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Coordenação: Prof. Dr. Dinael Marin
Produção: ZEROCRIATIVA
Impressão: Gráfica Bandeirantes
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Conselho Editorial da Junqueira&Marin Editores:

Profa. Dra. Alda Junqueira Marin


Prof. Dr. Antonio Flavio Barbosa Moreira
Profa. Dra. Dirce Charara Monteiro
Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno
Profa. Dra. Luciana Maria Giovanni
Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio
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Prof. Dr. Odair Sass
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Profa. Dra. Suely Amaral Mello
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M355
2.ed.

Marx, Gramsci e Vigotski : aproximações / organizadores Sueli Guadelupe de


Lima Mendonça, Vandeí Pinto da Silva, Stela Miller. - 2.ed. - Araraquara, SP :
Junqueira&Marin, 2012.
492p. : 21 cm

Conferências e palestras proferidas em jornadas do Núcleo de Ensino da


Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86305-98-6

1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 3. Vigotsky, L. S. (Lev


Semenovich), 1896-1934. 4. Educação - Filosofia. 5. Educação - Aspectos sociais. I.
Mendonça, Sueli Guadelupe de Lima. II. Silva, Vandeí Pinto da. III. Miller, Stela.
I. Título.

12-2001. CDD: 370.1


CDU: 37(01)

05.04.12 12.04.12 034520


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DIREITOS RESERVADOS

Junqueira&Marin Editores
J.M. Editora e Comercial Ltda.
Rua Voluntários da Pátria, 3238
Fone/Fax: 16 - 3336-3671
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Esta edição recebeu apoio institucional.
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Organizadores/Autores.
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Proibida a reprodução total ou parcial desta edição, por qualquer meio ou forma, em língua
portuguesa ou qualquer outro idioma, sem a prévia e expressa autorização da Editora.
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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
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APRESENTAÇÃO

Sueli Guadelupe de Lima Mendonça


Vandeí Pinto da Silva
Stela Miller

Os textos desta coletânea são artigos referentes


a conferências e palestras proferidas durante três jornadas
do Núcleo de Ensino da Faculdade de Filosofia e Ciências
— UNESP — Campus de Marília, a saber, a IV Jornada,
realizada de 09 a 11 de agosto de 2005, com o tema “Releitura
de Marx para a educação atual”, a V Jornada, realizada de 15 a
17 de agosto de 2006, com o tema “Escola (d)e Gramsci” e a
VI Jornada, realizada de 14 a 16 de agosto de 2007, com o
tema “Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações”, que empresta
o título para este livro.
Esses três eventos resultaram de um trabalho
coletivo de discussão e organização realizado pelo Grupo
de Pesquisa “Implicações pedagógicas da teoria histórico-
cultural” e pelo Núcleo de Ensino da Faculdade de Filosofia
e Ciências.
Em jornadas anteriores, foram se evidenciando
as bases marxistas dos fundamentos epistemológicos da
Teoria Histórico-Cultural e, ao mesmo tempo, explicitando
a necessidade de recorrer a autores que discutissem a
educação escolar e a cultura na perspectiva do marxismo.
No Brasil, há diferentes leituras da obra de Gramsci e da
Teoria Histórico-Cultural, muitas delas distanciando-se da
fundamentação marxista. De uma perspectiva eclética, dentre
junqueira&marin editores 7
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

outras formulações inconsistentes, Gramsci é tido como


“escolanovista” e Vigotski como “sócio-interacionista”.
Desconsiderando-se que a escola nova tem suas bases
no pragmatismo de John Dewey e que Piaget concebia a
interação com o meio de uma forma naturalizada e não como
um ato histórico, o vínculo radical de Gramsci e Vigotski
com o materialismo histórico dialético, ou seja, com Marx,
é ignorado.
Recuperar os fundamentos marxistas das
concepções de Gramsci e da teoria Histórico-Cultural
pressupõe estar aberto ao diálogo com outras teorias, tal
como fizeram Gramsci, Vigotski e o próprio Marx. O que
aproxima esses autores é o fato de tomarem o materialismo
histórico dialético como centro de suas análises.
A contribuição inédita do presente livro reside na
junção de Marx, Gramsci e Vigotski, costumeiramente tidos
como independentes entre si. O cenário acadêmico buscou
camuflar ou se mostrou incapaz de encontrar o fio condutor
das valiosas contribuições teóricas desses autores. Assim,
foram negados seus princípios fundamentais — a necessidade
de transformação e superação da sociedade capitalista e a luta
pelo socialismo — que se diluíram em visões fragmentadas
e imediatistas, comprometendo o desenvolvimento da
trajetória marxista em sua essência, já que Gramsci e Vigotski
dão continuidade à produção teórico-prática de Marx. Em
momentos históricos diferenciados, os três autores fizeram
da teoria um instrumento de reflexão e ação revolucionárias
visando ao socialismo.
Marx, no contexto das grandes transformações
do século XIX, criou sua teoria fundante, o materialismo
histórico dialético, para analisar e transformar o mundo, tal
qual expressa a XI Tese sobre Feurbach: “Os filósofos se
limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que
8
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 1977, p. 14).


Aliada à ideia de transformação do mundo, a problemática da
educação também teve seu espaço nas formulações de Marx
que apresentou, naquele momento histórico, uma questão
central que até hoje se mantém válida: a formação omnilateral
do homem. Por meio dela, questiona o determinismo do
processo de produção material e da consciência, e defende um
processo que opõe dialeticamente teoria e prática, educação e
trabalho, e cuja destinação seja a de preparar o homem para
transformar as circunstâncias nas quais vive, transformando-
se também ele nesse processo.

A doutrina materialista sobre a alteração das


circunstâncias e da educação esquece que as
circunstâncias são alteradas pelos homens e que o
próprio educador deve ser educado. [...]
A coincidência da modificação das circunstâncias
com a atividade humana ou alteração de si
próprio só pode ser apreendida e compreendida
racionalmente como práxis revolucionária.
(MARX; ENGELS, 1977, p. 12)

Gramsci — em meio à possibilidade de revolução


socialista na Europa, numa franca ofensiva político-
conservadora do capital, materializada no fascismo —
produziu, no cárcere, sua reflexão tendo como pilares centrais
a cultura, o papel dos intelectuais e a análise da política.
No debate presente nesta publicação, o enfoque
acerca do papel da escola, da cultura e do intelectual na
sociedade contemporânea aponta a importância de uma
reflexão mais cuidadosa sobre as consequências da ausência
de um projeto político claramente definido em favor das
classes subalternas, que lhes dê a condição material para se
9
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

apropriarem de conhecimentos vitais à constituição de sua


subjetividade.

A elaboração unitária de uma consciência coletiva


exige condições e iniciativas múltiplas [...] O mesmo
raio de luz passa por prismas diversos e produz
diferentes refrações luminosas. [...] Encontrar
a identidade real sob a aparente diferenciação e
contradição e encontrar a diversidade substancial
sob a aparente identidade, essa é a qualidade
essencial do crítico das idéias e do historiador do
desenvolvimento social. (GRAMSCI apud DEL
ROIO, 2005, p. 12)

Elaborar um projeto estratégico com vistas à


emancipação das classes subalternas implica pensar qual a
contribuição da escola na formação de intelectuais críticos,
que integrem, na prática, o processo de transformação social.
Tal objetivo exige uma nova concepção de intelectual que
resulte da superação de processos formativos fragmentários
e elitistas, bem como incorpore a nova dimensão da
subjetividade humana, possibilitando às classes subalternas
a condição de serem dirigentes.

O modo de ser do novo intelectual não pode


mais consistir na eloqüência, motor exterior e
momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa
inserção ativa na vida prática, como construtor,
organizador, “persuasor permanentemente”, já
que não apenas orador puro — mas superior ao
espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho,
chega à técnica-ciência e à concepção humanista
histórica, sem a qual permanece “especialista” e
10
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

não se torna “dirigente” (especialista + político).


(GRAMSCI, 2004, p. 53)

Vigotski, na construção objetiva do socialismo


na União Soviética, dedicou-se a pensar e a trabalhar na
formação do novo homem, isto é, de uma nova perspectiva
de formação da subjetividade. Suas investigações, na área da
Psicologia, denunciam a fragilidade das tendências idealistas
e deterministas e enfatizam a importância da história e do
meio cultural no processo de formação humana.

Ser donos da verdade sobre a pessoa e da própria pessoa


é impossível enquanto a humanidade não for dona da
verdade sobre a sociedade e da própria sociedade. Ao
contrário, na nova sociedade nossa ciência se encontrará
no centro da vida. O “salto do reino da necessidade ao
reino da liberdade” colocará inevitavelmente a questão
do domínio de nosso próprio ser, de subordiná-lo a nós
mesmos. (VIGOTSKI, 2004, p. 417)

Quanto à base marxista dos trabalhos de Vigotski,


Iaroshevski e Gurguenidze (1997) declaram:

Vyg otski dominou, como nenhum dos


psicólogos soviéticos de sua época, os princípios
metodológicos do marxismo em sua aplicação
aos problemas de uma das ciências concretas. A
psicologia — assinala — requer seu “O Capital”.
Seu objetivo não consiste em acumular ilustrações
psicológicas ao redor de conhecidos princípios
da dialética materialista, mas em aplicar esses
princípios como instrumentos que permitam
transformar, a partir de dentro, o processo de
11
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

investigação, descobrir na realidade psíquica


umas facetas ante as quais são impotentes outros
procedimentos de obtenção e organização
d o s c o n h e c i m e n t o s. ( I A RO S H E V S K I ;
GURGUENIDZE, 1997, p. 451)

Para Vigotski, o marxismo expressava a verdade


acerca da compreensão da sociedade e era, no seu entender,
a única expressão do pensamento filosófico universal capaz
de fornecer as bases necessárias para pensar novos rumos
para uma nova psicologia.
Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações foi,
então, pensado como um tema e um momento que
julgamos adequados para pôr em evidência a produção
científica desses autores e buscar, por meio dos debates,
compreender e aprofundar seus elos de interação,
proporcionando ferramentas teórico-práticas capazes de
subsidiar aqueles que lutam por uma nova sociedade e
uma nova escola.
Este livro está organizado em quatro partes.
A PRIMEIRA PARTE, “Contribuições de Marx, Gramsci e
Vigotski para a compreensão da realidade social”, focaliza estudos
teóricos acerca de Marx, Gramsci e Vigostki que apresentam
um início de diálogo entre esses autores, tendo como
referência sua fundamentação teórica mais geral.
Edmundo Fernandes Dias, com o texto “Marx
e Gramsci: sua atualidade como educadores”, desvela a
mentalidade burguesa e suas formas de se manter no comando,
ao desqualificar os processos de luta das classes subalternas.
Contra a noção de igualdade abstrata, a inteligibilidade do
real requer a superação das aparências, a busca da unidade
na diversidade e a construção de um discurso crítico a partir
do método marxista. O processo educativo deve unificar
12
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

teoria e prática e intelectuais e trabalhadores na construção


de novas individualidades.
O texto “A mundialização capitalista e o
conceito gramsciano de revolução passiva”, de Marcos
Tadeu Del Roio, parte da questão da possibilidade de se
explicar o estágio atual do capitalismo por meio do conceito
de revolução passiva, elaborado por Gramsci nos Cadernos
do Cárcere. A resposta para esse problema pressupõe, no
entanto, um outro que é a discussão do próprio conceito de
revolução passiva e outros que lhe são correlatos. Por meio
de uma trajetória histórica analítica, o autor problematiza os
conceitos centrais gramscianos perpassando pelos principais
fatos históricos que constituíram a base da sociedade
contemporânea. Apenas feita uma atenta apreensão do
conceito é que se pode discutir a sua aplicabilidade para os
tempos atuais.
Newton Duarte em “A filosofia da práxis em
Gramsci e Vigotski” questiona a pertinência da expressão
“filosofia da práxis”. Percorrendo diferentes traduções e
significações dadas à expressão, Duarte advoga o uso da
expressão “filosofia da prática” como o mais adequado
para referir-se ao marxismo. Ressalta o marxismo como
materialismo histórico, distinguindo “filosofia da práxis”
de pragmatismo e teoria vigotskiana de interacionismo.
Discute consequências importantes para a educação escolar
decorrentes de interpretações indiferenciadas das teorias
pedagógicas.
Em “A práxis de Gramsci e a experiência de
Dewey”, Giovanni Semeraro traça um paralelo entre a
filosofia da práxis de Gramsci e o pragmatismo de Dewey,
analisando as diferenças conceituais que os situam em
campos opostos: o primeiro caminhando “na direção de uma
atividade teórico-política para construir a hegemonia das
13
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

classes subjugadas”, visando à superação da ordem existente,


e o segundo concentrando-se “sobre o desenvolvimento da
atividade inteligente dos indivíduos”, visando à validação do
pensamento liberal americano.
O texto “Marx, Gramsci e Vigotski:
aproximações?”, de Rosemary Dore, elege fundamentos
marxistas que aproximam Gramsci e Vigotski e aspectos
que os distanciam, tais como a concepção de materialismo
histórico dialético. Para Gramsci é no campo das ideologias
que os homens tomam consciência dos conflitos sociais. A
natureza humana é concebida como conjunto das relações
sociais. Os conflitos são superados no processo histórico.
Questiona o entendimento de cultural e social em Vigotski,
sendo apresentada a hipótese de resquícios de dualidade entre
suas concepções de materialismo histórico e dialético.
Em “Educação e escola no marxismo:
perspectivas” Vandeí Pinto da Silva discute possibilidades
reais dos educadores marxistas atuarem em vista da
transformação social. Concepções dogmáticas e idealistas
paralisam a atuação dos educadores marxistas. Advoga a
construção de uma pedagogia marxista referenciada na
formação omnilateral, capaz de unificar teoria e prática e
educação e trabalho. Se o trabalho é categoria central no
marxismo, mesmo nas condições de trabalho alienado pode
emergir o gérmen da transformação social.
Antonio Carlos Mazzeo no texto “Notas sobre
ser e existência” discute o trabalho como sociabilidade
humana. A dimensão teleológica do trabalho torna
possível o rompimento com a produção voltada para a
satisfação do meramente biológico, voltando-se esta para
a complexidade das necessidades humanas. Nas tensões
entre alienação e construção da sociabilidade pode emergir
o ápice da individualidade alienada ou um novo processo de
14
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

humanização, centrado na busca da essência genuinamente


humana, dilacerada pelo fetiche da mercadoria.
A SEGUNDA PARTE, “Educação e trabalho”,
contém análises sobre as políticas educacionais na perspectiva
marxista, trazendo elementos importantes para a reflexão.
No texto “Educação no capitalismo
dependente ou exclusão educacional?”, Roberto Leher
problematiza os fundamentos histórico-sociológicos para a
real universalização da educação na sociedade capitalista. Por
meio da discussão dos conceitos exclusão e inclusão, bem
como dos indicadores sociais e educacionais mais gerais,
em especial da juventude, o autor desnaturaliza o discurso
hegemônico que preconiza os problemas educacionais como
decorrência da gestão pedagógica. Ao mesmo tempo, explicita
a falsa polêmica exclusão/inclusão como expressão de saídas
políticas para problemas sociais ao demonstrar como essas
categorias compõem a lógica do capital com interfaces diretas
com a educação.
Neusa Maria Dal Ri e Candido Giraldez
Vieitez com o texto “Trabalho como princípio educativo
e práxis político-pedagógica” trazem a origem do debate
teórico trabalho como princípio educativo, tema controverso
presente na legislação educacional brasileira. Tal debate
iniciou-se com Marx e Engels no século XIX, perpassando
as experiências educacionais socialistas na União Soviética,
por meio de seus principais teóricos e militantes como Lênin,
Krupskaya, Pistrak, Makarenko, enriquecido com o aporte
de Gramsci, intelectual militante socialista contemporâneo
aos soviéticos. Essa trajetória propicia a apreensão da
realidade contemporânea sobre o mesmo tema, porém numa
conjuntura extremamente complexa do desenvolvimento
do capitalismo no século XXI, com suas contradições e
possibilidades de mudanças como a experiência educacional
15
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

do MST no Brasil, que se pauta no trabalho como princípio


educativo.
Em “Considerações sobre a (des)politização
do debate educacional brasileiro”, Eduardo Magrone
apresenta interessante discussão referente à despolitização
do debate sobre as políticas educacionais no Brasil. Partindo
do referencial teórico de Gramsci, trabalho como princípio
educativo, analisa o debate acerca do sentido e dos objetivos
do ensino médio na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) na década de 1990, bem como aponta os
limites da posição conteudística e técnica sobre o tema em
detrimento da compreensão das determinações políticas mais
amplas, a qual denomina de crítica radical à forma escolar.
A TERCEIRA PARTE, “Educação e cultura”,
recupera uma dimensão importante e pouco explorada na
perspectiva marxista ao trazer a produção da sensibilidade, da
arte, como elemento fundamental da subjetividade humana.
Regina Maria Michelotto, em seu texto
“Os intelectuais e a crítica da cultura”, discorre sobre
o referencial de Antonio Gramsci, “privilegiado para
pesquisadores que buscam utilizar o materialismo histórico
e dialético como fundamento de suas investigações”,
enfatizando “o seu aspecto metodológico, subsídio para a
formação dos intelectuais críticos, orgânicos à causa dos
dominados, de que a criação da nova sociedade necessita.”
Busca, desse modo, evidenciar as contribuições do autor para
pensar a atividade educativa.
O texto de Sueli Amaral Mello, “Cultura,
mediação e atividade”, discute esses três conceitos à luz da
Teoria Histórico-Cultural, considerando-os como “a tríade
de cuja dinâmica resulta o processo de humanização, ou
seja, o [...] processo de reprodução individual das qualidades
humanas nas novas gerações e em cada sujeito da sociedade
16
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

humana”. Em sua análise, destaca as implicações pedagógicas


decorrentes da apropriação de tais conceitos.
Fátima Cabral, em seu texto “Arte para pensar
a vida e educar os sentidos”, com base na teoria de Marx,
ressalta a natureza social da criação artística, “uma dimensão
essencial da vida em geral, uma dimensão do homem total [...]”,
um processo que resulta do trabalho humano e não da simples
intuição ou inspiração. Pedagogicamente, arte e cultura são
vistas como “vida pensada”.
Em “Estética musical contemporânea e
musicalidade brasileira”, a autora Consuelo de Paula
focaliza as formas de expressão popular que aparecem na
canção brasileira, falando a respeito de seu trabalho como
artista — cantora e compositora musical. Sob a forma de
um diálogo com o público, o texto explicita as influências da
cultura popular que marcam o seu fazer artístico e põe em
debate a produção musical ligada à cultura popular no seio
da indústria cultural brasileira atual.
A QUARTE PARTE, “Implicações para a formação
de professores”, encerra o livro com as reflexões acerca das
implicações pedagógicas dos estudos da Teoria Histórico-
Cultural e de suas bases teóricas para a formação profissional
docente.
Em seu texto “Educación en valores desde la
reflexión grupal y la redimensión del rol del educador”,
Ana Luisa Segarte Iznaga e Oksana Kraftchenko
Beoto consideram que “o grupo é o lugar de intermediação
da estrutura social e da subjetividade, [...] da gênese e
transformação da subjetividade, de onde, portanto, se
realiza a formação e o crescimento pessoal-social do ser
humano […]”. Nesse contexto, redimensionar o papel do
professor implica considerá-lo não mais como transmissor
de conhecimentos tão-somente, mas como aquele que dirige
17
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a atividade conjunta dos alunos, para que sejam tomadas


decisões coletivamente visando a um maior protagonismo
do aluno em sua formação pessoal e social.
Lígia Márcia Martins, em seu texto “Formação
de professores: desafios contemporâneos e alternativas
necessárias”, aponta para a “desvalorização e esvaziamento”
da função docente no presente momento histórico em que
“converte-se a educação em mercadoria e se desqualifica a
transmissão de conhecimentos pela via da negação de sua
existência objetiva”. Propõe um processo formador que
forneça tanto os conhecimentos teóricos, metodológicos
e técnicos, como aqueles relativos às condições histórico-
sociais em que se dá sua atuação profissional, com base em
três eixos temáticos: ser Gente (natureza histórico-cultural
do desenvolvimento humano), ser Professor (trabalho e
alienação) e ser Capaz (apropriação de conhecimentos para
a construção do pensamento teórico).
Stela Miller, em seu texto “Reflexões acerca da
proposta bakhtiniana para uma metodologia do estudo
da língua e implicações sobre a profissão docente”,
objetiva realizar algumas reflexões sobre a proposta feita
por Mikhail Bakhtin, em sua obra “Marxismo e filosofia da
linguagem”, para o estudo da língua, e, a partir daí, pensar
uma metodologia para o ensino da língua materna, bem como
trazer à discussão um modo de ser do educador compatível
com essa escolha metodológica.

Referências

DEL ROIO, M. Os prismas de Gramsci: a fórmula política da


frente única (1919-1926). São Paulo: Xamã, 2005.
18
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. 3. ed. Tradução de Carlos


Nelson Coutinho; co-edição, Luis Sérgio Henrique e Marcos
Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
v. 2.

IAROSHEVSKI, M.; GURGUENIDZE, G. Epílogo. 2. ed.


In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tradução de José María
Bravo. Madri: Visor, 1997. v. 1. p. 451-477.

MARX, K., ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de José


Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Grijalbo,
1977.

VIGOTSKI, L. S. Teoria e método em psicologia. 3. ed. Tradução


de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

19
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Marx e Gramsci:
sua atualidade como educadores

Edmundo Fernandes Dias

O tema da ‘verdade’ e da relação entre verdade


e política é um terreno crucial: é necessário
libertar-se seja da inércia niilista do relativismo e
do progressivo empobrecimento do pensamento,
seja da fascinação das sínteses totalizantes e das
conciliações definitivas. Enfrentar o tempo da
modernidade como tragédia das contradições
irresolúveis, como responsabilidade da decisão
que ‘separa’, produz conflito, seleciona interesses
e valores. O campo da pesquisa está definido por
esta tensão; a partir dela pode ser redefinida uma
identidade dos intelectuais que não os dissolva na
apologia do existente ou os constitua em ‘órgãos’
do processo econômico-social. (BARCELONA,
1994, p. 79)

1. Por que a direita quer matar Marx, aqui,


agora e sempre?

Um fantasma ronda permanentemente o mundo


burguês. É preciso matar Marx. A própria burguesia já afirmou,
repetidas vezes, não apenas a morte do revolucionário alemão,
junqueira&marin editores 23
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mas a vitória definitiva do capitalismo. Marx irritantemente


para ela permanece atual. E permanece porque apesar
dos discursos apologéticos burgueses o capitalismo não
resolveu, e nem poderá, sem se negar, as contradições que
levam este modo de produção e de vida a ser incompatível com
a imensa maioria das populações em escala planetária. O
capitalismo para existir necessita destruir, sem cessar, culturas,
historicidades, modos de vida. Porque não consegue eliminar
seus opositores? Guevara questionado sobre seu radicalismo
respondeu que não era radical, a realidade é que era. E é essa
radicalidade — produzida pela tentativa capitalista de tornar
dispensável a imensa maioria do planeta — que permite —
exige, melhor dito — que povos e culturas, historicidades e
experiências de classe não apenas sobrevivam, mas entrem
em contradição e luta com seus dominantes.
Não podemos negar que, através da habilidosa
combinação de pós-modernidade e reestruturação capitalista,
exista hoje uma espécie de pensamento único que vem
se impondo, da academia aos governos passando pelos
meios de comunicação de massa. Para tanto a “adaptação”
transformista de certos tipos de “esquerdas” faz-se necessária.
Em uma linguagem pouco acadêmica isto pode ser chamado
de “síndrome do violinista”: segura-se com a “esquerda” e
toca-se com a direita. Precisamos dar exemplos? Eles vão do
senhor Luis Inácio a Tabaré Vasquez, de Massimo D´Alema
à Jospin, Felipe Gonzalez etc.
A aparência social-democrática é, como dizem
Marx e Gramsci, uma aparência necessária. Ela não apenas
faz parte do real, mas é um dos seus constituidores. Ainda
assim essa aparência, essa leitura “mítica” de um passado
classista, requer bases materiais. Por isso proclamam-se as
chamadas políticas públicas que deveriam ser corretamente
chamadas de políticas governamentais (DIAS, 2007a, p.
24
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

43-46). De públicas elas não têm nada, são a forma pela


qual os governos podem impor sua visão de mundo, seu
projeto de dominação. Isto atualiza o clássico: “decifra-me
ou te devoro”. Decifrar a estrutura da dominação significa
criar as condições de iniciar o processo de libertação. E, por
outro lado, nos coloca a tarefa de construir políticas públicas
socialistas que encaminhem as necessidades reais do conjunto
das classes subalternas e preparem a sua emancipação:
“acelerar o futuro” na linguagem gramsciana.
A política aparece como universalizadora e
uniformizadora da sociedade capitalista. Ao propor a
igualdade jurídica formal — a cidadania — como padrão
da atividade social e ao mostrar essa igualdade como algo
“natural”, escondem-se as cisões, fissuras, contradições e
lutas. Assim, cada indivíduo, sendo igual aos demais, acaba
por “transformar-se” em parceiro, a contradição e a luta
em harmonia. A luta de classes é, então, apresentada como
algo “demoníaco”, inventada pelos que querem destruir a
vida social. Basta examinarmos mais de perto a cena política
para ver o que é o “diálogo entre parceiros”: um diálogo
entre a guilhotina deles e o nosso pescoço. As ideologias
dos dominantes são sempre projetos, teorias, etc., nunca
ideologias; as dos antagonistas são ideologias “malditas”
e nunca projetos. Inversão altamente esclarecedora. O
embate de projetos é apresentado como um choque entre
a “verdade” (dos dominantes) e o “erro” (dos antagonistas)
ou mesmo como uma guerra entre o bem e o mal, quiçá,
um “choque de civilizações”1. Ao viver o modo burguês
esse tipo de “esquerda” torna-se ele próprio... burguês. A
cidadania de campo de luta passa a ser defendida como
construtora de consensos. É uma das formas privilegiadas
de subalternizar os subalternos que se pensam como iguais
aos seus dominantes.
25
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

2. Construir a inteligibilidade do real.Ciência


para que e para quem?

Entender como se constitui o real para além das


ideias-forças com que se pretende manietá-lo só é possível
pela análise dos movimentos das classes, das suas lutas, das
suas formas-projetos de construção de uma sociabilidade.
O real, para os marxistas, é a atualização permanente das
relações de força e das conjunturas no interior de uma
determinada formação social. É necessário ter sempre
presente a afirmação de Marx (em O Dezoito Brumário) segundo
a qual os homens fazem a história, mas a partir de condições
determinadas. O real é, assim, o produto das lutas de classe
que determinam os movimentos históricos. A história é,
portanto, um precioso laboratório para a construção do
novo. Não podemos, infelizmente, nos limites deste texto,
examinar elementos fundamentais desse processo: ONGs,
terceiro setor, economia solidária etc.
Toda formação social é um conjunto articulado
de estruturas contraditórias que é necessário conhecer. A
primeira delas (a mais abstrata) refere-se ao modo próprio
pelo qual as condições materiais de existência, as formas de
vida, se produzem e reproduzem. Na sociedade capitalista
a relação de produção (e sua correlata reprodução), produz
e reproduz as classes e seus antagonismos. O chamado
Capítulo Inédito de O Capital demonstra como essa totalidade
se expressa em uma contradição entre a apropriação privada
dos resultados do trabalho humano e a produção socializada
do mesmo.
A forma pela qual se dá a extração do sobre-
trabalho é decisiva na decifração do “mistério” da dominação,
das formas e das estruturas a partir das quais é possível
construir a inteligibilidade do real. A Teoria do Valor, ao
26
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

demonstrar a unidade indissolúvel exploração-opressão,


marca a forma mais geral do antagonismo das classes.
As classes são criadoras e criaturas dessas relações.
O antagonismo não é uma invenção criada por seres que
buscam introduzir conflitos no real, como afirmam os
capitalistas, mas, é produzido pelo desenvolvimento desse
mesmo modo de produção; não é figura de uma ficção
perversa e pervertida dos contrários à ordem, mas, elemento
central dessa mesma ordem. O simples ato de produzir
marca não apenas as mercadorias produzidas, mas, a própria
existência das classes (figuras centrais da sociabilidade da
Ordem do Capital). Elas existem, apesar de serem negadas
no plano jurídico-estatal vigente e se consubstanciam em
relações sociais.
As relações sociais enunciadas acima determinam
as estruturas e o conjunto de relações que a conformam.
Falamos aqui das formas contraditórias pelas quais as
classes se apropriam dessas mercadorias e das possibilidades
materiais: as relações sociais de consumo. Estas determinam
formas particulares de inserção das classes na totalidade
social; tanto pelo consumo de bens supérfluos, quanto
daqueles extremamente necessários à vida das pessoas, como
saúde, educação, informação.
As contradições classistas têm aqui um momento
e uma forma particular de existência. Se no plano da
produção material não há espaço para a igualdade (mesmo
que puramente formal), aqui, no reino da circulação, esse
fetiche da igualdade ganha uma principalidade na vida das
pessoas. O que é vulgarmente entendido como política (aí
compreendidos os aparelhos privados de hegemonia) ancora-
se em um cotidiano e usufrui abundantemente do fetiche
da igualdade de possibilidades entre todos os indivíduos de
uma sociedade determinada. Esse conjunto articulado de
27
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

relações sociais e suas contradições se materializam naquilo


que Gramsci e Trotsky chamam de modo de vida, forma pela
qual essa totalidade se transforma em cotidiano, locus especial
da luta de classes.
Aqui vale uma clarificação. A luta de classes não é,
como muitos fantasiam, o encontro de dois exércitos classistas
(e seus aliados) em uma planície, representação mítica de uma
totalidade abstrata, onde ocorreria o encontro fatal. Essa
luta, pelo contrário, se exerce clandestinamente, para a maioria
da população: é a forma pela qual os hábitos, os saberes, os
costumes dos dominantes assumem o caráter de horizonte
ideológico. É no cotidiano, no aqui e agora, que radica o espaço
em que as formas de vida dos dominantes são passadas para
os dominados como as únicas formas de pensar, agir, sentir,
elaborar conhecimentos e estratégias. O domínio de uma classe
(e de seu bloco de poder) determina o que pensar, o que estudar
e até mesmo como amar ou cultuar os mortos.
Exemplar disso é a ação do mais brutal aparelho
de hegemonia e poderoso construtor de subordinação:
a televisão. Pensemos o caso das novelas. Lá, em quase
todos os capítulos se processa a aparente crítica das formas
dominantes. Os burgueses são apresentados, normalmente,
como oportunistas, violadores dos valores morais (sempre
se busca enganar o outro, da relação erótica às formas de
apropriação da riqueza). Esta é a cena da novela. Contudo, é o
fundo da cena que fica: os valores burgueses (da conquista dos
bens materiais à propaganda do consumo). E de um consumo
que à massa da população é tendencialmente interditado.
Há uma dialética entre a necessidade e o desejo,
na qual se realçam os desejos e se recalcam as necessidades.
Os dominados compartem um horizonte subjetivo sem
terem a menor chance de vivê-lo no cotidiano: quadros vitais
aparentemente inconciliáveis, mas, soldados pela ideologia da
28
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

igualdade e do mérito, onde tudo é possível. Isto é ocultado


e não se resolve em conflito aberto graças a um discurso
universal (que vai do “sempre foi assim” até o “tem que
ser assim”), a partir do qual o que é violência simbólica e
física vira padrão eterno e universal de comportamento que
busca transformar conflito em harmonia: não haveria mais
conflitos, mas... parcerias. Chamamos a isso conformação
de um modo de vida, predispondo à servidão voluntária das
classes trabalhadoras. Isto é fatal? Não, não é. Romper com
essa estrutura orgástico-consumista exige, contudo, uma
enorme capacidade crítica e um projeto de nova sociabilidade.
O mesmo se poderia dizer do aparato escolar e da
vida fabril. Em todos esses âmbitos constrói-se não apenas uma
sociabilidade, mas, ao mesmo tempo, captura-se a subjetividade
do antagonista. Esse é o primeiro passo para a tentativa de
construção da hegemonia dos dominantes. A captura da
subjetividade do antagonista se revela como impedimento da
construção do saber dos oprimidos, dos dominados. Vemos
assim que economia e política, no pensamento gramsciano,
são indissolúveis, enquanto que para os liberais, os capitalistas,
esta cisão é uma necessidade histórica.
A investigação da realidade supõe construir a
“unidade na diversidade”. Vale dizer: ir além das aparências. Uma
das facetas da construção da dominação, como vimos acima, é
nada mais nada menos que a transformação do projeto político
vigente em horizonte ideológico onde se movem as classes em
confronto. Se o atual é o único verdadeiro fica vedada a própria
possibilidade de superação da realidade classista, torna-se
impossível pensar a emancipação dos trabalhadores.
Raul Mordenti2 coloca, a nosso juízo, a questão
essencial: pode o subalterno falar? (MORDENTI, 2007). O
debate que ele propõe, a partir de Gramsci, é exatamente
o da supressão da fala, das historicidades, das experiências,
29
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

das classes subalternas. Quando, por exemplo, alguém fala


em “dar voz a quem não tem voz” não apenas nega que
os subalternos possam e devam se expressar enquanto
sujeitos, com identidades próprias, mas vai mais além: dá a
sua voz. Isto é, substitui a possibilidade dos subalternos se
constituírem como sujeitos históricos de emancipação, nega-
lhes o direito à revolução.
A matriz da dominação capitalista está, no plano
teórico, explicitada na “invenção da tradição” (DIAS apud
LOMBARDI; SANFELICE, 2007b). Os teóricos liberais
(CHÂTELET, 1962) transformaram em verdades universais
e imutáveis o que era historicamente determinado3. Os
procedimentos políticos e econômicos da prática mercantil-
burguesa foram plasmados como natureza humana, como
algo inerente ao ser humano. Nesse processo apagaram-se as
diferenças, obviamente. No plano mais visível — e repetido
ad nausean — afirma-se que “todos os homens são iguais
perante a lei”. Marx, em 1843-1844, demonstrou nos Anais
Franco-Alemães a falsidade dessa assertiva (DIAS, 2007c).
Para ele a grande questão era a distinção entre o bourgeois e
o citoyen. Nessa separação “analítica” marcava-se a diferença
entre o bourgeois como aquele que exercia o comando da
vida social e o citoyen como aquele que estava submetido à
lei do... bourgeois.
A reivindicação moderna da cidadania, apesar do
que muitos pensam, é a forma de subordinação “sem violência”
da maioria à minoria. A igualdade abstrata proclamada
serve, serviu e servirá, para ocultar a desigualdade concreta.
Todo esse processo de construção da “igualdade” revela-se
produto de uma abstração formal, sem historicidades, sem
determinações. A desigualdade real expressa, contudo, uma
negação dessa opressão classista apresentada como “natureza
humana” e como “regra do jogo”. A ideia de “natureza
30
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

humana” é decisiva. Por ela calam-se as historicidades reais,


concretas; cala-se a voz do subalterno.
Construir a inteligibilidade do processo significa
decifrar a esfinge classista. Como admitir em sã consciência
a ideia da harmonia social e da igualdade formal? Podemos
nos comparar (os não proprietários dos instrumentos básicos
da produção) com os que dominam nossa sociedade. Pode o
“Zé Ninguém” (Reich) ser comparável aos multibilionários
associados ao capital financeiro mundializado? Seguramente
se fizermos essa pergunta veremos um sorriso irônico e
amargo no rosto do oprimido. Mas a repetição constante
dessa afirmação faz com que as pessoas acabem aceitando
esse “modo de pensar” como o seu modo. Sabemos o quanto
se gasta nos meios de comunicação de massa e nos projetos
de propaganda para vender, por exemplo, a imagem segundo
a qual o presidente da república “é um brasileiro igualzinho
a você”.
Marx (1959) afirmou que o capitalismo é a
contradição em processo e que o segredo da dominação está na forma
pela qual se extrai o sobre valor. Ora, é exatamente sobre esses
dois pontos que os capitalistas mais atuam ao formular suas
ideologias, que não são como querem tantos um “modo de
fazer a cabeça” dos dominados, mas uma arma poderosíssima
de captura da subjetividade antagonista, de conformação da
disciplina/obediência. Vale a pena ver o vídeo produzido
por Noan Chomski (Making Consense) para termos clareza da
estratégia de “conquista de corações e mentes”, pela qual os
dominantes “dão sua voz a quem não tem voz”.
A captura da subjetividade antagonista é,
pois, elemento decisivo para o exercício da dominação. A
linguagem é fundamental. É nela e por ela que se passa
das grandes elaborações ideológicas ao saber das massas.
Mordenti explicita:
31
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O polo opositivo do subalterno é evidentemente


o poder (gramscianamente: o nó domínio/
hegemonia), e como ´subalterno´ é ausência de
palavra, assim ´poder´ é também (não quero dizer
acima de tudo) poder de linguagem e de palavra, o
poder hegemônico de articular um discurso auto-
legitimante, de instituir (em vantagem própria,
exclusiva) um sentido, de dar sentido às coisas (ou
melhor: de impô-lo) e de impor tal narrativa política
como ´senso comum´ das massas. E Gramsci nos
ensina que a luta hegemônica entre as classes
se desenvolve precisamente em torno ao ´senso
comum´: é hegemônico quem encontra, controla,
gere o sentido comum; por isto tal narrativa
política compartilhada é o lugar da hegemonia,
um órgão dela, uma articulação decisiva dela. [...]
É chegado o momento no qual os revolucionários
assumam o problema da construção do sentido
como o mais decisivo dos problemas. Senão nos
termos da produção de uma narrativa oposta e
especular em relação à narrativa do poder (este é
o grande, complicado tema do ´contra-poder´, de
que não é possível discutir aqui e agora) ao menos
nos termos da capacidade de criticar a narrativa
do poder com a finalidade de subtrair-se a ela.
(MORDENTI, 2007)

Construção do sentido, construção da voz e do


projeto. Ou como afirmamos em outra ocasião: “desafinar o
coro dos contentes, afinar o coro dos descontentes” (DIAS,
1999, p. 9).
Tenho, contudo, uma diferença com a formulação
de Mordenti sobre o contra-poder, que encontramos em
32
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

vários teóricos sob a forma da contra-hegemonia. Não se trata,


a meu ver, de um contra, mas de um novo. E não nos cobrem que
isto é uma questão de linguagem pouco importante na ação
prática, no agir político. A questão aqui em exame refere-se
ao fato de que ao falar em “contra” estamos respondendo
às questões colocadas pelo outro4. Quando se responde às
questões colocadas pelo outro corre-se o risco de dissolver-
se o discurso crítico.
É preciso não confundir “discurso crítico” com
“discurso polêmico”. O marxismo recusa-se a ser um discurso
polêmico porque se quer crítico, recusa a polêmica, porque
ao responder, ponto a ponto, as ponderações do pensamento
que a nega, perderia sua identidade, concedendo ao outro a
centralidade da questão, se descaracteriza e não constrói seu
próprio campo submetendo seus intelectuais à pulverização
das ideias e conceitos. Acabaria, assim, prisioneiro do discurso
do adversário. Um belo exemplo disso é o AntiDühring.
Aqui Engels dissolveu a estruturação do pensamento
marxiano ao submeter-se às questões do adversário. Perdeu
a inteligibilidade do real sem conseguir convencer/derrotar
o pensamento do adversário.
É preciso reconhecer que quem determina
a pergunta, em grande medida determina o campo de
possibilidade das respostas. Esse embate hegemônico é
decisivo, pois ao aceitar a questão do outro pode perder-se
o horizonte estratégico. O marxismo não é apenas mais uma
interpretação do mundo. Quer ser a matriz de inteligibilidade
das práticas de transformação desse mundo. O discurso
crítico é radicalmente necessário, o discurso polêmico é,
normalmente, fonte de confusões ideológicas. Lembremos,
por fim, o tempo e a energia que se gastou para “rebater”
a celebremente falsa questão da perda da centralidade do
mundo do trabalho. Isto não impede, pelo contrário, que
33
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

se trabalhem as questões dos outros autores / críticos /


debatedores. Mas é a partir do método marxista que se deve
intervir no debate.
Nossa perspectiva está centrada na afirmação de
que quem determina as perguntas, determina o campo de
possibilidade das respostas. Dissolver-se no enfrentamento
das questões de outras racionalidades significa, de imediato,
impedir-se de pensar suas próprias práticas. Pensemos a
questão da chamada perda da centralidade do trabalho
como definidora da sociabilidade. Esta “constatação”, vista
como verdade, resume fragmentária e arbitrariamente o real
contraditório do processo de trabalho, além de ignorar a relação
processo de valorização/processo de produção. As aparências
da sociedade capitalista, entendidas aqui como necessárias,
respaldam a racionalidade dominante e dissolvem a totalidade:
a crise real do capital “aparece” como crise do trabalho. Suas
famosas sequelas, dessindicalização, precarização, diminuição
da classe trabalhadora, etc. aparecem como comprovação
empírica. O fetichismo da tecnologia substitui a perspectiva
de um sujeito revolucionário antagonista ao capital. A história
do trabalho aparece como história da técnica, vista agora
como a força produtiva por excelência.
Essa dupla articulação se defronta não apenas
com um real abstrato, mas, com as diversas e contraditórias
formas de pensá-lo a partir da práxis de transformação social.
Em Gramsci em Turim afirmamos:

Pensar o seu discurso5 na cena italiana é, portanto,


pensar as condições nas quais esse discurso é
produtor e produto. É, portanto, afirmar a dialética
da totalidade social. O discurso é produto da
totalidade, ao mesmo tempo que é uma forma de
apropriar-se dela. Apropriação que não é retilínea,
34
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

que destaca do universo ideológico dominante


elementos que a personificarão mais tarde como
discurso.
Mas o discurso é também produtor da cena.
Tendo sido produzido, o discurso entra no jogo
contraditório da realidade. A cena, contraditória
ela própria, expressa também as condições de
possibilidade de um discurso crítico do universo
ideológico que lhe é, ao mesmo tempo, anterior e
contemporâneo. Na dialética da cena e do discurso,
por transformações desiguais e combinadas,
esses dois elementos ganham cara nova. E o
discurso novo, crítico, criado pela intervenção dos
homens, como membros de uma classe, pode ser
uma nova forma de apropriação que permitirá a
transformação do próprio real.
[...] Significa afirmar que a articulação destes
termos tem um duplo caráter: se por um lado o
discurso faz parte da cena, está presente nela, por
outro, essa presença não é passiva, mas, pelo
contrário, pretende a transformação da cena. (DIAS,
2000, p. 15)

O marxismo não se contenta em ler o real, não se


limita à imediaticidade aparencial. Vai além e busca superar/
suprimir os limites das mais diversas formulações empiristas
e ou formalistas. Limites epistemológicos que impedem a
construção do conhecimento e sua colocação em prova.
Limites que buscam apenas relações formais, abstrações
universais desprovidas de historicidade. Nesse sentido,
podemos afirmar que o marxismo “conversa” com os demais
campos teórico-políticos, com as diferentes perspectivas
classistas, mas se constrói a partir da sua identidade, reafirma
35
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

sua natureza e se recusa a dissolver-se no campo das


demais teorias (entendidas como racionalidades classistas,
de corporações, etc.). Ele só pode ser um elemento de
transformação se der conta da questão colocada por aquelas
racionalidades e seus intelectuais6. Mas não o faz no sentido
do diálogo e sim da ruptura (CHÂTELET, 1989). Partimos,
portanto, do pressuposto de que a permanente atualidade do
marxismo se prende à sua ação teórico-prática, ao negar —
porque supera — as abstrações vazias.
Herdeiro da modernidade capitalista criadora de
novas formas de sociabilidade, o marxismo recusa-a na sua
forma de modernização, de atualização de formas antigas,
apresentadas como necessárias e únicas. Ele recorta as
questões colocadas pela prática, pelo real contraditório e as
pensa na sua lógica, que privilegia a totalidade como elemento
central de sua estruturação. Trabalha, assim, na análise do
projeto do outro, buscando sua compreensão, superação e
criação do novo campo teórico-discursivo. O Capital é a Crítica
da Economia Política, a construção das leis de movimento da
sociedade capitalista necessárias ao deciframento da esfinge
capitalista e dos mistérios das teorias adversárias. O Capital
é a crítica das formas de dominação burguesa e a chave da
sua superação.
Avesso a uma continuidade meta-histórica o
marxismo requer sua permanente autocrítica, vale dizer, seu
permanente debate com uma realidade mutável, passível de ser
compreendida. Ele é uma teoria imune à crítica e autocrítica?
Não. Ele necessita ser revisto, deve permanentemente
atualizar-se, mas nunca porque teria perdido sua capacidade
hermenêutica. Mais do que um conjunto de teorias prontas
e acabadas ele é um permanente processo de indagação do
real e de construção das categorias e das leis de movimento
das sociedades concretas que ele examina. É a construção
36
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da inteligibilidade dos processos sociais, históricos. Deve


colocar-se e recolocar-se as questões historicamente concretas
da luta de classes. E o faz a partir de sua concepção político-
epistemológica.
Voltemos à assertiva de Mordenti (2007) segundo
a qual é “chegado o momento no qual os revolucionários
assumam o problema da construção do sentido como o mais
decisivo dos problemas”. A tarefa que Marx nos propõe
e que Gramsci encaminhou foi exatamente essa. Por que
construir a inteligibilidade do real? Para transformá-lo. Nas
palavras de Châtelet:

Organizar a ação revolucionária, tal é a meta do


Capital, como é também a finalidade dessas Glosas
marginais, dos textos históricos de Marx, dos
combates no seio da AIT7, das pesquisas sobre a
história econômica. A crítica da economia política
define, pela primeira vez, o que pode ser o caminho
do que chamamos hoje ´as ciências sociais´: uma
crítica rigorosa, fundada sobre conhecimentos
controlados, de um saber constituído, que atinge
à crítica profunda da sociedade da qual esse saber
é produto e justificação, e à definição de um
programa de transformação radical, de inversão:
de revolução. (CHÂTELET, 1996, p. 74)

Marx não é um economista, não fez a análise do


modo de produção capitalista para conhecer a ordem do
Capital, mas para... destruí-la (conforme afirmara já nas Teses
sobre Feuerbach (a famosa e absolutamente atual 11ª tese). É
portanto o intelectual da revolução. Já em A Ideologia Alemã ele
e Engels afirmaram que toda classe que pretendesse assumir o
comando da sociedade teria que colocar seu programa como
37
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

programa de toda a sociedade. Falaram mais: a linguagem


nasce grávida da realidade formatando o programa anti-
economicista que muitos dos seus “seguidores” negaram.
Mesmo a famosa metáfora da ideologia como consciência
invertida não pode, em são juízo, ser lida como “fazer a
cabeça”, ou “falsa consciência”.
U m a l e i t u r a m e n o s a p r e s s a d a l e va r á
necessariamente em conta a totalidade da metáfora: a câmara
que produz a inversão da imagem é corrigida pelo jogo
de lentes (a teoria). Embora neste texto muitas passagens
“permitam” uma leitura economicista, o sentido real que
os autores atribuíam a ele era outro. Era o da passagem da
abstração formal à abstração real com a explícita menção de
sair de uma teoria que passava do céu das abstrações à vida
concreta dos indivíduos e das relações sociais. Lembremos
que eles ainda afirmavam que a articulação da totalidade
social era comandada pela prática material dos homens e não
por suas visões ideológicas. Na sua análise crítica do modo
de produção e de vida capitalista Marx irá superar a falsa
dicotomia infra e superestrutura. As múltiplas determinações
entre esses dois planos (cuja divisão é meramente didática)
conduzem à famosa “unidade na diversidade”. A existência
concreta dos homens, criadores e criaturas, dessa totalidade
estruturada, permite a inteligibilidade do real. A “análise
concreta de situações concretas é o coração do marxismo”,
dirá Lênin (1966). Os que “leram” e “leem” Marx a partir
de uma perspectiva economicista (evolucionista) fetichizam
esta metáfora arquitetônica, transformando uma analogia em
realidade. Sua saída é ainda mais estranha: têm que dar um
salto mortal, passando do economicismo ao voluntarismo. As
classes, para eles mero reflexo da estrutura, se transformam
em sujeitos. E em sujeitos revolucionários... Construir a
inteligibilidade do real era metamorfoseado na repetição da
38
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

verdade contida nos fatos (empirismo), dispensando-se assim


a intervenção dos sujeitos reais na história.
O marxismo trabalha com abstrações determinadas.
Afirma a totalidade e recusa a imediaticidade, o fragmento.
Tomemos como exemplo das abstrações indeterminadas ou
puramente formais o conceito de natureza humana que é
recusado pelo marxismo na sua formulação clássica. Gramsci
afirma que a natureza humana é o processo articulado de todas
as determinações sociais. A ideia de homo œconomicus subjacente
à economia clássica, abstração formal do capitalista tomado
como individualidade, é generalizado como materialização
de uma natureza humana. Esse indivíduo omniconsciente e
livre de todas as determinações é fundamental na constituição
do capitalismo como naturalidade. O mercado é a expressão
dessa natureza humana e de sua liberdade. Mas não é um
mercado qualquer, é um mercado determinado, capitalista.
As formas organizadas do antagonismo dos trabalhadores
passam, a partir dessas abstrações vazias, a ser antinaturais
e mesmo subversivas. Veja-se Hayek, O Caminho da Servidão,
entre outros. Ou mesmo a teoria de Friedmam, segundo a qual
o sindicato é inimigo dos trabalhadores porque tira a liberdade
individual e desfigura a mão invisível smithiana. Todo o processo
de liberdade se desloca para o da racionalidade econômica.
Se o mercado é condição de liberdade, obviamente, todo o
praticável e o pensável se reduzem necessariamente à ótica
por ele instaurada.
O mesmo procedimento ocorre com o conceito
de cidadania. De forma jurídica do Pacto Social (“todos os
homens são livres e iguais perante a lei”) esse conceito passa
a ser decisivo na neutralização dos antagonismos. É a outra
forma da natureza humana. O pensamento burguês necessita
cindir economia e política mesmo que a política seja vital
na possibilidade de existência do capital. Essa articulação
39
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

expressa a forma das classes sociais que são, pelo pensamento


burguês, tomadas como mera agregação de individualidades.
Nessa lógica, as instituições são expressão
dessa natureza humana e da mão invisível do mercado. As
racionalidades de classe são, portanto, divididas em naturais
(as do capital) e artificiais ou arbitrárias, as do trabalho:

Os economistas têm uma maneira de proceder


singular. Só existem para eles dois tipos de
instituição, as da arte e as da natureza. As instituições
feudais são instituições artificiais, as da burguesia são
instituições naturais. [...] Ao afirmar que as relações
atuais – as relações de produção burguesas – são
naturais, os economistas fazem entender que aí estão
relações nas quais se cria a riqueza e se desenvolvem
as forças produtivas em conformidade com as leis
da natureza. De onde estas relações são elas próprias
leis naturais independentes da influência do tempo.
São leis eternas que devem sempre reger a sociedade.
Assim, houve história, não há mais. (MARX, 1972,
p. 129)

O caminho é longo. Quando se fala em política,


a impressão que fica para os que não aprofundam a questão
é de que é através dela que se constroem os destinos de uma
dada sociedade. Parece ser um debate franco, livre, entre
iguais e as leis são apresentadas como vontade de indivíduos
livres. Na sociedade capitalista não é assim. A política é
uma arena, onde dominantes e dominados vivenciam suas
contradições. A formulação “somos iguais perante a lei”
encobre a desigualdade real. Há uma imensa bibliografia
que demonstra que as possibilidades, os conhecimentos, as
vontades, são absolutamente contraditórios.
40
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A lei é a forma assumida pela correlação de forças


no cotidiano das classes. Esta não pode ser de forma alguma
reduzida ao mero exercício da força física. O comando exercido
pelos dominantes se transforma em uma normatividade com
o caráter de universalidade e naturalidade, como veremos mais
adiante. O governo e o parlamento não expressam uma vontade
universal, mas a sua forma é tornada geral pela repetição, pelo
convencimento ou mesmo pela força física.
Comprovamos isso a partir dos mecanismos
usados para obter, por exemplo, o voto que elege e dá
“legitimidade” ao governante, ainda que este se apresente
como negador dos direitos da população, da lei eleitoral, do
acesso absolutamente desigual aos meios de comunicação, até
a liberdade de expressão dos chamados partidos ideológicos.
Da desigualdade dos recursos à dos conhecimentos, de tudo
um pouco, se constitui o diferencial que permite a supremacia
e obriga à obediência. Nos países onde existe o chamado
estado de direito ele se sustenta em um conceito chave: o de
cidadania. Através dele, as desigualdades e as contradições
como que “desaparecem”. É o chamado pacto social.
O capitalismo impõe, então, seu comando na
dialética “governo das massas” / “governo da economia”.
Cabe aqui falar das chamadas políticas governamentais
(eufemisticamente chamadas de sociais e públicas). Estas
aparecem como o resultado do governo dos técnicos, dos
sábios, dos competentes. Fundamental para a construção da
legitimação/obediência, o conjunto dessas políticas acaba
por organizar o todo da sociedade. Do embate político
passamos à ação administrativa, a partir do que não pode
nos surpreender a tese capitalista dominante em nossos
dias segundo a qual o governo deve reger-se pelas regras
do mercado, “nome” que oculta sua verdadeira realidade:
conjunto das relações sociais capitalistas.
41
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A lei pode até ser injusta, mas, como foi — dizem


os dominantes — produto de um “pacto social” — ela é
inalterável; o resto é subversão, anarquia, caos. O grande (e
atormentado) liberal Norberto Bobbio nos mostra isso no
seu O Futuro da Democracia. A defesa das regras do jogo (1986).
Curioso: “regras do jogo!” Há aqui um contra-senso: se ela
é um jogo, a alteração das leis não pode ser subversiva8. O
mesmo vale tanto para a economia quanto para a história.
Essa imutabilidade é o pressuposto de toda a sociabilidade
burguesa. O capitalismo em nosso tempo não precisa da
política, tal como a maioria a entende. O governo das massas
é subsumido ao governo da economia. Se na Declaração
de Independência dos Estados Unidos relacionava-se
governo com liberdade e felicidade, hoje vemos que esse
argumento desapareceu quase que inteiramente. O direito de
revolução passou a ser encarado como crime e terrorismo.
Estado e mercado identificados, tudo o que se apresenta
contrariamente a essa unidade é pura artificialidade perversa
e subversiva. E a naturalidade é o elemento legitimador
fundamental.
Mas o que é o natural? Néstor Kohan 9 em
“Gramsci e Marx: Hegemonia e poder na teoria marxista”
(2007), sustenta a tese de que os subalternos, após serem
aplastrados na transição feudalismo / capitalismo, não
obstante sua encarniçada resistência, acabaram, pela força
(física e dos hábitos), por trabalhar dentro da nova ordem,
passaram a pensar-se como construtores dessa naturalidade,
como sua “ordem”. A tese demonstra o que chamamos de
captura da subjetividade antagonista. “Natural” é, nesse
caso, o universo dos dominantes; “tradicional”, “atrasado”,
“conservador”, o dos dominados.
O marxismo, ao recusar este procedimento,
desconstrói essas “abstrações” e decifra o enigma: ao invés de
42
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

falar em mão-de-obra e trabalho justamente remunerado (teoria


econômica burguesa), ele revela a opressão e a exploração
como constituidores da Ordem do Capital. O conceito de
força de trabalho, a análise da capacidade de apropriação
pelo capital dessa força de trabalho e do assalariamento
como unidade contraditória daquelas exploração e opressão
mostram como historicamente a racionalidade capitalista
busca suprimir qualquer subjetividade histórica antagonista,
qualquer identidade classista diferente da sua. O trabalhador,
como figura histórica, sob o capital, é construído e
desconstruído na relação antagônica de apropriação de sua
subjetividade capitalista e da sua capacidade de construção
de uma identidade antagonista ao capital.
A decifração do real enquanto instrumento de
intervenção no real passa daqui para frente a comandar ainda
mais a análise marxiana. O Manifesto do Partido Comunista
é um exemplo típico onde a decifração das grandes leis
de desenvolvimento da sociedade capitalista passa a
caminhar lado a lado com as perspectivas de emancipação
dos trabalhadores. A análise da conjuntura revolucionária
que se segue vai construindo os conceitos necessários à
emancipação. Ideologia, Estado, Classes, frações de Classe,
políticas governamentais (já estão aí) pavimentam a reflexão
sobre a luta de classes, a intervenção estatal nessa luta etc.
Para os que afirmam a originalidade de Gramsci com o
conceito de Estado ampliado (aliás, inexistente nos textos do
sardo) desconhecem que, muito antes dos Quaderni, Marx e o
próprio Gramsci (desde o período dos Conselhos de Fábrica)
já trabalhavam com esse instrumento conceitual. Na realidade
o uso do cachimbo faz a boca torta, e, assim, os que sempre
trabalharam com a visão instrumental do Estado = coerção,
fazem agora uma autocrítica não explicitada. Mas já estava
lá, ainda que não formalmente teorizado.
43
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

E não é a troco de nada que ao lado disso


construíram-se elementos organizativos decisivos, desde a
Liga dos Justos à fundação da I Internacional dos Trabalhadores,
para a emancipação dos subalternos (aqui basicamente
identificados ao proletariado fabril). A realidade não é algo
sobre o qual devemos recitar os “salmos” revolucionários,
mas é o espaço-laboratório da teoria, locus onde se testam
e se constroem análises, teses, teorias. A decifração do real
é, portanto, como disse Gramsci, pedagógico. Há uma
diferença enorme entre fazer ideologia (recitar os “salmos”
revolucionários) e fazer política (analisar e transformar o real).
Pensemos um caso exemplar, hoje praticamente esquecido. A
análise de Marx ao Programa de Gotha é um esforço brilhante
de análise, desmontando as frases feitas e o bom-mocismo
pseudo-revolucionário. A crítica de Marx estava exatamente na
inutilidade prática dos “salmos” revolucionários transpostos
para o programa partidário. O que faz falta é uma análise
concreta de situações concretas, o que, nas palavras de Lênin,
constitui “o coração do marxismo”10.

3. Marx e sua atualidade.


Os marxismos do século XX.

O marxismo sofreu uma profunda torsão ao


final do século XIX. Kautsky e Bernstein, testamentários de
Marx e Engels, passam a defender teses abertamente anti-
marxianas. Isto não significa desconhecer a importância deles
tanto no Partido Social-Democrata Alemão (PSD) quanto
na elaboração teórica11. Kautsky, por exemplo, foi um dos
grandes pesquisadores marxistas antes de sua passagem às
posições reformistas que acabaram por tornar sinônimas
as palavras reformista e social democrata. É bom, contudo,
lembrar que ele foi pioneiro no enfrentamento de questões
44
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

como a agrária, a dos intelectuais, a dos técnicos e outras. Foi


também importante na direção do Neue Zeit, órgão teórico
e de formação ideológica do PSD. Foi na melhor tradição
socialista um educador. Bernstein se destacou muito menos
embora sua intervenção tenha tido uma relevância maior.
Kautsky, a partir da concepção evolucionista
e economicista, com o abandono da perspectiva dialética,
acreditava, desde a década de 80 do século XIX, que o
capitalismo atingira um momento avançado e que as relações
de produção permitiam fazer com que o movimento
socialista se assenhoreasse do poder legislativo (visto por
ele como decisivo). Para ele o Estado moderno já era a
expressão de um conjunto de liberdades que permitiria a
passagem ao socialismo pelo controle do parlamento. Não
era o caso de destruir o Estado visto como máquina a ser
usada (simetricamente à neutralidade da tecnologia no
plano econômico), mas apenas de apoderar-se dele e usá-
lo em favor da classe operária. Essa ilusão já fora desfeita
nos acontecimentos da Comuna de Paris. A lição era clara,
aprendê-la e colocá-la em funcionamento era outra coisa.
Bernstein também se movia em um horizonte evolucionista
e economicista. Ambos acabaram sendo submetidos pelas
pressões da burocracia sindical alemã. Se os sindicatos
alemães, de início, dependeram muito do partido, logo se
assenhorearam daquele. O golpe final, le coup de grace, foi a
revolução russa de 1905.
As reações de Rosa Luxemburgo, Lênin e Trotsky
trataram de recolocar a teoria no campo da luta. Rosa, atuando
em um partido forte, dominado por uma poderosa burocracia
e com uma tradição recente de intervenção política legal (após
o fim das chamadas Leis anti-socialistas). Já Lênin e Trotsky
moviam-se em um horizonte totalmente distinto onde sequer
sindicatos e partidos de esquerda tinham possibilidades de
45
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

existir. Diferentes desafios, uma mesma tarefa. Reconstruir


a radicalidade da teoria liberando-a das incrustações
positivistas e evolucionistas, preparação da militância para
a revolução. Eram educadores, no sentido mais amplo do
conceito, preocupados com a formação militante não apenas
no sentido do agitprop, mas também da capacidade analítica
de decifrar o real. Exemplos típicos: Reforma ou Revolução?,
Balanço e Perspectivas, Que fazer?, Desenvolvimento do Capitalismo
na Rússia. Trotsky e Lênin viviam em um país periférico ao
desenvolvimento maior do capitalismo. Situação que vai
ocorrer também com Antonio Labriola, Gyorgy Lukacs e
Antonio Gramsci. Cada um a seu modo, desenvolveram
a teoria e a política como pedagogia revolucionária. Cada
um desses revolucionários mereceria uma análise mais
aprofundada o que, obviamente, não cabe nos limites desta
comunicação.
O estalinismo, nome coletivo da burocracia russa
que se apossou do nascente estado soviético, acabou por
esterilizar esse processo. Fontes vitais para o desenvolvimento
do pensamento foram esterilizadas ou assassinadas. A
velha guarda do Partido Bolchevique que Gramsci (1919)
caracterizou como cientistas experimentais da política12
desapareceu da cena - assassinados pela nova burocracia -, e
o marxismo transformou-se em uma vulgata, em uma espécie
de teologia laica auto-glorificadora dos novos opressores.
Aqui ficam claros os limites de alguns aggiornamenti
do marxismo. Ao ser transformado em ideologia de
sustentação de uma forma estatal o marxismo não ganhou
os grandes intelectuais e perdeu sua aderência ao movimento
real das classes trabalhadoras, como oportunamente Gramsci
assinalou. Se as classes, na “leitura” estalinista do marxismo,
eram rigidamente determinadas por relações de produção
(sem quaisquer historicidades e mediações) como se poderia
46
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

entender a formulação “todos os homens são intelectuais”?


Assim o determinismo foi não apenas um instrumento de
derrota para os trabalhadores, mas a chave do domínio da
neoburocracia da URSS.
Uma outra forma de aggiornamento foi a do
chamado marxismo ocidental que, se fez avançar a reflexão
do marxismo como teoria, desligou-o da práxis efetiva do
movimento revolucionário, dissolvendo a relação teoria-
prática e restringindo-o, no mais das vezes, às cátedras
universitárias. Essa cisão teoria-prática foi decisiva para a
esterilização do projeto marxiano. As massas trabalhadoras,
também aqui, foram seccionadas do conjunto dos intelectuais.
Gramsci (1975) afirma que existe uma crise de
direção quando os intelectuais que representam, ou pensam
representar, as classes se cindem delas e passam a falar e a
agir em “nome” delas. Essa cisão pode ocorrer ou porque
esses intelectuais foram capturados pelos seus antagonistas
(possibilidade de hegemonia dos dominantes) ou porque eles
aderiram a esse projeto. Nesta segunda hipótese poderíamos
pensar a possibilidade da traição das direções. Este é o sentido
mais frequentemente veiculado de crise de direção, mas não
necessariamente o mais correto. Gramsci (1975) chama a
atenção para o fato de que o determinismo pode apresentar-
se como impedimento da compreensão do real, e a aparente
traição pode ser apenas a confusão entre “os meus desejos”
e o real.
Essas duas formas de perda da capacidade de
resposta estratégica que as formas antagonistas ao capitalismo
deveriam construir mostram que uma modificação da matriz
teórica e da formulação estratégico-prática do marxismo,
como crítica da política e da economia política capitalistas,
veda ou obstaculiza a formatação de novas formas de
sociabilidade. Não podemos, aqui e agora, explicitar as
47
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

profundas e radicais diferenças entre essas duas “leituras”


do pensamento marxiano, mas, sinalizar que, por motivos
muito diferenciados, elas desconstruíram a capacidade de
intervenção e transformação do marxismo na atualidade
capitalista do século XX.
A dialética foi substituída por um positivismo de
quinta categoria, as reflexões sobre os grandes problemas
nacionais e internacionais subsumiram-se aos decretos
governamentais13.

4. Marx e Gramsci, educadores.

Para nós, seguindo a perspectiva gramsciana, o


marxismo é ortodoxo por bastar-se a si mesmo. Ele não
necessita de uma epistemologia externa, como aquelas
praticadas pelas leituras neokantistas do final do século
XIX ou as do individualismo metodológico, entre outras,
no final do século XX. Se correta, a tese gramsciana
compreende a atualidade, real e determinada, do campo
teórico-epistemológico marxista como práxis (unidade
articulada de teoria e prática). E é a partir dessa concepção
que ele se defronta com os problemas colocados pela luta de
classe nas suas diversas manifestações (por exemplo, classes
e suas formas da organização, processo do trabalho e suas
formas, construção dos intelectuais, análise das conjunturas
e estruturas, gênero, etnia, questão nacional etc.).
Falamos em construção da identidade de classe.
Isto é decisivo porque permite subtrair o conjunto dos
trabalhadores — assalariados ou não — ao domínio do
capital. Fundamental é a construção dos intelectuais da classe.
Entendidos estes não como eruditos possuidores de diplomas
universitários, mas como aqueles que pensam as questões
e as práticas de sua classe elevando-se da imediaticidade à
48
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

construção da racionalidade. Só para termos clareza das


dificuldades do processo, lembremos que os intelectuais das
classes dominantes são construídos ao longo de décadas,
por um esquema de escolaridade prolongada e continuada,
voltada sempre para a implementação da ordem vigente,
entendida como natural e, portanto, única. Sua racionalidade é
basicamente econômica. Aqui se encontra a chave do destaque
dos grandes intelectuais em relação ao conjunto das classes.
Eles se apresentam como desenraizados (Mannheim, 1954),
quando, na realidade, não são os intelectuais daquelas massas.
Essa separação permite disponibilizar sua capacidade de
formulação face à contraditoriedade das classes dominantes
e destas com a totalidade social. Já os intelectuais das classes
subalternas são construídos na academia cotidiana da luta
(movimentos sociais, sindicais, partidários) e para fazer frente
aos discursos polêmicos (desconstrução dos discursos, das
práticas, das classes trabalhadoras e que terminam por afirmar
a racionalidade opressiva das classes dominantes). Aqui, não
pode haver, sob pena de absoluta neutralização, o destaque
dos intelectuais em relação às classes trabalhadoras.
Um projeto de transformação social supõe a
necessidade da construção das novas individualidades. O
cenário é amplo: das relações familiares às mais diversas
formas de afetividade são aqui e agora o grande desafio.
Individualidades que se querem democráticas e, portanto,
recusam o individualismo produto da matriz do pensamento
economicista, da concepção de natureza humana historicamente
indeterminada, levada ao máximo da contraposição inter-
individual e inter-classista. Torna-se imprescindível romper
com as formas positivistas de ler o marxismo, que fossilizaram
as práticas das classes subalternas na reificação do famoso
conflito capital x trabalho, tomado como uma abstração vazia
que dá razão a todo e qualquer movimento das classes sem a
49
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

compreensão das suas múltiplas determinações. E que nega a


conjuntura como síntese contraditória e transitória das lutas,
recusando a tese leninista de que “a alma do marxismo é a análise
concreta de situações concretas”.
Finalmente, queremos sintetizar nossa
compreensão da permanente atualidade do marxismo. Marx
afirmou, entre outras, duas frases que são um verdadeiro
programa de intervenção: “Os filósofos interpretaram o
mundo de modos diversos, trata-se agora de transformá-lo.”
(XI Tese sobre Feuerbach) e “O Capital é a contradição em
processo”. Também Gramsci (1975) fez o mesmo ao afirmar
que: “Todos os homens são intelectuais” e “O velho morre
e o novo não pode nascer”.
A luta pelas consciências é uma das formas
superiores da luta de classes. O tempo todo, fora os períodos
de crise orgânica, a cultura dos dominantes trata de pautar
os subalternos e, em especial, os seus intelectuais. O que
significa pautar e ser pautado? Para as classes subalternas,
assumir o discurso e as práticas dos dominantes implica
perder a capacidade de formular as perguntas, de saber o que
é decisivo para seu processo emancipatório.
É no “modo de vida” que o jogo se dá. Aí se
formam as subjetividades e vontades. O fordismo demonstrou
isso na prática. Para Henry Ford (1954), os trabalhadores
precisavam ser disciplinados, acostumados à moralidade
protestante, para serem bons trabalhadores. A Família Ford
é a socialização tanto fabril quanto ético-política dos “seus”
trabalhadores. Era preciso quebrar a “anarquia” — ou seja,
a autonomia e a independência desses trabalhadores — para
submetê-los ao ritmo das máquinas, das cadências, sem deixar
tempo livre para o perigoso hábito operário de “pensar”14.
As obras de Henry Ford estão aí para quem quiser
comprovar como os capitalistas “negam” a luta de classes:
50
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ou seja, buscam eliminá-la no nascedouro. O curioso é que,


embora aos marxistas seja feita a acusação de destruição da
família, o fordismo acaba com ela pela socialização de toda
a classe (homens, mulheres e jovens), pela inculcação sagaz
(ou pela força) de novos hábitos. Gramsci, em Americanismo e
Fordismo, sugere que também o estalinismo o fez, ao “recriar”
a classe trabalhadora russa destruída pelas guerras civis e pela
intervenção externa.
Isso significa que a luta de classes tenha que
permanecer “clandestina”? Obviamente não. Mas para
isso é preciso que as classes subalternas construam os seus
intelectuais e o seu saber, projetem estrategicamente a
nova sociabilidade. Um dos lances mais importantes desse
processo para os subalternos é o permanente trabalho de
escapar à captura da sua subjetividade antagonista. Quando os
intelectuais de uma classe — mormente os da subalterna — se
passam ao campo da outra, o que ocorre é uma decapitação
da direção do movimento. Esta é a famosa crise de direção.
Romper com o pensamento dominante requer
dos intelectuais das classes subalternas a recusa de todo e
qualquer determinismo, seja ele de tipo “economicista”, seja
“politicista”. O determinismo é acima de tudo a reificação do
real, a comprovação da leitura capitalista: a verdade existe e é
exterior às classes. Ela está dada desde sempre. A história é
transformada em um anedotário de pequenos eventos (que
os pós-modernos chamam de fragmentos do cotidiano)15 ou,
por outro lado, a vida e os conflitos concretos de homens
e mulheres são apenas “astúcias da razão”, de uma razão que
lhes é superior e exterior.
O que é inaceitável, do nosso ponto de vista, é o
fato de que intelectuais ditos “progressistas”, de “esquerda”,
“da classe trabalhadora” etc. assumam como científica a
forma de determinismo tecnológico, tradução atualizada
51
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

das vertentes positivistas que aliam liberalismo político,


liberalismo econômico e cientificismo. Determinismo esse
que ia do ingênuo “O mundo caminha para o socialismo”
até formas mais sofisticadas: relembremos aqui as críticas
de Gramsci e de Lukács ao chamado “Manual Popular de
Sociologia”, de Bukharin (1967).
Por fim, encerrando esta brevíssima síntese, a
construção do saber sobre o real como produto das classes
sociais revela a necessidade da articulação paixão - vontade
com projetos. O contrário do determinismo não é, para os
subalternos, o aleatório, o indeterminado; mas a afirmação
de um novo projeto construído sobre as determinações
concretas da formação social. É pelo conhecimento (de
classe) das determinações sociais que podemos decifrar o
“mistério” do capitalismo.
A construção dos intelectuais e da teoria
(revolucionária) é, portanto, obra urgente, ou então, resta
aceitar a barbárie. Esta é a nossa tarefa. “Desafinar o coro dos
contentes” (Torquato Neto), “afinar o coro dos descontentes” (Itamar
Assunção) é a síntese poético-musical da construção da nova
sociabilidade para além e contra o capital.

Notas

Esta é a forma em que o embate contra as populações discordantes


1

da ordem do Capital são apresentadas. É o modo pelo qual Bush fala


a respeito do Afeganistão, Iraque, Irã, Cuba e Coréia do Norte.
Professor da Università Thor Vergata de Roma.
2

Sobre a construção do passado pelo presente e do uso de conceitos


3

e práticas contraditórias ver a conferência pronunciada por François


Châtelet no Centro de Estudos Socialistas, em 1962. Publicado em
Les Cahiers du Centre d’ Études Socialistes, nº 20, 15 de outubro de 1962.
52
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

4
Veja-se o importante debate feito por Pierre Macherrey - “Lire ‘Le
Capital’”, in VVAA - Le Centenaire du “Capital”.
5
Referia-me a Gramsci, mas esta afirmação vale para o marxismo como
um todo.
6
Ver Dialética, Dialogo y Discusión, comunicação de François Chatelêt, no
XIV Congresso das Sociedades de Filosofia de língua francesa, Nice,
setembro de 1969. Publicado originalmente em Études philosophiques,
julho-setembro de 1970, PUF, Paris.
7
Associação Internacional dos Trabalhadores, a I Internacional.
8
Aqui a realidade como que se “vinga” dos ideólogos. Trata-se de uma
óbvia contradição – se há jogo, há a possibilidade da mudança (até
mesmo para os caquéticos “guardiães” ingleses do futebol – que reflete
o abuso dos dominantes. Nada pode mudar contra eles, a favor... é
claro que sim!
9
Cf. o artigo de Nestor Kohan, “Gramsci e Marx: Hegemonia e poder
na teoria marxista”, La Izquierda debate, 17 de março de 2001, traduzido
na revista Tempos Históricos, vol. 10, 1º semestre de 2007, Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, é absolutamente decisivo.
Trata-se de uma das melhores exposições sobre o tema.
10
Sem ânimo provocativo seria interessante ler os documentos da maior
parte dos partidos da esquerda brasileira e suas altissonantes (e inócuas)
conclamações.
11
Indicaremos apenas os elementos que a nosso juízo poderão ajudar
na compreensão do processo. Não há espaço nem tempo para
desenvolvermos aqui essa complexidade.
12
Os bolcheviques “são um conjunto de milhares de homens que
dedicaram toda a vida ao estudo (experimental) das ciências políticas
e econômicas, que durante dezenas de anos de exílio analisaram e
esmiuçaram todos os problemas da revolução”. La Taglia della storia,
L’Ordine Nuovo (1919-1920), Giulio Einaudi Editore, Turin, 1987.
13
Típico é o caso do modo de produção asiático, conceito proibido por
decreto pelo estalinismo.
53
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Uma preciosa visão gráfica deste processo é mostrada no filme Modern


14

Times de Chaplin.
Aqui cotidiano tem um significado inteiramente oposto ao que estamos
15

afirmando. Não é o lugar da luta, mas da convivência; não conjunturas,


atualizadoras de estruturas, mas uma descrição às vezes pitoresca do
dia a dia dos indivíduos e dos grupos.

