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JACQUELINE SCHNEIDER
resumo Este trabalho aborda experiências de vés da manipulação corporal. Carneiro chama
usuários de drogas desdobradas em instituições a atenção para a existência de uma “ubíqua e
localizadas na Grande Curitiba, no estado do Pa- contínua presença das drogas em cada cultura
raná, que se pautavam pela lógica absenteísta: e de uma imensa rede de significados culturais,
Igreja do Santo Daime Céu da Nova Vida, Comu- ritos e práticas de socialização nelas consubs-
nidade Terapêutica Água da Vida e um grupo da tanciadas” (2005, p. 17). Neste sentido, o au-
Associação dos Alcoólicos Anônimos. A partir de tor esclarece que tanto o conceito droga quanto
experiência etnográfica, aponto que esses locais en- o conceito vício são polissêmicos na sociedade
volvem características idiossincráticas, representa- contemporânea, constituídos historicamente,
ções e sociabilidades que põem em curso, através de adquirindo apenas recentemente a edificação
agenciamentos terapêuticos, a construção de uma de um paradigma do abuso de drogas.
“identidade de dependente químico” e, com maior Trata-se da construção de um fenômeno
ou menor sucesso, a “incorporação de um habitus”. que marca a sua presença através da pauta polí-
Como desdobramento desse processo, sugiro que tica e de intensos debates nas esferas jurídica e
essas experiências se inclinam à metamorfose, de- médica e, dessa forma, a representação do que
finindo modos de ser/estar no mundo, viabilizada podemos chamar de “fenômeno das drogas”
pelo engajamento dos sujeitos com o que compre- acentua-se a partir da criminalização e da me-
endemos como projetos terapêuticos. dicalização do consumo (Vargas, 2001; 2005).
palavras-chave Drogas. Terapêutica. Experiên- Com efeito, esses processos tornaram-se formas
cia. Identidade. Metamorfose. de relevância densa atuantes na elaboração das
experiências de atores sociais que, de alguma
forma, constituem o contexto das drogas. De-
O fenômeno das drogas vido a essas características, como uma respos-
ta a possíveis eventos tornados perturbatórios
Em sociedades como a nossa, o que con- por envolverem o uso de drogas, as trajetórias
vencionamos chamar de drogas corresponde e os itinerários desses atores muitas vezes cru-
ao que muitos especialistas voltados à temáti- zam instituições específicas que se organizam
ca preferem chamar de substâncias psicoativas. a partir da medicalização do consumo,as quais
Substâncias, por sua vez, capazes de atuar so- seguem a lógica absenteísta2.
bre o sistema nervoso, sobre o que entendemos Este trabalho discute repercussões dessa
por psique, sobre a dinâmica neural e, assim, lógica particular na experiência, percepção e
capazes de alterar a consciência humana atra- orientação de pessoas que se encontram em ins-
tituições que a partir dela se organizam. Com regulamentadas pela Agência Nacional de Vi-
este objetivo, apresento em um primeiro mo- gilância Sanitária e pela Secretaria Nacional de
mento a trajetória percorrida entre os espaços Políticas sobre Drogas e são sistemas estrutu-
institucionais e suas organização e estrutura. rados com regras, limites claros e afetos con-
Em seguida, discuto características que as apro- trolados através de responsabilidades, normas e
ximam e as distanciam e que definem represen- horários (Sabino; Cazenave, 2005).
tações centrais que organizam as experiências A comunidade terapêutica Cravi abran-
dos sujeitos. Dando continuidade, apresento ge uma casa feminina localizada na cidade de
modelos de sociabilidade e dinâmicas especí- Curitiba; um escritório, local onde se fazem os
ficas vivenciadas nos contextos institucionais trabalhos administrativos, o primeiro encontro
que viabilizam essa organização e que a defi- com potenciais residentes e/ou seus familiares
nem como construção de uma identidade. e determinados grupos terapêuticos; e uma
casa masculina, em um sítio em Almirante
Trajetória de campo, instituições e Tamandaré, município integrante da Grande
aspectos metodológicos Curitiba. Nessa comunidade o “programa de
tratamento” consiste em um período de seis
Neste trabalho, parto de uma experiência meses de “internação”, termo nativo que tam-
etnográfica realizada na região da Grande Curi- bém se refere à residência das pessoas no local,
tiba, no estado do Paraná, em instituições que chamadas de “residentes”. Este programa é di-
constituem diferentes “modalidades”3 para o vidido em estágios através dos quais a pessoa
tratamento de usuários de drogas: o Centro de atinge e passa ao seguinte, conforme o seu pro-
Recuperação Água da Vida (Cravi), que se en- cesso de recuperação. O número de residentes
caixa no modelo de “comunidade terapêutica”; varia bastante, mas conforme percebi com o
a Igreja do Santo Daime Céu da Nova Vida passar do tempo, apresenta uma média apro-
(ICNV), localizada no município de Pinhais, ximada de 70 a 80 pessoas nos dois espaços de
na Grande Curitiba; e um grupo da associação internação, com uma rotatividade ainda mais
de anônimos – os Alcoólicos Anônimos (AA). variável.
