período de mil anos que vai de 476, queda do Império Romano do Ocidente, até 1453, ano da
tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos e derrocada do Império Bizantino. Neste período, o pensamento
cristão foi muito importante, influenciando a sociedade como um todo e lançando as bases da civilização ocidental,
hoje em franca decadência.

Antes de falar do gênio de Santo Agostinho, que perpassa toda a era medieval, importa ressaltar a utilíssima divisão
entre o Ocidente e o Oriente para compreender a própria história da Igreja. Ao transferir a capital do Império para
Constantinopla, Constantino cria uma espécie de “estranhamento" entre os dois lados do território romano. Enquanto a
parte oeste é cada vez mais marcada pela cultura romano-latina, preferindo o uso da língua latina, a parte leste é
fortemente influenciada pelo helenismo e pelas culturas orientais, servindo-se do idioma grego. Além disso, na Igreja
no Ocidente, o papel soberano do bispo de Roma sempre foi reconhecido sem muitas discussões, de modo que ele já
exercia sua jurisdição universal sobre a Igreja desde o alvorecer da fé. A Igreja no Oriente, por outro lado, sofria com o
problema do cesaropapismo, pelo qual o imperador de Constantinopla usurpava o poder pontifício, misturando
desastradamente as esferas política e religiosa. A cisão no Império culmina com o cisma religioso do Oriente, em 1054,
quando é criada a Igreja Ortodoxa.

Finalmente, detenhamo-nos sobre a figura de Agostinho de Hipona, cuja filosofia e teologia influenciaram toda a Idade
Média. Cronologicamente, o santo pertence à Idade Antiga – nasceu em Tagaste, na África, em 13 de novembro de
354, e morreu em Hipona, em 28 de agosto de 430 –, mas sua importância para os tempos medievais é tão grande que
Daniel-Rops lhe reserva o epíteto de “santo dos novos tempos" [1].

Tendo concluído seus estudos primários em Tagaste e se tornado grande orador em Cartago, Agostinho, muito mais
romano que seus conterrâneos, viaja cedo para a Cidade Eterna, a fim de fazer carreira. Nessa época, ele já entrara em
contato com o maniqueísmo, a religião do profeta persa Mani, que pregava o dualismo gnóstico. Até então, o único
contato de Agostinho com a religião católica fora por meio de sua mãe, Mônica, e ela não conseguira trazê-lo para a fé.

Em Milão, Agostinho conhece o grande bispo e pregador Santo Ambrósio, diante de cuja oratória fica impressionado.
Depois de entrar em contato com a obra “Hortênsio", de Cícero, e com os filósofos neoplatônicos, ele abandona
definitivamente o maniqueísmo e convence-se de que, mais do que aprender retórica, o que ele precisa é conhecer a
Verdade. Na ocasião, ainda preso às paixões carnais que o arrastavam desde a adolescência ociosa, a narração de um tal
Ponticiano fá-lo repensar a sua vida. Ele conta a Agostinho a vida de Santo Antão e fala de jovens na própria cidade de
Milão que se decidiram firmemente em abandonar tudo o que tinham para servir a Deus na castidade e na vida
escondida [2].

Impressionado com o que ouvia e lamentando a vida dissoluta que levava até então, Agostinho vive uma dramática luta
interior:

“Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me e debatendo-me dentro de
minha cadeias, para ver se as quebrava por completo. (...) E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra, sem
demoras!" E quase passava da palavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigas
paixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. (...) Mantinham-me preso umas tantas
bagatelas, umas vaidades de vaidades, antigas amigas minhas, que me puxavam por minhas vestes carnais,
murmurando: 'Então, nos abandonas? De agora em diante nunca mais estaremos contigo? Desde este momento nunca
mais te será lícito isto ou aquilo?' (...) Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde
temia passar, mostrava-se para mim a casta dignidade da continência, serena e alegre, sem desordens, acariciando-me
honestamente para que me aproximasse sem medo. (...) E a continência zombava de mim com ironia animadora, como
se dissesse: 'Então, não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes e estas encontraram forças em si
mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te apoias em ti, se és
vacilante? Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não cairás. Lança-te com confiança, que ele te
receberá e te curará.' E enchia-me de vergonha por ainda ouvir o murmúrio daquelas bagatelas e, vacilante, continuava
indeciso." [3]

Até que ele se rende e deixa que Deus vença a sua carne:

“Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de minha alma, e expôs toda minha miséria à vista de meu
coração, caiu sobre mim enorme tormenta, trazendo copiosa torrente de lágrimas. (...) E embora não com estes termos,
mas com o mesmo sentido, muitas coisas te disse como esta: E tu, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, hás de
estar irritado! Esquece-te de minhas iniquidades passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e lamentava: Até
quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora às minhas torpezas?' Assim
falava, e chorava oprimido pela mais amarga dor do meu coração. Mas eis que, de repente, ouço da casa vizinha uma
voz, de menino ou menina, não sei, que cantava e repetia muitas vezes: 'Toma e lê, toma e lê'. E logo, mudando de
semblante, comecei a buscar, com toda a atenção em minhas lembranças se porventura esta cantiga fazia parte de um
jogo que as crianças costumassem cantarolar; mas não me lembrava de tê-la ouvido antes. Reprimindo o ímpeto das
lágrimas, levantei-me. Uma só interpretação me ocorreu: a vontade divina mandava-me abrir o livro e ler o primeiro
capitulo que encontrasse. (...) Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e onde eu deixara o livro do
Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro capítulo que me caiu sob os olhos: 'Não
caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas;
mas revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da carne'. Não quis ler mais, nem
era necessário. Quando cheguei ao fim da frase, uma espécie de luz de certeza se insinuou em meu coração, dissipando
todas as trevas de dúvida." [4]

Com aquela página das Escrituras aberta, começa a ser escrita uma nova página da história. A conversão de Santo
Agostinho não mudou somente a sua vida, mas toda a história da Igreja e da própria humanidade. Na vigília pascal
próxima, ele, seu filho Adeodato e seu amigo Alípio são batizados por Ambrósio. Depois, Agostinho volta para a
África. Neste ínterim, morrem seu filho e sua santa mãe, Mônica, com a qual ele tem uma grande experiência mística
em Óstia.

Já na África, levando uma vida de muita oração e contemplação da Verdade, Agostinho percebe que, após a conversão,
sua inteligência passa a compreender mais facilmente as coisas. Além da luz natural da razão, agora o auxiliava o dom
sobrenatural da graça.

Ordenado presbítero, depois de muita insistência do bispo Valério, o doctor gratiae sucede-o na comunidade de
Hipona, onde erige o seu grande monumento intelectual, De Civitate Dei [“A Cidade de Deus"]. Essa obra, inspirada
pela situação trágica em que do Império Romano invadido pelos bárbaros, aponta para a existência de duas cidades
invisíveis, fundadas por dois amores opostos: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio,
levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial" [5].
Sobre esta cultura será moldada a Europa cristã. Sobre este gigante intelectual se edificam os mil anos de Idade Média,
durante os quais a Igreja resgata o Ocidente da barbárie e das verdadeiras trevas que até hoje ameaçam a humanidade: o
afastamento de Deus e de Sua vontade.
Referências

1. Cf. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 9.
2. Cf. Santo Agostinho, Confissões, VIII, 6 (PL 32, 754-756).
3. Confissões, VIII, 11 (PL 32, 760-761).
4. Ibidem, VIII, 12 (PL 32, 761-764).
5. De Civitate Dei, XIV, 28 (PL 41, 436).

2. A conversão de Clóvis, rei dos francos


Versão áudio
Para reconduzir a Europa invadida pelos povos bárbaros à fé católica, foram necessários os sábios conselhos de um
bispo e as incansáveis orações de uma mulher.

Saiba, nesta 2.ª aula do curso de História da Igreja Medieval, como a conversão de Clóvis transformou a Gália dos
Aulas
bárbaros na França católica, "a filha primogênita da Igreja".

Marcando a passagem da Idade Antiga para a Idade Média, a invasão do Império Romano pelos bárbaros – que ainda
Santo Agostinho presenciou, ao ver a cidade de Hipona sitiada pelos vândalos – se deu principalmente pela ação cruel e
ambiciosa dos hunos. Esse povo que vivia na Ásia Central, famoso por seus combates a cavalo, marchou rumo a Oeste,
massacrando populações, punindo seus desafetos com a cruel prática do empalamento e alardeando o terror. Ao
contrário dos demais povos bárbaros, eles eram nômades e viajavam não para dominar, senão para saquear os povoados
por onde passavam. As notícias de suas incursões fizeram as populações que viviam no oeste da Ásia migrar para a
Europa, o que culminou na invasão do Império Romano do Ocidente.

Roma não resistiu aos ataques dos bárbaros porque estava tomada pela corrupção dos costumes. O Império já não era
mais formado por tropas destemidas e organizadas, mas por pessoas entregues aos prazeres da comida, da bebida e da
luxúria. Não foi, pois, muito difícil para os povos estrangeiros vencerem aquela corja dissoluta e se fixarem na Europa,
que se foi descristianizando completamente.

Os cristãos não perderam os seus territórios somente para os pagãos, como também para os hereges arianos. Sabe-se,
por exemplo, que os godos e vândalos, convertidos ao arianismo pela pregação de Úlfilas, não só disseminavam a sua
religião por onde passavam, como perseguiam e matavam os cristãos católicos, fazendo milhares de mártires. No norte
da África, os trabalhos de Santo Agostinho para levar à fé inúmeras almas foram substituídos por uma rápida e
sistemática proibição do verdadeiro cristianismo.

Todos esses fatos integram um quadro histórico nada animador. Roma, saqueada por Genserico, já não era capital de
mais nada, a região hoje pertencente à Alemanha e à França fora tomada por bárbaros de todo o tipo... Parecia ser o fim
da religião cristã.

Só que Deus, em Sua providência, envia a esses tempos difíceis os Seus santos. Na cidade de Reims, ao norte da
França, o bispo São Remígio –Rémy, em francês – não desanimou perante a destruição da Europa. No meio da luta dos
bárbaros para conquistar territórios, este santo pastor viu em Clóvis, rei dos francos, uma oportunidade para a
reconstrução do Ocidente. Escolha sábia a de Remígio, pois “os francos eram ainda pagãos" e, segundo o testemunho
unânime de “todos os missionários que hoje difundem o Evangelho em terras africanas", “é infinitamente mais fácil
trazer para Cristo os negros ainda idólatras do que aqueles que se converteram à religião muçulmana" (ou às heresias
da época, como o donatismo ou o arianismo) [1].
Em um arranjo política, diplomática e espiritualmente perfeito, o santo bispo de Reims conseguiu unir em matrimônio
Clóvis e a princesa católica Clotilde, santa canonizada pela Igreja. Sua vida provada por inúmeros sofrimentos não a
fez fugir da dificuldade de um cônjuge pagão. Assistida pela Missa diária – celebrada na capela de sua própria casa –,
esta santa mulher trabalhou com temor e tremor não só para a própria salvação, mas principalmente para a conversão
de seu marido e de seu duro coração de guerreiro. Escreve Daniel-Rops a esse respeito:

“Assim que se viu casada, Clotilde começou a trabalhar para a conversão do seu esposo. O resultado, porém, não foi
imediato, pois Clóvis ainda se conservou pagão durante cinco ou seis anos, e essa obstinação representou um excelente
augúrio quanto à sinceridade da sua futura adesão. Deixa que batizem o primeiro filho que lhes nasce, mas, quando este
morre, exclama para a esposa: 'Os meus deuses tê-lo-iam curado; o teu não o salvou!' Nasce-lhes um segundo filho,
que é batizado e que adoece também; mas – diz o bom Gregório de Tours – 'Clotilde orou tanto pela recuperação da
criança que Deus lha concedeu'. Assegura também o cronista que Clotilde não cessava de falar a Clóvis do Deus dos
cristãos. Sem resultado? Quem pode calcular a sorte das sementes que a fé e o amor lançam no mais íntimo de uma
alma, deixando a Deus o cuidado de fazê-las germinar?" [2]

É em uma batalha contra os alamanos que as sementes lançadas por Clotilde finalmente germinam no coração de
Clóvis. Ao ver a derrota iminente de suas tropas, Clóvis lança os olhos para o céu e faz uma promessa: “Jesus Cristo,
que Clotilde afirma ser o Filho do Deus da vida, tu que desejas vir em auxílio daqueles que desanimam e dar-lhes a
vitória, desde que esperem em ti, eu invoco devotamente o teu glorioso socorro. Se te dignares conceder-me a vitória
sobre os meus inimigos, e se eu experimentar esse poder de que as pessoas que usam o teu nome afirmam ter tantas
provas, acreditarei em ti e far-me-ei batizar em teu nome" [3]. Mal tinha acabado de dizer isso, as forças alamanas
debandaram e Clóvis obteve a vitória.

Fiel à sua palavra, Clóvis começa a aprender as verdades da fé, a fim de ser batizado. Daniel-Rops escreve que o rei
franco, “ao escutar a narrativa da Paixão, exclama excitado: 'Ah! Se eu tivesse estado lá com os meus francos!...'" [4].
Pacientemente, por meio da catequese e de seus prodígios de taumaturgo, São Remígio vai instruindo o coração de
Clóvis, até que, na solenidade do Natal, provavelmente no ano de 496, ele é batizado.

Para a ocasião, “o prédio da catedral de Reims fora ornado de cortinas brancas e iluminado por milhares de círios
aromáticos, como símbolo da beleza espiritual da Mãe Igreja que nesse dia acolhia os francos como filhos (...). O
próprio Clóvis, deslumbrado ante o esplendor da decoração e dos cânticos, deteve-se na soleira do recinto sagrado e
perguntou a Remígio: 'É este o Reino dos Céus que tu me prometes? - Não, mas é o começo do caminho que a ele
conduz', respondeu o Bispo" [5]. São Gregório de Tours narra que, quando Clóvis se apresentou diante da pia batismal,
com um colar supersticioso que os francos usavam, o santo bispo de Reims disse: “Mitis depone colla, Sicamber;
adora quod incendisti, incende quod adorasti – Depõe humildemente o colar, ó sicâmbrio! Adora o que queimaste e
queima o que adoraste!" [6].
Com a conversão de Clóvis, começa a escrever-se uma nova página da história ocidental. Em pouco tempo, será
fundada a França, o primeiro reino cristão da Europa, por esse motivo apelidada de “fils aîné de l'Église – filha
primogênita da Igreja". Graças à ação de santos como Remígio, Clotilde, Genoveva, Martinho e muitos outros, os
duros corações dos bárbaros e dos pagãos eram conquistados para Cristo.
Referências

1. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 193.
2. Ibidem, p. 197.
3. São Gregório de Tours, Historia Francorum, II, 30 (PL 71, 225).
4. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 198.
5. Irmã Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP, São Remígio de Reims. In: Revista Arautos do Evangelho, Jan. 2012, n.
121, p. 32-35.
6. São Gregório de Tours, Historia Francorum, II, 31 (PL 71, 227).
3. São Gregório Magno e a reconquista da Europa
Versão áudio
No meio da Europa tomada pelos bárbaros, refulge, gloriosa, a figura de um Papa. Seu nome é Gregório e sua estatura
fará as gerações futuras o aclamarem como "grande". Por suas santas mãos, passaram a formação do clero, a reforma
da liturgia, a salvação da Itália e a própria evangelização da Inglaterra.

Conheça um pouco da vida deste grande pontífice e pastor de almas, nesta 3.ª aula de nosso curso de História da Igreja
Medieval.

No ano de 540, na cidade de Roma, nasce um dos Papas mais influentes de toda a Idade Média: São Gregório Magno.
Sua natividade acontece durante um curto período de paz após a Guerra Gótica, que marcou a empresa do Império
Bizantino para recuperar a Itália, então sob o domínio dos ostrogodos. O sucesso da campanha é devido ao famoso
general Belisário, que, após submeter os vândalos no norte da África, sobe para a Península Itálica e a liberta da mão
dos bárbaros.

Neste ambiente, o jovem Gregório, filho de um senador romano, segue desde cedo os passos de seu pai e se aventura
na carreira política, alcançando, com 30 anos, um cargo muito importante na Cidade Eterna. Seu coração, no entanto,
pede uma entrega total a Deus. Homem de grande espiritualidade, “na sua família não faltavam exemplos de piedade
cristã; sem falar do papa de quem descendia, basta dizer que a sua mãe Sílvia e as suas duas tias, as monjas Tarsila e
Emiliana, eram santas que a Igreja canonizara" [1].

Gregório, então, renuncia à sua vida pública e à herança que ganhara dos pais para fazer-se monge, fundando uma
fraternidade monástica no monte Célio, uma das sete colinas de Roma.

Seu recolhimento, todavia, é interrompido quando o Papa Pelágio II o chama para ser seu apocrisiário – hoje, a mesma
função de um núncio – em Constantinopla, a fim de interceder junto ao Imperador pela Itália, ameaçada pelos
longobardos [2] e por uma devastadora epidemia de peste bubônica. Durante sua estadia na capital do Império,
Gregório escreve seu famoso comentário moral ao livro de Jó – Moralia in Job [3] –, uma grande obra de
espiritualidade.
De volta à Itália, Gregório permanece pouco tempo em seu monastério. Com a morte de Pelágio II, vitimado pela peste,
o povo e o clero romanos aclamam-no Papa. A princípio, Gregório resiste, mas acaba aceitando o pontificado.