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56
A mundialização capitalista
e o conceito gramsciano
de revolução passiva

Marcos Tadeu Del Roio

1. O problema

Nas últimas décadas, o conjunto das ciências


políticas e sociais, assim como a própria literatura de divulgação
midiática, muito tem discutido sobre a “globalização”
(expressão preferida no mundo anglo-americano e portadora
de maior cariz ideológico) ou sobre a “mundialização”
(mais usado entre os franceses), com enfoques teóricos
e abordagens as mais variadas. De alguma maneira, se
difundiu e generalizou a ideia ou percepção de que uma
mudança de época histórica teve início no fim dos anos 70.
Os elementos mais evidentes nessa mudança e que primeiro
empenharam os intelectuais foram a ascensão vertiginosa do
mercado financeiro global, a força das grandes corporações
transnacionais e a espantosa difusão dos meios de informação
e comunicação. Certo que muitos outros elementos se
destacaram, como a mundialização da cultura de massa e a
consolidação política e cultural do tema do ambientalismo.
Com um pouco mais de atenção se observa também que em
regiões importantes do planeta parece ser patente o declínio
das instituições sociais do movimento operário e da cultura
da esquerda.
junqueira&marin editores 57
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Muitos outros elementos aparentemente esparsos


poderiam ser lembrados a fim de mostrar que o senso comum
da ocorrência da “globalização” ou “mundialização” se
cristalizou sobre um efetivo movimento do real. A questão de
fundo — até para que se possa entender, explicar e conduzir
esse movimento do real, elevando criticamente o próprio
senso comum — é a de saber da natureza e do conteúdo
dessa fase histórica, saber quais são os seus fundamentos
econômico-sociais e sua dinâmica.
Conta com bastante influência a posição teórico-
ideológica que privilegia o tema da fragmentação dos sujeitos
e do fim do trabalho como fundamento da sociabilidade
humana, mas esse problema existe mesmo no campo que
se desdobra do marxismo. Nessa vertente, algumas das
questões principais que se apresentam na interpretação da
época atual é se pode ser observado um estágio capitalista
para além do imperialismo ou se nos encontramos numa
fase nova dentro do imperialismo capitalista; se império
poderia ser uma designação razoável para essa fase e nesse
caso império de quem: dos EUA, das grandes corporações?
Trata-se efetivamente de um império com hegemonia ou
não passa de domínio com crise orgânica e sem hegemonia?
Nesse quadro, é possível ou razoável falar de atualidade da
revolução socialista?
Frente a esse conjunto de problemas postos pelos
tempos atuais, diante do qual a tradição cultural originada
em Marx é qualificada, por amplos ambientes intelectuais, de
inoperante para entender e transformar a realidade, a questão
que este texto se propõe a considerar é se a contribuição
teórica de Antonio Gramsci tem algo a oferecer efetivamente.
Não só para explicar essa fase do desenvolvimento do
imperialismo, mas também para se pensar a revolução
comunista. Mais particularmente, a pergunta é se a categoria
58
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de revolução passiva pode ser de utilidade no intento de


compreensão/transformação do mundo dos homens nesse
início de século XXI. A resposta exige a localização do
significado (ou significados) que Gramsci concedeu a esse
conceito ou categoria teórica. Ou ainda, por outro verso, a
categoria de revolução passiva não cabe e a contribuição de
Gramsci aparece de um modo diferente e quem sabe mesmo
insuspeitado.

2. Origem e significado da categoria de


revolução passiva

Um dos grandes problemas que Gramsci se


colocou para ser estudado no cárcere foi a compreensão
do Risorgimento como processo particular de realização da
revolução burguesa na Itália, abordando especificamente a
relação entre os intelectuais e as massas. Desde logo estava
claro para Gramsci que o problema da revolução burguesa
na Itália não era uma questão estritamente nacional e que
não poderia ser entendida dissociada da larga compreensão
da revolução francesa, que tampouco poderia ser vista apenas
como uma revolução nacional. O contexto internacional da
revolução burguesa era essencial mesmo para se compreender
a formação dos Estados nacionais e do próprio capitalismo.
Esse enquadramento teórico foi oferecido a
Gramsci por um texto escrito por Vincenzo Cuoco (1999),
considerado um clássico da ciência política na Itália, qual
seja o Saggio storico sulla rivoluzione di Napoli1. Esse texto foi
publicado pela primeira vez em 1801 e teve uma edição
revista em 1806. Cuoco, jurista e administrador público
napolitano, se empenhou em trazer Machiavelli e Vico para
as condições históricas do novo tempo que a revolução
francesa inaugurava.
59
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A tese fundamental de Cuoco era que a revolução


napolitana de 1799 só ocorrera em razão do impacto da
revolução francesa e particularmente das ações de Napoleão.
Esse impacto mobilizou parte das classes dirigentes
napolitanas, que divisaram as vantagens em fazer de Napoli
um Estado guiado pelas ideias francesas e mesmo de fazer
parte do império francês que a revolução visava criar. Cuoco
nota que às classes dirigentes napolitanas faltaram coerência e
determinação, mas que ao fim das contas o elemento decisivo
foi a não participação das massas populares nessa comoção
histórica. Daí ter sido a revolução napolitana uma revolução
passiva, pois que, importada da França dividiu as classes
dirigentes, incluindo os intelectuais, mas não se vinculou às
massas populares. O resultado foi a impossibilidade de se
criar uma nação ítalo-napolitana.
Essa interpretação de Cuoco orientou Gramsci
na leitura de todo o processo do Risorgimento como
desdobramento da revolução francesa. No entanto, um
alargamento do campo de visão foi necessário. Foi preciso,
antes de tudo, considerar a revolução francesa como um
fenômeno de longo prazo e de incidência mundial, não apenas
uma manifestação circunscrita à história da França do decênio
1789-1799. Gramsci concebeu a revolução francesa como
eclodindo na França, se alongando no tempo e se espalhando
no espaço, num processo de construção da ordem burguesa.
Diz Gramsci, a propósito:

De fato, só em 1870-1871, com a tentativa da


Comuna, esgotaram-se historicamente todos os
germens nascidos em 1789, ou seja, não só a nova
classe que luta pelo poder derrota os representantes
da velha sociedade que não quer confessar-se
definitivamente superada, mas derrota também os
60
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

novíssimos grupos que consideram já ultrapassada


a nova estrutura surgida da transformação iniciada
em 1789 e demonstra assim a sua vitalidade
tanto em relação ao velho quanto em relação ao
novíssimo. (GRAMSCI, 1975, p. 1582)

Essas oito décadas que fizeram emergir e que


consolidaram a ordem burguesa podem ser divididas em fases
ou “em ondas cada vez mais longas”. No conjunto, em termos
de ciência e ideologia política, a época da revolução francesa
é identificada como sendo de revolução permanente, de ação
política jacobina e de guerra de movimento. Isso significa
que os episódios revolucionários são quase que recorrentes
pela ação de pequenos grupos políticos de vanguarda que
se confronta com o Estado. Mas, “é exatamente o estudo
dessas ondas de diferente oscilação que permite reconstruir
as relações entre estrutura e supraestrutura, por um lado, e,
por outro, entre o curso do movimento orgânico e o curso
do movimento de conjuntura da estrutura” (GRAMSCI,
1975, p. 1582).
A ampliação do ângulo de visão de Gramsci
também passa pela contribuição do historiador francês
Edgar Quinet2, o qual entendia ser o período da restauração
bourbônica (1815-1830), um momento de “revolução -
restauração”. Note-se que Cuoco falava a partir da Itália
meridional, da periferia, por assim dizer, enquanto Quinet
fala do epicentro da revolução. Gramsci aproxima essas
formulações no esforço de compreensão do Risorgimento,
propondo que ambas

exprimiriam o fato histórico da ausência de iniciativa


popular no desenvolvimento da história italiana,
e o fato que o “progresso” se verificaria como
61
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

reação das classes dominantes ao subversivismo


esporádico e desorgânico das massas populares
com “restaurações” que acolhem uma parte
qualquer das exigências populares, sendo assim,
“restaurações progressivas” ou “revoluções-
restaurações” ou ainda “revoluções passivas”.
(GRAMSCI, 1975, p. 957)

Se com Cuoco, Gramsci consegue um instrumental


analítico de todo o Risorgimento, com a contribuição de Quinet
o conceito se amplia e se aprofunda. Cuoco acentua o aspecto
da revolução passiva como produto do impacto externo e Quinet
possibilita que se fale de revolução-restauração como uma fase
da revolução burguesa entendida como processo de longo
prazo. A revolução-restauração sofre também os contragolpes da
situação internacional, mas se alimenta e é impulsionada por
forças sociais internas. Mas se “a fórmula político-histórica
da revolução permanente” serve de mediação dialética para
a compreensão desse fenômeno histórico, significa também
que a revolução passiva pode ser vista como uma fase da
revolução permanente (GRAMSCI, 1975, p. 1582).
Por ora, Gramsci entende o conceito de revolução
passiva como passível de apreender um fenômeno de
“revolução sem revolução” produzida por um impacto
externo ou de um fenômeno que demarca uma fase de um
processo mais longo de revolução. O Risorgimento, na leitura
que Gramsci faz a partir dessa elaboração conceitual, é
uma revolução passiva, pois que produto de um impacto
externo de longo alcance, não só de uma invasão militar,
como em Cuoco, mas de uma incidência política e cultural
duradoura. É uma revolução passiva também por ter sido
uma revolução sem revolução. De qualquer maneira, trata-
se ainda da revolução burguesa, ou seja, da época histórica
62
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de construção e consolidação do capitalismo e dos Estados


nacionais na Europa.
O conceito de revolução passiva está também
vinculado ao de jacobinismo. No cárcere Gramsci refaz a sua
compreensão de jacobinismo exatamente por conta do estudo
da época da revolução burguesa. Pela influência de Sorel,
Gramsci percebera o jacobinismo como uma forma de ação
política e intelectual destacada das massas, quando não feita
às expensas das massas. Agora via nos jacobinos franceses
a expressão de uma direção consciente de uma vontade
coletiva, que teve em Macchiavelli um brilhante precursor. O
jacobinismo, para Gramsci, era então “uma exemplificação
de como se tenha formado concretamente e tenha operado
uma vontade coletiva, que ao menos por alguns aspectos, foi
uma criação ex-novo, original” (GRAMSCI, 1975, p. 1559).
A revolução burguesa na Itália se manifestou como
revolução passiva exatamente por não ter ser formado uma
expressão da vontade coletiva. O impulso para a formação
de um Estado nacional não contou com o indispensável
substrato popular e nem com um grupo político intelectual
em condições de conduzir as massas. Na Itália prevaleceu
o moderatismo e a revolução passiva como programa. O
transformismo, ou seja, a passagem de inteiros grupos
intelectuais para o lado das classes dominantes, reforçando
a sua hegemonia, foi o movimento preponderante, tendo-se
preservado a subalternidade das massas populares.
Não pode haver muita dúvida do quanto Marx
contribuiu no entendimento que Gramsci auferiu da
revolução francesa, particularmente com o Dezoito Brumário
de Luiz Bonaparte. No entanto, as noções de bonapartismo
e de cesarismo já se encontravam presentes em Cuoco. Na
reflexão de Gramsci, esses conceitos também se imbricam
com a categoria de revolução passiva, como em Cuoco. O
63
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

cesarismo, na avaliação de Gramsci, pode ter um sentido


muito amplo, referindo-se a contextos históricos bastante
diferentes, incluindo o próprio César ou Cromwell, ou ainda
os tempos que corriam, com Mussolini, por exemplo.
Mas na época da revolução burguesa na Europa
continental houve o caso do cesarismo progressivo, com
Napoleão Bonaparte e seu intento de criação de um império
burguês continental nucleado na França, que visava incluir
também a Itália. O caso do cesarismo de Napoleão III
também pode ser considerado progressivo porquanto
garantiu a unidade das classes dominantes num período
em que as novas camadas subalternas apresentavam o seu
antagonismo, ainda que aqui “não houve a passagem de um
tipo de Estado para outro, mas só a ‘evolução” dentro do
mesmo tipo, segundo uma linha “ininterrupta” (GRAMSCI,
1975, p. 1622).
Em 1870 a época da revolução burguesa se
completava. A derrota da Comuna de Paris garantia o poder
político da burguesia francesa, mas também se completava
a revolução burguesa na Alemanha e na Itália, revoluções
passivas que criaram novos Estados nacionais. Diz Gramsci
então que o

Conceito político da chamada “revolução


permanente”, surgido antes da revolução de
1848, como expressão cientificamente elaborada
das experiências jacobinas de 1789 ao Termidor. A
fórmula é própria de um período histórico no qual
não existiam ainda os grandes partidos de massa
e os grandes sindicatos econômicos e a sociedade
estava ainda, por assim dizer, em estado de fluidez
sob muitos aspectos: maior atraso do campo e
monopólio quase completo da eficiência estatal
64
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

em poucas cidades ou mesmo numa só (Paris para


a França), aparelho estatal relativamente pouco
desenvolvido e maior autonomia da sociedade civil
diante da atividade estatal, determinado sistema das
forças militares e do armamento nacional, maior
autonomia das economias nacionais, das relações
econômicas do mercado mundial, etc. No período
posterior a 1870, com a expansão colonial européia,
todos esses elementos mudam, as relações de
organização internas e internacionais do Estado
tornam-se mais complexas e maciças e a fórmula
quarentoitesca da “revolução permanente” é
elaborada e superada na ciência política pela
fórmula da “hegemonia civil”. Ocorre na arte
da política o mesmo que ocorre na arte militar: a
guerra de movimento transforma-se sempre mais
em guerra de posição; [...]. (GRAMSCI, 1975,
p. 1566)

3. Revolução passiva e guerra de posição

Até o momento, o conceito de revolução passiva


no universo categorial de Gramsci está acoplado ao de
revolução permanente, jacobinismo e guerra de movimento,
como modo da ação política na época da revolução burguesa
e de formação do Estado nacional. A revolução passiva
ocorre nas zonas de impacto e absorção passiva da revolução
burguesa ou como fase de desenvolvimento da revolução
permanente, quando se perscruta a transposição da própria
revolução burguesa. A fórmula da hegemonia civil, ao superar
a fórmula da revolução permanente, não superaria também a
necessidade/possibilidade da revolução passiva nos Estados
65
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

nacionais burgueses efetivamente constituídos, sendo possível


apenas na periferia ou no mundo colonial, assim como a
revolução permanente?
A resposta para essa questão demandou uma
ulterior complexidade do raciocínio de Gramsci. A guerra
imperialista de 1914 deu início a uma grave crise da
hegemonia liberal burguesa. As zonas mais afetadas, porém,
foram aquelas de mais recente contaminação capitalista, como
a Rússia e a Áustria-Hungria, e aqueles Estados nacionais que
haviam se constituído por meio de uma revolução passiva,
como era o caso de Alemanha e Itália. A eclosão da revolução
socialista internacional na Rússia e sua difusão em direção
ao Ocidente geraram um movimento análogo àquele gerado
pela revolução francesa: uma guerra de movimento, uma ação
política jacobinista, uma revolução permanente.
A revolução socialista internacional iniciada em
março de 1917 na Rússia, e que se difundira pela Áustria-
Hungria, Alemanha e Itália, em março de 1921 estava já
derrotada e isolada na própria Rússia. Por que a revolução
socialista foi contida em tão pouco tempo sem ter atingido
os Estados de revolução burguesa original (Inglaterra, EUA,
França)? Enquanto que a revolução burguesa se espraiara
sobre Estados feudal-absolutistas, contando com a força das
armas e das ideias para gerar uma revolução passiva, senão
uma jacobina, a eclosão da revolução socialista ocorrera
precisamente a partir da crise final do Estado feudal-
absolutista, tendo que confrontar consolidada a hegemonia
liberal burguesa do núcleo do Ocidente.
Ainda que em crise, a presença material da
hegemonia liberal burguesa era a crucial diferença entre os dois
grandes eventos revolucionários de época contemporânea.
No império russo a guerra de movimento, o jacobinismo,
a revolução permanente foram suficientes para derrotar
66
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

o poder político feudal-absolutista e a débil burguesia,


impedindo uma revolução passiva desdobrada da Alemanha,
mas não foram capazes de atingir o coração da hegemonia
burguesa no Ocidente, difundindo a revolução socialista.
Gramsci apontava essa diferença de modo sintético:

No Oriente o Estado era tudo, a sociedade civil


era primordial e gelatinosa; no Ocidente entre
Estado e sociedade civil havia uma relação justa
e no estremecimento do Estado se percebia de
imediato uma robusta estrutura da sociedade civil.
O Estado era só uma trincheira avançada, atrás da
qual estava uma robusta cadeia de fortalezas e de
casamatas. (GRAMSCI, 1975, p. 866)

Apesar dos indicativos de Lênin, a Internacional


Comunista, no seu conjunto permaneceu atrelada a uma
concepção jacobinista de permanência da crise revolucionária,
não tendo conseguido desenvolver toda a potencialidade
contida na fórmula política da frente única. O próprio
Gramsci preservou a visão de permanência da revolução
até o momento da prisão, ainda que tenha aprofundado
notavelmente a noção de frente única (DEL ROIO, 2005).
A crise capitalista de 1929-1933 foi crucial para
Gramsci pensar o significado histórico do primeiro pós-
guerra e da particularização da revolução russa. De modo
implícito, nas suas reflexões carcerárias, Gramsci observa
o equívoco do movimento comunista na postura que
prevalecia de enfrentamento direto com a burguesia e seus
aliados, decorrente da fé de que a crise econômico-social
havia já condenado o capitalismo. Gramsci observa que a
luta política havia de ser travada como guerra de posição, ao
menos nos Estados imperialistas, “onde a sociedade civil
67
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às


‘irrupções’ catastróficas do elemento econômico imediato
(crises, depressões etc)” (GRAMSCI, 1975, p. 1613-1614).
Já que a guerra de movimento não conseguiu
desbaratar o bloco histórico, tendo sido barrada por suas
casamatas, a guerra de posição é inevitável. Nessas condições
as classes dirigentes percebem a necessidade da ofensiva
contra os trabalhadores, por meio da estatização de parte dos
aparelhos privados de hegemonia, ampliação e fortalecimento
do aparelho coercitivo e reordenação do processo produtivo.
Isso significa

Uma inaudita concentração de hegemonia


e, portanto, uma for ma de governo mais
‘intervencionista’, que mais abertamente assuma
a ofensiva contra os opositores e organize
per manentemente a ‘impossibilidade’ de
desagregação interna: controles de todo tipo,
políticos, administrativos, etc... (GRAMSCI, 1975,
p. 802)

De tal modo, pode-se dizer que houve uma crise de


hegemonia por toda a parte em decorrência da guerra, que fez
uso de elementos de ditadura. Gramsci sugere já os motivos
que determinaram o que logo depois identificaria como sendo
uma nova revolução passiva, mesmo considerando ainda
ser esse um fenômeno específico desdobrado da revolução
francesa:

1) porque grandes massas, precedentemente


passivas, entraram em movimento, mas em
movimento caótico e desordenado, sem direção,
isto é, sem precisa vontade política coletiva; 2)
68
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

porque classes médias que na guerra haviam tido


funções de comando e de responsabilidade, as
perderam com a paz, ficando desocupadas, justo
depois de ter feito um aprendizado de comando,
etc; 3) porque as forças antagonistas resultaram
incapazes de organizar em seu proveito essa
desordem de fato. (GRAMSCI, 1975, p. 912-913)

Gramsci pensava já em acoplar a crítica ao


historicismo de Benedetto Croce 3 com o conceito de
revolução passiva fazendo uma analogia entre o liberalismo
moderado do século XIX com o fascismo. Assim,

A revolução passiva se verificaria no fato de


transformar a economia “reformisticamente” de
individualista para economia segundo um plano
(economia dirigida) e o advento de uma “economia
média” entre aquela individualista pura e aquela
segundo um plano integral, permitiria a passagem
a formas políticas e culturais mais progredidas
sem cataclismos radicais e destrutivos de forma
arrasadora. (GRAMSCI, 1975, p. 1089)

Esse parágrafo foi depois recomposto com mais


detalhe, promovendo de fato uma ampliação do conceito de
revolução passiva, mas já no sumário do estudo que pretendia
desenvolver sobre a obra de Croce, Gramsci perguntava:

Há um significado ‘atual’ na concepção da revolução


passiva? Estamos em um período de ‘restauração-
revolução’ a ser acertado permanentemente,
organizado ideologicamente, exaltado liricamente?
A Itália teria diante da URSS a mesma relação que
69
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a Alemanha (e a Europa) de Kant-Hegel com a


França de Robespierre-Napoleão? (GRAMSCI,
1975, p. 1209)

A interrogação sobre se a Itália, diante da


revolução socialista reagiria com uma revolução passiva
é a chave para que Gramsci interprete que toda a obra
historiográfica de Croce correspondia a uma visão ideológica
positiva da revolução passiva do século XIX, de maneira
que “se põe então o problema se essa elaboração croceana,
na sua tendenciosidade não tenha uma referência atual e
imediata, não tenha o fim de criar um movimento ideológico
correspondente àquele do tempo tratado por Croce, de
restauração-revolução, [...]” (GRAMSCI, 1975, p. 1227).
Logo depois, para corroborar essa leitura, se pergunta: “Mas
nas condições atuais o movimento correspondente àquele
do liberalismo moderado e conservador não seria mais
precisamente o movimento fascista?” (GRAMSCI, 1975, p.
1227).
Na hipótese, a perspectiva ideológica croceana se
colocaria da seguinte maneira:

Haveria uma revolução passiva no fato que pela


intervenção legislativa do Estado e através da
organização corporativa, na estrutura econômica
do país seriam introduzidas modificações mais
ou menos profundas para acentuar o elemento
“plano de produção”, seria acentuado assim a
socialização e a cooperação da produção sem por
isso tocar (ou limitando-se só a regular e controlar)
a apropriação individual e de grupo do lucro. No
quadro concreto das relações sociais italianas essa
poderia ser a única solução para desenvolver as
70
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

forças produtivas da indústria sob a direção das


classes dirigentes tradicionais em concorrência
com as mais avançadas formações industriais de
países que monopolizam as matérias primas e
acumularam capitais imponentes. (GRAMSCI,
1975, p. 1228)

De maneira concreta, importando menos a


eficácia desse desenho, interessa que esse esquema

Tem a virtude de se prestar a criar um período


de expectativa e de esperanças, especialmente em
certos grupos sociais italianos, como a grande
massa de pequeno-burgueses urbanos e rurais, e
assim manter o sistema hegemônico e as forças
de coerção militar e civil a disposição das classes
dirigentes tradicionais. (GRAMSCI, 1975, p. 1228)

Essa ideologia croceana teria então o valor de uma


guerra de posição no campo econômico e de uma revolução
passiva no campo político. De fato,

Na época atual, a guerra de movimento ocorreu


politicamente entre março de 1917 e março de
1921 e é seguida por uma guerra de posição
cujo representante, além de prático (para a
Itália), ideológico, para a Europa, é o fascismo.
(GRAMSCI, 1975, p. 1229)

Ocorre então que o fascismo é uma revolução


passiva, enquanto significa a reação das classes dirigentes
tradicionais da Itália ao impacto da revolução socialista
internacional e à pressão das classes subalternas nacionais.
71
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A revolução passiva é expressão de uma guerra de


posição conduzida pela classe dominante contra as classes
subalternas e por um posicionamento mais favorável no
contexto internacional. Incapaz de ser vitoriosa na guerra de
movimento, a classe operária é obrigada a travar a guerra de
posição. Bloqueada a revolução permanente, a revolução se
transforma em revolução-restauração das classes dominantes,
em revolução passiva.
Mas Gramsci se questiona:

Existe uma identidade absoluta entre guerra de


posição e revolução passiva? Ou ao menos existe
ou se pode conceber todo um período histórico no
qual os dois conceitos se devem identificar, até o
ponto no qual a guerra de posição volta a ser guerra
manobrada? É um juízo ‘dinâmico’ que ocorre dar
sobre as ‘Restaurações’, que seriam uma ‘astúcia
da providência’ em sentido vichiano. (GRAMSCI,
1975, p. 1766-1767)

Nessa pergunta está implícito o problema que


Gramsci se propõe a pensar: qual seria o papel histórico do
fascismo no processo de longo prazo da revolução socialista
e como deveriam atuar as forças antagônicas para atenuar os
elementos de restauração? Como se deveria atuar na guerra de
posição a fim de que a guerra de movimento se reativasse?
Como na luta antifascista os elementos anticapitalistas viriam a
prevalecer? Gramsci usa o exemplo, mais uma vez, da luta política
no Risorgimento para avaliar a dinâmica da revolução passiva.
Se Mazzini tivesse tido uma consciência maior de
que na revolução passiva em andamento, produto da debilidade
das forças antagônicas ou jacobinas, a guerra de posição deveria
ser inevitavelmente travada com o fim de se ganhar os espaços
72
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

capazes de reverter as condições de luta para uma nova guerra


de movimento, a derrota teria sido evitável. Ou seja, a guerra
de posição é uma imposição das classes dirigentes na sua
ofensiva contra as forças antagônicas, as quais, por sua vez,
devem lutar nesse campo para minorar os efeitos da derrota,
até que se acumule força suficiente para reverter a luta em
guerra de movimento e revolução permanente, em revolução
contra a restauração. A crítica a Mazzini era a mesma desferida
contra Trotski (e contra a linha da Internacional Comunista
de 1929 a 1934), qual seja a de não haver percebido que em
época de revolução passiva a luta em guerra de movimento, em
ataque frontal, implica derrota e aprofundamento do elemento
restauração (GRAMSCI, 1975).

4. A URSS e a revolução passiva

A revolução socialista na Rússia evitou a


revolução sem revolução produto possível de um impacto
externo advindo da revolução passiva ocorrida na Alemanha.
Quase como uma onda mais fraca e tardia do revolvimento
histórico iniciado com a revolução jacobina. Mas ao
não conseguir difundir a revolução socialista, a eclosão
revolucionária iniciada no Oriente-russo não pôde conter a
revolução-restauração por meio da conflitualidade das forças
sociais internas. Logo, assim como a revolução francesa de
longo prazo passou por fases de revolução-restauração, de
revolução passiva, não seria o caso de se interrogar se também
a experiência da URSS, fosse da Nova Política Econômica
(NEP), fosse da ditadura staliniana, não constituiria uma
variante de revolução passiva?
A NEP foi a reação possível da URSS diante do
esgotamento da guerra manobrada. A derrota da revolução
socialista internacional impôs à Rússia revolucionária a
73
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

condição de combater a guerra de posição. Essa era, porém,


uma situação bastante clara, pelo menos para Lênin. A
revolução passiva que passava a vigorar na Rússia restaurava
conscientemente diversos aspectos do capitalismo, mas fazia
predominar ainda o programa da revolução socialista. A
NEP deveria durar como uma revolução passiva em que os
elementos progressivos eram francamente predominantes
até que a revolução socialista internacional se reativasse e
pudesse ganhar novamente a forma de guerra de movimento
e de revolução permanente. A frente única seria a fórmula
política que possibilitaria o êxito nessa guerra de posição.
Pouco antes de ser preso, em carta enviada a
Togliatti para que fosse apresentada como posição do Partido
Comunista Italiano (PCI) frente ao acirrado debate interno
que corroia a direção do Partido e do Estado soviético,
Gramsci chamava atenção para a perda de consciência que
ali ocorria da guerra de posição em ato:

Parece-nos que a paixão violenta pelas questões


russas vos faz perder de vista os aspectos
internacionais das próprias questões russas e
esquecer que os vossos deveres de militantes
russos, podem e devem ser cumpridos só no
quadro dos interesses do proletariado internacional.
(GRAMSCI, 1992, p. 459)

Além da dissociação entre a questão nacional e


internacional, Gramsci lembrava que a oposição de Trotski
e Zinoviev incorria em grave erro corporativo ao defenderem
interesses particularistas da classe operária, a qual, pelo
contrário, deveria fazer concessões aos aliados porquanto
classe dirigente que visa à emancipação humana. Para
Gramsci,
74
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O proletariado não pode vir a ser classe dominante


se não supera essa contradição com o sacrifício
dos interesses corporativos, não pode manter sua
hegemonia e ditadura se, mesmo tendo ficado
dominante, não sacrifica esses interesses imediatos
pelos interesses gerais e permanentes da classe.
(GRAMSCI, 1992, p. 460)

O esgotamento da NEP como guerra de posição


e revolução passiva consciente (isto é, como manobra
defensiva) implicou a passagem novamente à guerra de
movimento no interior da URSS e no movimento comunista
internacional, trazendo graves e negativas implicações. Houve
a ruptura da frente única manifesta como aliança operário-
camponesa, seguida de uma nova forma de revolução
passiva, menos consciente porquanto ideologicamente
acreditava estar efetivamente construindo um socialismo
integral e estar a classe operária e o movimento comunista
às vésperas de uma fase ofensiva frontal, decorrente de uma
provável guerra imperialista. A revolução passiva que então
se desenrolou teve aspectos de restauração do absolutismo
feudal, como o poder autocrático e o trabalho forçado. Na
dimensão internacional a fase ofensiva teve como resultado
o fortalecimento do fascismo. Indispensável dizer que essa
revolução passiva também foi capaz de cumprir a missão
de promover a industrialização da Rússia, ao modo de uma
revolução burguesa sem burguesia.
Gramsci deu sinais de discordância em relação à
nova orientação da Internacional Comunista (IC) definida no
X Pleno do Comitê Executivo da Internacional Comunista
(CEIC), realizado em julho de 1929, mas também mostrou
que o planejamento econômico-social posto em prática na
URSS era uma medida necessária e a ser louvada. Na verdade,
75
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

numa observação de caráter geral, que muito bem é cabível


à situação soviética, Gramsci diz:

Se for verdade que nenhum tipo de Estado pode


deixar de atravessar uma fase de primitivismo
econômico-corporativo, se deduz que o
conteúdo da hegemonia política do novo grupo
social que fundou o novo tipo de Estado deve
ser em prevalência de ordem econômica: trata-
se de reorganizar a estrutura e as relações reais
entre os homens e o mundo econômico ou da
produção. Os elementos de supraestrutura não
podem mais que ser escassos e o seu caráter
será de previsão e de luta, mas com elementos
“de plano” ainda escassos: o plano cultural
será sobretudo negativo, de crítica do passado,
tenderá a fazer esquecer e a destruir: as linhas
da construção serão ainda “grandes linhas”,
esboços, que poderiam (e deveriam) serem
mudadas a cada momento, desde que sejam
coerentes com a nova estrutura em formação.
(GRAMSCI, 1975, p. 1053)

Ainda nas condições da revolução russa, de uma


revolução permanente, Gramsci dizia que

Nessa realidade que está em contínuo movimento,


não se pode criar um direito constitucional, do
tipo tradicional, mas só um sistema de princípios
que afirmam como fim do Estado o seu próprio
fim, o seu desaparecimento, que é a reabsorção da
sociedade política na sociedade civil. (GRAMSCI,
1975, p. 1053)
76
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Numa fase de primitivismo econômico-


corporativo a URSS não poderia mais que enfrentar uma
guerra de posição e proceder a uma revolução passiva
com formas bastante progredidas, como um momento
relativamente duradouro da revolução permanente, mas
não poderia passar à guerra de movimento com a crise
capitalista de 1929. Na verdade, a crise de 1929 e a guerra
de movimento desencadeada pelos comunistas facilitaram
a difusão e aprofundamento da revolução passiva surgida
na Itália como reação à guerra de movimento e revolução
permanente desencadeada entre 1917 e 1921. O fascismo se
espalhou para a Alemanha e ganhou um perfil internacional
muito mais forte, muito mais visível. O corporativismo,
expressão econômico-jurídica do fascismo se difundiu como
inspiração pela Europa oriental, balcânica e mediterrânea.
O impacto da revolução russa abalou o poder
dominante na Itália e na Alemanha, provocando revoluções
passivas em Estados de capitalismo consolidado. Provocou
também revoluções passivas em Estados de capitalismo
embrionário, em processo de revolução burguesa, mas pouco
afetou a França e a Inglaterra. Por quê?
Itália e Alemanha haviam se formado como
Estados nacionais capitalistas por meio de uma revolução
passiva que se desdobrava da revolução francesa. Eram
significativas as sobrevivências do poder da nobreza e da Igreja,
como era débil a hegemonia burguesa. Eram, na verdade, elos
fracos da cadeia imperialista. O fascismo tentou conciliar, com
o corporativismo estatal, aspectos de plano do socialismo e
novo processo de trabalho concebido na América, de modo
que há aspectos de avanço nessa revolução passiva, ainda que
a face restauradora seja predominante largamente.
Ainda que a Inglaterra e a França tenham sofrido
com a guerra e sofrido algum impacto da revolução russa,
77
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

difícil dizer que a partir daí se reagiu com uma revolução


passiva. Gramsci observa que na França “a hegemonia
burguesa é muito forte e tem muitas reservas. Os intelectuais
estão muito concentrados, [...]” (GRAMSCI, 1975, p. 1640).
Mais ainda: “a burocracia militar e civil tem uma grande
tradição e alcançou um alto grau de homogeneidade ativa”.
Assim, por meio do nacionalismo exacerbado, “a guerra não
debilitou, mas reforçou a hegemonia; não se teve tempo de
pensar: o Estado entrou em guerra e quase de imediato o
território foi invadido” (GRAMSCI, 1975, p. 1640).

5. O americanismo como revolução passiva

O fato de serem Estados de revolução burguesa


originária, com sólida hegemonia, tornava difícil que a
revolução socialista, surgida em um país tão atrasado quanto
a Rússia, provocasse uma revolução passiva nesses países,
como mais difícil ainda havia sido a eclosão de uma revolução
socialista ativada pela autonomia operária. A revolução
passiva nesses países viria por outro movimento, por outro
deslocamento na cena mundial, que vinha fermentando na
América.
Já em 1923, no seu escrito Europa e América,
Trotski havia se dado conta de que a tendência era a América
se sobrepor à Europa (e à própria URSS) caso a revolução
socialista não recobrasse fôlego em prazo relativamente
curto. O meio de difusão do americanismo na Europa seria,
sempre segundo Trotski, a social-democracia, pois que seria
essa força social e política a incorporar o fordismo e a educar
os trabalhadores para a retomada da acumulação capitalista
(TROTSKI, 1971).
Certamente Gramsci havia lido e meditado
sobre esse texto de Trotski, tanto que na sua obra carcerária
78
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

retoma alguns argumentos escritos uma década antes pelo


autor russo. Desde suas primeiras tentativas de estabelecer
um plano de estudos para o tempo de prisão, Gramsci
tinha em mente a importância e a necessidade de se dedicar
ao esclarecimento do significado do americanismo para a
história universal. A discussão sobre esse tema aparece no
Primeiro caderno, mas depois se dilui bastante. Há uma
fundamental retomada no caderno 22, no qual Gramsci
pensa a multiplicidade da revolução passiva, isto é, de como
se passava a viver uma época de revoluções passivas que
concorriam e se alimentavam entre si.
Na verdade, se passava a uma nova ampliação
e redefinição do conceito de revolução passiva. A questão
principal sobre a qual Gramsci se interrogava, consciente
das implicações políticas de uma resposta ao problema, era

Se o americanismo possa constituir uma ‘época’


histórica, se pode determinar um desenrolar
gradual do tipo, examinado em outro lugar, das
‘revoluções passivas’ próprias do século passado
ou se, em vez represente só um acumular-se
molecular de elementos destinados a produzir
uma ‘explosão’, ou seja, um revolvimento de tipo
francês. (GRAMSCI, 1975, p. 2140)

Gramsci entende que o americanismo e o


fordismo, assim como o fascismo, por conta da crise do
liberalismo e da pressão do movimento operário,

Resultam de necessidade imanente de alcançar


a organização de uma economia programática e
que os vários problemas examinados deveriam
ser os elos da cadeia que marcam precisamente
79
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a passagem do velho individualismo econômico


para a economia programática. (GRAMSCI, 1975,
p. 2139)

Os problemas e as dificuldades presentes na


sociedade civil e no Estado para que se chegue ao socialismo
como economia inteiramente programática, determina uma
revolução passiva, que no seu aspecto progressivo poderia ser
iniciativa de uma ou outra classe. Na URSS era iniciativa da
classe operária posta em circunstâncias de grande dificuldade,
mas na América a iniciativa era de uma fração inovadora da
burguesia.
Como regra geral, o que Gramsci havia já
anotado a respeito do Risorgimento, “as forças subalternas,
que deveriam ser ‘manipuladas’ e racionalizadas segundo os
novos fins, resistem necessariamente. Mas resistem também
alguns setores das forças dominantes, ou ao menos aliadas
das forças dominantes” (GRAMSCI, 1975, p. 2139). No seio
da classe dominante haveria a “substituição da atual camada
plutocrática por um novo mecanismo de acumulação e
distribuição do capital financeiro fundado imediatamente na
produção industrial” (GRAMSCI, 1975, p. 2139). Enquanto
que, por outro lado,

Foi relativamente fácil racionalizar a produção


e o trabalho, combinando habilmente a força
(destruição do sindicalismo operário de base
territorial) com a persuasão (altos salários,
benefícios sociais diversos, propaganda ideológica
e política habilíssima) e conseguindo basear toda
a vida do país na produção. A hegemonia nasce
da fábrica e não tem necessidade de mais que uma
quantidade mínima de intermediários profissionais
80
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da política e da ideologia. (GRAMSCI, 1975, p.


2145-2146)

Gramsci expunha que “na América a racionalização


determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano,
conforme o novo tipo de trabalho e de processo produtivo:
essa elaboração até agora está só na fase inicial e por isso
(aparentemente) idílica” (GRAMSCI, 1975, p. 2146). O
americanismo era um esforço consciente, uma iniciativa que
tinha uma finalidade clara que explica a religiosidade, a moral,
a luta contra o alcoolismo, etc. Objetivamente, na análise de
Gramsci, o resgate do puritanismo constituía um elemento
do “maior esforço coletivo verificado até agora para criar
com rapidez inaudita e com uma consciência do fim jamais
vista na história, um tipo novo de trabalhador e de homem”
(GRAMSCI, 1975, p. 2165). A implicação dessa obra é que
“ocorrerá inelutavelmente uma seleção forçada, uma parte
da velha classe trabalhadora sairá sem piedade do trabalho
e talvez do mundo tout court” (GRAMSCI, 1975, p. 2165).
Seria então o americanismo uma variante de
revolução passiva? Verificando certo resgate ideológico do
passado puritano como identidade da América, a reordenação
das classes dominantes e concessão a algumas demandas
das classes subalternas (em termos de salários e direitos)
em processo de recriação, a resposta pode ser positiva. O
americanismo-fordismo seria uma revolução-restauração.
Mas as revoluções passivas eram também respostas,
uma reação, sob forma de guerra de posição, frente um
contexto internacional efetivamente revolucionário. Qual é
o impacto externo que suscita o americanismo-fordismo?
Gramsci não aborda esse problema, mas um conjunto de
fenômenos pode ser considerado como cumprindo o papel
da revolução francesa no século XIX: a migração em massa
81
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de trabalhadores brancos pobres em direção a América


a partir de fins do século XIX, a guerra imperialista e a
revolução russa. Esses fenômenos podem ter dado impulso
ao americanismo-fordismo, mas o fato é que as forças sociais
internas foram o elemento decisivo nesse processo.
Quanto à América, “se trata de um prolongamento
orgânico e de uma intensificação da civilização européia,
que assumiu só uma epiderme nova no clima americano”
(GRAMSCI, 1975, p. 2180). A diferença fundamental é que a
América não contava com um passado feudal e com camadas
sociais resistentes, o que explica a sua capacidade de inovação.
Ao fim, sem uma resposta cabal à questão proposta sobre
o significado do americanismo, os indícios mais fortes são
de que Gramsci entendeu esse fenômeno histórico como
uma variante de revolução passiva, na qual a classe operária
teria sido destroçada e estaria sendo recomposta pela ação
do capital, segundo seus ditames específicos, tendo em vista
reverter a queda tendencial da taxa de acumulação. Uma
revolução passiva essa de forte capacidade inovadora e
expansiva, capaz de grandes avanços na guerra de posição e
de consolidação hegemônica.
Se a URSS era uma experiência de revolução
passiva continuada e o americanismo também, o conceito
originado na leitura que Cuoco fez da revolução napolitana
de fins do século XVIII sofrera uma enorme ampliação,
tendo passado pela interpretação do Risorgimento e do
fascismo. Nos fatos, a guerra imperialista e a contenção da
revolução socialista internacional como guerra de movimento
e revolução permanente desencadeou uma guerra de posição
e uma série de revoluções passivas que competiam política e
ideologicamente no cenário internacional.
Nos anos 20, como já foi recordado, seguindo
Trotski, Gramsci enunciou a hipótese de que o americanismo
82
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

deveria se sobrepor à Europa, contando então com o apoio


subserviente do reformismo social-democrata. Gramsci e
os comunistas italianos trabalhavam com a possibilidade do
poder do capital se preservar na Itália (e Europa) alternando o
reformismo e o fascismo, sem que nenhuma dessas variáveis
fosse capaz de romper os laços com o capital financeiro
inglês e com a crescente imposição da América. Somente a
retomada da revolução socialista poderia mudar essa situação.
A reflexão de Gramsci no cárcere tem uma óbvia
continuidade com essa problemática teórico-política e uma
comparação entre o fascismo e o americanismo se fazia
mister. Que a tendência era ao predomínio do americanismo
era já algo dado desde dez anos antes, pelo menos. Agora

O problema é esse: se a América, com o peso


implacável da sua produção econômica (isto é,
indiretamente) constringirá ou está constringindo
a Europa a um revolvimento do seu eixo
econômico-social demasiado antiquado, que
ocorreria do mesmo modo, mas com ritmo lento
e que imediatamente se apresenta em vez como
um contragolpe de “prepotência” americana, se,
quer dizer, está se verificando uma transformação
das bases materiais da civilização européia, o que
em longo prazo (e não muito longo, porque no
período atual tudo é mais rápido que nos períodos
passados) levará a um atropelamento da forma
da civilização existente e ao forçoso nascimento
de uma nova civilização. (GRAMSCI, 1975, p.
2178-2179)

Ocorre então o processo no qual uma revolução


passiva constituída pelo americanismo fordista impacta
83
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

decisivamente a Europa, continente onde estavam em


andamento outras variantes de revolução passiva, seja o
fascismo, seja o socialismo de Estado. Esse impacto poderia
subordinar a Europa, mas também geraria as novas condições
para a retomada da revolução socialista e do movimento de
criação da “nova civilização”.
Avançando o raciocínio, Gramsci indica que uma
transformação nas bases materiais das economias européias
poderia bem ser induzida pelo fordismo e pelo taylorismo, mas
o americanismo propriamente dito demanda a existência de
um Estado liberal e de um adequado grupo intelectual (que
inexistiam na Itália fascista):

a americanização requer um ambiente dado, uma


dada estrutura social (ou a vontade decidida de criá-
la) e um certo tipo de Estado. Esse Estado é o Estado
liberal, não no sentido de liberismo alfandegário ou
da efetiva liberdade política, mas no sentido mais
fundamental da livre iniciativa e do individualismo
econômico que chega com meios próprios, como
“sociedade civil”, pelo próprio desenvolvimento
histórico, ao regime de concentração industrial e de
monopólio. (GRAMSCI, 1975, p. 2157)

Assim, a americanização da Europa, na vista de


Gramsci, encontraria dificuldades, mas, de todo modo, seja na
América ou na Europa, “não é dos grupos sociais ‘condenados’
pela nova ordem que se pode esperar a reconstrução, mas
daqueles que estão criando, por imposição e com o próprio
sofrimento, as bases materiais dessa nova ordem: esses ‘devem’
encontrar o sistema de vida ‘original’ e não de marca americana,
para fazer vir a ser ‘liberdade’ o que hoje é ‘necessidade’ “
(GRAMSCI, 1975, p. 2179).
84
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Percebe-se então nitidamente que, para Gramsci,


portadores do futuro eram os novos grupos sociais
subalternos que estavam sendo forjados pela ação vitoriosa do
capital no ciclo de revoluções passivas que se seguiu à derrota
da revolução socialista de 1917-1921. Aquela classe operária,
profissionalmente qualificada e organizada em base fabril e
territorial, fora derrotada na Itália e na América, na Alemanha
e até mesmo, de certo modo, na Rússia. A nova classe operária
(fordista) por ora não passava de um grupo social subalterno
que vinha sendo formatado pela ação do capital. Para vir a
ser classe operária propriamente dita, ou seja, construtora
de um novo Estado e de uma nova civilização, muita coisa
ainda deveria ser feita até que o momento da postulação da
hegemonia parecesse possível.

6. A época das revoluções passivas de caráter


nacional

Nas suas notas escritas no cárcere, Gramsci


percebeu então com clareza que depois da derrota da
revolução socialista internacional e do movimento político
da classe operária, mais em geral, tivera início uma época
de revoluções passivas e de guerra de posição. A derrota da
classe operária na Europa e na América, assim como nas
periferias do imperialismo, deixou a Rússia soviética isolada e
constringida no atraso material e cultural. Nesse cenário a luta
de classes refluiu para os contornos nacionais, mais adequados
ao desenvolvimento de revoluções passivas, que concorriam
entre si pela hegemonia no contexto internacional.
A primeira forma de revolução passiva afetou
aqueles Estados que no seu processo de revolução burguesa
haviam já passado por uma revolução passiva em torno dos
anos 60 do século anterior e que agora se mostravam como elos
85
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

débeis da cadeia imperialista: a Itália, a Alemanha e o Japão.


O impacto da revolução socialista na Rússia e a debilidade
relativa da hegemonia burguesa — sob pressão das classes
subalternas — obrigaram esses Estados ao desencadeamento
de uma revolução passiva. A afirmação do Estado-nação e
da construção do consenso social a todo custo norteou essa
forma de revolução passiva. Além das instâncias policiais, de
propaganda e de mobilização militarista para a guerra e para
o trabalho, o elemento distintivo dessa forma é a imposição
(com sucesso muito variado) do corporativismo, como meio
de estatizar a sociedade civil. Essa forma de revolução passiva
foi derrotada militarmente, tendo sido então desmantelada
e recomposta sob outra forma, em certa medida, imposta
pelo vencedor.
O corporativismo, independente de sua veste
fascista, serviu como inspiração em vastas zonas da periferia
do imperialismo, nas quais as contradições internas tornaram
possível a utilização das contradições presentes no centro
imperialista para o desencadeamento de revoluções burguesas
sob a forma de revoluções passivas. Foi o caso dos extremos
da Europa, tanto a Leste, com Hungria, Polônia, Iugoslávia,
até a Turquia, quanto a Oeste, com Portugal e Espanha.
Mas foi também o caso do Brasil, da Argentina, do México.
Em parte desses casos, a contribuição do corporativismo
de inspiração católica foi importante, assim como o peso
intelectual da própria instituição clerical, acentuando o
aspecto restauração na revolução passiva.
Na Europa oriental essa experiência de revolução
passiva também foi atropelada pela guerra e desmantelada,
sendo então substituída pela variante do socialismo de Estado,
depois do curto interregno da “democracia popular”. Na
Espanha e Portugal, porém, esse regime sobreviveu até os
anos 70, enquanto na América Latina sobreviveu à custa
86
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de um conveniente hibridismo com formas liberais. Aí o


liberalismo servia bem às classes dominantes, enquanto a
classe operária era monitorada pelo corporativismo estatal
(e ainda é).
A derrota de revolução socialista obrigou a Rússia
a se redefinir como Estado (pluri) nacional e a travar uma
demorada guerra de posição numa época de revoluções
passivas. O caminho possível era inapelavelmente aquele
que Lênin identificava como sendo de um capitalismo
monopolista de Estado, sob condução do partido operário.
Certamente, como já foi lembrado, era uma revolução passiva
na medida em que restaurava parcialmente o capitalismo, mas
uma profunda revolução enquanto buscava a realização da
transição socialista. Sua característica era a busca do consenso
na base social do Estado, a autonomia relativa da sociedade
civil com o implícito reconhecimento das contradições e
conflitos entre as instâncias sociais organizadas e o Estado.
As contradições emersas no desenvolvimento do
capitalismo monopolista de Estado na URSS — agravadas pelo
isolamento e por erros na condução política — acopladas à
crise global do capitalismo, que espocou em 1929, induziu o
redirecionamento da revolução passiva naquele País. A completa
estatização da sociedade civil acabou com a autonomia relativa
existente e que era fundamental para a transição socialista
na medida em que expunha e possibilitava as contradições
entre classe e Estado, rompendo o cambaleante consenso
social. A nova revolução passiva eliminou a burguesia agrária
e o pequeno campesinato comunal, restaurando condições
próprias da servidão feudal, concentrando força de trabalho
em preparação da mecanização, a fim de produzir excedente
a ser usado na industrialização.
Ao mesmo tempo em que se realizava a
industrialização e se criava uma nova classe operária, em
87
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

novo patamar, se restaurava o Estado absolutista e a servidão


feudal. A ausência de propriedade privada e a ação distributiva
do Estado garantiam o caráter socialista do Estado, mas um
Estado de caráter absolutista, de acordo com a particularidade
histórica do Oriente-russo. A vitória militar contra o fascismo
possibilitou que essa variante de revolução passiva, que pode
ser denominada de socialismo de Estado, se difundisse pela
Europa oriental em fins dos anos 40. Certo que Gramsci
não poderia aprofundar análise dessa variante de revolução
passiva, mas seus escritos permitem ousar uma interpretação
como essa.
A rigor — como pode ser constatado —
revolução passiva foi uma categoria formulada para contribuir
na explicação de processos particulares da história italiana,
fosse o Risorgimento, fosse o fascismo. Essa categoria foi se
ampliando de tal modo que Gramsci se permitiu utilizá-la
na explicação do americanismo-fordismo, mas quase ao
modo de uma analogia. Talvez nem tanto com a revolução
passiva pensada por Cuoco, mas muito mais com a revolução-
restauração concebida por Quinet. Mas o fato é que o
americanismo se mostrou como sendo a variante mais sólida
de revolução passiva do século XX. Sua força era por demais
evidente já nos anos 20-30, mas tornou-se irresistível depois
de ter-se tornado a condutora da reordenação do mundo
capitalista após a débâcle do fascismo.
O americanismo se sobrepôs ao fascismo e aos
corporativismos sobreviventes, reordenando economias
e Estados, difundindo e induzindo revoluções passivas.
O fordismo e o taylorismo passaram a ser o padrão
organizacional e base da hegemonia burguesa no processo
de acumulação capitalista. Enfim, a previsão de Trotski nos
anos 20, reafirmada por Gramsci uma década depois, de que
a América se sobreporia à Europa por meio do consenso
88
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

construído pela social-democracia (e pela democracia-cristã),


parecia se realizar. A França e a Inglaterra tiveram que aceitar
a nova condução do núcleo original do capitalismo, onde a
hegemonia era mais sólida, mas para a Alemanha Federal e
para a Itália (assim como ao Japão) só restou aceitar a indução
de uma nova revolução passiva.
A competição entre o americanismo e seu largo
espectro de aliados com a variante de revolução passiva
manifesta no socialismo de Estado se caracterizou ainda pela
valorização do Estado-nação, pela busca de estabilidade e de
mudanças controladas, de consenso e segurança internacional,
de equilíbrio e contenção. Particularmente na Europa, o
avanço dos direitos e da assistência social foi marcante,
assim como o fortalecimento da representação política por
meio dos partidos. A difusão do americanismo como poder
imperial também contribuiu para desmantelar os arcaicos
impérios coloniais europeus e para a formação de Estados
nacionais miméticos, no mais das vezes submissos à nova
força econômica e militar que se impunha. A estabilidade
dessa vasta zona periférica era garantida pela imposição de
ditaduras militares ou por simulacros de democracia.
No entanto, o cenário de competição entre
revoluções passivas de matizes variados abriu brechas na
periferia do imperialismo em conflito, as quais possibilitaram
a efetivação de revoluções nacionais dotadas de projeto de
transição socialista. Foram os casos marcantes da Iugoslávia,
da China, do Vietnam e de Cuba, além de algumas outras
que logo recuaram.
Em meados dos anos 70, contudo, era já evidente
que todas essas variantes de revolução passiva enfrentavam
o esgotamento. Terminava a era de revoluções passivas que
Gramsci percebera ter-se iniciado em 1921. Uma persistente crise
fiscal e financeira, nos EUA, serviu de pano de fundo para crônica
89
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

crise política alimentada por forte contestação sóciocultural,


advinda de diversos grupos sociais que se mostraram incapazes
de se unificarem. A crise energética e a derrota militar na guerra
da Indochina indicaram um sério enfraquecimento da potência
imperial condutora do Ocidente imperialista.
A contrapartida foi o relativo fortalecimento
da Alemanha Federal e do Japão, que muito bem haviam
assimilado a revolução passiva, induzida pelo americanismo
por meio de investimentos massivos. A crise de realização
do capital e a crise fiscal do Estado, também nesses países,
impediram que assumissem um papel dirigente na cadeia
imperial, pois a fratura no consenso social e a ampliação
dos espaços políticos e culturais do movimento operário
passaram a tornar possível o aumento da pressão sobre o
capital. Principalmente na Europa ocidental, a classe operária
fordista alcançara um grau de organização e combatividade
tal a colocar em cheque a acumulação capitalista, tendo
conquistado espaços importantes na guerra de posição, ainda
que não configurasse uma alternativa social antagônica e
internacional, fundada no conjunto das classes subalternas.
Foi no Brasil e na Polônia, na virada dos anos 70, que a classe
operária fordista fez a sua última irrupção como força política
organizada, ainda que sempre retida dentro dos contornos
do corporativismo sindical.
Com forma e intensidade muito diferentes, as
instituições de EUA, Inglaterra, França Itália, Alemanha e
Japão foram afetadas pela crise política, tendo enfrentado a
situação fazendo amplo uso de serviços secretos e métodos
extralegais indicativos de uma crise de hegemonia das classes
dirigentes. Como reação, essas passaram a buscar um novo
realinhamento, agrupando-se em torno de seus setores sociais
mais conservadores, fazendo uso de métodos do fascismo e
da ideologia do neoliberalismo como elemento aglutinador.
90
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O crescimento econômico-político de alguns


Estados nacionais subalternos, como Brasil e Índia, e a
emergência da perspectiva antiimperialista e socialista
revolucionária agravaram a instabilidade tão temida no
conjunto das relações internacionais, obrigando a uma
geral reestruturação do império do Ocidente. Esta esteve
baseada, não só no realinhamento sócio-político, mas numa
renegociação entre seus polos de poder econômico-político,
passo necessário para uma agenda mínima tendo em vista
a ofensiva vitoriosa contra o Oriente socialista e contra
o mundo do trabalho organizado, condição para a geral
reordenação da hegemonia do capital.
De início, o Japão foi o principal beneficiário
relativo, por contar com uma classe operária com baixíssimo
grau de antagonismo, vítima precoce de formas pós-fordistas
de gerenciamento do trabalho, e por não estar diretamente
envolvido com a questão da defesa militar da ordem imperial.
A Alemanha, também aliviada desse encargo, contava, porém,
com um movimento operário de tradição social-democrata,
ciente dos direitos conquistados, enquanto que os EUA,
embora não tendo que enfrentar um movimento operário
nacionalmente articulado, sobrecarregados com a tarefa auto-
imposta de defesa do império, viram agravar-se a crise fiscal,
além de ter de enfrentar uma crise política persistente derivada
da contestação interna a guerra colonial na Indochina.
Em meados dos anos 70 a crise de hegemonia da
camada dirigente do socialismo de Estado era irreversível e,
portanto, muito mais grave que aquela das classes dirigentes
do imperialismo capitalista. Iniciada pela periferia, onde
era mais frágil e mais recente, a crise manifestou-se com o
surgimento de uma sociedade civil autônoma respaldada pela
economia mercantil e por instituições sociais tradicionais,
com destaque para a Igreja católica, principalmente no
91
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

caso polonês. A economia socialista estatal, incapaz de


incorporar produtividade ao trabalho social, passou a investir
mais que nunca na tecnologia militar de ponta, realçando
a militarização do império e sua expansão, manifesta na
África e no Afeganistão. Ao mesmo tempo se reativavam os
campos de trabalho servil, lotados com “loucos”, “bêbados”
e “dissidentes”, a fim de tentar suprir a carência de valores
de uso.

7. A mundialização como revolução passiva de


caráter internacional?

O esgotamento da era das revoluções passivas,


que se iniciou em seguida à derrota da revolução socialista
internacional de 1917-1921, poderia ser sucedido pela
retomada da revolução socialista num patamar muito superior,
oferecido pelo próprio desenvolvimento capitalista e pelas
revoluções passivas que se exauriam, ou então dar início
a uma nova onda de revoluções passivas. Os intentos de
retomada do projeto revolucionário socialista mostraram-se
insuficientes em todos os quadrantes do globo, ainda que
entre 1968 e 1975 tenham parecido exeqüíveis e tenham
efetivamente exercido pressão sobre o poder do capital. O
problema que se põe então é o de saber se o conceito de
revolução passiva, desenvolvido por Gramsci, é pertinente
para a identificação dessa nova fase da acumulação do capital
e da política internacional, e isso em dois diferentes sentidos:
se o uso do conceito, ele mesmo, é pertinente na análise
dessa realidade, do ponto de vista do seu significado, e se os
elementos que compõem essa fase delineiam efetivamente
uma revolução passiva.
Para o capital em crise as opções estratégicas
que se colocavam na segunda metade dos anos 70 era o
92
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

reconhecimento de um mundo multipolar (que englobasse


potências emergentes), uma ordenação paritária em torno
da tríade (EUA, Alemanha, Japão), ou uma retomada da
tendência imperial e unipolar. A escolha de uma ou outra
dessas possibilidades não era isenta de implicações. A
possibilidade de uma reordenação multipolar das relações
entre os Estados se viu inviabilizada pelos riscos que trazia
de ampliação dos espaços democráticos não só nas relações
entre os Estados, mas também, e principalmente dentro dos
Estados, potencializando a pressão operária, já próxima do
limite tolerável. A opção intermediária, de um condomínio
de apenas algumas potências imperiais implicaria a ênfase
na regionalização, mas as dificuldades que também Japão e
Alemanha vieram a encontrar com a tendência à estagnação
econômica fizera mais difícil também essa variante. A opção
imperial unipolar trazia a implicação de ser a mais abertamente
conservadora e reacionária, pois buscava a reordenação
das camadas dominantes em torno de seus grupos mais
conservadores e de maior poder econômico, assim como
exigia o confronto aberto e a liquidação do socialismo de
Estado. Do mesmo modo estava implícita a necessidade de
se desencadear uma ação capaz de desintegrar o antagonismo
operário. Foi essa, no entanto, aquela que se impôs4.
Após alguma oscilação, a possível solução
encontrada para contornar as ameaças à acumulação ampliada
do capital foi o desencadeamento de uma nova revolução
passiva de caráter global, aparentemente facilitada pela
estratégia imperial unipolar, que desse uma nova densidade à
hegemonia liberal-burguesa e elevasse a acumulação do capital
a um novo patamar, alterando sua própria materialidade. A
exigência era então o reforço do setor financeiro, alcançado
pela exponencial retomada da especulação, a fim de se obter
uma grande massa de capital-dinheiro acumulado a ser então
93
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

parcialmente orientada para a promoção de uma revolução


técnico-científica imediatamente aplicável ao processo de
produção, tendo por base a automação e a informatização.
O capital financeiro, que já era o principal polo da
acumulação do capital, serve então de matriz geradora de uma
massa de conhecimento por meio da garantia do controle e da
gestão dos meios de produção da ciência, que tem a matéria
prima no saber e na inteligência. Mas o próprio monopólio da
informação permite ao capital financeiro radicalizar sua natureza
especulativa, transferindo capital-dinheiro de um ponto a outro
do globo, promovendo um movimento de valorização alheio ao
processo produtivo, acentuando o descolamento da reprodução
ampliada da produção da riqueza social.
Sob a veste de capital cognitivo, o capital financeiro
investe também na produção implantando um sistema de
máquinas eletrônicas flexíveis e inteligentes que passa a substituir
o sistema de máquinas rígidas e repetitivas da produção de massa,
atenuando assim a importância da direta propriedade dos meios
de produção e projetando a propriedade do conhecimento como
elemento decisivo da acumulação capitalista. A atividade mecânica
da fábrica taylorizada empobrece a realização do trabalho, mas
propicia laços de solidariedade operária derivada da semelhança
nas condições de vida, que ganha expressão organizativa e
cultural no sindicato e no partido de massa. A chamada revolução
informacional, por seu turno, rompe a solidariedade operária,
fragmentando-a em pequenos corporativismos setorizados no
mercado, e dissolve o antagonismo social latente, já que na fábrica
automatizada o trabalhador é isolado, e seu contato com outros
trabalhadores, que cumprem diferentes funções, é feito através
do gerenciamento do processo de trabalho e da produção, que
concentra o poder na empresa.
Essa individualização do trabalho, conectada
às novas tecnologias e às novas formas de organização e
94
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

gerenciamento do trabalho, representa uma ulterior expropriação


da subjetividade operária, pois, além da mão, submete a mente.
Ao mesmo tempo em que o trabalho da fábrica taylorizada é
desvalorizado, a revolução tecnológica eleva a produtividade
social do trabalho, dotando uma parcela limitada da força de
trabalho de saber técnico-científico, ao ligar trabalho produtivo
e conhecimento científico, e assim constituindo uma nova
versão de “aristocracia operária”. Mas, por outro lado, assim se
cria uma quantidade crescente de trabalhadores em situação de
acrescida precariedade, ocupada em tempo parcial, expropriados
de seu saber acumulado, uma massa enorme de expulsos do
processo produtivo, no limite, expropriados do uso da sua força
de trabalho.
Com a fragmentação, destruição ou deslocamento
da classe operária que se forjou na pregressa onda de revoluções
passivas, por meio de uma guerra de posição na produção, perpetra-
se um novo desdobramento e fragmentação dos grupos sociais
subalternos, que permite ao capital desencadear a ofensiva contra
os direitos sociais e do trabalho. Estabelecido o objetivo de (re)
privatizar a esfera pública, de modo a encaminhar soluções
para a crise fiscal do Estado, ao mesmo tempo se conjura para
que aquela parte da força de trabalho que permanece útil para
o capital seja reduzida a uma nova forma de corporativismo
(análogo à servidão feudal), a partir do momento que seu posto
de trabalho e suas garantias sociais devem passar a depender
diretamente da tentacular empresa privada. Assim, nem mesmo
o aumento de produtividade gerado pelas novas tecnologias e
novas qualificações consegue estancar a queda das condições de
vida dos trabalhadores.
Na realidade, há uma transferência de propriedade
e de poder político para as grandes corporações capitalistas
com o decorrente esvaziamento da capacidade decisória e da
soberania do Estado nacional em direção a novas instituições
95
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

burocráticas supranacionais e a instituições localistas,


praticamente imunes a qualquer controle democrático.
O resultado é que as instituições liberal-democráticas,
gestadas e fortalecidas no contexto do Estado nacional,
tendem a perder poder decisório em favor de organismos
burocráticos internacionais e privados, ligados mais ou menos
diretamente aos interesses do grande capital e das grandes
empresas. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o
Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento
(BIRD), em grande medida, determinam a política financeira
que redefine os espaços de acumulação, sobrepondo-se
à soberania estatal, cada vez mais delimitada. O governo
representativo tem mesmo sua eficácia colocada em dúvida,
a fim de que se imponham formas de democracia plebiscitária
(ou de cesarismo), movimento esse facilitado pela crise do
sindicato e partido de massa e de toda a cultura socialista.
Impedido pelo seu caráter de acumulação privada
e de organização hierárquica da produção e do poder político,
ainda que o capital se empenhe na constituição do imperium
mundi das grandes corporações, não pode prescindir do Estado
para dar guarida ao seu poder. O que ocorre é simplesmente
a privatização e a transferência de responsabilidades para
instâncias da sociedade civil, sejam empresas ou organizações
sociais. O Estado é sempre mais importante para tentar conter
a crise de acumulação, empenhando-se em garantir parcelas de
mercado e fontes de recursos naturais, alterando suas funções
de acordo com as necessidades da mundialização do capital.
A dinâmica militarista, intrínseca ao imperialismo,
não cessa, mas se alarga, e essa é indispensável para a
garantia da colonização dos mercados internos dos Estados
periféricos, caso a pressão financeira não seja o bastante.
Portanto, o enfraquecimento do Estado é diferenciado e
mesmo relativo. De fato, são os Estados nacionais periféricos
96
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

aqueles a serem debilitados porque sofrem uma ofensiva


colonialista que atinge seus recursos naturais, a ordenação
da produção e seus mercados. Cai o mito da soberania do
poder estatal.
As iniciativas tendo em vista a restauração da
produtividade da acumulação capitalista foram implementadas
com toda a força nos anos 80, respaldadas também por ampla
ofensiva cultural e ideológica, que garantia o fim do trabalho,
o fim dos sujeitos, o fim da História, o fim da luta de classes.
Era a época pós-moderna que se iniciava, o tempo dos
fragmentos e do individualismo levado ao extremo, tempo
a-histórico da prevalência da máquina sobre o homem. Essa
ofensiva generalizada do capital teve seus objetivos iniciais
realizados em pouco tempo: foi alcançado o enfraquecimento
do movimento operário, de suas instituições e ideologias,
mas a derrubada do socialismo de Estado foi decisiva para a
desarticulação da resistência dos trabalhadores como sujeito
coletivo.
Ao contrário da acumulação originária privada
do capital que obrigou abertura de espaços institucionais
no Estado absolutista, compondo-se com a nobreza feudal,
no Estado feudal-socialista do Oriente — o socialismo de
Estado —, por sua postura anticapitalista, a acumulação
privada só poderia abrir caminho através da irrupção de uma
burguesia formada nos subterrâneos. Era essa uma burguesia
sem qualquer parâmetro cultural ou legal que delimitasse sua
atividade no mercado forjado na contravenção e que desde
logo se associou ao grande capital imperialista, cedendo à
colonização o novo mercado que se abria. A inviabilidade
da reativação da democratização socialista tornou inevitáveis
as crescentes concessões à pressão imperialista e, por fim,
a capitulação e a desintegração, que resultou na virtual
colonização da Europa oriental.
97
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A desintegração do socialismo de Estado ofereceu


toda a certeza de que o mundo imperial unipolar sob controle
completo do capital estivesse por se realizar. A mundialização
do circuito do capital e a configuração do império estavam
ao alcance das mãos tenebrosas da oligarquia financeira
transnacional. O redimensionamento dos espaços também
estava em andamento, com o cerco aos recursos do Oriente-
Médio, por meio da guerra do Iraque e a guerra de destruição
da Iugoslávia. O núcleo do império unipolar são os EUA, que
exercem o seu mandato em nome das grandes corporações
capitalistas transnacionais, particularmente daquelas que têm
seus interesses definidos a partir do solo americano.
Depois da ruptura de 1989-1991, quando o
socialismo de Estado concluiu a sua parábola, em vários
Estados e regiões se intentou impulsos de revolução passiva,
fundindo-se nacionalismo e neo-liberalismo (como no
Japão). O fim do socialismo de Estado deu novo alento a
todas as forças mais reacionárias do cenário mundial, com
a emergência de forças dotadas de ideologias religiosas
regressivas.
Em 2001 ocorreu uma nova virada na política
mundial sugerida pelos atentados espetaculares perpetrados
nos EUA, coincidentes com sintomas de esgotamento do
crescimento econômico baseado na financeirização. A partir
de então a agressividade imperial se tornou cabal, com
guerras de conquista e pressões econômicas e diplomáticas
ultrajantes. Sentiu-se a necessidade de garantir recursos
energéticos a qualquer preço, sinal que o poder imperial
unipolar gerenciado pelas grandes empresas capitalistas
encontrava problemas de monta. Essas se apresentam na
enorme dificuldade de se restaurar as taxas de acumulação
capitalista, mesmo com o aumento da produtividade do
trabalho vivo, e da crescente dependência dessa acumulação
98
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da especulação financeira e da produção armamentista


(conforme antiga avaliação de Lênin).
A potência gestora do imperium mundi, na
medida em que tem a sua economia debilitada e cada vez
mais dependente do movimento do capital financeiro e da
indústria bélica, paripassu aumenta a agressividade e declina a
capacidade hegemônica. O império do capital construído com
a força do Estado americano tende a ver se enfraquecer esse
instrumento enquanto força de concentração hegemônica,
o que só estimula o caos nas relações internacionais,
considerando que a ONU, até porque serviu de instrumento
da hegemonia americana, não tem a menor possibilidade de
gerenciar os múltiplos conflitos existentes e potenciais.
A outra grande dificuldade está em sanar a brecha
que se abriu na crise dos anos 70, quando alguns poucos
Estados puderam conseguir um arranque de crescimento
econômico, que cria mais problemas à dominação capitalista
do que resolve. Trata-se dos casos da Coréia do Sul (que
incomoda o Japão, sobremaneira), da China e da Índia, assim
como do Irã de certa maneira. A China e a Índia contam
juntas com mais de 2/5 da população humana, ou seja, um
enorme mercado potencial que lhes permite crescer a taxas
muito significativas. Particularmente a China representa um
desafio ao império unipolar com seus enclaves capitalistas e
uma periferia não-capitalista.
Pode-se, por certo, levantar dúvidas sérias sobre
a definição da mundialização do capital como revolução
passiva, mas por outro lado, é razoável analisar casos nacionais
particulares de revolução passiva na mundialização, como
os citados casos da China, da Coréia, da Índia. Do mesmo
modo, ainda que predominem aspectos de restauração, de
modos diferentes também o Irã e o Japão poderiam ser
assim avaliados. Na América Latina é possível perceber uma
99
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

revolução passiva no Chile, nação usada como laboratório do


empreendimento neoliberal. Venezuela, Bolívia e Equador podem
avançar evoluções nacional-democráticas que se radicalizem em
direção anticapitalista, mas Brasil, Argentina e México se detêm,
presos a incertezas. O problema é sempre aquele do como
afrontar a mundialização.

8. Ou crise orgânica do capital?

A esse ponto, à guisa de conclusão provisória, pode-


se interrogar sobre o rigor de se qualificar os últimos trinta anos da
história do imperialismo como uma revolução passiva de caráter
mundial. Aparentemente a crise dos anos 70 e o esgotamento
de um ciclo de revoluções passivas projetaram o americanismo
como variante capaz de se sobrepor a todas as outras e criar um
império universal. O cansaço do fordismo pode ser superado pela
incorporação da variante japonesa de organização do processo
de trabalho dentro de um contexto de forte inovação tecnológica
e de mercados abertos. Esse revolvimento nas bases materiais
da produção capitalista seria o fundamento de uma revolução
passiva que restauraria a produtividade do capital. A ideologia do
neoliberalismo serviu bem de invólucro a esse cenário de fantasia.
Como se viu, com Gramsci, uma revolução passiva
sugere um impacto revolucionário externo e uma forte pressão
das classes subalternas sobre o poder nacional vigente. O impacto
externo poderia ser localizado, com um tanto de flexibilidade
sobre o conceito, numa ofensiva imperial — de caráter
claramente restaurador — desencadeada pelos EUA em todos os
quadrantes, e a pressão das classes subalternas poderia ser vista
principalmente na força do movimento operário europeu e nos
movimento revolucionários das periferias. Mas uma revolução
passiva reordena o conjunto das classes dominantes incorporando
novos elementos, atraindo parte de suas direções e desarticulando
100
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a força antagônica. O intento foi o de articular o conjunto dos


proprietários, de difundir e generalizar a noção de propriedade
como par indissociável de liberdade (ainda que pela força), até
como instrumento ideológico de desagregação do antagonismo
social. Uma revolução passiva desencadeia também uma guerra
de posição que, para serem vitoriosos, o capital e o conjunto das
classes dirigentes precisam absorver parcialmente as demandas
dos grupos sociais subalternos e atrair suas direções intelectuais,
a fim de que a hegemonia civil seja recomposta.
Mas se havia (como penso que havia) uma vontade e
uma iniciativa subjacente de desencadear uma revolução passiva,
uma revolução-restauração, que, além de resgatar a produtividade
do capital, reordenasse a capacidade da burguesia capitalista
de gerir um seu império sobre o mundo, sob a forma de uma
hegemonia fundada na alienada faceta egóico-proprietária,
essa falhou. Falhou e não podia ser de outro modo, pois as
dificuldades incontornáveis para a superação da crise fiscal e a
crise de produtividade obrigam a um crescente espezinhar da
força de trabalho, expropriada em larga medida até mesmo da
sua condição de homo faber. Ademais, a produção capitalista torna-
se crescentemente destrutiva de bens de uso para que se force
a criação permanente de novos bens de troca. Nesse processo,
a utilização de recursos naturais que geram energia é realizada
de maneira crescente e de forma a conduzir o ambiente natural
e humanizado a uma catástrofe sem precedente, colocando em
risco até mesmo a sobrevivência da espécie humana.
Os processos históricos analisados por Gramsci e
que podiam ser qualificados como revoluções passivas traziam
consigo ainda um potencial civilizador, que poderia criar
mesmo condições mais adequadas para a revolução socialista.
Gramsci acenava que as revoluções passivas “acolhem uma parte
qualquer das exigências populares” e alimentam “expectativas e
esperanças” (GRAMSCI, 1975, p. 957, p. 1228).
101
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Na dialética revolução-restauração da fase atual


do imperialismo denominada de mundialização do capital, o
aspecto revolução se limita a novas tecnologias, mas não se
tem mostrado capaz de resolver os problemas do capital, até
porque predomina a tendência a arrasar a força de trabalho e
a prescindir dela no seu processo de acumulação, o que é uma
contradição insanável do próprio capital; o aspecto restauração,
por sua vez, não consegue contemplar a dimensão da
hegemonia civil, pelo contrário, estimulando a conflitualidade
no seio dos grupos sociais subalternos, induz uma permanente
guerra civil de variável intensidade.
A questão posta por Gramsci era de como sair
vitorioso de uma revolução passiva de caráter nacional,
de como transformá-la em parte de revolução socialista
internacional, de como culminar uma guerra de posição com
uma guerra de movimento que derrubasse o poder do capital
e suas instituições. Hoje a questão posta é uma outra, muito
mais radical e urgente: como impedir a barbárie tecnológica e
a catástrofe ambiental induzida pela ação do capital em crise,
senão com a revolução socialista internacional? Como se pode
falar em revolução passiva quando há sintomas de regressão
do próprio processo de humanização do homem?
Assim, a dúvida que assolou Gramsci na análise do
americanismo, se esse era realmente um processo histórico a
ser qualificado como revolução passiva ou “só um acumular-se
molecular de elementos destinados a produzir um revolvimento
do tipo francês” (GRAMSCI, 1975, p. 2140), pode muito bem
assombrar o presente. O retorno em novo patamar de muitas
das características da acumulação primitiva do capital (que
nunca estiveram ausentes ou foram superadas), nessa fase
tardia do imperialismo, como formas variadas de servidão e
escravidão, mormente nas periferias, mas não só, destacam a
factibilidade dessa dúvida.
102
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O aprofundamento da contradição em processo


do capital, os elementos de entropia nos processos sociais e
nas relações internacionais, a diversificação e fragmentação de
manifestações político-culturais dos grupos sociais subalternos,
inclusive com elementos de forte regressividade religiosa ou
racista, indicam uma nova atualidade do dístico socialismo ou
barbárie. Ao momento em que a hegemonia se propõe tão
somente como acentuação do individualismo proprietário e
como manipulação ideológica, alcançando um número sempre
mais exíguo de indivíduos e grupos, é necessário pensar se, na
verdade, mais do que uma revolução passiva sob a forma de
mundialização do capital é mais provável que estejamos diante
da crise orgânica do bloco histórico constituído sob o controle
e a dinâmica do capital, que no seu inexorável declínio aponta
para um crescente barbarismo social e tecnicista.
Ao descrever a crise orgânica, Gramsci sugeria que

Se a classe dominante perdeu o consenso, quer


dizer que não é mais “dirigente”, mas unicamente
“dominante”, detentora da pura força coercitiva,
isso significa exatamente que as grandes massas se
descolaram das ideologias tradicionais, não crêem
mais nisso em que antes criam, etc. A crise consiste
exatamente no fato que o velho morre e o novo
não pode nascer: nesse interregno se verificam os
fenômenos mórbidos mais variados. (GRAMSCI,
1975, p. 311)

Depois, com mais detalhe, dizia que:

Ocorre uma crise que, às vezes, prolonga-se


por dezenas de anos. Essa duração excepcional
significa que se revelaram (chegaram à maturidade)
103
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

contradições insanáveis na estrutura e que as forças


políticas que atuam positivamente para conservar
e defender a própria estrutura esforçam-se para
saná-las dentro de certos limites e superá-las.
Estes esforços incessantes e perseverantes (já
que nenhuma forma social jamais confessará que
foi superada) formam o terreno do “ocasional”,
no qual se organizam as forças antagonistas que
tendem a demonstrar (demonstração que em
última análise só tem êxito e é “verdadeira” se
se torna nova realidade, se as forças antagonistas
triunfam, mas que imediatamente se explicita
numa série de polêmicas ideológicas, religiosas,
filosóficas, políticas, jurídicas, etc., cujo caráter
concreto pode ser avaliado pela medida em que
se tornam convincentes e deslocam o alinhamento
pré-existente das forças sociais) que já existem
as condições necessárias e suficientes para que
determinadas tarefas possam e, portanto, devam
ser resolvidas historicamente (devem, já que a não-
realização do devir histórico aumenta a desordem
necessária e prepara catástrofes mais graves).
(GRAMSCI, 1975, p. 1579-1580)

O socialismo, ou melhor, a revolução comunista,


como superação da crise orgânica, no entanto, somente
poderá se concretizar por meio de uma larga aliança global
dos grupos sociais subalternos postos em antagonismo ao
processo de acumulação do capital e a dominação imperial
e a tudo aquilo que leva consigo: a exploração do trabalho, a
submissão da mulher, a racialização e a devastação ambiental.
Nesse caminho, com a mediação da dimensão nacional, que
se constitua uma nova classe operária, mais preocupada com
104
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a contradição em processo do que com uma sua possível


identidade, que enfrente o desafio da emancipação humana e
de construção de uma nuova civiltà.
A atualidade de Gramsci se encontra tanto na sua
radicalidade crítica, no seu pensamento dialético e dialógico,
quanto numa filosofia da práxis que destaque o espírito
de cisão diante do capital e das formas várias de poder
político, que enfatize a autonomia, a auto-organização e o
antagonismo social. Mais atual do que nunca, porque de uma
dimensão muito maior e muito mais concreta, é a necessidade
de se forjar uma frente única de forças sociais e políticas que
configurem o embrião do novo bloco histórico fundado no
trabalho associado e emancipado.