A escolha desses locais pautou-se pela acessibi- Os participantes do AA se consideram uma
lidade, concordância dos dirigentes com a rea- irmandade de pessoas que, através do compar-
lização da pesquisa e por critérios de variedade tilhamento de experiências realizado principal-
dos recursos terapêuticos, procurando focar-se mente em reuniões, busca resolver o problema
nos sujeitos e nas possíveis diferenças entre os comum da “doença do alcoolismo”. Há muitos
relatos que poderiam emergir a partir de locali- grupos de AA em atuação em países e cidades,
zações específicas. assim como por toda a região da Grande Curi-
As comunidades terapêuticas integram o fe- tiba. A minha pesquisa se realizou com um
nômeno das drogas como uma das possibilida- grupo pequeno, de aproximadamente cinco
des para aqueles usuários que se direcionam ou pessoas, na Igreja Bom Jesus, uma das regiões
são direcionados a tratamentos e intervenções centrais da cidade de Curitiba, selecionada pela
específicos no aspecto de uso de drogas; cons- facilidade de acesso que me oferecia.
tituindo o contexto de opções que se oferece A instituição que mais se diferencia das
para atuar nessa especificidade conjuntamente recém-mencionadas é a Igreja do Santo Dai-
com terapias como a psiquiatria, a psicotera- me Céu da Nova Vida. Santo Daime é uma
pia analítica, a prevenção à recaída, etc.. São expressão multivocal e, assim, pode se referir
a um movimento religioso e ao nome dado à que não podem pagar clínicas e psicólogos”,
substância psicoativa na forma de bebida inge- de acordo com o relato do padrinho. Os ritu-
rida durante os rituais (De Rose, 2006). Essa ais específicos voltados aos usuários de drogas
bebida, conhecida pelo nome de ayahuasca, é são nomeados “trabalhos de cura” e acontecem
produzida pela cocção de duas plantas oriun- uma vez por semana. Para participar as pessoas
das da floresta amazônica: o “cipó jagube” e a devem realizar uma “triagem” – basicamente
“folha rainha”. De acordo com a autora, “esta questionamentos sobre sua intenção e o que as
bebida é considerada como um ‘ser divino’, do- levou até a igreja – com o padrinho ou com
tado de personalidade própria e capaz de curar outro líder da igreja.
e de transmitir conhecimento” (p. 35). Durante a investigação, registrei um con-
A igreja está localizada em meio urbano, junto de narrativas coletadas em situações de
em uma área residencial, ocupando uma casa entrevista, nas quais eu procurava interferir o
bastante ampla, pintada de verde e com gran- mínimo possível, fornecendo apenas casual-
des letreiros com o seu nome. Este grupo é sig- mente incentivos às próprias falas dos sujeitos.
nificativamente diferenciado de outros grupos Com o objetivo de estudar os desdobramen-
daimistas, cujos relatos eu conhecia principal- tos das experiências desses sujeitos nesses lo-
mente por não circunscrever uma comunida- cais específicos, reproduzo algumas narrativas,
de de pessoas que residiam no próprio local e descrevo situações do quotidiano e chamo ao
não possuir vínculo com nenhuma das verten- diálogo diversos sujeitos6 que constituíram a
tes da religião4. Os coordenadores da ICNV experiência etnográfica.
reconhecem uma diferença entre essa igreja e
outras que compartilham do uso da ayahuasca, Aproximações, distanciamentos e
a qual se refere ao trabalho direcionado para encontros entre as instituições
a cura da “dependência química”. Embora ela
esteja aberta para que as pessoas participem em Aproximações: projetos e tramas terapêuticas
trabalhos que acontecem duas vezes por mês,
segundo a fala de todos com os quais conversei Embora as instituições apresentem pecu-
e que ocupam papéis centrais no contexto, a liaridades nos mais diferentes setores – cujos
instituição possui a característica de ser voltada traços mais relevantes serão explorados adiante
para a cura de “dependentes químicos”. –, o horizonte comum fundamental refere-se
Conforme os relatos, a ICNV se encontra às orientações que visam à recuperação do de-
propositalmente no meio urbano para que os pendente químico, baseadas em um incentivo
“dependentes” tenham acesso mais fácil a ela. à prática da abstinência. A abstinência pode ser
Além disso, o padrinho5 comenta: “não temos tomada “como elemento de uma terapêutica e
nada pra esconder”, referindo-se ao preconcei- como princípio organizador de um modo de
to que relata perceber em relação à própria re- vida e de um sistema de valores, indissociável
ligião, principalmente por conta da ingestão da de um contexto patológico” (Faizang, 1992, p.
bebida chamada pelo grupo de “sacramento do 7, tradução minha). De acordo com Campos
Santo Daime”, ou simplesmente “sacramento (2003), a abstinência deve ser entendida, so-
do Daime”, o qual, neste contexto específico, bretudo, como um princípio organizador da
refere-se à ayahuasca. Alegam também que a própria existência. Dessa forma, pode-se falar
igreja tem a característica de realizar obra so- em uma “cultura da abstinência”, um sistema
cial “principalmente para aqueles dependentes simbólico atuante como organizador da exis-
tência e de um modo de vida. A partir dessa formulação de projetos que, em nível individu-
cultura, os contextos terapêuticos jogam não al, “lidam com a performance, as explorações,
apenas com a noção da “doença” da dependên- o desempenho e as opções, ancoradas a avalia-
cia química, mas, densamente, com o “ser de- ções e definições da realidade” (Op. cit., p. 28).
pendente químico”. Já a noção de campo de possibilidades pode ser
Terapias são veículos através dos quais tipos compreendida como uma determinada reali-
específicos de determinadas experiências são dade social negociada, informada pelos para-
definidos e tomam formas culturalmente reco- digmas culturais compartilhados. Contudo, a
nhecidas (Young, 1976), fornecendo ao sujei- noção de projeto não se atém exclusivamente
to uma perspectiva coerente para a apreensão ao nível individual e pode ser desdobrada em
subjetiva de sua trajetória pessoal, propiciando uma noção de projetos coletivos, emergida a
um parâmetro identitário (Figueira, 1978). As partir de um olhar particular para as institui-
instituições podem ser percebidas como articu- ções terapêuticas elencadas nessa discussão.