Ao assumir o trono de Pedro, a primeira coisa que faz é ensinar aos bispos como serem pastores. Em sua Regula
Pastoralis [4], o Papa Gregório traça as linhas da vida sacerdotal, lembrando que quem quer cuidar das almas deve, em
primeiro lugar, vigiar a própria alma. É de tal importância este escrito que, até pouco tempo, era obrigatório que todo o
episcopado o tivesse em mãos, a fim de aprendê-lo.
Depois, o Papa Gregório tem que enfrentar o drama da peste bubônica, que aflige o seu rebanho. Convicto de que a
doença é um castigo de Deus e que só a Sua misericórdia pode solucionar o problema, o Santo Padre recorre às armas
espirituais para vencê-la. Com o ícone de Nossa Senhora, sob o título de Salus Populi Romani, ele faz inúmeras
procissões pela cidade de Roma, invocando ao Senhor a cura de seu povo.

Um dia, sobre o mausoléu de Adriano, o Papa vê os anjos cantando: Regina caeli laetare, alleluia; quia quem meruísti
portare, alleluia; resurrexit sicut dixit, alleluia, ao que ele responde, extático: Ora pro nobis Deum, alleluia. Neste
momento, diante dele, o anjo da morte que pesava a mão sobre a Cidade Eterna põe sua espada na bainha e,
milagrosamente, o flagelo da peste é afastado [5]. Esse episódio mostra como o “cônsul de Deus", como consta em seu
epitáfio, também era um homem de profunda espiritualidade.
É grande a influência de Gregório Magno na liturgia romana da Missa, a qual ele enriqueceu com orações escritas de
próprio punho e com piedosos costumes, mantidos até hoje, como o de rezar o Pai-Nosso logo depois da Oração
Eucarística ou o de alternar várias orações e prefácios para os diferentes tempos do ano litúrgico. Foi com ele que
começou a tradição das chamadas “missas gregorianas", para libertar as almas do purgatório [6]. Destaque-se também a
sua importância para a música sacra, com o canto gregoriano.

No exercício diplomático, o Papa Gregório, como sábio pastor, procurou entabular um relacionamento com a rainha
dos longobardos, Teodolinda, visando pacificar a situação e, ao mesmo tempo, converter os bárbaros.

Outra nação também se beneficiaria com seu impulso evangelizador, como conta a história:

“Quando era ainda monge no Célio, Gregório atravessara certo dia um dos mercados de Roma, onde os traficantes
expunham escravos à venda. Entre a mercadoria humana, na sua maior parte de origem oriental, morena e de baixa
estatura, chamaram-lhe a atenção três jovens de bom aspecto, brancos e louros, com os olhos azuis e tez rosada, como a
raça inglesa os produz aos vinte anos. 'Donde vêm estes homens?, perguntou o monge ao negociante. - Da Bretanha. -
Cristãos ou pagãos? - Pagãos. - Que pena é que figuras tão cheias de luz estejam em poder do príncipe das trevas! E de
que raça são? - Anglos – Anglos? Anjos (Angli? Angeli), deveríamos dizer, e herdeiros do Céu como os Anjos! - E de
onde vêm? - De Deira. - Pois bem, da ira (de ira) serão mandados para a misericórdia de Cristo. E quem é o seu rei? -
Aella. - Cada vez melhor; cantarão, pois, Aleluia...' Verdadeiro ou falso, o episódio referido até nos seus trocadilhos
proféticos pelo biógrafo do santo, João Diácono, anunciava uma grande intenção. Tendo acolhido os três anglos entre
os monges do Célio, Gregório decidiu que os irmãos dos seus protegidos deveriam ser chamados a ter assento entre os
anjos. E, mal eleito Papa, consagrou-se a essa tarefa." [7]

De fato, ainda durante o seu pontificado, São Gregório instruiu e enviou, para evangelizar o território da atual
Inglaterra, Agostinho de Cantuária, o qual obteve grande sucesso em seus esforços e, hoje, é venerado como santo e
invocado como “apóstolo dos ingleses".

Referências

1. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 232.
2. Para ilustrar a barbárie deste povo, é útil mencionar a história de um rei lombardo, Albuíno, que, tendo matado o
rei dos gépidas, Cunimundo, degolou sua cabeça e pediu que se fizesse um cálice com o escalpo de seu crânio,
para que ele bebesse vinho. Não contente, Albuíno desposou a filha de Cunimundo, Rosamunda, e quis fazer que
também ela bebesse no copo feito do crânio de seu pai. Para vingar-se, Rosamunda assassinou Albuíno e fugiu
com um amante, com o qual viveu outra tragédia, algum tempo depois. Esta e outras histórias estão contidas
na Historia Langobardorum, de Paulo, o Diácono.
3. Cf. PL 75, 509-1162; 76, 9-782.

4. Cf. PL 77, 13-128.

5. De fato, ainda hoje, no mesmo mausoléu de Adriano - chamado também de Castelo de Santo Ângelo -, há uma
estátua com São Miguel Arcanjo embainhando sua espada.

6. Cf. RC. 136: É verdade que as missas gregorianas libertam as almas do purgatório?.
7. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 237.

4. As expansões islâmicas e a defesa da Europa


Versão áudio
Em pouco menos de um século após a sua fundação, o temível Islã chegou à Europa e, não fossem o gênio militar de
Carlos Martel e a disposição dos cristãos ao combate, todo o continente teria se rendido aos muçulmanos.

Nesta 4.ª aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, conheça a história da religião de Maomé e saiba como o
exército de um simples "mordomo" foi capaz de conter o avanço militar dos "cavaleiros de Alá".

Até o século VI, a região da Península Arábica era habitada predominantemente por tribos nômades. Eram poucas as
comunidades que sobreviviam de agricultura e não havia nada que unisse social ou politicamente esses grupos.

Nasce, então, em 570, na cidade de Meca – região da atual Arábia Saudita –, o fundador da religião islâmica, Maomé
(Muhammad, em árabe). Órfão de pai e de mãe desde muito cedo, o menino é educado pelos beduínos e, depois, pelos
próprios parentes. Com 25 anos, casa-se com uma viúva, de nome Cadija, cuja visão religiosa provavelmente exerceu
forte influência sobre ele [1]. Cadija era ebionita; fazia parte de uma seita que aceitava a Torá e reconhecia Jesus como
um profeta, mas não como Deus.
Em 610, durante um de seus retiros espirituais, Maomé começa a receber supostas revelações do Arcanjo Gabriel, as
quais ele anota no Alcorão (Al-Qur'an, em árabe). O livro sagrado da religião islâmica, dividido em suratas, é
organizado decrescentemente, de acordo com a sua extensão, e não serve como fonte para conhecer a vida de Maomé,
sendo necessário recorrer a outras tradições islâmicas – como as Hadith – para descobrir a sua biografia.
O primeiro povo a receber o anúncio da nova religião de Maomé são os coraixitas. À época, eles eram guardiões
da Kaaba, um santuário que, além de conter milhares de divindades, abriga uma “pedra negra", supostamente sagrada
[2]. É a essa tribo que o profeta anuncia primeiro a sua crença monoteísta. Suas pregações, no entanto, não obtêm
muito sucesso e ele é obrigado a fugir para Yathrib – hoje, Medina –, em 622. Neste ano, que marca o início do
calendário islâmico, Maomé decide mudar sua estratégia: ao invés de conseguir prosélitos pacificamente, o profeta
começa a implantar o Islão por meio de expedições políticas e militares – leia-se: pelo fio da espada –, de modo que,
ainda durante a vida do profeta, toda a Península Arábica foi colocada sob o seu domínio.
A expansão da religião muçulmana continua mesmo após a morte do profeta e os seus sucessores – os califas – tomam
o Império Persa, a Terra Santa, o norte da África e chegam, em 711, à Península Ibérica. À luz desses fatos, está bem
claro que o crescimento religioso do Islão começou ligado diretamente a guerras e conquistas militares. Se é possível
dizer que o terrorismo não é a expressão mais legítima do islamismo, dizer que ele sempre foi uma “religião da paz",
definitivamente, não corresponde à realidade histórica. É neste contexto, a propósito, que se inserem as Cruzadas, que
muitos professores de história apresentam como uma amostra de intolerância e de violência da Igreja medieval,
quando, na verdade, se trataram de guerras de defesa contra as agressivas invasões islâmicas.
O fato é que, quando os muçulmanos colocam o pé na Europa, encontram um clima muito propício para a sua
conquista. O continente europeu encontrava-se dividido entre várias tribos visigóticas e governado por reis mais
preocupados em lutar entre si que em organizar-se militarmente contra o perigo islâmico. “A tradicional imagens dos
'reis fainéants', que se deslocavam de cidade em cidade estendidos nos seus pesados carros de bois e que passavam a
vida na ociosidade e na devassidão, corresponde à mais estrita realidade" da época [3].
Ao lado dessas figuras decadentes, porém, surge a figura do “prefeito do palácio", “que administrava os domínios
pessoais do soberano em seu nome" e acabava por transformar-se em “uma espécie de primeiro ministro" [4]. Um
desses “mordomos", de nome Carlos Martel, teve a brilhante ideia de formar um exército profissional e estável para
conter o avanço islâmico. Para tanto, Martel confiscou terras e bens eclesiásticos, atitude sem dúvida errada, mas que
se revelou, depois, providencial.

De fato, em 725, as cavalarias de Alá já se encontravam na Gália. Na região da Aquitânia, os francos foram derrotados
de modo tão clamoroso que, segundo os cronistas da época, “só Deus sabia o número dos mortos". Em 732, as tropas
muçulmanas, lideradas por Abd-er-Rahman, avançaram rumo à cidade de Tours, deparando-se, no meio do caminho,
com o exército de Carlos Martel, na famosa Batalha de Poitiers:

“Os exércitos, bem diferentes um do outro – os francos, pesadamente equipados, usavam cotas de malha e capacetes de
metal; os muçulmanos, montados em pequenos e fogosos cavalos, conduziam o ataque como um turbilhão –, e
enfrentaram-se nas colinas do Poitou. Durante sete dias, Ocidente e Oriente estudaram-se mutuamente. Os
muçulmanos, inquietos, não ousavam abordar aquela ilha blindada de ferro, mas por fim lançaram-se. As suas cargas
loucas, em pleno galope, chocaram-se contra os batalhões quadrados dos francos. Apoiados uns nos outros, como um
mar solidificado, os soldados de Carlos aguentaram estoicamente a saraivada de flechas, e todo muçulmano que
passasse ao alcance das suas alabardas, dos seus gládios, das suas maças de armas, estava perdido. Ao cair da noite, o
combate se desfez. Abd-er-Rahman caíra, morto numa carga cerrada."

“As perdas do Islão foram pesadas, e o avanço em direção ao Poitou estava barrado. Quando rompeu o novo dia, os
espias de Carlos informaram que o campo muçulmano, com as suas tendas alinhadas, continuava no mesmo lugar, e
pensou-se que a batalha ia recomeçar. Mas não: na calada da noite, a grande velocidade, o Oriente tinha fugido..." [5]

É evidente que, mesmo após essa derrota, os árabes não pararam. Foi o filho de Carlos Martel, Pepino, o Breve,
também “prefeito do palácio", quem conseguiu finalmente tirá-los do território franco. Então, em 751, após recorrer à
autoridade do Papa Zacarias para legitimar o seu poder – afinal, perguntava ao Santo Padre, “convém chamar rei àquele
que tem o título do poder, ou àquele que o possui na realidade?" [6] –, Pepino é coroado rei dos francos por São
Bonifácio de Mogúncia, dando início a uma nova dinastia real: os carolíngios. É nesta linhagem que nascerá o grande
Carlos Magno, cujo empenho e perspicácia mudarão os destinos da Europa para sempre. Mas, este é um tema para a
próxima aula.

Olhando para esse passado de guerras, no qual os cristãos tiveram que recorrer às armas para defender a Europa,
percebe-se que a história da Igreja não pode ser separada dos eventos políticos e militares tão comuns na história da
humanidade. Embora a expansão da fé cristã não deva dar-se pela espada, mas pela persuasão racional, é importante
que o Estado garanta à sociedade certa paz e estabilidade, defendendo-a dos perigos que ameaçam as suas fronteiras e
tentam pôr abaixo seus valores e sua cultura. Foi o que fizeram as autoridades políticas desse tempo, tentando
estabelecer um pouco de ordem, a fim de garantir à Igreja a possibilidade de evangelizar e construir a civilização
ocidental.
Referências

1. Diz-se “provavelmente" porque muitas informações que se têm a respeito de Maomé não passam de hipótese
histórica: grande parte vem de biografias e tradições muito posteriores à vida do profeta, cerca de mais de 200 anos
após a sua morte.

2. Posteriormente, a Kaaba será tomada pelos muçulmanos e incorporada à mesquita de Al-Haram, o lugar mais
sagrado da religião islâmica.

3. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991. p. 387.
4. Ibidem, p. 388.
5. Ibidem, p. 391.
6. Ibidem, p. 393.
5. Carlos, o grande
Versão áudio
Os esforços de Carlos Magno valeram-lhe, ainda por parte de seus contemporâneos, o título de “pai da Europa". Após a
sua atuação política, o Ocidente nunca mais seria o mesmo.

Descubra, nesta 5.ª aula de História da Igreja Medieval, quais foram as contribuições deste “guerreiro quase inculto"
para a Igreja e para nossa civilização. Aulas

Em 768, após a morte de Pepino, o Breve, o reino franco foi dividido entre os seus filhos, Carlomano e Carlos. Com o
falecimento prematuro do primeiro, em 771, todo o território franco ficou sob o império de Carlos (742-814), que se
sobressaiu como um grande homem, merecendo o título de “magno" e de “pater Europae" (pai da Europa), dado por
seus próprios contemporâneos, como lembrou o Papa São João Paulo II [1].
Logo no começo de seu reinado, Carlos Magno entabula uma relação de proximidade com o Papa Adriano I, fixando
uma aliança política e espiritual em comum. “O gênio deste homem e a grandeza do seu caráter – escreve Daniel-Rops
– mostram-se com mais clareza exatamente no fato de este guerreiro quase inculto ter compreendido a importância da
obra civilizacional, e de se ter consagrado a ela pessoalmente" [2]. Olhando para os escombros do Império Romano,
Carlos enxergou a importância de edificar uma cultura, muito além da simples liderança dos francos. Por isso, ele
enviou emissários aos quatro cantos da Europa e, em sua “Escola palatina", congregou inúmeros sábios, a fim de
educar a sua família e a nobreza da época nas linhas da sabedoria antiga. Os seus múltiplos esforços foram consagrados
sob o nome de “renascimento carolíngio":

“De uma maneira ainda modesta, a Renascença carolíngia foi fecunda, fornecendo instrumentos de trabalho à cultura
intelectual. A escrita foi transformada: ao invés das ilegíveis cursivas merovíngias, apareceu – talvez inicialmente em
Corbia – a minúscula carolíngia, bela e nítida, que Alcuíno e os monges de Tours aperfeiçoaram e popularizaram por
toda a parte. A língua latina – muito abastardada na França e na Itália, onde, continuando a ser língua viva, fora
contaminada pelo linguajar bárbaro – foi muito melhorada pelos monges anglo-saxões, notadamente por Alcuíno, entre
os quais se conservava como língua culta. As obras literárias clássicas, negligenciadas durante muito tempo,
recuperaram o seu lugar de honra, mesmo entre aqueles para quem só contava a 'divina sapiência': voltaram-se a
estudar Virgílio e os grandes autores, passou a haver certa familiaridade – embora num estreito espírito escolástico –
com Boécio, Cassiodoro e Beda o Venerável, e a obra em que Marciano Capella compilara o Sonho de Cipião e as
Metamorfoses de Ovídio desempenhou o papel de um verdadeiro manual pedagógico." [3]
Durante o seu reinado, portanto, a cultura greco-romana e o tesouro dos ensinamentos dos Santos Padres floresceram
como nunca antes. Para ler os manuscritos da Antiguidade, Carlos chegou a dominar a fala e a leitura da língua latina –
na qual, porém, não obteve sucesso em escrever [4]. Foi sob o seu governo que os monges copistas começaram a
incansável obra de preservação da cultura antiga, legando às gerações futuras os escritos de Cícero, Tito Lívio e outros
nomes célebres. Da data anterior a Carlos Magno, de fato, pouquíssimos livros sobreviveram, sendo praticamente todos
de conteúdo cristão. É a partir dele que os escritores substituem o papiro pelo pergaminho e este, por sua vez, pelos
códices – quando as letras começam a ser gravadas em blocos de madeira. É de tal monta o crescimento intelectual que
se experimenta nessa época que o mosteiro de Reichenau, que, antes de Carlos, continha em torno de cinquenta livros,
passa a ter, depois, uma biblioteca com mais de mil obras.