Notas
Note-se a analogia desse dilema interpretativo com aquele que corroia
1

Marx e Engels a propósito da Rússia do ultimo quartel do século


XIX, quando pensavam uma revolução jacobina burguesa e mesmo
Lênin, quando se perguntava logo após a revolução de 1905 sobre
os caminhos da revolução naquele império oriental.
Edgar Quinet (1803-1875) foi historiador das religiões, polemista
2

e ativista político francês, tendo defendido posições republicanas e


laicas. Foi deputado constituinte em 1848.
Benedetto Croce (1866-1952) foi o mais influente intelectual italiano
3

da primeira metade do século XX e o principal interlocutor de


Gramsci nos Cadernos do Cárcere. O próprio Gramsci iniciou a
sua vida intelectual fortemente influenciado pelo neo-idealismo de
Croce. Croce desenvolveu uma filosofia da história e da política nos
contornos do liberalismo e publicou uma obra bastante extensa.
As reflexões que se seguem se fundamentam principalmente em DEL
4

ROIO, Marcos. O império universal e seus antípodas: a ocidentalização do


mundo. São Paulo: Ícone, 1998; CHESNAIS, François. A mundialização
105
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

do capital. São Paulo: Xamã, 1996; MESZAROS, Istvan. Para além


do capital. São Paulo: Boitempo, 2002; Idem. O século XXI: socialismo
ou barbárie. São Paulo: Boitempo, 2003; HARVEY, David. La guerra
perpétua: analisi del nuovo imperialismo. Milano: Il Saggiatore, 2006.

Referências

CUOCO, V. Saggio storico sulla rivoluzione di Napoli. Milano:


Rizzoli, 1999.

DEL ROIO, M. Os prismas de Gramsci: a fórmula política da


frente única (1919-1926). São Paulo: Xamã, 2005.

GRAMSCI, A. Quaderni del Cárcere. Torino: Einaudi, 1975.

______. Lettere (1908-1926). Torino: Einaudi, 1992.

TROTSKI, Leon. Europe e Amerique. Paris: Anthropos, 1971.

106
A filosofia da práxis em
Gramsci e Vigotski1

Newton Duarte2

O tema proposto para esta mesa é muito oportuno


e, ao mesmo tempo, desafiador.
Já de início apresenta-se um problema: a expressão
“filosofia da práxis” pode ser encontrada facilmente ao longo
da obra de Gramsci, em especial nos famosos “Cadernos do
Cárcere”, mas inexiste na obra de Vigotski. Algo similar ocorreria,
por exemplo, se fosse proposto o tema “o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores em Vigotski e em Gramsci”.
Teríamos então o caso inverso: a expressão “funções psicológicas
superiores” está presente na obra vigotskiana e ausente da obra
gramsciana. Mas isso não impediria que o tema fosse abordado,
por exemplo, pelo ângulo do papel da cultura na formação dos
seres humanos, abrindo-se assim amplas possibilidades de análise
das contribuições de ambos os citados pensadores marxistas. Há
uma diferença, porém, entre o tema proposto para esta mesa
e o tema hipotético por mim inventado: a expressão “filosofia
da práxis” provavelmente foi proposta para esta mesa com
o propósito de convidar-nos a refletir sobre os fundamentos
filosóficos das teorias desses dois autores. Gramsci considerava
que fundador da filosofia da práxis foi Marx. Tal filosofia não
pode, portanto, ser outra coisa que não o marxismo. Nesse caso
o tema desta mesa pode ser traduzido como “o marxismo em
Gramsci e Vigotski”, resolvendo-se, dessa maneira, o anunciado
problema.
junqueira&marin editores 107
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Quanto ao marxismo em Vigotski, tenho tratado


desse tema em trabalhos anteriores (DUARTE, 1996, 2000)
e, mais do que isso, tenho polemizado com as interpretações
acerca do pensamento vigotskiano que procuram separá-
lo do marxismo e incorporá-lo ao relativismo cultural
pós-moderno e às pedagogias do “aprender a aprender”,
especialmente o construtivismo. Nesse sentido, prefiro não
repetir nesta mesa redonda os argumentos que já venho
defendendo há mais de uma década. Desde o primeiro
momento em que fui convidado para participar deste evento,
que coloca em destaque dois pensadores do porte de Gramsci
e Vigotski, tive como certo que se tratava de abordar as
aproximações e semelhanças entre dois grandes marxistas,
dois grandes comunistas. Portanto, desculpem-me aqueles
que usam Gramsci para defender a social democracia ou
que usam Vigotski para defender o pós-modernismo. Nesta
apresentação não darei atenção a tais interpretações, por
mais que reconheça o poder de sedução que elas exercem
no meio acadêmico.
Por uma questão de didática da exposição, iniciarei
a abordagem do tema proposto pela discussão do significado
da palavra “práxis” e da expressão “filosofia da práxis”.

1. Práxis ou Prática? Filosofia da Práxis ou


Filosofia da Prática?

Como é amplamente conhecido, uma das razões


pelas quais a expressão “filosofia da práxis” foi empregada
por Gramsci, teria sido a necessidade de burlar a censura
nos cárceres do regime fascista italiano. Assim, por exemplo,
Gramsci faz referência ao título do livro de Bukharin como
sendo “Teoria da Filosofia da Práxis” (GRAMSCI, 1999, p.
149) quando o título verdadeiro era “Teoria do Materialismo
108
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Histórico”. Ou então quando Gramsci, para referir-se a Marx


sem citar seu nome, referia-se ao “fundador da filosofia
da práxis” (idem, p. 129). Os especialistas nos escritos
gramscianos travam discussões a respeito de quanto e quando
Gramsci também teria usado a expressão “filosofia da práxis”
por razões propriamente filosóficas.
Por exemplo, segundo Frosini (2002), Gramsci
teria adotado a expressão filosofia da práxis de escritos de
Antonio Labriola3 muito mais por razões substantivas dos
que para burlar a censura. Para Labriola e para Gramsci, o
marxismo seria uma filosofia da práxis que superaria tanto o
idealismo como o materialismo vulgar. Uma das referências,
na obra de Marx, para a defesa de uma filosofia da práxis
seriam as famosas Teses Sobre Feuerbach.
Mas por que “práxis” e não simplesmente
“prática”? Quais seriam as diferenças entre esses dois
conceitos no interior do marxismo?
Começando pelo próprio Gramsci, há passagens
de seus escritos nas quais fica evidente que ele atribuía um
significado específico à palavra práxis. Por exemplo:

Unidade dos elementos constitutivos do marxismo.


A unidade é dada pelo desenvolvimento dialético das
contradições entre o homem e a matéria (natureza
– forças materiais de produção). Na economia, o
centro unitário é o valor, ou seja, a relação entre o
trabalhador e as forças industriais de produção [...].
Na filosofia é a práxis, isto é, a relação entre a vontade
humana (superestrutura) e a estrutura econômica. Na
política é a relação entre o Estado e a sociedade civil,
isto é, intervenção do Estado (vontade centralizada)
para educar o educador, o ambiente social em geral.
(GRAMSCI, 1999, p. 236-237)
109
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Nessa passagem a palavra práxis não é empregada


com a função de burlar a censura, mas com um significado
explícito de categoria central do marxismo como filosofia.
Mas nos “Cadernos do Cárcere”, ao menos na edição em
português aqui empregada, a palavra “prática” é utilizada
normalmente, ou seja, Gramsci não utiliza generalizadamente
a palavra práxis como substitutiva de prática. Isso também
indica a atribuição de um significado específico ao conceito
de práxis.
O filósofo marxista mexicano Adolfo Sanchez
Vazquez em seu livro intitulado Filosofia da Praxis
(VAZQUEZ, 1986) explica que, embora os termos práxis e
prática possam ser usados indistintamente, preferiu adotar
o primeiro, de uso mais restrito ao vocabulário filosófico,
mas com a vantagem de não carregar consigo um “sentido
estritamente utilitário e pejorativo” (idem, p. 4). Nesse sentido
Vazquez afirma:

Assim entendida, a praxis é a categoria central da


filosofia que se concebe ela mesma não só como
interpretação do mundo, mas também como guia
de sua transformação. Tal filosofia não é outra
senão o marxismo. (VAZQUEZ, 1986, p. 5)

É interessante notar que o dicionário Houaiss da


língua portuguesa4, uma das acepções filosóficas de práxis
seria:

[...] no marxismo, ação objetiva que, superando e


concretizando a crítica social meramente teórica,
permite ao ser humano construir a si mesmo e
o seu mundo, de forma livre e autônoma, nos
âmbitos cultural, político e econômico.
110
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Há, portanto, essa linha de interpretação segundo


a qual a categoria de práxis, no marxismo, significaria a
unidade entre teoria e prática, unidade essa orientada para a
transformação da realidade social.
Mas essa linha de interpretação é passível de
questionamento. Se a Filosofia da Práxis é o marxismo, uma
primeira discussão seria a do significado com o qual Marx
empregaria a palavra Praxis5. Aí já começa o problema, pois,
como informa nota de rodapé do citado livro de Vazquez:

Também em italiano se pode dizer “prassi” e


“practica”. Em francês emprega-se quase que
exclusivamente o termo “practique”, em russo só
se usa a palavra “práktika”, e em inglês o vocábulo
correspondente é “practice”. Em alemão se
conserva o termo grego original escrito do mesmo
modo que em espanhol e português – Praxis – com
a particularidade de que apenas se dispõe deste, ao
contrário das demais línguas modernas, que têm
um termo próprio que se usa com caráter exclusivo
ou junto com a palavra grega Praxis. (VASQUEZ,
1986, p. 3-4)

Ou seja, na língua alemã, a palavra Praxis,


de origem grega, é a única palavra que corresponde ao
substantivo “prática” na língua portuguesa. Embora exista em
alemão o substantivo feminino Praktik seu significado é o de
método, técnica, procedimento, ou seja, um significado mais
específico do que o de prática. Entretanto, o adjetivo com o
mesmo significado que “prático” é praktisch. Por essa razão,
penso que a melhor tradução para a palavra Praxis em Marx é
simplesmente “prática”. Ao contrário do que afirmam alguns
marxistas, não me parece que Marx tenha criado ou utilizado
111
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

uma categoria filosófica específica que seria representada pela


palavra Praxis. A tão comentada categoria de práxis como
categoria central do marxismo não existe na obra de Marx.
Não se trata de afirmar que a relação entre teoria e prática
não fosse importante para Marx ou que a prática humana não
fosse o ponto de partida de sua teoria. O que estou afirmando
é simplesmente que a palavra Praxis não tem no vocabulário
de Marx esse significado filosófico especial. No vocabulário
de Marx, Praxis significa simplesmente prática. Para fazer
distinções entre os diferentes tipos de prática humana, Marx
adjetiva a palavra prática (Praxis).
Interessante notar que Vazquez, embora adote a
expressão filosofia da práxis e não filosofia da prática, utiliza
adjetivos para diferenciar os vários tipos de práxis: criadora,
reiterativa, espontânea, reflexiva, intencional, inintencional,
histórica, coletiva, revolucionária, burocratizada etc. Mas isso
não esvaziaria a especificidade do conceito de práxis que o
próprio Vazquez afirma estar no centro do marxismo?
Algumas traduções das obras de Marx para o
português optam por traduzir a palavra Praxis por prática. É
o caso, por exemplo, da tradução feita por Marcelo Backes da
obra A Sagrada Família (MARX; ENGELS, 2003). Vejamos
a título de exemplo, uma passagem dessa obra:

[...] demonstrou-se que o judaísmo se conservou


e se desenvolveu através da História, em e com a
História, mas que esse desenvolvimento tem que ser
descoberto, não por meio do olhar do teólogo, mas
apenas pelo olhar do homem mundano, uma vez
que não se encontra na teoria religiosa, mas apenas
na prática comercial e industrial [in der kommerziellen
und industriellen Praxis]. Esclareceu-se, ao contrário,
porque o judaísmo prático [das praktische Judentum]
112
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

apenas alcança sua culminação no mundo cristão


culminante e, mais ainda, por que é a prática
culminante [die vollendete Praxis] do mesmo mundo
cristão. (MARX; ENGELS, 2003, p. 128)6

Como exemplifica essa passagem, a palavra Praxis


usada em alemão por Marx pode perfeitamente ser traduzida
por prática. Vejamos, porém, essa questão nas famosas Teses
sobre Feuerbach. A tradução feita por José Carlos Bruni
e Marco Aurélio Nogueira (MARX; ENGELS, 1993) e a
tradução feita por José Arthur Giannotti (MARX, 1978)
optaram pelo uso em português da palavra práxis, ao passo
que a tradução feita por Rubens Enderle, Nélio Schneider e
Luciano Cavini Martorano (MARX; ENGELS, 2007) adotou
o substantivo “prática” na tradução das Teses, mas empregou
também a palavra “práxis” em algumas passagens d’A Ideologia
Alemã (MARX; ENGELS, 2007, vide, por exemplo, p. 35-36)7.
Em Portugal, a tradução publicada nas Obras Escolhidas de
Marx e Engels8, optou por usar a palavra práxis. Em espanhol,
a edição das Obras Escolhidas (MARX; ENGELS, 1976, p.
7-11), optou, na tradução das Teses, pela utilização da palavra
“práctica” ao invés de práxis. Em edição francesa9 disponível
em web a palavra usada é “pratique”. Em italiano, com tradução
de Palmiro Togliatti, a opção de tradução adotada foi “attività
pratica”10. Em inglês, em edição de 1938, a palavra usada foi
practice11.
Mas não apoio meu argumento apenas na questão
da tradução da palavra Praxis. Creio ser minha interpretação
compatível com o conteúdo do pensamento marxiano nas
Teses. Vejamos inicialmente uma parte da primeira tese:

O principal defeito de todo o materialismo


existente até agora (o de Feuerbach incluído) é
113
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível,


só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou
da contemplação, mas não como atividade humana
sensível, como prática; não subjetivamente. Daí o
lado ativo, em oposição ao materialismo, [ter sido]
abstratamente desenvolvido pelo idealismo –
que, naturalmente, não conhece a atividade real,
sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis
[sinnliche Objekte], efetivamente diferenciados dos
objetos do pensamento: mas ele não apreende
a própria atividade humana como atividade
objetiva [gegenständliche Tätigkeit]. Razão pela qual
ele enxerga, n’A Essência do Cristianismo, apenas
o comportamento teórico como autenticamente
humano, enquanto a prática é apreendida e fixada
apenas em sua forma de manifestação judaica,
suja. Ele não apreende por isso, o significado
da atividade “revolucionária”, “prático-crítica”.
(MARX; ENGELS, 2007, p. 533)

O que Marx critica em Feuerbach nessa primeira tese


é o fato de o materialismo deste não ser capaz de compreender
a realidade material como resultante da atividade objetiva, real,
sensível, dos seres humanos. A realidade material é vista por
Feuerbach como algo à parte da atividade humana e esta, por
sua vez, é reduzida pelo idealismo à atividade do pensamento.
Daí Feuerbach conceber como atividade propriamente humana
apenas a atividade teórica. Ou seja, seu materialismo, ao não
abordar a atividade humana objetiva e a produção da realidade
objetiva pela atividade humana, permanece preso ora ao objeto
desprovido de atividade humana, ora à atividade humana
reduzida à atividade de pensamento. A atividade revolucionária,
como crítica prática à realidade, permanece fora da filosofia
114
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de Feuerbach. Para Marx, não é suficiente criticar a religião


e mostrar que os cristãos se alienam no seu deus, é preciso
ir além, fazer a crítica da própria sociedade que produz a
religião como uma das formas alienadas de relacionamento
entre o ser humano e a realidade. Mais do que isso, a crítica
à realidade social não pode ser apenas teórica, deve ser uma
crítica pela prática revolucionária. É por isso que Marx usa
nas teses as expressões atividade revolucionária (revolutionären
Tätigkeit), atividade prático-crítica (praktisch-kritischen Tätigkeit),
prática revolucionária (revolutionäre Praxis). Mas a prática
humana também se manifesta nas formas alienadas da prática
cotidiana e, como foi citado acima, Marx critica Feuerbach
pelo fato deste não ter visto a prática humana para além de
suas formas cotidianas, utilitaristas e pragmáticas. Feuerbach
identificou a prática humana com uma de suas manifestações
alienadas na sociedade capitalista. Ora, se Marx usa o adjetivo
“revolucionária” para qualificar um tipo de prática humana,
então existem, para ele, outros tipos de prática. Ele não usa
uma palavra específica para referir-se à prática revolucionária,
ele adjetiva a prática.
Se a palavra Praxis, tal como usada por Marx em
alemão, não possui um significado especial que a distinguiria
do substantivo “prática” em português, torna-se inevitável
a pergunta: existe uma filosofia da prática em Marx? Eu
responderia a essa pergunta afirmando que em Marx existe
uma filosofia da prática humana em sua totalidade histórica
e uma filosofia da prática revolucionária, sendo esta segunda
uma parte especialmente importante da primeira:

A coincidência entre a alteração das circunstâncias


e a atividade humana só pode ser apreendida e
racionalmente entendida como prática revolucionária.
(MARX; ENGELS, 2007, p. 538)
115
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

É sabido que Lukács (2004) deu especial atenção


à categoria “trabalho” em sua ontologia do ser social, assim
como Leontiev (1978) à categoria “atividade” na construção
de uma psicologia marxista (EIDT, 2006). Não posso, porém,
enveredar pela discussão da relação dessas categorias com a
discussão sobre a filosofia da práxis neste artigo na medida
em que tal comparação demandaria um espaço muito maior
do que o de um artigo. Isso não significa, porém, que eu
desconsidere a importância de tal discussão e a necessidade
de análise aprofundada e cuidadosa das especificidades de
cada uma dessas categorias no corpo teórico do marxismo.

2. A “Filosofia da Práxis” ou “Filosofia Marxista


da Prática” como uma filosofia materialista

A superação, pelo marxismo, do materialismo


contemplativo e do idealismo, não é a inauguração de uma
espécie de terceira via filosófica nem mesmo uma espécie
de termo médio entre o idealismo e o materialismo. A
filosofia de Marx é materialista, trata-se de um materialismo
que une dialeticamente a modificação da realidade objetiva
e a modificação dos sujeitos, dos seres humanos. Um
materialismo que é histórico e revolucionário, que tem
como referência a construção histórica da universalidade do
ser humano e, portanto, não limita seus horizontes aos da
sociedade burguesa:

[Tese 9]: O máximo a que chega o materialismo


contemplativo, isto é, o materialismo que não
concebe o sensível como atividade prática, é a
contemplação dos indivíduos singulares e da
sociedade burguesa. [Tese 10]: O ponto de vista
do velho materialismo é a sociedade burguesa; o
116
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ponto de vista do novo é a sociedade humana, ou


a humanidade socializada. (MARX; ENGELS,
2007, p. 539)

Nesse ponto a posição de Gramsci parece-me um


tanto ambígua. Embora ele não deixe de usar a expressão
“materialismo histórico” para se referir ao marxismo,
há passagens dos “Cadernos do Cárcere” nas quais são
apresentadas restrições quanto ao uso do termo materialismo:

Foi esquecido que, numa expressão muito comum


[materialismo histórico – N. D.], dever-se-ia colocar
o acento no segundo termo, “histórico”, e não no
primeiro, de origem metafísica. A filosofia da
práxis é o historicismo absoluto, a mundanização
e terrenalidade absoluta do pensamento, um
humanismo absoluto da história. Nesta linha é
que deve ser buscado o filão da nova concepção
de mundo. (GRAMSCI, 1999, p. 155)

É certo que as restrições que Gramsci faz ao uso


desse termo aparecem no contexto de sua polêmica com
Bukharin e com o materialismo tradicional. E também é
certo que Gramsci considerava que Marx teria iniciado uma
nova fase não só da filosofia, mas da cultura e que a teoria
de Marx seria uma síntese entre idealismo e materialismo:

Na história da cultura, que é muito mais ampla


que a história da filosofia, sempre que a cultura
popular aflorou, porque se atravessava uma fase de
transformações e da ganga popular se selecionava
o metal de uma nova classe, registrou-se um
florescimento de “materialismo”; inversamente,
117
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

no mesmo momento, as classes tradicionais se


apegavam ao espiritualismo. Hegel, situado entre
a Revolução Francesa e a Restauração, dialetizou
os dois momentos da vida do pensamento,
materialismo e espiritualismo, mas a síntese foi
“um homem que caminha de cabeça para baixo”.
Os continuadores de Hegel destruíram esta
unidade, e se voltou aos sistemas materialistas, por
um lado, aos espiritualistas, por outro. A filosofia
da práxis, em seu fundador, reviveu toda esta
experiência de hegelianismo, feuerbachianismo,
materialismo francês – para reconstruir a síntese
da unidade dialética: “o homem que caminha sobre
as próprias pernas”. O dilaceramento ocorrido
com o hegelianismo se repetiu com a filosofia da
práxis, isto é, da unidade dialética se voltou ao
materialismo filosófico, ao passo que a alta cultura
moderna idealista tentou incorporar da filosofia
da práxis aquilo que lhe era indispensável para
encontrar algum novo elixir. (GRAMSCI, 2001,
p. 38)

Mas fica então a pergunta o marxismo é ou não


um materialismo? Além de utilizar a expressão (mesmo que
com ressalvas) materialismo histórico, Gramsci denomina
“materialismo tradicional”, “materialismo vulgar” etc. àquele
materialismo que teria sido superado pela filosofia da práxis.
Disso pode-se inferir que o marxismo seria um materialismo
não tradicional, não vulgar, ou seja, um materialismo que
historiciza e dialetiza o conhecimento da realidade natural
e social.
Mas há passagens nas quais parece que a concepção
gramsciana de síntese dialética entre materialismo e idealismo
118
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

(“espiritualismo”), ou seja, a filosofia da práxis seria uma


espécie de terceira via, nem idealista nem materialista. Talvez
essa seja a origem das restrições que Gramsci faz ao uso do
termo materialismo para caracterização do marxismo:

É notório, por outro lado, que o fundador da


filosofia da práxis jamais chamou sua concepção
de “materialismo” e que, falando do materialismo
francês, criticou-o, afirmando que a crítica deveria
ser mais exaustiva. Assim, jamais usou a fórmula
“dialética materialista”, mas sim “racional”, em
contraposição à “mística”, o que dá ao termo
racional uma significação bastante precisa.
(GRAMSCI, 1999, p. 129)

Em primeiro lugar, se o critério for o de se Marx


usou ou não uma determinada expressão, então Gramsci não
poderia chamá-lo de fundador da filosofia da práxis, pois,
salvo desconhecimento de minha parte, Marx nunca usou
essa expressão para referir-se à sua própria concepção. Em
segundo lugar, embora Marx não empregasse com frequência
a palavra materialismo para definir sua teoria, com certeza
ele a incluía no campo das teorias materialistas. Em relação a
esse ponto, isto é, ao fato de Marx considerar o comunismo
como uma concepção materialista, as seguintes passagens
d’A Ideologia Alemã não deixam dúvidas:

[...] na realidade, e para o materialista prático, isto é,


para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo,
de enfrentar e de transformar praticamente o
estado de coisas por ele encontrado. Se, em certos
momentos, encontram-se em Feuerbach pontos
de vista desse tipo, eles não vão além de intuições
119
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

isoladas e têm sobre sua intuição geral muito pouca


influência para que se possa considerá-los como
mais do que embriões capazes de desenvolvimento.
(MARX; ENGELS, 2007, p. 30)

[Feuerbach] não nos dá nenhuma crítica das


condições de vida atuais. Não consegue nunca,
portanto, conceber o mundo sensível como a
atividade sensível, viva e conjunta dos indivíduos
que o constituem, e por isso é obrigado, quando
vê, por exemplo, em vez de homens sadios, um
bando de coitados, escrofulosos, depauperados
e tísicos, a buscar refúgio numa “concepção
superior” e na ideal “igualização do gênero”; é
obrigado, por conseguinte, a recair no idealismo
justamente lá onde o materialista comunista vê
a necessidade e simultaneamente a condição de
uma transformação, tanto da indústria como da
estrutura social. Na medida em que Feuerbach é
materialista, nele não se encontra a história, e na
medida em que toma em consideração a história
ele não é materialista. (MARX; ENGELS, 2007,
p. 32, sublinhado meu)

Essa passagem não dá sustentação à ideia de que


os “fundadores da filosofia da práxis” tenham acentuado
um dos dois termos da expressão “materialismo histórico”.
Como mostra o trecho sublinhado, Marx e Engels criticaram
Feuerbach justamente por não ser materialista quando
considerava a história e por deixar de lado a história quando
tentava ser materialista. Não me parece ser a mesma posição
de Gramsci, que na expressão materialismo histórico coloca o
acento no historicismo e secundariza o materialismo. Gramsci
120
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

afirma que a filosofia da práxis é o “historicismo absoluto”.


Ocorre, porém, que o historicismo absoluto não pode existir
a não ser como um materialismo absoluto.
Em terceiro lugar Gramsci dá, na passagem
dos “Cadernos do Cárcere” anteriormente citada, um tom
unilateralmente negativo à apreciação que Marx fazia do
materialismo francês. Mas essa interpretação gramsciana não
condiz, por exemplo, com a seguinte passagem d’A Sagrada
Família:

Não é preciso ter grande perspicácia para dar-


se conta do nexo necessário que as doutrinas
materialistas sobre a bondade originária e a
capacidade intelectiva igual dos homens, sobre
a força onipotente da experiência, do hábito, da
educação, da influência das circunstâncias sobre
os homens, do alto significado da indústria, do
direito ao gozo etc. guardam com o socialismo
e o comunismo. Se o homem forma todos seus
conhecimentos, suas sensações etc. do mundo
sensível e da experiência dentro desse mundo,
o que importa, portanto, é organizar o mundo
do espírito de tal modo que o homem faça aí a
experiência, e assimile aí o hábito daquilo que
é humano de verdade, que se experimente a si
mesmo enquanto homem. Se o interesse bem
entendido é o princípio de toda moral, o que
importa é que o interesse privado do homem
coincida com o interesse humano. Se o homem
não goza de liberdade em sentido materialista,
quer dizer, se é livre não pela força negativa de
poder evitar isso e aquilo, mas pelo poder positivo
de fazer valer sua verdadeira individualidade, os
121
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

crimes não deverão ser castigados no indivíduo,


mas [devem-se] sim destruir as raízes anti-sociais
do crime e dar a todos a margem social necessária
para exteriorizar de um modo essencial sua vida.
Se o homem é formado pelas circunstâncias, será
necessário formar as circunstâncias humanamente.
Se o homem é social por natureza, desenvolverá
sua verdadeira natureza no seio da sociedade e
somente ali, razão pela qual devemos medir o
poder de sua natureza não através do poder do
indivíduo concreto, mas sim através do poder da
sociedade. Essas e outras semelhanças podem
ser encontradas, quase ao pé da letra, até mesmo
nos mais velhos entre os materialistas franceses.
(MARX; ENGELS, 2003, p. 149-150)

Essa passagem não deixa dúvidas em relação ao


fato de que, para Marx, o comunismo é o materialismo levado
às suas últimas consequências, é o humanismo materialista
em sua forma mais desenvolvida, é a plena objetivação do ser
humano e a plena apropriação da riqueza humana objetiva
e subjetiva.
Por outro lado não ignoro que Gramsci empregou
a expressão “materialismo histórico” em várias passagens
dos “Cadernos do Cárcere” sem quaisquer restrições ou
ressalvas, ou seja, como uma função praticamente idêntica à
da expressão “filosofia da práxis” em seus escritos. Seja qual
for a interpretação que se tenha da questão do materialismo
em Gramsci, deixo assinalada minha posição de que só
vejo sentido no uso da expressão “filosofia da práxis” se tal
uso não for motivado pela intenção de se apresentar essa
filosofia como uma espécie de terceira via ao materialismo
e ao idealismo.
122
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

3. Diferenças entre a filosofia da práxis e o


pragmatismo

Avancemos um pouco mais na análise da filosofia


da práxis em Gramsci, abordando as diferenças entre
marxismo e pragmatismo. Gramsci aborda essa questão da
seguinte maneira:

Se é verdade que toda filosofia é uma “política”


e que todo filósofo é essencialmente um homem
político, tanto mais isso vale para o pragmatista,
que constrói a filosofia “utilitariamente” num
sentido imediato. [...] Se tomarmos o princípio
pragmatista tal como é concebido por James
– a saber, “o melhor método para discutir os
diversos pontos de qualquer teoria é começar
por colocar em relevo qual a diferença prática
que resultaria do fato de que uma ou outra das
alternativas fosse a verdadeira” [...] –, veremos
qual é a imediaticidade do politicismo filosófico
pragmatista. O filósofo “individual” de tipo italiano
ou alemão, está ligado à “prática” mediatamente
(e, freqüentemente, a mediação é uma cadeia de
muitos anéis); o pragmatista quer se ligar a essa
prática imediatamente e, na realidade, revela-se
desta forma que o filósofo de tipo italiano ou
alemão é mais “prático” do que o pragmatista, que
julga a partir da realidade imediata, freqüentemente
vulgar, enquanto o outro tem um fim mais elevado,
coloca o objetivo mais no alto e, desta forma,
tende a elevar o nível cultural existente (quando
tende, claro). Hegel pode ser concebido como o
precursor teórico das revoluções liberais do século
123
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

XIX. Os pragmatistas, na melhor das hipóteses,


contribuíram para criar o movimento do Rotary
Club ou para justificar todos os movimentos
conservadores e reacionários (para justificá-los
de fato e não apenas por distorção, polêmica,
como é o caso de Hegel e o Estado prussiano).
(GRAMSCI, 1999, p. 270-271)

A relação entre a filosofia e a prática, no caso da


filosofia da práxis, é uma relação mediada e, como assinalou
Gramsci, trata-se de uma mediação constituída por uma
“cadeia de muitos anéis”. O exemplo dado por Gramsci
é ilustrativo ao mostrar que, ao contrário do que poderia
parecer, uma filosofia que busque ligação imediata com a
prática produz, nesta, efeitos de alcance muito limitado e
tem um significado político e ideológico reacionário, isto
é, contribui para a conservação da dinâmica da sociedade
existente, ao invés de transformá-la. Ao passo que a filosofia
dialética de Hegel, mesmo com toda sua carga de idealismo,
estaria ligada, por muitas mediações, às revoluções liberais
do século XIX.
Segundo o pensador norte-americano William
James (1842-1910), o pragmatismo defende que a melhor
maneira para decidir-se sobre a verdade ou falsidade de uma
ideia ou crença é responder às perguntas: Que diferença
concreta existirá na vida real de qualquer pessoa, se a ideia ou
crença for verdadeira ou, ao contrário, se ela for falsa? Como
será essa verdade concretizada? Quais experiências seriam
diferentes daquelas que aconteceriam se a crença fosse falsa?
(JAMES, 1907, p. 77). Conclui, então, James, que o significado
de verdade é o de que o fato de termos ideias verdadeiras faça
alguma diferença prática (idem). Nessa linha de raciocínio,
James analisa a crença na existência de Deus e afirma que,
124
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

para o pragmatismo, a existência de Deus seria considerada


verdadeira desde que tivesse alguma função na prática social
dos indivíduos12. Ou seja, não se trata de discutirmos se Deus
existe ou não, basta sabermos se a ideia da existência de
Deus desempenha alguma função nas relações que os seres
humanos estabelecem entre si e com a natureza.
Alguém poderia argumentar que tal concepção de
verdade postulada pelo pragmatismo seria a mesma postulada
pelo marxismo, o qual também tem a prática social como
critério de verdade. Estariam, porém, Marx e James referindo-
se à mesma prática? Trabalhariam eles com o mesmo conceito
de prática? Não, eles não têm a mesma concepção do que
seja a prática social humana. Como já citei anteriormente
neste texto, Marx afirma, na primeira tese sobre Feuerbach,
que n’A Essência do Cristianismo “a prática é apreendida e
fixada apenas em sua forma de manifestação judaica, suja”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 533). Ou seja, existem várias
formas de prática humana. Isso que Marx chamou de “forma
de manifestação judaica e suja” pode ser entendido como a
prática cotidiana, a qual é um dos âmbitos da prática social
humana, mas esta não se reduz àquela. A prática cotidiana na
sociedade capitalista é apenas a forma fenomênica e fetichista
da totalidade da prática humana. Não se trata de afirmar que
a prática cotidiana seja menos real do que outras formas de
prática humana, mas sim de se compreender qual seja seu
significado ontológico e epistemológico, tal como foi feito,
por exemplo, por Heller (1984, 1994).
Esse é um dos principais aspectos que distinguem
a concepção marxista da concepção pragmatista de prática
social. O pragmatismo identifica a prática social com a
prática cotidiana, isto é, a atividade e o pensamento humanos
não ultrapassariam jamais a vida cotidiana. O pragmatismo
ignora ou dá pouca importância às diferenças entre a vida
125
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

cotidiana e as outras esferas da vida social, o que inclusive


o leva a contradições insolúveis como a contradição entre
o relativismo epistemológico e a centralidade atribuída pelo
próprio pragmatismo, ao menos em sua forma clássica, ao
pensamento científico e ao método experimental.
Por identificar transcendência com metafísica, o
pragmatismo nega qualquer possibilidade de se transcender
a vida cotidiana. Ocorre que a alienação da vida cotidiana
não pode ser analisada de forma crítica a não ser adotando-
se a perspectiva da totalidade e da história, o que implica
necessariamente a transcendência na relação entre os seres
humanos e sua vida cotidiana. Não se trata, é claro, de se
transcender a realidade resultante da totalidade da prática
humana, mas de se transcenderem os estreitos limites da
realidade imediata da vida cotidiana alienada. Isso não está
em contradição com a ideia defendida por Gramsci de que a
filosofia da práxis, como filosofia da historicidade humana,
leva às últimas consequências as filosofias imanentistas em
oposição à religião e a todas as demais filosofias que se
apóiam em entidades transcendentes: “a filosofia da práxis
continua a filosofia da imanência, mas depurando-a de todo
o seu aparato metafísico e conduzindo-a ao terreno concreto
da história” (GRAMSCI, 1999, p. 156).
Por não fazer distinção entre a prática utilitária
cotidiana e a prática social em sua totalidade, o pragmatismo é
incapaz de elaborar uma teoria da riqueza subjetiva e objetiva
universal humana. Ao contrário do pragmatismo, o marxismo
desenvolveu uma teoria histórica e dialética da construção da
riqueza material e intelectual do gênero humano.
A presença das ideias inspiradas no pragmatismo
é nítida nas teorias pedagógicas mais amplamente difundidas
na atualidade, mas também pode ser notada nas políticas
educacionais e no senso comum pedagógico. É um equívoco
126
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

considerar-se que o debate sobre ideias pedagógicas seja algo


puramente especulativo, sem nenhum impacto sobre aquilo
que se faz efetivamente no plano das ações educacionais.
A influência do pragmatismo nas teorias pedagógicas tem
visíveis reflexos na educação escolar contemporânea e isso
pode ser constatado ao menos no que se refere a três tipos
de problemas: aqueles referentes ao currículo escolar, aos
métodos didáticos e à própria escola como instituição.
No que se refere ao currículo escolar o pragmatismo
está presente nos princípios relativistas, tanto do ponto de
vista epistemológico como do ponto de vista cultural. Não
há mais conteúdos verdadeiros e objetivos a serem ensinados.
O conteúdo da educação escolar passa a ser constituído
por significados “negociados” dentro das regras dos “jogos
de linguagem”. A aprendizagem deve ser significativa e
contextualizada. Ela só é considerada significativa se o
conhecimento adquirido puder satisfazer necessidades e
interesses diretamente conectados ao cotidiano do aluno.
Quanto ao caráter contextualizado do conhecimento que
venha a ser aprendido na escola, trata-se não apenas de
possíveis aplicações práticas do conhecimento e nem mesmo
é suficiente que sua aprendizagem tenha sido motivada
por interesses provenientes da prática cotidiana. A própria
validade do conhecimento depende, segundo as pedagogias
atualmente dominantes na educação, de contextos culturais
específicos. Fora das práticas e dos discursos próprios a um
grupo cultural, o conhecimento parece perder inteiramente
sua validade. Ou seja, todo conhecimento seria absolutamente
relativo, simplesmente um ponto numa rede discursiva auto-
justificadora. Não haveria nenhum conhecimento objetivo e
de validade universal.
No que diz respeito ao método didático, o
pragmatismo resulta em negação do ensino como transmissão
127
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de conhecimento e o substitui pelo aprender a aprender


(escola nova) e pela construção espontânea das estruturas
cognitivas (construtivismo). Se a verdade depende da prática
cotidiana dos indivíduos, então a educação escolar não pode
ter por objetivo a transmissão de conteúdos previamente
considerados verdadeiros pelos educadores. A educação deve
ser funcional, no sentido dado a esse termo por Claparède.
Alimentada por esse tipo de concepção didática, ganha
terreno a assim chamada pedagogia dos projetos, a qual vem
de mãos dadas com a pedagogia das competências.
A escola passa então a ser vista como uma
instituição que tem seu significado definido por sua inserção
imediata no contexto da comunidade local. Não por acaso
sua função é definida como a de sociabilização dos alunos,
isto é, a de favorecer a adaptação dos alunos ao seu meio
social imediato. Se, segundo o pragmatismo, o conhecimento
é verdadeiro ou falso dependentemente de sua eficácia na
prática cotidiana dos indivíduos e dos grupos culturais,
então a escola tem ou não legitimidade social na mesma
proporção de sua eficácia como instituição de apoio ao
enfrentamento, pela comunidade, de seus problemas locais,
a partir dos “recursos materiais e humanos” existentes na
própria realidade local. A escola perde assim sua identidade
institucional e passa a ser uma instituição polivalente em sua
aparência, mas na realidade destituída daquele que seria seu
valor próprio, a tarefa de transmissão, às novas gerações, do
conhecimento historicamente acumulado.
É necessário fazer-se a crítica marxista à influência
do pragmatismo na educação. Como afirmou Gramsci na
passagem anteriormente citada, o pragmatismo tem efeitos
políticos conservadores, mas isso parece não ser percebido
por pesquisadores e educadores que nas últimas décadas
têm promovido um “resgate” dos ideais escolanovistas,
128
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

movimento educacional que sempre se apresentou como


progressista (os norte americanos chamam de Progressive
Education ou Progressive School) e que, como é sabido, tem
como um de seus pilares teóricos a filosofia pragmatista e
como ideal de sociedade a democracia liberal burguesa. O
curioso é que existem até aqueles que se apóiam em Gramsci
para defender esse “resgate” da Escola Nova pelas pesquisas
e pelas práticas em educação. Também não faltam aqueles
que procuram aproximar as ideias de Vigotski no campo
educacional às ideias de John Dewey.
Que existam essas tentativas de apropriação dos
autores marxistas pelo pensamento pedagógico idealista, não
deve ser motivo de espanto. Mas não deixa de causar-me
preocupação o fato de que alguns intelectuais marxistas não
vejam necessidade de análises críticas dessas tentativas. Cabe
então perguntar: a quem interessa esse silêncio?

4. Alguns traços principais da filosofia da


práxis segundo Gramsci

A filosofia da práxis, ou o marxismo, na versão


gramsciana, possui alguns traços marcantes, dos quais destaco
três: a ortodoxia, a historicidade e a dialética.
A ortodoxia da filosofia da práxis era defendida
por Gramsci no sentido de que o marxismo é uma
concepção de mundo original que deve se firmar como tal,
em polêmica com as demais concepções, não necessitando
ser complementada por nenhuma delas e também não
necessitando sujeitar-se a nenhum outro sistema filosófico.
Para Gramsci, a ortodoxia do marxismo deve ser buscada

[...] no conceito fundamental de que a filosofia


da práxis “basta a si mesma”, contendo em si
129
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

todos os elementos fundamentais para construir


uma total e integral concepção de mundo, não
só uma filosofia e teoria das ciências naturais,
mas também os elementos para fazer viva uma
integral organização prática da sociedade, isto
é, para tornar-se uma civilização total e integral.
(GRAMSCI, 1999, p. 152)

O outro traço decisivo da filosofia da práxis seria o


da historicidade, que se desdobra no pensamento gramsciano
em dois princípios: o de que a filosofia da práxis é a filosofia
da historicidade do ser humano, ou seja, da realidade humana,
e o princípio da historicidade da própria filosofia da práxis. A
historicidade do gênero humano e da prática social humana
é abordada por Gramsci como um longo processo de luta
pela superação da fragmentação em direção à universalidade
e à unidade do humano.
É nesse sentido que ele insiste na unidade entre
filosofia e política, ou seja, na unidade entre a teorização sobre
a realidade humana e a atividade voltada para a transformação
dessa realidade como uma totalidade. Nessa perspectiva, a
filosofia da práxis é uma filosofia que busca responder à
pergunta sobre o que é o ser humano no terreno do processo
histórico de unificação do gênero humano, de superação das
contradições sociais que colocam os seres humanos em luta
uns contra os outros:

O problema do que seja o homem é sempre,


portanto, o problema da “natureza humana”, ou
também o do chamado “homem em geral”, isto
é, a tentativa de criar uma ciência do homem
(uma filosofia) que parta do conceito inicialmente
“unitário”, de uma abstração na qual se possa
130
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

conter todo o “humano”. Mas o “humano”, como


conceito e fato unitário, é um ponto de partida
ou um ponto de chegada? [...] A concepção
de “espírito” nas filosofias tradicionais, bem
como a de “natureza humana” encontrada na
biologia, deveriam ser explicadas como “utopias
científicas” que substituíram a utopia maior
da “natureza humana” buscada em Deus (e os
homens – filhos de Deus), e servem para indicar
o contínuo trabalho da história, uma aspiração
racional ou sentimental etc. É verdade que tanto
as religiões que afirmam a igualdade dos homens
como filhos de Deus quanto as filosofias que
afirmam sua igualdade pelo fato de participarem
da faculdade de raciocinar foram expressões
de complexos movimentos revolucionários
(respectivamente, a transformação do mundo
clássico e a transformação do mundo medieval),
que colocaram os mais poderosos elos do
desenvolvimento histórico. [...] Na história, a
“igualdade real” [...] identifica-se no sistema de
associações “privadas e públicas”, “explícitas
e implícitas”, que se aninham no “Estado” e
no sistema mundial político. [...] Desta forma,
chega-se também à igualdade ou equação entre
“filosofia e política”, entre pensamento e ação,
ou seja, a uma filosofia da práxis. (GRAMSCI,
1999, p. 244-246)

É na totalidade da prática histórica dos seres


humanos que o marxismo busca as respostas para as questões
vitais da humanidade. É por essa razão que Marx considerava
não ser suficiente a crítica filosófica à alienação religiosa:
131
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa,


da duplicação do mundo num mundo religioso e
num mundo mundano. Mas que o fundamento
mundano se destaque de si mesmo e construa
para si um reino autônomo nas nuvens pode ser
esclarecido apenas a partir do auto-esfacelamento
e do contradizer-a-si-mesmo desse fundamento
mundano. Ele mesmo, portanto, tem de ser
tanto compreendido, em sua contradição, quanto
revolucionado na prática. Assim, por exemplo,
depois que a terrena família é revelada como o
mistério da sagrada família, é a primeira que tem,
então de ser teórica e praticamente eliminada.
(MARX; ENGELS, 2007, p. 534)

Mas a própria filosofia da práxis deve ser


historicizada. Ela também será superada com a superação das
condições históricas a partir das quais foi criada. A superação
das contradições produzidas pelas sociedades de classe, em
especial pelo capitalismo, levará também à superação do
marxismo:

Todavia, se também a filosofia da práxis é uma


expressão das contradições históricas – aliás, é
sua expressão mais completa porque consciente
–, isto significa que ela está também ligada à
“necessidade” e não à “liberdade”, a qual ainda
não existe e ainda não pode existir historicamente.
Assim, se se demonstra que as contradições
desaparecerão, demonstra-se implicitamente
que também desaparecerá, isto é, será superada,
a filosofia da práxis: no reino da “liberdade”, o
pensamento e a idéia não mais poderão nascer
132
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

no terreno das contradições e da necessidade de


luta. Atualmente, o filósofo (da práxis) pode fazer
apenas esta afirmação genérica, sem poder ir mais
além; de fato, ele não pode se evadir do terreno
atual das contradições, não pode afirmar, a não
ser genericamente, um mundo sem contradições,
sem com isso criar imediatamente uma utopia.
(GRAMSCI, 1999, p. 204-205)

Temos aí também o terceiro traço decisivo da


filosofia da práxis, isto é, sua natureza dialética. A filosofia
da práxis supera o idealismo da filosofia hegeliana, mas
incorpora a dialética. Definir a filosofia da práxis como uma
expressão consciente das contradições históricas significa
defini-la como uma filosofia dialética.

5. A dialética materialista e histórica em


Vigotski

A propósito da dialética e já me encaminhando


para a conclusão desta apresentação, faz-se necessário
mencionar um problema em certas interpretações do
pensamento de Vigotski. Segundo essas interpretações, um
tanto comuns entre educadores e psicólogos brasileiros, a
dialética seria uma espécie de terceira via epistemológica,
que se identificaria com o chamado interacionismo. Como se
sabe, foi Piaget quem defendeu que o interacionismo seria a
terceira via que superaria tanto o inatismo (ou racionalismo)
quanto o empirismo. Mas a dialética em Vigotski nada tem
a ver com o interacionismo. Trata-se, isto sim, da dialética
numa perspectiva materialista e histórica. A dialética em
Vigotski está diretamente ligada à incorporação que Marx,
Engels e Lênin fazem da dialética hegeliana13. Vigotski cita
133
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

com frequência diversas passagens do estudo que Lênin fez


da dialética hegeliana. Trata-se de um universo filosófico
totalmente distinto das ideias difundidas entre educadores
brasileiros em torno dos conceitos de interacionismo ou
sócio-interacionismo. Para a construção de uma teoria
geral de uma psicologia marxista, isto é, uma psicologia que
considerasse o ser humano como essencialmente social,
Vigotski tomava como grande modelo a obra O Capital, de
Karl Marx:

“O Capital” deve ensinar-nos muito porque a


verdadeira psicologia social começa depois de
“O Capital” e, todavia, a psicologia é hoje uma
psicologia anterior a “O Capital”. (VYGOTSKI,
1991, p. 391)14

Ao contrário do que afirmam muitos intérpretes


atuais de Vigotski, que associam seu pensamento a muitos
autores e correntes, mas o afastam de Marx e do marxismo,
a verdade é que o marxismo, ou materialismo histórico,
ou “filosofia da práxis” era a principal referência de seu
trabalho. Era a partir do marxismo que Vigotski se relacionava
criticamente com as mais diversas correntes da psicologia.
Coerente com seus pressupostos marxistas, Vigotski afirmou
que

Nossa ciência [a psicologia – N. D.] não podia


nem pode desenvolver-se na velha sociedade [o
capitalismo – N.D.]. Ser donos da verdade sobre a
pessoa e da própria pessoa é impossível enquanto
a humanidade não for dona da verdade sobre a
sociedade e da própria sociedade. Pelo contrário,
na nova sociedade [o comunismo – N. D.], nossa
134
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ciência se encontrará no centro da vida. “O salto


do reino da necessidade ao reino da liberdade”
formulará inevitavelmente a questão do domínio
de nosso próprio ser, de subordiná-lo a nós
mesmos. (VYGOTSKI, 1991, p. 406)

Não seria essa relação dialética entre a luta da


humanidade por ser dona da sociedade e a luta dos indivíduos
por serem donos de sua própria personalidade, um ótimo
ponto de partida para refletirmos sobre a filosofia da práxis
em Vigotski?

Notas
Trabalho apresentado em 14/08/2007, na VI Jornada do Núcleo de
1

Ensino, UNESP, campus de Marília.


Professor do Departamento de Psicologia da Educação, UNESP,
2

campus de Araraquara. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Estudos


Marxistas em Educação”.
De fato, a apreciação que Gramsci faz dos trabalhos de Labriola é
3

bastante positiva: “Labriola, na realidade, ao afirmar que a filosofia da


práxis é independente de qualquer outra corrente filosófica, é auto-
suficiente, foi o único a procurar construir cientificamente a filosofia
da práxis. (Gramsci, 1999, p. 224).
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Disponível em:
4

<http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=praxis&stype=
k&x=16&y=14>. Acesso em: 5 mar. 2008.
Na língua alemã, Praxis é um substantivo feminino. Nesse idioma
5

todos os substantivos são escritos com a primeira letra maiúscula.


Neste texto, toda vez que eu estiver referindo-me a essa palavra na
língua alemã, a escreverei em itálico e com a primeira letra maiúscula.
Edição em alemão disponível em: <http://www.mlwerke.de/me/
6

me02/me02_082.htm>. Acesso em: mar. 2008.


135
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Até o momento em que escrevo este texto não encontrei nenhuma


7

explicação, na referida edição, para o fato dos tradutores usarem práxis


em alguns momentos e prática em outros.
Disponível em <http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/
8

tesfeuer.htm>. Acesso em: mar. 2008.


Disponível em: <http://www.marxists.org/francais/marx/
9

works/1845/00/kmfe18450001.htm>. Acesso em: mar. 2008.


10
Disponível em: <http://www.marxists.org/italiano/marx-
engels/1845/3/tesi-f.htm>. Acesso em mar. 2008.
11
Disponível em: <http://www.marxists.org/archive/marx/
works/1845/theses/original.htm>. Acesso em: mar. 2008.
12
“On pragmatistic principles, if the hypothesis of God works
satisfactorily in the widest sense of the word, it is true.” (James,
1907, p. 115). Disponível em: <http://www.brocku.ca/MeadProject/
James/James_1907/James_1907_08.html>. Acesso em: 16 mar. 2008.
13
Em Duarte (2003, p. 17-83) analisei mais detidamente a questão da
dialética em Vigotski.VYGOTSKI, Lev S. Obras escogidas, tomo I.
Madri: Visor e MEC, 1991.
14
Para efeito de referência bibliográfica, mantive a grafia do nome do
autor tal como a da edição citada, embora usualmente adote a grafia
“Vigotski”, tal como vem sendo feito em edições brasileiras de obras
desse autor.

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136
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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VYGOTSKI, Lev S. Obras escogidas, tomo I. Madri: Visor e


MEC, 1991.

138
A práxis de Gramsci e a
experiência de Dewey

Giovanni Semeraro

1. Proximidades e diferenças

Contemporâneos na primeira metade do século


XX, Dewey e Gramsci — o primeiro nos Estados Unidos
da América e o segundo na Europa — interpretaram com
acuidade as grandes transformações sociais e culturais de uma
época em franco movimento de globalização. Abordaram o
acelerado processo de industrialização e o desenvolvimento
científico-tecnológico, a formação da sociedade de massa e
sua irrupção na política, a difusão da democracia e a nova
concepção do conhecimento. Mantidas as diferenças, os
dois perceberam e aprofundaram a função da escola e da
educação na estruturação político-cultural da sociedade.
Dentro do próprio âmbito político-cultural, perseguiram
tarefas semelhantes: Dewey procurou renovar o liberalismo1
afastando-o do bruto laissez-faire e do individualismo atomista,
e Gramsci resgatou o marxismo das “incrustações naturalistas
e positivistas”.
Um paralelo entre a filosofia da práxis de Gramsci
e o pragmatismo de Dewey revela, também, diversos pontos
de contato: a concepção de uma filosofia imanente em
oposição à metafísica e ao inatismo; a crítica do racionalismo
e do idealismo; a superação de dualismos que separam a
junqueira&marin editores 139
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

matéria do espírito, o sujeito do objeto, o homem da natureza;


a valorização da ciência e da experiência; o caráter social e
histórico do conhecimento; a busca do consenso e a construção
da democracia; a concepção de homem como ser de relação; a
educação criativa e vinculada a problemas concretos2.
Mas, para além das sintonias, quando se analisam
de perto alguns conceitos e a concepção de mundo emergem
diferenças consideráveis entre Gramsci e Dewey que não
se explicam simplesmente pelo fato de que os dois viveram
em ambientes diferentes. O clima dominante na Europa
durante a “Segunda Guerra dos Trinta anos (1914-1945)”,
de fato, é diferente da atmosfera que se respira nesse mesmo
período nos Estados Unidos. A ascensão hegemônica
destes, seu intenso desenvolvimento e o New Deal, colocado
em marcha como resposta à crise de 1929, desempenham
grande influência na elaboração das ideias “ativas” e
“progressivistas” de Dewey, cujo “instrumentalismo” deve ser
analisado também no âmbito do naturalismo evolucionista,
da psicologia experimental e do funcionalismo social dos
filósofos de Chicago3.
Gramsci, ao contrário, é um político militante
que escreve marcado pela I Guerra Mundial, pela Revolução
de Outubro de 1917 e pela luta contra o fascismo.
Vinculado à matriz teórica do marxismo, mostra que o
“miolo do materialismo histórico”4 é a “filosofia da práxis”
(GERRATANA, 1997, p. 87ss), entendendo-a não como
mera “ciência” ou puro ato voluntário, mas como uma
proposta a ser construída na unidade de filosofia e de política:
“uma teoria que se sabe teoria que, para ser verdadeira, deve
ser eficaz, ou seja, realmente presente e operante (como
ideologia) na prática de um movimento social... unificando
cultura popular e alta cultura ao nível mais avançado alcançado
pela filosofia moderna” (FROSINI, 2003, p. 85).
140
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Mas, as diferenças entre Dewey e Gramsci


aumentam quando se observa que o primeiro combateu
abertamente o marxismo, e o segundo chegou a expressar
avaliações duríssimas sobre o pragmatismo. A aversão ao
marxismo aparece em Dewey não apenas nos escritos sociais
e políticos dos anos 20 e 30: Human Nature and Conduct (1922);
Experience and Nature (1925); The Public and Its Problems (1927);
Individualism Old and New (1929), Liberalism and Social Action
(1935), mas há diversas referências também nos textos de
caráter mais filosófico e pedagógico dos anos anteriores.
Do conjunto da sua obra se pode perceber que o projeto de
Dewey, além de sintonizar as ciências humanas defasadas
em relação à evolução do pensamento científico, se propõe
a “reformar” o liberalismo “minimalista”, protegendo-o
das seduções do marxismo. A difusão deste no mundo,
particularmente com a Revolução de Outubro, era vista como
uma séria ameaça aos Estados Unidos (RORTY, 1999, p. 41),
às voltas com as pressões políticas das massas operárias que
a indústria americana concentrava em seu território.
Por outro lado, além da crítica ao materialismo
vulgar e ao neo-idealismo que desfiguravam o marxismo,
Gramsci se volta a enfrentar a força crescente do pragmatismo,
passando de uma simpatia inicial a uma crítica severa. Com
muito acerto, portanto, Baratta observa que desde o Caderno
1, § 153, Gramsci “avança a hipótese de que o terreno de
confronto teórico mais avançado [para o marxismo] é o
pragmatismo”. (BARATTA, 2000, p. 148).
De fato, Gramsci valoriza o livro Principi di
psicologia, de W. James (GRAMSCI, 1996, p. 249), e chega a
usar algumas ideias deste no Caderno 22 sobre Americanismo
e fordismo (GRAMSCI, 1975, p. 2139ss). E, se por um lado
anota: “Parece que eles [os pragmatistas] tenham percebido
algumas exigências reais e as tenham ‘descrito’ com exatidão
141
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

aproximativa, embora não tenham conseguido impostar os


problemas e dar a eles uma solução” (GRAMSCI, 1975,
p. 1330), por outro lado, afirma que o pragmatismo é
caracterizado pelo “imediatismo”, pelo “ideologismo” e
o “conservadorismo”, que o tornam menos “prático” do
que o “filósofo italiano ou alemão” (GRAMSCI, 1975, p.
1925). Para Gramsci, a filosofia “prática” do pragmatismo na
realidade perde de vista a trama das contradições e a relação
não imediatamente visível das partes que fazem compreender
o mundo no seu conjunto.

2. A “experiência” não é a “práxis”

Essas posições de Gramsci em relação ao


pragmatismo podem parecer severas, mas se explicam
quando se analisa de perto a diferença substancial entre
alguns conceitos aparentemente próximos. Examine-se,
por exemplo, o significado de “práxis”, “hegemonia”,
“democracia” em Gramsci, e o de “experiência”, “interação”
e “democracia” em Dewey.
Diante dos problemas do seu tempo, Dewey busca
a solução na “experiência”, ou seja, na extensão da ciência
experimental ao comportamento humano e social. Gramsci,
ao contrário, aponta o caminho da “práxis”, quer dizer, a
recíproca fecundidade entre filosofia e política vivenciadas
pelos “subalternos”. Para além da aparente assonância,
os horizontes dos dois conceitos não convergem, porque
Gramsci vai na direção de uma atividade teórico-política
para construir a hegemonia das classes subjugadas, voltadas
para romper e superar a ordem existente, enquanto Dewey se
concentra sobre o desenvolvimento da atividade inteligente
dos indivíduos em vista da renovação e da consolidação do
liberalismo americano (RORTY, 2000, p. 21).
142
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Por “experiência” Dewey entende o processo


de moldagem recíproca, do “fazer e sofrer”, do “intervir e
submeter-se” que acontece entre organismo e meio. Essa
transação ativo-passiva entre mente e natureza não é elaborada
no sentido da dialética hegeliana de cuja influência se afasta,
mas na perspectiva do evolucionismo e do naturalismo
biológico. Em Natura e condotta dell’uomo (1922), ao mostrar
os limites do inatismo e do empirismo, Dewey apresenta a
“experiência” como a “ação do mundo e no mundo” da qual
o indivíduo é parte “integrante” sem pretensão alguma de
ser “sujeito” superior, porque o homem não é algo que se
sobrepõe à natureza do exterior, mas é a própria natureza que
realiza a sua potencialidade (DEWEY, 1950, p. 67).
Para a filosofia de Dewey, de fato, o homem é um
indivíduo dotado de impulsos naturais com uma atividade
mental em interação com o ambiente. Dessa relação se
desenvolve a “inteligência experimental” e se forma a
“experiência” entendida não em sentido meramente empírico
e convencional de acúmulo e preservação do passado, mas
no sentido do “aprender fazendo” derivado da concepção
de ciência moderna que se baseia na experimentação e
promove constantes mudanças no mundo e na própria vida
humana. Diante dos problemas que aparecem na sociedade,
o indivíduo reage com a experimentação, com tentativas e
erros. É dessa forma que reconstrói continuamente a sua
experiência e restabelece o “equilíbrio” e a “cooperação”
(DEWEY, 2002, p. 94 ss.). Ao recompor a sintonia entre as
coisas e prever as consequências do seu agir, a experiência
aumenta a sua capacidade de controle do ambiente e a
compreensão do seu significado no mundo.
No evolucionismo pragmático e instrumentalista
de Dewey, a “inteligência experimental” do homem e o uso
da lógica — definida como “teoria da investigação” — são
143
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

determinados pelo método científico que deve presidir tanto


o campo da ciência física como a esfera do comportamento
humano, da política, da ética e da pedagogia. Dewey, de fato,
estava convencido de que a inteligência experimental poderia
resolver também os problemas sociais e políticos, e que a
ciência social poderia tornar-se tão efetiva quanto a ciência
natural (SHOOK, 2002, p. 154-156).
Tal como a ciência moderna, também a filosofia
“deve assumir uma função prática, deve tornar-se operativa
e experimental”, de modo a superar os problemas concretos,
melhorar a existência humana, modificar atitudes e criar
hábitos em função de uma sociedade em permanente
modificação (DEWEY, 2002, p. 113).
Em Gramsci, diversamente, mais do que uma
atividade de indivíduos orientados a modificar e integrar-se
natural e cientificamente no próprio ambiente, a filosofia
da práxis é a atividade histórico-política dos subalternos
que tomam consciência da sua subjugação, enfrentam as
contradições existentes na sociedade e se organizam para
construir uma concepção alternativa de mundo entrelaçando
dialeticamente ação e reflexão, política e filosofia.
Neste sentido, a filosofia “prática” de Dewey é
diferente da filosofia da “práxis” de Gramsci. Em outras
palavras, a “inteligência experimental” segue uma lógica
e persegue um projeto de sociedade bem diferente dos
procurados pela “inteligência política”. A primeira está
voltada a operar mudanças quando surgem disfunções no
ambiente, a segunda é orientada prevalentemente a colocar
em evidência as contradições e superar as crises visando à
criação de uma outra sociedade.
Nas mãos dos subalternos, a ciência e o
conhecimento não se limitam a restabelecer o equilíbrio
para se reintegrar melhor no ambiente, mas buscam acima de
144
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

tudo fazer emergir o “negativo”, estão politicamente voltados


para uma “luta de hegemonias” (GRAMSCI, 1975, p. 1385),
para um processo de “catarse” (GRAMSCI, 1975, p. 1244)
que promove a passagem da subjugação à subjetivação. A
filosofia da práxis nasce e se desenvolve prevalentemente
sobre o terreno da consciência e da política: é uma “filosofia
política” (MARTELLI, 1996, p. 11).
É necessário também considerar o fato de que,
juntamente com a ideia de “experiência”, que permeia todo
o seu pensamento, em Dewey encontra-se uma interação
instrumental promovida pelo método genético da ciência
moderna responsável por “investigar e descobrir as causas
dos conflitos existentes e, à luz dessas causas, elaborar
uma teoria inteligente de educação pela qual, sem tomar
partido para uma ou outra parte, se possa indicar o plano
de operações que, partindo de um nível mais profundo e
compreensivo das práticas e das ideias dos grupos em luta,
resolva a controvérsia e harmonize os oponentes” (DEWEY,
1976, p. XV). Dewey acredita, de fato, que a harmonização
dos conflitos e a cooperação na sociedade possam acontecer
recorrendo ao acordo entre as partes e ao método científico.
O próprio A. Teixeira observa que “não se exagera quando se
insiste no caráter conciliatório e reintegrador do pensamento
deweyano” (TEIXEIRA, 1959, p. 12).
Sem considerar a possibilidade de outros
projetos de sociedade, Dewey reduz as transformações do
mundo contemporâneo à passagem do “velho” liberalismo
(atomístico, individualista, tradicional, fechado e rude)
para o “novo” liberalismo (cooperativo, avançado, aberto,
científico e sensível). Dessa forma, a busca de um liberalismo
mais sensível e aberto ao social não coloca em discussão
os seus princípios, mas o fortalece ainda mais, uma vez
que “a causa pela qual o liberalismo dura e resiste, é muito
145
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

preciosa e vinculada demais à constituição humana para ser


obscurecida” (DEWEY, 1997, p. 125).
A filosofia da ciência “prática” de Dewey visa,
portanto, à sociedade conciliada sob a égide do liberalismo
renovado. Bem diferente da filosofia da “práxis” de Gramsci
que considera o ser humano dentro de uma totalidade
interconectada e contraditória ao mesmo tempo, onde a
ciência, a cultura, a psicologia, as atividades sociais e políticas
estão impregnadas não de relações genericamente interativas,
mas de concretos vínculos de classe, de divisão e exploração
do trabalho, de disputa pelo poder, de lutas para determinar
o modelo de produção e de distribuição dos bens materiais
e simbólicos.
D. Ragazzini observa corretamente que na
reflexão de Dewey permanece uma visão abstrata da
socialização, distante da forma como Gramsci a entende,
para o qual o homem é sempre a expressão do conjunto das
relações sociais, historicamente determinadas e vinculadas ao
desenvolvimento das forças produtivas e de outros projetos
de sociedade geradores de conflitos (RAGAZZINI, 1976,
p. 212-214). No mesmo sentido vai N. Badaloni quando
argumenta que a técnica não pode resolver por si só a
separação entre “produção” e “relação de propriedade”. Na
vida política real, de fato, não é simples e linear a soldagem
efetuada pela “vontade coletiva” em estreita relação com
um determinado tipo de Estado, de modo a substituir a
“desagregação” teórica do comando na economia com
uma racionalidade coletiva e democraticamente construída
(BADALONI, 1981, p. 321-334)5.
Para Gramsci, na verdade, não existe uma
“experiência” feita por indivíduos genericamente considerados,
que agem sem enfrentar as causas sociais e econômicas que
operam por trás da divisão de poder e da cortina ideológica
146
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

que os envolve. Na sua visão política, se não se transformar


em “práxis” — ou seja, a construção de uma concepção de
sociedade e de poder elaboradas pelos grupos sociais que
sofrem as consequências nefastas do sistema desigual — a
“experiência” permanece no âmbito do laboratório científico.
Dewey havia intuído esse problema, mas a solução que
fornece permanece prisioneira de um discurso social feito de
boas intenções inerentes à sua concepção liberal, como pode
ser observado particularmente na terceira parte de um dos
seus últimos livros: Liberalismo e azione sociale (1997)6.
Se o objetivo do pragmatismo de Dewey,
portanto, é o de amenizar os conflitos e recuperar o bom
funcionamento da sociedade liberal, o de Gramsci não
é problema de integração e de eficiência. Ao contrário,
alerta freqüentemente que ignorar as contradições em uma
sociedade dividida em classes significa “reduzir a dialética a um
processo de involução reformista, de ‘revolução-restauração’
no qual só o segundo termo é válido” (GRAMSCI, 1975, p.
1328). Concentrar-se, de fato, sobre o momento do ajuste
em detrimento do desenvolvimento das contradições esvazia
a própria “experiência” da sua capacidade de compreender
politicamente a complexidade da sociedade e a possibilidade
não apenas de mudá-la, mas de revolucioná-la. Neste sentido,
o terreno de atuação da filosofia da práxis é a construção
da hegemonia dos subalternos que não se limitam à
modernização da sociedade. Portanto, se, para Dewey, a
chave de solução é a inteligência prática (“experiência”) a
serviço de uma “revolução passiva” que acaba favorecendo
a manutenção e o fortalecimento do sistema, para Gramsci, é
a inteligência política (“práxis”) e a construção da hegemonia
popular “o aspecto essencial da mais moderna filosofia da
práxis” (GRAMSCI, 1996, p. 570). Só assim a educação
entrelaça em unidade “filosofia-política-economia”, não para
147
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

harmonizar, mas para superar as divisões existentes, de modo


a preparar os “subalternos” a sair da adaptação para tornar-
se “dirigentes”, educando a si mesmos na arte de governar”
(GRAMSCI, 1975, p. 1320).

3. A democracia não se realiza apenas com a


ciência

Em conexão com essa concepção de filosofia,


de experiência, de interação, Dewey elabora sua proposta
de democracia. Também nesse caso, é a ciência moderna e a
experimentação cognitiva que favorecem as condições para a
afirmação da democracia liberal. E esta, por sua vez, permite
o desenvolvimento e a liberdade da ciência. Por isso, Putnam
observa que Dewey fornece uma “justificativa epistemológica
da democracia”, cujo significado coincide com o da “lógica
da indagação” (PUTNAM, 1994, p. 76).
No livro Rifare la filosofia (Reconstruction in Philosophy),
em oposição às críticas disseminadas contra a ciência,
particularmente depois da Segunda Guerra Mundial,
Dewey tenta mostrar que o projeto do Renascimento e as
consequências da moderna revolução científica ainda não
se desenvolveram totalmente, principalmente na esfera
institucional e na moral (DEWEY, 2002, p. 56-77). Por isso,
procura conectar o pensamento científico-iluminista com
os desenvolvimentos psico-biológicos e as novas formas de
socialização. Na esteira de Bacon, Dewey propõe a criação de
uma nova civilização, de uma “comunidade de pesquisadores
científicos”, de forma a transformar “a industrialização”
em uma nova cultura que leve a uma sociedade livre capaz
de se auto-regular e de controlar as consequências das suas
ações por meio da investigação científica e da inteligência
experimental: “Nós precisamos lutar com a industrialização
148
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

para extrair dela uma civilização, uma cultura para todos; e


isso significa que a indústria deve tornar-se ela mesma uma
força educativa e cultural de primeira linha para os que estão
envolvidos nela” (DEWEY, 1948, p. 109).
Sem que se coloque a questão de qual tipo de
indústria, conduzida por quem e como, Dewey acredita que
as novas ciências sociais irão contribuir para a ampliação da
participação democrática por meio dos métodos educativos
experimentais introduzidos desde os primeiros anos da escola,
pois “uma sociedade para a qual seria fatal a estratificação
em classes separadas, deve providenciar para que as
oportunidades intelectuais sejam acessíveis para todos e em
condições fáceis e de equanimidade” (DEWEY, 2000, p. 110).
A partir dessas condições, sem abrigar-se na tradição e nos
conhecimentos transmitidos, o indivíduo deverá “descobrir
o que é bom e justo” com os únicos meios da “reflexão” e
da “experimentação”.
Ao favorecer “uma maior individualidade” e
desenvolver as capacidades intelectuais, a democracia seria
o regime que promoveria naturalmente uma pluralidade
de relações na sociedade e levaria à “interação”, porque “é
acima de tudo um tipo de vida associada, de experiência
continuamente comunicada” (DEWEY, 2000, p. 110), onde
todos se encontrariam envolvidos na solução dos problemas
comuns.
Assim como no caso do indivíduo, da ciência,
do ambiente, da experiência, Dewey trata a democracia
natural e cientificamente, sem problematizá-la e politizá-la.
Bastaria, portanto, oferecer para o indivíduo as oportunidades
intelectuais (não as sociais!) e promover a inteligência da
experiência para garantir o desenvolvimento da democracia: “A
crise da democracia exige que se aplique a inteligência, como
é usada no método científico, ao tipo de inteligência vigente”
149
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

(DEWEY, 1997, p. 110). Por isso, Dewey está convencido


de que “o problema do público é a melhoria dos métodos
e das condições do debate” (DEWEY, 1971, p. 162). Mas, a
democracia — tal como a experiência e a política — não se
realiza espontaneamente seguindo apenas o curso da ciência,
nem é naturalmente dinâmica e socializadora. Para construir
um “espaço público como arena da discussão livre” e como
“médium cognitivo”, não basta desejar uma democracia
conduzida pelo espírito cientifico, é necessário principalmente
reconhecer e superar as desigualdades sociais impostas pela
violência, enfrentar os grupos que se incrustam no poder,
desvendar as causas reais dos conflitos, promover as diferentes
propostas políticas. Como na Teoria dell’agire comunicativo
de Habermas (HABERMAS, 1986)7, que deriva diversas
inspirações de Dewey, não é suficiente dispor de normas
claras do discurso e imaginar interlocutores ideais que “trocam
experiências de vida”, sem levar em consideração quem são os
interlocutores, em quais condições vivem, a partir de que ponto
de vista falam, quais os problemas concretos reivindicados no
discurso deles. Não é sem razão que Lasch (1992, p. 325-348),
ao retomar uma crítica já levantada por R. Bourne, observa
que o instrumentalismo de Dewey, voltado para o controle
“inteligente” das situações, se apresenta como uma “neutral”
tecnologia social que confunde mutações do ambiente com
construção de uma sociedade de livres e “iguais”: “a original
força ativa para produzir o conjunto vastíssimo de mutações
que o mundo está vivendo é o surgimento do método científico
e da técnica fundada nele, e não a luta de classe, cujo espírito e
método são opostos à ciência” (DEWEY, 1997, p. 112).
No Prefácio a Rifare la filosofia, Massarenti observa
que o conceito de democracia de Dewey permanece nos limites
do liberalismo americano e do indivíduo (MASSARENTI,
2002, p. XVIII).
150
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Entende-se, então, por que em Dewey é ausente


o problema da estrutura global do meio, quais as forças que
o determinam e quais os conflitos de fundo que nem sempre
aparecem aos olhos da ciência. Não é suficiente dizer que o
indivíduo interage ativamente com o meio, que deve fazer
uso da sua inteligência e da sua experiência para operar
mudanças. É necessário analisar quem é este indivíduo e dentro
de qual trama de relações se encontra. Uma investigação
torna-se realmente científica quando consegue mostrar como
determinados indivíduos, em determinadas condições, com uma
certa experiência interagem com um determinado ambiente,
entram em conflito com determinadas forças organizadas, com
determinados poderes, para elaborar com determinadas intenções,
projetos sócio-políticos novos ainda que opostos ao vigente.
A partir dessas premissas, explica-se por que
Dewey procura uma filosofia harmonizadora, acabando
por cair em uma espécie de “metafísica naturalista” como
reconhece o próprio Rorty (1986, p. 93-103). Sem considerar
o indivíduo na sua totalidade concreta, sem analisar as
contradições, sem enfrentar determinadas condições
econômico-político-sociais, sem reconhecer diferentes e
opostos projetos de sociedade, a visão holística de Dewey
leva naturalmente a crer na “democracia como cooperação
reflexiva” (HONNETH, 2000, p. 53 ss), em uma abstrata
“economia socializada” (DEWEY, 1997, p. 122-125) e em um
comunitarismo romântico (DEWEY, 1968, p. 183), onde “o
capital e o trabalho não podem entrar ‘realmente’ em conflito
porque cada um é organicamente necessário ao outro e ambos
à comunidade”. (DEWEY, 2002, p. 162).
Em Gramsci, diversamente, o conceito de
democracia encontra-se vinculado ao de hegemonia. Esta é,
ao mesmo tempo, um confronto aberto entre contrapostas
posições ideológicas e uma “relação pedagógica” (GRAMSCI,
151
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

1975, p. 1331) a ser construída entre projetos “distintos”


de sociedade. Quando Gramsci fala em democracia, não se
expressa de forma neutra e genérica, mas se coloca do ponto
de vista dos subalternos, leva em consideração a realidade
concreta dos que são alijados do seu meio. Não ignora as
divisões sociais que existem na sociedade e as lutas dos
subjugados para conquistar a liberdade sem dissociá-la da
igualdade. A sua escolha política, “de parte”, apresenta-se
alinhada com quem quer romper o sistema vigente e elaborar
um outro modelo de sociedade.
Por isso, em Gramsci a política está permeada
de “paixão”, cujo vigor “torna-se fonte de conhecimento e,
portanto, de saber (não mecânico, mas vivente)”, porque só
assim as relações sociais e políticas promovem “a interação
de elementos individuais entre governados e governantes,
entre dirigentes e dirigidos” (GRAMSCI, 1975, p. 1505-1506).
Este tipo de “organicidade” — que vai além
da “experiência” científica — é a práxis política que se
instaura não apenas no entrelaçamento entre pensamento
e ação, mas também entre intelectuais e povo-nação, entre
mestre e aluno, entre as diversas nações (GRAMSCI, 1975),
com a clara intenção de chegar a superar toda relação de
superioridade, de divisão e dominação, as decisivas fortalezas
a serem expugnadas para se chegar a construir uma verdadeira
democracia que socialize efetivamente o poder em todas as
suas manifestações. Por isso, Gramsci chega a elaborar uma
das mais significativas definições de democracia: “Entre
os tantos significados de democracia, o mais realista e
concreto parece-se ser o que pode estar em conexão com a
hegemonia. No sistema hegemônico existe democracia entre
o grupo dirigente e os grupos dirigidos, na medida em que
[o desenvolvimento da economia e, portanto,] a legislação
[que expressa tal desenvolvimento] favorece a passagem
152
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

[molecular] dos grupos dirigidos ao grupo dirigente”


(GRAMSCI, 1975, p. 1056). Deriva disso a surpreendente
figura do “filósofo democrático”, “cuja personalidade não se
limita ao próprio indivíduo físico”, e do educador que educa
e é educado dentro de uma práxis concreta que o coloca no
mundo explosivo dos subalternos, onde sem tergiversações
vive “a unidade de ciência e vida” que é “exatamente a
unidade ativa, na qual só se realiza a liberdade de pensamento,
a relação mestre-aluno, filósofo-meio cultural no qual agir e
do qual extrair os problemas necessários a serem postos e
resolvidos, ou seja, a relação filosofia-história” (GRAMSCI,
1975, p. 1332).