ladoras das experiências e produtoras de senti- Estas instituições, na medida em que se
do para as perturbações que envolvem uso de inserem no amplo contexto das drogas como
drogas. Dessa forma, o código cultural atuante propiciadoras de metamorfose para os usuários
nas instituições terapêuticas condensa idiomas que nelas se colocam, configuram-se como um
e referentes capazes de fornecer linguagens es- projeto que se estabelece a partir de um código
pecíficas para que um indivíduo articule di- cultural específico, capaz de reorganizar tanto
mensões da experiência e reinterprete-a com as experiências de perturbação quanto oferecer
novos significados. parâmetros identitários. Por conseguinte, po-
Dessa forma, um sistema terapêutico pode de-se entender que as instituições atuam como
ser compreendido como um campo simbólico, projetos terapêuticos articuladores de um códi-
como província de significados constituinte do go específico de identidade, pois estabelecem e
que Gilberto Velho (2003) chamou de “socie- aglutinam valores, organizando-se de forma a
dades complexas”. No estudo de sociedades se estabelecerem como projetos disponíveis no
como essas, insere-se uma problemática no que “campo de possibilidades” que compõe o fenô-
concerne às trajetórias pessoais dos indivíduos, meno das drogas, estabelecendo códigos pró-
que se define como um jogo entre “unidade” prios para a reconstituição de projetos pessoais.
e “fragmentação”. Essa dinâmica está associa- Neste sentido, tornam-se menos visíveis
da à permanente latência nas fronteiras entre as fronteiras entre a Cravi, a ICNV e o AA.
essas províncias, supondo um potencial de Essas instituições atuam como agenciamentos
“metamorfose”. A metamorfose “possibilita, terapêuticos, ou seja, são agenciadoras de um
através do acionamento de códigos associados projeto de identidade construído a partir das
a contextos e domínios específicos – portanto, representações sociais vigentes em torno do
a universos simbólicos diferenciados – que os fenômeno das drogas. Nesta direção, a prática
indivíduos estejam sendo permanentemente da abstinência está vinculada a um código es-
reconstruídos” (Velho, 2003, p. 29). pecífico da “doença da dependência química”.
A partir das trajetórias pessoais entre os Essa similaridade em concepções centrais im-
domínios de realidade, redefinem-se “pro- plica um entrecruzamento com as representa-
jetos” através do trânsito e da orientação em ções definidas pelo monopólio da interpretação
um “campo de possibilidades”. Este campo se biomédica – que define a noção de dependên-
configura como espaço para a implementação e cia de drogas e a insere no amplo espectro das
cal pode incluir uma transformação do rela- guntou se eu bebia. Respondi que sim, que às
cionamento entre entrevistador e respondente vezes gosto de tomar uma cervejinha e de fumar
(Briggs, 1999). Afinal, a narrativa envolve uma um cigarrinho. Cláudio e Diana começaram a
negociação do evento através de relações dialó- questionar a forma como eu bebo. Como, com
gicas (Bauman; Briggs, 1990) e, nesse sentido, quem, em que situações... Então a conversa to-
é criada através da interação social (Langdon, mou um rumo no sentido de me informar que
1996). Indo mais adiante, Groisman (2007) eu sou de fato “dependente química”. Eles co-
considera que meçaram a questionar se já usei outras drogas,
quais, e eu continuei contando. Então, Cláu-
[...] os protagonistas dos discursos são todos os dio falou que entre minhas escolhas já estava
envolvidos na conversa, incluindo aqueles que definido que o álcool era a minha “droga de
estão ausentes, mas efetivamente estão ativos no preferência”. Cláudio me falou, ainda, que se
circuito, ou “rede”, de trocas – e que transcen- eu não parasse de beber, seria uma senhora de
de em muito as “assinaturas” no que se poderia 40 anos bebendo em casa.
chamar de livro presencial daquele encontro (p. A referência ao tudo inho que Diana usou
15). em sua fala referia-se à banalidade com que eu
comentei o meu uso de drogas e, em suas pa-
Ao falar em protagonistas, o autor procura lavras, tudo inho remeteu-a a uma recaída por-
enfatizar que a voz de uma pessoa articula sem- que, embora tivesse parado com a sua “droga
pre e dialoga, mesmo que não presencialmen- de preferência”, não parou com a cervejinha,
te, com outras vozes relevantes, de certa forma o vinhozinho e, assim, tomar uma cervejinha e
onipresentes. Em sentido próximo, o que é fumar um cigarrinho, como eu fazia, não eram
dito nunca é dito somente para os presentes. atos sem graves consequências, no meu caso
Diana estava se referindo, na verdade, a ela, a particular e no dela, como me falou Cláudio
mim e a todos os outros dependentes quími- durante a entrevista:
cos, como explico a seguir através da reconsti-
tuição de uma cena de interação que tivemos, Eu já fiquei muito preocupado com você em re-
anterior a esse momento da entrevista no qual lação ao que você me contou, algumas coisas da
Diana deu o que considerei uma “indireta”, em sua vida, eu me vi um pouquinho ali: nossa, essa
meio a outros conteúdos de seu depoimento. aí... Não queria ser grosseiro nem invadir tua
Cláudio, Diana e eu estávamos tomando vida, teu espaço, mas os conselhos que eu te falei
café em uma padaria, como sempre fazíamos foi pra direcionar um pouquinho as tuas ideias.
antes de ir à casa masculina. Eles começaram a
falar para combinarmos de sair, de jantar, pois Nesse sentido, Diana estava expressando a
havia muitos lugares em Curitiba que, segundo noção da “doença incurável” que é a “depen-
eles, eu deveria conhecer, já que eu não conhe- dência química”, e que o “dependente quími-
cia nada. Eu concordei, animada, e comentei co” está sempre sujeito a uma recaída, ou, como
que abrira um bar “bem legal” ao lado da casa no meu caso, que (ainda) não havia entrado
de estudantes em que eu me hospedara, e que em tratamento, a uma progressão (inevitável)
eu estava frequentando por ter conhecido as do uso. Cláudio se referia à nossa identificação
garotas que são donas do bar, acrescentando como “dependentes químicos”. Esses episódios
que eu sentia falta dos meus amigos para sentar recém-narrados demonstram o entendimento
e tomar uma cerveja. Então, Cláudio me per- comum que os sujeitos têm sobre si mesmos.