Juntamente com o Papa, Carlos Magno também empreende uma importante reforma na educação e disciplina do clero,
que se encontram bastante prejudicadas pelas invasões bárbaras e pela degradação dos costumes. “O clero secular foi
objeto de cuidados de que até então nunca se beneficiara: foram-lhe exigidos não só costumes puros, como também um
mínimo de conhecimentos. O bispo ou o seu delegado tinha obrigação de investigar periodicamente, por meio de
exames orais, se os padres tinham noções suficientes de latim, de dogma e de liturgia. Uma lei obrigou os curas a
pregar em língua vernácula todos os domingos." [5]. A ação de Carlos também é determinante para o desenvolvimento
da liturgia romana. As orações da Missa, por exemplo, que são rezadas de mãos juntas, certamente têm sua origem na
prática da corte de Carlos Magno, bem como as orações chamadas “apologéticas".

Para dar cabo a tudo isso, Carlos, obviamente, não age sozinho. Com ele, ergue-se, por exemplo, o bem-aventurado
Alcuíno (735-804), um monge anglo-saxão e diretor da “escola catedral" de Iorque que, nos passos de São Beda, o
Venerável, oferece uma sólida contribuição teológica e espiritual à obra desenvolvida por Carlos Magno. Além de
ajudar a resolver problemas disciplinares dos bispos da Espanha, Alcuíno também auxilia na condenação da heresia do
adopcionismo – que afirmava ser Cristo o “filho adotivo" de Deus –, durante o Concílio de Frankfurt, em 794.

Com a morte de Adriano I, em 795, é eleito o Papa São Leão III. Como, apesar de romano, Leão “não descendia de
uma linhagem ilustre como o seu predecessor", apressou-se um “golpe de Estado" contra o Sumo Pontífice:

“No dia das Ladainhas maiores de 799, quando cavalgava à frente da procissão conforme o antigo costume, Leão III foi
assaltado, derrubado da sua montaria, moído a pancadas e despojado das vestes pontifícias; por um milagre, não lhe
cortaram a língua nem lhe vazaram os olhos, à maneira bizantina. Acusado de toda a espécie de vícios e crimes, foi
preso num convento à espera de ser 'julgado'. Felizmente para ele, conseguiu evadir-se com a ajuda de uma corda e
chegou até Spoleto, onde pôde tratar as feridas, e em seguida correu a Paderborn, ao encontro do rei Carlos, para pedir-
lhe que o recolocasse no trono pontifício. O rei abraçou-o chorando e designou-lhe uma escolta de soldados e de altos
funcionários que o acompanhariam a Roma e o ajudariam a reinstalar-se no trono pontifício." [6]

Diante da pretensão de Carlos de emitir um juízo acerca da situação do Papa, o beato Alcuíno alertou-o: “Prima Sedes
a nemine iudicatur – A Santa Sé não pode ser julgada por ninguém". Mesmo assim, Leão III foi obrigado a prestar um
juramento ao rei franco, negando as acusações de seus inimigos e confirmando a sua retidão moral. Nesse tempo,
firmou-se uma relação muito íntima entre o papado e Carlos Magno, a ponto de o Sumo Pontífice devotar-lhe um amor
declarado, que culminou com a sua coroação, no Natal de 800, como Imperador Romano.
É importante ressaltar que, com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, a sede do governo romano se
encontrava em Constantinopla. A coroação de Carlos Magno como chefe de todo o Império, portanto, acirrou ainda
mais as relações entre Roma e o Oriente, como se verá na próxima aula. Apesar de essa realidade durar pouco tempo –
com a divisão dos territórios entre os filhos de Carlos e a invasão dos vikings, o Império se dissolverá mais uma vez –,
historicamente, terá uma grande repercussão, especialmente quando a unidade se restabelecer por meio do Sacro
Império Romano Germânico.

Referências

1. Cf. Papa João Paulo II, Discurso durante o conferimento do prémio internacional “Carlos Magno" (24 de março
de 2004), n. 2.
2. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 428.
3. Ibidem, p. 430.
4. Cf. Einhardus, Vita Karoli Magni, 25.
5. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991,p. 423.
6. Ibidem, p. 404-405.

6. Disputas religiosas no Oriente: o monotelismo e a iconoclastia


Versão áudio
Do outro lado do mundo, a Idade Média começou com duas grandes heresias a serem combatidas. Enquanto os
monotelistas introduziam uma nova confusão a respeito da humanidade de Cristo, os chamados iconoclastas varriam do
mapa todas e quaisquer imagens que apontassem para o sagrado.

Descubra, nesta 6.ª de nosso curso de História da Igreja Medieval, como os santos defenderam a fé em Cristo e
preservaram o culto às imagens no Oriente. Aulas

Enquanto, no Ocidente, uma série de sucessos bélicos dos maometanos os faz chegar à Península Ibérica, e um
“mordomo do palácio", Carlos Martel, tem que erigir um exército para conter o seu avanço – como se viu na quarta
aula deste curso; enquanto Carlos Magno, neto de Martel, toma o poder e é coroado Imperador Romano pelo Papa
Leão III – como se viu na quinta aula deste curso –, o Oriente é agitado por duas grandes heresias: o monotelismo e a
iconoclastia.
Para compreender, primeiro, o monotelismo, é preciso entender as consequências da definição do Concílio de
Calcedônia, em 451, a respeito das duas naturezas de Cristo.
Este Concílio estabeleceu, com bastante clareza: que Nosso Senhor é, ao mesmo tempo, “ομοούσιος τω πατρι –
consubstancial ao Pai" e “ομοούσιος ημιν – consubstancial a nós"; que n'Ele, há “uma só pessoa" (πρόσωπον) e “uma
só hipóstase" (υπόστασιν); e, por fim, que as Suas duas naturezas se relacionam “inconfuse, immutabiliter, indivise,
inseparabiliter – sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação". Em Jesus, portanto, há duas naturezas, a
divina e a humana, que estão unidas, sem se confundirem, e distintas, sem se separarem [1].
Em reação à doutrina de Calcedônia, algumas igrejas da Síria e do Egito permaneceram monofisitas e entraram em
cisma com Constantinopla. O problema é que, diante das invasões árabes – no século VII, a religião muçulmana se
encontrava em franca expansão –, o Imperador não podia permitir que a sua unidade religiosa e política fosse ameaçada
dessa forma, sob o risco de o Império Bizantino sucumbir à cavalaria islâmica. Sem poder renunciar ao símbolo do
Concílio de Calcedônia, mas tentando, ao mesmo tempo, agradar os monofisitas, o patriarca Sérgio de Constantinopla
vem, então, à tona com uma nova heresia: o monotelismo (ou monoenergismo), que ensinava que em Cristo, embora
havendo duas naturezas, só existia uma vontade, a divina. A humanidade de Jesus ficaria, por assim dizer, “entre
parênteses": embora existindo, ela não teria vontade própria.
Em resposta a Sérgio, o Papa Honório I escandalosamente subscreve às suas teses, dizendo professar “uma só vontade
de nosso Senhor Jesus Cristo" [2]. Embora o III Concílio de Constantinopla tenha condenado firmemente a atitude de
Honório, os historiadores consideram que ele não incorreu em heresia, apenas dava pouca importância às fórmulas
dogmáticas, em uma tentativa patética de agradar as duas facções.

Foi preciso que a providência levantasse São Máximo, o Confessor, para condenar a heresia monotelita. Esse monge,
discípulo de São Gregório de Nazianzeno, entendeu melhor do que ninguém o argumento de seu mestre: “Quod non est
assumptum, non est sanatum – O que não foi assumido, não foi curado" [3]. Ou seja, se Cristo não teve vontade
humana, não existiu vontade humana que aceitou a vontade de Deus e, portanto, o homem não foi redimido por
completo. A agonia de Jesus no horto das oliveiras [4], porém, evidencia a luta entre as Suas duas vontades e o culto ao
Sagrado Coração de Jesus, prestado por toda a Igreja universal, recorda e adora o coração humano que amou a Deus de
forma perfeita. Em 649, o Sínodo do Latrão, convocado pelo Papa São Martinho I, condena a heresia monotelita [5],
tendo como amparo o pensamento de São Máximo.
Até o III Concílio de Constantinopla (680-681) condenar de vez o monotelismo, porém, será preciso que São Martinho
I e São Máximo, o Confessor, entreguem a sua vida pela autêntica fé católica, enfrentando a prisão, a tortura e, por fim,
o martírio.

Outra querela religiosa que agitou o Oriente nessa época foi a controvérsia das imagens. O imperador Leão III, o
Isáurio, embora seja considerado “salvador do Império Bizantino" – de fato, ele conseguiu deter o avanço dos árabes
sobre Constantinopla, dispersando o exército naval com uma inteligente e poderosa arma chamada de “fogo grego" –,
é, ao mesmo tempo, o responsável pela destruição generalizada de ícones sagrados em todo o Império. Depois de lidar
com teólogos e patriarcas defensores da iconoclastia, Leão III manda quebrar o que vê pela frente: mosaicos, ícones,
imagens e tudo o mais que, de algum modo, represente o sagrado. A onda iconoclasta foi bastante forte no século VIII,
não deixando praticamente nenhum vestígio vivo da arte bizantina, a não ser em regiões do Ocidente com influência
oriental, como as regiões de Ravena e Sicília, na Itália.
Contra esta heresia, que perdurou durante todos os anos 700, lutaram homens como São Germano de Constantinopla,
São João Damasceno e os santos Papas Gregório II e Gregório III, mas foi apenas com Irene de Atenas, mulher de
Leão IV (neto de Leão III, o Isáurio), que a ortodoxia triunfou e a iconoclastia foi finalmente fulminada. Em 787, a
imperatriz convocou o II Concílio de Niceia, no qual se definiu:

“De fato, quanto mais os santos são contemplados no ícone que os reproduz, tanto mais os que os contemplam são
levados à recordação e ao desejo dos modelos originais e a tributar-lhes, beijando-os, respeito e veneração; não, é claro,
a verdadeira adoração própria de nossa fé, reservada só à natureza divina, mas como se faz para a representação da cruz
preciosa e vivificante, para os santos evangelhos e os outros objetos sagrados, honrando-os com a oferta de incenso e
de luzes segundo o piedoso uso dos antigos. Pois 'a honra prestada ao ícone passa para o modelo original', e quem
venera o ícone venera a pessoa de quem nele é reproduzido." [6]

Com isso, a Igreja recordava que Deus, invisível, não só se faz “visível" no homem, criado à Sua imagem e
semelhança, mas principalmente no Verbo encarnado, em que o próprio Deus assume uma forma humana e pode,
portanto, ser representado.

Infelizmente, por conta de um conflito político entre o Ocidente e o Oriente – importa lembrar que foi justamente sob o
reinado de Irene de Atenas, em 800, que Carlos Magno foi coroado pelo Papa São Leão III “ Imperator Augustus",
tentando trasladar, de alguma forma, a sede do Império para Roma – e de uma tradução errada das atas de Niceia para o
latim, o II Concílio de Niceia não foi muito bem aceito por Carlos Magno e pelo Ocidente, como conta Daniel-Rops:
“Quando o culto das imagens foi legitimado em 787 pelo segundo Concílio de Nicéia, Carlos Magno e o seu clero
franco saíram a campo simultaneamente contra Bizâncio e contra Roma. A tradução latina das decisões conciliares
parecia-lhes equívoca, e além disso os germanos sempre tinham manifestado uma certa desconfiança quanto à
representação da figura humana, acentuada pela profunda influência do Antigo Testamento. Carlos convidou os seus
teólogos a compilarem tratados contra o Concílio – que foram publicados sob o seu nome: Livros carolinos –, (...) e a
reunir em Frankfurt, em 794, um concílio antiniceniano... Foi só em fins do século IX – e depois de alguns excessos
iconoclastas, principalmente na Turíngia – que a doutrina ortodoxa sobre esta questão triunfou totalmente no Império
franco." [7]

No século XVI, esses escritos de Carlos contestando Niceia serão redescobertos por protestantes calvinistas e usados
para ressuscitar a iconoclastia, heresia defendida até hoje pelos evangélicos.

Referências

1. Símbolo de fé de Calcedônia: DS 300-303. Cf. HIA. 14, Concílio de Calcedônia.


2. Carta “Scripta fraternitatis" ao patriarca Sérgio de Constantinopla (634): DS 487.
3. Cf. Epístola 101 a Cledônio (PG 37, 175-194).
4. Cf. Mc 14, 36; Lc 22, 42.
5. Cf. Sínodo do Latrão (5-31 de outubro de 649): DS 500-522.

6. II Concílio de Niceia: 7ª sessão (13 de outubro de 787): DS 601.

7. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 425.

7. Os vikings e a Batalha de Edington


Por três séculos, tripulações piratas escandinavas aterrorizaram a Europa, e principalmente o território da Inglaterra,
com saques, pilhagens e conquistas.
Nesta 7.ª aula de História da Igreja Medieval, conheça a história e as incursões dos vikings, os guerreiros bárbaros mais
famosos e temidos da Idade Média.

Ainda durante o reinado de Carlos Magno, a Europa foi invadida por povos vindos da Península Escandinava – região
que abarca Dinamarca, Suécia e Noruega. Os vikings – como passaram a ser chamados – realizavam saques e pilhagens
em toda a costa europeia; movidos pela ganância, aportavam os seus navios na Inglaterra, na França e na Alemanha,
confiando em que Odin, o deus da guerra, enviaria suas filhas, as valquírias, para carregar os corpos dos guerreiros
mortos em combate. Um de seus personagens lendários, Ragnar Lodbrok, chegará a cercar a cidade de Paris,
navegando pelo rio Sena, tal era o seu desenvolvimento na construção de embarcações. São esses piratas nórdicos –
comumente designados como normanos – que darão o nome à região da Normandia, ao noroeste da França. Até serem
cristianizados e se pacificarem, os vikings causarão um grande terror em todo o continente europeu, desde o século VIII
até metade do século XI.
A primeira grande incursão dos vikings atingiu a ilha de Lindisfarne, no leste da Inglaterra, em 793. O mosteiro do
lugar foi invadido e os nórdicos mataram os monges, queimaram os seus manuscritos, destruíram a abadia e pilharam
todos os tesouros que conseguiram. Esta, na verdade, tornou-se praticamente uma regra das invasões vikings: saquear
os mosteiros, onde havia grandes tesouros a tomar e pouca ou nenhuma resistência a enfrentar.
Depois de um período de saques constantes, os nórdicos começaram efetivamente a “colonizar" a Europa. No século
IX, toda a Inglaterra – que, à época, era uma “heptarquia" de reinos – foi alvo da incursão dos vikings:
 No Reino da Nortúmbria, o rei Aella foi submetido, por Ivarr, filho de Ragnar Lodbrock, ao temido ritual
denominado “águia sangrenta", método de execução comum entre os vikings, que consistia em quebrar as costelas
da vítima com um machado e puxar para trás os seus ossos e os pulmões, a fim de criar a ilusão de um par de asas
brotando em suas costas;
 No Reino da Ânglia Oriental, em 869, o rei Edmundo – santo e mártir – foi amarrado numa árvore e morto com
flechas;
 No Reino da Mércia, o rei, antevendo o perigo, fugiu para tornar-se monge em Roma;
 No Reino de Wessex, o rei, derrotado, foi sucedido por seu irmão, Alfredo, que, resistindo e lutando bravamente
contra os vikings, conseguiu defender o seu reino e empreender a unificação da Inglaterra, recebendo por isso o
epíteto de “o Grande". Aí, ao contrário do que se sucedeu no continente, os reis se fortaleceram e
os vikings tornaram-se “vassalos" dos ingleses, com Guthrum, o chefe da armada escandinava, aceitando o
cristianismo e recebendo o sacramento do Batismo.
A vitória de Alfredo, o Grande, sobre os povos nórdicos foi versejada pelo escritor britânico G. K. Chesterton, em sua
famosa obra The Ballad of the White Horse [“A Balada do Cavalo Branco"] [1].
Em determinado trecho dessa longa e inspirada poesia, Chesterton conta a aparição de Nossa Senhora a Alfredo,
durante a qual ela encoraja o rei de Wessex à batalha, em um período de enorme instabilidade política e religiosa – vale
lembrar que o século X ficou conhecido, na história da Igreja, como o “século de ferro", quando, em um curto período
de 40 anos, 15 papas reinaram na Sé de Pedro. Enquanto todos se entregavam às hordas vikings e aos maus costumes,
Alfredo, animado por Maria, não se entrega. Às vésperas da Batalha de Edington, dá-se o encontro entre os dois:

"A Lenda do Cavalo Branco" é um poema de G. Chesterton que narra a lenda de uma aparição de Nossa
Senhora a Alfredo o Grande, rei católico na Inglaterra do século IX.

Alfredo acha que o céu é misterioso demais, e ele não é digno de saber como será. Então ele apenas
pergunta a Nossa Senhora o que vai acontecer com eles aqui neste mundo.