Notas
Rorty, R., Objetivity, Relativism and Truth, Philosophical papers,
1

Cambridge University Press, 1991, p. 64: “O liberalismo naturalista


e anti-ideológico deweyano é a mais válida tradição intelectual
americana”.
Embora a minha interpretação de Dewey evidencie mais as divergências
2

e as contraposições com o pensamento de Gramsci e se diferencie da


de Chiara Meta que ressalta mais as sintonias entre os dois, gostaria
de agradecer a leitura que C. Meta me permitiu generosamente do
seu precioso texto inédito: “L’intellettuale organico, il pedagogista
filosofo: Gramsci e Dewey sulla pedagogia”.
Ver SANTUCCI, A. Storia del pragmatismo. Roma-Bari: Laterza, 1999,
3

p. 216ss; SHOOK, J. R. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de


Janeiro: DP&A, 2002, p. 37ss; ALCARO, M. John Dewey. Scienza prassi
democrazia. Roma-Bari: Laterza, 1997, p 159ss.
LABRIOLA, A. Saggi sul materialismo storico. Roma: Riuniti, 1964, p.
4

207. Ver a interpretação do “materialismo histórico” como “filosofia


da práxis” derivada de Labriola em GRAMSCI, A. Quaderni del cárcere.
Edizione critica de V. Gerratana, Torino: Einaudi Editore, 1975, p.
309, p. 422, p. 1060. 4 v.
153
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Cf. BADALONI, N. “Gramsci: la filosofia della prassi come


5

previsione”. In: Storia del Marxismo. Torino: Einaudi, 1981, p. 321-334.


v. III.
DEWEY, J. Liberalismo e azione sociale. 1997, cf. particularmente o
6

terceiro capítulo.
Do mesmo autor cf. também Fatti e norme. Contributi a uma teoria
7

discorsiva del diritto e della democrazia. Milano: Guerini e Associati,


1996.

Referências

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previsione. In: Storia del Marxismo. Torino: Einaudi, 1981. v.
III.

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1948.

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154
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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LASCH, C. Il paradiso in terra. Il progresso e la sua critica. A


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DEWEY, J. Rifare la filosofia. Roma: Donzelli, 2002.

PUTNAM, H. Words and life. Harvard University Press, 1994.


155
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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_____. Pragmatismo, filosofia da criação e da mudança. In: MAGRO,


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TEIXEIRA, A. Apresentação. In: DEWEY, J. Democracia e


educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

156
Marx, Gramsci e Vigotski:
aproximações?

Rosemary Dore

Introdução

Tenho estudado as ideias de Marx e Gramsci, mas


praticamente não conheço a obra de Vigotski. É amplamente
reconhecido que ele renovou a psicologia, embora tenha
havido pouco interesse das editoras no Brasil em publicar seus
trabalhos até a segunda metade da década de 1990 (SILVA;
DAVIS, 2004). Quanto ao Partido Comunista, pelo menos
na Itália dos anos sessenta, havia maior interesse em publicar
obras de Ivan Pavlov do que de Vigotski (Mecacci, 1998).
Também sei que Vigotski morreu jovem (com 38 anos)
e muitos de seus trabalhos foram censurados por Stalin.
Mas, conheço relativamente bem as tendências teóricas
que predominavam no movimento socialista e comunista à
época em que Vigotski produziu sua reflexão. E as conheço
justamente porque tenho estudado o pensamento de Gramsci,
o qual faz uma crítica contundente ao tipo de interpretação
das ideias de Marx que eram dominantes naquela época.
Sua crítica — que também consistiu numa autocrítica —
permitiu-lhe superar concepções que ele próprio mostrou
não serem dialéticas. O desenvolvimento do pensamento
de Gramsci representou justamente a ruptura com a visão
fatalista e economicista do movimento socialista da II
junqueira&marin editores 157
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Internacional Comunista e que acabou passando também


para a III Internacional, fundada por Lênin. Portanto,
por conhecer o processo de ruptura de Gramsci com o
economicismo, pergunto: teria Vigotski escapado àquela
tendência economicista? E como teria sido o seu processo?
São perguntas que, evidentemente, exigiriam
um estudo aprofundado do percurso teórico de Vigotski, o
que não é objeto deste artigo. O fato de suas obras terem
sido proibidas por Stalin não esclarece, por si só, o tipo de
confronto que elas abriam com o poder então instituído.
Também Bukharin foi morto pela tirania de Stalin e o
economicismo de suas ideias estava muito próximo daquele
sustentado por Stalin.
Contudo, analisando o trabalho do psicólogo
russo, Sirgado (2000) assinala alguns aspectos que podem
constituir um ponto de partida para debater possíveis relações
entre o pensamento de Gramsci e o de Vigotski. Dentre eles,
três podem ser destacados:

1. a centralidade da História na análise do social e do cultural


na obra de Vigotski (SIRGADO, 2000, p. 47);
2. o caráter não dualista da relação entre natureza e cultura
no pensamento de Vigotski, pois, “afirmar que o
desenvolvimento humano é cultural” equivaleria a dizer
que é desenvolvimento histórico (SIRGADO, 2000, p.
51);
3. “o caráter histórico” do materialismo e o “caráter
materialista da dialética” (SIRGADO, 2000, p. 49). Para
Sirgado, o conceito de história de Vigotski desempenha
um papel “na matriz do materialismo histórico e dialético”
(SIRGADO, 2000, p. 52). Embora não aprofunde essa
questão no seu texto, Sirgado assinala que Vigotski teria
afirmado, nas palavras de Vichnievski que “o materialismo
158
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

histórico é a aplicação do materialismo dialético à história”


(SIRGADO, 2000, p. 49).

Para refletir sobre esses aspectos indicados


por Sirgado, serão traçados alguns percursos seguidos por
Gramsci, tomando como ponto de partida suas análises a
respeito da relação entre sujeito e objeto no processo de
conhecimento. Elas se realizam a partir de um enfoque
profundamente historicista, e a trajetória intelectual de
Gramsci tem sua expressão máxima no conceito de
hegemonia, que é chave no seu pensamento político e
filosófico. E, desse ponto de vista, fica também ressaltada na
sua reflexão filosófica a centralidade da história, assim como
Sirgado a sublinha para o pensamento de Vigotski, no item
1 acima referido. O quadro teórico em que se apresenta a
relação entre sujeito e objeto, numa perspectiva historicista,
também é referência para mostrar a crítica de Gramsci às
abordagens dualistas da relação entre homem e natureza,
como elementos fundamentais de um enfoque não dualista
da relação entre natureza e cultura, elemento destacado no
item 2 acima. Contudo, o aprofundamento dos elementos
apresentados no item 3, sobre o referencial do “materialismo
histórico e dialético” que Sirgado atribui ao pensamento de
Vigotski, mostra afastamentos entre a sua reflexão e a de
Gramsci.

É no terreno das ideologias que tomamos


consciência dos conflitos sociais

Ao desenvolver o conceito de hegemonia, Gramsci


trabalha no terreno filosófico e político, polemizando com
o pensamento liberal e com o pensamento socialista. A
sua intenção é a de recuperar a força analítica do método
159
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

dialético que, para ele, fora enfraquecida no campo socialista


devido às interpretações de tipo positivista da filosofia de
Marx. As proposições de Nikolai Ivanovich Bukharin e
George V. Plekhanov sobre o marxismo foram exemplos
de interpretações positivistas e que suscitaram críticas de
pensadores liberais, principalmente de idealistas, tal como
as de Benedetto Croce. São críticas que, para Gramsci,
deviam ser levadas em consideração. Assim, para debater
com o pensamento socialista positivista ele escolhe como
representante dessa corrente o revolucionário russo Bukharin
e para debater com o pensamento neo-idealista ele toma
como representante o liberal italiano Croce.
Na sua crítica ao marxismo, Croce dizia que seu
caráter determinista era tão marcante que parecia ter um
“deus escondido”, capaz de definir tudo na sociedade (Cf.
Gramsci, 1977, p. 1226). Esse “deus” era justamente a
economia. Assim, a estrutura, que seria determinante de
tudo, agiria como uma espécie de “deus oculto”. Gramsci
entende que Croce tem razão em criticar tal determinismo.
Mas corrige a crítica de Croce. Não foi Marx quem acentuou
a dimensão determinista da economia, isto é, da estrutura,
mas sim as interpretações sobre as relações entre estrutura
e superestrutura, economia e política, desenvolvidas no
campo socialista e que se tornaram dominantes. Era esse
mesmo determinismo que, numa interpretação mecânica
do pensamento de Marx, levava à tese de que a ideologia
era apenas uma “aparência”, uma “falsa consciência”, uma
“ilusão”. Tratava-se, assim, de uma leitura positivista que
estava presente na abordagem do materialismo histórico e que
aparece com clareza no Tratado de materialismo histórico, de
Bukharin (1970).
Gramsci discorda da abordagem de Bukharin
e mostra que, em Marx, não se encontra um enfoque
160
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

determinista, sobrepondo a economia à política. Ao contrário:


Marx faz uma análise dialética da relação entre estrutura e
superestrutura. Para ressaltar esse aspecto, Gramsci retoma,
por exemplo, o famoso prefácio Para a crítica da economia política
(1859), e enfatiza as tensões existentes no pensamento de
Marx, distinguindo a sua posição de caráter polêmico e a sua
posição de caráter gnosiológico.
É de caráter polêmico, diz Gramsci, a asserção de
Marx segundo a qual a existência determina a consciência.
Tal formulação aparece no Prefácio, quando Marx afirma
que “O modo de produção da vida material condiciona o
processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é
a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência” (Marx, 1983, p.
24, grifo meu).
Nesse trecho, em que a ênfase de Marx recai
sobre a estrutura econômica, material, deixando entrever
a concepção de que as ideologias não passam de ilusão, ele
teria como objetivo, diz Gramsci, evidenciar a historicidade
da filosofia. Assim, é no sentido de polêmica que podemos
ler a asserção de Marx segundo a qual a existência determina
a consciência ou, em outras palavras, que a economia
determina a política, ou ainda que a estrutura determina a
superestrutura. E Gramsci se pergunta: “Quando por razões
‘políticas’, práticas, para tornar um grupo social independente
da hegemonia de outro grupo, se fala de ‘ilusão’, como se
pode confundir, de boa fé, uma linguagem polêmica com um
princípio gnosiológico?” (Gramsci, 1977, p. 1298-1299).
É de caráter gnosiológico, por sua vez, a
asserção de Marx de acordo com a qual “os homens tomam
consciência dos conflitos da estrutura no terreno das
ideologias” (Gramsci, 1977, p. 1249). É a passagem na
qual Marx observa:
161
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Quando se estudam essas revoluções [sociais],


é preciso distinguir sempre entre as mudanças
materiais, ocorridas nas condições econômicas
de produção e que podem ser apreciadas com a
exatidão própria das ciências naturais, e as formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa
palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem
consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo. (Marx,
1983, p. 25, grifo meu)

Gramsci retoma diversas vezes tal formulação


de que os homens tomam consciência dos conflitos sociais
no terreno das ideologias, afirmando que ela contém um
princípio gnosiológico:

A proposição contida na introdução à Crítica da


economia política segundo a qual os homens tomam
consciência dos conflitos de estrutura no terreno
das ideologias deve ser considerada como uma
afirmação de valor gnosiológico e não puramente
psicológico e moral. (Gramsci, 1977, p. 1249)

De acordo com Gramsci, a criação de “um novo


terreno ideológico”, como fora o trabalho teórico de Lênin
ao desenvolver a doutrina e a prática políticas fazendo avançar
a filosofia da práxis, também determinaria uma “reforma das
consciências e dos métodos de conhecimento”. Trata-se de
uma atividade dentro daquela perspectiva de Marx de que os
“homens tomam consciência dos conflitos sociais no terreno
das ideologias e, por isso, ela é um fato do conhecimento, um
fato filosófico” (Gramsci, 1977, p. 1250).
Para Gramsci, o conflito epistemológico entre
sujeito e objeto, espírito e matéria, não poderia ter uma
162
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

solução teórica. Não é no campo da especulação que poderia


ser resolvido o problema da relação entre sujeito e objeto,
mas sim no terreno da história, na atividade de construção
do real. E é o que ele reafirma ao relacionar sujeito e objeto,
vinculando a atividade humana à “natureza transformada do
homem” no ato histórico.
A pesquisa de Gramsci sobre a relação dialética
entre sujeito e objeto se desenvolve pela constante interlocução
com o pensamento de Marx. Voltando às reflexões de Marx
contidas nas Teses sobre Feuerbach (1845), Gramsci ressalta
o seu confronto com os limites de duas grandes correntes
filosóficas: o idealismo e o materialismo vulgar.
Nas Teses, Marx assinala que o problema da
relação entre sujeito e objeto, espírito e natureza, liberdade
e necessidade, posto por todas as teorias do conhecimento,
não encontra uma solução especulativa (idealista) e sim na
dinâmica da atividade humana (na prática): é através da
mediação do homem, na sua prática ativa, que natureza e
espírito se unificam. É o que ele põe em evidência quando
critica a tese de Feuerbach segundo a qual o homem é produto
do meio. Sim, o homem é produto do ambiente e da educação.
Mas, afinal, quem produz o meio? Marx diz:

A doutrina materialista sobre a mudança das


contingências e da educação se esquece de que tais
contingências são mudadas pelos homens e que o
próprio educador deve ser educado. Deve por isso
separar a sociedade em duas partes — uma das
quais é colocada acima da outra. A coincidência
da alteração das contingências com a atividade
humana e a mudança de si próprio só pode ser
captada e entendida racionalmente como práxis
revolucionária. (MARX, 1985, p. 51)
163
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Assim, Marx concorda com Feuerbach que o


homem é um produto das contingências e da educação.
Mas denuncia um “esquecimento”: o de que é o próprio
homem que também muda as contingências e a educação.
Então, como compreender o problema de uma relação em
que o homem é produto e produtor do meio? Uma relação
dialética entre sujeito e objeto? Esse problema, diz Marx,
só pode ser entendido como “práxis revolucionária”, isto é,
como história.
O princípio de que as ideias — a teoria, Filosofia
— quando movidas pela atividade humana podem adquirir
força material e transformar o poder material já havia sido
apontado por Marx na Introdução à crítica da filosofia do direito
de Hegel (1843-1844):

É certo que a arma da crítica não pode substituir


a crítica das armas, que o poder material tem que
ser derrocado pelo poder material, mas também a
teoria transforma-se em poder material logo que
se apodera das massas. (MARX, 1977, p. 8)

A asserção de Marx, enfatiza Gramsci, mostra a


unidade da Filosofia (concepção de mundo) e da História no
movimento do real. Uma unidade concebida como “práxis”.
O trabalho de Gramsci para evidenciar como Filosofia e
História se unificam no real constitui um passo decisivo na
sua tentativa de desenvolver uma conceituação mais rica e
capaz de apreender os movimentos de transformação da
sociedade. Nesse sentido, ele reivindica a observação do
seguinte princípio metódico: no estudo da realidade, não basta
distinguir o conceito, também é necessário perceber que no
movimento do real — a história — ocorrem a unidade e a
identidade entre o conceito e o fluir dos acontecimentos. Todavia,
164
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

não se deve confundir o conceito com a realidade para evitar


cair-se no idealismo:

Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos,


fixar conceitos, sem os quais a realidade não poderia
ser compreendida, deve-se também — aliás é
imprescindível — fixar e recordar que a realidade
em movimento e conceito de realidade, se podem ser
logicamente distinguidos, devem ser concebidos
historicamente como unidade inseparável. De
outro modo, sucede o que sucedeu a Croce, isto
é, a história torna-se uma história formal, uma
história de conceitos e, em última análise, uma
história de intelectuais... (Gramsci, 1977, p.
1241, grifo meu)

Partindo do pressuposto marxiano segundo


o qual teoria e prática se unificam através da atividade
transformadora dos homens e de que o conhecimento da
realidade não pode prescindir dessas duas instâncias (teoria
e prática), Gramsci aprofunda o estudo sobre as grandes
transformações econômicas, sociais, políticas e culturais
ocorridas na história. Ele analisa o problema de como é
possível formar-se, a partir de uma determinada concepção
do mundo, uma vontade coletiva, viabilizando a ação de massa,
pois considera que todo ato histórico só se efetiva através da
atividade do homem coletivo.
Para converter uma ideia numa ação de massa
— unidade entre filosofia e história — é necessário que
uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins
heterogêneos, se solidifique na busca de um mesmo fim,
sobre a base de uma comum e idêntica concepção do mundo
(Gramsci, 1977, p. 1058, p. 1780, p. 1789). Foi desse modo,
165
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

esclarece Gramsci, que uma nova “vontade coletiva”, através


da história, tornou-se suficientemente forte para transmudar-
se numa ação com poderes para derrocar a dominância de
uma outra vontade coletiva, retirando-lhe a força de coesão,
dissolvendo-a e substituindo-a.
O elemento mediador entre filosofia e história, diz
Gramsci, é a política. Ela se mostrou historicamente capaz
de converter uma concepção do mundo numa ação coletiva
— ato histórico concreto. Mas não é qualquer concepção
do mundo, das massas ou dos filósofos individuais, que se
pode transformar numa direção social, reagindo sobre toda a
sociedade. Uma determinada direção social é resultante da “massa
de variações que o grupo dirigente conseguiu determinar na
realidade precedente” e que, ao ser concretizada, torna-se
norma de ação coletiva, isto é, “torna-se ‘história’ concreta e
completa (integral)” (Gramsci, 1977, p. 1255).
Os intelectuais, entendidos por Gramsci como
organizadores e difusores de determinadas concepções do
mundo, promovem uma “reforma intelectual e moral” na
sociedade. Através da política, eles modificam o conjunto das
relações sociais e procuram adequar a cultura às exigências
práticas, determinando efeitos positivos ou negativos,
modificando a maneira de pensar e agir do maior número de
pessoas, criando, portanto, uma “norma de ação coletiva”. A
atividade política de direção cultural, realizada pelos intelectuais,
é fundamentalmente pedagógica, pois visa a difundir ideologias
entre as massas para engendrar uma ética adaptada a uma
determinada ordem social que se quer preservar ou modificar.
Assim concebida, a atividade política é educativa e “ética”:
propõe-se a definir uma outra moral coletiva que entre em
choque com aquela dominante e possa desagregá-la.
Conceber que, pela mediação política, as ideias
podem ser apropriadas pelas massas e adquirir um poder
166
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

transformador das relações materiais — das condições


objetivas do real — é um dos aspectos mais significativos
que Gramsci extrai da reflexão marxiana. Com isso, ele
evidencia aquele princípio metodológico contido nas Teses
sobre Feuerbach, de acordo com o qual se a teoria e a prática
são instâncias diferentes da realidade social elas se identificam
no ato histórico. A história, como se pode notar, é central ao
pensamento de Gramsci.
E a transformação histórica que Gramsci busca
é na direção da igualdade social, que não é ponto de partida,
mas sim de chegada de um processo que tem como eixo o
princípio unitário. No centro da discussão sobre esse tema
está o problema do conceito de natureza humana, o qual, para
Gramsci, corresponde à moderna discussão sobre o problema
da igualdade.
No século XVIII, a burguesia introduziu o
conceito de que os homens são iguais porque têm a mesma
“natureza”. Uma igualdade fundada na biologia. Mas também
a religião católica e o materialismo vulgar fundamentam
seus conceitos de igualdade na existência de uma “natureza”
igual. A religião católica diz que somos iguais porque somos
“filhos de Deus”. O materialismo vulgar diz que somos iguais
porque participamos de uma mesma espécie biológica, uma
determinação da natureza. No entanto, Gramsci considera
que tal igualdade é abstrata porque não existe igualdade real
entre os homens. O objetivo da ideia biológica de igualdade
seria o de impedir os homens de se perceberem como os
próprios construtores da igualdade ou da desigualdade.
Ao vincular a discussão sobre a natureza humana
à questão da igualdade, Gramsci tem como objetivo criticar
as ideias do senso comum e das filosofias passadas, que não
concebem o homem como criador da sua realidade. Ao
contrário: apresentam uma concepção dualista da relação
167
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

entre homem e natureza, pela qual o homem não aparece


como criador do seu destino, da sua vida. Para ele, somente
uma perspectiva historicista poderia desenvolver a concepção
de homem como “criador de si mesmo”. Somente ela
transforma o filósofo em político, em “educador” da
sociedade, levando-o a uma nova conduta moral, capaz de ser
conscientemente transformadora da sociedade.
Uma nova concepção do homem, afirma Gramsci,
deve levar em conta que o indivíduo não entra em relação
com outros indivíduos “por justaposição”, pelo simples
fato de ele mesmo ser natureza (GRAMSCI, 1977, p. 1345).
Ao contrário, o homem entra em relação com a natureza
através das diferentes sociedades das quais ele participa: no
plano estrutural, as relações sociais de produção; no plano
superestrutural, as ideologias, a filosofia, a ciência.
A sociedade humana (societas hominum) pressupõe
uma determinada sociedade das coisas (societas rerum). As
relações entre o homem individual e essas sociedades são
ativas e dinâmicas, mediadas pelo trabalho e pela técnica.
Por “técnica”, sublinha Gramsci, “deve-se entender não só
o conjunto de noções científicas aplicadas à indústria (como
se entende costumeiramente), mas também os instrumentos
‘mentais’, o conhecimento filosófico” (GRAMSCI, 1977,
p. 1346). O homem não pode deixar de ter conhecimento
sobre essas sociedades e sobre as possibilidades que elas lhe
oferecem. É por isso que se pode dizer, continua o autor,
“que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida
em que transforma e modifica todo o conjunto de relações
do qual ele é o ponto central” (GRAMSCI, 1977, p. 1345).
O que é o homem? A discussão dessa questão,
assinala Gramsci, leva ao mesmo problema da natureza
humana. É a tentativa de criar um conceito unitário de homem:
o humano, o homem em geral. O homem histórico aspira a, de
168
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

forma racional e sentimental, encontrar a unidade da natureza


humana.
Mas unidade do humano — a igualdade —, sublinha
Gramsci, é o vir-a-ser do homem, o seu devir. Por isso, ele
considera que, dentre as utopias de igualdade existentes, a mais
satisfatória é aquela afirmada pelo marxismo. Este introduziu
uma inovação fundamental ao demonstrar que não existe uma
natureza humana abstrata, fixa e imutável. A “natureza humana”
é o conjunto das relações sociais historicamente determinadas:

A natureza do homem é o conjunto das relações sociais


que determinam uma consciência historicamente
definida [...] Por outro lado, o conjunto das relações
sociais é contraditório em todo o momento e
está em contínuo desenvolvimento, assim como
a natureza do homem não é algo homogêneo
para todos os homens e em todos os tempos.
(GRAMSCI, 1977, p. 1874-1875)

Para Gramsci, portanto, a concepção da natureza


humana como conjunto das relações sociais, advinda de Marx,
se revela historicamente superior por duas razões: 1) porque
inclui a ideia do devir: “o homem ‘devém’, transforma-se
continuamente com as transformações das relações sociais”;
2) “porque nega o ‘homem em geral’: de fato, as relações
sociais são expressas por diversos grupos de homens que se
pressupõem uns aos outros, cuja unidade é dialética e não
formal” (GRAMSCI, 1977, p. 885).
O marxismo, reforça Gramsci, nega, ridiculariza
e destrói todas as formas sob as quais se apresenta a ideia de
homem em geral ou de natureza humana imanente a cada homem,
isto é, todos os conceitos dogmaticamente unitários (GRAMSCI,
1977, p. 1487- 1488). Para o marxismo, a natureza do homem é
169
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

uma categoria histórica, um movimento dialético. Ele não coloca


a unidade como ponto de partida e sim como ponto de chegada,
uma unidade possível.
Reconstituindo a noção de homem como categoria
histórica, Gramsci aborda outra forma através da qual se
apresenta a dualidade entre homem e natureza: é a concepção
de que a realidade é “exterior” e “objetiva”, encontrada tanto
no “senso comum” quanto na ciência.
Para o senso comum, a certeza de que existe um
mundo exterior sequer é vista como um problema porque
essa convicção advém da religião. O senso comum afirma a
“objetividade” do real porque o mundo foi criado por Deus,
antes e independente do homem. Não se trata da demonstração
da objetividade do real, mas de uma ideologia. O que é objetivo
para o senso comum é, portanto, uma subjetividade anacrônica.
Também na ciência não se pode afirmar a
objetividade fora dos homens sem resvalar para o campo do
misticismo religioso e metafísico. Uma posição que afirme a
existência do “cosmos em-si”, independente do homem, não
deixa de ter um resíduo religioso: a “concepção mística de
um Deus desconhecido”, já que, sem o homem, diz Gramsci,
é “impossível pensar em ‘pensar’”. Sem o homem, o “que
significaria a realidade do universo? Toda a ciência é ligada às
necessidades, à vida, à atividade do homem. Sem a atividade do
homem, criadora de todos os valores, inclusive os científicos, o
que seria a ‘objetividade’?” (GRAMSCI, 1977, p. 1457). Desse
modo, a objetividade do mundo exterior não pode ser dada
nem fora da história, nem fora do homem.
A reflexão de Gramsci é direcionada a um fim:
questionar a dualidade homem-natureza, colocada pela ideia
da existência de uma “objetividade” exterior ao homem. Ele
polemiza com o senso comum e a ciência para demonstrar
que na filosofia da práxis “o ser não pode ser separado do
170
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

pensar, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito


do objeto; se se faz essa separação, cai-se em uma das muitas
formas de religião ou na abstração sem sentido” (GRAMSCI,
1977, p. 1457).
Também a objetividade, indica Gramsci, não é
um ponto de partida e sim de chegada: trata-se da luta pela
“unificação cultural do gênero humano”. O homem só conhece
objetivamente quando “o conhecimento é real para todo o
gênero humano, historicamente unificado em um sistema cultural
unitário” (GRAMSCI, 1977, p. 1416). Se o conjunto das relações
sociais, numa sociedade dividida em classes, é contraditório,
como se poderia obter a unificação do gênero humano?
O processo de unificação do gênero humano é, para
Gramsci, histórico e só pode ocorrer com “o desaparecimento
das contradições internas que dilaceram a sociedade humana,
contradições que são a condição da formação de grupos e do
nascimento das ideologias não universais concretas, mas que
se tornam caducas imediatamente devido à origem prática da
sua essência” (GRAMSCI, 1977, p. 1416).
A reflexão de Gramsci é profundamente historicista,
criticando as formas de dualidade que historicamente surgiram na
cultura e na sociedade, entre sujeito e objeto, homem e natureza,
natureza e cultura, bem como as ideologias da igualdade,
mostrando que a unidade social é um ponto de chegada, a história
da transformação social. Por isso, a importância de difundir
concepções de mundo que possam se “apoderar” das massas
populares convertendo-se numa “arma”, como diz Marx, capaz
de transformar Filosofia em História.
Sendo a História um aspecto central da reflexão de
Gramsci, existiriam aproximações entre o seu pensamento e o
de Vigotski? Chegamos, assim, ao item 3 proposto inicialmente,
sobre o “materialismo histórico e dialético” como referência
conceitual do psicólogo russo.
171
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A Filosofia da práxis como “historicismo


absoluto”

Ao desenvolver a reflexão de Gramsci sobre as


relações entre sujeito e objeto, estrutura e superestrutura,
homem e natureza, tomamos como mote aqueles aspectos
constantes dos três itens acima mencionados, fornecidos
pela análise de Sirgado sobre o social e o cultural na obra de
Vigotski. Como explica o referido autor (Sirgado, 2000, p.
47), uma vez que Vigotski “não especificou suficientemente
o sentido que o social e o cultural têm para ele”, “qualquer
tentativa de determinar esses sentidos exige que sejam
situados no contexto teórico em que são utilizados”. E
foi com o propósito de analisar o contexto teórico da
conceituação adotada por Vigotski que Sirgado (2000, p. 47,
p. 49, p. 52) se referiu à centralidade da História, ao caráter
não dualista da relação entre natureza e cultura, bem como ao
caráter histórico do materialismo e ao caráter materialista da dialética
no pensamento do psicólogo russo.
Quando Sirgado realiza esse estudo, ele tem
em mente a noção de que, para Vigotski, a história tem
dois modos de abordagem: o primeiro é “genérico”, “uma
abordagem dialética geral das coisas” e que seria “história
dialética”, e o segundo “restrito”, que seria “a história
humana” ou “materialismo histórico” (SIRGADO, 2000, p.
48). Essa proposição qualificaria o lugar de onde fala Vigotski:
o “materialismo histórico e dialético”, o que permitiria
compreender “o perfil do autor como pensador da natureza
humana, constituindo o núcleo duro da sua obra” (SIRGADO,
2000, p. 48, grifo meu).
A premissa do “materialismo histórico” que
Sirgado leva em conta tem como referência à proposição
de Althusser segundo a qual existe uma diferença entre
172
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

“materialismo histórico”, equivalente à “ciência da história”, e


“materialismo dialético” ou “filosofia marxista” (SIRGADO,
2000, p. 48). Segundo o autor, mesmo que essa distinção
tenha sido feita posteriormente por Althusser, Vigotski
já a tinha presente quando sustentou que o “materialismo
histórico” é a aplicação do “materialismo dialético” à
história. Existiria, assim, uma “ciência da história”, que
seria “materialista dialética”, e uma “filosofia marxista”,
distinguindo “materialismo histórico” e “materialismo
dialético”.
Sirgado destaca algumas diferenças que
caracterizariam o enfoque marxista de Vigotski. Em primeiro
lugar, o materialismo de Marx e Engels se diferencia de outros
conceitos de materialismo pelo seu caráter histórico, enquanto
o caráter de outras concepções que lhes são contemporâneas
não seria histórico. Em segundo lugar, a dialética de Marx e
Engels é materialista, enquanto a de outras concepções, como
a de Hegel, é uma dialética idealista. Em síntese, é “o caráter
histórico que define o materialismo de Marx e Engels, e é o
caráter materialista que define a sua dialética” (SIRGADO,
2000, p. 49).
Acompanhando-se a explanação de Sirgado,
Vigotski teria como referência para os seus estudos, portanto,
o materialismo histórico e o materialismo dialético, que constituiriam
duas disciplinas. Desse modo, a concepção de história
de Vigotski teria uma relação dupla: com a dialética, como
filosofia, e com o materialismo histórico, como ciência da
história. Sirgado esclarece, seguindo de perto a reflexão de
Althusser, que uma leitura pouco atenta de Vigotski poderia
levar a pensar que o materialismo dialético é apenas um método.
Mas não seria assim. Ele é teoria e método, “como elementos
interligados e aspectos diferentes de uma mesma realidade”.
No quadro do materialismo histórico e dialético, o materialismo
173
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

“representa o aspecto da teoria, enquanto que a dialética


representa o aspecto do método” (SIRGADO, 2000, p. 50).
O materialismo histórico e dialético seria, de acordo com Sirgado,
a matriz referencial das reflexões de Vigotski.
O estudo da matriz teórica do materialismo histórico
e dialético atribuída por Sirgado ao pensamento de Vigotski
mostra, contudo, que ela antecede os escritos de Althusser e
se aproxima, de algum modo, das interpretações do marxismo
dominantes desde o início do século XX, das quais Bukharin,
cujas ideias são criticadas por Gramsci, é um de seus defensores.
A análise de Gramsci sobre os conceitos adotados
por Bukharin em seu livro Tratado de materialismo histórico (1970)
evidencia a existência de uma divisão do marxismo em: 1) “uma
teoria da história e da política concebida como sociologia, isto
é, a ser construída segundo o método das ciências naturais
(experimental, no sentido positivista limitado)” e 2) “uma
filosofia propriamente dita que seria então o materialismo
filosófico ou metafísico ou mecânico (vulgar)” (GRAMSCI,
1977, p. 1424-1425). E qual seria a origem dos conceitos
fundamentais do materialismo presentes na maior parte da
produção teórica sobre o materialismo histórico, tal como aquela
de Bukharin?
Gramsci identifica princípios de resposta à sua
questão no livro que o filósofo alemão Friedrich Albert Lange
publicou em 1866, História do materialismo1, o qual mantém
importância cultural para explicar a origem da difusão entre
os marxistas de sua época de uma determinada concepção
de materialismo. Poder-se-ia dizer esquematicamente, explica
Gramsci, que se partiu do “pressuposto dogmático de que o
materialismo histórico seria nada mais do que o materialismo
tradicional, um pouco revisto e corrigido (corrigido com a
‘dialética’ que assim é assumida como um capítulo da lógica
formal e não como se ela própria fosse uma lógica, isto é, uma
174
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

teoria do conhecimento)” (Gramsci, 1977, p. 1410). Assim,


estudou-se no livro de Lange o que por ele foi sistematizado
como materialismo tradicional (vulgar) e os seus conceitos foram
revistos e corrigidos pela dialética, entendida como lógica formal,
sendo representados como conceitos do materialismo histórico. A
conclusão de Gramsci é a de que a maior parte dos conceitos
apresentados sob a etiqueta de materialismo histórico foi fundada
por Lange.
Para Gramsci, portanto, o materialismo histórico e
dialético é uma divisão do marxismo (que ele chama de filosofia
da práxis) em duas partes: de um lado, a teoria da história e da
política (materialismo histórico) e, de outro, a filosofia (dialética
ou materialismo dialético). Nesse esquema, a filosofia passa a ser
entendida como materialismo dialético e não mais como o velho
materialismo vulgar, ao qual Marx se refere quando critica as
teses de Feuerbach. Com essa divisão, qual é o significado da
dialética? Em lugar de “doutrina do conhecimento e substância
medular da historiografia e da ciência da política”, a dialética
é “degradada a uma espécie de lógica formal” (Gramsci,
1977, p. 1424-1425). No entanto, se o materialismo histórico é
considerado uma teoria da história, não poderia ser separado
da política, da economia, da estética... E, na parte da filosofia
(materialismo dialético), os conceitos gerais de história, de política,
de economia também deveriam se encontrar vinculados
entre si, numa unidade orgânica (GRAMSCI, 1977, p. 1448).
Além disso, Marx nunca chamou a sua própria concepção
de materialista e muito menos adotou a fórmula da dialética
materialista. Ao contrário, ele critica o materialismo francês e
afirma que a crítica deveria ser ainda mais aprofundada. Para
Marx, acrescenta Gramsci, a dialética não é materialista, mas é
racional, em oposição à ideia de místico, “o que confere ao termo
‘racional’ um significado bem preciso” (Gramsci, 1977, p.
1410-1411).
175
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Quando critica a mencionada obra de Bukharin,


Gramsci pergunta se seria possível escrever um livro elementar
sobre uma concepção que ainda está em desenvolvimento,
que ainda está sendo discutida e elaborada. Com esse
questionamento, ele mostra ter clareza de que a filosofia da
práxis não era uma doutrina que já tivesse alcançado uma
fase “clássica”, isto é, um grau desenvolvido de elaboração e
sistematização. Por isso, defende que um livro sobre o assunto
deveria se ater a um determinado argumento, consistindo
apenas numa introdução ao estudo científico da filosofia da
práxis. Fazer uma espécie de manual de uma concepção ainda
em debate e desenvolvimento, como pretendeu Bukharin,
seria uma iniciativa destinada a falir, pois sua sistematização
não passaria de uma ilusão, uma “justaposição mecânica
de elementos desconexos”, não obstante o aparente verniz
unitário (Gramsci, 1977, p. 1424). Identificando a raiz dos
erros do livro de Bukharin na divisão da filosofia da práxis
em duas partes, de um lado, uma “sociologia” e, de outro,
uma filosofia sistemática, Gramsci diz que ali não existe um
estudo sobre a dialética, que é apenas muito superficialmente
pressuposta e não exposta. Da forma como é abordada, a
dialética deixa de ser uma doutrina do conhecimento para
ser degradada em uma espécie de lógica formal. E, ao ser
separada da teoria da história e da política, a filosofia se
torna metafísica. No entanto, a grande conquista da filosofia
da práxis foi a da historicização concreta da filosofia e a sua
identificação com a história (Gramsci, 1977, p. 1424-1426).
No movimento do real, filosofia e história se unificam.
Ao contrário do que foi sistematizado como
materialismo histórico, Gramsci desenvolve o conceito de
filosofia da práxis, chamando a atenção para a independência
e autonomia dessa filosofia. Para ele, a filosofia da práxis
é uma superação dialética seja do materialismo ou do
176
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

idealismo, incorporando-os numa síntese nova, que não é


nem materialista nem idealista.

O significado da dialética só pode ser concebido em


toda a sua fundamentação se a filosofia da práxis é
concebida como uma filosofia integral e original que
inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento
mundial do pensamento na medida em que supera
(e superando inclui em si os elementos vitais) seja o
idealismo ou o materialismo tradicional, expressões
das velhas sociedades. Se a filosofia da práxis é
pensada apenas de forma subordinada a uma outra
filosofia, não se pode conceber a nova dialética,
na qual se efetua e se exprime aquela superação.
(Gramsci, 1977, p. 1425)

A reflexão de Gramsci, portanto, reivindica a


autonomia da filosofia da práxis em relação a aportes teóricos
que lhe sejam estranhos. No campo teórico, “a filosofia da
práxis não se confunde e não se reduz a nenhuma outra
filosofia: ela é não apenas original ao superar as filosofias
precedentes, mas especialmente ao abrir um caminho
completamente novo, isto é, ela renova de cima abaixo o
modo de conceber a própria filosofia” (GRAMSCI, 1977, p.
1436). E mais: ele a considera “robusta e fecunda de novas
verdades às quais o velho mundo recorre para fornecer o
seu arsenal de armas mais modernas e eficazes” (Gramsci,
1977, p. 1434-1435). Um dos grandes filões da pesquisa de
Gramsci é justamente sobre a apropriação que é feita da
filosofia da práxis por outras tendências de pensamento, no
sentido de dar-lhes um novo elixir para enfrentar suas próprias
crises, como teria ocorrido com o idealismo e o pragmatismo
(Cf. Gramsci, 1977, p. 1435, p. 1861).
177
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Como resultado de sua crítica às limitações


do conceito de materialismo histórico, Gramsci o abandona.
É um conceito que enfraquece as possibilidades de
desenvolvimento do marxismo como concepção capaz de
se tornar hegemônica no confronto com outras tendências
do pensamento dominante. Nos Cadernos do cárcere, é clara a
substituição desse conceito2 pelo de filosofia da práxis. Esta é,
para ele, uma filosofia que surge como o coroamento de um
movimento de “reforma intelectual e moral”, o qual passa
pela história dos grandes movimentos sociais e intelectuais,
como a filosofia clássica alemã, a Revolução Francesa, a
Reforma protestante, dialetizando cultura popular e alta
cultura. Contudo, a filosofia da práxis ainda estaria numa fase
popular, pois o desenvolvimento de um grupo de intelectuais
autônomos, do qual dependem o aprofundamento e o
desenvolvimento da filosofia da práxis, é difícil e requer um
longo processo, com idas e vindas, ações e reações, uma nova
formação muito complexa. Daí as limitações da filosofia da
práxis, que é “a concepção de um grupo social subalterno,
sem iniciativa histórica, que se amplia continuamente, mas
desorganicamente, e sem poder ultrapassar um grau qualitativo
que está sempre aquém da possessão do Estado, do exercício
real da hegemonia sobre a inteira sociedade que permite
apenas um certo equilíbrio orgânico no desenvolvimento do
grupo intelectual” (GRAMSCI, 1977, p. 1860-1861).
Desse modo, a julgar pela inserção do pensamento
de Vigotski no quadro do materialismo histórico e dialético,
feita por Sirgado, não haveria uma aproximação entre suas
reflexões e as de Gramsci nesse terreno. Enquanto Gramsci
teria procurado romper com as concepções que limitavam
a expansão e o desenvolvimento da filosofia da práxis
para fortalecê-la e torná-la uma concepção hegemônica,
Vigotski3 teria permanecido atrelado a um quadro teórico
178
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

que circunscreve o marxismo a um referencial materialista,


cuja fundamentação remontaria aos conceitos de Lange sobre
o materialismo, revisados e corrigidos pela dialética, reduzida à
lógica formal. Contudo, o estreito vínculo do pensamento
de Vigotski com o materialismo histórico e dialético, no âmbito
da presente abordagem, resulta, como foi assinalado, de uma
interpretação de Sirgado e não de uma análise das obras do
psicólogo russo.

Considerações finais

A asserção de Marx de que a realidade pode ser


transformada quando as ideias são abraçadas pelas massas
populares e se convertem em história mostra a unidade entre
Filosofia e História como práxis. Trata-se de uma proposição
na qual não há o predomínio nem do sujeito (consciência),
nem do objeto (existência). Ao contrário, ali se percebe a
identidade dos contrários, do sujeito e do objeto, “no ato
histórico concreto, isto é, atividade humana (história-espírito)
em concreto, ligada indissoluvelmente a uma certa ‘matéria’
organizada (historicizada), à natureza transformada do
homem” (Gramsci, 1977, p. 1492). Gramsci, portanto,
enfatiza que a unidade dialética entre sujeito e objeto, espírito
e matéria, se dá no movimento histórico.
A perspectiva dialética de Marx, contudo, se
esvaneceu no curso da afirmação de uma leitura positivista
de seu pensamento, dando lugar a uma polaridade entre
materialismo e idealismo. No âmbito do socialismo, a
ênfase foi dada ao objeto que, em outros termos, pode ser
compreendido como a esfera da existência, da estrutura, do
material. Daí, o material se sobrepor à dimensão do sujeito,
como aparece na ideia de materialismo histórico. Por que a
179
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

história seria materialista se ela é transformação da natureza


pela atividade humana, pelo sujeito, como história-espírito?
Por que ela não é práxis, unidade entre Filosofia e História?
As contribuições teóricas de Gramsci sobre a
filosofia da práxis como superação dialética do materialismo
e do idealismo permitem, portanto, questionar a noção de
materialismo histórico e dialético, pois a síntese dialética não tende
para o sujeito, nem para o objeto; nem para a consciência, nem
para a existência. Mas na noção de materialismo histórico dialético
o pêndulo retorna para o material. O acento sobre a matéria
não soluciona o problema proposto por Marx no estudo
da sociedade, que é o de não deslizar nem para o idealismo
e nem para o materialismo. Quando nos Cadernos do cárcere
Gramsci passa a chamar o marxismo de filosofia da práxis, ele
oferece indicações que reafirmam a ideia de que a relação
entre sujeito e objeto, consciência e existência, idealidade e
materialidade, não tem uma solução metodológica, racional,
mas uma solução histórica: teoria e prática, espírito e
matéria, se unificam dialeticamente no processo histórico. É
a partir daí que trata a relação entre estrutura (economia) e
superestrutura (ideologia) como uma relação discordante e
contraditória num movimento histórico, o que corresponde
ao conceito de bloco histórico (Cf. Gramsci, 1977, p. 1051-
1052).

Notas
1
Lange, F. A. Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung
in der Gegenwart (I. Geschichte des Materialismus bis auf Kant; II.
Geschichte des Materialismus seit Kant), Iserlohn: J. Baedeker, 1866,
563p. (trad. Esp. Lange, F. A. Historia del materialismo y crítica de su
significación en el presente. Trad. esp. de D. Vicente Colorado, Madrid:
Biblioteca Científico-Filosófica, Daniel Jorro Editor, 1903, 2 vol.,
180
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

548+664p. A tradução espanhola segue a versão francesa feita por


B. Pommerol da segunda edição alemã, que foi publicada em Paris
em 1877-1879.] Lange, F. A. Histoire du matérialisme et critique de son
importance à notre époque, com uma introdução de D. Nolen, Paris : C.
Reinwald et Cie., 1877-1879, 2 vol, LI+538+20 y VII+711 p. (Vol. 1:
Histoire du matérialisme jusqu’à Kant (1877), vol. 2: Histoire du matérialisme
depuis Kant (1879). Tradução espanhola disponível, a partir de 2007,
no sítio: http://www.filosofia.org/mat/hdm/index.htm. A versão
francesa também se encontra disponível no sítio da Biblioteca Nacional
Francesa http://www.bnf.fr/.
2
A edição crítica dos Cadernos do cárcere de Gramsci, organizada por
Valentino Gerratana (1977), permite acompanhar as mudanças de
formulação dos conceitos de Gramsci. Como se sabe, Gramsci
reescreveu muitas de suas notas, ampliando-as, agrupando-as,
acrescentando novos elementos, suprimindo outros, enfim, realizando
várias alterações na segunda redação de seus apontamentos.
Acompanhando-se as reformulações por ele realizadas, percebe-se
claramente que ele substitui o conceito de «materialismo histórico»,
adotado em seus primeiros registros do cárcere, pelo de «filosofia da
práxis», conceito que ele toma de Antonio Labriola, discutindo-o no
confronto com as obras de Marx e Engels, bem como as de outros
expoentes do pensamento moderno, com a prática política de Lênin,
ampliando-o, dando-lhe novas e profundas significações.
3
É verdade que, em alguns de seus trabalhos, Vigotski (Cf. 1925, 1930)
toma como referência o pensamento de Plekhanov, considerado o
pai do marxismo russo, que sistematizou a concepção do materialismo
dialético (Cf. Plekhanov, 1978) e apresentou a relação entre pensamento
(consciência) e ser (existência) de forma dicotômica (Cf. Plekhanov,
1961). E, como foi referido mais atrás, Plekhanov realizou um
reducionismo economicista do pensamento marxiano, com o qual
Gramsci polemizou. No entanto, levando em conta observações de
Mecacci (2005) sobre a repressão ao pensamento de Vigostski nos
anos do stalinismo, podemos também supor que existiam pressões para
que fossem mencionadas em seus trabalhos ideias sobre o materialismo
dialético, então consideradas como marxismo oficial.
181
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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www.marxists.org/archive/vygotsky/works/1925/index.
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184
Educação e escola no
marxismo: perspectivas

Vandeí Pinto da Silva

Os filósofos só interpretaram o mundo de


diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-
lo. (MARX, 1989, p. 97)

Introdução

As contradições colocadas ao trabalhador


docente, na escola capitalista atual, podem gerar um desânimo
nos educadores marxistas que se vêem condicionados a
ações meramente paliativas dentro do sistema, quando não o
corroborando. Mas se é o trabalho categoria central pela qual
pode se vislumbrar a transformação da sociedade, há que se
perguntar quais possibilidades transformadoras restam em
situação de trabalho alienado.
As vinculações/relações entre trabalho e educação,
tão amplamente discutidas no marxismo, em Gramsci e
marxistas brasileiros que se dedicaram ao tema estão longe
de um desfecho satisfatório. Nos dias de hoje, torna-se
anacrônica a vinculação entre trabalho e educação se se
desconsidera dois fatos: a maioria dos alunos do ensino básico
brasileiro não trabalha e nem é desejável que isto ocorra;
o modelo industrial de produção não representa a forma
junqueira&marin editores 185
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

predominante de trabalho. Nas análises, é descabido ignorar


as formatações camaleônicas que o trabalho tem sofrido,
desconsiderando, por exemplo, os trabalhadores que atuam
no comércio, na especulação financeira, na propaganda, na
informalidade, na construção civil, na prestação de serviços
em saúde, educação, segurança, transportes, alimentação,
cultura etc., bem como, desconsiderar as grandes massas
de desempregados. As contradições não param aí: ao passo
que o sistema produtivo capitalista promete embarcar na era
pós-industrial, supostamente libertando os trabalhadores de
esforço físico desnecessário, segmentos de trabalhadores
ainda são submetidos a condições de trabalho degradantes:
são condições de trabalho penoso e insalubre, tais como as
verificadas em canaviais, na produção e manuseio de produtos
químicos, na extração de minérios, na pavimentação de
estradas etc.
Neste contexto, onde se situam os educadores
marxistas? Em quais tipos de escolas trabalham e o que
fazem? Ou será que os educadores marxistas pairam nas
nuvens do idealismo e não precisam sujar as mãos com o
trabalho alienado? É possível identificar o educador marxista
e caracterizar sua prática?
O modelo de escola requerido pela sociedade
capitalista atual, devido à sistemática coercitiva a ele
inerente, dificulta a identificação e a expressão daqueles que
se consideram educadores marxistas. Mais facilmente são
identificados os que se consideram não-marxistas e os anti-
marxistas, estando esses grupos autorizados a atuar velada e
ostensivamente.
Ironizando concepções puristas emergentes
do campo marxista, bem lembrou José Paulo Neto, no I
EBEM — Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo,
realizado em Bauru – SP, no ano de 2005, o fato de que nem
186
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mesmo os marxistas mais dogmáticos conseguiram elaborar


o marxímetro, referindo-se a um aparelho supostamente capaz
de medir o grau de marxismo existente em cada sujeito.
O presente estudo objetiva situar e caracterizar
a proposta de educação e de escola marxistas e vislumbrar
possibilidades de sua implantação, nas contingências
colocadas pelo capitalismo. Discutir sua implantação
como um elemento que contribua para a aproximação da
educação do futuro, quando da superação do capitalismo e da
constituição do socialismo, possivelmente, sem voluntarismos
e purismos.
Na perspectiva do materialismo histórico
dialético, numa sociedade de classes a escola é também uma
escola de classes (SNYDERS, 2005). O pressuposto aqui
adotado, portanto, é o de que a educação escolar, dentro
dos limites histórico-sociais postos pelo capitalismo, tanto
pode reiterar o sistema de exploração capitalista vigente,
quanto ser importante fermento de sua superação, elemento
de práxis social.
O estudo, na sua primeira parte, é dedicado
à reflexão sobre uma questão que atinge diretamente os
intelectuais e, em especial, os educadores: a tendência ao
idealismo e à mera teorização. Nas concepções filosóficas
de matriz hegeliana as teorias ganham alto grau de abstração
e induzem os exercícios mentais de mera lucubração, ao
que Marx e Engels denominaram de “A ideologia alemã”
(1989). Na perspectiva da filosofia marxista não basta fazer
a crítica do idealismo. A proposta de transformação social
requer o reconhecimento do homem como sujeito histórico
determinado e ao mesmo tempo determinante das condições
que o circunscrevem.
Em seguida são feitas referências a textos de Marx
e Engels sobre a educação e a escola. Estes textos inspiraram
187
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

diferentes leituras, e destas podem ser derivadas diferentes


concepções de escola. As proposições de Marx e Engels sobre
a educação são pontuais e esparsas se comparadas à magnitude
de suas obras acerca de outros temas, a economia política, por
exemplo. Mesmo assim, os princípios por eles defendidos dão
as bases para a educação do futuro, quanto, especialmente,
à formação omnilateral do homem, à obrigação do Estado
com a educação pública e gratuita do povo e à necessidade de
busca de autonomia dos sistemas educativos e dos docentes
ante a tendência de tutela do Estado.
Por fim, coerentemente com o desafio posto
aos educadores marxistas de serem propositivos, são
feitas referências à chamada pedagogia histórico-crítica.
Esta proposta é concebida como uma importante teoria
educacional, com vistas à orientação dos educadores
marxistas.

1. Filosofia da práxis e educação escolar

A sociedade atual ostenta, como sinônimo de


progresso, o avanço do conhecimento expresso especialmente
no estágio galgado pela ciência e a tecnologia. Não se
trata, contudo, de “sociedade do conhecimento” como
propaga o discurso neoliberal, pois o desenvolvimento
deste conhecimento se deu unilateralmente, apartado do
desenvolvimento humano: desenvolveu-se em maiores
proporções apenas o conhecimento tecnológico, algo
fundamentalmente distinto da concepção de formação
omnilateral preconizada pelo marxismo.
Ao mesmo tempo em que o capitalismo expõe
seus produtos derivados do progresso à possibilidade de
consumo, constata-se um abismo entre os bens socialmente
produzidos e o usufruto desses pela maioria da população.
188
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Configura-se claramente aí, a concepção de alienação


descrita por György Márkus (1974, p. 61), entendida como
o distanciamento entre o estágio mais avançado de produção
de uma sociedade e o acesso das grandes massas a tal estágio.
Se à escola, na sua função precípua, cabe a
reprodução e produção do conhecimento, cumpre questionar
o tipo de conhecimento por ela produzido e reproduzido e
a quem ele serve. Em suma, rever o papel social da escola
quanto à sua contribuição na criação de novas relações sociais.
Evidentemente, da perspectiva marxista, os conhecimentos
reproduzidos e produzidos na escola estão também suscetíveis
à alienação, sendo a conversão dos conhecimentos em teorias
desvinculadas da prática, uma das formas em que a alienação
aí se manifesta.
No caso da universidade, destacar o seu papel
como produtora do conhecimento é importante para
frear a tendência neoliberal que preconiza um modelo de
universidade funcional, reprodutor de conhecimento e
destinado a responder problemas sob o prisma da análise
capitalista, com o fito de amenizar suas mazelas.
Marx e Engels, na obra “A ideologia alemã”,
contrapõem-se ao domínio de uma visão filosófica idealista
e, assim, dão continuidade às críticas formuladas pelos
chamados hegelianos de esquerda e por Feuerbach.
Ao passo em que se opõem às concepções
abstratas da filosofia alemã de matriz hegeliana e de seus
críticos, propõem uma nova concepção filosófica, a da práxis,
encarnada no “reino dos homens”, nas circunstâncias que
determinam suas ações. É na discussão sobre o processo de
formação da consciência que apresentam a genial síntese
segundo a qual “as circunstâncias fazem os homens tanto
quanto os homens fazem as circunstâncias” (MARX;
ENGELS, 1989, p. 36).
189
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Trata-se, pois, de uma nova concepção filosófica


e que procura a superação dos limites aos quais estavam
circunscritas as formulações dos filósofos alemães e dos
socialistas utópicos. Uma nova visão de mundo, entendida
por Marx e Engels como a visão de mundo capaz de pôr fim
ao círculo vicioso das críticas abstratas e que não conseguem
sair do esquema de pensamento que pretendem superar.
A pretensão de Feuerbach de que a “essência
verdadeira das coisas” somente é alcançada pela filosofia e
não pela visão “a olho nu”, esconde o fato de que o mundo
sensível também é produto de condições históricas dadas,
resultante de intervenções humanas.
O novo sistema proposto, o comunismo, não
se encontra definitivamente delineado (MARX; ENGELS,
2002). Este deverá resultar das proposições e construções do
proletariado, regido pelo processo dialético, que considera
a luta de classes. Assim, a proposta encerraria os riscos de
qualquer outra utopia, na medida em que é, também, uma
utopia, se se descurasse tratar de uma utopia calcada no
materialismo histórico dialético.
Convém resguardar-se de que no comunismo
o “reino dos homens” não se converta num epifenômeno
do “reino das ideias”. Da perspectiva filosófica tradicional,
na disputa entre concepções filosóficas de visão de mundo,
o socialismo científico não deixa de ser, também ele, uma
concepção. E este dado é preciso ter presente nas análises
e embates. Mas trata-se de uma concepção formulada
autonomamente, ou seja, independente dos limites estreitos
do idealismo. Uma concepção fundada em bases históricas,
na vida real dos homens, concretamente situados e sujeitos
da própria história.
Em vista da revolução, pouco contribuirá a
arrogância daqueles estudiosos marxistas quanto à pretensão
190
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da visão derradeira e, com ela, a negação in totu de outras


concepções possíveis, se perdem a essência da dialética,
o que denuncia sua estreiteza dogmática e mecanicista. A
persistirem semelhantes incongruências dentro do corpo
teórico dos estudiosos marxistas, revisões aí também se farão
necessárias.

2. Referências de Marx e Engels sobre a


educação e educação escolar

Marx não destinou à educação o mesmo


tratamento minucioso e sistemático dado à estrutura e
funcionamento da economia capitalista. Contudo, ainda
que suas referências sobre a educação sejam esparsas, estão
coerentemente situadas no contexto geral de sua obra e das
condições histórico-sociais do seu tempo: estão situadas
no contexto da expansão da indústria inglesa, com sua
conseqüente exigência de um trabalhador especializado e a
exploração de homens, mulheres e crianças. A interpretação
dos textos de Marx e Engels sobre a educação e educação
escolar deve considerar dois importantes aspectos do seu
contexto: princípios gerais que percorrem toda sua obra
e indicações programáticas, de caráter prático. Cumpre
considerar também o fato de Marx incluir a docência no
conjunto das profissões burguesas destinadas a perpetuar os
ideais das classes dominantes, tais como funcionários públicos
carreiristas, pesquisadores e médicos.
Ressalvando-se os aspectos datados dos escritos
de Marx e Engels sobre a educação, deles se evidenciam
princípios importantes para nortear o estudo sobre a escola
hoje. A questão central diz respeito à formação de indivíduos
não apenas competentes profissionalmente, mas também
conscientes do seu papel histórico-social. Para tanto, se
191
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

faz necessário, antes de tudo, considerar o contexto em


que a escola encontra-se inserida e os seus condicionantes
institucionais.
Em Princípios do Comunismo (1847) e no
Manifesto do Partido Comunista (1848) encontramos
importantes paralelos.
No parágrafo 18 dos Princípios do Comunismo
Engels ressalta: “Instrução a todas as crianças, assim que
possam prescindir dos cuidados maternos, em institutos
nacionais às expensas da nação. Instrução e trabalho de
fábrica [Fabrikation] vinculados” (MANACORDA, 1991,
p. 16).
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e
Engels retomam o citado princípio, tendo em vista medidas
programáticas democráticas a serem tomadas e estabelecem
o seguinte: “Educação pública e gratuita a todas as crianças;
abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é
praticado hoje. Combinação da educação com a produção
material etc.” (MARX; ENGELS, 2002, p. 58).
Destes textos cumpre destacar princípios que
mantêm sua importância e atualidade até o presente: ensino
público e gratuito para todas as crianças; abolição do trabalho
das crianças.
A instrução e o trabalho de fábrica vinculados,
na perspectiva de Engels ou, na perspectiva de Marx,
combinação da educação com a produção material (ou em
outras traduções: unificação do ensino com a produção
material), constituem um dos princípios mais polêmicos da
educação marxista em nossos dias.
As legislações em diferentes países já proíbem
o trabalho infantil. No caso do Brasil, legalmente, admite-
se o trabalho do adolescente a partir dos 14 anos de idade,
na condição de aprendiz, ou a partir dos 16 anos, com
192
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

regulamentações específicas. Trata-se de uma situação


diferente daquela vivenciada por Marx e Engels, na qual
o trabalho infantil não somente era admitido, a partir de
oito anos, como o trabalho poderia se tornar uma atividade
compulsória e exclusiva, tomando todo o tempo das crianças
que, com isso, deixavam de frequentar a escola.
Tendo-se como referência a seriação ideal, aos 14
anos as crianças brasileiras já estão concluindo a 8ª série, num
sistema que prevê, em média, quatro horas de ensino por dia.
Neste contexto, não se pode olvidar o fato do trabalho das
crianças das classes populares, majoritariamente, se restringir
às atividades domésticas na própria casa e ao cuidado dos
irmãos mais novos. Os demais afazeres dessas crianças estão
voltados ao brincar, ficar na rua e, sobretudo, ver televisão.
A legislação brasileira, ao buscar limitar o trabalho
infantil, por si só, já limita também a vinculação entre trabalho
produtivo e a educação escolar nos dias atuais. Seria descabido
contestar a legislação vigente, dirigida a proteger as crianças
do trabalho explorado e, em contrapartida, advogar o trabalho
infantil, com intuito de possibilitar a unificação do trabalho
com a educação. Tal tipo de interpretação seria equivocada,
pois Marx e Engels defendiam, por princípio, a educação
escolar das crianças. Contudo, naquele contexto, concediam
uma quantidade mínima de trabalho infantil conjugado com
o ensino. Do contrário, as crianças poderiam ser totalmente
privadas do ensino.
Com o avançar da idade, quando parte dos
adolescentes e jovens de fato começa a trabalhar, se
materializa a possibilidade real da vinculação entre trabalho
produtivo e educação escolar. Até então, cabia investir no
zelo pedagógico de articular teoria e prática na formação,
buscando-se o significado do que se aprende para a formação
omnilateral do estudante.
193
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A partir de então, o princípio da articulação teoria


e prática é expandido em vista da preparação profissional
do estudante, mas não pode se restringir a isto, se a meta é
formar um trabalhador consciente de seu papel de produtor,
transformador das relações sociais e do próprio trabalho. Do
contrário, a formação do estudante enfatizaria sua adaptação
às condições requeridas pelo mercado de trabalho vigente,
entenda-se, sua adaptação ao trabalho alienado1. Com efeito, no
capitalismo, não se dá a vinculação entre o trabalho produtivo
e a educação escolar. Constata-se, isto sim, um abismo entre
as exigências do trabalho realizado, mormente em condições
precárias na sua dimensão formativa e empregatícia e o
processo de formação propiciado pela escola.
E as escolas de ensino técnico, poderiam romper
com o referido abismo? A forma como se estruturam essas
escolas favorece uma formação politécnica? Não será possível
aprofundar esta questão aqui. Cumpre lembrar, contudo,
que as escolas de ensino técnico brasileiras têm início no
ensino médio, ressalvando-se o dever de assegurarem aos
estudantes formação generalista simultânea à formação
técnico-profissional, mas não formação politécnica: é caso
das escolas agrícolas, por exemplo. A exigência de formação
generalista simultânea configura-se como algo positivo, se
protege o estudante de uma formação técnica unilateral
e precoce. Contudo, a pretensão do legislador vai além:
o objetivo é formar profissionais adaptáveis e flexíveis às
condições adversas de trabalho explorado no emprego, no
desemprego e no mercado informal.
Em vista da formação omnilateral, até mesmo
as FATECs (Faculdades de Educação Tecnológica)
brasileiras, são vistas com reticências por parte de segmentos
universitários, especialmente os públicos, que mantêm
cursos de graduação com sólida formação humanística, em
194
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

oposição à formação de tecnólogos, em geral marcada por


uma perspectiva tecnicista, unilateral.
Marx e Engels pressupõem o trabalho como
atividade central na constituição do homem, daí que não
poderiam deixar de a ele vincular a educação, o que deve
permanecer por toda a vida, incluindo, naquele contexto,
a etapa correspondente à educação elementar, pois aquelas
crianças trabalhavam.
Insistir, genericamente, na vinculação entre ensino
e trabalho é desconhecer a situação dos alunos da escola
elementar e, ao mesmo tempo, desconsiderar as formas
de organização do trabalho no capitalismo atual, as quais
não se restringem mais predominantemente à indústria e à
agricultura. Ocupam grande contingente de trabalhadores o
comércio, a construção civil, os transportes e a prestação de
serviços nas áreas da saúde, educação, turismo etc.
Marx, 20 anos depois (1868), nas Instruções aos
delegados do Conselho Central Provisório Londrino, do I
Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores
(AIT), escreve:

Por educação, entendemos três coisas:

1. Educação intelectual.

2. Educação corporal, tal como a que se consegue


com exercícios de ginástica e militares.

3. Educação tecnológica, que recolhe os princípios


gerais e de caráter científico de todo o processo de
produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças
e os adolescentes no manejo de ferramentas
elementares dos diversos ramos industriais.
195
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

À divisão das crianças e dos adolescentes em três


categorias, de nove a dezoito anos, deve corresponder
um curso graduado e progressivo para a sua educação
intelectual, corporal e politécnica. Os gastos com tais
escolas politécnicas serão parcialmente cobertos com
a venda de seus próprios produtos.

Esta combinação de trabalho produtivo pago com


a educação intelectual, os exercícios corporais e a
formação politécnica elevará a classe operária acima
dos níveis da classe burguesa e aristocrática.

O emprego de crianças e adolescentes de nove


a dezoito anos em trabalhos noturnos ou em
indústrias, cujos efeitos sejam nocivos à saúde deve
ser severamente proibido por lei. (MARX; ENGELS,
2004, p. 68-69)

As divisões das crianças por categorias de faixa


etária acima referidas são: de 9 a 12 anos (apenas duas horas de
trabalho); de 13 a 15 anos (quatro horas de trabalho) e de 17 a
18 (seis horas de trabalho). A preocupação de Marx é evidente:
garantir tempo de estudo às crianças e adolescentes, evitando-
se sua exploração no trabalho e ao mesmo tempo, vincular
educação e trabalho na formação, para assegurar formação
omnilateral.
As Instruções aos delegados do I Congresso da
AIT contêm, sem dúvida, a essência da concepção marxista
de educação. Ter como princípio que a educação é formação
intelectual, corporal e politécnica permite a compreensão de
outros importantes princípios marxistas atinentes à educação,
tais como a formação omnilateral, a unidade teoria e prática e
articulação educação e trabalho.
196
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Um princípio básico para Marx é que a educação


não se restringe à formação intelectual. A educação
contém a dimensão intelectual, mas restringir-se a ela
unilateralmente pode conduzir ao idealismo, tal como Marx
criticou na XI tese sobre Feuerbach, tomada como epígrafe
ao presente texto. A respeito desta tese, também é preciso
evitar o equívoco oposto, qual seja, desprezar a interpretação
desvinculando-a da transformação.
A dimensão corporal da educação constitui-se
de grande importância no marxismo. O desenvolvimento
pleno das potencialidades do corpo por meio do domínio
dos seus movimentos, na dança e nos esportes, por
exemplo, é condição para a satisfação plena do ser
humano. Um corpo atrofiado, que não desenvolveu
plenamente os seus sentidos, tais como o olhar e o
ouvir, torna o indivíduo impotente para o usufruto dos
bens materiais e imateriais socialmente produzidos. Se
for desejável que o agricultor deva também ser capaz de
escrever um poema, também é desejável que o intelectual
profissional cultive a terra.
A transformação da natureza com o trabalho
se faz com a cabeça e com as mãos. Referindo-se às
características individual e social do trabalho e os
processos de alienação aí implicados, Marx, em O Capital,
escreve:

O homem isolado não pode atuar sobre a


natureza sem pôr em ação seus músculos sob o
controle de seu cérebro. Fisiologicamente, cabeça
e mãos são partes de um sistema; do mesmo
modo, o processo de trabalho conjuga o trabalho
do cérebro e o trabalho das mãos. (MARX, 2008,
p. 577)
197
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O sentido da união entre trabalho manual e trabalho


intelectual, entre teoria e prática, trabalho e educação reside na
formação omnilateral do ser humano.
A edição das Instruções coincide cronologicamente
com a redação de O Capital, ressalvando-se que neste não há
uma preocupação programática.
Em O Capital2, livro I, cap. XIII, após discorrer
sobre a legislação fabril inglesa que estabelece ensino elementar
como condição obrigatória para admissão de crianças ao
trabalho, Marx escreve:

Seu sucesso demonstrou, antes de tudo, a possibilidade


de conjugar educação e ginástica com trabalho
manual, e conseqüentemente o trabalho manual com
educação e ginástica [...] Do sistema fabril, conforme
expõe pormenorizadamente Robert Owen, brotou
o germe da educação do futuro que conjugará o
trabalho produtivo de todos os meninos além de
certa idade com o ensino e a ginástica, constituindo-
se em método de elevar a produção social e de único
meio de se produzir seres humanos plenamente
desenvolvidos. (MARX, 1985, p. 553-554)

Quase 30 anos após as primeiras manifestações de


Marx e Engels sobre a educação nos Princípios do Comunismo
e no Manifesto Comunista, Marx faz Notas à Margem do
Programa do Partido Operário Alemão, conhecida como a
Crítica ao Programa de Gotha, de 1875, onde na parte “B”,
consta: “1. Educação popular, geral e igual a cargo do Estado.
Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução gratuita”.
(MARX; ENGELS, 2004, p. 101).
Nesta tese do Partido, Marx questiona: “... pretender-
se-á forçar as classes superiores a contentarem-se com a
198
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mesquinha educação popular das escolas primárias [...]. O que


é preciso condenar, é ‘uma educação popular pelo Estado’. O
Estado financia, mas não pode ser o educador do povo, assim
como a Igreja” (MARX, 1978, p. 102).
Na Crítica ao Programa de Gotha são resgatados
princípios educacionais que, por sua profundidade, são até hoje
caros às classes populares: elevação do nível de qualidade da
educação pública; obrigatoriedade da oferta de educação pública
e gratuita. Contra qualquer tipo de ingerência do Estado na
educação do povo. O Estado, sim, é que deve receber do povo
uma educação muito severa.