São expressões de entendimentos que estimu- construção do sujeito como dependente quí-
lam a incorporação e o reforço de uma iden- mico passa necessariamente pela demonstração
tidade, e, assim, estimulam a fundamentação de histórias vividas no mundo em questão.
do próprio projeto de ser no mundo através da As narrativas de lembranças das experiências
prática da abstinência. do “mundo das drogas” e as características da
Contudo, se a identidade está em jogo na identidade de dependente químico comparti-
relacionalidade entre pares, para que isso acon- lhadas nos momentos de brincadeira e de inti-
teça, a pessoa deve ter vivido “lá”, no “mundo midade moldam as interpretações de si mesmo.
das drogas”: “É incrível, um drogado cria um Essa legitimação também deve passar, como
mundo só deles, uma sociedade só deles, não pude perceber, pela relação com os familiares. A
tem um normal perto, nunca”, explica Júlia, necessidade dos papéis sociais da mãe e do pai
uma mulher que estava em tratamento na Cra- em contextos ocidentais já foi enfatizada por
vi há aproximadamente dois meses. Essa noção Strathern (1995). Segundo a autora, ao colocar
de mundo, trazida por Júlia, que os sujeitos em questão as representações de parentesco, o
necessitam ter experimentado, é condição para que está em jogo é a própria ordem social. Clé-
que o sujeito seja legitimado como tal. Portan- ber foi uma das pessoas que conheci em campo
to, as provas da vivência no mundo das drogas em busca do abandono do uso de crack. Tive
adquirem a conotação de ser um haver, um “ca- a oportunidade de conviver com ele nos traba-
pital”, no sentido de Bourdieu (1989), ou seja, lhos de cura de que participava e nas tardes de
um habitus. Enquanto “capital”, torna-se um “triagem” para a avaliação de usuários de drogas
saber-poder que a pessoa tem à mão de forma que procuravam a ICNV. Oficialmente, ele não
acessível e, assim, pode acioná-lo. precisava mais ir às triagens. Contudo, perma-
Possivelmente, aí está uma das dimensões necia indo. Nesses momentos, estava sempre
da necessidade de um monitoramento e de acompanhado da mãe e, em uma ocasião, de
promover formas de identificação. A criação de uma prima. A mãe não queria participar dos
um habitus de uso de drogas entre as sociabi- trabalhos, pois havia recentemente sofrido
lidades envolvidas sugere um olhar excludente um derrame. Contudo, em um dos trabalhos
das diferenças entre práticas que consideramos, de cura, ela participou sentada ao meu lado, e
em termos éticos, expressivamente diferencia- enquanto o ritual não começava, ela comentou
das em termos de contextos sociais de usos e que “agora” sabia do problema do seu filho.
em termos de subjetividades que usam (Velho, Conforme percebi implicitamente em suas
2003; Soares, 1993). Dessa forma, o habitus de falas, embora não haja, nesta passagem, uma
uso de drogas colabora com e é englobado pelo relação direta que pudesse ser evidentemente
habitus do projeto de identidade. interpretada como tal, acreditei que a sua pre-
As vivências comuns no “mundo das drogas” sença estava sendo fundamental para Cléber
partilhadas no interior dos sistemas são funda- “aceitar” que era dependente do crack. Em um
mentais para a sustentação das representações e dos grupos terapêuticos da Cravi do qual parti-
das práticas em torno de ser e saber-se depen- cipei, os residentes da casa masculina deveriam
dente químico. Assim, se constituir-se como dramatizar os “sentimentos” que apareceram
sujeito comporta a organização da própria com maior frequência na atividade da semana
experiência, também significa ser reconhecido anterior, chamada “páginas da vida”. Tratava-se
entre os pares por essa experiência (Hartmann, de descrever sentimentos, entre outras coisas
2007). Nesse sentido, a legitimação da (re) que não pude verificar. Entre os muito citados,
como raiva e arrependimento, estava recorren- reconhecimento externo a esse novo grupo de
temente citada a frustração de não ter visita. pertença social, através dos papéis centrais das
Especialmente aos domingos os familiares po- representações de parentesco. Portanto, a partir
diam visitar os residentes. Lá podiam passar o das expressões das representações que envolvem
dia e fazer algo específico, como um churrasco, os valores dos projetos terapêuticos, a expressão
entre outras atividades. Como percebi nas falas de depoimentos de trajetórias que só podem
de alguns residentes, esses dias eram esperados se realizar e se legitimar a partir de relatos ex-
com uma expectativa sobre quem viria de suas perienciais do “mundo das drogas”, emerge a
famílias para vê-los. conjuntura possibilitadora do “ser dependente
De acordo com Souza (1998), a sustentação químico”, que tem também como elementos
de uma versão do fato e de uma autoimagem é atuantes o olhar sobre si, expresso e manipula-
garantida através da colaboração de outros tidos do nas falas sobre os outros e nas falas sobre si.