Ela responde que ele está equivocado, e que é o contrário: na Terra ela não sabe o que vai acontecer, mas
o céu não é mistério nenhum. Não é nenhum segredo a Graça e a Salvação para aqueles que lutam por
Cristo. Ela diz:

"Mãe de Deus", disse o vagabundo,


"Eu sou apenas um rei comum,
Também não pergunto o que os santos podem perguntar,
Para ver uma coisa secreta. "

"Os portões do céu são portões temerosos


Pior do que os portões do inferno;
Não romperia os esplendores barrados
Ou busque saber o que guardam,
O que é bom demais para contar.

(...)

"Quando nosso último arco está quebrado, Queen,


E nosso último elenco de dardo,
Sob algum céu triste e verde da noite,
Segurando uma cruz arruinada no alto,
Sob cálida grama oeste para mentir,
Vamos finalmente voltar para casa? "

E uma voz veio humana, mas alta,


Como uma casa de campo escalada entre
As nuvens; Ou um servo de cabana e croft
Isso ocorre por seu fogo de castelo,
Mas ouve em seu antigo telhado nu no alto
Um campanário explodiu na música.

(...)

"Os portões do céu estão ligeiramente trancados


Nós não guardamos nosso ouro,
Os homens podem arrancar onde os mundos começam,
Ou leia o nome do pecado sem nome;
Mas se ele falhar ou se ele ganhar
Não é dito a nenhum homem bom.

"Os homens do Oriente podem soletrar as estrelas,


E os tempos e os triunfos marcam,
Mas os homens assinaram a cruz de Cristo
Vá alegremente no escuro.

(...)

"Mas você e todo o tipo de Cristo


São ignorantes e valentes,
E você tem guerras que você mal ganha
E as almas que você dificilmente poupa.

"Eu não lhe digo nada para o seu conforto,


Sim, nada para o seu desejo,
Salvo que o céu cresça mais escuro ainda
E o mar sobe mais alto.

"A noite será três vezes mais sobre você,


E o céu, um ferro cobre.
Você tem alegria sem causa,
Sim, fé sem esperança? "
O impressionante da vitória de Alfredo é justamente a sua luta, mesmo sem esperanças e apoios humanos.
De fato, é no final, quando tudo já está perdido, que acontece um "eucatástrofe":

E quando a última seta


Foi equipado e foi voado,
Quando o escudo quebrado pendia no peito,
E a lança sem esperança foi posta em repouso,
E o chifre sem esperança soprado,

O rei olhou para cima,


E o que ele viu
Era uma grande luz como a morte,
Para Nossa Senhora estava de acordo com os padrões de aluguel,
Tão solitário e tão inocente
Como quando entre as paredes brancas ela foi
E os lírios de Nazaré.

Um instante em uma luz imóvel


Ele viu Nossa Senhora então,
Seu vestido era suave como o céu ocidental,
E ela era uma rainha mais feminina -
Mas ela era uma rainha de homens.

Sobre a floresta de ferro


Ele viu Nossa Senhora,
Seus olhos estavam tristes sem arte,
E sete espadas estavam em seu coração
- Mas um estava em sua mão.

Ou seja, quando ele fez tudo que pôde, e não havia mais esperança, então Nossa Senhora começou a
lutar. E ele venceu os vikings.

Hoje, diante da barbárie dos vikings que profanam o templo de Deus, é preciso lutar, ainda que as
expectativas humanas não sejam as mais promissoras. A vitória do Céu é certa, mas não nos é dado
conhecer os detalhes do que vai acontecer nesta vida – “The gates of heaven are lightly locked / We do
not guard our gold, (...) / But if he fail or if he win / To no good man is told."

8. Cluny e a reforma da Igreja


Versão áudio
No século X, a politicagem e a corrupção dos costumes chegou até à cátedra de São Pedro. Para salvar a Igreja deste
"século obscuro", os religiosos de um mosteiro na França decidiram empunhar uma corajosa arma: sua santidade.

Descubra, nesta 8.ª aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, como a Abadia de Cluny foi decisiva para a
reforma do clero e para a civilização de toda a Europa.

Após a invasão viking, a Europa foi totalmente fragmentada. Diferentemente da Inglaterra, que resistiu bem à invasão
dos vikings, mantendo e ampliando a sua unidade política, o resto do continente viu pequenos senhores de terra
organizarem e fortificarem seus próprios castelos, em um fenômeno que ficou conhecido como feudalismo. Por meio
de alianças de "vassalagem", os servos da gleba prestavam fidelidade e trabalhavam para os seus suseranos, enquanto
estes ofereciam-lhes proteção e moradia.
Para resistir aos bárbaros nórdicos – muito mais cruéis que os que fizeram cair o Império Romano –, muitos monges e
bispos encastelaram os próprios mosteiros e ambientes eclesiásticos, copiando o modelo feudal vigente na Europa. Isso
fez o poder temporal mesclar-se ao da Igreja, de várias formas.

"A secularização dos bens da Igreja, essa doença do século IX, continua e ultrapassa em gravidade o que se viu no
tempos dos merovíngios. Generaliza-se o preenchimento dos cargos eclesiásticos pelos poderes civis, prática já muito
cara a Carlos Magno. Chega-se, pois, ao cúmulo daquele erro que há cinco séculos vinha ameaçando continuamente a
sociedade cristã: a intromissão do poder civil na Igreja e a sistemática confusão entre os dois poderes." [1]

A questão das investiduras leigas – como ficou chamada a nomeação de cargos eclesiásticos por chefes políticos –, por
exemplo, fez que monges, bispos e inclusive Papas ficassem submissos a reis, imperadores e nobres, em um período
que ficou conhecido por saeculum obscurum(expressão cunhada pelo Cardeal Barônio, discípulo de São Filipe Néri).
De fato, o século X foi marcado pela nefasta influência de famílias romanas na eleição dos Sumos Pontífices. Nessa
época – provavelmente mais do que em qualquer outra –, a corrupção do mundo entrou com força na Igreja. Papas
praticavam a simonia, davam de ombros para a disciplina do celibato, morriam assassinados e, muito preocupados com
maquinações políticas, praticamente não interferiam nos assuntos da Igreja. O bispo de Roma era mais um senhor
feudal e chefe político que propriamente um líder espiritual.
O iluminista e anticlerical francês Voltaire, ao comentar a vida dos Papas dessa época, escreveu: "É surpreendente que,
sob tantos papas tão escandalosos e tão pouco poderosos, a Igreja romana não tenha perdido nem suas prerrogativas,
nem suas pretensões" [2]. É preciso concordar com Voltaire, complementando, porém, que, se esse fato é realmente
surpreendente, é porque ali, por trás das condutas erradas e pecaminosas dos homens, agia o próprio Deus.

Com efeito, em 910 – ao mesmo tempo em que Roma parecia sucumbir à corrupção dos costumes –, num canto
obscuro da Europa, Guilherme de Aquitânia (também chamado de "o Piedoso") levanta o mosteiro que será
responsável pela reforma da Igreja e pela civilização do continente. Aconselhado por São Bernão, ele funda a Abadia
de Cluny, mantendo-a livre de influências políticas e diretamente vinculada a Roma. Graças a essa independência do
poder secular, os monges de Cluny puderam escolher os seus próprios superiores – homens santos, que despenderam
grandes esforços para a revitalização da fé. De fato, ao cabo de muitas viagens – após as quais inúmeros mosteiros se
uniram a eles –, o abade de Cluny passou a cuidar espiritualmente de toda a Europa: em cada porção de terra havia um
recanto diretamente submisso à abadia francesa.

A Regra de São Bento foi adotada pelos monges cluanicenses e, em pouco tempo, aqueles ensinamentos que há muito
eram conhecidos – principalmente graças aos esforços de São Gregório Magno e do bem-aventurado Alcuíno, à época
de Carlos Magno – passaram a ser fielmente vividos. Foi justamente nesse período de reforma monástica que surgiu
uma das mais belas flores do Evangelho: a educação cristã, pela qual as pessoas eram formadas não simplesmente para
o conhecimento, mas para a santidade.
O primeiro superior de Cluny foi São Bernão. Como seu sucessor, foi eleito Santo Odão. Desde pequeno, Odão fôra
consagrado pelo pai a São Martinho de Tours. Com problemas para ter filhos, ele prometeu a Deus que, se aquele
nascesse, educá-lo-ia para a vida religiosa. A promessa funcionou, pois o menino nasceu, mas, com o passar do tempo,
o seu pai acabou por esquecer-se do compromisso que tinha feito. Embora fosse muito temente a Deus, o jovem Odão
cresceu sendo formado para a cavalaria. Quando uma doença o prostrou, o pai recobrou a consciência de sua antiga
promessa e comunicou-a ao filho, que imediatamente deixou tudo para fazer-se monge. Na vida monacal, sua santidade
refulgia com força, principalmente nos milagres que Deus operava por suas mãos.

Outro santo abade de Cluny, considerado o maior de todos, foi São Hugo. Nos séculos XI e XII, praticamente não
havia um concílio em que não estivesse presente. Influenciou na eleição de Papas – foi pai espiritual de São Gregório
VII, por exemplo –, na solução de heresias – como a de Berengário de Tours –, na luta contra a simonia e na
implantação do celibato. Foi graças à sua ação – e a de outros abades, como Odilão e Pedro, o Venerável – que se
construiu em toda a Europa uma verdadeira "rede" de mosteiros reformados.

Quando começaram a aparecer Papas santos, então, a "rede" de Cluny foi "colocada na tomada" e passou a iluminar
todo o continente. A grande lição de Cluny é que de nada adiantam Papas santos sem haver fiéis que os obedeçam.
Importa, antes, restaurar o "tecido eclesial", a fim de que, quando Deus enviar um Pontífice providencial, a Igreja saia
efetivamente de sua crise. Para tanto, a solução atual talvez não esteja nos mosteiros, senão nos leigos – homens e
mulheres de fé, que queiram levar adiante a verdadeira educação cristã, buscando a própria santificação e a
contemplação da Verdade.

Enfim, após os seus anos de glória, Cluny entrou em decadência. Por problemas financeiros e circunstâncias políticas,
o rei da França começou a nomear os abades do lugar, criando na Ordem justamente o que os seus monges mais
combateram: a influência política. Independentemente disso, a Abadia desempenhou o seu papel histórico para o bem
da Igreja. Oxalá o século XXI seja capaz de repetir e aprimorar a experiência de Cluny, preparando o terreno para um
Papa da Providência e para o dia em que a Igreja finalmente será colocada de volta nos trilhos.
Referências

1. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 541.
2. Essai sur les mœurs et l'esprit des nations, XXXV.
9. Cruzadas
Versão áudio
Na Baixa Idade Média, homens de todos os lugares da Europa saíram de suas casas e partiram rumo ao Oriente,
dispostos a salvarem suas almas e defenderem a Terra Santa.

Descubra, nesta 9.ª aula de História da Igreja Medieval, o que foram realmente as Cruzadas e por que elas se tornaram
um dos principais cavalos de batalha dos inimigos da Igreja Católica.


É farto o material a respeito das Cruzadas. São duzentos anos de história, envolvendo múltiplos eventos diferentes. Não
bastasse isso, trata-se de um tema polêmico. Principalmente por ocasião dos Ataques de 11 de Setembro – antes dos
quais o próprio Osama Bin Laden havia declarado uma " jihad contra judeus e cruzados" [1] – o exame histórico das
Cruzadas voltou à tona. Afinal, o que foram realmente as Cruzadas: guerras injustas e violentas dos cristãos contra os
muçulmanos ou, ao contrário, uma história épica, romântica e incriticável – como pintam outras pessoas?
Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Para um exame acurado acerca das Cruzadas, deve-se prescindir de preconceitos
ou reducionismos e partir a uma investigação rigorosa dos fatos e documentos históricos. Antes de tudo, importa dizer
que essa visão negativa sobre esse período histórico não foi criada pelos árabes – como pensa, por exemplo, o
presidente dos Estados Unidos, Barack Obama –, mas surgiu justamente no Ocidente, por obra de pensadores
iluministas e anticlericais. Agora, essa mentira é creditada por terroristas islâmicos, que a usam como justificativa para
uma "vingança".

A verdade é que as Cruzadas não foram uma "guerra santa". Esse conceito – que está ligado a jihad – é muçulmano. O
islamismo, de fato, expandiu-se principalmente por guerras e investidas políticas. Na religião cristã, por outro lado, não
existe tal coisa, pois a guerra é sempre um mal. Existe sim – e a genialidade de Santo Agostinho e de Santo Tomás de
Aquino ajudou a elaborar este pensamento [2] – a chamada "guerra justa", que acontece quando se esgotam todas as
alternativas de conciliação.
Durante o pontificado de São Gregório VII, o Imperador de Constantinopla, Aleixo Comneno, pediu ajuda ao Ocidente
para recuperar os territórios do Oriente Próximo que haviam sido tomados pelos muçulmanos. Entre as conquistas dos
árabes, estava a Terra Santa. Nesta época, os cristãos, que desde a época de Santa Helena peregrinavam aos lugares
santos, sofriam para visitar o local em que Cristo viveu. Às portas de Jerusalém, eram obrigados a pagar altas somas de
impostos, sem falar dos assaltos, assassinatos e sacrilégios de que eram testemunhas e até mesmo vítimas.

A notícia de todos estes fatos indignou a Europa que, à convocação do Papa Urbano II, decidiu se organizar para
defender Jerusalém. Algumas pessoas disseram que as Cruzadas foram convocadas pelo Sumo Pontífice porque este
queria "mostrar o seu poderio militar". Nada mais falso. Seria ilógico que o Papa mandasse para o Oriente justamente
os exércitos que o defendiam, não fosse por uma verdadeira urgência.

Para incentivar os cavaleiros, nobres e outras pessoas a ajudarem o Império Bizantino, Urbano II reuniu um concílio e
agraciou os cruzados com uma indulgência plenária. Este prêmio por participar de uma guerra pode parecer absurdo,
mas sempre foi uma constante na história dos povos e nações: um soldado que morre para defender a sua pátria está
fazendo algo bom e deve ser condecorado por isso. É claro que hoje, por conta da propaganda esquerdista associando a
polícia e os militares à violência, as pessoas não têm mais essa mentalidade. Mas é deste modo que os bons soldados
devem ser honrados: como heróis.

Por isso, a Igreja sempre estimou os cruzados. Ela enxergava como autêntica caridade que eles saíssem de suas casas e
da tranquilidade de seus lares para enfrentarem o desconhecido e o imprevisível e defenderem Jerusalém. Os que se
decidiam a partir à Terra Santa eram, pois, assinalados com a Cruz, tinham suas espadas abençoadas – sob a prece de
que não derramassem sangue inocente – e, enfim, partiam em peregrinação. É com este sentido heroico de doação que
aconteceram as Cruzadas.

Porém, para os marxistas, que só conseguem ler a história a partir do viés econômico, o único objetivo desses soldados
seria a conquista de riquezas ou a posse de novas terras. Tal tese não faz absolutamente nenhum sentido. Por que esses
homens deixariam a Europa, se as terras ali eram abundantes e férteis? Na verdade, os cristãos "se cruzavam" porque
tinham fé; vendiam suas propriedades porque criam e queriam cumprir a vontade de Deus. É claro que isto não os
canoniza. O fato de serem homens de fé não os impedia de, ao longo do caminho, cometerem crimes e desmandos –
atos que foram condenados pelos próprios Papas da época.

A Primeira Cruzada que aconteceu – depois da fracassada "Cruzada Popular", conduzida por Pedro, o Ermitão –
começou com um voto de fidelidade dos soldados ao Imperador de Constantinopla: qualquer terra que fosse tomada
pelos cruzados deveria passar a propriedade do Império Bizantino. Depois de atravessarem o Bósforo, eles entraram na
Turquia e tomaram Niceia. Mais adiante, acamparam em Antioquia, na Síria e, depois de ficarem do lado de fora por
meses e perderem inúmeros soldados, conseguiram conquistar a cidade. Enfim, em 15 de julho de 1099, animados por
Godofredo de Bulhões – que dizia ter visto São Jorge no alto do Monte das Oliveiras –, os cruzados tomaram a Terra
Santa.
Foi grande o número de mortes em Jerusalém e dificilmente se pode justificar tudo o que os "soldados de Cristo"
fizeram aí. O fato é que, após terem a Cidade Santa nas mãos, os cruzados, ao invés de entregarem-na a Aleixo,
decidiram mantê-la para si. Por conta de um mal entendido, eles interpretaram a falta de ajuda do Imperador em
Antioquia como uma "traição" e, por isso, se acharam livres do juramento que tinham feito em Constantinopla.
Instauraram, então, o Reino Latino de Jerusalém, cujo primeiro rei foi justamente Godofredo de Bulhões. Este líder
militar que, em sua juventude, ajudara Henrique IV a invadir a Roma de São Gregório VII, certamente partiu em
peregrinação para purgar os pecados de sua vida passada. Ao ser escolhido como rei do lugar, no entanto, recusou-se a
ser coroado: não queria tal honra no mesmo lugar em que Cristo tinha sido coroado de espinhos. Foi designado, então,
simplesmente como Defensor do Santo Sepulcro.

