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RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de investigar os aspectos envolvidos na constituição da identidade docente, em
especial o papel da afetividade. A base de nossa investigação é a teoria histórico-cultural, em especial os
pressupostos de Vigotski. A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas com professores de escolas públicas
e privadas do interior de São Paulo. Suas falas estão diretamente ligadas a sentidos atribuídos à vivência docente,
e esses sentidos forneceram os dados para a construção e análise do aspecto Afetividade na Escola e sua influência
na construção da identidade docente. Ao analisarmos todos os relatos, podemos notar nos professores, em termos
de afetividade dentro da escola, a predominância do sentimento de sofrimento, cuja base é a frustração por tantas
expectativas e desejos não realizados.
Palavras-chave: psicologia histórico-cultural; afetividade; identidade docente; sentidos.
ABSTRACT
The main objective of this research is to investigate the issues involved in the constitution of teachers’ identity, in
particular the role of affectivity. The theoretical approach is supported by Historical-cultural psychology, mainly
the concepts of Vigotski. Data collection was done through interviews with teachers from public and private
schools in Sao Paulo’s countryside. Their speeches are linked with senses attributed to the teaching working
and these senses provided the data for the construction and analysis of the aspect Affectivity at School and its
influence on the construction of teacher’s identity. According to the report analysis, we can note the prevalence
of feelings of suffering, which is based on frustration of so many hopes and unfulfilled desires.
Keywords: historical-cultural psychology; affection; teachers’ identity; senses.
Este artigo apresenta parte dos resultados de deparamo-nos com outros aspectos do sujeito que
uma pesquisa maior sobre a identidade docente eram proeminentemente representativos de seu modo
desenvolvida pelo grupo de pesquisa Processos de de conceber a docência e a si próprio como docente:
Constituição do Sujeito em Práticas Educativas as emoções e os sentimentos emergiam com grande
(PROSPED), do Programa de Pós-Graduação em força no movimento de constituição da identidade
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de docente. Os afetos, entendidos como o conjunto
Campinas (PUCCamp). das emoções, sentimentos e paixões que constituem
O interesse em investigar a constituição o psiquismo humano, tal como o concebe Wallon
identitária de professores decorre de nossa (1979, 1981), também estavam na base dos conflitos
experiência no contexto escolar ao observamos que a que se apresentam na escola, incluindo as relações
forma como o professor se representa e se percebe no com as famílias e a comunidade, com a gestão e
exercício de sua função, assim como suas concepções com o sistema de ensino. Tais fatos nos levaram a
de educação, de ensino e aprendizagem interferem aprofundar as análises sobre o que denominamos
sobremaneira em suas práticas pedagógicas. Ao como aspectos afetivos na constituição da docência,
longo do desenvolvimento da pesquisa, no entanto, cujos resultados apresentamos neste artigo.
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Assim, como perspectiva teórico-metodológica, extenso e profundo sobre o que se havia produzido
partimos dos pressupostos da Psicologia Histórico- até então sobre o papel das emoções na constituição
Cultural que, de acordo com Vigotski ¹ (1934/2005), do psiquismo. Por se tratar de um estudo histórico,
tem, como objeto de estudo, o sujeito histórico cuja Vigotski não chega a propor uma teoria sobre as
constituição decorre do movimento dialético em que, a emoções, mas chega à conclusão de que existe uma
um só tempo, o sujeito constitui o social e é constituído polarização na forma de conceber a razão e a emoção,
por ele. Entendido como fenômeno em movimento, a partir da qual se mantém a fragmentação das
o processo histórico evidencia-se como um processo dimensões afetivas e cognitivas.
dialético com suas oposições, concordâncias e tensões
No que concerne à afetividade, a dimensão que
e produz, via objetivação, uma síntese do fenômeno
Wallon, ao longo de toda a sua obra, confere aos afetos
estudado (Zanella et al., 2007).