3. Pedagogia histórico-crítica: construção de uma


pedagogia marxista

A doutrina materialista que pretende que os homens


sejam produtos das circunstâncias e da educação,
e que, conseqüentemente, homens transformados
sejam produtos de outras circunstâncias e de uma
educação modificada, esquece que são precisamente
os homens que transformam as circunstâncias e que
o próprio educador precisa ser educado. (MARX;
ENGELS, 1989, p. 94)

Antes de entrar na discussão de uma pedagogia


marxista, cumpre enunciar algumas posturas anti-marxistas que
visam a afastar os não-marxistas do marxismo e a ele opor resistência.
Estas posturas muitas vezes estão baseadas em preconceitos e em
estereótipos, e por isso mesmo devem ser discutidas.
a) A primeira postura preconceituosa em relação
aos educadores marxistas diz respeito à acusação de serem
excessivamente críticos e pouco propositivos.
199
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

De fato, o discurso marxista consome muito do


seu tempo e dos seus argumentos no estudo crítico do sistema
capitalista. E não podia ser diferente. No marxismo, o inimigo
maior é sempre explicitado: o sistema capitalista. Não há
tergiversações nem concessões. Do ponto de vista ideológico,
o capitalista também não faz concessões, senão na aparência,
como forma de se apresentar aberto à pluralidade e se manter
no poder.
Assim, os educadores marxistas, por se apresentarem
sempre excessivamente críticos, são acusados de serem
incapazes de trabalhar coletivamente. Ora, a afirmação de
crítica radical é pertinente, mas a de não se integrarem a
trabalhos educacionais e escolares coletivos não procede, na
medida em que de fato, inexistem trabalhos genuinamente
coletivos nas escolas capitalistas. O que há é a ingerência
burocrática de dirigentes institucionais e escolares que se
sentem incomodados com a atuação de professores críticos,
incluindo-se aí os marxistas.
b) Priorizam a atuação política em detrimento da ação
pedagógica. A rigor, esse atributo é um elogio. Revela a capacidade
do educador marxista de integrar organicamente o seu trabalho
pedagógico com as outras dimensões da vida dos estudantes e
dos outros trabalhadores. Da perspectiva da educação burguesa
apregoa-se que a educação é para a vida, mas para a vida
burguesa, fato que restringe a dimensão política da educação.
Nesta esfera ideológica não há espaço para engajamento de
natureza transformadora. Portanto, da perspectiva burguesa, o
bom professor, dentro do sistema produtivista que se impõe,
inclusive na universidade, não deve dedicar parte de seu tempo
à discussão e organização das lutas sociais.
c) O ideário marxista não se aplica. Tomando-se
como referência o fracasso de “socialismos reais”, advoga-
se a impossibilidade de superação do capitalismo e de sua
200
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

substituição pelo socialismo. A queda do muro de Berlim em


1989, o desmoronamento dos regimes do Leste Europeu, são
fatos evocados para comprovar a inviabilidade do socialismo.
Se a construção de uma pedagogia marxista
não se dá sem resistências, não se dá também sem riscos de
distorção. Mesmo as propostas implantadas na Rússia após a
revolução de 1917 não estiveram isentas de desvios, quanto
mais propostas elaboradas no âmbito do capitalismo. Neste
caso, o pior risco é o da estagnação, em geral, justificada com
posturas dogmáticas e idealistas, que remetem a discussão
de uma pedagogia marxista para a estratosfera, numa nítida
perversão da inteligência. Outro subterfúgio consiste em
remeter o desafio da construção de uma proposta marxista
de educação para um futuro distante, no qual o capitalismo
já tenha sido superado e, supostamente, estariam dadas as
condições ideais para uma educação genuinamente marxista.
Como se, neste futuro, os problemas, conflitos e contradições
estivessem todos superados.
Da perspectiva dialética, uma nova proposta de
educação escolar, no caso a marxista, deve necessariamente
considerar a proposta vigente de escola como tese a ser
superada. Este procedimento de partir da educação escolar
vigente não pode ser confundido com tentativas de reformas
que redundam no ajuste das mazelas do sistema capitalista, tal
como já bem explicitou Mészáros em “A educação para além
do capital” (2005). Contudo, o fato do risco, sempre presente,
de proposições reformistas emergirem não pode levar ao
imobilismo, deixar os educadores marxistas de mãos atadas.
No âmbito do Brasil, cumpre considerar a
pedagogia histórico-crítica. Uma proposta de concepção
educacional fundamentada no marxismo, mas ainda pouco
conhecida entre muitos teóricos marxistas brasileiros, inclusive,
marxistas que se dedicam à educação.
201
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Saviani fixa o ano de 1979 como o momento


da configuração da pedagogia histórico-crítica. Na ocasião,
a primeira turma de doutorandos da PUC/SP discutia
coletivamente o problema de abordar dialeticamente a
educação. Dentre estes estudiosos incluíam-se Jamil Cury,
Neidson Rodrigues, Luís Antônio Cunha, Guiomar Namo de
Mello, Paolo Nosella, Betty Oliveira, Mirian Warde e Osmar
Fávero. José Carlos Libâneo, de sua parte, também trará
grande contribuição com sua análise das práticas docentes
à luz do marxismo, por ele denominada “pedagogia crítico-
social dos conteúdos” (SAVIANI, 1991, p. 75-77).
A pedagogia histórico-crítica concebe a escola
como uma instituição social importante para as classes
populares terem acesso aos conhecimentos socialmente
produzidos e, por meio deles, fortalecer a luta pela
transformação social, pela superação do capitalismo.
Portanto, a escola de que se está falando é a escola pública
brasileira, que deve assegurar aos filhos das classes subalternas
o acesso ao saber sistematizado.
Conceber e praticar um projeto de escola pela
transformação da sociedade vigente requer, simultaneamente,
a análise crítica desta sociedade e da função social da escola.
Na escola situada no contexto da sociedade capitalista, todo
o processo educativo tenderá a reproduzir mecanismos de
ajuste dos estudantes ao sistema dominante, aos interesses
da classe dominante.
Evitando-se a crítica da crítica, tal como faziam
os hegelianos de esquerda e Feuerbach, compreende-se que
nem toda a educação, nem toda escola, nem toda prática
pedagógica está, necessariamente, a serviço da reprodução do
sistema capitalista. Neste ponto, a pedagogia histórico-crítica
se distancia das chamadas teorias crítico-reprodutivistas.
Estas teorias, fundamentadas em teóricos como Bourdieu,
202
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Passeron e Althusser, enfatizaram o papel reprodutivista da


escola capitalista, mas não chegaram a elaborar uma proposta
de escola.
A pedagogia histórico-crítica distingue-se de
outras propostas pedagógicas que também preconizam a
transformação social. Há diferenças importantes entre a
proposta da pedagogia histórico-crítica e a proposta libertária,
baseada em referenciais anarquistas, e a libertadora, preconizada
por Paulo Freire. Nestas, a influência escolanovista, que tem
suas bases no pragmatismo de John Dewey, é determinante.
Diferentemente da proposta libertadora que prioriza a
educação informal, a pedagogia histórico-crítica se atém
principalmente à educação formal, à educação propiciada
pela escola pública, local onde os filhos das classes populares
majoritariamente estudam.
O trabalho docente é valorizado no âmbito da
pedagogia histórico-crítica. O processo de transmissão e
assimilação do conhecimento tem na figura do professor
o mediador principal. O conhecimento (erudito e popular)
é concebido como riqueza socialmente produzida pela
humanidade e, enquanto tal, deveria ser socializado,
possibilitando-se o acesso a ele por parte das classes populares.
Ocorre que o conhecimento erudito foi indevidamente
apropriado pela burguesia como propriedade sua e em
benefício próprio. Cumpre “proletarizar” esse conhecimento.
Isso significa devolver ao povo um produto social do qual
foi expropriado. Os conhecimentos já produzidos devem
ser sempre criticados e contextualizados na história. Novos
conhecimentos criados. A articulação entre o saber popular
e o saber erudito se faz necessária, pois as classes populares
não devem se contentar apenas com o conhecimento de
suas próprias experiências culturais, também suscetíveis
à manipulação da indústria cultural, mas estar abertas a
203
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

novos horizontes culturais a serem por elas criteriosamente


avaliados.
Cumpre lembrar que o trabalho docente não está
imune à alienação. Entretanto, na atividade humana onde mais
se materializa a alienação, o trabalho, contraditoriamente, aí
pode estar o gérmen da transformação social.
Um dado de realidade não pode ser negado. Os
educadores marxistas, inseridos que estão no sistema de
produção capitalista, não pedirão demissão do emprego para
protestar contra as condições de trabalho explorado e alienado
a que estão sujeitados. Ao contrário, atuarão neste contexto,
cientes de que através do trabalho poderão transformar a
natureza e as relações sociais e culturais de modo a produzir
bens materiais e imateriais necessários à sobrevivência humana.
No próprio trabalho, ainda que circunscrito às determinações
do capital em detrimento do homem, atuarão de outra
perspectiva.
A pedagogia histórico-crítica mostra-se uma
proposta viável, capaz de explicitar equívocos pedagógicos sérios
que acometem a educação brasileira, sendo a descaracterização
do papel da escola e do professor o principal deles. Por meio da
pedagogia histórico-crítica é possível superar dois extremos: de
um lado a visão ufanista que acreditava que a educação escolar
podia tudo e de outro a determinista, por meio da qual a escola
é concebida como incapaz de interferir nesse processo, a não
ser contribuir para a consolidação da sociedade capitalista.
Para além das práticas individualizadas e de grupos,
cumpre mencionar o trabalho de professores e pesquisadores
do município de Bauru – SP, vinculados à Rede Municipal
de Ensino e a Grupos Acadêmicos de Pesquisa os quais têm
buscado realizar pesquisas e implantar propostas embasadas
na pedagogia histórico-crítica. A característica peculiar dessas
iniciativas reside na busca de intervenção institucional: deixam de
204
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ser propostas isoladas para abranger um sistema de ensino, com


todos os riscos e possibilidades que tal proposta possa conter.
Neste contexto, faz sentido compreender a
vinculação do trabalho com a educação, pois esta é para a
vida toda. Daí a necessidade de universalização da educação
e da universalização do trabalho, como atividade humana
auto-realizadora, como explicita Mészáros em “A educação
para além do capital” (2005, p. 65), como condição para a que
transformação se dê.

Notas
1
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96, no
artigo 35, inciso II, determina, como um dos objetivos do ensino
médio: “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando,
para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com
flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
posteriores”.
2
No livro I, volume I, capítulo XIII, do Capital, Marx escreve sobre
“A maquinaria e a indústria moderna” e, num item específico, trata
da legislação fabril inglesa, suas disposições relativas à higiene e à
educação, e sua generalização a todo produção social.

Referências

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Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira. São Paulo: Cortez
e Autores Associados, 1991.

MÁRKUS, György. Marxismo y antropologia. Tradução de


Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1974.
205
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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de Roger Dangeville. Lisboa: Moraes Editores, 1978.

______. O capital. Crítica da economia política. O processo


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______. O capital. Crítica da economia política. O processo


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ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Livro I, v. II.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução


de Luis Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes,
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Paulo: Boitempo, 2002.

______. Textos sobre educação e ensino. Tradução de Rubens


Eduardo Frias. 4. ed. São Paulo: Centauro, 2004.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Tradução


de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras


aproximações. 2. ed. São Paulo: Cortez e Autores Associados,
1991.

SNYDERS, Georges. Escola, classe e luta de classes. Tradução


de Leila Prado. São Paulo: Centauro, 2005.

206
Notas sobre ser
e existência

Antônio Carlos Mazzeo

Discorrer sobre a problemática da Alienação,


do ser e da existência é sempre uma tarefa difícil porque,
se de um lado, há o risco dos reducionismos mecanicistas,
por outro lado a problemática da Alienação, longe se
estar “superada” (como querem pretensiosamente, os que
preferem “entender” a sociedade capitalista de hoje pelo
prisma da razão manipulatória), permeia todas as esferas da
vida humana.
Neste pequeno esboço, pretendemos tão somente,
rastrear alguns elementos conformadores das relações sociais
fetichizadas, apontadas por Marx.

1. O trabalho como sociabilidade humana

Em fins de 1875, Engels, ao analisar o papel do


trabalho na formação do homem, ressaltou que o trabalho
constitui-se em algo infinitamente maior e mais profundo, do
que a mera geração de riquezas: “É a condição fundamental
de toda a vida humana; e o é num grau tão elevado que, num
certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou
o homem” (ENGELS, 1979, p. 215). Em que pesem os 132
anos que separam estas afirmações dos dias de hoje e as novas
descobertas sobre a evolução humana, somos obrigados a
concordar, in totum com Engels, no que se refere ao papel
junqueira&marin editores 207
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

hominizador do trabalho. Desse modo, enfrenta-se o problema


da hominização do ser humano, de forma ontológica, isto é,
relevando o desenvolvimento do homem através de saltos e
mudanças qualitativas e estruturais, a partir da importância
do trabalho no processo de potencialização de condições pré-
existentes. Como diz Lukács: “Devemos recordar que Engels,
com razão, cobra a relação imediata entre a sociabilidade e
a linguagem advindas do trabalho” (LUKÁCS, 1976, p. 18).
Esse também é o entendimento marxiano,
quer dizer, a hominização é posta ontologicamente pelo
trabalho, enquanto práxis. A relação que o homem estabelece
com a natureza, enquanto seu corpo inorgânico, é a de
apropriação dos meios de vida que a natureza fornece. Essa
apropriação realizada pelo trabalho tem um duplo caráter,
quando pensamos em sociedades onde a estrutura produtiva
prescinde das relações de troca (dos valores de troca) e do capital:
constituem-se, ao mesmo tempo, no produto e no objeto de um
novo trabalho com um conseqüente novo produto, sempre,
exclusivamente, com vistas ao seu valor de uso: o arco e a
flecha, a rede de pescar, etc. Ou seja,

[...] as situações mais primitivas pressupõem o


produto, que deixa de ser tido como produto e se
transforma em matéria prima ou, ainda em um
instrumento de produção, pois esta é a primeira forma
específica sob a qual o produto se apresenta como
meio de reprodução. (MARX, 1986, p. 240)

Desse modo, a apropriação da natureza pelo


trabalho humano, transforma qualitativamente não só o
elemento fornecido pela própria natureza, potencializando
suas qualidades inerentes e acrescentando à matéria prima
original um novo trabalho, a cada momento do processo de
208
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

criação, mas, ao mesmo tempo, acrescenta ao próprio homem


conhecimentos qualitativos que, acumulados pela práxis,
avançam para qualidades novas e para novos processos e
formas produtivas. Daí ser o trabalho humano essencialmente
teleológico, na medida em que o produto do trabalho é o
resultado da pré-ideação do trabalhador.
Não é apenas uma mudança na forma do
elemento que constitui a matéria prima original, mas é a
subordinação do elemento natural ao seu modus operandi e à
sua vontade. No ser-em-si do elemento natural, obviamente,
não encontramos finalidade imanente, que é dada pela
apropriação de finalidade do homem às propriedades (casuais)
presentes no elemento natural. É a práxis, como elemento
de acúmulo de conhecimento, que realiza os nexos entre as
propriedades do elemento natural e sua utilizabilidade. Como
diz Giannotti, apoiando-se nos Grundisse:

Na qualidade de condição da reflexão do trabalho


as relações do homem com a natureza aparecem
como metabolismo, troca de energias entre o
organismo e o meio. Em vez de consistir, porém
num mero sistema circular de obtenção e dispêndio
de forças, o ciclo técnico aparece condicionado
pela anteposição do produto, pela ante-presença
muito humana da coisa, o que lhe empresta desde
logo uma finalidade própria. Mas a idéia neste nível
é tão somente carecimento, impulso de obter algo
de que o organismo necessita [...]. Como condição
do processo de trabalho importa apenas enquanto
lhe confere movimento teleológico. A satisfação,
o reforço são qualidades que, embora presentes,
deixam de possuir um conteúdo invariável, desde
que se insiram na reiteração do processo ancorado
209
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

no metabolismo animal. (GIANNOTTI, 1983,


p. 93)

O processo reflexivo articula-se inseparavelmente


com a necessidade – e aparece como a resposta humana
à carência. Esse aspecto é importante na definição da
construção do conhecimento pelo trabalho – enquanto práxis
– socialmente posto; enquanto necessidade humano-social já
que é necessário diferenciar os níveis históricos da finalidade.
Melhor seria dizer que é necessário historicizar o
grau de necessidade e coletá-la ontologicamente em seu escopo
gnoseológico; de tempo e de modo. Como bem acentua Lukács:

Uma vez que todo objeto natural, todo o processo


natural, apresenta uma infinidade intensiva de
propriedades, de inter-relações com o modo
circundante, etc.; o que dissemos refere-se, apenas,
àqueles momentos das infinidades intensivas que,
pela posição teleológica, possuem importância
positiva ou negativa. Se, para trabalhar, fosse
necessário um conhecimento, ainda que somente
aproximado, desta infinidade intensiva enquanto
tal, nas fases primordiais da observação da natureza
(quando não existia um conhecimento em senso
conceptual), o trabalho não poderia jamais ter
surgido. (LUKÁCS, 1976, p. 27-28)

Ressalta-se de um lado, o caráter de objetividade


infinita do trabalho e de outro, a própria infinitude da teleologia
que, como o produto do processo de trabalho, adquire novos
horizontes, para responder às novas carências, num circuito
dialético que põe e repõe o processo hominizador enquanto
sociabilidade historicamente determinada.
210
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

De modo que, no pensamento marxiano a


articulação trabalho/sociabilidade aparece enquanto
o processo mesmo da constr ução hominizadora,
ontologicamente posta, na medida em que o homem,
enquanto ser genérico, ao constituir-se como indivíduo, constrói
sua existência condicionada à própria entificação da sociedade
humana. O ser individual realiza-se no ser coletivo.
O importante é que esse processo permanente
de construção da sociabilidade é sempre mediado pelo grau
de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de
produção:

Um estágio determinado de desenvolvimento das


forças produtivas dos sujeitos que trabalham, ao
qual correspondem relações determinadas dos
mesmos entre si e com a natureza: a isso se reduz,
em última instância, sua entidade comunitária
assim como a propriedade baseada nela. Logo,
transloca-se em dissolução. (MARX, 1986, p. 456)

Isso, como podemos ver, configura um processo


que não se limita à mera evolução, como afirmam os
antropólogos “desavisados” (ou mal intencionados),
mas afirma o processo onto-genético da construção da
sociabilidade. Ainda, seguindo o raciocínio marxiano,
podemos concluir que o homem, como um ser genérico,
encontra seu isolamento ou sua individualização através de
um longo processo histórico.

Aparece, originariamente, como um ser genérico,


um ser tribal, um animal gregário, de modo algum
como animal político. O intercâmbio mesmo é um
meio fundamental para esse isolamento. Torna
211
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

supérfluo o caráter gregário e o dissolve. (MARX,


1986, p. 459)

O caráter teleológico do processo de reprodução


da vida material permite a ruptura com a simples reprodução
das necessidades biológicas. Leva a alterações da própria
reprodução do conhecimento de técnicas de trabalho, que
incidem na estruturação das sociedades e, conseqüentemente,
no processo de construção da hominidade. Como ressalta
Lukács, essas relações engendradas pela corporidade
operativa, já se apresentam como relações entre complexos
constitutivos da sociabilidade.
Essas relações que criam e recriam as formas de
reprodução da sociabilidade e dão a dimensão ontológica
de sua complexização, propiciam o entendimento da
especificidade da natureza do homem distinta da natureza
em geral. Como explica Mészáros:

A natureza do homem (como um “ser genérico”)


significa precisamente uma distinção da natureza
em geral. A relação entre o homem e a natureza
é “automediadora” num duplo sentido. Primeiro
porque é a natureza que propicia a mediação
entre si mesma e o homem; segundo, porque a
própria atividade mediadora é apenas um atributo
do homem, localizado numa parte específica
da natureza. Assim, na atividade produtiva, sob
o primeiro desses dois aspectos ontológicos, a
natureza faz a mediação entre si mesma e a natureza; e
segundo, sob o aspecto ontológico – em virtude
do fato de ser a atividade produtiva inerentemente
social – o homem faz a mediação entre si mesmo e
os demais homens. (MÉSZÁROS, 1981, p. 77-78)
212
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A mediação que o homem realiza consigo mesmo


emerge na forma fundamental da sociabilidade, isto é, a partir
da estrutura organizativa da produção. Esse é o pressuposto
para analisar ontologicamente o desenvolvimento das formas
de sociabilidade. Já em 1845, Marx e Engels, ressaltaram esse
aspecto fundamental:

As diferentes fases de desenvolvimento da


divisão do trabalho são outras formas distintas da
propriedade ou, dizendo de outra maneira, cada
etapa da divisão do trabalho determina também as
relações dos indivíduos entre si, no que se refere
ao material, instrumento e produto do trabalho.
(MARX; ENGELS, 1970, p. 20-21)

Nesse sentido é que a sociabilidade e as formas


de individualidade são históricas.
Dessa maneira, nas análises de Marx e Engels
tem-se, como pressuposto, a visão de que a história humana
vincula-se inseparavelmente à noção do homem como um
ser que responde positivamente aos questionamentos postos
pela própria realidade. Essa positividade, que em muitos
momentos é entendida como um “desvio evolucionista” é, de
fato dada não por uma teleologia transcendental de progresso
(presente nos “philosophes”), mas pela dinâmica da práxis,
consubstanciando-se na crescente emancipação humana em
relação aos limites impostos pela natureza. Marx (e Engels)
busca(m), ao traçar a trajetória do desenvolvimento das
sociedades, entender como se dá a “auto-construção de si”
do homem. Como acentua Hobsbawn:

As “formen” tratam de formular o conteúdo da


história em seu aspecto mais geral. Este conteúdo é
213
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

o progresso [...] Porque o progresso para Marx é algo


objetivamente definível e que, ao mesmo tempo,
aponta para o desejável. A força da crença marxista
no triunfo do livre desenvolvimento de todos os
homens não depende do vigor da esperança de
Marx, em relação a isso, mas na suposta justeza
da análise segundo o qual o desenvolvimento
histórico conduz a humanidade à essa meta.
(HOBSBAWN, 1971, p. 7)

O processo dialético-evolutivo da sociabilidade


(da autoconstrução de si) do homem é também entendido
pela sua contradição. Ao mesmo tempo em que marcha (com
respostas positivas) rumo à sua emancipação das amarras
da natureza reafirmando-se como ser individual, o homem
gradativamente constrói o “estranhamento” de seu próprio
processo de trabalho. De modo que, assim vista, a história
não é pressuposta como algo otimista, mas sim como uma
positividade engendrada pela relação homem-natureza,
mediada pelo trabalho humano, enquanto práxis.

2. Alienação e individualidade

Nas “Formen” e também na Ideologia Alemã,


na Sagrada Família e nos Manuscritos encontramos o
delineamento do que Marx e Engels entendem como
a essência humana, objetivando criticar as concepções
burguesas sobre a problemática da hominização. Os pontos
principais da conceituação marxiana (e engelsiana) são os
seguintes:

a) o homem diferencia-se dos animais, a partir do momento


em que começa a produzir a provisão de sua vida material;
214
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

b) a história das sociedades humanas é a história da auto-


reprodução pelo seu trabalho; e
c) o trabalho é fundamentalmente uma atividade social que
se articula com laços de cooperação, entendida como
laços materiais dos homens entre si, condicionados pelas
formas de organização da produção.

As formas de reprodução de si, dadas pelo tipo


particular de interação da natureza humana com a natureza
em geral (trabalho, produção e apropriação coletiva dos meios
oferecidos pela natureza, enquanto seu corpo inorgânico)
são responsáveis pela construção da hominidade, enquanto
construção da sociabilidade (antropogênese – Engels) quer
dizer, a natureza do homem é dada pela potencialização que o
trabalho realiza nas relações sociais.
A atividade humana é, em todas as esferas,
eminentemente social. Assim sendo, a realização do homem
se dá somente na realização do outro homem, na coletividade,
sendo sua consciência fruto desse processo interativo do
homem com o homem. Dessa forma, o homem desenvolve
sua natureza particular em seu escopo natural a sociedade
que, por sua vez, é fruto da ação recíproca dos homens.
Porém, é nos “Manuscritos” e nas “Formen” que
encontramos de forma mais elaborada, a tese da alienação, já
colocada como o fundamento do capitalismo e, ao mesmo
tempo, como o momento em que se engendram as condições
para o retorno do homem à sua essência, feito, porém, a
partir de qualidades novas, ontologicamente postas, enquanto
ruptura e continuidade do processo de hominização. O processo
dialético-evolutivo em Marx, que tem por pressuposto a
emancipação do homem frente à natureza, sendo que esse
processo apresenta-se a partir da construção da sociabilidade,
alcança seu ápice na produção de mercadorias.
215
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Assim, a construção da sociabilidade, engendra


uma gradativa separação do trabalho livre das condições
objetivas de sua realização:

Portanto, antes de tudo, é a separação do


trabalhador da terra, enquanto seu laboratório
natural [...] Sua clarificação definitiva é obtida sob
o capitalismo, quando o trabalhador é reduzido
a simples força de trabalho e, inversamente, a
propriedade se reduz ao controle sobre os meios
de produção totalmente divorciada do trabalho. Ao
mesmo tempo, no processo de produção, realiza-se
uma separação total entre o uso (que não possui
pertinência direta) e o intercâmbio e a acumulação
(que constituem o objeto direto da produção).
(HOBSBAWN, 1971, p. 9)

Essa caminhada do homem é o momento mesmo


da construção da sua individualização.
Se o processo de individualização encontra seu
ápice no modo capitalista de produção e com este temos a
plena alienação do homem de sua essência-de-si, podemos
dizer que esse mesmo processo ganha um significativo
impulso a partir do surgimento da propriedade privada,
que pressupõe já a separação do produtor e o produto
de seu trabalho. Obviamente, nas sociedades baseadas no
trabalho escravo, por exemplo, não encontramos a alienação
propriamente dita, a não ser em formas embrionárias, que
podemos chamar de “estranhamento”.
Mas, como diz Marx, deve-se deixar claro que
o fenômeno da alienação (fetichismo-Lukács) é específico
das relações de produção capitalistas, onde a dissociação do
produtor de sua obra é mediada, também e fundamentalmente,
216
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

pelo “estranhamento” dos meios de produção utilizados no


processo de trabalho. Essa fragmentação da práxis permite
que a mercadoria apareça com sua forma fantasmagórica.
Colocando de outra maneira: na mercadoria em si, o trabalho
humano assume a forma concreta objetivada na equivalência
dos produtos do trabalho.

O grau em que se gasta a força humana de trabalho,


medida pelo tempo de sua duração, reveste a forma
de magnitude de valor dos produtos de trabalho
e, finalmente, as relações entre uns e outros
produtores – relações em que se traduz a função
social de seus trabalhos – assumem a forma de
uma relação social entre os próprios produtos de
seu trabalho. (MARX, 1973, p. 37)

O que confere o caráter fantasmagórico à


mercadoria é que se atribui às mercadorias poderes
transcendentais, como que independentes do processo de
trabalho que as criou, quer dizer, o produto do trabalho
aparece desprovido de sua ontologia, de seu processo de
criação. A mercadoria surge, então, com uma “austeridade”,
convertendo-se numa coisa alheia ao trabalhador que o criou,
com poderes próprios; como “coisa em si”, que não só está
distante do trabalhador, como lhe é hostil.
Este problema é, de fato, a tônica da modernidade.
Como acentua Lukács, o problema da reificação coloca-se
plenamente em nossos dias, com maior intensidade do que
na época de Marx e Engels. Na sociedade capitalista moderna
a “coiseidade” das relações sociais, tende a tornar cada vez
mais opaco o que é hominizador, na medida em que o estágio
atual do capitalismo alcançou a situação de Rei Minos, com
seu poder qualitativamente consubstanciado em transformar,
217
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ao mais leve toque, tudo em mercadorias. Lucien Goldmann


enfatiza esse novo caráter da fetichização, vista com a ênfase
lukácsiana da reificação:

Com o passar do tempo, porém, à medida em


que a reificação foi fazendo progresso, a ruptura
entre a realidade social e a busca acentuou-se a tal
ponto – pelo menos no mundo capitalista – que
a expressão dessa busca teve de ceder lugar à
simples constatação e descrição de uma realidade
social reificada inumana e privada de significação.
(GOLDMAN, 1979, p. 137)

Logo nos vem à memória a forte metáfora


desenvolvida no filme “Encurralado” do poder descomunal
da mercadoria onde vemos um caminhão enlouquecido
perseguindo uma pessoa para matá-la.
Talvez a definição metafórica mais abrangente,
que põe a dimensão da reificação das relações sociais no
capitalismo manipulatório moderno é a de Ionesco em “O
Rinoceronte”. Não é uma metáfora diretamente dirigida
apenas ao fascismo, mas à manipulação embrutecedora da
reificação com um todo. Mas fico com a bela imagem da
música de John Lennon “Happiness is a warm gun”: “O
homem na multidão, com os espelhos coloridos, sobre suas
botas com pregos. Seus olhos dormindo enquanto suas mãos
estão ocupadas, trabalhando em excesso”.

Referências

ENGELS, F. A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1979.
218
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

GIANNOTTI, J. A. Trabalho e reflexão. São Paulo: Brasiliense,


1983.

GOLDMANN, L. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1979.

HOBSBAWM, E. J. Introducción. In: MARX, K. Formaciones


económicas precapitalistas. Argentina: Pasado y Presente, 1971.

LUKÁCS, G. Ontologia dell’essere sociale. Roma: Riuniti, 1976.


vol. II.

MARX, K. El capital. México: FCE, 1973. v. I.

______. Grundrisse. México: Siglo XXI, 1986.

______. Manuscritos económico-filosóficos. In: Escritos


Vários. México: Grijalbo, 1986.

MARX, K; ENGELS, F. La ideologia alemana. Montevidéu:


Grijalbo/Pueblos Unidos, 1970.

MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar,


1981.

219
SEGU
NDA P
ARTE
:
EDU
E TRA CAÇÃO
BALH
O
Educação no capitalismo
dependente ou exclusão
educacional?

Roberto Leher

Os péssimos indicadores educacionais divulgados


pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP) e pelos sistemas centralizados de
avaliação — Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica (SAEB), Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e
Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) — não
podem ser considerados sem a devida cautela, pois contêm
pressupostos que necessitariam ser muito discutidos, como
o fundamento dito científico da mensuração das habilidades e
competências e a descontextualização das condições nas quais
as práticas educativas concretas ocorrem. Entretanto, análises
mais exaustivas sobre o desempenho escolar das crianças e
jovens realizadas por estudos acadêmicos (PINTO, 2005)
e de organizações não governamentais (Ação Educativa)
e sindicais Confederação Nacional dos trabalhadores em
Educação (CNTE) confirmam estar em curso no país um
“genocídio intelectual” das crianças e jovens das classes
populares.
O problema não está restrito ao acesso formal à
escola, universalizado somente nas peças publicitárias e, por
conseguinte, ainda um imenso desafio. Milhares de escolas
recebem milhões de estudantes diariamente, mas não logram
garantir sequer quatro horas de aula/dia, não dispõem de
junqueira&marin editores 223
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

bibliotecas, de laboratórios de ciências, de salas de informática


de mobiliários apropriados para crianças e jovens, de quadras
esportivas e, pior, de sanitários adequados, de esgoto, etc.
(BRASIL/Câmara dos Deputados/Comissão de Educação
e Cultura - COED, 2004; PINTO, 2005). Esses problemas
são acentuados conforme o mapa da miséria, tornando
dramáticos os indicadores educacionais nesses territórios
(POCHMANN, 2003).
Para ocultar o desempenho escolar sofrível,
muitos governos municipais e estaduais optam por políticas
de ciclos minimalistas com aprovação automática que, por
não alterarem as condições materiais e pedagógicas do
trabalho escolar, realimentam a negação do direito humano
à educação básica de qualidade (FRIGOTTO; LEHER,
2007). Outras políticas, por sua vez, revigoram o perverso
círculo vicioso das reprovações, igualmente negando o direito
constitucionalmente previsto como universal.
O resultado é conhecido. Após um silencioso
processo de branqueamento (PINTO, 2004) e de seleção
social, atingindo mais duramente os habitantes dos territórios
de maior concentração da expropriação e da exploração,
apenas uma parcela reduzida chega ao topo da educação
básica. Não é possível deixar de mencionar que somente 46%
dos jovens de 15 a 17 anos alcançam o ensino médio; entre
estes, contudo, poucos terão acesso a todas as disciplinas
com professores devidamente habilitados. Trata-se de uma
crônica anunciada de discriminação de classe.
Mas em uma sociedade de classes com o nível
de desigualdade que caracteriza a formação social brasileira,
os efeitos da classe são sentidos entre os jovens que não
poderão seguir os seus estudos. Mesmo entre os que lograram
alcançar o ensino médio, muitos sentirão os efeitos do
perverso dualismo oculto que atinge os setores subalternos:
224
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

até entre os estudantes do estado mais rico do país, São Paulo,


43% têm conhecimentos compatíveis com o último ano
do ensino fundamental1 segundo o SAEB/2005 (BRASIL,
2005). Examinando mais amplamente o problema, é possível
constatar que a População Economicamente Ativa (PEA)
brasileira possui pouco mais de seis anos de escolaridade,
comprovando, na prática, o referido genocídio intelectual
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE/
Síntese dos Indicadores Sociais de 2002)2.
Essa realidade é comum aos países periféricos e
mesmo a países que outrora possuíam um sistema público
de ensino estruturado e potencialmente universal, como
a Argentina, cujo sistema foi desconstruído pelo ajuste
neoliberal. Nos termos de Ahmad (2002), essa questão é
obviamente um problema de classe e, por isso, está ligada
à base econômica da sociedade. É um truísmo constatar
que essa questão não atinge igualmente ricos e pobres.
Ao contrário, o recorte classista das vítimas do genocídio
intelectual é inequívoco.
A melhor tradição do pensamento crítico latino-
americano compreendeu que existem bloqueios estruturais
para a real universalização da educação básica. No final dos
anos 1950, Florestan Fernandes propugnou que a intervenção
pedagógica deliberada e referenciada na ciência era uma
condição necessária para enfrentar esses problemas, mas
preconizou que a intervenção pedagógica em si mesma não
poderia resolver os termos do dilema educacional brasileiro
(FERNANDES, 1976).
Essa forma de interpretar os desafios educacionais
politizou a educação. Assim, todas as lutas em prol de um
sistema público, gratuito, universal e de elevada qualidade
adquirem contornos políticos mais ou menos radicais.
Ainda que marcada por tensões políticas intensas, desde a
225
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Campanha em Defesa da Escola Pública protagonizada por


Florestan Fernandes, Anísio Teixeira e outros por ocasião da
primeira LDB, a educação entrou no rol dos embates sobre
os projetos de sociedade. O maior salto qualitativo em termos
de politização ocorreu por ocasião do Congresso Nacional
de Educação (1997)3, quando as lutas passaram a ser dirigidas
pelos sindicatos em articulação com as entidades acadêmicas
representativas dos especialistas em educação. Ainda assim,
a politização não havia logrado o que Florestan Fernandes
denominou de um novo ponto de partida: a localização da
luta pela educação pública no contexto das lutas gerais da
classe trabalhadora. Esse objetivo somente foi esboçado na
recente campanha em defesa da educação pública liderada
pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra —
MST, Via Campesina, Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior — ANDES-SN e outras
forças4.
Contudo, não é essa tradição crítica que obteve
a hegemonia do pensamento educacional. Nos anos 1990,
foi sendo consolidada a proposição de que tudo isso é
decorrente de problemas de gestão pedagógica e da falta
de focalização adequada das medidas educacionais. Os
segmentos que estão fora da escola e os repetentes renitentes
foram, então, identificados como o público-alvo de políticas
focais, conceituados mesmo pelo discurso progressista como
“excluídos” que devem ser incluídos na escola e, porque não
dizer, na sociedade.
A focalização foi defendida como a forma de
gestão da verba pública mais eficiente, pois atinge diretamente
os “pobres”, os “negros” e os moradores dos territórios de
maior “exclusão social” e, entre estes, os mais vulneráveis, com
renda inferior ao nível da pobreza. Ocultando o problema das
condições de vida materiais da classe-que-vive-do-próprio-
226
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

trabalho e é explorada, a educação dessas crianças e jovens


passou a ser concebida como algo que pode ser resolvido
por meio do alívio à pobreza (na forma de magérrimas
bolsas)5 e de melhor ação pedagógica (gestão pedagógica
por resultados).
Desde então, o objetivo da inclusão vem exigindo,
crescentemente, políticas ainda mais focalizadas, objetivando
o atendimento de meninas, negros, menores infratores e
combinações específicas entre esses atributos, conformando
toda sorte de subgrupos. No plano das políticas governamentais,
com o Plano de Desenvolvimento da Educação, a ideia é mirar
em cada escola e, preferencialmente, cada sala de aula por meio
da Prova Brasil, para que, conforme a avaliação, a escola possa
receber essa ou aquela recompensa material. Objetivando
eficiência nessa empresa, perfis educacionais — e estratégias
pedagógicas — distintos foram definidos para determinados
grupos, sempre mirando a “inclusão” dos distintos subgrupos
de “excluídos” da escola e, novamente, da sociedade.
Esse discurso foi muito difundido pelo Banco
Mundial , pela Organização das Nações Unidas para a
6

Educação, a Ciência e a Cultura — UNESCO7, pela Comissão


Econômica para a América Latina e o Caribe — CEPAL,
pelas Organizações Não-Governamentais — ONGs e,
naturalmente, pelos documentos governamentais. O problema
de fundo não é pensado em termos da natureza do sistema
capitalista, do padrão de acumulação que hiper-explora o
trabalho juvenil8 e das reais condições de estudo da maioria
do povo (BRASIL/Câmara dos Deputados/COED, 2004).
Neste prisma, o busílis é pedagógico e, mais precisamente, a
gestão escolar e as políticas públicas da área. Boas políticas
são aquelas que canalizam os recursos materiais e humanos
para incluir os subgrupos perdedores nas margens da nova
economia dita globalizada. Este discurso está embebido
227
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

dos preceitos da teoria do capital humano e é abertamente


apologético: pela inclusão educacional é possível agregar ao
indivíduo maior capital social e humano, o que possibilitaria,
conforme essa crença, inclusão no mercado ou, pelo menos,
melhores condições de manejo da governabilidade por meio
de políticas de alívio à pobreza.
Subjacente a essa elaboração tornada hegemônica
no campo educacional, implícitos e pressupostos fornecem
novas formas de ler a problemática educacional. Entre os
mais importantes, a recuperação dos fundamentos da chamada
teoria do capital humano e as noções-chave da inclusão e
da exclusão. A partir dessa forma de interpretar o lugar dos
explorados e expropriados na sociedade, as contradições
fundamentais do capitalismo vão sendo esvaecidas a ponto
de se tornarem inertes. A saída para as mesmas não deve ser
buscada na base material da sociedade, mas sim, conforme o
discurso dominante, na sociedade civil ressignificada como
lugar de consenso e colaboração entre o mercado, o Estado e
as ações comunitárias, por meio de micro-iniciativas capazes
de promover a inclusão dos hoje excluídos.
Uma tarefa teórica e política a ser enfrentada é a
crítica das expressões inclusão e exclusão social, em particular
nas políticas sociais e educacionais. Embora o escopo do
presente estudo não permita enfrentar plenamente esta tarefa,
em si mesma merecedora de um estudo sistemático, algumas
pontuações podem ser indicadas para tornar o debate sobre
o tema melhor situado no plano político.

Exclusão e inclusão: categorias fundamentais


para a ordem social

Um importante estudo de Virgínia Fontes (1997)


ajuda a tornar pensáveis as contradições de um sistema que
228
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

retirou dos trabalhadores a possibilidade de acesso e de


controle dos meios de produção, por meio da expropriação,
impondo uma inclusão forçada no mercado, seja na condição de
vendedores da mercadoria força de trabalho, seja na condição
de vendedores potenciais desta mercadoria enquanto exército
industrial de reserva. No capitalismo a inclusão é, portanto,
uma
Inclusão não idílica, nem resultado do desejo individual
de cada trabalhador, mas que constituiria o cerne
central da produção capitalista. Expropriados
da capacidade autônoma de sobrevivência e de
parte do valor produzido por seu trabalho, mas
incluídos em um processo mercantil e industrial
que produzirá, ainda segundo Marx, as formas
de pensamento para assegurar sua continuidade9.
Uma verdadeira sociabilidade adequada ao sistema
capitalista por-se-ia em marcha, controlando e
disciplinando tanto a força de trabalho efetivamente
empregada quanto aqueles que constituíssem suas
bordas, enquanto exército industrial de reserva.
(FONTES, 1997, p. 36)

Ressaltando a diferença entre o assalariamento e


a mercantilização da vida social, Fontes (1997) assevera que:

Independentemente da forma pela qual as


populações passariam a conectar-se ao mercado
de trabalho — assalariamento, artesanato, serviços
diversos, empregos domésticos, informalidade
ou ocupações extralegais (tráficos, contrabandos)
— passavam a fazer parte integralmente da
generalização das relações mercantis de cunho
capitalista. (FONTES, 1997, p. 38)
229
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Etienne Balibar afirma que, uma vez generalizada


a mercantilização das relações sociais,

[...] ninguém pode ser excluído do mercado, simplesmente


porque ninguém pode dele sair, posto que o
mercado é uma forma ou uma ‘formação social’
que não comporta exterioridade. Dito de outra forma,
quando alguém é expulso do mercado, na realidade,
funcionalmente ou não, ele é mantido em suas
margens, e suas margens estão sempre ainda em
seu interior. Não seria o mercado essa estrutura ou
instituição social paradoxal, talvez sem precedentes
na história, que inclui sempre suas próprias
‘margens’ (e portanto seus próprios ‘marginais’) e
que, finalmente, somente conhece exclusão interna?
(BALIBAR, 1992 apud FONTES, 1997, p. 38)10

Nesse sentido, a exclusão está relacionada,


historicamente, ao processo constitutivo do capitalismo que
é a expropriação, termo muito mais preciso do que exclusão
para designar o lugar do trabalhador no capitalismo. Como
o capitalismo mercantilizou todas as formas de trabalho e
seus produtos, seria impróprio falar em inclusão social posto
que nenhum trabalhador está fora da esfera do mercado.
Em termos históricos o que aconteceu foi uma inclusão
forçada do trabalhador por meio da expropriação. Esta
segue acontecendo, mas atualmente todos os humanos estão
inseridos na mercantilização da vida social, mesmo que fora
do mercado formal.
Entretanto, se historicamente é inapropriado
qualificar a sorte dos trabalhadores como exclusão e inclusão,
é forçoso reconhecer que essas expressões rapidamente se
difundiram no léxico dos organismos internacionais, dos
230
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

governos, dos estudos acadêmicos e no pensamento político


de direita e de esquerda. No caso da educação, a situação
não é diferente. Ao contrário, as selvagens desigualdades
educacionais existentes entre países centrais e países
periféricos e, sobretudo, no interior de cada país, passaram a
ser discutidas a partir do par antinômico exclusão e inclusão
educacional.
A caracterização da problemática educacional no
seio da temática da exclusão é relativamente recente, datando
do final dos anos 1980 e, principalmente, dos anos 199011.
Até então, a menção ao que seria o polo em antípoda da
exclusão educacional, a inclusão, estava muito relacionada
à educação especial, à inclusão educacional de pessoas que
possuem necessidades especiais12, mas o seu sentido corrente
foi ressignificado com o neoliberalismo e o social-liberalismo.
Atualmente, é outro o sentido hegemônico
em circulação na produção acadêmica e nos documentos
dos organismos internacionais e dos governos. O novo
significado atribuído à palavra pode ser apreendido pelo
acompanhamento de seu uso tanto nos textos do Banco
Mundial e da UNESCO, como nos dos autores que vinham
de uma trajetória situada no polissêmico campo progressista,
em especial aqueles próximos ao pensamento pós-moderno
“de esquerda”. Enquanto o acento dos primeiros estava
nas medidas propositivas para a inclusão social (as “boas”
políticas de equidade social), os últimos valiam-se dessa
expressão para ecoar um tom de denúncia social. Entretanto,
essa denúncia estava direcionada tão-somente à forma do
neoliberalismo, chamando a atenção para o fato de que
as políticas neoliberais de primeira geração provocam
“exclusão social” e que, por conseguinte, a tarefa dos setores
progressistas era a de promover ações capazes de assegurar a
“inclusão social”. A escola era, então, pensada como espaço
231
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

desvinculado do capitalismo ou de baixa conflitividade,


em que seu rumo poderia ser definido pelo diálogo, pelas
técnicas de gestão e pela colaboração entre a sociedade
civil e o Estado. O conflito, quando estudado, seria muito
mais para identificar traços do passado a serem apagados
como a persistência de um sindicalismo politizado, algo
ultrapassado pelo novo conceito de sindicato-cidadão. Essa
perspectiva “progressista” foi acentuada com a chegada ao
governo de coalizões social-liberais dirigidas pelas antigas
forças opositoras do neoliberalismo duro, como De La Rua
e Kirchner na Argentina, Lagos e Bachelet no Chile, Lula da
Silva no Brasil, Tabaré Vazquez no Uruguai etc.
Considerando a apropriação dessa antinomia
(inclusão/exclusão) pela “terceira via” difundida por Giddens,
e rapidamente difundida por todos os governos próximos
ao campo da “governança progressista”, é interessante
examinar como esse debate vem ocorrendo nos círculos
ingleses. Um estudo que procura sistematizar o debate sobre
o tema é realizado por Jo Sparkes (1999). Segundo este autor,
exclusão social é, para alguns, somente um modo novo de se
referir a conceitos existentes como pobreza ou desemprego
(LEVITAS, 1997; PAUGAM, 1993 apud SPARKES, 1999).
Contudo, vários comentaristas próximos ao social-liberalismo
adotaram uma definição mais ampla centrada na noção de
integração social, em lugar de uma preocupação exclusiva de
distribuição de renda. Aqui importa menos o mundo do
trabalho e as formas de exploração a que os trabalhadores
estão submetidos e mais o modo como podem ser integrados
na ordem existente, mesmo sem alterações nas condições de
exploração em que vivem.
Como é fácil perceber, as políticas de inclusão
trabalham com o pressuposto de que a exploração no
mundo do trabalho é algo atualmente lateral frente a outras
232
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

variáveis-chaves, como a educação, a formação profissional, o


transporte e a alimentação. Nesta perspectiva, exclusão social
é um processo a longo termo de não-participação econômica,
cívica e nas normas sociais que integram e governam a
sociedade na qual um indivíduo reside (BURCHARDT et al.,
1998 apud SPARKES, 1999). Autores como Putnam (2002)
e Fukuyama (1996), examinando porque algumas políticas
sociais são mais efetivas do que outras, colocam o capital
social como estratégia mais relevante para a “inclusão” social.
Na síntese de Sparkes (1999), exclusão é uma
noção diferenciada conceitualmente de pobreza e privação.
A perspectiva da exclusão social reconhece o dinamismo
das trajetórias individuais com o passar do tempo. O
termo desloca a unidade de análise do individual para uma
desvantagem socialmente estruturada, notadamente focada
na família ou na comunidade local. Manter esta ótica ajuda
a assegurar que as teorias de exclusão sociais e políticas não
recorram a teorias deficitárias focalizadas na patologia de
indivíduos ou de grupos de indivíduos.
Entretanto, quando examinamos a forma como
esse conceito é operacionalizado nos anos 1990, é possível
constatar como o capital social é salientado e direcionado
para o indivíduo, ainda que considerando a família. Isso fica
claro na síntese de Burchardt et al., (1998 apud SPARKES,
1999). Estes autores enfatizam a importância de participação
do indivíduo em cinco dimensões de atividade — produção,
consumo, riqueza, atividade política e social. Como realçam
os autores, a habilidade de um indivíduo em participar
destas várias esferas de atividade pode ser afetada por uma
ampla gama de fatores que interagem uma com a outra:
as próprias características de um indivíduo, como saúde e
educação; os eventos na vida do indivíduo, como a perda
do emprego; as características da área na qual os indivíduos
233
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

vivem (transporte, moradia etc.), e as instituições sociais,


políticas, civis e econômicas da sociedade, tais como leis de
discriminação racial etc.
Não há aqui nenhuma problematização sobre o
padrão de acumulação, as formas hodiernas de organização
da produção e de exploração do trabalho. Tampouco é
possível encontrar nessa formulação o questionamento das
macropolíticas do Estado e o significado do abandono das
perspectivas universalistas. Ao contrário, o grosso da ação
inclusiva é local, pontual, modesta.
O sentido hegemônico do uso de exclusão e
inclusão tem como pressuposto que, subjacente à linha
divisória que opõe os incluídos e os excluídos, está um
contrato social imaginário. Originalmente, o Estado de
bem-estar social cumpria esse objetivo propiciando direitos
proclamados como universais. Mas justo no contexto em que
a exclusão social foi ocupando o lugar que outrora estava
reservado para a exploração, o contrato social era destroçado
pelo neoliberalismo. Assim, a reiteração e a exacerbação do
uso dessas categorias no presente ocorrem em um contexto
em que, nos países periféricos e semiperiféricos, o Estado
social foi fortemente desconstituído em favor de políticas
bancomundialistas de alívio à pobreza, que nada têm de
contrato social. Como pensar, então, a linha divisória entre
incluídos e excluídos? Incluídos ou excluídos em quê? Qual
a fronteira demarcadora entre essas duas situações?
No período dos “trinta gloriosos anos do
capitalismo”, como salientado, são “excluídos” todos os
trabalhadores que perderam ou não chegaram a estabelecer o
contrato contido no Estado de bem-estar social e, por isso, caberia ao
Estado assegurar, por meio de medidas resultantes de leis sociais,
condições básicas de vida que assegurassem a dignidade do
trabalhador até sua reintegração ao mercado de trabalho formal.
234
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Os social-democratas sustentaram que esse


contrato social poderia ser um traço distintivo do capitalismo
regulado. Entretanto, o aprofundamento da crise estrutural do
capitalismo nos anos 1970 (BRENNER, 1999; DUMÉNIL;
LÉVY, 1996) exibiu a fragilidade dessa crença. No caso
dos países periféricos, a debilidade do Estado social já era
evidente, mas, ainda assim, muitas lutas foram travadas em
defesa desses direitos sociais. Em um contexto de generalizada
precarização do trabalho em que, em virtude do esvaecimento
do Estado social, até mesmo o limitado contrato de trabalho é
incapaz de garantir um mínimo de dignidade à venda da força
de trabalho, institucionalizando a precarização da grande
massa dos trabalhadores, é impossível colocar em antípoda os
trabalhadores submetidos à flexibilização espúria em termos
de incluídos e excluídos.
Na ótica dominante, a problemática da exclusão é
considerada um novo capítulo da questão social desvinculada
inteiramente da “velha” polarização capital versus trabalho.
É como se no lugar da dicotomia entre exploradores e
explorados, burgueses e trabalhadores, tivesse surgido uma
nova oposição fundamental: incluídos versus excluídos. No
contexto do capitalismo atual, os proprietários dos meios de
produção, os altos assalariados, os trabalhadores que ocupam
cargos nos sindicatos associados ao capital portador de juros
dos fundos de pensão e a classe-que-vive-do-próprio-trabalho
e é explorada (com ou sem contratos formais), estariam todos
irmanados, igualmente, no rol dos socialmente incluídos. Os
excluídos, por alguma fortuna, seriam aqueles atingidos pela
pauperização e o desalento, efeito disfuncional da economia
a ser ainda mais liberalizada e do sistema educacional que
supostamente não estaria garantindo que eles adquirissem
as competências demandadas pelo mercado. A alternativa,
conforme essa perspectiva seria a adoção de políticas
235
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

focalizadas que poderiam deslocá-los para o rol dos incluídos


sociais, comprovando que o atual padrão de acumulação pode
ser eternizado sem mudanças sistêmicas.
Essa categorização da desigualdade social e da
exploração torna a realidade opaca e não ajuda a pensar
a natureza do desemprego e da pauperização (população
trabalhadora relativamente supérflua). Alternativamente, a
linhagem inaugurada por Marx e Engels preconiza que esses
trabalhadores não são uma anomia ou uma disfunção, mas
algo próprio das contradições engendradas pelo padrão de
acumulação em curso e, por conseguinte, não formam uma
constelação de micro grupos. Os milhões de trabalhadores
que hoje são assistidos pelo principal programa de bolsa no
país, por exemplo, não podem ser considerados subgrupos
residuais a serem apoiados por medidas focais.
Com efeito, os beneficiados pelo programa Bolsa-
Família chegam a 45,8 milhões de pessoas (das quais 18,6
milhões são crianças) o que, segundo estimativa do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), faz com que
cerca de um em cada quatro brasileiros receba auxílio do
Programa Bolsa-Família (2007). E este número não é maior
porque o corte da renda para que uma família possa ser
contemplada pelo programa é sumamente rebaixado: R$
120,00 por mês, per capita13. São 11,1 milhões de famílias
atendidas desde junho de 2006. Quanto à distribuição
regional, o Nordeste concentra a maior parte das pessoas
atendidas: 22,6 milhões. Mesmo tendo grande penetração
no meio rural, o programa concentra os benefícios nas
áreas urbanas (69%). As mulheres, um total de 24,3 milhões,
compõem a maioria dos usuários do programa e, como
elas chefiam a maioria das famílias, em 90% dos casos são
constituídas recebedoras legais do benefício. Isso significa que
grande parte dos estudantes brasileiros provém de famílias
236
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

com uma renda que varia entre R$ 18,00 e R$ 112,00, valor


mensal pago pelo programa em 2007.
Salta aos olhos, por conseguinte, que as ações
inclusivas focais, independente da apreciação específica que
se possa fazer sobre elas, não estão direcionadas a pequenos
contingentes populacionais. Significa dizer que essas políticas
estão situadas em um escopo muito mais amplo relacionado
às condições de manejo social para evitar que os pobres se
tornem uma ameaça, como reiteradamente se manifestou
o ex-presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn.
Concretamente, o problema crucial destas medidas é a
governabilidade.
Uma outra indagação fundamental é sobre o
caráter temporal dessas ações focais. Uma das justificativas
para o uso da focalização por meio de medidas que não
se configuram como direitos sociais regulados por leis
constitucionais e de maior solidez jurídica é que as bolsas
precisam ser flexíveis, facilmente retiradas quando uma
família sai do patamar de grande pobreza, o que, pelo modelo,
deveria ser freqüente. A magnitude do público alcançado
por essas políticas atesta que a determinação que leva essas
famílias ao desalento é muito mais estrutural do que os
defensores dessas políticas gostariam de admitir.
Assim, é preciso examinar se o padrão de
acumulação vigente propicia a entrada desse grande
contingente populacional no trabalho regulado, ou se,
alternativamente, o está deslocando para o desalento. Este
estudo sustenta que a tendência geral é a última. A respeito do
padrão de acumulação hegemônico nos dias de hoje, David
Harvey (2004) cunhou a categoria acumulação por despossessão.
Esta se caracteriza por um grau de exploração somente
comparável à acumulação primitiva dos primórdios do modo
de produção capitalista. Os custos da força de trabalho são
237
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

drasticamente reduzidos (quando comparados ao excedente


apropriado pelo capital) por meio da hiperexploração do
conjunto da classe que vive do próprio trabalho, ainda que sob
diversas formas de controle do trabalho — assalariamento,
parceiros, ambulantes, escravidão, entre outras — tornando
fluida a fronteira entre os ditos incluídos e os excluídos que
pertencem à classe trabalhadora. Os demais ativos, fábricas,
recursos naturais pertencentes às nações, no rastro da crise
foram entregues às corporações a baixíssimos custos (caso
da Vale do Rio Doce). E as políticas voltadas à exportação
(o corolário do pagamento da dívida pública) induziram
uma maior especialização da economia operada pelas
frações burguesas locais e seus parceiros. O resultante dessas
mudanças é que as corporações colocaram em circulação
mercadorias que contêm largas margens de mais-valia,
grandes o suficiente para satisfazer as frações burguesas locais
e os seus parceiros internacionalizados. Isso explica por que
a hiperexploração do trabalho é estrutural.
Na América Latina de hoje, cadeias produtivas
estabelecidas nos anos 1970-1980 estão rompidas, convertendo
muitas fábricas em “maquilas”14, como no caso da Argentina,
do Brasil e do México. Assim, mesmo a existência de um setor
manufaturado de produtos considerados de ponta, como
automóveis e eletro-eletrônicos, pouco ou nada significa
em termos de uso intensivo de conhecimento na economia.
Não casualmente, a grande maioria dos empregos é de baixa
qualificação não ultrapassando três magros salários mínimos.
As empresas multinacionais estão partindo suas cadeias
produtivas para reduzir custos e, via de regra, a inteligência
fica na matriz, reduzindo o alcance dos aprendizados locais.
As novas filiais das corporações multinacionais diferem
significativamente das de outrora, pois se caracterizam muito
mais como montadoras de mercadorias.
238
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Almanza (2006) menciona um estudo da CEPAL


a respeito da correlação entre a evolução do Produto Interno
Bruto (PIB) por habitante e o número total de pobres no
México entre 1968 e 2004, e afirma que existe uma associação
positiva muito alta (0.76) entre ambas as séries: apesar da
renda média da população ter crescido no período, cresceu
o número absoluto de pessoas em condições de pobreza.
A mesma situação é verdadeira no Brasil. O crescimento
econômico proporcionado pelo mencionado padrão de
acumulação não é capaz de distribuir a renda de forma mais
favorável ao mundo do trabalho, muito pelo contrário.
Entre 1992 e 2004, o percentual de trabalhadores
subcontratados e informais cresceu de 38,3% para 51,2%15
e um em cada três brasileiros vive na miséria, isto é, ganha
menos que R$ 79 por mês. Isso representa 33% da população
ou 56 milhões de pessoas, o equivalente à população da França,
conforme a pesquisa “O Mapa da Fome II”, organizada pelo
Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas
(FGV)16. Se a grande maioria da classe que vive do próprio
trabalho está submetida à violenta precarização, seja atingindo
os trabalhadores mais experientes ou seus filhos, como aplicar
essas categorias na análise da educação? Para examinar essa
questão, o estudo faz algumas pontuações sobre o trabalho
na juventude, contingente mais afetado em seu direito à
escolarização de qualidade.

“Exclusão”, “inclusão” e educação

O uso das noções de exclusão e inclusão está


redefinindo a problemática da educação das classes populares
no capitalismo dependente. Como o pensamento pedagógico
assimilou muito das críticas que os pós-modernos fizeram ao
marxismo, prevaleceu, no pensamento de muitos estudiosos
239
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da educação, o sentido de denúncia e de crítica aos efeitos das


políticas neoliberais, mas dentro dos marcos possibilitados
pelo uso das referidas categorias. É importante assinalar um
aspecto quase óbvio: com as novas referências, a problemática
educacional ganha novos contornos, ainda que em uma tonalidade
aparentemente crítica que, não casualmente, seria paulatinamente
incorporada no léxico social-liberal como demonstraram
Bourdieu e Wacquant (2001) em seu texto sobre a nova vulgata.
Isso significa dizer que o par inclusão/exclusão contribuiu para
a redefinição da problemática educacional extirpando desta a
consideração das consequências do capitalismo dependente
para a educação, conforme a teorização de Florestan Fernandes.
A linha de argumentação do presente artigo sustenta
que essas expressões foram difundidas em um contexto de
apagamento e relexicalização das palavras-chave da história das
lutas sociais, como capitalismo, classe, contradição, expropriação
e exploração, acumulação, entre outras.
A tarefa republicana de universalização do ensino
fundamental não foi cumprida. A despeito da propaganda
governamental de que atualmente apenas 3% da população em
idade da escolarização obrigatória ainda não estão matriculados
no ensino fundamental, não é verdade que este contingente é
constituído por pequenos grupos de “excluídos” que devem ser
alvos de políticas educacionais que os atendam com precisão
cirúrgica. Quando são examinadas as condições materiais
concretas do fraturado sistema educacional brasileiro, ao
serem analisados a situação dos prédios escolares, a duração
da jornada escolar, a infra-estrutura das escolas, a formação
docente e os salários praticados na educação, bem como os
indicadores educacionais elaborados pelos próprios educadores,
considerando o território (as diversas regiões, campo e cidade,
áreas urbanizadas e as periferias das grandes cidades, áreas de
maior e menor renda efetiva), é possível afirmar que a realidade é
240
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

inteiramente diversa. José Marcelino Rezende Pinto sistematizou


alguns desses indicadores de modo muito interessante (PINTO,
2005), agregando um conjunto de variáveis por região. O
resultado desses estudos é meridianamente claro, comprovando
que, no século XXI, a universalização da educação básica não
foi lograda, assim como a ampliação, de modo importante, do
direito à educação superior pública.
A análise concreta do território, considerando o
corte classista da renda, permite afirmar que, grosso modo,
existe alta congruência entre as áreas em que habitam os setores
da classe trabalhadora mais expropriados e explorados e a
debilidade das escolas públicas, acarretando níveis educacionais
dramaticamente iníquos. O problema, por conseguinte, não
está limitado a pequenos grupos passíveis de ações focalizadas.
Além da debilidade do conjunto do sistema público de ensino, é
preciso lembrar que a precarização do trabalho atinge de modo
particularmente severo o conjunto dos jovens pobres. De fato,
entre os mais de 10% de desempregados oficiais, mais da metade
é de jovens.

Quadro 1 - Brasil - Evolução da taxa oficial de desemprego juvenil nacional

Fonte: FIBGE/PNAD ajustadas


* Estimativa (POCHMANN, 2000)
241
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O Departamento Intersindical de Estatística e


Estudos Socioeconômicos (DIEESE)17 fez um importante
estudo sobre os jovens no mercado de trabalho brasileiro
com dados de 2006, no qual se constata toda a extensão
da tragédia social que se abate sobre a juventude brasileira,
grande parte condenada a uma situação de vida virtualmente
sem perspectiva. O dado mais impressionante é que, dos 3,5
milhões de desempregados nas seis regiões metropolitanas
pesquisadas (São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte,
Salvador e Recife), nada menos que 46,4%, portanto quase
metade, são jovens de 16 a 24 anos.
Há aspectos da pesquisa ainda mais alarmantes. O
desemprego juvenil é maior justamente onde mais se precisa
de trabalho remunerado, isto é, nas faixas familiares de menor
renda. Assim, em Belo Horizonte, nas famílias situadas no
quarto inferior de renda, o desemprego dos jovens é de
66,1%. No quartil superior, o desemprego juvenil cai para
26,1%. Em São Paulo, essas relações são, respectivamente,
de 58,5% e 22,1%. Ou seja, a situação é mais grave entre os
mais pobres, e mais ainda nas regiões mais pobres.
E a relação entre as condições materiais de
vida e os direitos sociais (que compõem a linha imaginária
incluídos-excluídos) é altamente congruente. Em 2003,
conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT),
46,7% dos trabalhadores estavam na informalidade e destes
somente 29,2% possuíam seguridade social18. Diante desse
quadro devastador, é difícil pensar em inclusão e exclusão
educacional como categorias em antípoda, capazes de
designar grupos distintos de estudantes e jovens. Não há
como demarcar fronteiras nítidas entre os jovens que vivem
do próprio trabalho e são explorados, pois um imenso
contingente — dentro e fora da escola — está impedido de
avançar em sua escolarização real. E mesmo os que estão no
242
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

sistema educacional, além da precariedade do mesmo, que


horizonte podem vislumbrar com a ampliação (precária) de
sua escolaridade? A inserção (hiper) precarizada no mundo do
trabalho e a escolarização “classista” (pobre para os pobres)
são duas faces da mesma moeda.
O uso da categoria “excluído” e a adoção de
políticas específicas para o contingente de crianças e jovens
assim categorizado oculta uma velha questão no Brasil. O
que é público? O que é universal?
Nas lutas de classes a defesa do público (o
que é de todo o povo) está indissoluvelmente relacionado
ao universalismo. A sociedade comunista é o ápice do
universal. Por meio dessas lutas, diversos povos lograram
situar a educação na esfera dos direitos universais. No
Brasil, a Constituição Federal assim concebeu o direito
à educação fundamental. Entretanto, com as políticas de
ajuste neoliberal, muitos fundamentos do chamado Estado
Social foram redefinidos, almejando menor responsabilidade
direta do Estado no provimento desses direitos. O caso da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)
é conhecido. A despeito de a Constituição Federal ter
determinado que o dever de educar é primariamente do
Estado e subsidiariamente da família, o texto da lei geral da
educação brasileira, escrito em 1996, sete anos após o da
Carta Magna, simplesmente inverteu os termos, colocando o
dever de educar primariamente de responsabilidade da família
(esfera privada) e subsidiariamente do Estado.
Outros estudos (LEHER, 2000; LEHER; SADER,
2004) apontaram que, na chamada transição democrática, a
polarização dos embates nos polos antinômicos estatal
versus privado-mercantil foi fundamental para o ocultamento
da polarização resultante da luta de classes entre público
e privado-mercantil. Nesses termos, o público é retirado
243
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da agenda política dos movimentos dos trabalhadores


debilitando a consigna histórica do universalismo. Muitos
motivos concorreram para que os sindicatos e partidos
ligados à classe trabalhadora tivessem perdido essa batalha
sem opor maiores resistências, como a difusão, inclusive no
pensamento da esquerda, de uma noção de sociedade civil
desprovida de classes e locus da reprodução das relações
sociais capitalistas.
Outro fator é a localização histórica do
universalismo no terreno liberal-burguês que configura um
falso universalismo e que, obviamente, não poderia motivar
as lutas sociais. Assim, como os socialistas brasileiros pouco
teorizaram sobre o público e o universalismo (na crítica ao
falso universalismo liberal), o sentido hegemônico desses
termos foi o liberal. As consequências dessa derrota teórica
para as lutas da esquerda foram e seguem sendo severos, pois,
quando os neoliberais partiram em ofensiva contra o público
e os direitos sociais universais, muitos setores da esquerda não
viram motivos para sair em campo em defesa dos mesmos
em uma perspectiva antiliberal.
Sob o capitalismo e o liberalismo eurocêntrico,
o universalismo somente pode ser um falso universalismo
eurocêntrico. As ideias igualitárias da modernidade, como
direitos humanos e democracia, foram e seguem sendo usadas
para reafirmar uma pretensa superioridade dos países do eixo
ocidental (Europa–Estados Unidos), que justificaria suas
intervenções militares. Wallerstein (2007) analisou um debate
no século XVI sobre que direito tinham os conquistadores
espanhóis sobre os povos indígenas, entre Bartolomé de las
Casas e Juan Ginés de Sepúlveda. Para Wallerstein, desde
Sepúlveda, defensor de massacres em nome da cristianização,
as bases da defesa de intervenções militares são as mesmas.
E suas razões de fundo, a tomada das riquezas das terras do
244
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

novo mundo, também. A luta de Las Casas no interior da


Corte espanhola, ao mostrar que o mal infligido pela guerra
era muito maior que o pretenso bem de suas justificativas,
estava condenada, porque questionava a maneira como o
próprio poder imperial se legitimava e se estruturava.
O desafio da esquerda socialista é aprofundar a
crítica ao falso universalismo liberal (e sua correspondente
noção de público), o que requer a crítica ao “marxismo
evolucionista” e mecanicista, novamente em voga na
esquerda, objetivando retomar o sentido da luta socialista pelo
público-universal. E essa luta não pode se furtar de enfrentar
os termos axiais do discurso dominante como a localização
do que a esquerda socialista denominava de luta de classes
nos termos excluídos e incluídos. O apartheid educacional é
expressão da luta de classes em um contexto de profunda
assimetria entre as classes fundamentais. Com as derrotas
dos trabalhadores, que somente agora conhecem momentos
de possíveis inflexões, a escola pública perdeu muito de sua
natureza universalista e exacerbou o particularismo da escola
capitalista, que tem como principal fundamento a dissociação
entre o pensar e o fazer, restringindo a escola dos filhos dos
trabalhadores a esta última dimensão. A tarefa civilizatória
não pode ser outra que a busca de um real universalismo
para que a escola possa ser o espaço sonhado pelos lutadores
da Comuna de Paris (1871): a escola unitária, que conjuga
ciência, arte, tecnologia, cultura e forte base histórico-social.

Notas
TAKAHASHI, Fábio. Alunos do 3º ano têm nota de 8ª série. O
1

Globo, Rio de Janeiro, 01 out. 2007.


IBGE. Síntese de Indicadores Sociais. (2002). Disponível em: <http://
2

www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/12062003indic2002.
shtm>. Acesso em: 20 fev. 2008.
245
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O I Congresso Nacional de Educação (CONED) realizado no campus


3

da UFMG, Belo Horizonte, nos dias 31 de julho a 3 de agosto de 1996,


reunindo mais de 5 mil participantes foi uma iniciativa de entidades
do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, como Andes-SN,
CNTE, Fasubra, UNE, ANDE, Anfope, entre outras. No II CONED
(2007) foi aprovado o Plano Nacional de Educação: Proposta
da Sociedade Brasileira, como alternativa aos encaminhamentos
educacionais do governo Cardoso. Após o V Coned, realizado de 2
a 5 de maio de 2004, em Recife, na UFPE, deixou de ser convocado
por falta de consenso da CNTE, Fasubra e UNE, com as demais
entidades que desaprovavam diversas medidas do governo Lula como
o Programa Universidade para Todos, em virtude dos repasses de
recursos públicos para entidades empresariais.
“Jornada em Defesa do Direito à Educação Pública e de Qualidade”,
4

realizada em agosto de 2007.


Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação,
5

Qualificação e Ação Comunitária — ProJovem — voltado


especificamente para o segmento juvenil mais vulnerável e menos
contemplado por políticas públicas vigentes: jovens de 18 a 24 anos,
que não concluíram a oitava série do fundamental e não têm vínculos
formais de trabalho. O Programa assume, ao mesmo tempo, caráter
emergencial — atendendo um segmento que tem necessidade de
chegar ainda jovem ao ensino médio — e caráter experimental, no
curso de formação - ao basear em novos paradigmas sua proposta
curricular que trata de forma integrada a formação geral, a qualificação
profissional e o engajamento cívico. Aprovado no dia 30 de junho
de 2005, lei n. 11.129, em que foi instituído o Programa Nacional de
Inclusão de Jovens — ProJovem, e também, foi criado o Conselho
Nacional da Juventude — CNJ e a Secretaria Nacional da Juventude.
Disponível em: <http://www.projovem.gov.br/html/oprograma_
historico.htm>. Acesso em: 20 fev. 2008.
Evaluation of World Bank Support for Primary Education. Disponível em:
6

<http://go.worldbank.org/IEUODB2A70>. Acesso em: 13 abr.


2007.
Focusing special efforts in the most disadvantaged communities sends the signal
7

that quality education is for all.” (Final communiqué of the Ministerial


246
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Round Table on Quality Education, Paris, 4 October 2003. Disponível


em: <http://portal.unesco.org/en/ev.php@URL_ID=16438&URL_
DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>). Acesso em: 18
ago. 2007.
CESIT Carta Social e do Trabalho, n. 6, maio/ago. 2007. Apresentação.
8

Eduardo Fagnani Organizador.


Karl Marx La ideologia alemana. 5ª ed., Montevideo, Barcelona; Ed.
9

Pueblos Unidos, Ed. Grijalbo, 1974.; ver também n’O capital, “O


caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, p. 70-78, apud Fontes,
1997.
10
Etienne Balibar, “Exclusion ou lutte des classes?” In: Les frontières de
la démocratie. Paris: La Découverte, 1992, p. 202 (grifos do autor).
11
Phillip Brown, Cultural Capital and Social Exclusion: Some
Observations on Recent Trends in Education, Employment and the
Labour Market Work. Employment & Society, Vol. 9, n. 1, 29-51 (1995).
12
Geoff Lindsay. Inclusive education: a critical perspective. His
conclusions will be of interest to everyone concerned with the
education of children and young people with special educational
needs. British Journal of Special Education 33:2, 76–81. British Journal
of Special Education, vol. 30, Issue 1, Page 3-12, Mar 2003, doi:
10.1111/1467-8527.00275.
13
Para melhorar ainda mais a focalização da Bolsa Família, o Ministério
comparou a renda declarada no Cadastro Único de Programas Sociais
com a renda informada na relação Anual de Informações Sociais,
do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), dos anos de 2004
e 2005. Os resultados mostraram que 529.316 famílias estão com
renda divergente da declarada no cadastro. O governo cortou 200
mil benefícios de famílias que tinham renda mensal por integrante
da família entre R$ 121,00 e R$ 150,00 (Disponível em: <http://
www.mds.gov.br/noticias/ministerio-disponibiliza-criterios-para-
municipios-atualizarem-renda-de-beneficiarios-do-bolsa-familia>.
Acesso em 20 de fevereiro de 2008).
14
“Maquila”, termo espanhol para “maquia”, que, de acordo com o
dicionário Houaiss, significa: “[...] 2 porção retirada por moleiros
e lagareiros da farinha ou azeite que fabricam para outrem, como
247
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

remuneração por seu trabalho. 3 Derivação: por extensão de sentido,


porção de qualquer coisa; dose. 4 quantidade de dinheiro [...]”.
Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=
maquia&stype=k&x=11&y=4>. Acesso em 15 ago. 2008.
Anuário Estatístico do Brasil 2005 – IBGE, Rio de Janeiro, 2006.
15

Ana Karla Dubiela. R$ 2 bilhões por mês para acabar com a fome do
16

Brasil. Agência de Informação Frei Tito para a América Latina, 22


abr. 2004. Disponível em: <http://www4.fgv.br/cps/simulador/
impacto_2004/gc160.pdf>. Acesso em 07 mar. 2008.
A situação do jovem no mercado de trabalho brasileiro. Boletim
17

DIEESE, maio de 2007. Disponível em: <http://www.dieese.org.


br/bol/anu/anumai97.xml>. Acesso em 07 mar. 2008.
Emprego cresce, mas qualidade piora na AL. FSP, B 8, São Paulo, 11
18

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MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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paper 29. Centre for Analysis of Social Exclusion, nov. 1999,
London School of Economics. Disponível em: <http://
www. sticerd.lse.ac.uk/dps/case/cp/CASEpaper29.pdf>.
Acesso em: 12 ago. 2007.

WALLERSTEIN, I. Em busca do genuíno universalismo.


[ago. 2007]. Entrevistador: Rachel Bertol. O Globo. Rio
de Janeiro, 18 ago 2007. Disponível em: <http://www.
boitempo.com/publicações_imprensa.php?isbn=978-85-
7559-3&veiculo=0%OGlobo>. Acesso em: 15 out. 2008.