Essas são algumas informações relevantes da primeira das Cruzadas. Como se pode ver, foram movimentos cheios de
luzes e trevas, acertos e erros – assim como os cruzados, homens de fé e, ao mesmo tempo, pecadores. Neste período,
foi importante o papel dos Papas para coibir e condenar os abusos dos comandantes e soldados nas expedições ao
Oriente. Cruzadas inteiras – cheias de crimes e injustiças – chegaram a ser excomungadas pelo Papa. Não era, pois,
tudo o que se lançava ao outro lado do Bósforo que merecia o selo de aprovação da Igreja. Por isso, importa estudar
não só os fatos históricos, mas também a reação das autoridades eclesiásticas ao que aconteceu.

Recomendações

1. Sobre o relacionamento entre São Gregório VII e o Rei Henrique IV, cf. AV. 106 – O papel da Igreja no mundo
político.
2. Sobre a Cruzada Popular conduzida por Pedro, o Ermitão, cf. AV. 107 – Guerra cultural: como vencer o projeto
marxista de poder.

Referências bibliográficas

1. Jihad Against Jews and Crusaders (23 de fevereiro de 1998).


2. Cf. Suma Teológica, II-II, q. 40, a. 1.

10. Ascensão e queda dos Templários


Versão áudio
Lendas e fatos, mitos e mistérios: o que há de tão impressionante na história dos Templários?

Nesta 10.ª aula de História da Igreja Medieval, confira um resumo da saga dos "Pobres Cavaleiros de Cristo", desde a
glória de seus primeiros anos até a sua decadência e extinção precoce.

Como visto na última aula, os primeiros cruzados conseguiram tomar Jerusalém das mãos dos muçulmanos. Terminada
a investida, porém, os latinos que permaneceram no Oriente se encontravam em uma situação difícil geopoliticamente,
pois os Estados Cruzados – chamados também de Outremer ("Ultramar") – estavam, por todos os lados, cercados de
povos islâmicos. Nesta condição – tentando governar um povo indócil e sendo constantemente pressionado por fora –,
era realmente muito complicado manter a ordem política.
Por isso, em resposta ao pedido de ajuda dos povos latinos no Oriente, um grupo de cavaleiros oferece-se ao Rei
Balduíno II de Jerusalém, disposto a ir à Terra Santa e cuidar dos peregrinos e dos Lugares Sagrados. Uma
característica, porém, os distingue dos combatentes comuns: os Templários – como seriam chamados mais tarde –
queriam, ao mesmo tempo, viver a profissão dos votos religiosos de pobreza, castidade e obediência.

Mesmo com a aparente contradição do que se dispunham a fazer, o Rei viu a conveniência de sua ajuda e deu a sua
aprovação ao intento dos cavaleiros. Com o aval do Papa Honório II uns anos mais tarde, o líder do grupo, Hugo de
Payens, percorre toda a Europa à procura de recrutas para a nova Ordem que surge. Para tanto, conta com o valoroso
auxílio e proteção de São Bernardo de Claraval, cuja pregação fez engrossar exponencialmente as fileiras da "nova
milícia" de Cristo. Juntamente com os Templários, então, são fundadas a Ordem dos Hospitalários – que se tornariam,
mais tarde, os Cavaleiros de Malta – e a dos Cavaleiros Teutônicos. Também elas trilham o mesmo caminho dos
"Pobres Cavaleiros de Cristo": o de ser, ao mesmo tempo, monges e guerreiros.

Mas, por que estes militares se apresentam para viver uma vida religiosa? Certamente não se pode entender a sua
opção, sem saber que se tratam, sobretudo, de homens de fé. Depois de uma vida cheia de percalços e pecados, eles
queriam expiar as suas faltas do passado e diminuir as penas do seu purgatório. Seu projeto militar e espiritual, todavia,
não é contraditório: o combate que travavam contra os inimigos externos, como soldados, eles agora deviam combater
contra os vícios internos, como religiosos.

Os Templários foram, de fato, muito importantes, desde a Segunda Cruzada (1147-1149), até a perda de Jerusalém, na
famosa Batalha de Hattin, em 1187. Para se ter uma ideia de sua fé e coragem, nesta batalha, 230 cavaleiros foram
capturados e mortos como mártires, recusando-se a abandonar a fé cristã e converter-se ao islamismo. Fica evidente, a
partir deste episódio, que os Templários realmente não eram guerreiros comuns. Em Hattin, a sua dedicação a Cristo
chegara ao ponto do martírio.
Infelizmente, a situação militar na Terra Santa iria de mal a pior e, depois de várias cruzadas e muitas mortes, os latinos
perderiam totalmente suas posses nos Lugares Santos. Quando, em 1291, cai a fortaleza de São João de Acre, os
Templários encerram os seus trabalhos no Oriente e, com o passar dos anos, assiste-se pouco a pouco à decadência e à
extinção da Ordem que tanto bem tinha prestado à Igreja.

Para entender como os Cavaleiros de Cristo, de homens tão destemidos e empenhados com a causa da fé, chegaram à
própria extinção, sendo acusados até mesmo de trair a Igreja, é preciso entender o contexto em que se deu a sua
condenação.

A manutenção das posses latinas no Oriente demandava recursos, seja de ordem humana, seja de ordem material. Por
conta disso, os Templários tinham que lidar com grandes montas de dinheiro. Além disso, os nobres, quando "se
cruzavam" e partiam ao Oriente, deixavam suas fortunas sob a responsabilidade dos Templários, que passaram a
trabalhar também como banqueiros. Com isso, o seu poder econômico crescia, a ponto de superar o dos próprios
príncipes da época.

O ganancioso Filipe IV (Filipe, o Belo), então Rei da França, conhecendo o tesouro pelo qual zelavam os Templários e
vislumbrando uma oportunidade de quitar as dívidas de sua administração, começou a lançar calúnias contra a Ordem,
a qual ele se tinha decidido a destruir. Os Cavaleiros do Templo, porém, não eram imaculados. Acusações graves,
relativas aos rituais de iniciação por que tinham que passar os noviços, sujavam a sua reputação. Dizia-se que os
neófitos deviam blasfemar contra a Cruz de Cristo e dar beijos humilhantes em seus preceptores (aqueles que os
acolhiam na Ordem). A notícia desses fatos causava escândalo da Europa e abria uma brecha para a ação dos seus
inimigos.

Atente-se, porém, que esses ritos estranhos – comuns em ambientes militares – não tornavam os Templários
necessariamente em infiéis ou hereges. O próprio processo que culminou na sua extinção mostra que, mesmo com
esses erros, eles eram bons cristãos. No entanto, os boatos do Rei da França, aliados ao burburinho que crescia entre o
povo, fizeram o Papa Clemente V dissolver, em 1312, a já desmoralizada Ordem dos Templários. No começo, o Sumo
Pontífice bem que tentou fazer um processo canônico justo, mas, ao fim, faltaram-lhe pulsos firmes e os líderes da
Ordem terminaram na fogueira, por ordem de Filipe, o Belo.

O último grão-mestre da Ordem, Jacques de Molay, foi um desses cavaleiros executados pelo príncipe francês. Homem
de caráter rígido e severo, Jacques não se dobrou às exigências de Filipe IV, exigindo justiça para si até o momento de
sua execução. Reza a lenda que, no instante em que agonizava nas chamas, ele invocou a Deus e pediu que os
responsáveis por sua condenação fossem cobrados pela justiça divina. Impressionantemente, no decorrer do mesmo
ano de 1314, morreram Filipe IV e Clemente V.

Maldição ou não, o fato é que os Templários permaneceram esquecidos até o século XVIII, quando a Maçonaria
construiu um mito em torno desses homens e se intitulou "herdeira" de sua constituição. Ninguém jamais conseguiu
provar essa alegação dos maçons. Na verdade, no curso sobre os Templários, há documentação abundante para dizer
exatamente o contrário: tantos contos a respeito dos Templários, procurando relacioná-los com os maçons, com o Santo
Graal ou com os Illuminati, não passam de uma grande ficção. É um material interessante para quem gosta de estórias,
não para quem está interessado na verdade dos fatos históricos.
11. Ordens mendicantes
Versão áudio
Da vida mística e contemplativa de Domingos e Francisco o que se originou não foi um bando
de hippies revolucionários, mas uma legião de homens profundamente religiosos, os quais, inconformados com o
pecado e com a mentalidade mundana, devolveram vitalidade à Igreja e deram um novo impulso à evangelização de
toda a Europa.
Nesta 11.ª aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, conheça as Ordens mendicantes e descubra como a
Europa foi restaurada pela pregação incansável de São Domingos de Gusmão e pela pobreza exemplar de São
Francisco de Assis. Bibliografia

Deus conduz a Sua Igreja ao longo da história, suscitando, nos tempos e lugares propícios, homens santos, que a façam
"ressuscitar" da miséria e da morte.

As Ordens mendicantes – entre as quais se destacam os dominicanos e os franciscanos – surgiram em um período


particularmente conturbado para a Igreja. No início do século XIII, após o sucesso de Cluny, embora os religiosos
tivessem professado o voto de pobreza, as Ordens monásticas experimentaram um relativo enriquecimento, ao mesmo
tempo em que bispos e padres diocesanos viviam na opulência.
Em oposição a este modo de vida nada exemplar do clero, surgiram os cátaros e os albigenses. As duas heresias
tinham como ponto comum a condenação não só das riquezas, como de qualquer realidade material – desde possuir
propriedades até alimentar-se ou casar-se –, a ponto de seus adeptos olharem para a Criação a partir de dois princípios:
um bom – que originou o mundo espiritual – e um ruim – que deu origem ao mundo material. Os albigenses, por
exemplo, não acreditavam nos Sacramentos, pois não podiam conceber que um sinal visível pudesse portar eficazmente
uma graça invisível e espiritual.
À época, a Igreja não parecia preparada para lidar com a expansão das duas heresias. Enquanto os sacerdotes
diocesanos não levavam vida exemplar, os monges permaneciam encerrados em seus mosteiros, em uma estrutura
praticamente rígida e sem flexibilidade alguma. É com São Domingos de Gusmão († 1221) e São Francisco de Assis (†
1230), fundadores da Ordem dos Pregadores e da Ordem dos Frades Menores, respectivamente, que os religiosos
poderão deslocar-se de cidades em cidades, atravessando fronteiras para ensinar e pregar a fé católica. Santo Tomás de
Aquino († 1274), por exemplo, passou por Nápoles, Roma, Orvieto, Paris e Colônia; Santo Antônio de Pádua († 1231),
por sua vez, tendo nascido em Portugal, girou todo o norte da Itália, França e Alemanha, pregando contra os hereges. É
essa mobilidade que vai se opor à expansão dos cátaros e albigenses, no período da Baixa Idade Média.

Domingos de Gusmão era padre diocesano e cônego em sua diocese. Em viagens ao sul da França, ele atende ao pedido
do Papa e começa um novo estilo de vida apostólica. Passa a dedicar-se, junto com um pequeno grupo, ao estudo e à
contemplação da Verdade, pregando o que contemplava às pessoas, a fim de tirá-las do erro e da heresia. Para esses
pregadores, porém, não bastava o conhecimento. Era preciso ser santo, ter uma vida mística. Afinal, "o homem
contemporâneo", assim como o homem daquela época, "escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os
mestres, (...) ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas [1].
Pregando a pobreza e enfrentando com sabedoria as heresias de seu tempo, os dominicanos ficaram conhecidos pelo
lema: "Contemplata aliis tradere – Dar aos outros o que foi contemplado", retirado da obra de Santo Tomás de Aquino
[2]. Também foram muito importantes no desenvolvimento da Inquisição, que, à parte os preconceitos de muitos, foi
uma instituição cercada por santos extraordinários.
Quanto a Francisco de Assis, importa, antes de qualquer coisa, "exorcizar" a visão revolucionária e marxista que o
mundo moderno criou a respeito dele, principalmente a partir do século XIX.
Francisco não era ecologista. Em seu amor pela Criação, o santo de Assis combateu com eficácia a heresia cátara, que
dizia ser ruim o mundo material. Ao chamar as criaturas de "irmãs", apontava para a existência do grande pai, que é
Deus, associando a bondade existente no mundo material à bondade divina. Francisco não era, pois, um panteísta
idólatra ou algo parecido. Tinha fé católica e conhecia muito bem a distinção entre o Criador e as Suas criaturas.
Francisco não era pacifista. Em seu famoso Cântico das Criaturas, o santo lamenta a sorte "dos que morrerem em
pecados mortais" e bendiz "os que ela [a Morte] achar conformes à vossa santíssima vontade, porque a morte segunda
não lhes fará mal" [3]. Ao pregar a paz, Francisco queria reconduzir os homens a Deus, empresa que só se podia
concluir, após o pecado, por meio de um verdadeiro combate. Tendo bem claras diante de si as realidades
sobrenaturais, ele também ordenava que fossem dadas punições espirituais e até físicas aos frades de sua Ordem.
Contemporâneo das Cruzadas, o frade de Assis não só não as condenou, como participou da Quinta Cruzada, em uma
tentativa de converter à fé cristã o sultão Al-Kamil, sobrinho de Saladino.
Francisco não era pauperista. Ainda que tenha feito da virtude da pobreza a sua esposa e esta possa com razão ser
denominada a principal característica do santo de Assis, o que ele pregava não tinha absolutamente nada a ver com o
igualitarismo desejado pelo marxismo.
Francisco não era rebelde. Mesmo não querendo muito a institucionalização de sua Ordem, São Francisco não era um
herético errante que vivera sua própria experiência com Cristo longe do seio da Igreja. Ao contrário, o santo vivia em
profunda comunhão com os Papas da época, inteiramente submisso à hierarquia eclesiástica.
Francisco não era como o jovenzinho hippie do filme Brother Sun, Sister Moon ["Irmão Sol, Irmã Lua"] (Franco
Zeffirelli, 1972). Profundamente configurado a Cristo na Cruz, quando escreveu o seu Cântico das Criaturas, Francisco
de Assis já se encontrava com chagas dolorosas por todo o corpo, sofria terrivelmente de artroses, tinha os olhos
cauterizados por conta de uma infecção e, além disso, só se movia se fosse carregado, posto que não conseguia mais
caminhar. Foi neste estado de sofrimento e penitência que o Pai Seráfico cantou ao seu Criador, unido totalmente a
Cristo "obediente até a morte, e morte de Cruz" (Fl 2, 8).
Dominicanos e franciscanos, os filhos desses dois gigantes espirituais, foram os principais a ocuparem espaço nas
primeiras universidades, tornando-se os grandes mestres da Escolástica e doutores da fé católica. "A fructibus eorum
cognoscetis eos – Pelos seus frutos os conhecereis" (Mt 7, 16). Da vida mística e contemplativa de Domingos e
Francisco saiu não um bando de hippies maconheiros e revolucionários, mas uma legião de homens profundamente
religiosos, que, inconformados com o pecado e com a mentalidade mundana, devolveram vitalidade à Igreja e deram
um novo e forte impulso à evangelização de toda a Europa.
Referências

1. Papa Paulo VI, Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (8 de dezembro de 1975), n. 41.
2. Cf. Suma Teológica, II-II, q. 188, a. 6: "Sicut enim maius est illuminare quam lucere solum, ita maius
est contemplata aliis tradere quam solum contemplari – De fato, assim como é maior iluminar do que
simplesmente brilhar, maior é dar aos outros o que foi contemplado do que simplesmente contemplar".
3. Canticum Fratris Solis vel Laudes Creaturarum, 13 (FF 263).

12. A Inquisição
Versão áudio
Quando o assunto é Inquisição, fogueiras, crueldades e os mais bizarros instrumentos de tortura povoam o imaginário
popular. Mas o que realmente aconteceu nesses tribunais da Igreja?