no desenvolvimento do sujeito tem permitido que
A questão da afetividade na teoria de Vigotski muitos de seus leitores identifiquem em sua obra uma
tem sido compreendida de maneira controversa pelos Teoria das Emoções. De acordo com Galvão (2001)
autores que a estudam. Alguns consideram que o e Mahoney e Almeida (2005), Wallon nos oferece
autor não teria dado a ela uma real importância na uma Teoria do Desenvolvimento segundo a qual a
constituição do psiquismo humano; outros entendem afetividade assume grande relevância, e as emoções
que a contribuição de Vigotski se restringe aos são parte do conjunto afetivo. Wallon (1979) entende
aspectos cognitivos do desenvolvimento. a afetividade como a capacidade ou disposição do ser
humano de ser afetado pelo meio externo ou interno,
Embora não possamos dizer que Vigotski tenha
por sensações agradáveis ou desagradáveis.
postulado uma Teoria das Emoções, alguns autores
reconhecem que ele conferiu grande relevância Para Mahoney e Almeida (2005), a afetividade,
aos afetos. González-Rey (2009) e Oliveira e Rego segundo Wallon, se constitui de emoções, sentimentos
(2003), por exemplo, entendem que a perspectiva e paixões que representariam momentos marcantes,
histórico-cultural aborda as emoções como aspectos sucessivos e imbricados no desenvolvimento da
constituintes do volitivo-afetivo que está na base do afetividade. Logo, a afetividade evolui. Esses três
desenvolvimento do psiquismo humano. Já Aguiar aspectos da afetividade ─ emoções, sentimentos e
e Ozella (2006) e Smolka (1993) entendem que a paixões ─ resultam de fatores orgânicos e sociais que
afetividade na obra de Vigotski pode ser observada se configuram de modos diferentes de integração:
nas categorias sentido e significação, utilizadas pelo nas emoções, há o predomínio do fisiológico; no
autor para explicar a singularidade do sujeito. sentimento, do representacional; e, na paixão, do
autocontrole (Mahoney & Almeida, 2005).
Já em seu primeiro trabalho publicado no
campo da psicologia, Psicologia da Arte (1999), A emoção tem um poder plástico, expressivo
escrito entre 1924 e 1926, como resultado de sua e contagioso, visto envolver o tônus muscular e se
tese de doutorado apresentada em 1925, a questão da diferenciam pelas oscilações viscerais e musculares
afetividade aparece com relevância e está relacionada e desenvolvem padrões posturais para medo, alegria,
à apreciação e criação em arte. Mas apenas em 1934, raiva, ciúme, tristeza. Já o sentimento seria a expressão
em seu texto intitulado “Pensamento e Palavra”, representacional da afetividade. Diferentemente da
último escrito por ele antes de morrer, o papel da emoção, não resulta em reações imediatas ou diretas,
afetividade na constituição do psiquismo aparece com visto elaborar as emoções no âmbito da representação
maior clareza e integrado, de maneira indissociável, simbólica. A paixão, por sua vez, inaugura o
ao pensamento. Segundo o autor (1934/2005, p.188), autocontrole como possibilidade de dominar uma
para “compreender a fala de outrem não basta situação. Assim, para Wallon (1979), a emoção pode
entender as suas palavras ─ temos de compreender o evoluir para sentimento na medida em que pode ser
seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente ─ pensada, refletida, compreendida e elaborada via
também é preciso que conheçamos a sua motivação”. representação. O autoconhecimento das vivências
Isso porque, para Vigotski, o pensamento é gerado afetivas permite seu domínio por meio da paixão
pela motivação, ou seja, pelos desejos e necessidades e equivaleria à possibilidade de conferir sentido às
do sujeito, seus interesses e emoções. experiências. Para o autor, na constituição do sujeito
ao longo de seu desenvolvimento, a afetividade
O interesse do autor pela questão das emoções
corresponde a um conjunto que se integra aos domínios
também se evidencia em seu livro Teoría de las
cognitivo e motor.
Emociones (2004a), escrito entre 1931 e 1933, em
que apresenta um estudo histórico psicológico da Na escola, observamos o predomínio das
Teoria das Emoções. Trata-se de um estudo denso, emoções e, via de regra, emoções negativas, como
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medo, raiva, decepção, indignação e frustração. Essas semanais dos professores (chamadas de Trabalho
emoções, que se expressam de forma explosiva, são Docente Coletivo – TDC). Em uma das escolas, as
geradoras de muitos conflitos que não são trabalhados observações ocorreram ao longo de 16 meses, quando
e arrebatam dos sujeitos a possibilidade de elaborá- se buscou uma maior compreensão do contexto escolar
las. Assim, elas se repetem e constituem um contexto como um todo. Essas observações possibilitaram o
de relações permeado de insatisfações impeditivas do desenvolvimento de algumas hipóteses e de novos
desenvolvimento dos sujeitos. Observamos, também, questionamentos sobre o papel da afetividade na
que a prevalência de emoções negativas acaba por construção da identidade docente.