251
Trabalho como princípio
educativo e práxis
político-pedagógica

Neusa Maria Dal Ri


Candido Giraldez Vieitez

Introdução

Desde os anos de 1970, a conjuntura vem se


caracterizando por uma ofensiva do capital que atinge as
classes trabalhadoras do Norte e do Sul, mas, em especial, os
povos da América Latina e África. Essa ofensiva vem impondo
uma gestão econômica de mercados desregulamentados em
favor do capital, desmontando as conquistas sociais dos
trabalhadores, reprimindo com violência as resistências
populares, criminalizando os movimentos sociais e
desencadeando guerras contra os países recalcitrantes.
Porém, a partir dos anos de 1990, foram surgindo
contestações das massas populares, com caráter de levantes,
em países como Equador, Bolívia, Argentina, México,
Chile, Colômbia e Peru. A intensidade desses protestos e
manifestações populares é variável em cada país. No entanto,
a matriz impulsionadora das contestações é a mesma, ou
seja, são manifestações contra as políticas neoliberais e
pelo fim da regressão social. A regressão social está ligada à
desregulamentação e precarização do mercado de trabalho, ao
desemprego e à ampliação crescente da miséria e da pobreza,
junqueira&marin editores 253
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

que por sua vez estão ligados às políticas generalizadas de


privatizações e concessões cada vez maiores às grandes
corporações, especialmente às dos países hegemônicos.
As lutas desencadeadas por esses povos fizeram
aflorar, também, um sentimento antiimperialista e, ao mesmo
tempo, um novo nacionalismo de extração popular que
aparece ligado à recuperação da dignidade e das riquezas
nacionais, como pode ser observado nos processos pelos
quais passam Venezuela, Bolívia e Equador.
Novos movimentos sociais estão emergindo na
América Latina. Esses movimentos, entretanto, aparecem
tomados por novas formas de organização e, na maioria
das vezes, de modo espontâneo. Essas novas forças estão
promovendo o princípio fundamental da prática democrática,
recusando a hierarquia vertical, promovendo formas de
cooperação e solidariedade, e resgatando valores e culturas
acaçapados pelo capital.
De fato, estamos em presença, por um lado, da
sociedade capitalista hegemônica que vai se modificando
segundo seu desenvolvimento e necessidades e, por outro, em
termos gerais, de um projeto democrático socialista1. Trata-se
de duas visões de mundo radicalmente diferentes que estão
em conflito, em alguns casos de forma dissimulada, mas em
outros de modo claramente violento. Essa disputa entre as
duas visões de sociedade implica uma luta das classes sociais:
uma pela preservação da hegemonia do capital e outra pela
construção de uma nova hegemonia.
De acordo com Kohan, Lênin, um dos mais
brilhantes pensadores marxistas, foi o teórico da hegemonia
que, com “[...] suas contribuições teóricas e sobretudo
pela sua ação política, investigou profundamente as fontes
do pensamento de Marx sobre a dominação e o poder”
(KOHAN, 2003, p. 3). O conceito teórico a que Lênin chegou
254
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

foi o da formação econômico-social. Uma sociedade pontual tem


algo em comum que compartilha com todas as sociedades
capitalistas e, ao mesmo tempo, tem algo de específico e que
não se repete. No interior de cada força social, existe uma
fração de classe que a dirige política e culturalmente. Para
conseguir isso, esse segmento social tem que generalizar os
seus próprios valores, cultura e programa político para o
conjunto da força social. Em suma, deve fazer com que o
conjunto da sociedade interiorize e adote como próprios a
estratégia, os valores e o programa político da fração dirigente.
Esse complexo processo, por meio do qual se exerce a direção
da sociedade na confrontação política da luta de classes, Lênin
denominou de hegemonia. Dessa forma, a dominação política
não é exercida unicamente com a violência e a repressão
do Estado, mas, também, por meio da direção política e da
consumação da hegemonia.
Retomando essas reflexões e análises, Gramsci
(1970) pensou a hegemonia em sociedades capitalistas
complexas, não apenas naquelas nas quais a burguesia domina
por meio de uma ditadura feroz, mas, também, naquelas nas
quais os segmentos hegemônicos da classe burguesa recorrem
à forma mais eficaz de dominação política, a república
parlamentar.
Uma das principais questões a que Gramsci se
dedicou foi o problema do poder. Ao analisar a questão do
poder, Gramsci introduziu uma das grandes inovações na
teoria e na filosofia política do século XX. Ele defendeu a tese
de que o poder não é algo que reside apenas no aparelho de
Estado, mas o poder está, também, incrustado na sociedade,
numa teia de relações sociais capilares2 (KOHAN, 2003).
Ao refletir sobre a hegemonia, Gramsci adverte
que a homogeneidade da consciência própria e a desagregação
do inimigo se realizam precisamente no terreno da batalha
255
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

cultural. No entanto, Gramsci embrenha-se na reflexão


sobre a cultura, não para tentar legitimar a governabilidade
consensual do capitalismo, mas, sim, para o seu derrumbe.
Para Gramsci (1970), a hegemonia não é um
sistema formal fechado, homogêneo e articulado, até
porque estes sistemas nunca ocorrem na realidade prática.
A hegemonia, ao contrário, é um processo que expressa a
consciência e os valores organizados teórica e praticamente
por significados específicos e dominantes, num processo
social vivido de maneira contraditória, incompleta e difusa.
Numa palavra, a hegemonia de um grupo social equivale à
cultura que um grupo ou uma classe conseguiram generalizar
para os outros segmentos sociais. A hegemonia é a cultura,
mas é algo mais que a cultura porque inclui, necessariamente,
uma distribuição específica de poder, de hierarquia e
de influência. Como direção política e cultural sobre os
segmentos sociais aliados e influenciados por ela, a hegemonia
também pressupõe violência e coerção sobre os inimigos, não
sendo apenas consenso. Por último, a hegemonia não é aceita
de forma passiva, estando sujeita à luta e à confrontação.
Por isso quem a exerce, tem que renová-la continuamente,
defender e modificar, procurando neutralizar o adversário,
incorporando as suas reivindicações e desembaraçando-se
dos elementos perigosos.
Se a hegemonia não é um sistema formal fechado,
as suas articulações internas são, de certa forma, flexíveis
e deixam a possibilidade de operar sobre ele a partir da
crítica ao sistema e da construção da contra-hegemonia. Se
a hegemonia fosse absolutamente determinante, excluindo
toda contradição, tensão e luta as mudanças sociais seriam
impraticáveis.
Ao refletir analiticamente sobre as relações de
poder e de forças que caracterizam uma situação, Gramsci
256
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

parte duma relação econômica objetiva, para passar em


seguida à dimensão especificamente política e cultural na
qual se constrói a hegemonia (KOHAN, 2003).
O capital se reproduz cotidianamente e exerce
o seu poder em cada conjuntura, e em todos os espaços
possíveis. A concepção de mundo burguesa domina a ordem
social, o que significa que essa classe social é hegemônica no
capitalismo e, como Gramsci (1970) apontou, toda relação
de hegemonia é por força também uma relação pedagógica.
A sociedade, por meio das relações sociais, atua
como educadora, como um ser pedagógico no sentido de
que está o tempo todo e em todas as partes socializando ou
reiterando a socialização da concepção de mundo dominante.
No entanto, isso ocorre de diferentes formas, uma vez que
a sociedade capitalista apresenta uma complexa divisão
do trabalho, o que se constitui em um fator essencial à
preservação da hegemonia burguesa.
Embora todas as atividades sociais apresentem
uma dimensão educativa, nem todas têm a mesma potência
educacional. As igrejas e, mais recentemente, as mídias
constituem-se em poderosos meios de educação, no sentido
de imposição das ideologias e visões das classes dominantes.
Entretanto, somente o sistema escolar desenvolve esse
trabalho de modo regular, sistemático, reflexivo e apoiado
nos conhecimentos universais das ciências ou em variantes
desses conhecimentos.
Dessa for ma, a escola e também outras
organizações exercem ações educativas importantes,
particularmente quanto às percepções ou visões de como é ou
deve ser a sociedade, mediante, sobretudo, ao que podemos
denominar de seus currículos ocultos ou não explicitados,
mediante a vivência dos sistemas de relações sociais pelos
sujeitos que as constituem.
257
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A simples menção à presente situação


econômica, cultural e política, como realizada, já é suficiente
para afirmarmos a atualidade de pensadores como Marx,
Engels, Lênin e Gramsci. A qualidade do pensamento e
das análises desses autores pode ser observada no instante
mesmo em que necessitamos, com urgência, resgatar a
prática e a teoria revolucionárias para o enfrentamento
dos novos desafios colocados às populações de todo
o mundo que hoje lutam contra a política neoliberal e
pela construção de uma contra-hegemonia. E, para a
construção de uma outra hegemonia é necessária, também,
a construção de uma nova educação.
Dentre as proposições que foram formuladas por
Marx e Engels acerca da educação, uma das principais diz
respeito ao trabalho como princípio educativo, ou seja, ao
vínculo entre ensino e trabalho produtivo. Posteriormente,
esse princípio foi retomado por Lênin e por educadores
soviéticos e foi aplicado em algumas escolas após a revolução
russa de 1917, além de ter sido o item mais importante do
sistema escolar soviético, do ensino politécnico.
Na atualidade, observamos, como indicado, o
reaparecimento de movimentos populares de signo radical
democrático ou mesmo socialista na América Latina. Estes
movimentos são portadores de elementos de uma nova
hegemonia e, portanto, de uma nova educação. Entretanto,
em termos educacionais esses novos elementos permanecem
frequentemente em estado prático ou críptico. Em outros
casos, no entanto, eles são incorporados em esforços
políticos de mudança, como está ocorrendo na Bolívia e
na Venezuela. No Brasil, princípios contra-hegemônicos
aparecem, sobretudo, na proposta educacional, bem como na
práxis pedagógica do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) que implementa a união do ensino com
258
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

o trabalho produtivo em suas escolas e em escolas públicas


nas quais possui a hegemonia pedagógica, na tentativa de
construir uma nova educação.
Dessa forma, ao tentarmos dar conta da temática
deste texto, temos por objetivos: a) retomar de forma breve as
proposições feitas por Marx e Engels acerca da temática; b)
destacar as propostas de Lênin e dos educadores soviéticos,
pois foram os que mais bem aplicaram as proposições
marxistas; c) apresentar brevemente a práxis político-
educacional do MST, no que se refere à aplicação, em suas
escolas, do trabalho como princípio educativo.
Embora os movimentos operários ou populares
não estejam tão dinâmicos no Brasil como em alguns
países da América Latina, estes são atuantes e portadores
de diversos elementos contra-hegemônicos. Na esfera da
educação formal, entretanto, que é sem dúvida um campo
de batalha muito importante, as experiências de educação
anti-hegemônicas são restritas. E é exatamente esse fato
que faz da educação no MST uma experiência de alto
valor exemplificativo e prático-pedagógico, uma vez que
este Movimento é um dos poucos que desenvolve ações
significativas de educação formal anti-hegemônica, inclusive
no âmbito da escola oficial.
Para este trabalho, utilizamos dados empíricos
coletados por meio de entrevistas e observações realizadas
na Escola Municipal de Ensino Fundamental Construindo
o Caminho (ECC), localizada no Assentamento
Conquista na Fronteira, junto à Cooperativa de Produção
Agropecuária União do Oeste Ltda (Cooperunião), no
município de Dionísio Cerqueira, Santa Catarina; e no
Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC), escola de
ensino médio localizada na cidade de Veranópolis, Rio
Grande do Sul.
259
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

1. União do ensino e o trabalho produtivo

Há uma discussão acumulada no campo


educacional sobre a ideia da educação para e pelo trabalho.
Essa discussão foi retomada nos últimos tempos e um dos
motivos para isso foram as disposições constantes na Lei de
Diretrizes e Bases (LDB), n. 9.394, de 1996, a respeito do
assunto.
O artigo 2º da referida Lei aponta a qualificação
para o trabalho entre as finalidades da educação. No capítulo
II, do Título V, dedicado à educação básica, o artigo 22 dispõe
que “A educação básica tem por finalidade desenvolver o
educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável
para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para
progredir no trabalho e em estudos posteriores” (BRASIL,
1996).
Da mesma forma, no artigo 35, dedicado ao
ensino médio, no inciso II, lê-se que dentre as finalidades
desta etapa final da educação básica, está “a preparação básica
para o trabalho [...] do educando [...] de modo a ser capaz de
se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação
ou aperfeiçoamento posteriores” (BRASIL, 1996).
Ainda, no capítulo III, da educação profissional,
a Lei dispõe, no artigo 39, que “A educação profissional,
integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à
ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento
de aptidões para a vida produtiva” (BRASIL, 1996). O artigo
40 aponta que “A educação profissional será desenvolvida em
articulação com o ensino regular por diferentes estratégias
de educação continuada, em instituições especializadas ou
no ambiente de trabalho” (BRASIL, 1996).
Essas disposições estão em acordo com o
princípio geral enunciado no Título II, dos princípios e fins
260
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da educação geral, no parágrafo XI, do artigo 3º, no qual se


lê “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais”
(BRASIL, 1996, grifos nossos).
Porém, há várias interpretações do significado
dessa proposição3 e, do nosso ponto de vista, na atualidade,
no Brasil, uma prática relevante que contempla esse preceito
é a que tem sido implementada pelo MST.
A tese do trabalho como princípio educativo não
foi inventada pelo MST. Essa discussão é antiga e remonta às
análises de Marx e Engels sobre a educação, bem como às
suas propostas de união do ensino com o trabalho produtivo.
Os escritos de Marx e de Engels sobre a questão
educacional não são numerosos e nem são dirigidos
especificamente à temática. Entretanto, eles revelam uma
coerência e consistência no sentido de se manterem fiéis às
análises e proposições efetuadas nos mais de 30 anos que
separam os textos e, de acordo com Manacorda (1969),
escritos em momentos cruciais, tanto da investigação como
da história do movimento operário.
Os principais textos que trazem proposições em
relação à educação e ao ensino derivam de três programas
políticos e são: a) Manifesto do Partido Comunista, em 1848;
b) Instruções aos Delegados ao I Congresso da Associação
Internacional dos Trabalhadores, em 1866-67 e; c) a Crítica
ao Programa de Gotha, em 1875.
Manacorda, ao analisar o conteúdo do Manifesto,
remete a rascunho redigido por Engels, em 1847, denominado
Princípios do Comunismo, no qual se encontra o seguinte trecho:
“ensino para todas as crianças, iniciado desde o momento
em que possam prescindir dos cuidados maternos, em
institutos nacionais e a expensas da nação. Ensino e trabalho
de fábrica junto” (ENGELS apud MANACORDA, 1969,
p. 22). Afirma Manacorda que esta é uma proposição de
261
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

caráter genericamente democrático, relativa à universalidade


e à gratuidade do ensino. A ela se adere “em institutos
nacionais”, que deixa entrever formas coletivas de vida
infantil e de ensino socialista. Mas, o tipicamente socialista
aqui é a união do ensino e do trabalho na fábrica, coisa que
Engels não inventou, mas encontrou nos utopistas, em especial
em Robert Owen.
Para Manacorda (1969) essa indicação pedagógica
não é eventual ou limitada, mas permanente e de validade
universal.
Manacorda faz referências ao esboço de Engels
e também às anotações feitas por Marx que parece ter
anotado no texto que o ensino industrial era uma proposição
predileta dos burgueses. Manacorda (1969) especula que
talvez ele tenha sido convencido por Engels a adotar as suas
proposições.
O fato é que a indicação de Engels aparece no
Manifesto da seguinte forma: “Educação pública e gratuita de
todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas,
tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a
produção material etc.” (MARX; ENGELS, 1975, p. 37).
À época da I Internacional, os debates giravam
em torno de como encaminhar a luta política e que tipo de
relações o movimento operário deveria manter com o Estado.
A educação era imediatamente atingida por
essa discussão. A grande questão era: deveria o movimento
trabalhista empenhar-se a favor de um sistema escolar
obrigatório estatal e, caso funcionasse, em prol da
democratização do mesmo?
De acordo com Machado (1991), os partidários
de Proudhon menosprezavam a importância do papel da
luta política da classe operária, desconfiando de toda ação
estatal. Os bakuninistas se batiam por concepções similares
262
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

relativas à luta política da classe trabalhadora e o Estado.


Os seguidores de Lassale, devido à sua “servil crença no
Estado”, acreditavam no “milagre democrático” (MARX
apud MACHADO, 1991, p. 105).
Fazendo a análise do Estado, Marx conclui pela

[...] necessidade de articular a luta econômica dos


trabalhadores em prol de seus interesses imediatos,
como salário, educação, habitação etc., com a luta
política, pelo alargamento de sua participação na
discussão e gestão do Estado, pois somente através
desta articulação, que os horizontes da consciência
social se alargariam. Através desse processo, o
proletariado seria duplamente educado: primeiro,
a entender o caráter e os limites do Estado atual e,
em segundo, a precisar o conteúdo e a forma do
Estado a vir. (MACHADO, 1991, p. 107)

Nas Instruções aos Delegados do Conselho Central


Provisório da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx
enfatiza as leis gerais do Estado, como forma de o proletariado
alcançar benefícios com medidas educacionais. Neste texto,
Marx esclarece qual deve ser a educação que os trabalhadores
devem reivindicar ao Estado. Enfatiza, porém, que o tipo de
educação a ser reivindicada pelos trabalhadores deve levar em
conta a sua situação e os seus interesses objetivos de classe.
Nesse documento, Marx (1983) compreende por
educação:

1- Educação intelectual;

2- Educação corporal, tal como se consegue com


os exercícios de ginástica e militares;
263
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

3- Educação tecnológica que recolhe os princípios


gerais e de caráter científico de todo o processo de
produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças
e os adolescentes no manejo de ferramentas
elementares dos diversos ramos industriais.

Acrescenta, ainda, que as crianças e os adolescentes


deveriam ser subdivididos, dos nove aos dezessete anos, em
três classes, e que se deveria redigir um programa gradual e
progressivo de ensino intelectual, físico e tecnológico. Afirma,
também, que a união do trabalho produtivo remunerado, ensino
intelectual, exercício físico e adestramento politécnico elevarão a
classe trabalhadora acima das classes superiores e médias.
A ideia fundamental da união do ensino com
o trabalho produtivo, assumida como parte integrante de
um programa comunista, é um ponto básico da pedagogia
marxista. Vinte anos depois do Manifesto, essa ideia é acolhida,
enriquecida e argumentada com um conhecimento mais
profundo da realidade econômico-social. Manacorda (1969)
aponta que, se omitirmos do Manifesto os elementos meramente
democráticos do ensino — gratuidade e obrigatoriedade —,
ficam explícitos os elementos socialistas: abolição da forma
atual do trabalho na fábrica por parte das crianças e união
dos dois termos inseparáveis, ensino e trabalho produtivo.
Ao criticar o projeto de programa aprovado, em
1875, no Congresso da Social-Democracia Alemã, ocorrido
em Gotha, Marx refere-se a questões educacionais. Critica
a parte que diz respeito à restrição do trabalho feminino e à
proibição do trabalho para as crianças.
Marx afirma:

“Pr oibição do trabalho infantil”. Aqui era


absolutamente necessário fixar o limite de
264
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

idade. A proibição geral do trabalho infantil


é incompatível com a existência da grande
indústria e, portanto, um piedoso desejo, porém
nada mais. Pôr em prática essa proibição —
supondo-a factível — seria reacionário, uma
vez que, regulamentada severamente a jornada
de trabalho segundo as diferentes idades e
aplicando as demais medidas preventivas para
a proteção das crianças, a combinação do
trabalho produtivo com o ensino, desde uma
tenra idade, é um dos mais poderosos meios
de transformação da sociedade atual. (MARX,
1975, p. 242, grifos do autor)

Ao analisar a parte na qual o Partido Operário


Alemão reclama uma instrução popular geral e igual para
todos por parte do Estado, Marx anotou:

Educação popular igual? Que se entende por


isto? Acredita-se que na sociedade atual (que
é a de que se trata), a educação pode ser igual
para todas as classes? O que se exige é que
também as classes altas sejam obrigadas pela
força a conformar-se com a modesta educação
dada pela escola pública, a única compatível
com a situação econômica, não só do operário
assalariado, mas também do camponês?
“Assistência escolar obrigatória para todos.
Instrução gratuita”. [...] O parágrafo sobre
as escolas deveria exigir, pelo menos, escolas
técnicas (teóricas e práticas), combinadas com
as escolas públicas (MARX, 1975, p. 241, grifo
do autor)
265
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Marx, ainda, faz referência à proposição do


Partido em relação à educação popular a cargo do Estado, dizendo
ser coisa totalmente inadmissível.

Uma coisa é determinar, por meio de uma lei


geral, os recursos para as escolas públicas, as
condições de capacitação do pessoal docente, as
matérias de ensino, etc., e velar pelo cumprimento
destas prescrições legais mediante inspetores
do Estado, como se faz nos Estados Unidos, e
outra coisa completamente diferente é designar o
Estado como educador do povo. (MARX, 1975,
p. 241)

Marx queria arrancar das mãos do Estado burguês


e da Igreja a educação das jovens gerações. Discutiu com
os lassaleanos que acreditavam ser possível compor-se
com o governo burguês e esperar dele algumas reformas
que ajudariam a classe operária, pelo menos reformas que
facilitariam a preparação para uma mudança do regime. Já
Marx queria que a educação das crianças e dos adolescentes
se estruturasse de modo que fosse um instrumento poderoso
de transformação da sociedade moderna.
Enfim, em Crítica ao Programa de Gotha novamente
aparecem como temas fundamentais a união do ensino e
trabalho produtivo para as crianças, com abolição da sua
forma atual, um dos mais poderosos meios de transformação
da sociedade; e a exigência das escolas técnicas, com seu duplo
conteúdo teórico e prático.
De acordo com Manacorda (1969), à leitura desses
textos, em especial Instruções aos Delegados, devemos associar a
de O capital, no qual se encontram também páginas dedicadas
à questão da educação.
266
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Para Manacorda, O capital não possui um destino


imediatamente programático, mas as páginas acerca do ensino
contidas nele terminam com um autêntico e verdadeiro
programa ou, ao menos, com um desejo e uma previsão de
luta, cujo tom não fica muito longe de um programa.
Manacorda e Krupskaya ao analisarem os textos
de Marx referente à educação e contidos em O capital
destacam a seguinte passagem:

Apesar da miséria que são as cláusulas educativas


da lei fabril, consideradas em conjunto, proclamam
o ensino elementar como condição obrigatória
do trabalho. O êxito destas normas demonstrou,
pela primeira vez, a possibilidade de combinar a
educação e a ginástica com o trabalho manual e,
por conseguinte, também o trabalho manual com
o ensino e a ginástica. [...] Do sistema de fábrica,
como se pode observar nos escritos de Robert
Owen, nasceu o gérmen da educação do futuro,
que unirá para todas as crianças, a partir de uma
certa idade, o trabalho produtivo com o ensino e a
ginástica, não apenas como método para aumentar
a produção social, mas inclusive como o único
método que permite produzir homens plenamente
desenvolvidos. (MARX apud MANACORDA,
1969, p. 35; MARX apud KRUPSKAYA, 1986,
p. 31)

Não se tratava de uma proposta que supunha levar


a aprendizagem de fábrica para o interior da escola, como em
um laboratório, mas junto ao reconhecimento da necessidade
da escola politécnica, Marx declarava-se pelo trabalho das
crianças nas fábricas.
267
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Para Marx, as escolas politécnicas e agrônomas, e


as escolas de ensino profissional são elementos importantes
para o ensino das crianças proletárias. Acrescenta, ainda,
que, se a legislação sobre as fábricas, que constitui a primeira
concessão arrancada com grande esforço ao capital, combina
o trabalho da fábrica unicamente ao ensino elementar, não
há dúvida que a inevitável conquista do poder político por
parte da classe trabalhadora, conquistará também para o
ensino tecnológico, teórico e prático, seu lugar nas escolas
dos trabalhadores.

2. Politecnia e a pedagogia soviética

Lênin não desenvolveu uma teoria acerca


da educação e nem mesmo sistematizou de forma mais
organizada reflexões acerca de um método de ensino.
Contudo, sempre atribuiu extraordinário significado à
educação dos jovens e das massas trabalhadoras. Estudou os
escritos de Marx e Engels sobre a escola e, em seus textos,
sempre empregou atenção especial à combinação do ensino
com o trabalho produtivo.
Lênin ligava a questão relativa ao trabalho dos
adolescentes e jovens com as questões referentes à educação
e uma nova organização de seu trabalho desde antes da
Revolução. Em 1897, em artigo denominado Pérolas da
projetomania populista, Lênin afirmou:

[...] não se pode conceber o ideal de uma sociedade


futura sem unir o ensino com o trabalho produtivo
da nova geração. Nem o ensino e a educação sem
um trabalho produtivo, nem o trabalho produtivo
separado do ensino e da educação poderão
colocar-se à altura do atual nível da técnica e do
268
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

presente estado dos conhecimentos científicos.


(LÊNIN apud KRUPSKAYA, 1986, p. 41)

Ao elaborar, em 1917, o projeto do Programa do


Partido, Lênin formulou do seguinte modo o ponto referente
à escola:

Educação geral e politécnica (conhecimento da


teoria e da prática de todos os principais ramos
da produção) gratuita e obrigatória para todas as
crianças dos dois sexos até os 16 anos; estreita
ligação do estudo com o trabalho social produtivo
das crianças. (LÊNIN apud KRUPSKAYA, 1986,
p. 37)

Aparecia, ainda, no projeto de programa, o caráter


obrigatório do trabalho infantil social produtivo.
Desde a tomada do poder, Lênin insistia com
que o Comissariado do Povo de Instrução Pública tornasse
a escola politécnica real. E, de acordo com Krupskaya
(1986), empreendia essa tarefa sem ter nenhuma experiência
educacional e num contexto de caos econômico.
Em 1920, Lênin escreveu a obra O esquerdismo,
doença infantil do comunismo e em capítulo que discute a
militância dos comunistas nos sindicatos, afirma que “[...]
suprimir-se-á mais tarde a divisão do trabalho entre os
homens; passar-se-á à educação, à instrução e à formação de
homens universalmente desenvolvidos, universalmente preparados, e
que saibam fazer tudo” (LENINE, s.d, p. 51, grifos do autor).
De acordo com Manacorda (1969), as teses de
Marx e Engels não tinham tido uma influência maior sobre
o pensamento pedagógico moderno e sobre a organização
269
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

dos centros de ensino até o momento de sua recuperação


por parte de Lênin e de sua assunção como base do sistema
escolar do primeiro Estado socialista.
Acrescentamos que Lênin considerava a questão
educacional mais ampla e complexa do que a sua expressão
escolar. Para ele, a transformação educacional implicava
ao mesmo tempo uma transformação nas relações de
produção, nas instituições e nos processos sociais. As classes
sociais estabelecem relações sociais de produção e suas
contradições educam efetivamente as massas trabalhadoras.
Portanto, na construção da sociedade socialista, o processo
cultural implica uma tarefa muito mais ampla do que a
organização do sistema escolar, pois envolve o conjunto
das relações sociais e a construção de uma nova hegemonia.
Nadezhda Krupskaya foi uma das principais
elaboradoras da pedagogia soviética, aportando, em nível
teórico e prático, a proposta da instrução politécnica e da
escola do trabalho.
Em seu texto A instrução pública e a democracia,
apoiando-se nas obras de Marx e Engels, Krupskaya apontou
que

[...] a natureza mesma da grande indústria requer


um trabalhador multifacetado e desenvolvido,
possuidor da capacidade geral de trabalho,
preparação politécnica, capaz de operar qualquer
máquina e que compreenda qualquer processo de
trabalho (KRUPSKAYA apud SKATKIN, 1986,
p. 11)

Krupskaya combatia de forma inconciliável


aqueles que se opunham à ideia de uma instrução politécnica
e propunham substituí-la pela profissional.
270
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

No Comissariado de Instrução Pública havia


uma cor rente que pretendia imprimir um caráter
profissional à escola, negava a necessidade do ensino
politécnico, defendia a monotécnica e afirmava, ainda,
que não era possível aplicar o ensino politécnico em
toda a parte e que este não era necessário nas aldeias
(KRUPSKAYA apud MACHADO, 1991, p. 155). Essa
corrente propunha uma política educacional baseada
em visão pragmática e limitada da escola do trabalho e
defendia que a profissionalização seria mais eficiente para
a superação da escassez de trabalhadores qualificados
durante o período de reconstrução e de industrialização
na União Soviética, após a guerra civil.
O princípio da escola do trabalho para todos os
estudantes, que era a base da educação socialista nos primeiros
tempos da revolução, também foi contestado por líderes
sindicalistas e membros do Comitê Central. Esse problema
tornou-se tão agudo que Lênin teve que intervir, o que fez
com que, finalmente, a proposta de profissionalização fosse
derrotada.
Krupskaya esclareceu, em numerosos artigos
e discursos, as atividades e os conteúdos da instrução
politécnica e sua diferença com a profissional. Considerava
importantíssima a tarefa do politecnicismo para esclarecer os
estudantes acerca das bases gerais da técnica própria aos
ramos industriais, apesar de sua grande diversidade. A técnica
moderna devia ser enfocada ressaltando os seus vínculos com
os dados científicos gerais acerca do domínio sobre as forças
da natureza e com as questões da organização do trabalho
e da vida social. Tudo isso deveria ser proporcionado aos
educandos, fazendo-os conhecer, na teoria e na prática, os
processos básicos de trabalho nos quais deviam participar
de forma direta.
271
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Somente a ligação de um trabalho produtivo com


o ensino ajudará a jovem geração a dar-se conta de
todos os ramos da economia nacional, pois sem
isso não se poderão formar construtores autênticos
do socialismo. (KRUPSKAYA, 1986, p. 13)

Criticou, também, de forma contundente o desvio


das escolas para o artesanato no momento da implantação da
escola do trabalho, pois, do seu ponto de vista, entregavam-se
a hábitos artesanais estreitos e de modo algum relacionados
com a matemática, física, química, biologia, geografia e outras
disciplinas de ensino geral. Tendo presente uma aproximação
entre o campo e a cidade, Krupskaya pronunciava-se por um
programa único de trabalho para a escola urbana e a rural.
Krupskaya avaliou como positiva a experiência
avançada na organização do trabalho produtivo pelas
crianças no interior da escola, porém, jamais considerou
essa forma como a única ou a principal. Ela acreditava que
as possibilidades para organizar o trabalho produtivo por
forças próprias na escola eram limitadas. Para ela, o trabalho
produtivo dos educandos diretamente nas empresas da
indústria e da agricultura era fundamental. Da mesma forma,
Lenin assinalara em seu discurso no III Congresso da União das
Juventudes Comunistas que era imperioso um trabalho conjunto
das crianças com os trabalhadores e camponeses adultos
(SKATKIN, 1986).
Os princípios e métodos de organização do
trabalho produtivo dos educandos foram formulados a partir,
também, de experiências realizadas por educadores da União
Soviética. Dentre essas experiências, parecem-nos bastante
significativas as que foram conduzidas por Anton Makarenko
na Colônia Gorki e na Comuna Dzerjinski, nos anos de 1920
e 1930, na Ucrânia.
272
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

As experiências e os resultados alcançados por


este educador na organização da escola e na metodologia
empregada tornaram-se umas das principais referências para
a proposta educacional do MST.
A escola, na concepção de Makarenko, devia
ser um espaço amplo e aberto, e devia manter contato
com a comunidade e com a natureza, relacionando-se com
as necessidades históricas, mas dirigida por um objetivo
estabelecido coletivamente por professores e alunos.
No início, na escola que Makarenko dirigia,
foi implantado o trabalho manual. Os meninos e meninas
aprendiam um trabalho qualquer de sapateiro, costureira ou
faziam banquinhos, por exemplo. Porém, Makarenko começou
a questionar qual a contribuição que essa qualificação poderia
trazer para as crianças. “Acreditávamos dar às nossas crianças
uma boa qualificação, quando, na realidade, esta qualificação
não lhes permitia fazer nada além de um tamborete; ou
preparávamos uma costureira que somente podia costurar
calções” (MAKARENKO, 2002, p. 390).
Makarenko questionava, também, qual o
encaminhamento necessário para vincular esses processos
laborais aos programas de estudo. “Como ‘queimamos os
miolos’ com este maldito problema! Os meninos faziam um
tamborete e tínhamos de entender a forma como isso se
ligava à geografia e à matemática” (MAKARENKO 2002,
p. 390).
Somente quando Makarenko construiu uma
fábrica junto à Comuna, com aplicação de tecnologia e
complexos processos de produção ainda desconhecidos na
velha Rússia, foi que ele pôde resolver a questão do vínculo
entre ensino e trabalho. “Só quando vi o trabalho dessa
fábrica — e uma empresa assim pressupõe a existência de
uma estrutura exata, de normas de tolerância, de normas de
273
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

qualidade; [...] me dei conta do que significava essa produção”


(MAKARENKO, 2002, p. 391).
Dessa forma, Makarenko chega à seguinte
conclusão acerca do vínculo entre ensino e trabalho
produtivo: “Ocorre que o processo de ensino na escola e
a produção determinam solidamente a personalidade do
indivíduo, porque eliminam a divisão que existe entre trabalho
físico e o mental, formando conjuntamente pessoas altamente
qualificadas” (MAKARENKO, 2002, p. 391).
Makarenko afirmou que “As condições de
produção, de uma produção séria, eram as premissas que
facilitavam o trabalho pedagógico. Agora lutarei para que em
nossa escola soviética haja produção, principalmente porque o
trabalho das crianças abre muitos caminhos para a educação”
(MAKARENKO, 2002, p. 392).
Porém, Makarenko via esse processo de formação
vinculado aos objetivos da revolução, com o intuito de
criar as novas gerações capazes de darem prosseguimento à
transformação da sociedade. Assim, o trabalho conjugado
ao ensino tem também um significado ideológico para a
pedagogia soviética. Nas sociedades capitalistas ele também tem
um significado ideológico, mas este é mascarado e ocorre
de forma implícita. Makarenko via essa questão da seguinte
forma:

[...] o trabalho que não é acompanhado do


ensino, que não é acompanhado da educação
política e social, não proporciona proveito
educativo, resultando um processo neutro. Pode-
se obrigar uma pessoa a trabalhar até ao limite
de resistência, mas se, ao mesmo tempo, não se
educar no sentido político e moral, se ela não
participar na vida política e social, esse trabalho
274
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

será simplesmente um processo neutro, que não


proporcionará resultados positivos. O trabalho
como meio educativo apenas é possível como uma
parte do sistema geral. (MAKARENKO apud
MACHADO, 1991, p. 152)

Outro educador que teve bastante influência na


educação da URSS, pós-revolução, foi Pistrak. E acreditamos
que é também uma das principais referências teóricas do MST
na elaboração de sua pedagogia. Suas ideias são aproveitadas
pelo Movimento principalmente na organização das escolas.
Quanto ao vínculo entre trabalho e educação,
Pistrak defende que:

O trabalho na escola, enquanto base da educação,


deve estar ligado ao trabalho social, à produção real,
a uma atividade concreta socialmente útil, sem o
que perderia seu valor essencial, seu aspecto social,
reduzindo-se, de um lado, à aquisição de algumas
normas técnicas, e, de outro, a procedimentos
metodológicos capazes de ilustrar este ou aquele
detalhe de um curso sistemático. Assim, o trabalho
se tornaria anêmico, perderia sua base ideológica.
(PISTRAK, 2002, p. 38)

Em sua obra Fundamentos da escola do trabalho,


Pistrak discute como se colocou a questão do trabalho no
meio educacional, desde a proclamação do princípio da escola
do trabalho na sociedade socialista em construção. Pistrak
(2002) distingue três etapas ou correntes nessa discussão e
as critica.
A primeira é uma corrente pedagógica que tomou
a solução do problema emprestada de certos pedagogos
275
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

reformistas burgueses. Para ela, trata-se de um problema de


metodologia. A escola tem um programa de ensino definido
e as disciplinas são estudadas de várias maneiras por meio de
livros, excursão, laboratório etc. Mas, a pedagogia ensina que
é recomendável, para assimilar o ensino, além das impressões
visuais e acústicas, as impressões musculares. Disso deriva
a importância do trabalho manual. Criam-se algumas
oficinas na escola, como escultura, desenho, modelagem
etc. Porém, dessa forma, o trabalho entrava na escola com
papel secundário e de forma desordenada. Essa maneira de
colocar a questão não resolve o problema das relações entre
trabalho e ciência.
A segunda corrente era mais audaciosa, pois
colocava na base do trabalho escolar um trabalho manual
qualquer tomado em sua integridade, um ofício ao qual se
adaptava todo o programa de ensino. Mas, na ausência de
princípios diretores comuns, trabalho manual e aulas teóricas
eram independentes e sua ligação era eventual. Além disso,
como as oficinas eram vistas como um sistema fechado, o
trabalho perdia seu caráter social.
Já a terceira corrente, que é a mais difundida, é
também a mais simples, pois nem mesmo quer resolver o
problema do vínculo entre trabalho e ciência na escola, tentando
mesmo demonstrar a sua inexistência. A teoria é simples: o
trabalho é uma base excelente de educação, permitindo resolver
os problemas de pura educação, mas não os problemas de
ensino. Graças ao trabalho o homem se torna disciplinado e
organizado, assim sendo, é preciso ensinar o amor e a estima ao
trabalho em geral. O trabalho eleva o homem, lhe traz alegria,
educa o sentimento coletivista, enobrece e é por isso que o
trabalho, e particularmente o manual, é precioso como meio
de educação. A ciência fica à parte e não é necessário buscar
a relação entre o trabalho e a ciência.
276
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Para Pistrak, todas as correntes tinham aspectos


positivos, no entanto, os resultados colhidos por elas não
permitiram resolver o problema da escola do trabalho. Para
o autor isso ocorreu porque as correntes consideravam o
trabalho de uma forma abstrata, como uma disciplina isolada
e separada de seu aspecto principal que é a preocupação com
a realidade.
De acordo com Pistrak

O trabalho é um elemento integrante da relação


da escola com a realidade atual, e neste nível há
fusão completa entre ensino e educação. Não se
trata de estabelecer uma relação mecânica entre o
trabalho e a ciência, mas de torná-los duas partes
orgânicas da vida escolar, isto é, da vida social das
crianças. (PISTRAK, 2002, p. 50)

Do nosso ponto de vista, a proposta de Pistrak


envolve duas linhas de ação: a escola do trabalho e o trabalho
na escola.
Ao abordar e discutir a questão, Pistrak propõe
várias formas de se desenvolver as atividades na escola do
trabalho.
A primeira forma refere-se à execução pelos
alunos do trabalho doméstico na escola (PISTRAK, 2002).
Afirma o autor que nos primeiros anos da Revolução, em
muitas escolas, o trabalho doméstico foi erigido em princípio
e que é difícil dizer se isso foi resultado da pobreza material
ou de uma nova concepção pedagógica. Pistrak posiciona-se
contrariamente à execução por parte das crianças de trabalhos
domésticos pesados e enfadonhos. Porém, diz ser impossível
renunciar a todo tipo de trabalho doméstico, porque ele
permite adquirir uma série de bons hábitos que introduzem
277
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a civilização no seio da família e sem os quais seria impossível


pensar na criação de um novo modo de vida.
Dessa forma, Pistrak defende que os trabalhos
domésticos realizados pelas crianças limitem-se à limpeza dos
quartos, à manutenção da ordem, à participação nas tarefas
de cozinha e no serviço de alimentação. As crianças devem
realizar tarefas que podem ser executadas de forma coletiva
e que são capazes de desenvolver hábitos de vida coletiva,
mas trata-se de escolher formas de trabalho que não sejam
penosas, arrasadoras, evitando-se resultados negativos com
o abuso do método.
Um dos objetivos principais dessa tarefa é
desenvolver a vida coletiva, porque ela significa não apenas
uma melhoria das condições existentes, mas também a
possibilidade de começar um novo modo de vida. Pistrak
ressalta que se deve discutir com as crianças a explicação
científica das diferentes fases do trabalho doméstico.
Uma outra forma de trabalho na escola é o que diz
respeito aos trabalhos sociais que não exigem conhecimentos
especiais. Para Pistrak (2002), essa forma pode ser considerada
como uma ampliação das tarefas domésticas, pois se baseia
no mesmo princípio de utilidade social. Devem-se induzir
as crianças a realizar toda uma série de tarefas, como, por
exemplo, a limpeza e a conservação de jardins e de parques
públicos, a plantação de árvores, a conservação das belezas
naturais etc.
Essas formas de trabalho extra-escolares, em seu
conjunto, acabam constituindo o trabalho social da escola
enquanto centro cultural. Para Pistrak, é necessário que cada
cidadão considere a escola como um centro cultural capaz
de participar da atividade social, a escola deve conquistar o
direito de controle social neste ou naquele campo, o direito
e o dever de dizer sua palavra em relação a este ou aquele
278
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

acontecimento, e o dever de modificar a vida numa direção


determinada. “Quando este ponto de vista for admitido por
todo o mundo, nossa escola se tornará viva” (PISTRAK,
2002, p. 58).
Pistrak aponta que, depois da Revolução de
Outubro, foram proclamados os princípios da escola do
trabalho, sobretudo depois da publicação do regulamento
sobre a Escola única do trabalho, em outubro de 1918, em
que se colocava o trabalho produtivo no interior da escola.
A partir disso, as escolas e estabelecimentos de ensino para
crianças lançaram-se na organização de oficinas escolares de
todo o tipo. E esta é a terceira forma do trabalho na escola.
“De fato, as oficinas são necessárias à escola, servindo
como instrumento da educação baseada no trabalho, se não
quisermos limitar a escola a um estudo puramente teórico
do trabalho humano” (PISTRAK, 2002, p. 58).

Se quisermos que as crianças compreendam


verdadeiramente o que é a técnica da grande
indústria, não podemos nos limitar a mostrá-
la ou facultar a leitura de tudo o que lhe diz
respeito. [...] É preciso participar do trabalho para
compreender o trabalho de uma máquina, é preciso
sentir diretamente o que é de fato a mecanização
da produção. Ora, a oficina profissional pode
propiciar tudo isso. (PISTRAK, 2002, p. 59)

Segundo Pistrak (2002), para que a oficina cumpra


seu papel, deve satisfazer algumas condições, como, por
exemplo, ser organizada de forma a que se trabalhem os
produtos mais conhecidos do ponto de vista técnico e da vida
corrente, variar o instrumental e os métodos de trabalho, e
possibilitar às crianças a mais ampla criatividade técnica. Para
279
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Pistrak, a oficina utilizada na escola traz duas vantagens: serve


como meio para desenvolver nos alunos hábitos de trabalho
bem definidos e necessários, em benefício da educação geral,
e tem uma utilização do ponto de vista do ensino, ou melhor,
um papel didático.
Porém, o principal benefício do desenvolvimento
dessa atividade encontra-se no fato de que as oficinas servem
de ponto de partida para o estudo e a compreensão da
técnica moderna e da organização do trabalho. O trabalho
imediato prepara o terreno para um real estudo comparativo
das formas de trabalho mais complexas. “[...] a oficina
escolar pode oferecer, quando se chegou a um certo grau da
escola (por ex., durante o sexto ou sétimo ano escolar), uma
introdução completa e suficiente à técnica geral da produção
moderna. E esta é a finalidade capital da oficina escolar”
(PISTRAK, 2002, p. 65).
Por último, Pistrak defende que o trabalho na
oficina escolar deve ser produtivo. “Tudo o que a oficina faz
está a serviço do estudo do trabalho, e a oficina não produz
objetos sem utilidade prática” (PISTRAK, 2002, p. 65).
A questão do trabalho produtivo leva à questão da
organização da oficina. Para Pistrak, o aluno deve produzir
objetos completamente acabados, deve ser capaz de calcular o
tempo necessário para a fabricação, os materiais utilizados, etc.
Essa contabilidade leva a uma série de outras questões: cálculo
dos materiais, estabelecimento de um esquema de trabalho,
orçamento detalhado, tempo com o trabalho coletivo, sistema
de divisão de trabalho etc. “Se acrescentarmos ao que já
foi dito todos os dados relativos ao preço dos materiais e
ao salário, teremos todos os elementos que constituem o
cálculo e o orçamento detalhados e formulados previamente”
(PISTRAK, 2002, p. 67). Chega-se assim à questão da
organização econômica, aos elementos da administração que
280
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

devem ser bem conhecidos pelas crianças. Pistrak acrescenta


que isso possibilitará, mais tarde, a compreensão de certos
problemas econômicos e, particularmente, as bases do
orçamento nacional.
O trabalho na fábrica é a outra forma possível
de vínculo entre a educação e o trabalho, porém, também a
mais difícil de ser realizada. Para Pistrak, o trabalho direto
na fábrica é de extrema importância, pois ele não pode ser
substituído pelo trabalho nas oficinas. “É indispensável que
o aluno participe no trabalho produtivo lado a lado com
o operário ou com o aprendiz. Qualquer outra forma de
trabalho não passará de um sucedâneo incapaz de levar ao
mesmo objetivo” (PISTRAK, 2002, p. 80).
Para o autor, também é importante que a criança
participe de todas as manifestações na fábrica: contato íntimo
com os operários, sua vida, seu trabalho, participação nas
assembléias gerais, cooperativas, clube, juventude comunista,
célula do Partido, festas etc.
Pistrak afirma que essas considerações estão
em nível teórico, pois não podiam ser realizadas naquele
momento. Porém, pensa que no futuro, esses princípios
constituirão a única pedagogia comunista conveniente à
escola nos grandes centros ou nas proximidades das grandes
fábricas.
Pistrak ainda apresenta duas outras formas
da escola do trabalho, o trabalho agrícola e o trabalho
improdutivo. Fazem parte da segunda categoria o trabalho
do funcionário de Estado ou das instituições sociais, o
domínio da cooperação sob todas suas formas e o comércio
do Estado, trabalho do educador, trabalho sanitário e
médico. Para ele, as crianças desde muito cedo deveriam
participar desses trabalhos na escola, pois são importantes
elementos sociais.
281
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O autor assinala de forma enfática a importância


do estreitamento das relações entre a escola e o contexto
social. No entanto, para ele, apenas o estudo da realidade
social é insuficiente, pois a escola deve estar não apenas
voltada para a realidade, mas também impregnada por ela no
sentido de encaminhar uma real intervenção na reorganização
da sociedade. E o elemento unificador dessa relação é o
trabalho. Dessa forma, não basta levar o trabalho para o
interior da escola, mas é necessário ligar o trabalho na escola
ao trabalho socialmente produtivo, à produção real.
Do nosso ponto de vista, Pistrak foi o educador
que, por meio de suas proposições, bem como da experiência
pedagógica que desenvolveu na condução da Escola
Lepechinsky e em outras escolas de sua época, implementou
de forma mais radical as propostas de Marx e de Engels de
união entre o ensino e o trabalho produtivo.
Por fim, os educadores soviéticos, com as
propostas da escola do trabalho, introduziram no debate
educacional questões bastante complexas que continuam
ainda pouco estudadas. E estas questões, talvez mais do que
as respostas dadas continuam como desafios extremamente
atuais para a educação, em especial para se pensar como
vincular a vida escolar com os processos sociais mais amplos.

3. Práxis político-educacional do MST e o


trabalho como princípio educativo

A escola na sociedade capitalista desempenha


várias funções, porém, a mais imediata para o capital é a
de formar a força de trabalho para o mundo do trabalho.
Entretanto, a relação entre a escola e o mundo do trabalho
não é direta, mas encontra-se mediada pelo mercado4. Desse
ponto de vista, o estudante é um trabalhador em potencial,
282
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mas que deverá integrar o mercado para poder realizar


esse potencial. Dito de outra forma, a escola não educa
diretamente para o trabalho na produção, mas para que o
estudante converta-se numa força de trabalho habilitada que
as empresas buscarão no mercado de trabalho, o qual é uma
das categorias fundamentais da ordem social.
Entretanto, até o final do século XIX, a formação
do trabalhador não ocorria dessa maneira. No mundo
industrializado, a formação dos trabalhadores qualificados
ocorria, predominantemente, nos locais de trabalho mediante
a admissão de adolescentes, como aprendizes de um ofício, o
que era uma prática herdada do modo de produção anterior.
O instituto do aprendizado no local de trabalho resistiu por
décadas adentrando o século XX. No entanto, a partir de 1870
a burguesia industrial deu início a uma ofensiva generalizada
para retirar do interior da fábrica o aprendizado profissional.
Uma das determinações presentes nesse processo
foi a emergência de grandes empresas consolidadas
resultantes de fusões que habilitou o capital a uma luta
mais ferrenha contra os trabalhadores pelo controle da
produção. Outro fator que incidiu sobre esse fenômeno
foi a introdução de máquinas e equipamentos que levaram
à diminuição da dependência do processo de trabalho das
habilidades dos trabalhadores qualificados. Ainda, podemos
apontar a conveniência para os empresários em retirar a massa
de aprendizes da influência político-educacional exercida
pela luta entre capital e trabalho na fábrica, potencialmente
negativa para o primeiro. Por último, indicamos a necessidade
do capital de completar a formação do mercado de
trabalho que vinha em processo de longo amadurecimento.
A expulsão dos futuros oficiais (aprendizes) da fábrica
liberou os capitalistas dos custos diretos com a formação
profissional e, também, fragilizou uma importante categoria
283
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de trabalhadores (os qualificados) que, daí em diante, tendo


perdido qualquer vínculo concreto com a empresa, passam a
integrar o contingente de trabalhadores que concorrem por
empregos no mercado de trabalho. Em resumo, observando
a separação do ensino da produção, verificamos que ela
faz parte de um processo secular instaurado pela burguesia
que aliena crescentemente os trabalhadores do controle da
produção e, consequentemente, também do controle de
outras atividades sociais.
No MST, a instauração do trabalho associado5,
por meio de suas cooperativas, implica imediatamente uma
embrionária (des)alienação do trabalhador. Isso ocorre
porque o trabalho associado requer que os trabalhadores
exerçam não apenas as funções especializadas da produção,
mas, também, que obtenham um domínio geral do
funcionamento da unidade de produção na qual estão
alocados, isto é, que exerçam as funções de dirigentes,
técnicos e políticos, que hoje são monopólio das elites das
classes dominantes.
Dessa forma, a realidade no Instituto de Educação
Josué de Castro (IEJC) e na Escola Municipal de Ensino
Fundamental Construindo o Caminho (ECC) distingue-se
daquela encontrada na escola oficial. Uma das principais
características dessas escolas do MST ou das que estão sob a
sua hegemonia é o vínculo direto entre o ensino e o trabalho.
E esse vínculo dá-se por meio do trabalho real, concreto.
A concepção de ensino vinculado ao trabalho,
como vimos, não é uma novidade. E tampouco é um método
defendido e aplicado apenas pelos críticos da educação
burguesa.
No âmbito do pensamento burguês, implantaram-
se, em vários momentos da história, escolas ligadas ao
trabalho. Entretanto, as ideias principais que sempre estiveram
284
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

alicerçando essas propostas são, basicamente, as de que o


aluno aprende mais e melhor por meio do trabalho; o aluno
torna-se mais disciplinado, organizado e aprende a valorizar e
a respeitar o trabalho. Desse modo, o trabalho é considerado
de uma forma abstrata, laboratorial, como uma disciplina
escolar, portanto, isolada e separada do ato real de produção.
Acrescentamos que, nessas condições, o aluno situa-se na
categoria de estudante. Ele não mantém nenhum vínculo
orgânico com o local de seu aprendizado. Terminado o seu
curso ou estágio, o formado deverá integrar o mercado de
trabalho.
Destacamos, no item anterior, a contribuição
do autor soviético Pistrak que se colocou como crítico das
abordagens que havia, até então em sua época, e que pôde
elaborar uma proposta de vínculo entre a educação e o
trabalho real na produção.
Ao que tudo indica, foi a esse autor
principalmente que o MST recorreu, enquanto uma
das principais influências teóricas, para pensar um dos
princípios da sua pedagogia, “a educação para o trabalho
e pelo trabalho” (MST, 1996, p. 15). Do nosso ponto de
vista, a influência de Pistrak, neste item específico, está
no fato de que a sua proposta é a que melhor atende às
necessidades do Movimento.
Que tipo de formação, na atual fase, o Movimento
necessita?
O Movimento precisa que cada um dos seus
militantes, e trabalhadores da terra, aprenda a lutar, e a
organizar e gerir a produção. O estudante do IEJC já é uma
pessoa integrada ao trabalho mesmo antes de ir para a escola.
E, mesmo depois de integrar-se a ela, continua sendo um
trabalhador, ainda que em condições especiais que garantem
a sua permanência na escola.
285
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Como é possível um estudante, em regime de


internato na escola, ser um trabalhador e seguir sendo, mesmo
estudando? Isso ocorre por várias formas.
A primeira delas diz respeito ao que se denomina
pedagogia da alternância 6. Os cursos do Instituto estão
organizados em etapas, cada etapa é constituída de dois
tempos, o tempo escola e o tempo comunidade. O tempo
escola é o tempo no qual os alunos ficam no Instituto
e desenvolvem um conjunto de atividades do curso que
freqüentam e a participação na gestão da escola. O tempo
comunidade é o tempo em que os alunos retornam aos
acampamentos ou assentamentos realizando tarefas que
foram delegadas pelo IEJC ou pelas instâncias do MST.
Nesse tempo, os alunos combinam atividades de estudo com
a participação direta nas ações do Movimento, continuam ou
iniciam tarefas nas Cooperativas ou Associações, e atendem
às demandas de trabalho de cada local. Nesse sistema, os
alunos passam em torno de dois meses e meio na escola, e
dois meses e meio na comunidade. No final do curso, que
dura de três a três anos e meio, há uma preponderância do
tempo escola para apresentação do Trabalho de Conclusão de
Curso. O tempo escola e o tempo comunidade são também
divididos em outros tempos, tais como, tempo aula, trabalho,
estudo, reflexão, oficina, livre etc.
As comunidades do MST, onde se realiza o
trabalho produtivo, não têm mais como objetivo absoluto
a extração do excedente econômico da força de trabalho.
Em decorrência, até certo ponto, essas organizações podem
substituir competição por ações solidárias e de cooperação,
o que lhes permite adaptar às suas condições o estudante-
trabalhador.
Um aluno do IEJC diz o que significam essas
ações solidárias.
286
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Planto arroz, milho, feijão, mandioca, batata doce e


abóbora. Só vendo o excedente. A maioria fica para o
consumo. Eu sou ligado a uma família, então contribuo com
essa família. Agora que estou estudando, não só pra mim,
então a comunidade está assumindo o meu trabalho. Lá
não tem cooperativa, tem associação. Não é perfeito. Onde
tem cooperativa essa questão é mais bem controlada. Mas,
onde tem associação ou outro coletivo também funciona.7

Em virtude do fato primário, qual seja, todo e


qualquer membro do MST é um trabalhador, desde tenra
idade, ainda que em condições especiais como a relatada,
decorre que entre as escolas do Movimento e as suas unidades
econômicas não pode haver a separação radical que se
observa entre o universo empresarial e a escola oficial.
Como há uma ligação orgânica entre escola e
trabalho, observa-se uma outra questão fundamental que
é o desaparecimento da tarefa básica que cumpre a escola
em uma sociedade capitalista: a formação da força de
trabalho assalariada para o mercado de trabalho. O MST
procura estabelecer um vínculo direto entre a escola e os
seus empreendimentos econômicos. O aluno do IEJC, por
exemplo, pode, se assim o desejar, dirigir-se ao mercado
de trabalho e disputar uma vaga em qualquer organização,
pois a formação que recebe no Instituto o habilita para
isso. Contudo, os empreendimentos econômicos do MST,
notadamente as cooperativas de trabalhadores associados, não
constituem um mercado de trabalho e nem interagem com o
mesmo, uma vez que suprem suas necessidades de trabalho
por meio de outros mecanismos. O aluno formado pelo
Instituto não sai à busca de um emprego, pois ele já pertence
a uma comunidade de trabalho, ou poderá ser alocado em
outro setor qualquer do Movimento.
287
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Um dos objetivos é que no tempo comunidade ele [aluno]


comece a se inserir nesse coletivo para ajudar a resolver os
problemas que tem ali. Quando termina o curso, a grande
maioria já é sabedora de onde vai trabalhar. Alguns vão
para o mercado de trabalho. Mas é uma minoria. A maioria
vai mesmo para os assentamentos e acampamentos.8

Os estudantes do IEJC trabalham também durante


o tempo escola no qual ficam na instituição. Eles atuam em
três setores básicos: a) na manutenção e conservação da
escola, o que significa o desempenho de vários tipos de
trabalhos domésticos como cuidar da limpeza, lavar e passar
roupas, cozinhar e organizar o refeitório coletivo; b) nas
unidades de produção, que aportam produtos in natura para
consumo próprio ou que são colocados no mercado gerando
renda monetária; c) na gestão coletiva da escola.
Um dos trabalhos mais importantes que os
alunos realizam é a gestão da escola, o que compartilham
com professores e funcionários. Ademais dessa tarefa
estratégica e primordial, os alunos ajudam a custear o Instituto
administrando e trabalhando nas unidades de produção. Uma
pequena fábrica de conservas, que coloca seus produtos
no mercado, além de gerar uma renda monetária permite
aos alunos vivenciarem a comercialização, os processos de
trabalho e a administração do negócio. Função análoga tem
a padaria, que atende às necessidades de consumo da escola
e, também, coloca no mercado local uma parte da produção.
A horta fornece produtos in natura. E a creche, denominada
de Ciranda, cuida das crianças da comunidade escolar, filhos
de alunos, funcionários e professores.
Convém ressaltar que o trabalho realizado no
Instituto pelos alunos não é uma simulação laboratorial, mas
trabalho real que de algum modo se articula com a economia.
288
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Entretanto, o seu significado é ao mesmo tempo educativo,


cumprindo, assim, uma das premissas da abordagem
pedagógica do MST que é a de ligar organicamente o ensino
e o trabalho.
A proposta do MST para as escolas de educação
fundamental (1999) é bastante semelhante àquela elaborada
e implantada no IEJC. Preconiza-se o vínculo entre o ensino
e o trabalho produtivo.

As Unidades precisam ser trabalhadas como


espaços educativos, onde os educandos possam
aprender para além dos modos de produzir que
já conhecem. [...] As Unidades de Produção
podem ser implementadas na escola ou podem ser
implementadas pelo assentamento e colocada sob
responsabilidade e os cuidados da escola, ou ainda
implantadas por uma cooperativa ou associação
e aberta à participação dos educandos. [...] Para
trabalhar nas Unidades de Produção os educandos
podem ser organizados em Brigadas de Trabalho.
(MST, 1999, p. 34-35)

A concepção de vínculo entre ensino e trabalho


permeia toda a organização da ECC e o curso é dividido
em dois tempos, tempo estudo e tempo trabalho. Essa
concepção fica evidente, também, no discurso das crianças
entrevistadas.

Eu gosto da escola. Aprendemos a trabalhar e estudar. A


professora não é muito brava, tem o lanche, tem quase meia
hora de recreio, dá para brincar bastante.9
Nos temas geradores, a gente fica quase um ano trabalhando
a mesma coisa. No tema embelezamento ficamos quase
289
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

um ano trabalhando, plantando mudinhas, embelezando


o Assentamento.10

De acordo com uma das professoras da ECC, as


crianças “Produzem com o trabalho. E usufruem desse trabalho de
algum modo. Por exemplo, as flores. É um trabalho muito real porque
tem resultados”.11
As crianças trabalham na cooperativa que
funciona junto à escola, realizam trabalhos domésticos para
as suas famílias e, eventualmente, realizam algumas tarefas
para a Cooperunião.
As crianças do meio rural geralmente auxiliam
as famílias realizando trabalhos domésticos e trabalhos
no campo quando se trata de pequena propriedade rural.
Essa é uma tradição do campo que se mantém, também,
no Assentamento Fronteira da Conquista, provavelmente
propiciada pelas próprias condições existentes, mas que não
tem ligação com a tese da união do ensino e trabalho.
Na cooperativa dos educandos, as crianças
trabalham de fato. Entretanto, essa cooperativa caracteriza-se
mais como uma organização para fins pedagógicos do que
econômico. A maior parte da produção e serviços realizada
é de valores de uso, embora a cooperativa estabeleça algumas
relações mercantis e gere uma pequena renda também, como,
por exemplo, a venda de mudas de plantas e flores.
A Cooperativa Construindo o Caminho é
constituída por quatro equipes de trabalho que são: serviços
gerais; subsistência; limpeza; e pedagógica e comunicação.
A equipe de serviços gerais é responsável pelo patrimônio da
escola e tem como tarefas cuidar do minhocário, hastear a
bandeira, separar e tirar o lixo e ajudar nos serviços de copa
e limpeza das salas. A equipe de subsistência é responsável
pela horta, pelo viveiro e realiza outras tarefas relativas à
290
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

manutenção da escola. A equipe de limpeza é responsável


pela limpeza das salas e dos banheiros. A equipe pedagógica e
comunicação é responsável pela biblioteca, armários e estantes,
pela veiculação de informações na sala de aula, e confecção
dos murais.
Ao serem indagadas para que serve a Cooperativa,
as crianças responderam:

Para ajudar a escola a trabalhar, a plantar, que nem as


alfaces, as mudinhas, catar lixo, adubo para colocar no
minhocário.12
Serve pra ajudar nos serviços, nos trabalhos. É melhor
trabalhar em cooperativa, fica melhor. Fica mais bem feito
fazendo junto.13
Serve para ajudar a ler, a escrever e a trabalhar.14
Se ajudamos. Quando tem algum trabalho a gente se ajuda.
Quando alguém não sabe um serviço, vamos lá e ajudamos.15

A avaliação que os pais fazem desse tipo de


orientação da escola é também bastante positiva:

Elas têm o trabalhinho delas lá. Acho que é bom sim,


porque ela vai pegando amor no trabalho. Se ela fica só
estudando e brincando, chega a época dela trabalhar, e
ela não tem amor no trabalho. Assim, vão adquirindo
experiência, vão saber se coordenar. Eles aprendem muita
coisa. Eles têm as comissões deles. [...] Ensina a criança a
se determinar nas coisas.16

A mãe de um aluno acrescenta que:

O trabalho [...] eles fazem em equipes. Eles fazem na


prática também, tem a horta, o viveiro que produzem e
291
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

distribuem. Eles negociam com a cooperativa [Cooperunião].


Eles fazem a comissão para vender os produtos em troca
de carne, alimentação. A gente tem dificuldade, porque foi
educado de uma forma. A educação deles é diferente. Eles
fazem direitinho. A nossa criançada aqui tem facilidade,
tem facilidade de se apresentar, conversar. Tem muita
facilidade. Eles negociam direitinho. Eles têm também as
tarefas, os coordenadores [...].17

Nas entrevistas que realizamos com as crianças,


pudemos perceber exatamente o que os pais ressaltaram
em suas falas. As crianças demonstraram uma grande
facilidade para conversar, posicionar-se sobre a escola e
explicar o funcionamento da sua Cooperativa e, além disso,
elas demonstraram, também, que têm conhecimento de
praticamente tudo o que ocorre no Assentamento e na
Cooperunião.
Como podemos verificar pela exposição, a
concepção de união entre ensino e trabalho encontra-se
presente nos procedimentos pedagógicos tanto do IEJC
como da ECC. Porém, diversamente do IEJC, observamos
que na ECC a integração entre o ensino e o trabalho
produtivo real é apenas embrionária, embora este vínculo,
segundo nosso juízo, poderia ser exeqüível nas condições
concretas da Cooperunião.

Conclusão

Hoje, as transformações sociais e políticas por via


revolucionária parecem ser objetos de preocupação de grande
parte dos movimentos políticos e sociais da América Latina
e é uma realidade em países como a Venezuela, a Bolívia e o
Equador. Observamos, também, o surgimento de um novo
292
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

apelo por mudanças em sociedades capitalistas que até há


pouco tempo alardeavam equilíbrio e força.
Se, nos idos dos anos de 1960 e 1970, o discurso
revolucionário pautava-se em críticas ao capitalismo, ao
colonialismo e ao imperialismo, hoje, essa crítica é mais
abrangente e totalizante, com o acréscimo de questões como a
da ecologia, de gênero, da etnia, da liberdade e da democracia.
Dentre os aspectos essenciais dessa crítica estão
dois que são os mais visíveis: a democracia e a liberdade.
Para Mézáros (2002), esses dois momentos da vida humana
sempre foram basilares para o pensamento revolucionário
desde a Comuna de Paris. Em parte, o esquecimento nos
últimos 50 anos do século XX a que foram relegados, pode
ser compreendido como uma das causas do fenômeno da
expansão capitalista, a solução política definitiva, com o fim
da História, como pudemos observar nesses anos de prática
neoliberal. Anos em que, segundo Ayres (2008) a cruel
fantasia do consumo, sinônimo de liberdade individual e
o livre mercado, entendido como último avanço político e
democrático das nações, tornaram-se regra e dogma. Um
dogma que vicia todas as relações sociais e políticas com
sua pregação individualista, não participativa e anti-solidária.
Porém, a prática neoliberal vem falhando como
expressão político-econômica global, ao gerar desequilíbrios
regionais, enfraquecer os eixos do sistema mercantil-financeiro,
ao estender e aprofundar dramaticamente as desigualdades
entre as classes sociais, afora a questão crucial da devastação
da natureza. Dessa forma, questões reprimidas há muito
tempo, como o nacionalismo e soberania, desenvolvimento
sustentável e crescimento igualitário, democracia e liberdade
política das massas, ganham a consciência de alguns povos.
O resultado disso é a compreensão de que a liberdade não
pode ser medida pelo consumo e a democracia pressupõe
293
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

que todos sejam igualmente partícipes das decisões políticas


e econômicas do Estado e das Organizações.
Uma das principais consequências da política
neoliberal tem sido o crescimento da miséria e da pobreza
em todo o mundo.
As duas visões de mundo ora em curso e em luta,
a hegemônica e a contra-hegemônica, apresentam propostas
teórico-práticas para combater a pobreza e as desigualdades.
A 38ª. Reunião do Fórum Econômico Mundial,
realizada em Davos, na Suíça, que reúne a elite econômica
e política mundial, realizada em janeiro de 2008, terminou
com um apelo para o combate à pobreza.
Para o neoliberalismo, o desenvolvimento
econômico é a melhor forma para se combater a pobreza e as
desigualdades, pois ele gera riquezas para as nações (SMITH,
1979), cria empregos, aumenta os salários e o padrão de
vida, e eleva a renda per capita dos países. De acordo com
O’Neill, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, as políticas
inteligentes para o desenvolvimento aglutinam-se em quatro
áreas fundamentais: incentivo à iniciativa privada por meio
de mecanismos orientados para o mercado; reconhecimento
da importância da boa governabilidade e administração
pública competente; abertura das economias ao comércio
e investimentos; capacidade de construção através de
investimentos em capital humano e transmissão das melhores
práticas (PERSPECTIVAS ECONÔMICAS, 2001).
No campo da educação, o neoliberalismo retoma
a teoria do capital humano que se baseia na concepção de
que o Homem é um homo economicus, naturalmente egoísta,
mas que por ser racional, acaba indiretamente por contribuir
com o melhor aporte possível para o bem estar geral. Dito
de outra forma, o homo economicus é um ser dotado de uma
racionalidade tal, que é capaz de escolher, livre das pressões
294
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

externas, os melhores caminhos para alcançar o seu sucesso


econômico. Essa teoria afirma que uma maior escolarização
contribui diretamente para a melhoria da qualidade de vida
dos indivíduos, em função de um aumento de renda que
decorre, diretamente, da sua melhor qualificação para o
desempenho no mercado de trabalho. Em outras palavras,
o incremento da produtividade, decorrente do aumento da
capacitação, levaria a que o indivíduo também se beneficiasse
com o aumento dos seus salários.
A teoria do capital humano ressurge das cinzas, porém
agora acompanhada dos fundamentos que dão sustentação
à produção flexível, bem como das recomendações de
eficiência e produtividade presentes no referencial neoliberal.
No entanto, esse reaparecimento está ligado à própria crise
pela qual passa o capital em sua versão globalizada. Os vários
conceitos disseminados pelo neoliberalismo, portadores de
novos significados, operam, também, como instrumentos
ideológicos, com os objetivos de ocultar a superexploração
capitalista e o desmonte dos direitos sociais que vêm
ocorrendo nas últimas décadas.
As mudanças na conjuntura política internacional,
que ocorreram a partir dos anos de 1980, marcadas
principalmente pelo fim do socialismo real e por novas
teorias que apontam o fim da história e o desaparecimento da
classe trabalhadora, compuseram um quadro que favoreceu
o surgimento de teorizações no campo da educação.
Desse modo, as políticas educacionais disseminadas pelos
organismos internacionais e implementadas pelos Estados
foram formuladas de forma a atenderem os interesses
capitalistas visando à ampliação da acumulação.
As novas categorias apresentadas no atual
discurso oficial sobre a educação, como, por exemplo,
qualidade total, for mação abstrata e polivalente,
295
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

flexibilidade, empreendedorismo, participação, autonomia


e descentralização, impõem aos sistemas educacionais
uma verdadeira fragmentação. Além disso, categorias
historicamente construídas pelo Movimento Operário
Popular e pelas esquerdas, como autonomia, participação,
democratização, entre outras, são esvaziadas de seus
conteúdos originais, redefinidas e articuladas com as
teorizações pós-modernas (como a do fim da sociedade do
trabalho) e subordinadas aos interesses imediatos do capital.
No entanto, parece evidente que não basta
apenas o investimento na formação e qualificação da força
de trabalho, para haver um maior acesso à riqueza produzida
pelas classes trabalhadoras. A possibilidade de distribuição
desta riqueza depende, essencialmente, de mudanças nas
relações de poder e de uma modificação radical do sistema
de produção.
Em suma, para a concepção ora hegemônica,
a relação entre trabalho e educação é meio para preparar
o indivíduo para o mercado de trabalho, disciplinar os
trabalhadores para a hierarquização do processo de trabalho,
mediante a reiteração nuclear da categoria de assalariamento,
e adequá-los à divisão social do trabalho. Os planos e a
execução das políticas educacionais são orientados de
acordo com os princípios da competitividade e do mercado.
Os direitos sociais, tais como habitação, saúde, seguridade,
educação, entre outros, deixam de ter natureza de direitos a
serem universalizados para assumirem natureza de serviços,
mercadorias comercializáveis, fontes de lucro para o capital.
No campo da construção da contra-hegemonia há
uma outra visão. Parte-se do princípio de que para combater
a pobreza, as profundas desigualdades e desequilíbrios que
vão tomando conta do capitalismo é preciso modificar
drasticamente as relações de produção, a distribuição de renda
296
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

e outras dimensões da sociedade. Porém, há divergências e


polêmicas quanto à forma e ao conteúdo do que seja uma
melhor distribuição de renda. Há proposições teórico-práticas
que vão desde as ajudas humanitárias e compensatórias,
implementadas, por exemplo, por diversas ONGs ou por
políticas públicas por meio de diversos tipos de bolsas de
auxílio financeiro, que hoje existem no Brasil, até posições
bem mais radicais que reivindicam uma distribuição igualitária
e não apenas de renda, de proventos, mas também de poder
nas organizações e na sociedade. As posições mais radicais
lutam, também, por mudanças estruturais na sociedade.
Para essas posições, a educação é fundamental,
pois por meio dela os sujeitos não apenas têm acesso à ciência,
ao conhecimento construído historicamente, mas, também,
podem construir e disseminar uma outra ideologia, uma outra
visão de mundo.
O desenvolvimento econômico, aqui, é visto de
outra forma, no sentido do desenvolvimento humano com
qualidade de vida, com preservação dos recursos naturais,
dos ecossistemas, com combate às discriminações étnicas, do
sexismo, com crescimento igualitário e com democracia real.
O MST se coloca nesse campo, no da construção
de uma contra-hegemonia e de uma nova educação.
Para o MST, uma das dimensões mais importante
no processo de elaboração de uma nova concepção de mundo
e hegemonia é a participação dos seus membros na vida
política nacional. Do ponto de vista da educação ou da nova
concepção de mundo, esse fato mostra que certos fenômenos
como, por exemplo, a luta social, apenas se aprende em
profundidade com a prática. Assim, o Movimento defende
que a principal escola dos Sem Terra é o próprio MST.
O fato de o MST organizar a produção cria
necessidades educacionais demandadas pela organização do
297
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

trabalho sob sua égide e ele se esforça para contemplar essas


necessidades. O foco central de sua abordagem pedagógica
deriva antes de tudo de seu projeto político de transformação
da sociedade brasileira. Entretanto, esse projeto não vê a
reorganização do trabalho, inclusive o pedagógico, como algo
que se fará no futuro. Ao contrário, dentro das possibilidades
existentes, essa reorganização é algo que o MST promove
desde já. Com isto, a educação no Movimento é decorrência
tanto de um projeto social visionário, quanto de relações de
produção reais.
Do nosso ponto de vista, a união do ensino com o
trabalho produtivo e a emergência do estudante-trabalhador, ao
lado da gestão democrática da escola, estão entre as inovações
mais importantes introduzidas nas escolas do Movimento.
Dessa forma, uma das mudanças educacionais
mais importantes operadas pelo MST é o modo de
organização e funcionamento da escola. Um sistema de
poder baseado em democracia direta ou gestão democrática,
partilhado por alunos, professores, funcionários e pessoas
da comunidade, em condições de igualdade inusitada na
ordem social, substitui a variante da burocracia que domina a
escola pública, ou o despotismo imediato da personificação
do capital na escola privada. Este acontecimento está bem
configurado em suas escolas.
Nas escolas do MST não encontramos apenas
a participação dos alunos, professores e funcionários, que
na abordagem liberal é sempre uma condição facultativa.
O governo escolar constitui-se em uma tarefa pedagógica
obrigatória, um direito e, ao mesmo tempo, um dever.
A gestão da escola é considerada um dos trabalhos mais
importantes; é necessário realizá-lo, não de modo voluntarista
e fortuito (participação), mas como tarefa orgânica regular.
Esse fato aparece nítido tanto na IEJC como na ECC.
298
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

As outras mudanças importantes são relativas


à união do ensino com o trabalho e ao trabalhador-estudante. É
possível detectar a influência dos pedagogos soviéticos, como
Makarenko e Pistrak, na implementação dessas políticas nas
escolas do MST. Porém, também aqui, o mais importante
decorre das injunções postas por um segmento da economia
que se encontra sob a égide do trabalho associado, do fato
de que a expansão deste setor constitui um guia econômico
para o MST e, em última análise, da presença de seu projeto
visionário de transformação social.
O aparecimento da figura do estudante-trabalhador
é uma modificação com muitas implicações. A categoria de
estudante, típica da escola capitalista, tende a dissolver-se dando
lugar à categoria de estudante-trabalhador. Concomitantemente,
as organizações econômicas do Movimento, sobretudo os
vários tipos de cooperativas, afastando-se do economicismo
da empresa tradicional, passam a partilhar com as escolas a
responsabilidade pela educação.
A formação da categoria de estudante-trabalhador
é indissociável da união do ensino com o trabalho produtivo.
É até comum encontrarmos literatura a respeito deste ponto
enfatizando a necessidade da quebra do atual caráter abstrato
dos conhecimentos escolares, meramente heurísticos para o
estudante. Contudo, o aspecto mais notável no MST, referente
a esse tópico, encontra-se em seu caráter democrático e
na inflexão que ocorre ao ser aplicado no sentido de (des)
alienar o trabalho pedagógico realizado pela escola. Não
simplesmente por colocar a escola em maior contato com
a realidade, mas, sobretudo, pelo fato de que as crianças
e os jovens são retirados de sua condição de infantes, de
simulacros de adultos, condição esta que coloca a tutela
dos adultos e autoridades como imprescindível. A união do
trabalho com a educação demanda uma integração plena das
299
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

crianças e jovens na vida social desde a mais tenra idade


e, naturalmente, esta integração deve estar presidida pela
sua dimensão democrática. Deste modo, a democracia é
aprendida não apenas teoricamente, mas vivenciada como
práxis social na escola, na medida em que esta escola integra
orgânica e democraticamente as instâncias decisivas da vida
social, a produção, o assentamento e a comunidade.
Neste ponto cabe ressaltar, ainda, uma
determinante que consideramos como inovação, ou que
ao menos está colocada com nova ênfase pelo MST, mas
que também se encontra presente em outros setores do
movimento popular na América Latina como, por exemplo,
em certas fábricas recuperadas18 que se encontram sob
a gestão dos trabalhadores. Esta determinante consiste
em que a união da educação com o trabalho produtivo
ou a instauração da politecnia caminha pari passu com
o estabelecimento de processos de democratização das
relações de produção nos locais de trabalho, e no caso do
MST também na gestão de suas escolas.
Embora a união do trabalho com a educação,
ao menos como fato embrionário, possa ser praticada até
certo ponto independentemente da democratização das
relações de produção, somente com a democratização destas
relações esse princípio pedagógico poderá realizar-se em
sua integralidade.
A democratização radical das relações de
produção, que de fato implica a emergência do socialismo,
significa a liquidação das relações hierárquicas que, sob
a hegemonia do capital, dominam todas as atividades
humanas, e sua substituição por relações democráticas. In
extremis, isto significa a liquidação da produção fetichista
de mercadorias e do Estado, e sua substituição por uma
universal associação dos produtores associados.
300
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A escola capitalista é um sistema de alienação.