Nas últimas décadas, os historiadores finalmente começaram a estudar a Inquisição a sério, sem mitos ou preconceitos.
Saiba o que eles descobriram, nesta 12.ª aula de História da Igreja Medieval.
 Compartilhar no Facebook

 Compartilhar no Twitter
 Enviar para um amigo
 Download do Áudio
Aula AnteriorPróxima Aula

 Texto
 Aulas
 Bibliografia
Nesta aula, falar-se-á apenas sobre a Inquisição Medieval. A quem quiser se aprofundar no assunto e conhecer a
atuação do Santo Ofício em outras épocas da história, basta assistir ao nosso curso sobre a Inquisição.
Contexto. – Com a queda do Império Romano, em 476 d.C., os povos bárbaros tomaram toda a Europa, lançando-se
sobre o patrimônio antigo e gerando uma onda intermitente de caos e violência. O renascimento carolíngio tentou, sem
sucesso, restaurar a ordem das coisas, mas tudo foi por água abaixo, principalmente após a invasão dos vikings, que
trataram de espalhar o terror por onde quer que passassem, piorando ainda mais a situação em que se encontrava a
Europa.
Em meio à barbárie que se instalou em todo o continente, a Igreja Católica foi praticamente a única tábua de salvação
do Ocidente. Foi com a reforma realizada pela Ordem de Cluny, na virada do milênio, que se conseguiu restaurar, em
certa medida, a ordem no continente. "Os mosteiros cluniacenses dispunham de amplas propriedades que, postas
diligentemente a frutificar, contribuíram para o desenvolvimento da economia" [1]. De fato, sem a presença dos
Estados nacionais, a força que dava unidade à Europa era o cristianismo e, entre os inúmeros dialetos que existiam na
região, era a língua latina que se impunha para o estudo e o aprendizado das pessoas. O Rei era uma figura muito frágil
nessa época e a organização política e social se apoiava, sobretudo, em juramentos de fidelidade e pactos de suserania e
vassalagem.
Os cátaros. – Foi nessa sociedade que surgiram os cátaros. Esse grupo religioso, vindo da região da Bulgária, pregava
uma total subversão da doutrina católica. Para esses autodenominados "puros", haveria dois deuses: um bom, criador
das coisas espirituais; e um mau, criador da matéria. A Igreja Católica – com seus Sacramentos feitos de sinais
sensíveis [2] e com seus bispos e padres vivendo na opulência [3] – teria sido obra desse deus mau.
Mais, porém, do que causar confusão no ambiente religioso, essa heresia gnóstica – cujo conteúdo encontrou sua
resposta providencial na figura do grande São Francisco de Assis († 1226) – fazia ruir todo o edifício da sociedade
medieval: os cátaros também eram contrários aos juramentos, que constituíam a base das relações políticas na Idade
Média.
Por isso, os mais interessados em combater essa heresia eram, além do clero, os príncipes seculares e o próprio povo.
Uma fonte primária relata, por exemplo, que, em 1114, enquanto os bispos se reuniam em Beauvais para decidir o que
fazer com relação aos hereges, os populares se juntaram para fazer justiça com as próprias mãos:

"Então, nós fomos ao Concílio de Beauvais para consultar os bispos sobre o que deveria ser feito. Mas, neste ínterim, o
povo fiel, temendo fraqueza por parte do clero, assaltou a prisão, arrebatou os prisioneiros, colocou-os na fogueira, do
lado de fora da cidade, e reduziu-os a cinzas." [4]

Primeiras soluções. – Na verdade, a expansão dessa heresia pegou toda a cristandade de surpresa. Diz a respeito o
padre Shannon que, "por estranho que possa parecer, a própria Igreja no Ocidente tinha pouca experiência em tratar
com seitas heréticas grandes e organizadas" [5]. Um longo caminho, pois, deveria ser percorrido até que se encontrasse
a solução adequada para esse dilema.
Começou-se com a instituição da chamada Inquisição episcopal, a qual pretendia remediar o problema com visitas dos
Ordinários locais às suas dioceses. Esse primeiro apelo do Papa, no entanto, caiu "em ouvidos moucos" e o plano,
infelizmente, não obteve eficácia.
Depois, na primeira metade do século XIII, o sul da França conheceu a Cruzada dos Albigenses (1209-1229). O
número de cátaros na cidade de Albi era muito grande, chegando a haver muitos senhores feudais adeptos da heresia.
Por isso, o Papa Inocêncio III († 1216) convocou uma cruzada, cuja finalidade principal seria substituir os nobres que
viviam no sul por governantes mais ortodoxos. A controversa iniciativa foi um novo fracasso.
A Inquisição papal. – Só sob o reinado do Papa Gregório IX († 1241) instituiu-se finalmente a Inquisição pontifícia.
Colocados a encargo dos dominicanos, os tribunais do Santo Ofício evitaram que milhares de pessoas morressem. Os
frades da recém-fundada Ordem dos Pregadores, além do conhecimento teológico, julgavam as pessoas com prudência
e misericórdia, dando-lhes a possibilidade de se converterem – coisa que não acontecia, absolutamente, em nenhum
tribunal civil.
Ao chegar a uma região, os inquisidores proclamavam um "tempo de graça" e ficavam ali por vários dias, expondo às
pessoas a verdadeira fé. A primeira etapa do processo consistia, portanto, na persuasão. Diante da pregação dos
dominicanos, que falavam com eloquência e sabedoria, um grande número de pessoas se apresentava aos frades,
assumia os seus erros, pedia uma penitência e voltava para o seio da Igreja. Eram recolhidas também denúncias e
acusações, as quais eram devidamente averiguadas e julgadas diante de um grupo de testemunhas.

Depois das investigações, algumas pessoas realmente eram punidas com a morte. Importa considerar, porém, que, no
direito medieval, a pena capital era aplicada para inúmeros crimes. Santo Tomás mesmo alude ao fato de que os
falsificadores de moedas eram condenados à morte pelos príncipes seculares [6]. Então, a Igreja não inventou a pena de
morte. O que ela fez foi tomar para si o julgamento das heresias, a fim de evitar injustiças.

Vale destacar, também, que o número de condenações capitais nos tribunais eclesiásticos era ínfimo diante da
facilidade com que se matava os réus na justiça comum. Notório é o comentário do filósofo e jornalista Roman Konik.
Ele diz que:

"Lendo os autos dos processos inquisitoriais, mais de uma vez encontramos bandidos comuns que, surpreendidos pela
polícia no ato de violação, de roubo, de assalto à mão armada, rapidamente inventavam uma motivação religiosa para
explicar o seu procedimento. Por quê? Simplesmente para cair na esfera da justiça da Inquisição e não da justiça civil
ou temporal. Pois a justiça inquisitorial garantia pelo menos uma investigação, em vez da pena de fogueira imediata, a
qual – como a pena de morte ou o decepamento da mão – não foi absolutamente invenção dos inquisidores." [7]

Abusos. – Houve, sim, abusos na história da Inquisição. Tome-se por exemplo o caso de Roberto Búlgaro, o inquisidor
que foi tirado de seu cargo e punido pela Igreja, por sua má conduta.
Na verdade, os maiores abusos ocorreram quando o Santo Ofício foi deixado sob a égide do poder local, como
aconteceu no processo de Santa Joana d'Arc († 1431), já no final da Idade Média. Na ocasião, a donzela de Orléans foi
injustamente condenada. O fato de, hoje, ela ser venerada como santa católica e padroeira da França, só sinaliza a
consciência que a Igreja tem dos erros de seus filhos. Em seu caso, porém, o poder religioso não passou de um
"joguete" na mão do poder secular, que "forçou a mão" dos eclesiásticos para condenar a jovem francesa. Também esse
episódio serve de lição para o nosso tempo: mostra como a Igreja deve estar livre das amarras políticas, a fim de
cumprir adequadamente a sua missão civilizatória e evangelizadora.
Referências

1. Papa Bento XVI, Audiência Geral (11 de novembro de 2009).


2. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1084; Suma Teológica, III, q. 60, a. 4.
3. O século X, do qual a sociedade medieval tinha acabado de sair, foi apelidado de "saeculum obscurum", por conta
dos terríveis pontificados que se sucederam nesse período. O Papa João XII, por exemplo, eleito por jogos
políticos, realizava banquetes e orgias em pleno Palácio de Latrão. Eram recorrentes também a "questão das
investiduras leigas" – quando o poder secular interferia indevidamente na nomeação dos bispos – e a questão da
simonia – pela qual pessoas compravam para si ou para outrem os cargos eclesiásticos.
4. PETERS, Edward. Heresy and Authority in Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1980. p. 74.
5. SHANNON, Albert C.. The Medieval Inquisition. Michael Glazier/Liturgical Press, 1991. p. 44.
6. Cf. Suma Teológica, II-II, q. 11, a. 3.
7. KONIK, Roman. Inquisição: Mito e realidade histórica. [Setembro, 2006]. Catolicismo.

13. As universidades
Versão áudio
Bolonha, Oxford, Paris, Salamanca... Todas as grandes universidades da Europa são filhas da Igreja Católica. Mas você
sabe o que realmente representou a fundação das universidades para a história humana? Como era a educação na
Antiguidade e começo da Idade Média? O que o sistema universitário realmente trouxe de novo às pessoas?

Nesta 13.ª aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, Padre Paulo Ricardo faz uma viagem pela história da
educação e mostra como essa fundação tão prestigiada da Igreja acabou se voltando contra sua própria mãe.
 Compartilhar no Facebook

 Compartilhar no Twitter
 Enviar para um amigo
 Download do Áudio
Aula AnteriorPróxima Aula

 Texto
 Aulas
Para fazer um juízo abalizado a respeito das universidades – as quais são comumente apresentadas como uma grande
façanha da Igreja Católica [1] –, é importante adentrar a área da educação e retroceder alguns séculos na história. Só
assim se pode compreender o que significou realmente a sua criação.

Na Idade Antiga, foi a civilização grega que se aperfeiçoou em matéria educacional, muito embora os gregos nunca
idealizassem uma educação para todos, mas restringissem a formação intelectual a uma parcela ínfima da sociedade. A
primeira escola fixa, tal como é entendida hoje, surgiu com Pitágoras († ± 500 a.C.), discípulo de Tales de Mileto († ±
557 a.C.). Nessa tradição, surgiram depois a Academia de Platão († ± 348 a.C.) e o Liceu de Aristóteles († 322 a.C.).
Nelas, as pessoas entravam para se educar pelo resto de suas vidas, sem se preocuparem com diploma ou graduação.
(Nessa época, o ensino de medicina, arquitetura e outras profissões mais técnicas era feito diretamente com os
profissionais dessas áreas.)

Paralelamente a esse fenômeno, a democracia ateniense via nascer também o ensino da retórica. Diferentemente das
escolas filosóficas, as quais eram permanentes e tinham como fim a busca da sabedoria, os grupos de oratória eram
montados para formar as pessoas para a vida política. Ao invés de aprender a filosofia para buscar a Verdade, elas
aprendiam a oratória para governar o povo. Desse grupo, extremamente preocupado com a argumentação e com o uso
das palavras, nasceram os sofistas. Especializados na arte da linguagem, esses homens começaram a ensinar às pessoas
gramática, lógica e retórica, campos que posteriormente foram designados sob o nome de trivium. Nas escolas
filosóficas, por sua vez, eram ensinadas as artes da música, da aritmética, da astronomia e da geometria – designadas
depois sob o termo quadrivium. Era só depois de passar pelas "sete artes liberais" que se partia ao estudo da verdadeira
filosofia.
Com o advento do Cristianismo, esse esquema permaneceu praticamente o mesmo, com as seguintes (e importantes)
diferenças: (a) nas "escolas monásticas" e "escolas catedrais", a filosofia propriamente dita deu lugar ao estudo da
teologia e das Sagradas Escrituras (a questão do "diploma" continuava não tendo nenhuma importância); e, (b) dado
que a santidade e a sabedoria estavam intimamente unidas entre si e considerando que Nosso Senhor pediu que se
anunciasse o Evangelho "a toda criatura" (Mc 16, 15), a educação cristã não se podia mais reservar a uma "elite",
devendo abarcar todas as pessoas. Consequência inevitável da "vocação de todos à santidade na Igreja" [2], a sabedoria
era um programa universal: todos deviam ser sábios, porque todos deviam ser santos. Assim, quem quer que se
dedicasse integralmente a uma formação intelectual devia buscar uma incessante conversão pessoal.
Nas escolas cristãs medievais, as pessoas também deviam combater as duas principais feridas do gênero humano,
decorrentes do pecado original: a vulnus ignorantiae, que atinge o intelecto, e a vulnus malitiae, que atinge a vontade
[3], afinal, é com essas duas potências que o homem se pode elevar a Deus, conhecendo-O, com a sua inteligência, e
amando-O, com o seu querer [4].
Tome-se como exemplo dessas escolas a Abadia de São Vítor [5], fundada no século XII, por Guilherme de
Champeaux († 1121), nos arredores de Paris. Foi dela que surgiu o grande Hugo de São Vítor († 1141), elogiado por
São Boaventura como o maior dos teólogos [6].

No século XIII, com a redescoberta da filosofia de Aristóteles e a sua inserção no curriculum das escolas, os
professores começaram a se reunir numa espécie de "cooperativa", que foi chamada de universitas
studiorum ("universidade de estudos"). Nesse ambiente, ainda se buscavam a sabedoria e a santidade de vida. Quando,
porém, se fez o estatuto da Universidade de Paris, incluiu-se nele algo que, a longo prazo, se revelaria trágico: após os
cursos, as pessoas deviam ganhar uma licentia docendi ("licença de ensinar") – um equivalente do conhecido
"diploma". Isso fez com que as pessoas quisessem estudar não mais tendo em vista as virtudes, mas tão somente um
pedaço de papel.
Rapazes, ainda na flor da mocidade [7], saíam das universidades com seus diplomas debaixo dos braços, autorizados a
ensinar aos outros, sem se preocuparem em aperfeiçoar a si mesmos ou cultivarem uma vida virtuosa. O resultado disso
foi que, desde o fim da Idade Média, o nível do conhecimento começou a cair vertiginosamente. É do século XIV, por
exemplo, o nominalismo de Guilherme de Ockham († 1347) – que não passou de uma ressurreição do sofismo – e é
sob essa influência que o monge Martinho Lutero († 1546) começará a Reforma Protestante, já na Idade Moderna.

Também no século XIII, presenciou-se o fenômeno dos goliardos, estudantes que saíam das universidades e erravam
nas tabernas, compondo poemas eróticos e satíricos contra a Igreja. Sintoma da decadência dessa época, a
obra Carmina Burana, contendo muitos desses cantos, retrata a vida indolente das tabernas [8]. Entregue ao vinho, às
mulheres e à vida fácil, toda uma geração viu decrescer, com o nível intelectual, a própria moralidade.
Com relação à universidade nos dias atuais, cabe um conselho: quem quer realmente estudar não deve contentar-se com
um diploma. O fim do homem sobre a terra é tornar-se sábio, e isto não se consegue senão com uma vida sobrenatural.
Porque a graça divina ilumina o ser humano e faz com que ele enxergue a realidade através da fé, para muito além da
luz natural da razão. É o que explica a magnitude de um Hugo de São Vítor, de um Santo Tomás de Aquino († 1274)
ou de um São Boaventura († 1274).
Objetivamente, o capítulo das universidades representou um regresso do homem na busca da sabedoria. Isso não
significa desprezar a importância dessas instituições, mas mostrar que, para além do conhecimento e do estudo
meramente técnico, o homem foi feito para algo muito maior: a contemplação e o amor da Verdade.

Referências

1. Cf., v.g., WOODS Jr., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. São Paulo:
Quadrante, 2008.
2. Constituição Dogmática Lumen Gentium (21 de novembro de 1964), 39-42.
3. Cf. Suma Teológica, I-II, q. 85, a. 3.
4. Cf. Ibid., I, q. 82, a. 4.
5. Cf. HUGONIN, Flavien Abel Antoine. Ensaio sobre a Fundação da Escola de São Vítor de Paris. Paris, 1854
(PL 175, XV).
6. Cf. De Reductione Artium Ad Theologiam, 5.
7. O filósofo grego Platão critica (A República, 539b) que se dê aos homens, antes dos trinta anos de idade, o nobre
encargo da filosofia. "Calculo que não passa despercebido – diz ele – que os rapazes novos, quando pela primeira
vez provam a dialéctica, se servem dela, como de um brinquedo, usando-a constantemente para contradizer e,
imitando os que os refutam, vão eles mesmos refutar outros, e sentem-se felizes como cachorrinhos, em derriçar e
dilacerar a toda a hora com argumentos quem estiver perto deles. (...) Ora depois de terem refutado muita gente, e,
por sua vez, terem sido refutados por vários, caem rapidamente e em toda a força na situação de não acreditar em
nada daquilo em que dantes acreditavam. E por este motivo, eles mesmos e tudo o que respeita à filosofia são
caluniados perante os outros." (PLATÃO. A República (Trad. Maria Helena da Rocha Pereira). 13. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. p. 356.)
8. Os poemas da coletânea Carmina Burana estão disponíveis para acesso na Internet. O poema citado pelo padre
chama-se In taberna quando sumus ("Quando estamos na taberna").

15. O cativeiro de Avignon e o grande cisma do Ocidente


Versão áudio
Desentendimentos com o rei da França, 70 anos de exílio em Avignon e 40 anos de cisma: os séculos XIV e XV,
definitivamente, não foram os mais tranqüilos para a Igreja. Mesmo nessa época difícil, porém, Deus suscita almas
como a de Santa Catarina de Sena para trazer luz ao papado e iluminar as almas.

Entre conosco na história conturbada do fim da Idade Média e conheça, nesta 15.ª aula de nosso curso, os eventos que
prepararam o terreno para a Reforma Protestante.

 Compartilhar no Facebook

 Compartilhar no Twitter
 Enviar para um amigo
 Download do Áudio
Aula AnteriorPróxima Aula

 Texto
 Aulas
O período histórico que marca a transição da Baixa Idade Média para a Idade Moderna não foi "baixo" apenas no
nome: a decadência que a Europa experimentou no fim da era medieval atingiu todas as esferas sociais, desde a política
e a economia até a cultura e a própria religião.