como significativos, além da necessária confian-
ça na continuidade dessa colaboração. Ser re- Falas sobre os outros e falas sobre si
conhecido pela transformação como um “outro
transformado”, diferente daquele que vivia no Há aproximadamente oito anos Jaime era
mundo das drogas e atualizava essas experiên- um participante ativo do AA em que tive a
cias, é um veículo importante para afirmar a oportunidade de presenciar uma reunião diri-
nova condição. É uma legitimação que permi- gida por ele. Entrevistei-o ao encontrá-lo logo
te ao sujeito se reconhecer na (re)ordenação de no dia seguinte, conforme combinado, na fren-
suas experiências, agora condensadas em um te da igreja sede do grupo de AA em que nos
projeto que lhe permitirá passar para a “ordem conhecemos. Fomos caminhando até a praça
social”, como referiu Strathern (1995) através onde sentaríamos para conversar. No caminho,
dos papéis sociais da mãe e do pai. Para que passamos por um grupo de pessoas sentadas
uma autorrepresentação ligada à (re)construção no chão, algumas deitadas, bastante sujas e
de uma identidade possa ser dotada subjetiva- com garrafas de bebida. Depois que passamos,
mente de sentido, deve ser reconhecida por ou- Jaime comentou que eles eram “dependentes
tros atores do grupo social (Souza, 1998). químicos”. Durante a entrevista, enquanto co-
Desta discussão, percebemos que o projeto mentava sobre o “fundo do poço”, remeteu-se
de ser dependente químico, para se efetivar, está novamente àquelas pessoas, dizendo que aque-
vinculado às negociações que compõem as ex- le era o fundo do poço delas. Durante a reali-
periências de sociabilidade entre pares e nas re- zação desse evento, fomos interrompidos por
lações com os “outros tornados significativos”. um homem que passava e nos pediu um real.
Como projeto individual, só pode ser susten- Jaime falou que “entendia” e que o dinheiro
tado na medida em que se reconhece e se cons- era para comprar bebida. A linguagem “é um
trói a partir do jogo simbólico posto em curso movimento que tem uma meta e um efeito; no
nos projetos institucionais. A manipulação dos fundo, é sempre um instrumento de ação. Mas
valores a ele associado e as trajetórias propícias age exprimindo ideias, sentimentos que as pa-
a defini-lo são sustentadas com base nas expe- lavras traduzem externamente e substantivam”
riências de sociabilidade, na cumplicidade das (Mauss, 2001, p. 230).
brincadeiras que só podem ser entendidas en- A referência de Jaime aos (outros) “depen-
quanto se reconhecem os valores e noções perti- dentes químicos”, nos momentos anteriores à
nentes a esses projetos, mas que precisam de um entrevista, chama a atenção na medida em que
havíamos feito um acordo de que eu buscava, provavelmente ele [o marido de Keila que esta-
com a entrevista, narrativas de suas experiências va na Cravi masculina] também não. Então tô
relacionadas ao uso de drogas, conforme com- com medo, porque ela, tão forte, se mostrava
binação no encontro que realizamos no AA. tão forte assim pra gente, então imagine eu que
Nesse sentido, a relação reflexiva entre a fala e sou muito... sabe... (grifos meus).
o contexto (Duranti; Goodwin, 1992) condi-
ciona as falas de Jaime. A intencionalidade de As falas sobre os outros sujeitos remetem a
Jaime em suas falas chama a atenção na medida si mesmos, na mesma medida em que reforçam
em que são sinalizadas12, interrompendo o flu- através da expressão um olhar sobre si: saber
xo da conversa que estávamos tendo enquanto que é difícil parar, saber que se está sujeito a
caminhávamos e, posteriormente, comentando uma recaída, se há uma aproximação com “há-
sobre o alcoolismo a partir de uma interven- bitos, pessoas e lugares” que fizeram parte da
ção externa – o homem pedindo dinheiro. Há época do uso de drogas:
muito tempo palavras e coisas perderam a re-
lação (Foucault, 2002). Ou seja, as palavras só Que nem chegou a menina nova, eu sei que ela
fazem sentido de acordo com os agenciamen- era lá da vila, ela e o marido dela, a gente usava
tos através dos quais os atores as mobilizam, junto, foi eu ver ela, na hora me veio aquilo,
através da intenção e da reflexividade. É decor- eu me vi junto com eles, usando lá, como an-
rente dessas duas atitudes um monitoramento tes. Me veio na cabeça, parecia muito real, até a
em torno de falar sobre os outros dependentes sensação, na hora, não sei se você reparou... En-
químicos e das características que deles fazem tão se eu chegar lá na minha vila onde eu moro,
parte, de forma a demonstrar para outrem o na frente, no lugar onde eu usei, vai dá na hora
uso de drogas, movimentado de forma a con- aquela vontade e aí não vai ter nada que me se-
cretizar sentidos que devem ser transmitidos. gure. (Júlia, grifo meu).
Nessa direção, é possível considerar um
agenciamento específico de palavras na referên- Falar da “menina nova” é falar de si mesma
cia aos outros dependentes químicos, com uma na época do uso. Júlia se imagina no “cenário”,
meta específica da produção de uma identifica- no “lugar” em que usava drogas. As falas sobre
ção e da ilustração daquilo que se quer dizer a Keila e sobre a menina nova permitem repensar
outrem e um “efeito” de fortalecimento da pró- sobre si mesma, lembrar de experiências pas-
pria identidade e das qualidades que a definem. sadas, recontextualizando-as, levando aos seus
Júlia relata seu medo de sair da Cravi para primeiros marcos, e incluí-las em um novo
passar o fim de semana com o marido – tam- conjunto de expectativas e relações (Duranti;
bém residente da Cravi masculina –, seu filho Goodwin, 1992). A orientação do “eu” como
e sogros: um projeto de constituição de uma identida-
de tem como um dos fundamentos as práticas
Jacque, parece que é uma coisa mais forte que a dos outros, que trazem para a imaginação um
gente. Como a Keila, a Keila saiu e não voltou passado, reinterpretado, e a monitoração de si
até agora, quem disse que a Keila tava... ela sem- mesmo.