gerar sentimentos que parecem dominar professores e
alunos, como a frustração e o desânimo. Procedimento de análise dos dados
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dos alunos: suas atitudes em sala, o comparecimento elemento que agrega valor à imagem que ele tem
e a participação às aulas, e o aprendizado deles. Esses de si, em um processo em que a aceitação assume
aspectos são compreendidos por ela como dedicação, relevância. Essa aceitação manifestada pelo outro
interesse, respeito e investimento que têm em sua parece constituir-se como motivo para os professores
base os afetos. Assim, resultam para ela como um continuarem a investir nos alunos e em sua ação
retorno afetivo – os afetos que ela mobiliza no seu docente.
trabalho são retribuídos pelos alunos e sustentam
Vigotski (1934/2005, 1931/2007) descreve
seu investimento que permanece ─ a despeito de seu
a importância do outro como mediador da imagem
cansaço e desânimo provocados pela sua condição
que o sujeito constrói de si, cuja base é afetiva. O
precária de trabalho. Esse retorno afetivo dos alunos
desenvolvimento humano se dá por meio das relações
─ que para ela equivale ao reconhecimento de seu
que só se estabelecem pela mediação dos signos.
esforço e investimento ─ parece se objetivar no que
A palavra e os sinais são representações sociais
ela chama de “salário invisível”.
da realidade vivida pelo sujeito no contato com o
Na fala da professora Joana, a dimensão do outro. As atribuições que o sujeito constrói de si são
afetivo também assume relevância, ora com afetos representadas pelos signos e internalizadas por ele
positivos, ora negativos, mas ambos com a mesma por meio das imagens que os outros lhe atribuem.
importância para o modo como vê sua docência: Trata-se de um processo dialético que envolve uma
Às vezes sou chata, tem hora que gostam, me abraçam apropriação individual e singular, a partir do qual o
[imagem que os alunos têm dela], depende da classe. sujeito configura novos sentidos, transformando a si
Por exemplo, tem sala que tenho mais de 30 alunos, próprio e à realidade (Vigotsky, 1931/2007).
e alunos que foram encaminhados de outras escolas,
porque consideraram que eles tinham déficit de Solidão e abandono
aprendizagem, mas na realidade são super agitados
e não conseguem se concentrar. Mas apesar da Outros aspectos afetivos que assumem
dificuldade alguns me olham com brilho nos olhos, relevância na expressão dos sujeitos da pesquisa são
acho que me veem como uma pessoa importante. Os os sentimentos de solidão e abandono vivenciados
pais, não sei, nunca participei de reunião com eles,
pelos docentes na sua prática pedagógica. Ao mesmo
quero que, com o tempo possam me valorizar, por
isso, quando é possível, peço para os alunos levarem tempo em que dizem gostar da profissão e da relação
trabalho para casa, para eles perguntarem [pais/ com os alunos, os professores destacam que se
responsáveis] quem ajudou vocês a fazer isso? sentem desamparados, sem apoio pedagógico ou
afetivo para a resolução de problemas que enfrentam,
Fica evidente em sua fala a relevância que os o que, muitas vezes, gera outros sentimentos, como
afetos assumem em sua prática: ainda que veja o perdição, frustração e impotência. Nas falas, é
resultado de seu investimento no brilho dos olhos de possível observar que os sentidos atribuídos pelos
alguns alunos ─ e isso é o que parece motivá-la em professores à prática docente correspondem a algo
suas ações ─, há uma queixa velada sobre a falta de desgastante e solitário:
participação ou reconhecimento de seu esforço por O único entrave é a falta de o orientador estar junto.
parte dos pais. Embora declare nunca ter participado Esse elemento da escola, que é uma peça fundamental.