Conflitos entre Estado e Igreja. – No intuito de se verem livres da ingerência de poderes e famílias locais –
consequência direta do sistema feudal –, o Papa e os reis começaram a procurar por soluções que fortalecessem a sua
autoridade. Na Igreja, a reforma do clero e dos costumes, iniciada pela Ordem de Cluny e impulsionada por São
Gregório VII, ganhou consistência teológica na pena dos intelectuais da nascente Universidade de Paris, trazendo
maior consciência do primado e da origem divina do papado. Na esfera secular, a ascensão dos Estados nacionais
começou a ganhar corpo e os estudos jurídicos desenvolvidos na Universidade de Bolonha ajudaram a unificar o direito
civil e canônico.
Ditos esforços, todavia, trouxeram à tona o velho direito romano e, com ele, todas as instituições pagãs ou abolidas ou
aprimoradas pelo cristianismo. O resultado foi uma sociedade profundamente religiosa arranjada por um sistema
completamente alheio à fé católica. As tensões entre o poder sacerdotal e o braço real – amparado, agora, não só pela
ganância do poder, mas pelos novos intelectuais que faziam fama nas universidades – não tardaram a fervilhar,
atingindo o seu ponto culminante na virada do século XIV, durante o pontificado do Papa Bonifácio VIII e o reinado de
Filipe IV (cognominado "o Belo"), rei da França.

Aconteceu que o príncipe francês – e neto de São Luís IX –, vendo o declínio da economia de seu país, passou a cobrar
impostos do clero. Como atentava contra os direitos da Igreja, a medida insólita de Filipe foi duramente reprimida por
Bonifácio, dando início a um conflito entre a Santa Sé e a monarquia francesa. Filipe, no entanto, não era o único
desafeto do Pontífice Romano. Desarranjos com a família italiana de Colonna constituíram ocasião para que alguns
cardeais lançassem suspeitas sobre a sua idoneidade e até sobre a sua eleição. Cabe lembrar que o seu predecessor, São
Celestino V, havia renunciado ao sólio pontifício e, àquela altura, com interesses políticos em jogo, não era difícil que
se levantassem suspeitas levianas acerca da validade do seu pontificado. A corte francesa deu crédito a essa história e
começou a fazer acusações contra o Papa Bonifácio VIII, uma mais insensata que a outra, dizendo que ele era
simoníaco, herege e até que fazia bruxarias.

Filipe, o Belo, porém, foi mais longe: convocou um concílio para depor o Sumo Pontífice. Não conseguindo cumprir o
seu intento, ele mesmo mandou as suas tropas para a cidade de Anagni, onde se encontrava o Papa, a 7 de setembro de
1303, e exigiu a renúncia pontifícia. Com os franceses, encontravam-se membros da família Colonna, que, ante da
resistência de Bonifácio, insultaram-no e ameaçá-lo, em um episódio chamado Atentado de Anagni. Mesmo com o
povo conseguindo libertar Bonifácio das mãos de seus perseguidores, o Papa, debilitado, não reinou senão por pouco
mais de um mês. A 11 de outubro de 1303, a Sé estava vacante. Alguns diriam que Bonifácio VIII teria morrido de
desgosto.
O cativeiro de Avignon. – Após a rápida e misteriosa morte de seu sucessor, Bento XI, o conclave para eleger o novo
Papa não conseguiu livrar-se das influências da monarquia francesa: reunidos em território gálico, os cardeais escolhem
um francês, arcebispo de Bordeaux. Clemente V não só decide ser coroado em Lyon, na própria França, como
estabelece o seu trono na cidade de Avignon, dadas as circunstâncias políticas desfavoráveis na Itália. A decisão do
Papa tinha caráter evidentemente temporário. Não havia por parte de Clemente o animus manendi, i.e., a intenção de
fixar residência em Avignon. Com um território relativamente independente e o agravamento da confusão na Cidade
Eterna, todavia, o que deveria ser uma solução passageira acabou se estendendo e, durante mais de 70 anos, com um
colégio cardinalício majoritariamente gálico – "em cento e trinta cardeais criados entre 1305 e 1376, não haverá menos
de centro e treze franceses" e "por seis vezes estes cardeais franceses elegerão Papa um dos seus" [1] –, a Igreja viverá
o que ficou conhecido como o Cativeiro dos Papas em Avignon(1309-1376). A expressão, retirada de um soneto do
poeta Francesco Petrarca [2], aludia ao exílio do povo de Israel na Babilônia (587 a.C. – 517 a.C.) e ilustrava a
submissão da Igreja aos interesses da monarquia francesa, bem como o descontentamento geral dos católicos com
aquele estado das coisas.
Dos Pontífices que sucederam Clemente V, alguns manifestaram claramente o desejo de voltar a Roma. Urbano V
chegou a fazê-lo, em 1367 – já movido pela insistência de Santa Brígida da Suécia e Santa Catarina de Sena –, mas,
devido às dificuldades existentes no Estado Pontifício, acabou voltando para a França, em 1370. Só seis anos depois,
com Gregório XI, finalmente foram ouvidos os conselhos dessas santas mulheres. Surtiram efeito, afinal, as inúmeras
cartas de Catarina, pedindo expressamente que o Papa fosse viril [3] e retornasse a Roma. Em 1376, terminava o exílio
dos Papas em Avignon.

O grande cisma do Ocidente. – Com a morte de Gregório, em 1378, o pavor tomou conta da Cidade Eterna. Temia-se
a eleição de um Papa francês e a volta da cúria para a cidade de Avignon. A instabilidade era tanta, que o povo chegou
a invadir o recinto em que acontecia o conclave. Em meio à confusão, por falta de um candidato melhor, escolheu-se
Bartolomeo Prignano, arcebispo de Bari, o qual tomou o nome de Urbano VI.
A princípio, não houve nenhum problema com a sua eleição: Urbano tomou posse e foi coroado alguns dias depois. O
seu espírito irascível, porém, não demoraria a arranjar desentendimentos. Durante um consistório, o Papa chegaria ao
cúmulo de esbofetear um cardeal em público, aumentando ainda mais a tensão que já existia no colégio cardinalício.
Mais tarde, seu temperamento iracundo faria Santa Catarina de Sena suplicar-lhe, "por amor de Cristo crucificado", que
ele moderasse as suas paixões. " Mitigate un poco per l'amore di Cristo crocifisso quelli movimenti sùbiti, che la
natura vi porge" [4], ela escrevia.
O cisma, porém, era iminente. Reunidos em Anagni, alguns cardeais descontentes com Urbano VI elegem um antipapa:
Roberto de Genebra, o mais odiado pelo grupo italiano. Não obtendo êxito em saquear a cidade de Roma e tomar o
poder pontifício, Roberto, agora Clemente VII, volta para Avignon, dando início a fatídicos 40 anos de cisma –
o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417). Por todo esse tempo, a Igreja ficou tragicamente dividida: fiéis e povos
inteiros aderiram à obediência de Roma e outros tantos se alinharam ao partido de Avignon. Hoje, com a distância dos
acontecimentos e o avanço das pesquisas históricas, está bem claro que o Papa legítimo era o residente na Itália. À
época, entretanto, nem os santos escaparam da confusão. A eminência de um Vicente Ferrer, por exemplo, não impediu
que ele se enganasse e desse apoio ao antipapa de Avignon.
Para restabelecer a unidade ao povo cristão, os cardeais decidiram convocar um concílio. A intenção era depor os dois
papas e eleger um novo. Todos os bons teólogos da época sabiam, todavia, que nenhum concílio poderia depor um
Papa. No dizer de um famoso adágio, " prima Sedes a nemine iudicatur – a Sé primeira não é julgada por ninguém"
[5]. Era de Guilherme de Ockham – o mesmo que deu início ao nominalismo – a ideia de que um concílio teria
supremacia sobre o poder papal. Também Filipe, o Belo, acenava a essa teoria quando quis convocar um concílio para
depor Bonifácio VIII. Essas pretensões são a semente do que, mais tarde, será a heresia do "conciliarismo". O fato é
que, reunidos na cidade de Pisa, em 1409, os cardeais não só não conseguiram solucionar o problema do cisma, como
este degenerou em uma "infame tríade": a Gregório XII e Bento XIII ajuntou-se mais uma cabeça, Alexandre V. A
confusão duraria por mais cinco anos, até que os antipapas João XXIII e Bento XIII fossem depostos no Concílio de
Constança (1414-1418) e, em 1417, se elegesse o Papa Martinho V, o qual pôs termo a um cisma que se arrastava por
longas quatro décadas.
Como consequência dessa grave crise, que colocou em xeque a soberania do poder pontifício e a própria unidade do
povo cristão, figura o desenvolvimento das teses conciliaristas, as quais serão cada vez mais constantes na história
subsequente da Igreja, encontrando seus defensores ainda nos dias atuais. Ajuntem-se a isso a decadência do ensino
universitário, a corrupção generalizada dos costumes, a morte de inúmeros bons sacerdotes pela peste negra e a
ascensão do movimento renascentista – que fez ressuscitar a cultura pagã –, e eis o terreno da história preparado para
uma revolução. Já é possível ouvir a Reforma Protestante batendo à porta.
Referências

1. DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas (trad. de Emérico da Gama). 2. ed. São Paulo:
Quadrante, 2011, p. 645.
2. Canzoniere, 114.
3. Cf., e.g., cartas 185, 206, 218, 229, 239, todas a Gregório XI, in: Lettere di Caterina da Siena, pp. 572, 637, 687,
722-723, 750.
4. Carta 364, a Urbano VI, in: Lettere di Caterina da Siena, p. 1207.
5. É de tal importância esse princípio para o direito canônico, que mereceu ele ser constar no atual Código da Igreja,
no cân. 1404.

16. A Peste Negra


Versão áudio
"Esta tribulação encheu de terror o coração de todos, de modo que o irmão abandonava o irmão, o tio abandonava o
sobrinho, freqüentemente a esposa abandonava o marido e, o que é ainda mais extraordinário e até mesmo
inacreditável, alguns pais e mães se recusavam a visitar as suas próprias crianças como se não fossem suas."
Às portas da Idade Moderna, uma epidemia de peste bubônica invadiu o continente europeu, levando milhões de
pessoas a uma morte terrível e inesperada.

O que foi a Peste Negra e como ela contribuiu para o surgimento da Renascença? Que impacto uma doença misteriosa
poderia ter na história da civilização?

Nesta 16.ª aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, conheça a epidemia que colocou toda a Cristandade na
expectativa do fim dos tempos e quase destruiu a Europa.

 Compartilhar no Facebook

 Compartilhar no Twitter
 Enviar para um amigo
 Download do Áudio
Aula AnteriorPróxima Aula

 Texto
 Aulas
Houve, entre a Idade Média e a Idade Moderna, um período de transição, por volta de 1350 a 1550, que ficou
conhecido pelo nome de Renascimento, ou, simplesmente, Renascença. Esse movimento social, político e cultural viria
a mudar radical e definitivamente a forma de os seres humanos pensarem e agirem, instaurando uma como que "nova
civilização" no lugar daquela que estava sendo construída pela Santa Igreja.
Para entender o que foi propriamente esse período, é preciso considerar, primeiro, os fatores que o desencadearam, dois
dos quais já foram tratados neste curso. A saber:

1. a decadência do sistema de ensino medieval – tratada na aula sobre as universidades;


2. o surgimento da filosofia nominalista, com o frade inglês Guilherme de Ockham.
Hoje, o assunto a ser tratado é a Peste Negra, uma epidemia que dizimou boa parte da população europeia, em 1348, e
que constituiu outro fator responsável pelo desenvolvimento da Renascença. Como uma doença pode ter tido tamanha
implicação civilizacional é algo que só se pode explicar a partir do impacto terrível que a peste teve sobre as próprias
pessoas daquela época.
Em sua obra The Story of Civilization ("História da Civilização"), Will Durant recolhe o seguinte testemunho, datado
de 1354, de um habitante de Siena:
"Parentes, amigos e nem sacerdotes acompanhavam os corpos às valas. O ofício dos mortos não era recitado. Em
muitos lugares da cidade escavavam-se fossas, largas e profundas, dentro das quais jogavam-se os corpos, cobertos
com um pouco de terra. Desta maneira enchia-se camada após camada, até que toda a fossa estivesse cheia. Em
seguida, iniciava-se outra fossa. E eu, Agniolo de Tura, com minhas próprias mãos sepultei cinco de minhas crianças
em uma só fossa, assim como muitos outros também o fizeram. Muitos, porém, dos mortos estavam tão mal cobertos
com terra que os cães reescavavam a fossa para comer suas carnes, dispersando pedaços dos mortos pela cidade. Os
sinos não batiam, e ninguém chorava, não importando quão grande tivesse sido a sua perda, pois quase todos estavam
na expectativa de sua própria morte. Todo o povo dizia e acreditava que aquilo já era o fim do mundo."

A catástrofe realmente apavorou as pessoas, que foram tomadas por um terror apocalíptico, de fim de mundo.
Geralmente, o saldo final de mortos por conta da peste bubônica é estimado em um terço, mas esse número está mais
ligado a passagens do livro do Apocalipse – que fala, p. ex., da "matança da terça parte dos homens" (Ap 9, 15) – que a
estatísticas exatas. Tamanho desastre deve ser explicado, sobretudo, pelo desconhecimento das causas da peste
bubônica, a qual – hoje se sabe – é transmitida por uma bactéria presente na pulga dos ratos-pretos. Esses ratos vinham
do sudeste da Ásia para a Europa pelos navios que desembarcavam no Mediterrâneo, tornando as cidades portuárias as
principais afetadas pela epidemia – algumas localidades viram 80% de sua população ser dizimada. Além disso, como
as cidades da época reuniam uma grande concentração de gente e não conheciam tratamento de água e esgoto, o
contágio era muito fácil, chegando-se a acreditar que a doença era transmitida pelo ar ou pelo simples contato com os
outros.
A descrição de uma testemunha ocular, contida no Decameron, de Bocaccio, faz notar que:
"Não era apenas a conversa e o convívio com os doentes que transmitiam a infecção para os sãos, mas o simples tocar
das roupas ou do que quer que tivesse sido tocado ou usado pelos doentes parecia suficiente para comunicar aquela
doença. Uma coisa que tivesse pertencido a um homem doente ou que tivesse falecido pela doença, sendo tocada por
um animal, em pouco tempo o matava, coisa que eu vi com os meus próprios olhos. Esta tribulação encheu de terror o
coração de todos, de modo que o irmão abandonava o irmão, o tio abandonava o sobrinho, freqüentemente a esposa
abandonava o marido e, o que é ainda mais extraordinário e até mesmo inacreditável, alguns pais e mães se recusavam
a visitar as suas próprias crianças como se não fossem suas. O povo comum, desesperado e sem recursos, adoecia
diariamente aos milhares para morrer inapelavelmente logo a seguir. Muitos exalavam o seu último suspiro nas
próprias ruas enquanto que muitos outros dentre os que morriam em suas casas faziam saber de suas mortes aos
vizinhos mais pelo fedor de seus corpos em decomposição do que por outro modo. Destes, e de outros que morriam, a
cidade estava repleta. Os vizinhos, movidos mais pelo medo de que a decomposição dos cadáveres os colocasse em
perigo do que por uma caridade pelos que partiam retiravam estes corpos de dentro das casas e os colocavam do lado
de fora junto às portas onde, na parte da manhã, aqueles que passavam podiam ver uma multidão de cadáveres.
Posteriormente os carrinhos os levavam e freqüentemente este carrinho levava juntos marido e mulher, dois ou três
irmãos, pai e filho e assim por diante. A coisa chegou a tal ponto que o povo não se lembrava dos homens que morriam
mais do que hoje em dia se lembraria das cabras que morrem."

Após a peste, o resultado desse modo pagão de lidar com a morte foi que uma "febre de viver" se apoderou dos
habitantes da Europa, bem ao modo do que narra o Autor Sagrado: "Comamos e bebamos, porque amanhã
morreremos" (Is 22, 13). "Iniciou-se uma depravação geral dos costumes na Europa; foi nesta época que se iniciou um
interesse geral pela literatura pornográfica, algo que havia praticamente desaparecido durante a Idade Média, mas que a
partir deste período não cessou mais de se difundir."
A taxa de mortes foi tão alta, que as próprias instituições de ensino ficaram sem professores, sem falar dos conventos,
que viram as suas fileiras diminuirem consideravelmente, bem como o fervor e a disciplina dos religiosos. Essa
decadência intelectual e moral, iniciada nas universidades e agravada pelo nominalismo e pela peste negra, abriu as
portas para a Renascença – a qual não passou de um renascimento do paganismo.

Referências

1. DURANT, Will. The Renaissance. New York: Simon & Schuster, 1953.
2. Introdução Histórica à Página sobre o Cristianismo, III, 50-52. Disponível
em: http://www.cristianismo.org.br/hist-03d.htm. Acesso em: 7 out. 2015.
3. NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação no Renascimento. São Paulo: EPU/EDUSP, 1980.

17. Para entender o Renascimento


Versão áudio
Pior que o paganismo de quem não conhece a Deus é tornar-se pagão depois de ter conhecido a verdade de Cristo,
como um cão que volta ao próprio vômito ou uma porca que torna a revolver-se na lama.