pre fazia devocional, sempre orando, meu Deus, Falar sobre o outro é relembrar um passado
não dá pra acreditar que essa menina usou droga – partilhado ou não – em que estão as experi-
um dia, que ela era da igreja. Mas olha só, ela era ências de uso e os contextos que essas experi-
tão forte, tão forte, tão forte. Se ela não voltou ências envolvem. A partir dessas lembranças, o
ço estende a esse sujeito seu entendimento de tava uma história na qual eram citadas várias
como ficar “firme” e longe das drogas, atuali- qualidades, como “responsável”, “amiga”, “cari-
zando a si mesmo sua interpretação. Retomo nhosa”. Quem estivesse com a bolinha na mão
aqui a fala de Diana: passava para a outra quando a psicóloga falava
algo como: “passe para uma pessoa que você
E aí eu tinha seis dias de Chave eu e uma me- considera carinhosa!” E, então, sucessivamen-
nina, consegui achar uma pior que eu, sei que te, até que acabassem as frases e as qualidades
foi muito importante pra mim essa minha saída, descritas. Ao final, a garota que tivesse recebido
esse lapso que eu tive, porque foi ali que eu vi mais vezes a bolinha ganhava a caixa. A caixa
realmente que eu não era diferente de ninguém. estava cheia de doces.
Porque eu sempre tive aquela coisa: ai, eu não Dessa forma, expressa-se o reconhecimento
sou igual àquela neguinha. Tem uma diferença de qualidades do outro, que visa, em minha lei-
bem grande social aqui dentro da Cravi femini- tura realizada a partir de todo o contexto onde
na, eu cheguei ali, meu Deus, essas neguinha, este jogo foi possível, auxiliar a construção de
cheia de piolho, eu não sou assim! Só era assim, uma identidade, reforçar determinados valores
era pior do que elas e não via, porque meu ego e recompensar quem satisfaz expectativas. Por-
não deixava. A saída que eu tive aí eu fiquei dois tanto, as falas sobre os outros, no sentido de
dias na rua, eu não tinha dinheiro. Vi porque uma manifestação pública de apreço e opinião
eu tava suja, em situação de rua. Sabe... Tava na sobre esses outros, não necessariamente se dão
mesma situação que eu vi as meninas chegarem através de um “diálogo oculto”14, como vimos
à casa feminina. Enquanto antes na verdade era nas falas reproduzidas acima, nas quais as pes-
tudo muito fácil pra mim. Mas chegou um mo- soas referenciadas não estavam presentes. Nes-
mento que botei tudo fora. Aí fui usar droga na se sentido, considero o jogo da bolinha como
condição mais comum do usuário de drogas, à um importante jogo de expressão. Esse jogo
mercê da sociedade. E via que as pessoas pas- configura-se como uma trama explícita de cir-
savam por mim e, nossa, que drogada! Então, culação de valores, de certa forma demarcando
foi tudo importante pra mim, enquanto antes expectativas e diferentes níveis de incorpora-
na verdade era uma imagem que não existia ção da identidade. De acordo com Giddens
(grifos meus). (1989), na maioria das esferas da vida, o âmbi-
to do poder de controle limita-se aos contextos
Diana, considerando-se antes “diferente” imediatos de ação e interação. Nesse sentido,
das outras residentes, logo passa a se considerar essas “falas presenciais” podem ser interpre-
uma “igual”, ao mesmo tempo em que avalia tadas com o sentido de fortalecer, através do
uma imagem que não existia e assume a identi- controle, a identidade grupal de uma forma
dade compartilhada com as “neguinhas”. pública e institucionalizada. Contudo, para
Em uma ocasião, participei de uma ativida- além da dimensão do fortalecimento está a di-
de de uma das psicólogas com as “adolescen- mensão do controle da incorporação a partir
tes”13. Inicialmente, mostrou-se uma caixa de de um jogo que interpreto como “competição”.
sapatos, perguntando se as garotas adivinha- A ação é um processo contínuo em que
vam o que havia ali. A caixa ficou no centro do uma monitoração reflexiva é fundamental para
círculo formado entre nós, sem ter seu conteú- atividades que envolvem controle (Op. cit.) e,
do revelado. A atividade consistia na leitura de nesse sentido, o cuidado e o monitoramento
frases realizada pela psicóloga, em que se con- fazem parte de um jogo que podemos entender
dividuais” se apresenta mais como “agências de medicalização do uso de drogas que reper-
transindividuais”, desdobrando-se em “agên- cute na lógica absenteísta, definindo um mode-
cias coletivas”. Assim, nas tramas terapêuticas lo de doença incurável que culmina na noção
realiza-se um jogo, propiciador de um vínculo de dependência química. Jogando com essas
entre representações e práticas que fornecem noções, as instituições vão estabelecer um pro-
coerência e significado através da construção jeto terapêutico que vai definir para os usuários
de uma “identidade de dependente químico” a de drogas que nelas se encontrem, em maior
eventos perturbatórios que envolvem o uso de ou menor medida, com maior ou menor su-
drogas. Esse processo se dá através da vincula- cesso, a reorganização de suas experiências, e a
ção de um “projeto de identidade” engendrado inclinação à metamorfose a partir de vivências
em um sistema complexo de sociabilidade, en- institucionais.
volvendo uma interação com os outros signifi- Essas vivências se desdobram a partir de
cativos e um sistema classificatório-acusatório. uma série de aspectos singulares. Dentre eles,
devemos mencionar a ênfase nos jogos de
Considerações finais identificação e legitimação dos sujeitos como
dependentes químicos que se revelam nas socia-
Como vimos, as instituições terapêuticas bilidades cotidianas. As representações institu-
que analisamos definem uma série de caracte- cionais articuladas às características específicas
rísticas comuns e algumas diferenças. Entre as que apresentam em conjunto com as sociabi-
aproximações, destaquei a presença de acen- lidades mencionadas engendram um jogo que
tuada dimensão espiritual, a importância das define o caráter das experiências vivenciadas
figuras transitivas – líderes institucionais que nos contextos institucionais como um processo
haviam controlado suas próprias dependências de construção e afirmação, ao que parece, de
químicas e que, por isso, traziam consigo os uma identidade de dependente químico.