de uma reunião, ela espera ser reconhecida mesmo Isso é uma das falhas, deveria ter o acompanhamento
sendo desconhecida e deseja um retorno afetivo sem do meu orientador: o que você planejou? Quais são
investir na relação ─ o que se revela contraditório. suas estratégias? Como você vai trabalhar? Esses
questionamentos que eu já não tenho aqui, que faltam
Os professores demonstram a necessidade de serem
para poder refletir. Eu acho que o que eu faço está
reconhecidos e de terem seu trabalho valorizado em bom, e, às vezes, entra-se no conformismo. Acho
todos os depoimentos e, como veremos mais adiante, que está bom, mas eu tenho que ter o olhar de outra
a frustração dessa expectativa se revela como um dos pessoa, isso falta para me ajudar. (Cláudia)
motores que promove o desânimo e o descompromisso
dos docentes. Vejamos a fala da professora Lourdes: Aprendi bastante como se trabalhar [na escola
“Você vai dizer que sou egoísta, mas eu gosto muito de particular], se organizar e planejar, coisa que na
massagear o ego... Eu gosto de ver o resultado do meu prefeitura, rede pública, não tive esse apoio. ... Eu
trabalho. Eu acho que todo mundo gosta, se você não vejo o lado bom da escola particular por conta disso,
gostar...” de alguém te acompanhar, porque aqui [prefeitura] é
muito solto o trabalho. ... Aqui no primeiro ano, são
É possível dizer que essa valorização de si três anos do ciclo, tentando fazer o ciclo acontecer.
a partir do outro surge para o professor como um Duas professoras novas, no primeiro ano, estão
sinalizador externo de seu trabalho, constituindo um perdidas, não tem apoio pedagógico. (Cláudia)
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É, eu acho que isso aí é uma coisa difícil, é uma coisa Mas o meu compromisso é com o aluno, porque se eu
horrível, porque você está na sala de aula, você sabe for ficar me preocupando com tudo isso daí: com a
o que acontece, e essas coisas que vêm de lá de cima direção que faz coisas que eu não gosto; o Orientador
... É uma decisão que vem de cima e nós temos que Pedagógico que foi embora; a secretária que xingou
seguir, porque o diretor faz a pressão para que siga a gente de incompetente, que a gente está muito bem
aquilo lá e, muitas vezes, não dá certo porque há pago pelo que estamos fazendo; se eu for dar bola
falta de muitos professores na rede. ... Eu acho certas para tudo isso daí, então, eu não trabalho mais. O
coisas muito injustas, porque ninguém está lá para meu objetivo, o meu compromisso, são com os meus
ver o que realmente acontece dentro de uma escola... alunos. (Ana)
no nosso meio em que vivemos aqui, falar coisas que
não tem conhecimento. (Augusto) Como podemos observar, os professores
sentem-se solitários e abandonados em relação à
Na base da fala da professora Cláudia, é possível escola, à sociedade e às políticas públicas. Podemos
identificar um sentimento de insatisfação com seu sugerir que a tarefa de dar conta de tanta demanda
contexto de trabalho: a escola pública. Ela destaca que dentro e fora de sala de aula faz com que se sintam
a solidão e o abandono vivenciados pelos professores pressionados e sobrecarregados ─ do ponto de
corresponderiam a uma característica específica vista deles, um peso excessivo ─, além de terem
da escola pública, pois acredita que estava mais responsabilidades afetivas que, muitas vezes, não
amparada quando trabalhava em escola particular. O seriam atribuições deles, mas dos pais, da escola ou
professor Augusto também caracteriza o trabalho na da comunidade.