É um sistema que mantém as crianças, os jovens e também
os adultos numa espécie de redoma, completamente
impotentes e isolados diante de dois eixos fundamentais
da vida social: a vida da polis (a política) e o mundo do
trabalho, da produção.
O estudante-trabalhador do MST, mesmo em
sua incipiência e experimentalismo, é um bom exemplo
de como é possível articular o trabalho com o ensino, de
como é possível integrar a criança, o jovem e o adulto
às atividades determinantes da vida social, às atividades
da polis na expressão clássica, em suas duas esferas mais
determinantes: da geopolítica e da produção.
Em suma, o trabalho junto ao ensino para
a concepção hegemônica é importante enquanto uma
forma de qualificar, capacitar os indivíduos para as
novas exigências do mercado de trabalho, aumentar a
produtividade e gerar riquezas. Ao mesmo tempo, é um
meio de disciplinar e treinar os trabalhadores para que
estes se adequarem à hierarquia e à divisão do trabalho.
É uma educação para o trabalho e não pelo trabalho.
Para a concepção contra-hegemônica, o
trabalho é um princípio educativo, no sentido de
proporcionar aos sujeitos uma formação integral. Essa
formação integral significa elevar os sujeitos da condição
de executores à de dirigentes, ou seja, num processo
de integração entre as funções manuais, técnicas e de
direção ou intelectuais. Como aponta Gramsci (1970),
a integração dessas funções acena para a possibilidade
de recomposição do humanismo. Gramsci sintetiza esse
novo humanismo na formulação de que o intelectual
renovado deve ser ao mesmo tempo dirigente, criador,
educador e especialista.
301
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Notas

Na Venezuela, por exemplo, fala-se em socialismo do século XXI e


1

este conceito está sendo divulgado por vários autores.


Essa tese foi, posteriormente, mais bem explorada, em outra clave
2

teórica, por Michel Foucault.


Apresentaremos, posteriormente, algumas dessas interpretações
3

quando discutirmos as teses de Pistrak.


A esse respeito ver VIEITEZ, C. G., DAL RI, N. M. Educação e
4

organizações democráticas. In: DAL RI, N. M., MARRACH, S. A.


Desafios da educação do fim do século, p. 15-16.
Para saber mais sobre o trabalho associado no MST, bem como o
5

funcionamento do seu Sistema Cooperativista e a ligação da educação


com a produção, ver Dal Ri e Vieitez (2008).
A respeito da pedagogia da alternância ver Costa (1999).
6

Aluno (Vanderlei) do IEJC, coordenador de Núcleo de Base e


7

Coordenador da Coordenação dos Núcleos de Base, em entrevista


realizada em 2001.
Acompanhante de turma (ex-aluno do IEJC que orienta uma turma
8

de estudantes), em entrevista realizada em 2001.


Aluno (Jonas) da ECC com 10 anos de idade, coordenador da equipe
9

pedagógica e comunicação da cooperativa das crianças em entrevista


realizada em 2002.
10
Aluna (Misraeli) da ECC com 10 anos de idade, secretária da equipe
de serviços gerais da cooperativa das crianças em entrevista realizada
em 2002.
11
Professora (Iraci) da ECC, de 1ª. a 4ª. séries, em entrevista realizada
em 2002.
12
Aluna (Andréia) da ECC de 11 anos de idade, coordenadora geral, em
entrevista realizada em 2002.
13
Aluna (Misraeli) da ECC, 10 anos, secretária da equipe de limpeza.

302
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Aluno (Jonas) da ECC, 9 anos, coordenador da equipe pedagógica e


14

comunicações.
Aluno (Alex) da ECC, 11 anos, coordenador da equipe de limpeza.
15

Pai (Celso) de aluno da ECC em entrevista realizada em 2002.


16

Mãe (Elaine) de aluno da ECC em entrevista realizada em 2002.


17

Como, por exemplo, a empresa recuperada argentina denominada


18

Cooperativa FaSimPat – Zanón, localizada na cidade de Neuquén/


Argentina.

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305
Considerações sobre a
(des)politização do debate
educacional brasileiro

Eduardo Magrone

É tendência geral de todos os homens um perpétuo


e irrequieto desejo de poder, que cessa apenas com
a morte. (Thomas Hobbes, Leviatã)

No Brasil, não é recente a opinião de que soluções


eficazes para os mais diversos problemas sociais dependeriam
muito mais da mobilização dos agentes sociais do que do
Estado. À esquerda ou à direita do espectro político nacional,
podem-se observar, ainda hoje, pontos de vista que localizam,
no setor público, ou o locus da inoperância administrativa, ou
o espaço de uma completa subsunção aos imperativos do
capital. Curiosamente, em ambos os casos, o resultado, em
termos políticos, é praticamente o mesmo: todos os espaços
de mediação política dos interesses sociais conflitantes
são renegados em favor ou da potência reformadora da
sociedade civil organizada, ou da “inquestionável” eficiência
dos agentes econômicos do livre mercado. A este respeito,
não é de hoje que a prática dos movimentos sociais, não
raras vezes, consagrou a sociedade civil como um espaço de
afirmação de interesses puros, egoístas e corporativos, com
pouca ou nenhuma comunicação entre si. Por conseguinte,
as ideias de um projeto político coletivo, de contrato social e
junqueira&marin editores 307
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de democracia foram frequentemente consideradas questões


menores. Em nosso caso, isto se deu não tanto pela crise geral
dessas ideias, mas sim pela recorrente insignificância atribuída
a elas no âmbito de boa parte dos movimentos sociais que
influenciaram o debate público dos problemas nacionais no
período que se seguiu à redemocratização do País.
Paralelamente a certa negligência em relação à
questão da dimensão ética do Estado – que, entre outros
resultados, promoveu frequentemente a despolitização do
debate público, ao mesmo tempo em que, não raras vezes,
conseguiu produzir uma hiper-ideologização dele –, percebe-
se um crescente desassossego quanto às evidências da
imposição de uma concepção hegemônica que visivelmente
subestima o papel do Estado e da política. Com efeito,
em um mundo de capitais de movimento livre e cobiçoso,
assiste-se a uma fragmentação e diversificação da vida social
sem precedentes. Assim, valores e opiniões solidamente
estabelecidos são bruscamente deslocados; a saturação
de informações e a velocidade de sua circulação alteram
profundamente a organização e a função dos saberes; grupos
sociais, tradicionalmente estabilizados em suas posições
hierárquicas, são repentinamente substituídos por outros
grupos ascendentes em um movimento caótico de circulação
das elites; instituições políticas nacionais e locais vêem a
sua legitimidade rapidamente corroída e a reconfiguração
do mundo do trabalho altera radicalmente o imaginário e
a sociabilidade que asseguraram a identidade e a coesão de
muitas gerações anteriores. Tudo isso faz com que, por vezes,
a ideia antes tão cultivada de uma “sociedade contra o Estado”
pareça imprópria, promovendo assim um conservador apego
às nostálgicas conquistas do Estado Providência. É, portanto,
nessa tensão entre a valorização unilateral dos movimentos
sociais e o “horror econômico” de um ordenamento social
308
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

à margem do Estado que o projeto democrático brasileiro


encontra-se hoje bloqueado.
É Marco Aurélio Nogueira quem melhor traduz a
concepção que orienta as relações entre o projeto democrático
e a sociedade civil na atual conjuntura política nacional:

Não é difícil constatar que estamos hoje sedados


por uma sedução: a de que, diante da “falência”
da política, da falta de desprendimento e da
inoperância dos políticos, tudo melhoraria se
jogássemos as fichas na ativação da pureza
associativa dos movimentos sociais e das formas
mais espontâneas ou “naturais” de expressão da
vida comunitária. O ativismo civil funcionaria,
assim, como uma espécie de fonte geradora de
energia com a qual se neutralizariam as maldades
do sistema político. Por detrás de tudo, uma
visão dicotômica das relações entre Estado
e sociedade civil que, em vez de serem vistas
como estruturadas por uma dialética de unidade
e distinção, como diria, dentre outros, Gramsci,
ganhariam a imagem de uma disjunção, de uma
separação, de uma ausência de comunicação.
Sataniza-se o espaço político para dar livre curso
a uma hipotética natureza virtuosa da sociedade
civil. (NOGUEIRA, 2004, p. 102)

É o mesmo autor que também adverte para


os riscos de um diagnóstico que recorrentemente aponta
para uma crise que “piora sempre mais”. Não é raro que,
em denúncia da mercantilização da vida social, assiste-se
ao crescimento da influência de análises que remarcam a
visão de que não há saída para a atual crise. Nesta chave de
309
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

entendimento, responsabilizam-se governos, classes sociais,


grandes interesses ou mega-tendências; acumulam-se dados
para demonstrar a perversidade da ordem atual e denuncia-
se o caráter regressivo do processo em curso. A ideia de
uma crise letal em sua profundidade e extensão, cujo caráter
unidimensional e totalitário cancelaria toda possibilidade
de sua superação, tem promovido posições francamente
conservadoras no interior do campo democrático. Em
consequência, semelhante posição costuma negligenciar
as novas possibilidades oferecidas pelo momento atual no
que respeita à ampliação da autodeterminação, da liberdade
e da criatividade, antes confinadas aos estreitos limites das
tradições locais ou de polarizações ideológicas conjunturais.
Em um contexto marcado pelo esgotamento das
energias utópicas e, portanto, avesso a rupturas revolucionárias,
a alternativa mais pragmática costuma aparecer na forma
de um apego às conquistas de um Estado protetor, cujo
conteúdo ético estaria reduzido à capacidade de assegurar o
atendimento dos interesses setoriais de uma ordem agonizante.
Como antídoto ao capitalismo global, não é raro assistir ao
cortejo de soluções cuja natureza está profundamente marcada
por uma forte preocupação em preservar conquistas ou
recuperar as tradições perdidas em busca de paz e tranqüilidade
em um mundo aparentemente enlouquecido. Em suma, as
razões do ultraliberalismo caboclo, a estadolatria das camadas
funcionárias da sociedade e a lógica sociólatra, que anima
muitos críticos da globalização, têm em comum o fato de
promover uma conjuntura onde os interesses particulares
venham a prevalecer sobre os valores gerais (exatamente os
da cidadania).
Ainda nessa linha, seria um grave lapso esquecer
que um insidioso comunitarismo de esquerda, com forte
influência católica, não tem hesitado em equacionar as causas
310
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

do declínio moral da sociedade brasileira ao desenvolvimento


econômico, à política institucional e ao excesso de funções
reguladoras do Estado. Inspirado, ao que parece, por uma
ética da convicção de natureza místico-religiosa, que não
costuma fazer concessão alguma aos institutos de mediação
política, os comunitaristas de esquerda têm por hábito, como
resposta à crise, realçar as virtudes cívicas de expedientes
autoritários e paternalistas que, a seu ver, seriam capazes de
resgatar as boas tradições da sociedade. Esta, então, poderia
ser assim preservada de uma abertura nociva ao movimento
mais amplo de transformações em escala global. Nesta
chave, os direitos básicos do indivíduo e as instituições
que deveriam assegurá-los costumam ser silenciosamente
relegados em favor do sentimento de pertencimento à família,
à comunidade e das virtudes regeneradoras do capital social.
De tudo o que foi dito até agora, fica mais claro
que “[...] em um cenário no qual Estado e Sociedade civil
são mundos separados, torna-se bastante improvável a
afirmação política da sociedade civil, isto é, a afirmação
de novas hegemonias” (NOGUEIRA, 2004, p. 108). Com
efeito, é o vazio de perspectivas hegemônicas, robustecido
após as frustrações decorrentes das primeiras experiências
de governos populares no Brasil e em outras nações Latino
Americanas, que se apresenta hoje como o resultado mais
remarcável da despolitização da esfera pública, que, de
fato, nunca será verdadeiramente pública enquanto estiver
colonizada por interesses econômico-corporativos em seu
estado bruto.
É neste contexto que a educação escolar aparece
como o escoadouro das ilusões regeneradas. No século
XVII, Gottfried Wilhelm Leibniz, expressando todo o
otimismo do iluminismo nascente, dizia que: “A educação
pode tudo: ela faz dançar os ursos”. No Brasil do século
311
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

XXI, tendo sido interditada a possibilidade de surgimento


de novas hegemonias, a sociedade parece hoje resgatar sem
reservas um otimismo pedagógico digno dos tempos da Belle
Époque. Muitos parecem querer acreditar nos poderes quase
ilimitados das virtudes socialmente regeneradoras da ação
pedagógica escolar. Em rompantes de civismo, intelectuais,
empresários e até mesmo representantes do mundo pop não
hesitam proclamar a sua profissão de fé na educação escolar
reformada.
Bem entendido, não se está aqui fazendo uma
crítica literal às políticas que visam melhorar o acesso, a
permanência e o fluxo educacional do Ensino Básico por
meio de um redirecionamento dos investimentos públicos
e do gerenciamento eficaz da aprendizagem no interior das
redes públicas de ensino. Há muito a fazer nesse sentido de
modo a aprofundar o processo inconcluso de democratização
do País. É para a dimensão acrítica dos apelos mobilizadores
em favor da educação escolar que se deve dirigir a atenção.
A educação escolar não pode reinventar o mundo. Parece
óbvio, mas, não raras vezes, espera-se da transformação dos
sistemas educacionais o cancelamento de contradições sociais
cuja natureza simplesmente não se reduz a um eventual déficit
de escolarização dos cidadãos.
A reflexão mais radical das Ciências Sociais sobre o
processo de sociabilidade capitalista parece ter sido esquecida.
Tudo se passa como se o mito de uma solução educacional
para os problemas sociais nunca tivesse sido submetido a uma
crítica. Que ninguém se iluda quanto à capacidade de uma
sociedade tão desigual como a nossa fazer ver e fazer crer que
as divisões no seu interior nunca apareçam como resultado
das relações de força que asseguram a sua funcionalidade
sistêmica. Por isso, o afã de alguns pensadores educacionais
brasileiros em buscar a formação do homem integral no
312
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

interior das unidades escolares deve ser visto como um sinal


de alerta para a reflexão educacional em tempos de destopia.
Para melhor esclarecer, vejamos um caso concreto do que,
na falta de outra expressão, poder-se-ia chamar “proudhonismo
educacional”. Remontemos ao período que antecedeu a
elaboração da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (a atual Lei 9.394 de 20 de Dezembro de 1996). Este
retorno ao passado recente traz algumas vantagens analíticas.
Em primeiro lugar, o debate ainda ecoa na atualidade. Além
disso, a distância temporal pode neutralizar a influência
nem sempre positiva do calor circunstancial das discussões.
Também cabe ressaltar que os seus protagonistas estão aí
para reafirmar ou revisar as suas posições. E, mais do que
tudo, a racionalidade de muitas posições então assumidas
permanece ainda viva como exemplo paradigmático do viés
analítico que se pretende criticar.

O debate sobre o sentido e os objetivos do


ensino médio

No período que antecedeu a elaboração da nova


LDB, muitos educadores tentaram formular objetivos mais
claramente definidos para o Ensino Médio. Durante este
período, em função de um contexto marcado pela total falta
de identidade didático-pedagógica deste grau de ensino, pela
histórica dualidade estrutural (ensino propedêutico/ensino
técnico-profissional) do Ensino Médio brasileiro e pelo
advento da mudança na base técnica da produção, operada em
escala mundial, as discussões convergiram para a necessidade
de definir a natureza das relações entre o Ensino Médio e o
mundo do trabalho. Nestas condições, o conceito gramsciano
de trabalho como princípio educativo mereceu destacada
atenção dos educadores.
313
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Para o entendimento correto do conceito de


trabalho como princípio educativo é necessário compreender
as razões da importância que Gramsci conferia à emergência
da indústria moderna em sociedades baseadas na produção
agrária, assim como a articulação que ele estabelece entre
o desenvolvimento de tal base industrial e o processo
educacional.
A experiência contrastante que representou a
passagem da rural, pobre e atrasada ilha da Sardenha para a
urbana, industrial e desenvolvida cidade de Turim marcou
profundamente a vida e a obra de Gramsci. A valorização
da vida urbana e do trabalho industrial em detrimento da
estagnação histórica e das duríssimas condições de vida
no campo contribuiu decisivamente para que ele visse no
industrialismo a base para uma nova civilização. Para Gramsci,
somente a indústria moderna era capaz de proporcionar a base
técnica necessária para um tipo de desenvolvimento moral
e cultural que unificasse a humanidade, de modo que não
houvesse mais a divisão entre uns que permanecem submersos
em um obscurantismo pré-industrial e outros que, a exemplo
dos intelectuais italianos dos cafés, permanecem embrenhados
numa ilusão de liberdade individual (MANACORDA, 1991).
A confiança de Gramsci nas potencialidades
progressistas do industrialismo pode ser percebida na seguinte
passagem do caderno nº 22, intitulado Americanismo e
Fordismo:

A história do industrialismo sempre foi (e hoje o


é de forma mais acentuada e rigorosa) uma luta
contínua contra o elemento “animalidade” do
homem, um processo ininterrupto, muitas vezes
doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos
(naturais, isto é, animalescos e primitivos) a
314
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

sempre novos, complexos e rígidos hábitos e


normas de ordem, exatidão precisão, que tornem
possível as formas sempre mais complexas de vida
coletiva, que são a conseqüência necessária do
desenvolvimento do industrialismo. (GRAMSCI,
1989, p. 393)

Sem dúvida, Gramsci via no trabalho industrial


a negação daquele tipo de trabalho que produz somente
a subsistência individual sem jamais gerar uma produção
excedente ou sobretrabalho que ele considerava como sendo
uma riqueza universal e a “base objetiva e necessária para a
construção do novo homem culturalmente desenvolvido e
potencialmente socialista” (NOSELLA, 1991, p. 138).
Além disso, Gramsci tinha plena consciência de
que o trabalho industrial possuía uma dimensão histórica
que ultrapassava o modo de produção capitalista, ou seja, as
formas americanistas e fordistas que revestiam o trabalho
industrial de sua época eram historicamente limitadas e
deviam ser superadas, de modo que o trabalho industrial
pudesse se constituir na base universal educativa do novo
homem socialista (NOSELLA, 1991). Para indicar os limites
histórico-formativos do trabalho industrial de tipo americano,
Gramsci refere-se às iniciativas proibicionistas dos industriais
americanos como Ford, nos seguintes termos:

As iniciativas “puritanas” só têm o objetivo de


conservar, fora do trabalho, um determinado
equilíbrio psicofísico que impeça o colapso
fisiológico do trabalhador, premido pelo novo
método de produção. Este equilíbrio só pode ser
externo e mecânico, mas poderá tornar-se interno
se for proposto por uma nova forma de sociedade,
315
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

com meios apropriados e originais. (GRAMSCI,


1989, p. 397)

Para Gramsci, as relações de poder do trabalho


industrial são historicamente superáveis, mas a sua essência
produtiva transcende o âmbito das relações de produção
capitalistas e constitui-se na base indispensável para o
estabelecimento de novos princípios de organização social,
sob os quais a interioridade da disciplina, a criatividade e a
autonomia dos trabalhadores poderão ter lugar.
De fato, Gramsci percebia o efeito devastador
do trabalho industrial sobre os alicerces da tradicional
sociedade italiana. Porém, aquilo que mais chamava a sua
atenção eram os efeitos desta nova modalidade de trabalho
sobre a formação humana. A racionalidade, as atividades,
o ritmo, os valores e as normas do trabalho industrial
modelavam vagarosa, inelutável e sutilmente os homens
e as instituições sociais. Penetrando em todos os espaços
públicos e privados, o trabalho industrial foi capaz de
impor novos princípios, hábitos, habilidades, necessidades
e sonhos aos homens. Até o próprio Estado, em nível das
suas relações de poder, teve que se adaptar às determinações
deste novo tipo de trabalho. Se instituição alguma era
invulnerável aos efeitos modeladores do trabalho industrial,
naturalmente, a instituição escolar não poderia permanecer
impermeável a eles.
O avanço do industrialismo faria com que o
currículo, a estrutura, a identidade didático-pedagógica,
enfim, o próprio princípio orientador da escola tradicional
entrasse em crise. Nas palavras de Gramsci:

A divisão fundamental da escola em clássica e


profissional era um esquema racional: a escola
316
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

profissional destinava-se às classes instrumentais,


ao passo que a clássica destinava-se às classes
dominantes e aos intelectuais. O desenvolvimento
da base industrial, tanto na cidade como no
campo, provocava uma crescente necessidade
do novo tipo de intelectual urbano: desenvolveu-
se, ao lado da escola clássica, a escola técnica
(profissional mas não manual), o que colocou
em discussão o próprio princípio da orientação
concreta de cultura geral, da orientação humanista
da cultura geral fundada sobre a tradição greco-
romana. (GRAMSCI, 1982, p. 118)

O desenvolvimento acelerado da base industrial


acabou por destruir o princípio educativo tradicional cuja
capacidade formativa era tributária do prestígio indiscutível
do humanismo clássico. Como diz Gramsci:

Na velha escola, o estudo gramatical das línguas


latina e grega, unido ao estudo das literaturas e
histórias políticas respectivas, era um princípio
educativo na medida em que o ideal humanista,
que se personifica em Atenas e Roma, era
difundido em toda a sociedade, era um elemento
essencial da vida e da cultura nacionais... Não se
aprendia o latim e o grego para saber falar estas
línguas, para servir de camareiro, de intérprete
ou de correspondente comercial. Aprendia-se
a fim de conhecer diretamente a civilização dos
dois povos, pressuposto necessário da civilização
moderna, isto é, a fim de ser e de conhecer
conscientemente a si mesmo. (GRAMSCI, 1982,
p. 133)
317
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Como resposta à crise da velha escola e do


princípio educativo a ela correspondente, Gramsci propõe
uma escola unitária, de cultura geral, humanista, formativa,
mas que consiga promover o desenvolvimento equilibrado
da capacidade de trabalhar manualmente e da capacidade
de trabalhar intelectualmente (GRAMSCI, 1982). A
escola unitária do trabalho não se confunde com a escola
profissionalizante, pois ela é formativa, isto é, não está
preocupada em treinar o jovem para o exercício de um ofício
no mercado das profissões, mas sim em lhe fornecer uma
visão geral e superior do desenvolvimento histórico das leis
fundamentais da ciência e da técnica. A profissionalização
seria um objetivo colocado para a escola que segue a unitária,
a qual, sem renunciar à função formativa, deveria buscar
também o treinamento do jovem para o exercício de uma
profissão intelectual ou prática imediata. Por conseguinte, a
escola unitária abrangeria o período hoje representado pelas
escolas primária e média, ficando a escola profissionalizante
reservada aos anos de estudos universitários ou de academia
(NOSELLA, 1991).
Naturalmente que o princípio educativo de tal
escola não poderá ter por base a tradição cultural-escolástica
do humanismo clássico, mas sim a prática produtiva do mundo
do trabalho industrial. Porém, o trabalho industrial constitui
apenas a condição material de possibilidade para a mudança
do princípio educativo, pois a ideia do trabalho como o
moderno princípio educativo universal está profundamente
ligada ao projeto gramsciano de unificar definitivamente
o mundo do trabalho com o mundo da cultura em uma
“sociedade onde indústria e cultura unitariamente concorrem
para a formação do novo homem coletivo e, em suma, para
a unificação cultural do gênero humano” (MANACORDA,
1991, p. 112). Como diz Gramsci:
318
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O advento da escola unitária significa o início


de novas relações entre trabalho intelectual e
trabalho industrial não apenas na escola, mas em
toda a vida social. O princípio unitário, por isso,
refletir-se-á em todos os organismos de cultura,
transformando-os e emprestando-lhes um novo
conteúdo. (GRAMSCI, 1982, p. 125)

Portanto, a realização efetiva do projeto


gramsciano de uma escola unitária pressupõe, evidentemente,
o estabelecimento de relações sociais gerais também unitárias.
Se, no plano conceitual, a ideia de trabalho como
princípio educativo influenciou os debates sobre o sentido do
ensino médio, em nível empírico, as mudanças verificadas na
base técnica da produção e seus impactos sobre a educação
também influenciaram os referidos debates. As repercussões
sobre a educação decorrentes da adoção das novas tecnologias
foram analisadas a partir das seguintes considerações:
a) Em função das crises cíclicas no processo de
acumulação, a economia capitalista foi obrigada a operar, em
escala mundial, uma reestruturação no processo de trabalho.
Tal reestruturação envolveu a adoção de novas tecnologias
que alteraram a base técnica da produção. Paralelamente,
foram também introduzidas novas formas de gerenciamento
da produção cujas origens se encontram no modelo japonês
de gestão do trabalho.
b) Em função das modificações acima referidas,
os modelos taylorista e fordista de organização do trabalho —
baseados na produção em massa de mercadorias padronizadas,
em formas petrificadas de organização do trabalho (linha de
montagem) e na divisão acentuada do processo produtivo
em postos de trabalho desqualificados — cedem cada vez
mais espaço a um modelo baseado na produção flexível de
319
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mercadorias diferenciadas no qual a linha de produção é


rapidamente cambiável, de modo que as demandas instáveis
de mercados cada vez mais exigentes possam ser prontamente
atendidas. Assim, a chamada produção pós-fordista estaria a
exigir um trabalhador de nível cognitivamente mais elevado.
c) Em consequência, o perfil do trabalhador
fordista e taylorista, caracterizado pela especialização de
movimentos, foi substituído por novas características
atitudinais e cognitivas. Nas unidades produtivas em
processo acelerado de automação, as máquinas assumem
progressivamente a produção, e o homem recua para o
controle da máquina. Desse modo, está-se a exigir do
trabalhador a capacidade de concentrar a sua atenção em
várias atividades de supervisão e manutenção, em contraste
com as rotineiras operações na linha de produção fordista.
Além disso, as situações cambiantes, a integração de atividades
e o conteúdo mais complexo das tarefas também estariam
a exigir um trabalhador com novas qualificações sócio-
comunicativas e capacidades técnico-abstratas. Em algumas
visões mais ufanistas, prevê-se o fim da divisão técnica do
trabalho, isto é, a divisão entre planejamento e execução.
d) Por fim, em função das novas demandas
de qualificação para os trabalhadores manuais, o sistema
educacional, a partir de agora, estaria instado a transformar-se,
de modo a formar um trabalhador de novo tipo, capaz de pensar
e agir num horizonte muito mais amplo, de interpretar dados
eletrônicos, de elevar sua capacidade formal de pensar, enfim, de
adequar-se às novas exigências das novas unidades produtivas.
A partir de tais considerações, alguns intelectuais
da educação pretenderam definir o significado e os objetivos
do Ensino Médio com vistas a influenciar a formulação do
anteprojeto da então nova LDB1. Algumas das principais
contribuições neste sentido foram proporcionadas por
320
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Dermerval Saviani, Paolo Nosella, Acácia Kuenzer, Lucília


de Souza Machado e Gaudêncio Frigotto.
Segundo Saviani (1988), a dificuldade para
definir o lugar do Ensino Médio no interior de um sistema
de ensino decorre da insuficiente compreensão do modo
como se articula o problema do ensino com a questão do
trabalho. Seguindo esta argumentação, o Ensino Fundamental
estaria assentado no conceito e no fato do trabalho, isto é, a
problemática do trabalho fundamentaria as disciplinas básicas
do currículo da Escola Elementar. Como dizia Gramsci: “O
conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática)
é o princípio educativo imanente à escola elementar, já que
a ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e
identificada na ordem natural pelo trabalho” (GRAMSCI,
1982, 130). O autor adverte ainda que, na escola elementar,
o trabalho age como determinante do conteúdo curricular
em termos implícitos, isto é, sendo o trabalho uma exigência
introduzida no próprio modo como a sociedade se organizou,
o domínio dos conteúdos curriculares passa a ser uma
exigência para a simples participação na vida social, e não
somente para se inserir no processo produtivo.
Em nível de Ensino Médio, tratar-se-ia de
explicitar como o conhecimento se relaciona com o trabalho.
O Ensino Médio, ao lidar com um nível mais elevado de
sistematização do saber, não pode considerar o fenômeno do
trabalho como determinante dos conteúdos curriculares em
termos implícitos. Assim, o Ensino Médio deve “explicitar
como a Ciência, potência espiritual, se converte em potência
material no interior do processo produtivo, ou seja, no interior
do trabalho material” (SAVIANI, 1988, 85). A explicitação
do modo como o saber se articula com o processo produtivo
não pode se realizar apenas no plano teórico, mas também
no plano prático, portanto:
321
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

[...] o Ensino de 2º Grau envolverá o recurso


às oficinas nas quais os alunos manipulam os
processos básicos que caracterizam o trabalho
produtivo na sociedade atual; mas, não se trata de
reproduzir na escola a especialização que ocorre no
mundo da produção. O horizonte que deve nortear
a organização do 2º Grau é o de propiciar aos
alunos o domínio dos fundamentos das técnicas
diversificadas, utilizadas na produção, e não o mero
adestramento em determinada técnica produtiva
[...]. Nessa perspectiva, a educação escolar de 2º
Grau tratará de se concentrar nas modalidades
fundamentais que dão base à multiplicidade de
processos e técnicas de produção existentes.
(SAVIANI, 1988, p. 87)

De outra parte, Paolo Nosella procurou definir o


sentido do Ensino Médio a partir do conceito gramsciano de
escola unitária. Segundo ele, quando se afirma que o Ensino
Fundamental objetiva preparar os indivíduos para a sua
inserção na vida social, ao passo que o Ensino Médio visa
preparar a sua clientela para o ingresso no mundo do trabalho,
já foi rompido o princípio da unitariedade. Portanto, o Ensino
Médio representaria a fase final da escola unitária, ou seja,
a escola elementar e a escola média constituiriam a escola-
do-trabalho, a qual teria um caráter formativo, em contraste
com a escola superior que, sem renunciar a formação geral,
também proporcionaria o treinamento necessário para o
desempenho de funções específicas.
Seguindo os passos de Gramsci, Nosella afirmou
que a especificidade do Ensino Médio não se encontraria no
princípio educativo, pois o trabalho é o princípio educativo
comum a ambos os graus, nem mesmo na terminalidade
322
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

(profissionalização), pois os dois graus são formativos. A


diferença entre o Ensino Fundamental e o Médio estaria
no método didático, uma vez que, no Ensino Médio, a
aprendizagem se daria menos pela ação pedagógica do
professor e mais pelo esforço espontâneo e autônomo do
aluno. A diferença de método didático justificar-se-ia pelo fato
de a escola média ser a ante-sala da futura especialização que,
por sua vez, poderá ocorrer na Universidade ou no trabalho,
mas que não poderá prescindir da autonomia intelectual
e moral, do senso de responsabilidade, da criatividade e
de outros predicados que não devem ser monopólio da
Universidade ou serem deixados ao acaso da vida prática
(GRAMSCI, 1982).
Em acordo com isso, Nosella sugeriu que o artigo
da Lei de Diretrizes e Bases concernente aos objetivos do
ensino médio deveria ter a seguinte redação:

O ensino de 2º Grau constitui a etapa conclusiva


da escola unitária e é direito e obrigação de todos.
Visa a aprofundar o entendimento das relações
entre os homens e destes com a natureza, através
de métodos didáticos que levem os jovens a estudar
e pensar de forma cada vez mais autônoma, livre,
independente, criativa e crítica. (NOSELLA, 1991,
p. 159)

Acácia Z. Kuenzer apresentou uma proposta


para o Ensino Médio a partir do conceito de trabalho como
princípio educativo. A autora considerava que o grande
problema do Ensino Médio brasileiro não era a escassez de
recursos destinados a este grau de ensino, mas a absoluta falta
de clareza acerca do que vem a ser uma escola de Ensino
Médio no Brasil (KUENZER, 1989).
323
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

A partir de investigações empíricas, Kuenzer


constatou que os trabalhadores reconhecem a escola como
um espaço de resistência ao processo de desqualificação
resultante da divisão social do trabalho. Também verificou
que os trabalhadores-estudantes reivindicavam uma escola
de Ensino Médio que os preparasse tanto para o ingresso
no mundo do trabalho, como para a continuidade dos
estudos em nível superior. A partir destas constatações, a
autora afirmava que a escola de Ensino Médio nem mesmo
atendia os interesses das classes dominantes e das camadas
médias, revelando a inadequação da proposta pedagógica
então vigente com as mudanças que ocorreram na sociedade
brasileira.
Segundo Kuenzer, a incorporação de ciência e
tecnologia pela moderna produção industrial desestabilizou
o velho princípio educativo humanista que se assentava em
uma divisão rígida entre funções instrumentais e intelectuais.
Na indústria moderna, “ciência e tecnologia passaram a
se imbricar de tal forma, que a teoria se faz operativa e as
atividades se tornam complexas, a ponto de já não mais ser
possível separar ciência e trabalho, teoria e prática, funções
intelectuais e funções instrumentais” (KUENZER, 1989,
p. 28). Assim, a modernidade estaria a exigir um novo tipo
de intelectual cujo exemplo encontrar-se-ia no técnico da
indústria que é simultaneamente um técnico e um dirigente,
possuidor de uma formação técnico-científica e histórico-
crítica (KUENZER, 1989).
Em consequência, o princípio educativo humanista
tradicional que exige a oferta de diversos tipos de Ensino
Médio, de modo que dirigentes e trabalhadores sejam
formados em escolas com objetivos distintos — escolas
de educação geral para aqueles que irão exercer funções
intelectuais; escolas técnico-profissionais para aqueles que
324
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

irão exercer funções instrumentais — entrou em crise e


deveria ser substituído. A nova escola de Ensino Médio terá
o trabalho como princípio educativo:

[...] Neste sentido, será geral, sem compreender, no


entanto, a cultura como saber enciclopédico, [...].
Pelo contrário, a educação geral será compreendida
como a apropriação dos princípios teórico-
metodológicos que permitirão compreender
e executar tarefas instrumentais, dominar as
diferentes formas de linguagem e situar, a si e ao
seu trabalho, em relação ao conjunto das relações
sociais das quais participe. (KUENZER, 1989,
p. 24)

Como decorrência deste novo princípio educativo,


a nova escola de segundo grau apresentará estrutura única,
não admitindo mais a dualidade estrutural que separa a escola
da cultura da escola do trabalho. Terá a politecnia como
conteúdo, uma vez que propiciará o resgate das mediações
entre o geral e o específico, sem cair na especialização
nem no academicismo. Adotará a dialética como método,
reunificando teoria e prática, saber e fazer, ciência e produção,
cultura e técnica, atividade intelectual e atividade manual.
Implantará a gestão democrática como síntese superadora
do autoritarismo e do espontaneísmo, substituindo a ação
autoritária pelo trabalho coletivo. Por fim, será dotada de
condições físicas adequadas, modernas e atualizadas.
Não obstante a autora reconhecer a impossibilidade
de superar a dualidade estrutural no Ensino Médio a partir
da escola, uma vez que tal dualidade é uma resultante da
divisão social e técnica do trabalho, ela admite, contudo, ser
necessário iniciar o processo que culminará nesta superação.
325
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Para tanto, garantir, a todos os trabalhadores, a posse de um


saber que lhes ajude a superar o aprendizado profissional
estreito que eles adquirem no trabalho constituir-se-á em um
passo importante (KUENZER, 1989).
Lucília de Souza Machado formulou uma
proposta para o Ensino Médio, baseada no conceito de
politecnia2. Após constatar a complexidade das questões que
envolvem o Ensino Médio, a autora faz a seguinte pergunta:
“Existem condições objetivas na realidade social que fazem
com que essa discussão [acerca da politecnia] seja posta?”
(MACHADO, 1991, p. 55). Respondendo afirmativamente,
destaca, a seguir, três necessidades objetivas que, segundo
ela, faziam com que a discussão sobre o ensino politécnico
devesse ser iniciada.
A revolução científico-técnica contemporânea era
apontada como a primeira necessidade. Segundo Machado, a
revolução científico-técnica não se reduzia a uma quantidade
de técnicas novas, introduzidas nas unidades produtivas, mas
seria “toda uma relação do homem com o trabalho, onde
a técnica entra numa nova etapa de seu desenvolvimento”
que se traduziria em modificações “no papel e no lugar do
homem na produção, no conteúdo do trabalho, no conteúdo
profissional, na esfera da gestão” (MACHADO, 1991, p. 56).
Em outras palavras, o mundo do trabalho, com o advento
das novas tecnologias, sofreu profundas transformações que
alteraram radicalmente a natureza das operações executadas,
simplificando funções operacionais, aumentando as tarefas
de planejamento, preparação e supervisão.
A outra necessidade relacionava-se à base técnica-
material da sociedade. No que respeita ao então estágio
de desenvolvimento tecnológico do Brasil, que exigências,
quanto ao conteúdo do ensino hoje oferecido, poderiam ser
colocadas pela sociedade? Como diz Machado:
326
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

[...] A tendência objetiva das transformações


produtivas requer uma mudança no conceito de
qualificação na direção da fusão das especialidades.
Há uma exigência de profissionais de perfil amplo,
uma transformação que ocorre também no setor
de serviços. (MACHADO, 1991, p. 57-58)

A terceira necessidade seria uma consequência


das duas últimas. Trata-se da necessidade de preparar os
indivíduos para as mudanças nas formas de organização
do trabalho, decorrentes da revolução científico-técnica,
“é a necessidade de desenvolver as faculdades da invenção
técnica, do espírito criador e da atividade empreendedora,
é a necessidade de propiciar a base que permita ao
indivíduo alcançar a sua autonomia para prosseguir o seu
desenvolvimento” (MACHADO, 1991, p. 58).
Em função das considerações anteriores,
Machado formulou uma proposta de estrutura unitária para
o curso de Ensino Médio. Tratava-se de uma estrutura que
compreenderia um curso de Ensino Médio de quatro anos
com dois ciclos, cada ciclo com dois anos. Nos dois ciclos, o
trabalho seria o critério fundamental para a interligação das
disciplinas, de modo que a tradicional divisão entre formação
geral e formação específica fosse superada.
No Primeiro Ciclo, todos os alunos teriam
uma formação politécnica geral. Nesta fase, abordar-se-
ia a tecnologia como fenômeno social, teórico e prático,
proporcionando, ao aluno, uma visão desreificada da ciência,
entendida como um processo em permanente mutação,
relacionada ao movimento histórico humano e não como um
acervo de conhecimentos cristalizados, sem relação com a vida.
No Segundo Ciclo, sem abrir mão da orientação
politécnica, ter-se-ia alguma diferenciação em função
327
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de grandes áreas da atividade econômica. Nesta fase, o


Politécnico Específico, os alunos envolver-se-iam diretamente
com o trabalho socialmente útil, relacionado aos ramos das
atividades econômicas escolhidos, de modo que pudessem
“descobrir o que se pode fazer no trabalho com o que se
aprende na escola. E... o que se pode fazer na escola, que não
é feito, com o que se aprende no trabalho” (MACHADO,
1991, p. 62).
Contudo, a autora reconhecia a existência de
circunstâncias que condicionam, limitam e restringem a
adoção do ensino politécnico. Entre estas, destaca o regime
social predominante na sociedade brasileira, baseado na
apropriação privada da produção social, que impede a escola
de incorporar a dimensão social do trabalho, pressuposta pelo
ensino politécnico. Além disso, o incipiente desenvolvimento
da economia nacional, o estado precário do sistema público
de ensino, a dependência tecnológica do país e outros
fatores fazem com que a politecnia seja apenas um caminho
que abre possibilidades, uma reivindicação, uma bandeira
(MACHADO, 1991).
Gaudêncio Frigotto também levantou alguns
aspectos relativos às mutações tecnológicas, a ampliação
das capacidades intelectuais da força de trabalho e suas
consequências para o Ensino Médio. O autor inicia,
resgatando sumariamente os principais momentos da
trajetória de subordinação das relações sociais de produção
ao capital, configurada pelas mudanças operadas na base
técnica da produção.
Assim, até a metade do século XVIII, a base
técnica da produção permitia ao capital somente uma
subordinação formal do trabalho, já que tanto o saber sobre
o trabalho como os instrumentos pertenciam ao trabalhador
que, até mesmo, podia definir o ritmo da produção.
328
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Por volta de 1760, a invenção do tear, da


máquina a vapor e do autômato revoluciona a base técnica
da produção. A partir daí, os conhecimentos científicos e
tecnológicos passam a ser continuamente apropriados pelo
capital, de modo que a subordinação formal do trabalho
torna-se subordinação real, viabilizada pela progressiva
divisão e organização do trabalho com vistas a intensificar
a produtividade do trabalhador. A partir da segunda metade
do século XIX, o advento da energia elétrica, petróleo,
aço, química e outros materiais configura uma nova etapa
do esforço empreendido pelo capital para subordinar a
força de trabalho no qual a força física é progressivamente
substituída pela força mecânica.
Na segunda metade do século XX, a base
técnica da produção é revolucionada em dimensões sem
precedentes. O aparecimento de novas formas de geração
e distribuição de energia, a introdução de tecnologias
com base microeletrônica nas unidades produtivas, o
surgimento de novos materiais a partir da biotecnologia
e outras inovações fazem com que o papel da força física
seja diminuído no processo produtivo na razão direta da
ampliação das capacidades intelectuais (FRIGOTTO, 1991).
Todas estas modificações repercutiram nos
planos econômico, político, cultural, ético e educacional.
No plano educacional e da formação profissional, segundo
Frigotto, haveria uma tendência no sentido de privilegiar uma
formação geral em detrimento de uma formação especial,
voltada para o adestramento em uma técnica específica.
Em outras palavras, haveria uma inadequação entre as
demandas de qualificação flexível para os trabalhadores,
ocasionadas pelas “mutações fantásticas da base técnica”,
e o seu adestramento em uma habilidade cognitivamente
vazia.
329
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Também Vanilda Paiva, ao realizar uma ampla


revisão da literatura internacional sobre qualificação
profissional, afirmou que:

Nos escritórios como nas fábricas observa-se


que não estamos mais diante de uma crescente
divisão do trabalho mas, ao contrário, de novas
possibilidades de integração de atividades e tarefas,
centralizando conteúdos heterogêneos num único
empregado [...]. Na verdade a qualificação precisou
se elevar dada a elevação da complexidade e maior
dificuldade apresentada pelas tarefas, exigindo
também um novo estilo de comportamento
quotidiano no trabalho: o trabalhador de escritório
na era da microeletrônica precisa de maior
velocidade de resposta, maior capacidade de
abstração, de concentração e de exatidão. (PAIVA,
1990, p. 104)

Diante de tais indicações, Frigotto afirma que


o então projeto da nova LDB constituiria um avanço, uma
vez que:

[...] explicita a concepção de um sistema nacional


unitário de educação, incorporando como
educação básica a escola de segundo grau. Situa a
profissionalização no patamar que as novas bases
técnicas apontam. Define, com clareza, as bases
financeiras e materiais indispensáveis e, sobretudo,
indica a necessidade do desenvolvimento crítico
das bases científicas, históricas e culturais, no
âmbito da escola básica. (FRIGOTTO, 1991, p.
141)
330
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

No entanto, ele advertia para os riscos de se pensar


a educação exclusivamente a partir do sistema produtivo, pois
as transformações, que aí se sucediam, representavam um
avanço do ponto de vista do capitalismo contemporâneo,
mas não alteraram o seu caráter de exploração e exclusão
(FRIGOTTO, 1991).
Como se pode perceber, de acordo com a visão
de boa parte dos autores referidos nos parágrafos anteriores,
a introdução das novas tecnologias nos modernos processos
produtivos estaria a exigir a formação de um novo trabalhador,
atitudinal e cognitivamente enriquecido. Em consequência,
estar-se-ia diante da necessidade de uma educação voltada
para a aprendizagem dos princípios científicos gerais que
subjazem à tecnologia moderna. Assim, a escola unitária
ou politécnica, que tem no trabalho o princípio educativo
fundamental, teria, na mudança na base técnica da produção,
a condição material de possibilidade para a sua implantação.
Esta linha de raciocínio que estabelece uma relação linear
entre novas tecnologias e educação foi objeto de algumas
críticas na época.
Ainda durante os debates sobre a Nova LDB,
Miguel Gonzalez Arroyo (1988) fez duras críticas aos
pressupostos das concepções de alguns educadores a respeito
das funções sociais e dos objetivos do Ensino Médio.
Segundo Arroyo, o primeiro pressuposto a ser revisto é o
que ele chama de a negatividade pedagógica do trabalho
concreto. Nesta visão, a fábrica e os processos de trabalho
estariam transferindo para a máquina o saber do operário.
Assim, os trabalhadores estariam sendo submetidos a um
processo crescente de desqualificação cujo resultado seria
o aprofundamento da divisão social e técnica do trabalho.
Diante disso, a escola de Ensino Médio estaria sendo chamada
a cumprir uma função milagrosa: unir aquilo que parece ser
331
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

inerente à tendência do trabalho nas modernas sociedades


capitalistas, ou seja, a divisão entre o saber e o fazer.
Em contrapartida, Arroyo propunha que se
ressaltasse a contradição inerente ao trabalho concreto,
inclusive capitalista, que, ao mesmo tempo, possui uma
positividade e uma negatividade pedagógicas. Nesse sentido,
tanto a tendência da divisão técnica e social do trabalho na
produção moderna de mutilar as habilidades do trabalhador,
como a percepção da tradição mais radical que considerava
o trabalho industrial educativo, porque superaria os limites
intelectuais e humanos, inerentes ao trabalho do campo e da
artesania, deveriam ser levadas em conta.
Outro pressuposto criticado por Arroyo dizia
respeito a uma aludida desqualificação da escola de Ensino
Médio que, em virtude dos resultados decorrentes da reforma
do ensino de 1971, teria acabado por se desvincular do
mundo do trabalho. Segundo Arroyo, a escola de Ensino
Médio nunca esteve tão vinculada ao mundo da produção.
A ideia de que a escola só está vinculada ao mundo do
trabalho, quando possui oficinas para os alunos mexerem nas
máquinas, com a lata, a madeira etc. é uma visão muito estreita
de vinculação, uma reminiscência da época da manufatura.
Na verdade, a filosofia da Lei 5692/71, não os detalhes da
profissionalização, teria penetrado de maneira irreversível
nas escolas de Ensino Médio. De acordo com a sua visão, os
vínculos reais entre a escola e o mundo da produção estariam
passando hoje pela base curricular do Ensino Médio, que
é constituída de conteúdos técnico-científicos de altíssima
qualidade e de altíssimo rigor. Assim, não somente a lógica
dos livros de ciências seria completamente diferente da lógica
dos livros didáticos de 10, 15 ou 20 anos atrás, como também
o rigor exigido na lógica mental do aluno assemelhar-se-ia
com o rigor científico da tradução matemática, inerente ao
332
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mundo da produção moderna. Em função disso, a proposta


intelectualista, própria de uma escola voltada para uma
sociedade tradicional, agrária, de funcionários públicos etc.
teria sido definitivamente afastada.
Por fim, Arroyo criticava a fantasia de uma escola
politécnica que se constituiria em uma ilha de excelência,
encarregada de formar o trabalhador integral, mas, cercada
pela divisão social do trabalho por todos os lados. Ele se
declarava partidário da escola politécnica, mas considerava
que o locus da qualificação não poderia ser deslocado das
relações sociais concretas para o interior da escola. Seguindo
a sua argumentação, a “visão negativa do mundo da produção
tem que ser revista e esse transladar da positividade para
uma agência externa ao mundo da produção é no mínimo
ingênuo” (ARROYO, 1988, p. 30). A crença de que a escola,
ao acrescentar um saber sobre os fundamentos da produção
moderna, irá preparar o futuro trabalhador ou o atual
trabalhador para enfrentar a luta política contra o capital e
resistir ao processo de desqualificação que vem da fábrica
não passa de uma ilusão decorrente da não superação da
concepção iluminista que ainda subsiste na consciência de
muitos educadores.
Tomaz Tadeu da Silva fez também várias objeções
à tendência de colocar as novas tecnologias no centro da
análise da relação entre educação e trabalho. A primeira
objeção dizia respeito ao fato de o grau de penetração das
novas tecnologias e dos novos modelos de gerenciamento
do trabalho no sistema produtivo brasileiro ser ainda
praticamente desconhecido, existindo inclusive indícios de
que, mesmo naquelas unidades produtivas mais suscetíveis
à adoção das novas tecnologias, a extensão da sua utilização
seria bastante limitada. Em outras palavras, a maioria dos
postos de trabalho pertencentes aos setores mais dinâmicos
333
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da economia brasileira e que estão submetidos às novas


tecnologias e às novas formas de organização do trabalho
indubitavelmente não constituíam o universo do trabalho
no Brasil (SILVA, 1993).
A segunda objeção referia-se à propensão dos
debates acerca das relações entre as novas tecnologias e a
educação de privilegiar os aspectos fisiológicos, conteudísticos
e técnicos das novas habilidades exigidas pelas mudanças no
processo de trabalho, em prejuízo do entendimento das
determinações sociais e políticas aí envolvidas. Ou seja, o
fato de os modernos processos de trabalho, ao contrário
dos tradicionais esquemas da fábrica fordista e taylorista,
ampliar o leque de aptidões exigidas do trabalhador manual,
não implica uma integração completa das atividades de
planejamento e execução no interior das unidades produtivas.
Por mais radicais que forem as transformações no conteúdo
do trabalho manual, a barreira social e política da separação
entre planejamento e execução, trabalho intelectual e trabalho
manual não será ultrapassada (SILVA, 1993).
A terceira objeção dizia respeito à validade
discutível do modelo então recorrentemente utilizado para
analisar as relações entre as novas tecnologias e a educação. A
ideia predominante era a de que o sistema educacional deveria
fornecer as categorias de trabalhadores, portadoras das
características cognitivas e atitudinais, exigidas pelo sistema
produtivo. Desse modo, mesmo quando uma relação linear
entre a educação e o mercado de trabalho era veementemente
rejeitada, reeditavam-se, em uma nova versão, as já tão
criticadas teorias técnico-funcionalistas e a teoria do capital
humano que fundamentaram o planejamento educacional
brasileiro dos anos setenta, pois se postulavam modificações
no sistema educacional, de modo que este se sintonizasse
com as novas exigências do sistema produtivo. O raciocínio
334
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

estava baseado em uma matriz conceitual que ligava escola e


produção através da demanda, independentemente do verniz
crítico que o revestisse (SILVA, 1993).
A quarta objeção referia-se à ausência quase
completa do conceito de classe social nas análises das
relações entre o sistema educacional e as mudanças na base
técnica da produção. Tal ausência talvez viesse a explicar a
centralidade, neste debate, das modificações de conteúdo
no polo manual do trabalho, introduzidas pelas novas
tecnologias, em detrimento da relação entre trabalho mental
e trabalho manual. Sem uma análise de classe, a atenção
analítica deslocar-se-ia das relações entre posições no interior
do processo de produção e do contexto das relações de
força mais amplas para as modificações absolutas, técnicas,
de conteúdo ou de natureza, introduzidas no âmbito do
trabalho manual pelas novas tecnologias e para sua suposta
positividade. Perder-se-ia de vista, portanto, o fato de que:

O trabalho manual não é manual por causa de


seu conteúdo, ou de suas características físicas ou
mentais ou fisiológicas, ou técnicas. O trabalho
manual é manual fundamentalmente por sua
relação com o trabalho mental. Nenhuma
modificação naquele conteúdo, por radical que
seja, terá o efeito de alterar esta relação. (SILVA,
1993, p. 7)

A última objeção dizia respeito ao fato de a


maioria das pesquisas sobre o impacto das novas tecnologias
enclausurarem-se no interior do processo de trabalho
e, desse modo, negligenciarem as relações mais amplas
estabelecidas entre a educação e o processo de produção
capitalista. Tal enfoque restritivo fazia com que tais estudos
335
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

concebessem a relação entre educação e produção como


sendo constituída exclusivamente pelo fato de a educação
produzir indivíduos específicos e distribuí-los pelos postos da
produção diferenciadamente. Enquanto que uma perspectiva
estrutural das referidas relações buscaria investigar o fato
mesmo da existência de uma instituição educacional separada
da produção que contribui decisivamente para a definição e
legitimação da divisão social do trabalho. Como diz Tomaz
T. da Silva:

A existência da escola como uma esfera de


aprendizagem separada da produção tem
correspondência direta com a quebra da
unidade entre concepção e execução efetuada
no contexto da produção. Pode-se ver a escola,
nesta perspectiva, como o resultado da migração
histórica para um outro local de uma função de
socialização e preparação que era parte integrante
da própria produção. Nessa migração histórica,
esta esfera separada, especializada, não apenas
fica identificada com trabalho mental, ela ajuda
a legitimar a separação entre trabalho mental e
manual, constitutiva das relações capitalistas de
produção. (SILVA, 1993, p. 17)

A crítica radical da forma escolar

O resgate do debate sobre o significado e os


objetivos do Ensino Médio, durante a elaboração da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394, tem a
virtude de ilustrar o fenômeno da despolitização do debate
educacional. Nesta chave, as relações de poder entre as classes
e as frações de classe aparecem, não raras vezes, como um
336
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

epifenômeno das relações estabelecidas entre sociedade e


educação. No caso presente, cabe apontar a impropriedade de
se centralizar a atenção analítica nos aspectos conteudísticos
e técnicos das novas habilidades exigidas pelas mudanças no
processo de trabalho, em detrimento do entendimento das
determinações políticas mais amplas aí envolvidas. Percebe-se
claramente, em muitas concepções acima, a força da crença
na ação pedagógica da escola que, ao expor os alunos a um
saber sobre os fundamentos da produção moderna, poderia
prepará-los para enfrentar a luta política contra o capital.
Não é esta a linha da tradição mais radical da
crítica social da educação escolar. Nela, a política, ou seja,
as relações de força e a sua institucionalização, assume um
lugar privilegiado no movimento de apropriação intelectual
das formas de sociabilidade capitalista. Marx, por exemplo,
criticava a tradição liberal pelo fato de esta excluir o espaço
do político da dimensão mais profunda da totalidade social.
Segundo ele, assim procedendo, os teóricos liberais estariam
removendo para a esfera privada todos os traços de servidão
que, no entanto, são constrangidos a constatar no âmbito da
sociedade burguesa. Somente assim, a relação de posse do
capitalista com respeito ao trabalhador assalariado não pode
ser percebida em seu significado político, ficando livre para
desenvolver-se sem embaraços ou impedimentos externos.
Nas palavras de Domenico Losurdo:

[...] segundo Marx, como se considera “vulgar”


a economia que limita o seu alcance à esfera
da circulação, também se considera “vulgar”
a democracia que constitui a esfera política
amputando-lhe arbitrariamente as condições
concretas de vida e as relações reais de poder que se
desenvolvem sobre tal base. A comunidade política
337
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

assim obtida é simplesmente a transfiguração


da esfera da circulação: nesse nível encontram-
se exclusivamente os compradores-vendedores
de mercadorias ou “cidadãos” sem ulterior
caracterização ou distinção, os quais escolhem
livremente este ou aquele produto político.
(LOSURDO, 1996, p. 38)

É este também o sentido que José Arthur


Giannotti imprime à sua crítica a certa concepção de ciência
que recusa romper com o sentido imediato da realidade:

[...] para todos nós que, além de estarmos


interessados no funcionamento do capital,
indagamos ainda as condições de seu vir a ser, que
portanto propomos uma concepção de Ciência
que investiga tanto o funcionamento quanto os
modos de constituição do fenômeno, a análise
do valor surge como a única capaz de emprestar
inteligibilidade às categorias com que o sistema
labora na sua superfície. Convém, entretanto, não
confundir essa análise de condições de existência,
essa crítica da Economia Política, que se resolve
numa crítica ao próprio modo capitalista de
produção, com uma análise de conjuntura, que
deve levar em consideração toda a trama que
as aparências terminam por tecer. Por certo, na
captura dessas aparências, todos os recursos são
válidos. Não há porque recusar o formalismo dos
modelos ad hoc ou a descrição cuidadosa que se
pretende neutra. É preciso apenas ter o cuidado
de não soçobrar nas ontologias que secretam tais
discursos; pelo contrário, cabe estar atento ao
338
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

modo de aparecer de cada coisa, a fim de atingir sua


determinação mais profunda. Mas, em contraparte,
sem a paciência da investigação da conjuntura,
a análise dialética se resume na monótona
afirmação duma identidade, na procura obcecada
dos traços definitórios do capital, do salário ou
do imperialismo, sem levar em conta que uma
forma se efetiva criando determinações opostas.
Perdendo as mediações e as diferenças, essa análise
cai no narcismo da ortodoxia. (GIANNOTTI,
1984, p. 227-228)

Na reflexão educacional, o narcismo da ortodoxia


frequentemente aparece vestido com os trajes do narcismo
dos modismos cíclicos que, por seu turno, não poupam
educadores, professores, alunos e a opinião pública de
suas monótonas afirmações sobre a capacidade de a forma
escolar produzir cidadãos críticos, reflexivos, participativos
e conscientes de seu papel em uma sociedade globalizada.
Marx igualmente polemiza com a tradição liberal
no que respeita à concepção de liberdade. Do lado da tradição
liberal, a verdadeira liberdade é concebida como liberdade
negativa, enquanto inviolabilidade da esfera privada. Em
contraposição, a crítica marxiana irá insistir na formalidade
de tal definição. De acordo com Marx, a liberdade, assim
definida, estaria irremediavelmente condenada a abstrair
as condições concretas de vida das classes subalternas,
excluindo-as da participação no poder político ou do gozo
dos bens materiais.
Também nesta questão, a tradição liberal insiste
nas inconveniências e até na impropriedade de estender
a esfera política até as relações econômicas, de modo a
garantir a igualdade e a liberdade. De acordo com Losurdo
339
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

(1996), durante os debates que sucederam a revolução


francesa de 1789, o teórico francês Sieyès, leitor de Locke
e membro do Terceiro Estado, lançava duras críticas aos
jacobinos que, pressionados pela necessidade de mitigar a
miséria e consolidar a base social das fileiras revolucionárias,
interferiam decididamente nas relações econômico-sociais.
No entender de Sieyès, o poder jacobino esquece que:

[...] sob o nome de poder público ou político,


não se estabelece nada além do menos possível
e apenas aquilo que é necessário para manter
cada um nos seus direitos e nos seus deveres: o
resultado de tal dilatação da esfera política é a
funesta transformação da ré-publique numa ré-totale.
(BASTID, 1939 apud LOSURDO, 1996, p. 39)

Antes mesmo de os jacobinos chegarem ao poder,


Burke, em 1791, já denunciava a revolução francesa como
uma “revolução total” (BURKE, 1791, apud LOSURDO,
1996, p. 39). Pode-se dizer que o pomo da discórdia entre
as duas tradições em foco diz respeito ao alcance da esfera
política. Enquanto Marx denuncia a arbitrariedade de uma
constituição da esfera política que negligencia as relações
de produção e as condições materiais de vida, os teóricos
liberais acusam de totalitário todo exercício do poder que
lhes parece ser uma intolerável dilatação desta mesma esfera
(LOSURDO, 1996).
Marx (1978) não admite a ideia de destituir a
sociedade civil de relevância política. Ele se recusa a aceitar
o Estado como o único locus da dominação e a sociedade
civil como o império da liberdade. Ora, se é na sociedade
civil onde se desenrola o drama da história, como admitir
que a liberdade possa consistir simplesmente na liberação
340
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

desta mesma sociedade civil de sua dominação pelo Estado


político? Afinal, se o “despotismo” perpassa as relações
econômicas que se estabelecem no nível da sociedade civil,
todo processo de emancipação, que reduz as funções do
Estado às tarefas referentes à manutenção da ordem pública
e a defesa do bom funcionamento da sociedade civil, é
suspeito. Recusando a contraposição entre sociedade civil
e Estado político, Marx (1985) em O Capital, registra o fato
de a regulamentação do horário de trabalho na fábrica ter
sido resultado da intervenção do Estado. Com isso, a livre
concorrência foi impedida de deteriorar irreparavelmente as
condições de existência dos trabalhadores fabris.
Com efeito, enquanto se insistir na impropriedade
de se estender a esfera política até as relações educacionais
institucionalizadas da sociedade, continuar-se-á a esperar do
poder da ação pedagógica escolar ou dos movimentos sociais
no interior da escola um efeito regenerador da sociabilidade
capitalista que, de fato, nunca encontrou respaldo no
movimento concreto de produção das formações sociais
modernas.

Notas
No que se refere às diversas propostas de LDB, abordarei, nos limites
1

deste artigo, apenas aquelas que, pelo conteúdo das ideias que as
fundamentaram, exerceram influência marcante no debate educacional
sobre os objetivos do Ensino Médio.
Etimologicamente, politecnia é uma palavra composta pelos termos
2

poly que significa múltiplas, várias e tecnia que significa técnicas. Por
conseguinte, politécnico seria aquele que é hábil em muitas artes ou
técnicas. Na tradição crítica da pesquisa educacional, ensino politécnico
diz respeito a um processo amplo de ensino, capaz de formar o homem
em suas múltiplas dimensões: intelectual, física, moral, psíquica,
artística etc. Mais precisamente na tradição marxista, politecnia é
341
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

definida como sendo uma modalidade de ensino, de caráter teórico-


prático, capaz de transmitir os fundamentos científicos universais das
técnicas constitutivas do trabalho moderno, afastando-se, assim, dos
estreitos limites do ensino profissionalizante, e contribuindo para a
referida formação multidimensional do homem. Paolo Nosella afirma
que o significado da palavra politecnia nos textos sobre educação
de Marx, Engels, Lênin, Krupskaya, Makarenko e Gramsci não
corresponderia exatamente a uma educação multidimensional, mas sim
a uma educação pluriprofissional para os trabalhadores, demandada
pelo capital, em virtude do caráter revolucionário de sua base técnica
e da necessidade dele acompanhar as flutuações do mercado, o que
frequentemente exige o rápido deslocamento do operário de um para
outro ramo da produção. Nosella sustenta que, nos escritos marxistas
sobre educação, “a verdadeira instrução socialista é a tecnológica”,
a única capaz de proporcionar o domínio dos fundamentos das
diferentes técnicas constitutivas do trabalho industrial moderno, em
contraste com a instrução politécnica, preferida pelos burgueses, capaz
de criar um trabalhador mais versátil no manuseio dos diferentes
instrumentos de produção (Cf. Nosella, 1991). No entanto, para Lucília
de Souza Machado, ensino politécnico é o ensino capaz de fazer com
que o homem se construa multidimensionalmente, e tecnologia é o
estudo teórico-prático das técnicas, que busca compreender a relação
do homem com a natureza e a sua produção (Cf. Machado, 1991).

Referências

ARROYO, Miguel. Gonzalez. Sociedade, trabalho e escola de


2o. grau. In: Seminário de Ensino de 2º Grau: perspectivas,
1988, São Paulo. Anais do seminário de ensino de 2o. grau -
perspectivas. São Paulo, Faculdade de Educação/USP, 1988,
p. 81-93.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Tecnologia, relações sociais e


educação. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 105, p.
131-148, abr./jun. 1991.
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MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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344
TERC
EIRA
PART
E:
EDUC
E CUL AÇÃO
TURA
Os intelectuais e a
crítica da cultura

Regina Maria Michelotto

As ideias de Antonio Gramsci, escolhidas como


tema da V Jornada do Núcleo de Ensino da Marília (15 a 17 de
agosto de 2006), oferecem, sem dúvida, subsídios preciosos
para as reflexões sobre Educação. Em seus escritos, esse
autor aponta caminhos para transformar o ato educativo em
fator revolucionário, capaz de contribuir para a derrocada da
sociedade capitalista e para a criação de uma nova sociedade
regulada, socialista.
Há, entretanto, um importante alerta a ser feito,
inicialmente, quando se pensa em utilizar reflexões gramscianas
na análise da Educação: existe o risco de que esse trabalho
venha a ser desenvolvido de forma despolitizada, o que seria
uma afronta às reflexões de alguém que sempre se dedicou a
um objetivo bem definido, “dominante em toda a sua vida [...]:
a elevação social, cultural e política das massas e dos excluídos,
até a sua transformação em protagonistas autônomos duma
sociedade verdadeiramente democrática” (SEMERARO, 1999,
p. 15). Assim, fiel a esse seu objetivo, jamais perdido de vista,
Gramsci relaciona sempre cada categoria analisada com a
situação real e concreta, dando a ela um cunho transformador,
o que demonstra uma base metodológica configurada como
práxis. É, portanto, imprescindível que suas ideias não sejam
tomadas como receituário didático.
junqueira&marin editores 347
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Nestes tempos, em que o relativismo ocupa


espaços preciosos nas discussões educacionais, a obra
desse autor se torna, ainda mais, de fundamental
importância. A corrente para a qual tudo tem o mesmo
valor, e as diferenças desaparecem, e que apresenta uma
visão multiculturalista do mundo, embora possa representar
um avanço no enfrentamento da discriminação, elimina
a crítica cultural. O relativismo é conservador. O sentido
teleológico da obra de Gramsci é o de transformar, não de
conservar.
Um problema no estudo dos textos gramscianos
é o seu caráter inconcluso, o que os torna mais difíceis.
O legado desse autor, como se sabe, é composto por
escritos jornalísticos, de cunho político, anteriores ao
cárcere e, além do epistolário, por trinta e três cadernos
escritos na prisão. Desses, alguma parte foi passada a
limpo, outra não.
A organização de tais cadernos, realizada por
Valentino Gerratana e publicada em 1975, é fruto de
uma cuidadosa pesquisa filológica e foi escolhida para
fundamentar bibliograficamente o presente artigo.
Gerratana discorre sobre o caráter de não
conclusão dos cadernos, sob dois aspectos: primeiro, a
precariedade das condições físicas do autor, que se somou à
dura situação carcerária; segundo, uma possível necessidade
estrutural, funcional à destinação dos textos (1997, p. XII).
Afirma que Gramsci tinha um considerável escrúpulo
metódico, a que se habituara nos anos dos severos estudos
universitários. Como decorrência,

Renuncia a dar uma forma completa e definitiva


ao seu trabalho de pesquisa, e os Cadernos do
Cárcere são destinados a se manterem um canteiro
348
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

aberto [...] para novas e diárias produções. [...] Por


isso, a forma inconclusa na qual foram deixados os
cadernos poderá ser entendida como um convite
a continuar o trabalho de verificação, de pesquisa,
de inovação teórica e prática. (GERRATANA,
1997, p. 80)

Daí decorre que a leitura desses textos deve ser


feita não com o sentido de separar-se o que ainda hoje é
válido e o que não o é, mas, segundo o próprio Gerratana,

O estudo do desenvolvimento do pensamento


gramsciano no corpus dos cadernos [...] permite
compreender o quanto tal pensamento é vivo e
unitário, mesmo atravessado pela fragmentariedade.
A pesquisa do que é vivo e do que é morto em
Gramsci poderia revelar-se, portanto, um falso
problema. O que importa na pesquisa de Gramsci
não são as conclusões particulares às quais se chega
volta e meia, e sempre de modo conhecidamente
provisório, mas o ponto de vista revolucionário
que ele fatigosamente adquire, clareando para si
mesmo: e é esse o verdadeiro dado permanente
da sua pesquisa, o seu ser für ewing. Compreender
este ponto de vista, mesmo quando não se aceitam
singulares juízos dos cadernos, é muito mais
importante do que aceitar ou refutar esses últimos
e distinguir nesses os que ainda são “válidos” e os
que são já “superados”, ignorando o problema
principal que não só “centralizou a vida interior”
de Gramsci, mas que também apresentou o reflexo
mais ativo do drama não terminado de uma época
ainda não concluída. (GERRATANA, 1997, p. 25)
349
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Pode-se entender, assim, que, se alguns objetos


de reflexão de Gramsci, situados em seu tempo, apresentam
um aspecto focal (ele se referia aos textos jornalísticos
anteriores ao cárcere, conhecidos como escritos políticos, como
destinados a morrer ao fim do dia), o método usado para
desenvolver suas reflexões é um instrumento fundamental
para a compreensão de contextos os mais diversos; e constata-
se uma intencionalidade do autor, nessa direção, em toda a
obra do cárcere.
Em sua vida, Gramsci conseguiu conciliar a
ação de alguém que ara a história com a de quem a aduba,
tanto em sua militância política quanto em suas profundas
reflexões, dando um exemplo vivo da relação teoria-prática,
no marxismo:

Antes, todos queriam ser os que aram a história,


ter parte ativa. Ninguém queria ser o adubo da
história. Mas, pode-se arar sem primeiro adubar
a terra? Portanto, é preciso ser quem ara e quem
aduba a história. [Mas não se tratava] “de uma
escolha espasmódica, de um instante, na qual todos
os valores são apresentados fulminantemente e se
deve decidir sem retorno. Aqui, o retorno é de cada
instante e a decisão deve repetir-se a cada instante”.
(GRAMSCI, 1975, p. 1128)

Buttigieg entende que “o caráter fragmentário


dos Cadernos se deve, ao menos em parte, ao método
filológico, [...] que requer uma atenção cuidadosa pelo
particular, esforça-se por verificar sua especificidade” (1998,
p. 7). A História não é contemplação, mas experiência
(BUTTIGIEG, 1998), e Gramsci afirma que a Filosofia
da Práxis (o marxismo) “se realiza no estudo concreto da
350
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

história passada e na atividade atual de criação de nova


história” (GRAMSCI, 1975, p. 1433).
Torna-se claro, portanto, que a obra de Gramsci
tem Marx como fundamento. Gerratana afirma que “mais
que uma fonte, pode-se dizer, Marx é para Gramsci um
interlocutor permanente em um discurso dialógico que
se alimenta de muitas vozes e de múltiplos reencontros”
(GERRATANA, 1997, p. XIV-XV).
Saviani (2004), no prefácio para a terceira edição
de livro de Nosella, referindo-se aos percalços políticos,
sociais, econômicos, culturais e educativos que vêm
caracterizando, através dos tempos, a sociedade brasileira,
escreve: “As categorias construídas por Gramsci e, em
especial, a lição de método que nos proporcionou, nos iluminam
no enfrentamento dos mencionados percalços” (apud
NOSELLA, 2004, p. 20, grifo nosso).
Assim, uma vez que a obra de Antonio Gramsci
oferece um referencial privilegiado para pesquisadores que
buscam utilizar o materialismo histórico e dialético como
fundamento de suas investigações, o presente artigo enfatiza
o seu aspecto metodológico, subsídio para a formação dos
intelectuais críticos, orgânicos à causa dos dominados,
de que a criação da nova sociedade necessita. Entende-se
que tal ênfase se torna mais necessária quando se analisa a
contribuição da obra de Gramsci para a Educação. O texto
apresenta, propositadamente, grande número de citações
do autor em foco, com o objetivo de deixá-lo falar para
educadores que podem vir a ser futuros pesquisadores de
sua obra.
O marxismo, denominado por Gramsci, na
prisão, “Filosofia da Práxis”, tem como pressuposto que “as
determinações fundamentais da sociedade são os homens
mesmos e as relações sociais que estes definem e que definem
351
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a eles” (ROCHABRÚN, 1974, p. 5). Esse mesmo autor


reforça que

Não há método que se possa trazer de fora do


conteúdo para ‘aplicá-lo’; não há teoria fora da
História; não há conhecimento historicamente
significativo fora das classes e suas lutas. Nesse
sentido, para Marx e o Marxismo, o Capitalismo
não é um ‘objeto de estudo’, mas um campo de
luta. (ROCHABRÚN, 1974, p. 24)

O que, sem dúvida, se repete na obra de Gramsci.