signos da doença e da cura, condição que legi-
timava seus papéis de curadores – e, por fim,
a presença de um léxico específico que circula- Therapeutic Entanglement: a Study on the
va nas e entre as instituições, constituindo-se !"#$%&'()(*()%&+%,+(-"+./"&()(0+%,+12*3+4'"2'
como categorias centrais que organizavam as
experiências dos sujeitos. No que concerne aos abstract This paper discusses the experiences
distanciamentos, encontramos diferenças nas of drug user in the following institutions located in
práticas de cura, mas que, como concepção, the metropolian area of Curitiba,, in the state of Pa-
circunscreviam todas à categoria que nomeei raná: the Santo Daime church Céu da Nova Vida,
de “performance de atualização da cura”, uma the therapeutic community Água da Vida, and an
necessidade de mantê-la através de práticas que Alcoholics Anonymous group. Based on ethnogra-
determinavam uma abordagem de mundo e phic experience, I point out that these sites involve
uma manipulação do cotidiano diferenciadas a series of characteristics,, representations, and socia-
de acordo com a instituição, mas que eram bilities that set in course the construction of a ‘che-
igualmente pautadas pelo afastamento das dro- mical dependent identity’ and, through it, the more
gas que o sujeito deveria sustentar. or less successful ‘internalization of a habitus’. As a
Portanto, aproximações e distanciamentos result of this process, I suggest that these experien-
entre as instituições terapêuticas demonstram ces tend to metamorphosis, defining ways of being
o entrecruzamento com o modelo hegemônico in the world made possible by the engagement of
the subjects with what are understood as therapeu- exemplo, fala do termo “controle escalonado” utiliza-
tic projects. do por Goffman, ao invés do termo “dominação”. O
primeiro termo envolve a demonstração de um fato
keywords Drugs. Therapeutics. Experience.
observável, enquanto o segundo inclui um julgamen-
Identity. Metamorphosis.
to moral do arranjo de ordenamento. Becker (2004)
utiliza sua própria experiência de pesquisa para fazer
essas reflexões sobre a linguagem: “se alguém aceita
Notas as categorizações convencionais incorporadas à lin-
guagem comum e ao mundo ordinário pelo qual as
1. Este artigo é um desdobramento de discussões instituições e práticas são organizadas no pensamento
levantadas em minha dissertação de mestrado convencional, se impensadamente se refere a alguém
(Schneider, 2009). que bebe muito álcool como alcoolista, se trata as
2. Modernamente o uso e drogas é assediado por uma pessoas que consomem maconha como aditos, então
intensa disputa emergida a partir de duas orientações essa pessoa aceita as ideias que tais palavras, mais, ou
antagônicas que visam regrar este fenômeno: de um menos, a obrigam a aceitar, ideias incorporadas às
lado, o discurso absenteísta: agentes sociais que defen- próprias palavras e às perspectivas a elas associadas.
dem a proibição e a repressão absolutas ao consumo; Se alguém que fuma maconha é um ‘adito’, então essa
de outro, o discurso reducionista: agentes sociais que pessoa fumará incontrolavelmente, será um ‘escravo’
argumentam a favor de políticas de redução de danos dessa prática, vai participar de crimes para pagar sua
que visam favorecer práticas que regulem de alguma droga e assim por diante. Se alguém utilizar estas pa-
forma o consumo de drogas, tendência essa, portanto, lavras para definir a classe de fenômenos que está es-
que se distancia da proibição e da abstinência. tudando [...] não encontrará regularidades empíricas
3. “Modalidade de tratamento” para usuários de drogas sobre as quais fazer generalizações científicas”. (Op.
é uma categoria nativa. Refere-se aos distintos forma- cit., p. 109).
tos e programas de tratamento que uma instituição 8. Embora, como vimos na discussão da última seção, a
pode ter para pôr em curso o “tratamento” e/ou a “re- noção de dependência química conceba uma doença
cuperação”. incurável, a noção de cura que descrevo deve ser encara-
4. De acordo com Groisman (2009), as vertentes mais da com flexibilidade, no sentido de que ela define uma
conhecidas e reconhecidas classificadas provisoria- resolução de um problema, uma transmutação da expe-
mente como religiões ayahuasqueiras brasileiras são as riência através da sua ressignificação possibilitada pela
seguintes: (1) grupos cujos ramos mais visíveis são o vivência nos projetos terapêuticos e, assim, não deve ser
“Alto Santo” e Santo Daime/CEFLURIS; (2) a Bar- confundida com uma noção de cura que implique uma
quinha e (3) a Terceira vertente, organizada em torno eliminação absoluta de sintomas e da própria doença.
da entidade nomeada Centro Beneficente Espírita 9. Essa expressão segue uma tendência que procura di-
“União do Vegetal”. Cada qual de suas vertentes tem recionar um olhar para o caráter sacramental do uso
seus respectivos fundadores, embora as vertentes 1 e 2 ritual da ayahuasca, e dessa forma é uma reação à in-
compartilhem da fundação realizada por Irineu Serra, clusão desse uso na categoria do que o senso comum
mas também se diferem, pois a Barquinha também entende por drogas, ou seja, substâncias a serem pros-
tem como fundador Daniel Pereira dos Santos. A mais critas e criminalizadas (Groisman, 2009).
comum e visível familiaridade entre essas vertentes se 10. Refiro-me ao conceito de habitus de Pierre Bourdieu,
refere à utilização da ayahuasca em contexto ritual-re- gradativamente elaborado e reelaborado no decurso
ligioso, cujas atribuições são propriedades terapêuticas intelectual do autor, além de ter uma longa tradição.
e divinatórias. Assim, o conceito foi inovado, abarcando dimensões
5. Padrinho é um termo nativo que se refere ao dirigente tais como a individualidade, a subjetividade, a estru-
e ao coordenador principal dos rituais. tura, o passado instalado como disposição duradoura.