rede pública pela vivência de situações de solidão e
abandono pelos professores, tanto em relação à falta O sentido que atribuem à docência é de um
de recursos humanos quanto em relação à pressão de trabalho com muitos problemas, em que ele, o
medidas governamentais, de caráter burocrático, que professor, enquanto elo mais direto em relação ao
são impostas ao professor e vivenciadas por ele com aluno, acaba por ser o maior responsável por “saná-
o sentido de desrespeito, fazendo com que se indigne, los”, aspecto este, impossível, pois essas demandas
ou aja de forma alienada, em que já se naturalizou o envolvendo alunos em idade escolar são de âmbito
fenômeno: não adianta fazer nada, ou o que se pode sociopolítico, e não pessoal. O professor não consegue
fazer a não ser acatar? dar cabo a tantas exigências ─ já que nem todas são
atribuições suas ─ e, sendo assim, o sentimento que
Por um lado, esse aspecto parece revelar certo
fica é o de incapacidade para promover resultados
descaso e abandono por parte da gestão da escola e, por
positivos por meio de sua ação profissional. Desse
outro, a impotência do professor ao ter que atender às
modo, sua prática se esvazia de sentidos e provoca
demandas pedagógicas sem qualquer apoio. A sensação
desmotivação, descompromisso e, até mesmo,
expressa pelos professores é a de que eles precisam
adoecimento. Caberia perguntar: por que o professor
conseguir solitariamente exercer seu papel diante
dos alunos e, ao mesmo tempo, atender às exigências toma para si toda a responsabilidade de atendimento
burocráticas da escola, mesmo que tais exigências não às demandas da escola? Por que não envolve a gestão
façam qualquer sentido e sejam vividas como injustas, ou os administradores públicos que têm como papel
como resultado da falta de conhecimento do sistema atuar coletivamente nos processos educativos? O que
de ensino sobre as necessidades reais da escola. justificaria os sentimentos de abandono e solidão
vivenciados pelos professores em uma prática que é,
A professora Ana ainda revela um sentimento de eminentemente, coletiva?
mágoa e injustiça quando descreve a imagem negativa
que o professor tem diante da sociedade e dos alunos. De diversos modos, tem-se dito aos professores
Esta sensação de trabalho árduo sem reconhecimento que eles são os responsáveis e, por alguma razão,
e com muitas críticas confere um sentido que podemos eles têm se apropriado dessas atribuições, ainda
interpretar como solidão e abandono, já que o professor que, conscientemente, saibam da impossibilidade
demonstra se sentir isolado e criticado perante outros de corresponder ao papel que lhes é conferido.
que desconhecem as intempéries de sua atividade É nesse movimento dialético em que se assume
profissional. a responsabilidade no âmbito do discurso e o
descompromisso no âmbito das práticas pedagógicas
Você não vê cantor sendo espancado, advogado sendo
espancado, mas professor, vira e mexe, aparece um
que novas emoções e sentimentos são gerados. Como
lá. Então, a incidência é muito maior na nossa classe. regra, sentimentos negativos que se revestem de
Mas... existem pessoas que ficam assim... Toda essa um caráter individual, mas que são, em essência,
negatividade que existe com a nossa profissão, isso coletivos, circulam nas interações que se produzem
interfere: a pessoa fica deprimida, fica revoltada. no interior da escola.
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Injustiça e revolta que... no meio em que vivemos aqui, falar coisas que
não tem conhecimento. (Augusto)
Para Wallon (1979), os atores presentes no
contexto de interações do sujeito despertam nele Em outras falas, percebemos que os sentimentos
valores e sentimentos que influenciam sua concepção de injustiça e revolta assumem novos contornos. É o
de ser humano. Isso ocorre porque, na visão walloniana, caso do processo de vitimização, por exemplo, que se
devemos olhar para o sujeito não apenas como alguém explicaria pelo fato de os professores serem expostos
isolado no meio do grupo, mas como um “nós” inserido a críticas excessivas e, para manterem-se em sua ação
em um grupo segundo uma relação de pertencimento a pedagógica, desenvolvem posturas defensivas tais
esse contexto e a partir de um processo de identificação como ocupar o lugar de vítima no processo:
e não-identificação permanente.
“A turma fala que o professor anda meio
Vigotski (1925/2004b, 1931/2007) e Wallon estressado... Que não é a toa que os alunos batem em
(1979, 1981) iluminam nosso pensar sobre como os professor... Às vezes, eu também me acho um pouco
processos psicológicos são incorporados pelo sujeito estressada, mas é por causa da jornada, de alguns
a partir das interações e experiências afetivas que alunos indisciplinados” (Kátia).
ele tem com o contexto em que está inserido: são Ah, então, o problema do professor, eu vou te falar a
configurações de sentido resultantes das relações verdade! Desde quando eu fui fazer o magistério, a
familiares, pedagógicas, culturais, políticas e culpa é sempre do professor. A mídia veicula notícia.