Nesta 17.ª e penúltima aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, conheça os fatos históricos que culminaram
no Renascimento. Por que foi a Itália o berço desse movimento? Como a cultura e a educação pagãs voltaram a
florescer em plena civilização cristã?
 Compartilhar no Facebook

 Compartilhar no Twitter
 Enviar para um amigo
 Download do Áudio
Aula AnteriorPróxima Aula

 Texto
 Aulas
Depois de examinar as consequências civilizacionais da epidemia de peste bubônica que eliminou mais de um terço da
população da Europa, cabe tratar, nesta aula, outras razões que levaram ao surgimento da Renascença – causas que
ajudam a entender a própria natureza desse movimento sociocultural.
A primeira delas é uma particular organização política que se deu na região norte da Itália, durante a Baixa Idade
Média.
Neste período, o território hoje correspondente à Itália encontrava-se dividido em três regiões independentes: no sul,
estava o Reino de Nápoles, que acabou sendo anexado ao governo espanhol; no centro, os Estados Pontifícios,
governados pelo Papa; e, ao norte, uma porção de principados – os quais, teoricamente, pertenciam ao Sacro Império
Romano-Germânico, mas, na prática, gozavam de uma autonomia peculiar em relação ao resto do Império.

Geograficamente isoladas, pelos Alpes, e economicamente autossuficientes, graças a um comércio cada vez mais
frequente com o Oriente, os príncipes dessa região detinham um poder político absoluto em relação a seus habitantes.
A sua autoridade, porém, não estava baseada na sucessão hereditária ou na eleição popular, mas tão somente no direito
da força. Duques, marqueses e príncipes ascendiam ao trono pelo uso da violência e eram sucedidos, não por seus
filhos legítimos, mas por quem possuísse poderio político e militar para continuar a governar. Tal estado de coisas não
permitia a formação de um exército recrutado entre o povo e inflamado de amor à pátria. Quem sustentava o poder
eram os condottieri, guerreiros contratados para matar e que, por suas habilidades, não deixavam de constituir outra
ameaça às frágeis administrações locais. Mais do que os reis, portanto, o que reinavam eram as invejas, as inseguranças
e os conflitos.
Tal clima de instabilidade era agravado por uma desordem generalizada do apetite concupiscível: cresciam nos palácios
as infidelidades e o número de filhos fora do casamento, como relata o historiador Ludwig von Pastor:

"Talvez o pior dos lados sombrios dos italianos desta época foi a desonestidade conjugal. Não há dúvidas de que a
imoralidade fez terríveis progressos em todas as grandes cidades e mesmo em muitas das pequenas na época do
Renascimento. As mais grosseiras desordens eram muito freqüentes, principalmente entre as pessoas instruídas e de
elevada classe. A ilegitimidade dos filhos já não se considerava uma mancha, de maneira que quase não se fazia mais
diferença entre os filhos bastardos e os filhos legítimos. Mesmo havendo honrosas exceções, a maioria dos príncipes
italianos do Renascimento estavam demasiadamente contaminados pela corrupção moral.

(...)

"Quando o Papa Pio II visitou a cidade de Ferrara, em 1459, ele foi recebido por sete príncipes, dos quais nem sequer
um havia nascido de matrimônio legítimo." [1]

Toda essa confusão política ao norte da Itália é o que explica, em parte, outro fator importante para o desenvolvimento
da Renascença: o florescimento da cultura e da educação pagãs. De fato, em uma região com constantes disputas de
poder, frequentemente vencidas à base do medo e da violência, demonstrações de virtù e de habilidade são muito
importantes para que um príncipe se afirme politicamente e construa em torno de si uma aparente legitimidade. Foi o
que começaram a fazer os governantes do norte da Itália, que passaram a investir maciçamente na produção artística.
O que eles buscavam representar, contudo, não era a Beleza para iluminar a inteligência, mas os exageros estéticos para
impressionar os sentidos: nas obras de arte, predominava o virtuosismo; na arquitetura, o luxo; nas obras literárias, o
exagero das formas. Tudo – novamente – não para buscar o Bem, a Verdade ou a Beleza, mas simplesmente para fazer
valer a fama, a vaidade e a ostentação. Os palácios do norte da Itália chegavam a ser mais suntuosos que as próprias
cortes da França ou da Espanha, responsáveis pelo controle de regiões muito maiores do continente europeu.

Quem eram, porém, os artistas responsáveis por essa efervescência cultural? De um lado, havia os acadêmicos de
Direito da Universidade de Bolonha, contagiados pela descoberta do Codex Iuris Civilis, de Quintiliano, e hipnotizados
pelas instituições pagãs do Império Romano. De outro, estavam os estudiosos do Oriente, que fugiam da invasão
muçulmana ao Império Bizantino e se abrigavam às asas dos príncipes renascentistas. Os conhecimentos que eles
tinham da língua grega e os manuscritos antigos que eles portavam consigo ajudaram a criar um verdadeiro fascínio
pela literatura pagã – ao lado de um crescente desprezo pela filosofia escolástica, cuja simplicidade das formas passava
a impressão de uma escola muito arcaica e inferior àquela que agora se vislumbrava. O resultado disso foi o cultivo de
um pensamento eminentemente pagão, de modo que se pode dizer, em termos pobres, que a Renascença não foi nada
mais que um ressurgimento do paganismo.
Pior do que ser pagão, todavia, é tornar-se pagão depois de ter conhecido a verdade de Cristo. Foi o que
aconteceu ao homem do final da Idade Média. Os humanistas Petrarca e Bocaccio, por exemplo, eram homens de
convicções cristãs, mas, infelizmente, se deixaram levar pela literatura pagã antiga e, ao invés de ascenderem aos
conhecimentos superiores – notadamente, à contemplação da Verdade, de que fala Sto. Tomás –, restringiram-se às
matérias do trivium – permanecendo até o fim de suas vidas naquele estágio juvenil de que fala Platão, no qual se é
incapaz de fazer verdadeira filosofia [2].
O fato é que o Renascimento não ficou circunscrito àquela região do globo. A ação do Papa Nicolau V, aliada à
invenção da imprensa, fez com que as ideias que estragavam o norte da Itália se espalhassem também pelo resto do
mundo ocidental. É o que veremos na próxima – e última – aula deste curso.
Recomendações

 Introdução Histórica à Página sobre o Cristianismo, III, 53-110. Disponível


em: http://www.cristianismo.org.br/hist-03.htm#A. Acesso em: 22 out. 2015.

Referências

1. PASTOR, Ludwig von. The History of the Popes, from the Close of the Middle Ages (V). London: Kegan Paul,
Trench, Trübner, & Co., 1901, p. 113-114.
2. PLATÃO. A República (Trad. Maria Helena da Rocha Pereira), 539b. 13. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2012. p. 356.
18. Um humanista no trono de São Pedro
Versão áudio
Às portas da Idade Moderna, é eleito o Papa Nicolau V, cujas decisões controversas influenciarão para sempre a
história seguinte da Igreja e do mundo. Qual foi a sua importância para a restauração de Roma e para o Papado? Como
o Renascimento saiu do norte da Itália e se espalhou pelo resto da Europa?
Nesta última aula do curso de História da Igreja Medieval, revisite os desastres do passado e descubra quais são as
consequências de uma Igreja que prefere ficar de mãos dadas com o mundo pagão a anunciar a verdade de Cristo a
todos os povos.
 Compartilhar no Facebook

 Compartilhar no Twitter
 Enviar para um amigo
 Download do Áudio
Aula AnteriorPróxima Aula

 Texto
 Aulas
Roma caindo aos pedaços. – No começo do século XIV, a cidade de Roma quase não tinha atrativos aos olhos. Sem
uma vida comercial ativa e sem agricultura de subsistência, a antiga capital do Império Romano sobrevivia quase que
exclusivamente das rendas da Igreja, cuja sede ela abrigava. A transferência do papado para a França e o subsequente
cisma do Ocidente, no entanto, pavimentaram o caminho para a pobreza e a desordem política. Tolhida de sua única
fonte de sustento, a Cidade Eterna foi praticamente abandonada, ficando refém dos ardilosos conflitos políticos entre
duas importantes famílias da época: os Colonna e os Orsini.
Foi só com a eleição do Papa Martinho V que as coisas começaram a mudar de rumo. Eleito no ano de 1417, o novo
Pontífice, membro da família Colonna, tratou de articular a sua volta à cidade de Roma. Como a situação política da
cidade não oferecesse segurança, Martinho começou governando a Igreja desde fora e, depois, preparou o terreno para
a sua vinda, favorecendo a sua família com vários cargos na Cúria Romana. Com a situação estável, finalmente o Papa
pôde voltar à Cidade Eterna.

Com a morte de Martinho, no entanto, sucedeu-o Eugênio IV, um homem absolutamente intransigente e avesso ao
nepotismo. Tão longo ascende ao sólio pontifício, o novo Papa começa a retirar os cargos dos familiares de seu
antecessor. A sua atitude é o estopim para uma rebelião. Armado de paus e pedras, o povo romano obriga Eugênio a
fugir da cidade de Roma. O Pontífice procura refúgio em Florença, centro do Renascimento, de onde passa a governar
a Igreja.
Um humanista no trono de São Pedro. – Entra em cena, então, a figura de Tomás Parentucelli, um homem cristão,
mas, ao mesmo tempo, profundamente atraído pelo ideal da Renascença. Pouco depois de concluir seus estudos de
Teologia em Bolonha, esse jovem estudante é escolhido pelo santo arcebispo da cidade, o beato Nicolau Albergati,
como seu secretário. A proximidade entre Eugênio e Nicolau, aliada a uma séria de circunstâncias, faz com que Tomás
termine ascendendo ao trono de S. Pedro, no ano de 1447. Para homenagear o seu mestre e benfeitor, Parentucelli toma
o nome de Nicolau. É o quinto da história da Igreja.
O juízo de seus contemporâneos atesta a bondade de Nicolau V: um Pontífice "franco, reto, sincero, inimigo de
qualquer fingimento e adulação", como atesta o historiador Ludwig von Pastor [1]. Foi durante o seu pontificado – e
graças ao sucesso impressionante do Ano Santo de 1450 – que se deu início aos grandes projetos arquitetônicos na
cidade de Roma, como, por exemplo, a reestruturação da Basílica de São Pedro. Todos os empreendimentos de seu
governo foram realizados por amor à Igreja e ao sólio pontifício, conforme observa o mesmo Pastor:

"O plano de Nicolau era fazer de Roma, centro da Igreja, um foco da literatura e das artes, uma cidade de monumentos
esplêndidos, possuidora da melhor biblioteca do mundo, de modo a assegurar na Cidade Eterna um lar permanente para
o Papado.

É de essencial importância que os motivos do Papa para tal empresa sejam corretamente apreciados. Ele próprio os
declarou, no discurso em latim que endereçou aos Cardeais reunidos diante de seu leito de morte. Esse discurso,
preservado por seu biógrafo Manetti, é a expressão de seus últimos desejos, e explica o fio condutor de todas as suas
ações e o fim a que ele aspirava.

'Apenas os eruditos, que estudaram a origem e o desenvolvimento da autoridade da Igreja Romana, podem realmente
entender a sua grandeza', ele afirma. 'Assim, para criar sólidas e estáveis convicções nas mentes das massas incultas,
deve haver algo que atraia a atenção dos olhos; uma fé popular, sustentada apenas em doutrinas, será sempre débil e
vacilante. Mas se a autoridade da Santa Sé fosse visivelmente exibida em prédios majestosos, monumentos
imperecíveis e testemunhos que parecessem plantados pela mão do próprio Deus, a fé cresceria e se fortaleceria como
uma tradição de uma geração a outra, e todo o mundo a aceitaria e reverenciaria. Nobres edifícios, combinando bom
gosto e beleza com proporções imponentes, conduziriam imensamente à exaltação da cátedra de São Pedro.'
(...)
'Se nós formos capazes de alcançar tudo o que almejamos, nossos sucessores se verão mais respeitados por todas as
nações cristãs e serão capazes de viver em Roma com maior segurança, seja dos inimigos externos, seja dos internos.
Assim, não é por ostentação, ambição ou vaidade de imortalizar o nosso nome, que nós concebemos e encomendamos
todos esses grandes trabalhos, mas para a exaltação do poder da Santa Sé em toda a Cristandade, e a fim de que os
futuros Papas não estejam mais em perigo de ser expulsos, aprisionados, sitiados ou oprimidos de outras formas.'

Foi dito que o amor à fama constituiu o motivo preponderante a guiar Nicolau em todas as suas ações, e que foi essa a
verdadeira explicação para o esplendor da sua corte, dos seus prédios, das suas bibliotecas e da sua liberalidade para
com os eruditos e artistas. Por essas palavras pronunciadas às portas da eternidade, fica evidente que tal assertiva é
falsa. Um homem de cujo ódio a toda falsidade e hipocrisia tanto amigos quanto inimigos dão testemunho, não teria
mentido assim em seu leito de morte. Sem dúvida, Nicolau não devia ter sido sempre e totalmente insensível às
seduções da fama, mas um desejo egoísta de sua própria glória nunca foi a sua principal motivação." [2]

O paganismo entra na Igreja. – Documentos de valor histórico, portanto, não deixam dúvidas sobre a sinceridade e
retidão das intenções de Nicolau V à frente da Igreja. O seu método, porém – exibir magnificência como demonstração
de poder –, fôra emprestado dos grandes déspotas renascentistas do norte da Itália. Nicolau tinha consciência do risco
de suas ações: mesmo conhecendo a raiz pagã da Renascença, resolveu investir nesse movimento artístico, acreditando
que, talvez, trazendo os grandes artistas renascentistas para o berço da Igreja, esta os evangelizaria, cristianizando o
Renascimento. O que aconteceu, no entanto, foi o movimento inverso: foi a Renascença que paganizou os homens
da Igreja, até que se chegasse, por exemplo, à eleição de um Alexandre VI, cuja má conduta não era senão um
indicativo do espírito mundano que reinava no próprio clero da época.
A essência desse problema, de fato, perdura até os dias de hoje. Trata-se da mundanização da Igreja: os cristãos, que
foram enviados ao mundo para transformá-lo, para "impregnar, com as exigências da doutrina e da vida cristã, as
realidades sociais, políticas e econômicas" [3], estão sendo eles próprios transformados pelo mundo, paganizados.

Enquanto isso, alguns pastores querem resolver a questão simplesmente alterando a "fachada" da Igreja, como se tudo
não passasse de um problema estético. No tempo de Nicolau V, a solução parecia estar nos apelos à sensibilidade
humana: ante a pompa e a magnificência, as pessoas se voltariam à fé cristã. Hoje, a grande ilusão está em criar um
novo método "pastoral", pretensamente mais "aberto" ao mundo: dá-se o "abraço da paz" e espera-se a correspondência
do mundo. Neste ínterim, agonizam a liturgia, a espiritualidade e a moral católicas, enquanto se vai obscurecendo cada
vez mais a verdadeira missão da Igreja: fazer discípulos em todas as nações e ensiná-las a observar tudo o que o
Senhor ordenou aos Apóstolos (cf. Mt 28, 19-20).
A revolução da imprensa. – O fato é que, nas condições em que se encontravam a Europa até o ano de 1450,
dificilmente o Renascimento se espalharia para além das fronteiras da Itália. O espírito humanista estava restrito a
certos círculos intelectuais e artísticos e os meios de difusão de ideias ainda eram muito precários. Até então, a cópia de
livros era um projeto muito trabalhoso, que poderia levar dias, meses e até anos. Transcrever a Bíblia Sagrada em
menos de um ano, por exemplo, seria uma façanha fora do comum, impossível sem uma dedicação quase que integral.
Ao mesmo tempo, as bibliotecas eram um fenômeno de proporções absurdamente menores que as de hoje: as maiores
da Idade Média não chegavam a possuir mil livros e, quando Nicolau V construiu em Roma uma biblioteca com 1.300
obras, todos pensavam que já se tinha atingido o ápice do acúmulo. Em um contexto desses, a literatura pagã não se
teria multiplicado e o movimento renascentista certamente teria morrido.

Do outro lado dos Alpes, no entanto, um homem chamado Johannes Gutemberg inventa a imprensa, fato que constitui
uma revolução quase que sem precedentes na história da humanidade. Com meios de difusão muito mais rápidos e
fáceis, as obras intelectuais renascentistas passaram a fervilhar em toda a Europa. Fosse inventada um século ou dois
antes, a imprensa teria feito correr livros muito diferentes, preocupados não com a estética, mas com a verdade das
coisas. A modernidade teria nascido da genialidade de um Hugo de São Vítor ou de um Santo Tomás de Aquino. Ao
invés, o que se deu foi uma epidemia de paganismo e de vãs filosofias, gozando de amplo prestígio e propaganda.
Disso nasceu a Idade Moderna.

Recomendações

 Introdução Histórica à Página sobre o Cristianismo, III, 117-177. Disponível


em: http://www.cristianismo.org.br/hist-03.htm#A. Acesso em: 22 out. 2015.

Referências

1. Cf. PASTOR, Ludwig von. The History of the Popes, from the Close of the Middle Ages (II). London: John
Hodges, Agar St., Charing Cross, 1891, p. 3-26.
2. PASTOR, op. cit., p. 166-168.
3. Catecismo da Igreja Católica, n. 899.

Vous aimerez peut-être aussi