6. Os nomes dos interlocutores foram substituídos por Esse conceito pode ser entendido como um instru-
nomes fictícios. mento analítico que ajuda a pensar os elementos da
7. Becker (2004) realiza essa discussão refletindo sobre cultura e a mediação com a subjetividade de sujeitos.
a “linguagem neutra” utilizada por Erving Goffman Mais que um conceito, essa perspectiva propõe uma
para se referir às “instituições totais”. Como um ruptura com velhas dicotomias tais como mente/cor-
po, indivíduo/sociedade, ou seja, pensar os fenôme- ser) baseadas na imagem que eles “um pouco criam”
nos sem a exclusão de uma ou outra parte. O habitus, sobre os outros e sobre mim.
então, “é um conhecimento adquirido e também um 15. Cabe apontar que a temática da “acusação” não é nova
haver, um capital, [...] indica a disposição incorpora- na antropologia e evidenciar alguns aspectos impor-
da, quase postural” (Bourdieu, 1989, p. 61). tantes para nos ajudar a compreender esses processos
11. Refiro-me aos modos indexical e referencial da fala sociais. Retomando sinteticamente apenas os autores
(Briggs, 1999). O modo indexical interpreta a fala tornados clássicos da disciplina que se debruçaram so-
pronunciada em sua relação com a situação con- bre o tema: o pioneiro Evans-Pritchard (2005), Mary
textual em que ela é expressa. O referencial seria a Douglas (1999) e Max Gluckman (1970), todos verifi-
consideração exclusiva do conteúdo da fala em sua caram e procuraram compreender as evidências desses
concepção não relacional e destacada da situação em processos entre grupos estudados. A partir da leitura
que é proferida. das descrições dos autores sobre as relações sociais e as
12. Utilizo esta menção à sinalização de forma análoga à “crenças”, encaramos as acusações, do que quer que se-
noção de “keing” (Langdon, 1996). Esta noção é uma jam, como acusações morais – acusações que fundam,
qualidade dos eventos performáticos: “são momentos em um amplo sentido, as relações de desconfiança
de ruptura do fluxo normal de comunicação, momen- e, assim, a reflexão e a análise sobre monitoramento
tos que são sinalizados para estabelecer o evento da e sobre cuidado. Portanto, a temática da acusação se
performance, para chamar a atenção dos participantes configura como um recurso interessante para o estudo
para a performance” (Op. cit., p. 27). Na sinalização de relações sociais, especialmente nas relações morais,
realizada por Jaime, não se trata propriamente do que nas relações de controle, nas relações de conflito.
podemos considerar como um ato performático nessa
perspectiva; contudo, utilizo-me da analogia para ex-
pressar principalmente o que se tornou significativo
nessa discussão: a interrupção de uma conversa para
Referências bibliográficas
introduzir categorias e referências nativas.
13. Na Cravi havia uma diferença entre os adultos e os BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles. Poetics and Per-
adolescentes, marcada pela delimitação de faixa etária. formance as Critical Perspectives on Language and
Adolescentes eram as pessoas até 18 anos, enquanto Social Life. Annual Review of Anthropology, Palo Alto,
adultos eram pessoas de 18 anos para cima. Cada gru- v. 19, p. 58-88, 1990.
po tinha atividades próprias, mas também comuns, e BECKER, Howard. As Políticas da Apresentação: Go-
se instalavam em dormitórios diferenciados. ffman e as Instituições Totais. In: GASTALDO, E.
14. Utilizo esta expressão como uma analogia à referência (Org.). Erving Goffman. Desbravador do Cotidiano.
de Crapanzano (1991) ao diálogo oculto. Com esta Porto Alegre: Tomo Editoria, 2004. p. 101-110.
expressão, o autor se refere aos diálogos próprios ao BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.
etnógrafo na apresentação da experiência de campo BRIGGS, Charles. Learning How to Ask. A Sociolinguis-
vivida. Sinteticamente, estes são “diálogos que um tic Appraisal of the Role of the Interview in Social
participante do diálogo primário tem com um inter- Science Research. Cambridge: University Press, 1999.
locutor que não está presente nesse diálogo primário” CAMPOS, Edemilson Antunes de. Contágio, doença e
(Op. cit., p. 78). De forma similar, utilizo esta ideia evitação em uma associação de ex-bebedores: o caso
para me referir ao diálogo que o sujeito tem comigo – dos Alcoólicos Anônimos. Revista de Antropologia, São
o diálogo primário – a respeito de um outro, “real” ou Paulo, v. 48, n. 1, p. 315-361, 2005.
“imaginário”, não presente nesse evento de interlocu- CAPRARA, Andréa. Médico Ferido: Omolu nos Labirin-
ção. Continuando a analogia com as ideias do autor, tos da Doença. In: ALVES, P. C. B; RABELO, M. C.
pontuo uma última colocação: “há que lembrar que (Orgs.). Antropologia da Saúde. Traçando Identidades
qualquer que seja a resistência daqueles com quem e Explorando Fronteiras. Rio de Janeiro: Relume-Du-
conversamos, eles sempre serão um pouco nossa cria- mará, 1998. p.123-138.
ção, assim como nós somos a deles” (Op. cit., p. 79). CARDOSO, Vânia Zikán. Narrar o mundo: estórias do
Com esta pontuação desejo chamar a atenção para o povo da rua e a narração do imprevisível. In: Mana,
fato de que, mesmo óbvio, as “falas sobre os outros” Rio de Janeiro, v. 13, n.2, p. 317-345, 2007.
que os interlocutores realizam comigo são (ou podem CARNEIRO, Henrique. Transformações do Significado
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Recebido em 04/03/2010
Aceito para publicação em 20/09/2010