econômicas. Essa explicação sobre os processos de Tudo é sempre culpa do professor! O professor está
constituição do sujeito parece responder em parte às sempre errado! O professor nunca tem razão. (Kátia)
nossas indagações, sobretudo àquelas que se referem
à razão do sentimento de solidão e abandono expresso O professor, ou aparece nos programas educativos,
pelos docentes. Parece legítimo afirmar que a excessiva ou ele aparece como vítima de algum aluno, ou ele
exposição a sentimentos negativos em relação à sua aparece nos movimentos de greve. E aí a gente vê
como o professor é visto como profissional de quinta
ação docente gera os sentimentos de injustiça e revolta,
categoria mesmo, entendeu? Quinta categoria.
conforme vemos a seguir: Porque ele apanha, é tratado como marginal, ele está
Ele [o familiar] também tem uma parcela de ali fazendo a sua reivindicação. ... Essa secretária que
responsabilidade, sim. ... Como todo mundo acha que entrou [refere-se à Secretaria Estadual de Educação],
é a culpa do professor! Todo mundo adora ir lá e botar ela diz que o professor ganhava muito bem, que todas
o dedo e falar que é culpa do professor. Mas ninguém as escolas estavam muito bem equipadas e que o
aceita ir lá falar o que ele faz, se vai dar certo ou não. professor não sabia dar aula! (Ana)
... Ninguém tem a varinha mágica, como você falou
[risos]. Mas eles acham que o professor tem que ter Podemos pensar que, diante da sensação de
essa varinha mágica! Ele tem que resolver as mazelas abandono, solidão, injustiça e revolta, resta ao
da sociedade! Está nas mãos dele. E a gente sabe
professor, impotente, postar-se como vítima de
que não é bem assim. A família e a escola caminham
juntas. Não tem que responsabilizar só um. (Kátia)
uma situação em que não há culpados, mas sim
responsáveis pela proliferação de uma conjuntura
As regras vêm lá de cima: é assim que vai ser feito... crítica da educação brasileira. Nos afetos manifestados
Não questionam se é certo, se é errado, não pedem pelos sujeitos, é tangível a influência sociopolítica e
opinião. Decidem nossa vida. ... Então, é cumpra- cultural na constituição da identidade dos professores.
se, faça-se, e não se preocupa em ouvir quem está Ao analisarmos suas falas, vemos como elas estão
envolvido para saber se está certo. (Kátia) permeadas de construções resultantes da influência
do contexto. Vigotski (1934/2005) descreve que os
Então aquela pessoa [alguém que assume um cargo sentidos atribuídos a algo são, na verdade, a expressão
administrativo] pegou, saiu da sala de aula e ficou,
de um aspecto que vem permeado de manifestações de
talvez, se formou no magistério e ficou dois ou três
anos, se ele ficou, em uma escola; daí ele prestou um sujeito que não está só, mas sim inserido em um
um concurso ou teve a felicidade de pegar um cargo processo de experiências histórico-culturais. O que o
na diretoria de ensino, foi para lá e de lá ele não sujeito é surge como consequência dos processos de
saiu e lá ele tem tempo de ficar fazendo, elaborando significação da realidade social feita por ele em suas
atividades que queira implantar na escola. Mas trocas sociais. São afetos e volições construídas a
muitas dessas atividades não dá, é humanamente partir das experiências vivenciadas com os outros de
impossível você fazer a aplicação. ... Ah, eu acho seu entorno.
certas coisas muito injustas porque ninguém está lá
para ver o que realmente acontece dentro de uma Vigotski (1925/2004b) interpreta a psique como
escola. Ninguém está lá para ver o momento em um processo de um organismo submerso em constante
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de sua ação. É essa complexidade que temos buscado Haveria, por parte dos sujeitos, uma capacidade
compreender e, no caso deste artigo, especialmente em de olhar para as próprias práticas, mas também de
relação ao aspecto afetivo das relações escolares. sofrer por perceber que suas expectativas não se
consolidaram. Os professores manifestam preocupação
Sofrimento em relação ao próprio trabalho, deixando transparecer
o sentimento de frustração:
O exame mais profundo dos aspectos que
emergem das configurações de sentido de docência “Às vezes, saio frustrada porque aquilo não
pelos professores remete a um afeto que parece deu certo, de falar: ‘poxa, tenho que pensar em outra
aglutinador dos afetos que estão na base dos sentidos estratégia porque não funcionou’. Então, são sinais
que emergem das falas e expressões dos sujeitos para eu poder pensar”. (Cláudia)
investigados: o sofrimento. Aí é onde passa o questionamento: “essa atividade
Conforme já mencionado, Wallon (1979) deu certo, ótimo. Aí, não deu certo”; aí você fica
atribui grande importância às interações no ambiente frustrada. Então, fala: “nossa, e agora?! Como eu
educacional, visto considerá-las como fator decisivo no vou trabalhar isso? ... [Falta] Apoio, da direção,
estabelecimento de condições adequadas e promotoras motivação, porque, você faz um monte de atividades,
do desenvolvimento. Logo, a afetividade assumiria legal, prepara um monte de coisa, pensando no
aluno, o que é bom para o aluno. E, muitas vezes,
o papel de fomentadora dos processos pedagógicos.
você se frustra e aí complica. (Kátia)
Quando as necessidades afetivas não são satisfeitas,
o cognitivo e o motor também são atingidos, pois, Trabalhar na rede pública é assim: a gente trabalha
tudo está interligado. Ao professor, gera insatisfação e de acordo com a administração. Cada vez que muda
desmotivação, já que, quando o trabalhador motivado o prefeito, vem mudança, e, às vezes, é alguma coisa
se empenha e não vê o retorno de seu trabalho, passa que estava dando certo, que a gente se empolgou,
a sentir sua ação como esvaziada de sentido e não achou que esse era o caminho, daí desmorona tudo,
há como manter vivos os sentimentos de desejo e começa tudo de novo. Isso é terrível. ... E a gente
esperança. Assim, o docente passa a experimentar percebe que o fracasso, às vezes, da educação
uma insatisfação permanente, que acaba por afetar pública, está muito ligado a essa questão. (Ana)
sobremaneira o seu modo de ser e agir, chegando à
produção de adoecimento. Wallon (1979) destaca a escola como um meio
De repente eu descobri que estava hipertensa! Mas importante para a constituição do sujeito. Assim, a escola
por que hipertensa?! O único problema que eu vejo surge como um dos principais ambientes constituintes
é a escola. Não só aqui, lá também [a outra escola do sujeito, em termos sociais, afetivos e cognitivos.
em que ela leciona]. Apesar de ser Ensino Médio, tem Para o autor, a escola é como uma promotora ideal
uma galera, também, que quer ficar ouvindo música o do desenvolvimento e deveria estimular os vínculos
tempo todo... E você quer fazer um trabalho bacana,
de cooperação, o trabalho em equipe e o espírito de
então, você entra em choque. Eu quero ensinar,
passar alguma coisa, quero que eles aproveitem esse solidariedade, ao invés de destacar o preconceito,
tempo que estão aqui. Daqui a pouco, muitos já estão a rivalidade, a pressão e as individualidades. Mas
trabalhando, daqui a pouco namoram, casam. E aí, o que vemos nas falas dos sujeitos é justamente o
como é que ficam as vidas dessas pessoas? (Ana) contrário: a questão do sofrimento aparece fortemente
como constituinte do dia a dia de sua prática. Mais
O fato é que a gente não está conseguindo. Isso é muito especificamente, o que predomina é a frustração
frustrante. Eu sempre falo assim: “eu não conheço
por haver tantos afetos não correspondidos. Existe
nenhum profissional que briga para trabalhar.”.
Porque, veja, se você tiver em uma repartição pública desejo de aceitação e reconhecimento, necessidade
... em serviço administrativo, e seu chefe, ou alguém, de estabelecimento de vínculos e inúmeros desejos
estiver tirando o computador da sua mão, sei lá, o frustrados pelas condições da realidade educacional e
livro da sua mão, e você fala: “se você não quiser que sociopolítica.
eu trabalho, eu vou ficar em casa”; vai achar ótimo.
A gente não! A gente está constantemente brigando Há esperança e muitas intenções sinceras
com eles, o tempo todo, a gente se desgasta, a gente de se fazer um bom trabalho, mas esbarram nas
se arrebenta, para poder trabalhar, entendeu? (Ana) determinações administrativas, nas rixas de dentro da
escola e na própria limitação do aluno e do professor.
“Porque, se você levar muito ali, você fica Esses aspectos, somados às inúmeras pressões que
muito nervosa! Por isso que muita gente pede licença, rodeiam os docentes, geram sentimentos de solidão e
entendeu? Porque não aguenta” (Kátia). abandono, injustiça e revolta.
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