Uma investigação que se apóia nessa base
metodológica exige conhecimento das categorias marxistas.
Marx explica o que entende por categoria:

O Sr. Proudhon soube muito bem ver que os


homens fazem o tecido, o pano, a seda — e é
dele o grande mérito de ter visto estas coisas tão
simples! O que o Sr. Proudhon não soube ver é
que os homens produzem também, conforme as
suas faculdades produtivas, as relações sociais nas
quais produzem a seda e o tecido. [...] E, ainda,
não soube ver que os homens, que produzem as
relações sociais segundo a sua produção material,
criam também as idéias, as categorias, isto é, as
expressões abstratas ideais destas mesmas relações
sociais. (MARX, 1989, p. 212)

A Filosofia da Práxis apresenta, metodologicamente,


uma complexidade, já que nela a contradição não é descartada,
pelo contrário, é considerada e analisada como uma das
categorias essenciais da organização social capitalista. De
352
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

fato, a maior vantagem de tal filosofia, segundo Löwy, está


no argumento gramsciano de que, diferentemente das outras
que, visando a consolidar interesses contraditórios, têm
historicidade curta, “porque após algum tempo as contradições
aparecem à superfície e se tornam irreconciliáveis, a filosofia
da práxis, pelo contrário, é precisamente a teoria das
contradições, que ela assume integralmente” (LÖWY, 1994,
p. 136).
Gramsci, em sua análise da situação da Itália, do
mundo e do capitalismo, baseia-se não apenas na contradição,
mas nas categorias marxistas em geral, e alerta para o fato de
que “a dialética é algo muito árduo e difícil, na medida em
que pensar dialeticamente vai contra o vulgar senso comum,
que é dogmático, ávido de certezas peremptórias, tendo a
lógica formal como expressão” (GRAMSCI, 1975, p. 1425).
A metodologia dialética, utilizada por Gramsci,
é fundamentada no historicismo que Nosella e Buffa (1995)
definem da seguinte forma:

[Se] historicismo não é o etapismo abstrato nem


um estudo do particular curioso, folclórico,
absoluto [...] nem do particular concreto, descrito
apenas empírica e superficialmente, o que vem a
ser? Os grandes teóricos indicam o caminho e os
escolásticos fixam sua atenção não no caminho e
sim no dedo indicador. Marx estuda a produção
material da Europa do século XIX; Gramsci
estuda molecularmente o tecido social da Itália da
primeira metade do século XX e Bourdieu estuda
a escola francesa no segundo pós-guerra. Seus
objetos de estudo não são os nossos. Eles nos
ensinam como estudar nossa realidade. (NOSELLA;
BUFFA, 1995, p. 3, grifo nosso)
353
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Gramsci demonstra o como fazer uma análise


histórica, nas muitas análises comparativas que faz da situação
político-social da Itália, em que o materialismo histórico e
dialético dá o fundamento mais radical, como no trecho:

Reforma luterana — calvinismo inglês — na


França, racionalismo dos anos 700 e pensamento
político concreto (ação de massa). Na Itália não
houve uma reforma intelectual e moral que
envolvesse as massas populares. Renascimento,
filosofia francesa dos 700, filosofia alemã dos 800,
são reformas que tocam só as classes altas e, com
freqüência, só os intelectuais: o idealismo moderno,
na forma crociana, é uma reforma sem dúvida, e
teve uma certa eficácia, mas não tocou as massas
notavelmente e se desagregou à primeira contra-
ofensiva. O materialismo histórico, por isso, terá
ou poderá ter esta função não só totalitária como
concepção de mundo, mas totalitária enquanto
levará toda a sociedade às suas mais profundas
raízes. (GRAMSCI, 1975, p. 515)

Esse modo de refletir, analisar, articulado à prática


política, o leva a conceber a revolução como um movimento
permanente:

A revolução proletária não é um ato arbitrário de


uma organização que se afirma revolucionária ou
de um sistema de organizações que se afirmam
revolucionárias. A revolução proletária é um
longuíssimo processo histórico que se verifica no
surgimento e desenvolvimento de determinadas
forças produtivas (que nós reassumimos na
354
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

expressão “proletariado”), em um determinado


ambiente histórico (que nós reassumimos nas
expressões: “modo de propriedade individual,
modo de produção capitalista, sistema de fábrica,
modo de organização da sociedade no Estado
democrático-parlamentar”). (GRAMSCI, 1987,
p. 532)

Fica evidenciado que a base das reflexões


gramscianas é a situação real e concreta em que ele vive.
Uma das categorias privilegiadas na obra desse
autor, e que se apresenta com interesse especial no presente
artigo, é a dos intelectuais. Para Gramsci,

Uma massa humana não se “distingue” e não se


torna independente “por si” sem se organizar (em
sentido lato) e não há organização sem intelectuais,
isto é, sem organizadores e dirigentes, isto é, sem
que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se
distinga concretamente em um estrato de pessoas
“especializadas” na elaboração conceitual e
filosófica. (GRAMSCI, 1975, p. 1386)

Evidencia-se, assim, para o autor, a necessidade da


formação de intelectuais organicamente articulados à criação
do socialismo. Pessoas que se tornem tais “organizadores e
dirigentes”. Esse é o caminho que leva à Educação e, não
só, mas também, à escola. Depara-se, então, com a relação
entre os intelectuais e as massas que, embora apresentem
determinada concepção de mundo, necessitam daqueles para
torná-las mais ordenadas e coerentes.
Analisando a atuação do “homem ativo de massa”
(GRAMSCI, 1975, p. 1385), Gramsci entende que ele atua na
355
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

prática, com determinado conhecimento do mundo, já que o


transforma, mas sem uma consciência clara, teórica, de sua
ação. E que o primeiro passo que o conduz, progressivamente,
a uma autoconsciência, ocorre quando ele se percebe parte de
uma determinada força hegemônica; trata-se de uma consciência
política, cuja criação pressupõe a de uma elite de intelectuais
(GRAMSCI, 1975, p. 1386).
Gramsci fala, também, da importância da
elaboração unitária de uma consciência coletiva, que “requer
condições e iniciativas múltiplas” (GRAMSCI, 1975, p. 33),
cujos sujeitos, nesse caso os principais interlocutores do autor,
são os intelectuais. Discorre sobre a necessidade de estes se
ligarem à causa dos “simples” (palavra que aparece entre
aspas, como muitas, nos textos gramscianos). Simples são os
que necessitam de condições, às quais, afinal, têm direito, para
elaborar uma concepção de mundo cada vez mais coerente.
O autor chega a afirmar que este é um verdadeiro movimento
filosófico, protagonizado pelo intelectual que,

No trabalho de elaboração de um pensamento


superior ao senso comum e cientificamente
coerente, jamais se esquece de permanecer em
contato com os “simples” e, melhor dizendo,
encontra neste contato a fonte dos problemas que
devem ser estudados e resolvidos [...]. Só por este
contato uma filosofia se torna histórica, depura-
se dos elementos intelectualistas de natureza
individual e se transforma em “vida”. (GRAMSCI,
1975, p. 1382)

Reitera, ainda, a afirmação de que o contato com


os simples não têm, no marxismo, a finalidade de manter
essa camada social na “filosofia primitiva do senso comum,
356
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mas a de conduzi-la a uma concepção superior da vida”


(GRAMSCI, 1975, p. 1384). Afirma que já foi revelado que
os simples apresentam forte desejo e entusiasmo por um
processo desse tipo.
E o que poderia ser indicado a intelectuais que
pretendem ligar-se à causa dos simples?
A primeira iniciativa apontada por Gramsci vem
da Grécia clássica: “‘Conhece-te a ti mesmo’ como produto
do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em
ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica”
(GRAMSCI, 1975, p. 1376). Reforça, assim, a importância
da História. Mas, como ele a entende?
Essa categoria aparece descrita de uma forma
que revela a sensibilidade desse autor, em uma curta, mas
significativa missiva que escreve ao filho Délio, procurando
saber sobre seus progressos nos estudos, objeto de
constante atenção e cuidados paternos. Gramsci, embora
progressivamente debilitado, insistia em estar a par do
desenvolvimento, principalmente intelectual, de seus dois
filhos:

Sinto-me um pouco cansado e não posso te


escrever muito. Tu me escrevas sempre e sobre
tudo o que te interessar na escola. Penso que gostas
da história, como também eu gostava quando tinha
a tua idade, porque diz respeito aos homens vivos
e tudo o que diz respeito aos homens, quanto
mais homens for possível, todos os homens do
mundo enquanto se unem entre si em sociedade
e trabalham e lutam e melhoram a si mesmos,
não pode senão agradar-te mais do que qualquer
outra coisa. Mas é assim? Abraço-te. Antonio.
(GRAMSCI, 1971, Carta 154 (1947), p. 294)
357
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Além de insistir na importância da História,


Gramsci assinala muitas outras indicações para a ação do
intelectual (orgânico aos trabalhadores, aos simples): é preciso
atenção ao método!

Um erro muito difundido consiste em pensar que


cada estrato social elabora a sua consciência e a
sua cultura do mesmo modo, com os mesmos
métodos, isto é, métodos dos intelectuais de
profissão. [...] É ilusório pensar que uma “idéia
clara” oportunamente difundida se insira nas
diversas consciências com os mesmos efeitos
“organizadores” de clareza difundida. É um erro
iluminístico. (GRAMSCI, 1975, p. 33)

Complementa com a reflexão de que as capacidades


que os intelectuais apresentam não são espontâneas, nem
inatas, mas foram adquiridas no correr do processo sócio-
histórico. Cabe a eles forjá-las em sua ação educativa.

A capacidade dos intelectuais de profissão de


combinar habilmente a indução e a dedução,
de generalizar, de deduzir, de transpor de uma
esfera para outra um critério de discriminação,
adaptando-o a novas condições, etc, é uma
“especialidade”, não é um dado do “senso
comum”. (GRAMSCI, 1975, p. 33)

Há que ser considerada, também, a ideologia, assim


como as imposições sociais e políticas feitas por meio dela:

As idéias e opiniões não ‘nascem’ espontaneamente


no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de
358
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

formação, de irradiação, de difusão, de persuasão,


houve um grupo de homens ou até mesmo uma
individualidade que as elaborou e apresentou na
forma política de atualidade. (GRAMSCI, 1975,
p. 1625)

São alertas que o autor apresenta para a preparação


do trabalho que os intelectuais críticos desenvolverão com
as massas.
Chama, então, a atenção para a importância
de se criar o hábito de estudar, orientação que importa
especialmente aos professores. Será necessário não apenas
dedicar-se ao estudo, como convencer a muitos, ao maior
número possível de pessoas, que estudar é fundamental. Mas
entende ser necessário alertar para as dificuldades inerentes
a esse processo:

Deve-se convencer a muita gente que também o


estudo é uma profissão, e muito fatigante, com
um tirocínio particular próprio, não só intelectual,
mas também muscular-nervoso: é um processo de
adaptação, é um hábito adquirido com esforço,
aborrecimento e sofrimento. (GRAMSCI, 1975,
p. 1549)

Embora concordando com essa afirmação,


entende-se necessária a complementação do pensamento
com uma citação de outro autor de linha gramsciana, Georges
Snyders, que auxilia a amenizar a anterior, mas sem permitir
que ela perca o sentido original. Para ele, estudar exige, sim,
grande esforço; mas afirma que o que é difícil pode vir a ser
prazeroso. Interessante é a questão com a qual encerra essa
proposição:
359
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O sistemático, o difícil, o obrigatório, todos


estes traços evidentemente aplicam-se à escola
tradicional. O sonho de minha escola não é
absolutamente suprimi-los; desejo mantê-los
e, de uma determinada maneira até ampliá-
los, acentuá-los — diante de certas tentações
inversas de muitos inovadores. Ao mesmo tempo
quero transformá-los a partir de conteúdos
renovados, de tal modo que se vá em direção à
satisfação cultural escolar. Quero o obrigatório
e a alegria presente; o difícil e a alegria presente.
Minha escola é a aposta paradoxal de impor a
matemática tal dia, a todos — mesmo aos que
não a querem — e modificar a situação de modo
que todos experimentem satisfação e sintam-se
progredir em direção à liberdade. Será que isso
é ilusório? (SNYDERS, 1988, p. 112)

Gramsci apresenta, algumas vezes, em suas


reflexões, regras práticas para o intelectual, especialmente
para professores que, entretanto, jamais podem ser
tomadas, como já foi alertado, com o sentido de receitas,
desvinculadas da luta política. Haja vista o trecho:

A “repetição” paciente e sistemática é o


princípio metodológico fundamental. Mas a
repetição não mecânica, material: a adaptação
de cada princípio às diversas peculiaridades,
o apresentá-lo e reapresentá-lo em todos os
seus aspectos positivos e nas suas negações
tradicionais, organizando sempre cada aspecto
parcial na totalidade. (GRAMSCI, 1975, p.
2268)
360
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O autor entende que a qualidade essencial de


um crítico das ideias e da cultura é saber encontrar a real
identidade sob a aparente diferenciação e contradição, assim
como encontrar a diversidade sob a aparente identidade
(GRAMSCI, 1975, p. 33-34). E alerta para o fato de que as
mudanças no modo de pensar de uma pessoa, em suas crenças
e opiniões, “não vêm por ‘explosões’ rápidas e generalizadas,
mas por ‘combinações sucessivas’, segundo ‘fórmulas’ muito
variadas (GRAMSCI, 1975, p. 34). Assim, um trabalho
educativo-formativo de elaboração de uma consciência crítica
é complexo e deverá ser graduado e articulado a determinada
“base histórica que contenha as premissas materiais dessa
elaboração. [...] Deve ser a dedução e a indução combinadas,
a identificação e a distinção, a demonstração positiva e a
destruição do velho. Mas não em abstrato. No concreto:
sobre a base do real”. (GRAMSCI, 1975, p. 34).
Essa relação entre o concreto e o abstrato vem
definida na indicação seguinte: Gramsci, analisando a
multiplicação de escolas profissionais na Itália, afirma que, à
primeira vista, isso pode dar a impressão de uma tendência
democrática, uma vez que abre caminho a várias profissões
em nível médio, o que, em tese, favoreceria os mais pobres.
Mas, tal tendência, “intrinsecamente, não pode apenas
significar que um operário manual se torne qualificado, mas
que cada ‘cidadão’ possa tornar-se ‘governante’, e que a
sociedade o ponha, ainda que ‘abstratamente’, nas condições
gerais de poder tornar-se tal” (GRAMSCI, 1975, p. 1547).
Gramsci aborda outro aspecto que deve atrair a
atenção de intelectuais críticos, ao dissertar sobre Maquiavel,
no caderno 13: a questão do dever ser. Refletir sobre as
situações, com base em como elas deveriam ser é relativamente
comum em atividades educativas. Gramsci ratifica a crítica à
ingenuidade de tal abordagem, fazendo, porém, uma ressalva
361
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

importante. Afirmando que Maquiavel é um político em ato,


que pretende criar novas relações de força, e, portanto, não
pode deixar de ocupar-se do dever ser (ressalvando que: “não
em sentido moralista”), esclarece que a questão é complexa
e que deve ser colocada nos seguintes termos:

Trata-se de ver se o “dever ser” é um ato arbitrário


ou necessário, é vontade concreta ou veleidade,
desejo, miragem. O político em ato é um criador,
um suscitador, mas não cria a partir do nada
nem se move na vazia agitação de seus desejos e
sonhos. Toma como base a realidade efetiva: mas
o que é essa realidade efetiva? Será algo estático
e imóvel, ou, ao contrário, uma relação de forças
em contínuo movimento e mudança de equilíbrio?
Aplicar a vontade à criação de um novo equilíbrio
das forças realmente existentes e atuantes,
baseando-se naquela determinada força que se
considera progressista, fortalecendo-a para fazê-la
triunfar, significa continuar movendo-se no terreno
da realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-
la (ou contribuir para isso). Portanto, o “dever
ser” é algo concreto, ou melhor, somente ele é
interpretação realista e historicista da realidade,
somente ele é história em ato e filosofia em ato,
somente ele é política. (GRAMSCI, 1975, p. 1578)

Por fim, vale afirmar que a apresentação de


uma pequena amostra de como a obra de Gramsci oferece
subsídios preciosos para a formação do intelectual crítico
buscou chamar a atenção para o método utilizado pelo
autor quando se apropria de seu objeto de estudo; não há,
em momento algum, desvinculação desse ato reflexivo com
362
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a história concreta e a ação revolucionária. O artigo teve a


finalidade precípua de atrair o leitor para um posterior estudo
desses escritos, mais amplo e aprofundado, procurando
demonstrar, mesmo que sintetizadamente, o quanto eles
podem contribuir para que o ato educativo/formativo tenha
caráter transformador, revolucionário.

Referências

BUTTIGIEG, J. O método de Gramsci. Tradução de L. S.


Henriques. In: Temas Gramsci: Gramsci e o Brasil, 1998.
Disponível em: <http://www.gramsci.org>. Acesso em:
nov. 2006.

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Gramsci. A cura de GERRATANA, V. Torino: Einaudi
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LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de


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363
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

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2004.

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Carlos, 1995. (Texto fotocopiado).

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marxismo. Série Ensayos, n. 1, dez. 1974.

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SNYDERS, G. A alegria na escola. Tradução de Bertha


H.Guzovitz e M. C. Caponero. São Paulo: Manole, 1988.

364
Cultura, mediação
e atividade

Suely Amaral Mello

Entendo que esses três conceitos que nomeiam


e desafiam esta mesa redonda são vertebradores da
compreensão de mundo que fundamenta o pensamento
marxiano e também o pensamento gramsciano. No entanto,
eles se encontram explícitos e são conceitos essenciais para
a Teoria Histórico-Cultural e para Vigotski, pois explicam a
tríade de cuja dinâmica resulta o processo de humanização,
ou seja, o processo de constituição do humano em cada ser
humano ou processo de reprodução individual das qualidades
humanas nas novas gerações e em cada sujeito da sociedade
humana.
A cultura é vista como fonte das qualidades criadas
e desenvolvidas ao longo da história pelos homens e mulheres
que nos antecederam e guarda, em repouso, como dizia Marx
(2004), a energia humana, o movimento, o trabalho utilizado
em sua constituição — em outras palavras, as capacidades,
habilidades ou aptidões formadas e desenvolvidas no mesmo
processo de criação dos objetos da cultura. Como lembra
Leontiev (1978), no processo de criação da cultura o ser
humano formou sua esfera motriz. E diz o mesmo acerca
da formação da esfera intelectual e emocional.
Assim, do ponto de vista marxiano — fonte do
pensamento gramsciano e do enfoque histórico-cultural do
junqueira&marin editores 365
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

psiquismo humano, elaborado inicialmente por Vigotski — ,


o ser humano se constitui como ser humano nos processos
de vida e educação que experimenta, ou seja, aprende a ser
humano nas relações sociais de que participa como sujeito
ativo. Esta certamente é uma ideia que temos repetido
inúmeras vezes. Essa repetição, no entanto, é essencial,
pois precisamos mudar o velho modo de pensar que nos
ensinaram, e que orientava nosso pensar e agir, segundo o
qual, o biológico seria condição necessária e suficiente para
fazer aflorar as qualidades humanas tais como as características
de inteligência e de personalidade — a consciência, em outras
palavras —, e mudar esse modo de pensar exige muito
convencimento, informação, atitude de observação e escuta
para quebrar velhos paradigmas, velhas armadilhas formadas
contra nós mesmos, professores e professoras. A construção
de novas práticas a partir da apropriação da teoria exige
estudo, ação e reflexão.
Entender o processo de humanização como
processo de educação e entender a cultura como a fonte do
processo de humanização — entender, portanto, que o papel
da educação extrapola a transmissão de conteúdos escolares
— dimensiona para nós o significado do acesso à cultura
pelas novas gerações: é por esse acesso e apropriação — da
língua, das diferentes linguagens, da ciência e das técnicas, dos
valores, dos hábitos e costumes, dos objetos e instrumentos
— que as novas gerações reproduzem para si as qualidades
humanas e podem se formar para ser futuros dirigentes, como
dizia Gramsci ser o papel essencial da escola.
No entanto, apropriar-se da cultura significa
apropriar-se do uso social para o qual os elementos da cultura
foram criados: seja uma pá, seja um computador, seja um livro.
Para aprender o uso social dos objetos, as novas gerações não
podem simplesmente inventar, mas precisam aprender com
366
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

quem conhece. Esses parceiros mais experientes medeiam


para as novas gerações o acesso à cultura. Como lembra
Leontiev (1978), as qualidades humanas cristalizadas nos
objetos da cultura não estão dadas às novas gerações nos
objetos da cultura, mas apenas postas, em repouso, nesses
objetos. Para avivá-las, é preciso que quem conhece o seu
uso social apresente-o para quem não sabe. Deste ponto de
vista, o professor e a professora são mediadores essenciais.
Ainda que, em determinadas circunstâncias, usemos
diferentes mediadores, como, por exemplo, nosso próprio
conhecimento anterior, ou um colega que se dispõe a nos
ajudar, o professor é o mediador fundamental. Como lembra
Saviani (1992), ao professor cabe selecionar os conteúdos da
cultura que devem ser apropriados pelas novas gerações para
oportunizar a formação das máximas qualidades humanas em
cada ser humano. Ao professor cabe, ainda, buscar as formas
mais adequadas para provocar essa máxima apropriação. Em
outras palavras, ao professor cabe criar as mediações mais
adequadas para isso. Do meu ponto de vista, isso corresponde
ao que Gramsci (1979) dizia ser papel do professor: formar
cada criança para ser um dirigente. Certamente que Gramsci
não falava e nem falamos aqui de apropriação de uma cultura
alienada e nem de uma apropriação alienada da cultura, mas
de uma apropriação e de uma cultura humanizadoras. E esse
processo precisa, para isso, ter como horizonte a educação
para além do capital, de que fala Mészáros (2005).
O professor é, assim, um intelectual que
intencionalmente apresenta às novas gerações a cultura
social produzida e historicamente acumulada. Sob a
forma de experiências, vivências e situações, o professor
intencionalmente produz o processo de humanização, ou seja,
o processo de constituição do humano nas novas gerações.
Como lembra Vigotski, a lei fundamental do desenvolvimento
367
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

psíquico — do desenvolvimento cultural — ensina que


antes de ser interna, individual, pessoal, uma função é vivida
externamente, socialmente, coletivamente. Nas palavras do
próprio autor:

Este princípio consiste no fato de que as funções


psicológicas superiores da criança, suas qualidades
superiores, que são específicas dos humanos,
se manifestam originalmente como formas da
conduta coletiva da criança, como forma de
cooperação com as outras pessoas; e só depois
é que se tornam funções individuais internas da
criança. (VYGOTSKY, 1994, p. 353, tradução
nossa)

Mas, nesse triplo protagonismo que envolve a


cultura e a mediação, ainda falta considerar a atividade. Como
afirma Newton Duarte (1993), é a atividade que explica,
para Vigotski, o desenvolvimento do psiquismo humano.
No conceito de atividade, do ponto de vista da Teoria
Histórico-Cultural, está presente o envolvimento do sujeito,
uma vez que o sentido da atividade nasce da relação entre
o motivo que leva o sujeito a agir e o resultado conquistado
ao final da atividade. Dessa forma, o sujeito é ativo não
apenas intelectual, mas também emocionalmente. Por isso
é que cognitivo e afetivo não se separam, mas constituem
uma unidade.
No processo de apropriação da cultura e de
reprodução das qualidades humanas que lhe são externas no
nascimento, o indivíduo — por meio de sua atividade que
se realiza, inicialmente, como social e coletiva — aprende
os modos de uso dos objetos da cultura, e, ao exercitar as
faculdades envolvidas no uso social desses objetos, internaliza
368
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

essas faculdades como qualidades humanas. Na escola,


esse processo de apropriação da cultura e de formação
e desenvolvimento das qualidades humanas histórica e
socialmente criadas é mediatizado direta ou indiretamente
pelo professor.
Essa relação com a cultura não acontece só na
escola, mas a escola tem como função essencial essa mediação
intencionalmente voltada para o ensino, para a aprendizagem
e para o desenvolvimento humano.
Sintetizo, então, a ideia que procurei desenvolver:
o processo de humanização de cada novo ser humano
por meio da educação, por meio da mediação dos mais
experientes — que se dá como processo de internalização
dos conteúdos culturais e de formação e desenvolvimento das
forças psíquicas superiores — acontece pela via da atividade
do sujeito que aprende. Nesse conceito de atividade está
presente o indivíduo inteiramente, não apenas fisicamente,
mas intelectualmente e emocionalmente presente.
Ao apontar os fatores que são essenciais na
explicação da influência da cultura sobre o desenvolvimento
do psiquismo das crianças, sobre a formação da personalidade
e da inteligência, Vigotski destaca que o elemento fundamental
nesse processo é a relação que a criança — o indivíduo —
estabelece com a cultura de que se apropria. A experiência
emocional que se estabelece em uma dada situação determina
o tipo de influência que tal situação exercerá sobre a criança.
Em outras palavras, não é a cultura, mas a cultura mediada
socialmente vista pelo prisma da experiência do indivíduo —
que envolve, no mesmo processo, o cognitivo e o emocional
— pela maneira como o indivíduo interpreta, se relaciona,
se inteira de certa situação... é essa relação que determina o
papel e o tipo de influência da cultura sobre a formação e o
desenvolvimento do psiquismo do indivíduo.
369
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Elemento fundamental nesse processo, portanto,


é a compreensão que o indivíduo faz das situações que vive.
O fato de que o indivíduo compreenda ou não a situação e
sua verdadeira significação condiciona níveis de apropriação
diferentes, experiências emocionais diferentes: uma mesma
situação vivida por crianças de idades diferentes se reflete na
consciência das crianças de maneiras diferentes e pode ter
significados inteiramente distintos.
Deste ponto de vista, a linguagem — como um
dos meios fundamentais por meio do qual nos comunicamos
com as pessoas de nosso entorno — tem papel fundamental:
é, ao mesmo tempo, um mediador essencial e um complicador
dessa mediação. As palavras que usamos para nos comunicar
e para organizar o nosso pensamento são generalizações
e tais generalizações se desenvolvem à medida que nossa
experiência se amplia (VYGOTSKY, 1994; MELLO, 2000).
Este é mais um elemento que torna complexa a relação entre
cultura, mediação e atividade, que, como se pode perceber,
não é uma relação estática, mas profundamente dinâmica,
em movimento complexo.
Gostaria, ainda, de chamar a atenção para uma
singularidade da relação entre cultura e desenvolvimento
psíquico. Diz Vigotski, e permitam-me uma longa citação
que me parece instigante e desafiadora:

[...] no desenvolvimento da criança, o que é


possível conquistar ao final e como resultado do
processo de desenvolvimento está presente no
meio já desde o início [do processo de apropriação
da criança]. E não só está presente no meio desde
o início do processo, mas influi desde o princípio
no desenvolvimento da criança. Permitam-me
esclarecer isso com o exemplo seguinte.
370
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Temos uma criança que apenas começou a falar


e que pronuncia palavras soltas como tendem a
fazer as crianças que estão aprendendo a arte da
fala. Mas se encontra já, presente em seu meio, a
fala plenamente desenvolvida que a criança será
capaz de dominar apenas no final deste período
de desenvolvimento? Certamente sim. A criança
fala utilizando frases de uma palavra, mas sua mãe
lhe fala com uma linguagem formada, gramatical
e sintaticamente e que conta com um extenso
vocabulário, mesmo quando este vocabulário é
modificado para facilitar para a criança. Apesar
disso, a mãe fala utilizando a forma desenvolvida
da fala. Denominemos esta forma desenvolvida
— que se supõe aparecerá ao final desse período
de desenvolvimento da criança — de forma
ideal ou final: ideal no sentido de que atua como
modelo do que se deve conquistar ao final do
período de desenvolvimento; e final, no sentido
de que representa o que se supõe que a criança
alcance ao final desse processo. E denominemos
a forma de falar da criança como forma primária
ou rudimentar. O traço característico mais
notável do desenvolvimento da criança é que
esse desenvolvimento se alcança em condições
particulares de interação com o meio no qual esta
forma ideal ou final — forma que vai aparecer
apenas no final do período de desenvolvimento
da criança — não só está presente no meio desde
o início, está em contato com a criança desde
seu início, mas na realidade interage e exerce
uma influência real sobre a forma primária,
sobre os primeiros passos do desenvolvimento
371
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da criança. Algo que se supõe só toma forma


ao final do processo de desenvolvimento influi
de algum modo desde os primeiros passos desse
desenvolvimento. (VYGOTSKY, 1994, p. 347-348,
tradução nossa)

E mais à frente, retoma a discussão:

Que significa tudo isso? Penso que se pode tirar uma


conclusão muito importante, que pode esclarecer
de imediato o papel singular que desempenha
o meio no desenvolvimento da criança. Como
se desenvolve na criança a forma ideal ou final,
digamos, da fala? Vimos que no começo de seu
desenvolvimento, a criança domina apenas a
forma primária, quer dizer, no campo da fala, por
exemplo, só é capaz de pronunciar palavras soltas.
Mas essas palavras soltas formam parte do diálogo
da criança com sua mãe, que domina a forma ideal,
a mesma que a criança deve conquistar ao final
desse processo de desenvolvimento. A criança será
capaz de dominar esta forma ideal? Simplesmente
a assimilará e a imitará em um ano ou um ano e
meio de sua vida? Não. Mas, no entanto, pode a
criança dessa idade, ao deslocar-se da primeira à
ultima etapa, ir ajustando sua forma primária a esta
forma final? Sim, as investigações mostram que é
exatamente isso que acontece.

Por conseguinte, isto significa que o meio é um fator


no campo de desenvolvimento da personalidade
e de seus traços humanos específicos, e seu papel
consiste em servir de fonte desse desenvolvimento;
372
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

quer dizer, o meio é a fonte do desenvolvimento


e não seu âmbito.

O que significa isso? Antes de mais nada, indica algo


muito simples: se não se pode encontrar a forma
ideal adequada no meio, se o desenvolvimento
da criança tem que ser produzido sem nenhuma
interação com a forma final, esta forma deixará de
se desenvolver na criança. (VYGOTSKY, 1994, p.
349, tradução nossa)

É assim que, a partir do enfoque histórico-


cultural, entendo esses três conceitos propostos para esta
mesa. E suas implicações pedagógicas, do meu ponto de vista,
promovem uma reviravolta no pensar e no agir pedagógico.
No entanto, para mim, tão importante como
compreender esses conceitos é pensar nas armadilhas
presentes no dia-a-dia das práticas educativas, e que podemos
desarmar com sua compreensão.
Eu nomearia apenas algumas. A primeira
armadilha está em continuar a conceber a criança como um
adulto em miniatura e defini-la pela ausência de qualidades
humanas em lugar de destacar suas peculiaridades positivas
que permitem ao professor encontrar as formas mais
adequadas para oportunizar o acesso à cultura desde que
as crianças são pequenininhas. Por meio da nova relação
entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento, que vemos
emergir da Teoria Histórico-Cultural, percebemos um
novo conceito de criança: capaz de aprender desde que
nasce e, porque aprende, se desenvolve, se apropria das
qualidades humanas social e historicamente dadas em seu
meio e acessíveis à sua atividade. Esse conceito de criança
que contamina o conceito de aluno talvez seja o elemento
373
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mais danoso às nossas práticas verbalistas, solitárias e


autoritárias.
A segunda armadilha está na organização das
nossas práticas na escola de modo a restringir — em lugar
de abrir de modo amplo — o acesso das novas gerações
à cultura. No texto de Vigotski que citamos longamente
acima, o autor comenta o fato essencial de que mesmo
antes de iniciar-se nas formas mais primitivas da linguagem
oral, a criança convive com as formas mais elaboradas dessa
linguagem, participando no meio social em que está inserida.
Nunca imaginamos afastar a criança que se inicia nas formas
primitivas da linguagem oral do convívio com os falantes
mais desenvolvidos. Segundo Vigotski, é essa referência da
linguagem oral mais desenvolvida que permite que a criança
se aproprie ao máximo da linguagem oral de sua coletividade.
Creio que, a partir desta constatação, podemos
nos perguntar: Por que não fazemos isso em relação a
outras linguagens? Por que não apresentamos as formas
mais elaboradas de desenho à criança que está começando
a desenhar? Por que não apresentamos as formas mais
elaboradas da escultura à criança que começa a manusear a
argila ou a massa de modelar? E o mesmo poderíamos dizer
da pintura e da dança. Conhecer o mais elaborado como
forma de expressão dos outros, como um alerta para novas
invenções. Desse ponto de vista, a experiência do outro é
referência de como o outro reinventa as práticas e de como,
também nós, podemos reinventar nossas práticas todos os
dias. Como diz Denise Stocklos, “utopia rima com mudança
agora, já e todo dia”.
Uma terceira armadilha criada contra a criança e
seu desenvolvimento humano — e mesmo contra o professor
que vê pouco resultado para o seu trabalho — é restringir
sua atividade na escola, fazendo por ela, decidindo por ela,
374
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

resolvendo por ela, escolhendo por ela, pensando por ela,


quando deveríamos fazer com ela, decidir com ela, escolher
com ela, pensar com ela... não só pra superar a velha equação
maior do capitalismo que divide trabalho socialmente (o
professor pensa e a criança executa), mas também para
garantir a constituição da atividade na escola, a criação de
novas necessidades humanizadoras nas crianças bem como
a dinâmica de constituição do humano constituída sobre o
par apropriação /objetivação. Ouvir mais a criança, permitir
que ela se objetive me parece lição da compreensão da teoria
histórico-cultural e da relação entre cultura, mediação e
atividade.
Não poderia deixar de apontar a armadilha maior
que consiste na naturalização de tudo e na atitude que decorre
daí de achar naturais as injustiças e a desigualdade crônica que
nos assolam como sociedade, entendendo que tudo sempre
foi assim ... e sempre será. Deste ponto de vista, creio que já
temos alguns elementos para começar a desconfiar do que
tem sempre sido assim.
Finalmente, acredito que tanto Marx, como
Grasmci e Vigotski defenderiam a ideia de que a apropriação
humanizadora da cultura é o que possibilita a liberdade do
povo.

Referências

DUARTE, N. A individualidade para-si. Campinas: Autores


Associados, 1993.

GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
375
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa:


Livros Horizonte, 1978.

MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo:


Boitempo, 2004.

MELLO, S. A. Linguagem, consciência e alienação: o óbvio como


obstáculo ao desenvolvimento da consciência crítica. Marilia:
Marília-Unesp-Publicações, 2000.

MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo:


Biotempo, 2005.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações.


3. ed. São Paulo: Cortez e Autores Associados, 1992.

VYGOTSKY, L. S. The problem of the environment. In:


VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. (Org.). The Vygotsky
reader. Oxford, UK: Basil Blackwell, 1994. p. 338-354.

376
Arte para pensar a vida
e educar os sentidos

Fátima Cabral

Qual o lugar da arte — e da cultura em geral


— em nossa sociedade? Seria ela apenas substituta, uma
relação espiritual subjetiva ou, de outro modo, a expressão
de uma relação concreta e profunda entre o homem e o
mundo? Considerando a arte historicamente condicionada
pelo momento social, nela perdura, e se faz reconhecer, um
momento de humanidade. Isso significa que, no viver humano, a
arte é historicamente determinada.
Em sendo assim, cabe perguntar: qual o lugar que
a sensibilidade ocupa, e deve ocupar, na escala de valores
humanos? E em se tratando deste evento, em particular, que
lugar ocupa a atividade artística no pensamento de Marx?
Sobre Arte existem muitas divergências.
Esquematizando um pouco, pode-se localizar uma corrente
que liga a arte e a cultura ao lazer, ao preenchimento do
ócio, ao ornamento, algo para se ver e assistir. Arte e cultura
surgem, assim, como aquilo que aparece cotidianamente
separado no Caderno 2 ou na Ilustrada, nos Museus, nos
Centros de Cultura, nas Casas de Cultura, nas salas de
cinemas, entre outros. Esses espaços figuram como lócus
onde arte e cultura devem ser vistas, apreciadas, elogiadas,
“sem que tenham uma relação direta com nosso cotidiano,
já que este não é considerado como cultura” (BOSI, 1987,
junqueira&marin editores 377
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

p. 36). Arte e cultura são tidas, dessa maneira, como um


conjunto de objetos em si: quadros, esculturas, livros, cd’s,
dvd’s que são comprados e armazenados em casa ou, no
limite, apreciados nos seus lugares de exposição e exibição,
como as salas de cinema, de shows ou de exposições. Trata-
se, nessa perspectiva teórica, de objetos que estão fora do
nosso convívio, objetos para os quais eu olho e mantenho
uma relação estranhada, de admiração extrema, por vezes
enfeitiçada, sem a noção do trabalho, do processo exigido
para sua confecção. Essa perspectiva é comandada pela
ideia do fetiche, revelada pela análise de Marx: admiramos
o mistério do objeto, nos submetemos ao seu fascínio com
reverência, como algo inalcançável no seu conteúdo; com
sorte, alcançamos sua forma, a possuímos e, sob esse ponto
de vista, tem cultura quem possui objetos de arte, de cultura.
Alfredo Bosi diz, a esse respeito, que essa é uma atitude que
nos embrutece: “no fundo, somos bárbaros no sentido de
que usamos os bens, mas não conseguimos pensá-los.” Não
obstante, acentua, “cultura é vida pensada... cultura é um
processo” (BOSI, 1987, p. 38).
Aqui merece um exemplo (não é o único,
evidentemente) que explicite a ausência do fenômeno do
fetiche e a presença de um pensar face a uma expressão
artística. A arte tem a propriedade de desencadear admiração,
estado de encantamento, condição para desnaturalizar
o cotidiano. Isso nos leva a pensá-lo a partir de outras
possibilidades não concebidas, mas fundamentais para que
um indivíduo e um grupo sintam sua existência viva. Tomo,
a este respeito, a canção “Pássaro Encantado”, de Consuelo
de Paula (2004). Ela focaliza nos elementos básicos de uma
ave: pé, bico e asa. Põe cor no bico e no pé, componentes
mais duros e destacados de um pássaro, simbologia da cultura
popular, presente na festa do Divino (representação da luz,
378
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

do sopro da vida, da inspiração, da sabedoria). Ela canta com


as sílabas bem marcadas, e pode-se, com isso, imaginar o
brilho através da pronúncia “pé de prata” e “bico de ouro”.
Em seguida, associa a asa ao mar. A cor, neste momento, nos
leva para a amplidão, para o indeterminado a explorar, enfim,
à liberdade. E aí, através do verso “e tem de sobreviver”, ela
canta como se quisesse capturar o vôo de um pássaro. Só
que este pássaro tem atrás de si e a sua frente uma história de
pertencimento a um lugar — “seu canto aponta o cruzeiro
do sul” — e a um grupo, história essa que ele tem obrigação
de zelar, de cuidar e defender como condição fundante para
a sua existência e a de seu bando. E prossegue o verso de
maneira convocatória: “chama seu bando, vem/ nessa janela
vem música, vem!”. Há, portanto, uma ordem, um comando,
enfim, uma indicação para uma maneira de viver, para uma
dança. Neste sentido, propõe uma forma de convivência
coletiva. Mas, para alguém perceber isso precisa encantar-se,
e esse encantamento exige um tipo ativo de suspensão do
cotidiano, que permite descobrir dimensões até então não
pensadas. E em sendo assim, não é fetiche, antes, é vida pensada.
Além da perspectiva — equivocada, do meu
ponto de vista — que analisa a cultura e a arte como algo
a ser vivido nos momentos de ócio e lazer, outra corrente
— materialista, dialética — liga a arte à consciência social,
como parte do processo de conhecimento, como atividade
através da qual o homem toma consciência da realidade —
uma atividade paralela à da ciência. Essa linha de pensamento
envolve, necessariamente, o conceito de trabalho, de processo.
Assim, convido a pensarmos arte e “cultura como ação e
trabalho” (BOSI, 1987, p. 39), isto é, uma relação em que
a primeira (arte) está contida na segunda (cultura). Cultura
aqui entendida como trabalho, portanto, como infraestrutura
e não supraestrutura.
379
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Embora Marx não tenha um estudo sistematizado


sobre estética — ele pretendia escrever um livro sobre Balzac,
um de seus autores prediletos —, a partir dos Manuscritos
econômico-filosóficos de 1844, texto que indica o estado nascente
da ontologia marxista, é possível encontrar pistas importantes
para pensarmos o fenômeno artístico. Para isso basta
consultarmos, além dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844,
a antologia que leva seu nome e de Engels — Sobre literatura
e arte — editado pelas Edições Mandacaru, de Portugal,
A Ideologia Alemã, diversas passagens de O Capital, História
crítica da teoria da mais-valia, entre outros. Assim, pretendo
demonstrar que na teoria de Marx as considerações estéticas
— e também culturais — ocupam um lugar destacado: a arte
e o trabalho, a natureza social da criação artística, o caráter
social dos sentidos estéticos, a relação entre arte e vida
social, conhecimento, criação artística e produção material
sob o capitalismo, entre outros, visam acrescentar uma nova
dimensão à vida humana, transformando-a em sua totalidade.
Portanto, mesmo sem ter elaborado um tratado
de estética, pode-se afirmar com segurança que a arte, para
Marx, se funde com todas as outras atividades da vida — é
um desdobramento do trabalho — e, nesse sentido, não é
algo a ser tratado apenas na esfera ociosa do “lazer”, em um
tempo que se contrapõe ao tempo do trabalho. Trata-se, antes,
de uma dimensão essencial da vida em geral, uma dimensão
do homem total, que nos possibilita identificar as tendências
fundamentais da realidade humana, da especificidade humana
e, portanto, histórica.
Pode-se, assim, dizer que o fundamento filosófico
da teoria marxista está voltado para a busca da total
emancipação de todos os sentidos e atributos humanos
(MÉSZÁROS, 2006). É pelos sentidos — mais do que pelo
pensar, como imaginava Hegel — que os homens se firmam
380
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

no mundo objetivo. Daí a importância do sensível e do


sensorial no processo de mediação entre homem e natureza,
para a produção dos objetos humanos.
É sabido que, para Marx, o homem se afirma
como ser-homem pelo trabalho, pelo processo de objetivação
da realidade — é esse o processo que nos distingue dos
animais, a capacidade teleológica, isto é, a possibilidade de
produção intencional da vida e das coisas. O animal, diz Marx
nos Manuscritos,

[...] forma apenas segundo a medida e a carência


da species à qual pertence, enquanto o homem sabe
produzir segundo a medida de qualquer species, e
sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente
ao objeto; o homem também forma, por isso,
segundo as leis da beleza. (MARX, 2004, p. 85)

Aí está, pois, a ideia central para a arte: libertado


das necessidades prementes da sobrevivência, o homem
produz e modela o mundo “segundo as leis da beleza”. Tal
processo tem uma continuidade com o processo de trabalho,
mas, ao mesmo tempo, preserva certa especificidade, “leis”
próprias, que exigem um referencial teórico específico para
serem analisadas (FREDERICO, 2004, p. 15).
Trago essa ideia de arte como processo, como
trabalho, porque é necessário rejeitar a especificidade artística
como pura abstração, como mera “intuição”, produto de
“inspiração”. Arte e cultura demandam, necessariamente,
trabalho e disciplina. Medir a cultura a partir da soma de
objetos que uma pessoa possui é tomar o caminho contrário
ao que aqui proponho, pois isso significaria que as pessoas
ricas têm cultura e as pobres não. Como afirma Bosi (1987),
“É o processo e não a aquisição do objeto final que interessa”
381
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

(p. 40). Mas aquele é um pensamento — inepto, diga-se —


comum nas escolas: adquire-se cultura adquirindo títulos,
livros, objetos.
Do ponto de vista materialista, portanto, arte
e cultura não são apenas modos de representar o mundo
exterior, são, prioritariamente, um fazer, uma práxis através
da qual o homem se afirma ontologicamente, isto é, enquanto
ser-homem. Esse fazer possui uma dimensão humana
essencial e insubstituível no processo de emancipação, de
superação da alienação e das forças despotencializadoras no
capitalismo. Essa emancipação começa pela liberação dos
cinco sentidos da sua imediatez, da sua “naturalidade”, do seu
estado bruto, já que, para Marx, “A natureza não se encontra
adequada ao ser humano nem objetiva nem subjetivamente”
(FREDERICO, 2004, p. 16). Em outros termos, os sentidos
humanos não são de natureza celestial, antes,

O olho se tornou olho humano, da mesma forma


como o seu objeto se tornou um objeto social,
humano, proveniente do homem para o homem.
Por isso, imediatamente em sua práxis, os sentidos
se tornaram teoréticos. [...]
Compreende-se que o olho humano frui de forma
diversa da que o olho rude, não humano [frui]; o ouvido
humano diferentemente da do ouvido rude etc. [...]
A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda
a história do mundo até aqui. O sentido constrangido
à carência prática rude também tem apenas um
sentido tacanho. Para o homem faminto não existe
a forma humana da comida, mas somente a sua
existência abstrata como alimento [...] O homem
carente, cheio de preocupações, não tem nenhum
sentido para o mais belo espetáculo; o comerciante
382
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de minerais vê apenas o valor mercantil, mas


não a beleza e natureza peculiar do mineral; ele
não tem sentido mineralógico algum; portanto, a
objetivação da essência humana, tanto do ponto
de vista teórico quanto prático, é necessária tanto
para fazer humanos os sentidos do homem quanto
para criar sentido humano correspondente à riqueza
inteira do ser humano e natural.” (MARX, 2004,
p. 109, p. 110-111, grifos do autor)

Esta citação nos dá a ideia exata de que, para


Marx, no processo de auto-formação da humanidade, arte
e cultura não podem ser vistas como contemplação, como
celebração deslumbrada da vida (FREDERICO, 2004). Antes,
constituem uma dimensão essencial da existência humana.
Mas só se pode abordar a dimensão estética de Marx quando
se preserva o núcleo filosófico de sua teoria, núcleo esse
por diversas vezes abandonado, inclusive por marxistas, em
favor de uma concepção econômico-determinista, unilateral,
positivista. Esse reducionismo da rica concepção histórico-
materialista favoreceu o abandono ou a vulgarização a
respeito das relações entre base e supraestrutura, incluindo
aí a arte e a cultura.
Quando nos damos conta de que a formação
do homem se faz, necessariamente, através do processo de
mediação e auto-mediação entre o homem e a natureza, e
que é justamente essa práxis social que nos permite atribuir
significados humanos aos elementos transformados da
natureza, percebemos melhor a necessidade de cuidarmos
das mediações artísticas e culturais que, invariavelmente,
formatam nossa consciência.
É bom que se saliente, porém, que Marx
compreende esse fato na sua complexidade dialética e não
383
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

meramente dualista [homem x natureza], pois o homem


é parte específica da natureza e jamais o deixará de ser:
é, entretanto, “um ser natural automediador”. Nesse
sentido, e somente nesse sentido dialético, automediador,
é que “autoconstituição é inerentemente condicionada pela
natureza” (MÉSZÁROS, 2006, p. 174-175) e pelos elementos
dela originados — uma natureza humanamente automediada.
Tal princípio é crucial para o entendimento da natureza da
experiência artística e sua crescente alienação com o avanço
do capitalismo.
Não resta dúvida de que há elementos subjetivos
na criação artística, elementos esses derivados da concepção
de mundo construída a partir das relações sociais do artista,
porém, a verdadeira arte não é mera expressão ideológica:
todo grande artista é capaz de superar suas próprias limitações
ideológicas e apresentar uma expressão verdadeira da
realidade, sem incorrer na cópia ou na teoria do reflexo, isto
é, da representação “naturalista” da realidade. Desse modo,
fica desautorizada a freqüente equiparação do valor estético
de uma obra ao valor das ideias do artista que a produziu,
pois a obra verdadeiramente artística tende a transcender o
limite histórico-social que lhe deu origem, ou seja, há que se
resolver artisticamente os problemas ideológicos, pois “as
ideologias de classe vêm e vão, ao passo que a verdadeira arte
permanece” (VÁZQUEZ, 1978, p. 27). Isso quer dizer que o
caminho da arte não é o caminho da imitação ou reprodução
do real; a árvore do artista não é a mesma árvore do botânico.
Este se interessa pela morfologia da árvore enquanto que
ao primeiro interessa a árvore humanizada, isto é, a árvore
portadora de significado social e, nesse sentido, arte é também
conhecimento, um conhecimento que é fruto de um fazer
artístico: o artista converte a arte em meio de conhecimento
não quando descreve ou copia, mas quando cria uma nova
384
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

realidade — no caso, uma nova árvore (VÁZQUEZ, 1978,


p. 33, p. 35).
Bem, se a arte é um dos caminhos para o
conhecimento da realidade, se é, como dito no início do texto,
expressão de uma relação concreta e profunda entre o homem
e o mundo, um momento de humanidade, quando é possível
ampliar e enriquecer a realidade (ressignificar a relação
homem-natureza), vale perguntar: na contemporaneidade,
quais as características, exigências e potencialidades da arte
— e da cultura em geral — para promover a emancipação
dos sentidos e atributos humanos? Quais as implicações
pedagógicas para uma compreensão de cultura como coleção
de objetos, como um processo destinado a poucos? O que a
escola e os educadores, em particular, podem e devem fazer
diante desse quadro?

II

Histórica e cotidianamente o Homem se depara


com bloqueios sociais que atrofiam, embrutecem ou, no
limite, dificultam o desenvolvimento dos sentidos, pois
estes não se desenvolvem espontaneamente; dependem
de um processo permanente de educação, de educação dos
sentidos: “Se queres desfrutar da arte, diz Marx, necessitas
de uma formação artística”; “é a música que desperta
no homem a sensibilidade musical” (MARX apud
FREDERICO, 2004, p. 17). Isso não quer dizer que só
o músico, só o sujeito que estuda formalmente música
(formação artística, institucional ou não) tem ouvido para
a música. Significa, antes, que não há lugar para o belo
natural na concepção de Marx e no pensamento marxista.
A arte, desse ponto de vista, é criação material dos homens,
não manifestação do espírito: cultura e arte resultam da
385
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

atividade humana, em uma palavra, do trabalho, que é a


forma humana da objetivação.
Deixando de lado a ideia de cultura como
coleção de objetos artísticos — o que pressupõe condições
econômicas privilegiadas para essa aquisição — e tomando a
cultura como processo, como um fazer, remeto aqui à ideia
de cultura popular que, seguindo a tradição inglesa, pode ser
traduzida por “conhecimento que o povo tem” (BOSI, 1987,
p. 43). E, nesse sentido, existem coisas a serem preservadas,
coisas essas nem sempre objetivadas: danças, músicas, festas,
cultos. E como preservar essa cultura popular não fetichista,
isto é, que não lida com coisas, mas com significados?1
De acordo com o mestre Xedieh, que viveu em
Marília, foi professor especializado em folclore e cultura
popular nesta Instituição, “a cultura popular não morre [...].
Se ela for, de fato, popular, enquanto existir povo ela não vai
morrer. Cultura popular é a cultura que o povo faz no seu
cotidiano e nas condições em que ele a pode fazer” (XEDIEH
apud BOSI, 1987, p. 44). Assim, uma coisa é nós assistirmos
a essas manifestações, outra é participar, apreender os
significados de base que, por sua vez, estão em constante
mutação, em processo de incorporação, de assimilação.
Se examinarmos nossa história cultural, desde
a formação dos mais remotos centros urbanos em séculos
passados, até os dias de hoje, observaremos a crescente
pobreza criativa das camadas populares nos espaços mais
desenvolvidos, mais urbanizados, especialmente no que diz
respeito às festas de rua, invenção de danças, religiosidade
e cantorias. Vivemos, nessas cidades, quase inelutavelmente
mediados pelas obras da tecnologia, obras de uma indústria
de cultura, sem qualquer possibilidade de participação nesse
processo, o que nos coloca, novamente, frente à ideia de
colecionadores de obras de cultura, de obras artísticas,
386
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

tomando-as sempre como um fazer separado da nossa vida


ordinária, uma prática elitista, direcionada às poucas pessoas
que, primeiro, podem comprar e, segundo, “sabem entender”
e apreciar a obra.
Não obstante, as obras produzidas por essa
indústria de cultura pouca ou nenhuma proximidade têm
com a cultura popular — e menos ainda com a arte —, ainda
que seja intencionalmente direcionada para a população,
pois são flagrantemente homogeneizadoras, o que atenta
contra a variedade e vitalidade humanas. Esses objetos de
“cultura”, que comumente experimentamos e consumimos,
nada mais são do que produtos elaborados de acordo com as
regras e interesses do mercado e não, como pretende Marx,
formas e objetos mediadores na formação dos sentidos. Mais
recentemente (em relação a Marx quero dizer), Adorno (1999)
analisou esse processo de produção industrial da música, em
particular, como um processo que faculta a “regressão da
audição”, mais do que a humanização ou o refinamento da
capacidade auditiva.
Em sua crítica radical ao sistema capitalista — um
sistema que a tudo transforma em mercadorias, até mesmo
o Homem — Marx denuncia que a necessidade que o consumo
sente do objeto é criado pela percepção do objeto, e como a produção
— inclusive de bens culturais — visa a fomentar o ciclo
produtivo, tem-se que, a cada dia, são criadas, artificialmente,
novas necessidades, culturais ou não, forjando em nós desejos
inúteis e comportamentos artificiais que nos levam, como
insetos, à armadilha. A produção cria, assim, não só um objeto
para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto; cria o
objeto, a maneira e o motivo do consumo.
Daí que a luta por uma sociabilidade afirmadora das
potencialidades humanas não pode se restringir à luta política
partidária. Libertar “os sentidos do homem da deformação
387
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

e do dilaceramento a ele impostos” (FREDERICO, 2004,


p. 22), implica retomar a dimensão ontológica como chave
desse processo. E retomar a dimensão ontológica significa
recuperar a vida como processo e a história como um campo
de possibilidades de criação e recriação; significa apreender
a cultura e a arte não como atividades prático-utilitárias, mas
como um processo através do qual se pode neutralizar as
influências massificadoras, empobrecedoras da capacidade
criativa de todo ser social. É preciso não ter receio de discutir
e se contrapor às tendências simplificadoras do mercado,
aos modismos alienantes, esvaziados de conteúdo crítico.
Enquanto na escola o estudante não tiver espaço para discutir
criticamente as produções de uma indústria de cultura, e não
tiver a percepção de que cultura é vida pensada (BOSI, 1987), é
processo, é trabalho, cada vez mais as novas gerações serão
meras consumidoras de mercadorias culturais, e estas, pela
experiência contemporânea, tendem mais a embrutecer do
que a refinar os sentidos.
Essa é a implicação pedagógica que quero apontar e
que é, ao mesmo tempo, um desafio para todos nós: tomarmos
arte e cultura como vida pensada.
Como expressão de arte e cultura como vida
pensada, lanço mão de dois exemplos: o primeiro, no campo
cinematográfico, é o documentário Estamira (2005); o
segundo exemplo, no campo da música, é a obra de Consuelo
de Paula (1998, 2002, 2004).

III

O documentário Estamira, dirigido por Marcos


Prado, retrata a vida de uma mulher de 63 anos que viveu
e sobreviveu, durante 20 anos, trabalhando no Aterro
Sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Estamira
388
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

foi diagnosticada como portadora de distúrbios mentais,


submetida a tratamento e internação a pedido de sua própria
família, em especial de seu filho mais velho, Testemunha
de Jeová, que vive recitando trechos da Bíblia em casa.
Logo no início do documentário, Estamira comunica o
que acredita ser sua missão: “revelar e cobrar a verdade dos
homens”. A partir daí ela estabelece uma relação dialógica
com o mundo ao seu redor, de forma vigorosa, vertiginosa,
que provoca estranhamento — exceto àqueles que com ela
convivem e vivem no e do lixão; dois homens que aparecem
no documentário estão dispostos a se casar com Estamira,
fascinados que são por sua figura. O que chama a atenção, o
tempo todo, é a linguagem que ela desenvolve para expressar
e criticar a situação e condição em que vive; ao fazer isso,
porém, ela coloca em questão inúmeros valores fundamentais
da sociabilidade humana e, mais que isso, coloca em questão
os produtos diversos da civilização: nossa cultura. Num
momento antológico ela diz:

Este aqui é um depósito dos restos; às vezes é só


resto, e às vezes vêm também descuidos — resto
e descuido. Quem revelou o homem como único
condicional, ensinou que preservar as coisas é
proteger, lavar, limpar e usar o quanto pode.

Ela está a falar sobre nossos descuidos com as


coisas e com o mundo objetivado que nos rodeia e que nós
construímos, mundo do qual somos dependentes. Quando
ouvi isso já passei, imediatamente, a desconfiar da “loucura”
de Estamira. Na realidade, ela parece querer nos arrastar à
consciência a cada momento, à lucidez, só que não é a lucidez
ou racionalidade instrumental a que estamos acostumados;
ela construiu uma linguagem toda própria para enfrentar a
389
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

insanidade do mundo. De acordo com a análise de Arnaldo


Jabor, divulgada na contracapa do documentário, “A
insanidade de Estamira é uma linguagem de defesa diante
de um mundo muito mais louco que ela. A sua loucura é a
narração de uma sabedoria torta, de uma anomalia que a salva
de uma realidade, esta sim, terrivelmente insana”.
Assim, não se trata de indagar, psicanaliticamente,
o que é “normalidade” e o que é “insanidade”. Trata-se, antes,
de perceber os desvios que Estamira encontra e provoca para
superar sua — e nossa — insuportável realidade. Estamira
pensa sua vida. E ao fazer e expressar daquela forma, ela
provoca em nós o pensar, o estranhamento, a inquietação
e o incômodo, justamente porque nos obriga a olhar para a
realidade e os descuidos que nós produzimos. A qualidade do
seu pensar fica particularmente evidente quando ela se refere
aos médicos que lhe prestam atendimento e ao processo de
ensino e aprendizado: “vocês copiam, acusa ela, vocês apenas
copiam”.
O documentário, vencedor de 25 prêmios
nacionais e internacionais, revela, através de um “modelo
exemplar”, a vida de milhões de pessoas que, cotidianamente,
têm que inventar e produzir sentido para o seu viver concreto,
material, tangível. Sua loucura é fruto do isolamento
social, do abandono, do desamor e das condições objetivas
massacrantes a que ela — e milhões — é diariamente
submetida sem remissão, sem qualquer possibilidade de
auto-desenvolvimento, de afirmação das suas potencialidades
humanas. E o mais curioso é que, nesse sistema produtor de
miserabilidade humana, o “insano” é sempre o indivíduo,
o sujeito que não encontra outros meios para contornar os
“descuidos” da civilização, senão pela recusa da norma e dos
dilaceramentos impostos, mesmo quando vítimas diretas
desse dilaceramento.
390
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

O segundo exemplo, como já explicitei, é no


campo da música, e eu tomo aqui a obra de Consuelo de
Paula. Diferentemente de Estamira, Consuelo estabelece
sua relação de resistência ao processo de fragmentação e
de destruição engendrados pela realidade insana através
do pensar e fazer artísticos. Compositora, cantora,
instrumentista, poeta, produtora e divulgadora da cultura
brasileira, Consuelo de Paula constrói uma obra musical
singular, que se alimenta da tradição popular. Do meu ponto
de vista ela faz, artisticamente, aquilo que Mário de Andrade
defende e classifica como arte popular: a arte não feita pelo
povo — isso seria cultura popular —, mas a que é elaborada
a partir dele, necessitando, pois, da mediação estética do
artista. Nas oficinas que oferece ela demonstra, na prática,
um pouco desse seu processo de adaptação e criação a partir
de temas regionais populares. Desse trabalho, desse pensar,
resulta sua síntese sonora que é, antes de tudo, expressão de
diversidade, de coletividade. Sua linguagem não é, como a
de Estamira, fruto do isolamento, mas sim de um intenso e
fecundo intercâmbio entre grupos portadores de distintas
sonoridades. Não falo aqui de resgate cultural, mas de
renovação artística que bebe na fonte inesgotável da cultura
popular e amplia o campo de possibilidade criativa.
Paradoxalmente, nada nos parece imediatamente
mais arraigado e destinado ao imobilismo, à não renovação,
como a ideia de cultura popular, tanto que se cobra
particularmente do Estado o compromisso com sua
conservação e defesa da contaminação engendrada pela
cultura de massa.
Em sua obra, Consuelo de Paula revela a falácia
dessa perspectiva. Principalmente a falácia de que cultura
popular está fadada ao imobilismo, à tradição e, portanto,
a não renovação. Ela nos mostra que tradição é sinônimo
391
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de diversidade; diz, sim, respeito à herança, mas aquela que


se vai recriando, se transformando no processo comum do
viver presente. Nos faz reconhecer que a cultura popular é,
necessariamente, localizada, regionalizada e, para sobreviver
enquanto tal, tem que impor certos limites aos seus próprios
registros.
Na condição de sabedores de algo particular, as
comunidades, por sua vez, buscam cultivar costumes e opor
uma resistência necessária ao processo globalizante que
tende a todo custo impor a uniformidade. Tal resistência
contraria aqueles que, com um olho no mercado e o outro
no afã de ser moderno — e ser moderno neste caso é rejeitar
o que é regional —, agem de modo a produzir determinadas
combinações sonoras que possam ser aceitas em qualquer
lugar do planeta.
Assim, ser regional é algo raro. É a demonstração
de que a comunidade está sendo capaz de resistir aos ataques
a seu direito de existir de um modo particular. Nesse sentido
a cultura popular não deixa de ser um exercício, uma luta
coletiva contra a fragmentação e a decadência impostas pelo
processo de globalização ou mundialização da cultura.
Compreender isso é imprescindível a um
diplomata, um negociador internacional e aos professores,
em especial aqueles que trabalham na área de Relações
Internacionais. Curiosamente, muitas dessas pessoas — e
outras tantas — ficam incomodadas quando artistas centram
seu trabalho — ou parte dele, como é o caso de Consuelo de
Paula — em nossas fontes populares: “é brasileiro demais”,
dizem, “é regional demais”.
Nessas falas estão implícitas relações entre
espaços sociais distintos, como se a geografia determinasse as
propriedades inerentes à obra e sua recepção restrita a esses
lugares. Na realidade, o que está sendo obscurecido é o fato
392
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

dessa produção musical não se curvar a combinações sonoras


programadas em estúdios de grandes empresas fonográficas
que detêm o controle do mercado de entretenimento. Assim,
estes agentes, mesmo estando a léguas de distância destas
modalidades sonoras e dos artistas que as produzem, têm o
poder de intervir para gerar a crença de que certos ritmos
são “brasileiros demais” e “regionais demais”. Ao mesmo
tempo, aqueles que se constituíram nesta realidade —
brasileira —, estão sem pensá-la. E assim essas expressões
são copiadas (como acusa Estamira) e repetidas sem nenhum
estranhamento.
A questão, então, é nos voltarmos para nossa
cultura como vida pensada, pois a música não deixa de ser um
meio particular de reação e visão de mundo — apurada ou
entorpecida — e, como fenômeno humano, está presente em
todos os grupos. Ainda que sua materialidade se concretize
localmente, sua universalidade depende da capacidade do
artista para incorporar elementos, vivências e sentimentos
variados. É isso que encontramos no trabalho de Consuelo
de Paula. Uma obra artística aberta, moderna, justamente
porque consegue apreender a riqueza e a singularidade do
regional, articulando esteticamente o universal e o particular,
a tradição e a contemporaneidade. Ela consegue também
estabelecer um desvio em sua rota, para construir, a partir das
suas fontes, um trabalho e uma linguagem sonora singular.
Mas a medida exata dessa mediação só se entende a partir
da audição de sua obra.
O que quero ainda ressaltar no trabalho de
Consuelo de Paula é a linguagem artística como forma de
expressão de uma determinada apreensão de mundo, de
um pensar e um viver que significam, ao mesmo tempo, a
auto-afirmação de si enquanto ser mediador, e as possíveis
formas de enfrentamento e de resistência frente a um
393
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mundo que nega as possibilidades de desenvolvimento das


potencialidades humanas. Mas para tanto é preciso trabalho,
que no caso se traduz num intenso processo de apropriação
ativa da tradição.
Também chamo a atenção para uma questão
metodológica: os conceitos tradição e cultura não são aqui
compreendidos separadamente. Há um vício de pensamento
que concebe tradição como algo estático, ultrapassado,
longínquo, herança perdida. E reserva ao termo cultura
a noção de variação, diversidade ou diferença, como
se tradição também não fosse expressão disso tudo. O
problema é não compreender que a variação cultural não é
só uma herança de um passado, mas também, e, sobretudo,
uma criação contínua, uma transformação em processo no
nosso viver comum.
Estamira não tinha a arte como elemento
mediador de si com o mundo; criou uma linguagem de defesa,
forjada no isolamento forçado do mundo. Consuelo de Paula
toma a arte como mediação, e propositadamente forja um
isolamento, um desvio da mesma realidade em que mergulha,
pois que não se contenta em refletir, em copiar a realidade; sua
forma de contestação é recriar, com recurso estético próprio,
um campo de resistência a toda forma desumanizadora,
destituída de qualquer delicadeza. A superioridade da arte e
da cultura, neste caso, está justamente no fato de que o artista,
ainda que criando sob um imperativo interior que, não raro,
pode ser visto como um tormento interior — certa dose de
insanidade até, basta pensarmos em Clarice Lispector, Ana
Cristina César, João Antonio, João Rath, entre outros —,
produz para o mundo, para a humanidade, e não apenas para
suportar a dor do ser-artista ou o peso da história.
Para ambas, Estamira e Consuelo de Paula, a
palavra é o elemento central das respectivas práxis sociais, que
394
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

é a de atribuir significado — particular, no caso de Estamira,


universal, no caso de Consuelo — ao mundo que as rodeia.
Ao apreendermos, pois, a arte e a cultura como
práxis social, isto é, enquanto uma atividade material —
enquanto trabalho — que medeia a relação entre o homem
e a natureza, podemos perceber melhor, como já foi dito
aqui, a necessidade de cuidarmos das mediações que,
invariavelmente, formatam nossa consciência. O olho e
ouvido humanos não bastam para perceber a beleza visual e
sonora. Há que haver um aprendizado para isso. Só assim se
possui o sentido da beleza. Isto se realiza devido ao fato de
os sentidos humanos estarem interligados uns com os outros,
inclusive com o raciocínio (MÉSZÁROS, 2006, p. 182). O
desafio colocado para o homem está na possibilidade de
apoderar-se de sua essência total de maneira total, sem separar
os sentidos “práticos” da razão, subordinando os primeiros
ao segundo, de modo que os sentidos perdem seu caráter
meramente “teórico”, abstrato, tornando-se sentidos humanos.
Em outros termos, a educação dos sentidos é que nos permite
responder humanamente às necessidades e paixões naturais.
Como diz Marx, “ser sensível é ser padecente. O
homem enquanto ser objetivo, sensível é, por conseguinte,
um padecedor, e, porque é um ser que sente o seu tormento,
[é] um ser apaixonado” (MARX, 2004, p. 128).

Notas

Alfredo Bosi relata uma experiência vivida por ele na periferia de


1

São Paulo, durante uma festa de São João, oportunidade em que os


festeiros foram lavar o santo num regato nos fundos do loteamento.
A população seguiu em procissão e, entre eles, a pessoa incumbida
de levar o santo até as águas estava com as mãos estendidas,
395
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

espalmadas, mas vazias. No regato ela se debruçou, banhou as mãos


vazias e levantou-se, enquanto todos cantavam hinos de procissão.
Depois Bosi soube que o santo havia sido roubado da capela,
assim, fizeram uma lavagem simbólica, mas com o mesmo fervor
e os mesmos cantos, como se a imagem estivesse presente. Para a
população, mesmo sem o santo, a festa preservava sentido, e sentido
autoafirmador daquela comunidade (BOSI, 1987, p. 46-47).

Referências

ADORNO, T. W. O fetichismo na música e a regressão


da audição. In: ______. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. (Os Pensadores).

BOSI, Alfredo. Cultura como tradição. In: BOSI, Alfredo


et al. Cultura brasileira: tradição contradição. Rio de Janeiro:
Zahar e Funarte, 1987.

FREDERICO, Celso. A arte em Marx: um estudo sobre os


Manuscritos Econômico-Filosóficos. Revista Novos Rumos,
São Paulo, ano 19, n. 42, 2004. Encarte especial.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. Tradução de


Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.

MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução


de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2006.

VÁZQUEZ, Adolfo Sanches. As idéias estéticas de Marx. 2. ed.


Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1978.
396
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Outras fontes consultadas

ESTAMIRA. Direção de Marcos Prado. Rio de Janeiro:


RioFilmes, 2005. (Documentário)

PAULA, Consuelo de. Samba, seresta & baião. São Paulo:


Produção Independente, 1998. 1 CD.

______. Tambor & Flor. São Paulo: Produção Independente,


2002. 1 CD.

______. Dança das Rosas. São Paulo: Produção Independente,


2004. 1 CD.

_______. Consuelo de Paula. Disponível em: <http://www.


consuelodepaula.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2007.

397
Estética musical
contemporânea e
musicalidade brasileira

Consuelo de Paula

Uma observação inicial

Este é o texto integral da Oficina sobre Estética


musical contemporânea e musicalidade brasileira, oferecida por
Consuelo de Paula durante a VI Jornada do Núcleo de Ensino
de Marília (14 a 16 de agosto de 2007). Fátima Cabral, docente
da UNESP — Campus de Marília, fez a organização da
Oficina, a transcrição e a preparação do texto para publicação,
buscando preservar o tom coloquial da apresentação e a
interferência do público, registrando perguntas e observações.
Os trechos grafados entre colchetes representam a narrativa
da organizadora.

Desenvolvimento do tema

Esta oficina é um depoimento sobre a minha


extrema admiração. Parece-me que foi Sócrates quem disse
que sem admiração não existe arte. Admirei toda a minha vida
a canção brasileira, a forma de expressão musical de nosso
povo, tanto nas manifestações da cultura popular, do mundo
do domínio público, quanto do mundo do direito autoral,
junqueira&marin editores 399
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

dos nossos compositores. Meu caminho resulta na canção.


Esse é o milagre que vem da união da letra com a melodia,
resultando nesse terceiro elemento. Aqui compreendo melhor
o significado da santíssima trindade: cada elemento contém
o todo em si, a melodia já contém a letra e vice-versa. Isso,
claro, quando arte. [Consuelo fala os versos:] “canoa, canoa
desce no meio do rio Araguaia/ desce...” Agora ouçam com
a melodia e percebam como esta nos coloca dentro da canoa,
no movimento do rio. [Consuelo canta os versos acima.]
Quando escrevo uma letra antes da melodia ela
já contém as diretrizes desta e quando recebo uma melodia
ela já traz o significado poético. E é dessa união que quero
falar, é por causa dessa união que desenvolvi minha estética
musical: tudo para expressar da melhor forma a essência
da canção, tanto melodia quanto letra. A canção é a estrela
que brilha em meu trabalho: tudo por ela e por causa dela.
Comecei admirando, admirando, admirando, por isso o
primeiro registro é da intérprete e da ideia: o título do cd —
Samba, Seresta & Baião — já expressa uma ideia, através dos
arranjos, do repertório, da paixão pela música brasileira.
Vou demonstrar o trabalho da intérprete cantando
algumas canções que fazem parte da minha obra: [Toca e
canta Lua Branca, registrada em seu cd Samba, Seresta & Baião.]

Ó, lua branca de fulgores e de encanto / se é


verdade que ao amor tu dás abrigo / vem tirar dos
olhos meus o pranto / ai, vem matar esta paixão
que anda comigo / ah! Por quem és, desce do céu,
ó lua branca / esta amargura do meu peito, ó, vem
arranca / dá-me o luar de tua compaixão / ó, vem,
por deus, iluminar meu coração. / e quantas vezes
lá no céu me aparecias / a brilhar em noite calma e
constelada / e em tua luz, então, me surpreendias
400
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

/ ajoelhado junto aos pés da minha amada / e ela


a chorar, a soluçar, cheia de pejo / vinha em seus
lábios me ofertar um doce beijo / ela partiu, me
abandonou assim / ó lua branca, por quem és,
tem dó de mim. [Chiquinha Gonzaga, Lua Branca]

Tento aproximar o canto da voz falada. Talvez


essa frase contenha toda a explicação para a forma com a qual
expresso meu canto. E observem em Lua Branca (modinha
quaternária) a divisão que chamo de circular para trazer esta
canção, que é de 1912, para uma audição contemporânea.
Outro exemplo é Noite cheia de estrelas, que foi
interpretada por Vicente Celestino por volta dos anos 30.
Vou fazê-la aqui à capela.

Noite alta, céu risonho / a quietude é quase um


sonho / o luar cai sobre a mata / qual uma chuva
de prata / de raríssimo esplendor / só tu dormes
não escutas / o teu cantor / revelando à lua airosa
/ a história dolorosa / desse amor. / lua / manda a
tua luz prateada / despertar a minha amada / quero
matar meus desejos / sufocá-la com meus beijos
/ canto / e a mulher que eu amo tanto / não me
escuta, está dormindo / canto e por fim / nem a
lua tem pena de mim / pois ao ver que quem te
chama sou eu / entre a neblina se escondeu. / lá
no alto a lua esquiva / está no céu tão pensativa /
as estrelas tão serenas / qual dilúvio de falenas /
andam tontas ao luar / todo o astral ficou silente
/ para escutar / o teu nome entre as endechas / as
dolorosas queixas / ao luar. [Candido das Neves
(“Índio”), Noite cheia de estrelas, no cd Samba,
Seresta & Baião]
401
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Observem o andamento sobre o qual desenho a


melodia e a letra destas canções. É um andamento bem mais
rápido do que o executado na época, mas a divisão que uso
não provoca a sensação de aceleração.
Espero que tenha ficado clara essa ideia de que
estamos agora, em 2007, ouvindo essas canções, e mesmo
com termos da época, a forma de sentir é deste instante,
exatamente deste instante.
Vo u c o n t r a p o r i s s o c o m u m a c a n ç ã o
contemporânea, pois essa é também uma ideia presente: o
disco é todo em terços e já anuncia a trilogia; o repertório
pensa no equilíbrio entre as épocas das canções, entre os
universos do samba, da seresta e do baião, universos esses
revelados nos arranjos, nos instrumentos escolhidos, na
colocação da voz. Esta é uma canção do Mário Gil, um
amigo, compositor contemporâneo, com quem comungo a
mesma musicalidade.
[Toca e canta Anabela, registrada no cd Samba,
Seresta & Baião]

No porto de vila velha / vi Anabela chegar / olho


de chama de vela / cabelo de velejar / pele de
fruta cabocla / com a boca de cambucá / seios
de agulha de bússola / na trilha do meu olhar. /
fui ancorando nela / naquela ponta de mar. / no
pano do meu veleiro / veio Anabela deitar / vento
eriçava o meu pelo / queimava em mim seu olhar
/ seu corpo de tempestade / rodou meu corpo no
ar / com mão de rodamoinho / fez o meu barco
afundar / eu que pensei que fazia / daquele ventre
meu cais / só percebi meu naufrágio / quando era
tarde demais / vi Anabela partindo / pra não voltar
nunca mais. [Mário Gil e Paulo César Pinheiro]
402
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

No Samba, Seresta & Baião tem várias coisas


que não vou poder mostrar aqui porque estou sem meus
violonistas, e isso me impede de executar a harmonia como
está registrada no cd. Faz parte dessa estética contemporânea
essa harmonia que a gente cria para o trabalho; depois farei
a parte percussiva, pois Cássia Maria, minha percussionista,
está aqui. Tem lá sambas maravilhosos como Lenço Branco,
de Ataulfo Alves, que na época dele era considerado não
comercial, um samba maravilhoso, desconhecido; tem Portela
na Avenida, e eu quis cantar aquela letra em forma de oração;
Azulão, que eu trouxe para uma roda de choro, uma toada
nossa. Na pancada do ganzá a gente vai mostrar durante o
pocket-show, logo após a oficina, depois Rainha, Riacho de
Areia, Folia, Jequitinhonha, canções que estão no universo da
cultura popular, enfim, nossos ritmos. O Brasil é uma coisa
incrível de diversidade, de riqueza, de modo que eu posso
ficar a vida inteira fazendo isso, ouvindo isso, e não vou
saber nada. Nesse trabalho registrei um pouco do Brasil que
ouço, que visito, que invento; esta é a arte que acredito ser
contemporânea, universal1.
Depois desse, que é um trabalho mais da
intérprete, me convidaram para cantar uma canção num cd
sobre o Rio São Francisco.
[Toca e canta O ciúme registrado no cd Velho Chico
– uma viagem musical, de Élson Fernandes]

dorme o sol à flor do Chico meio dia / tudo


esbarra embriagado de seu lume / dorme ponte,
Pernambuco, Rio, Bahia / só vigia um ponto
negro: o meu ciúme. / o ciúme lançou sua flecha
preta / e se viu ferido justo na garganta / quem
nem alegre nem triste nem poeta / entre Petrolina
e Juazeiro canta. / Velho Chico, vens de Minas / de
403
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

onde o oculto do mistério se escondeu. / sei que


o levas todo em ti / não me ensinas / e eu sou só,
eu só, eu só, eu / Juazeiro nem te lembras desta
tarde / Petrolina nem chegaste a perceber / mas na
voz que canta tudo ainda arde / tudo é perda, tudo
quer buscar, cadê. / tanta gente canta / tanta gente
cala / tantas almas esticadas no curtume / sobre
toda estrada, sobre toda sala / paira monstruosa
a sombra do ciúme. [Caetano Veloso]

[Os questionamentos começam a surgir:]


— Por que o título do cd é Samba, Seresta e Baião
se nele há outros ritmos como o coco e a toada? Outra
coisa: a música brasileira tem uma musicalidade própria e é
reconhecida. Agora, na academia, não ocorre o mesmo em
relação às teorias com as quais trabalhamos. Você teria alguma
explicação para isso?
Consuelo de Paula (CP) — Quanto à sua
primeira pergunta: esses nomes estão aí de maneira lúdica: o
universo do samba, o universo da seresta e do baião — seriam
as três grandes almas musicais brasileiras. Não são termos
acadêmicos nem musicais ao pé da letra, estão aí de forma
simbólica. E realmente, se você pensar em todos os signos que
encontramos no samba, na seresta, no baião, você consegue
aproximar tais ritmos a esses três grandes universos. É apenas
um título, mas eu viajo através de vários ritmos. Coloco as
coisas mais terra no universo do baião. Então, quando faço
uma folia eu estou pensando nisso, quando faço um coco,
um cacuriá, um reizado, coloco dentro do universo do baião.
Quando faço um choro estou colocando-o no universo do
samba, mas eles se interpenetram muito; às vezes você sai
para as festas populares, você encontra alguém com a mão no
couro, tocando uma célula do congado — reproduzo o ritmo
404
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

vocalmente — isso é um samba. E no universo da seresta eu


coloco nossas canções, as valsas, as toadas etc.
Quanto à segunda parte da sua questão, nossa, eu
não sei. Talvez a gente possa começar falando em herança,
a gente já herda tanta coisa — “Herdei um nome, um toque
de congo, um jeito de corpo, espiga de milho...” — enfim,
herança, tradição, musicalidade presente; e isso é uma coisa
que se tem ou não se tem. Musicalidade é uma forma de
expressão muito fácil para quem tem talento; e se pensarmos
nesse país enorme, no tanto de gente que tem vocação
musical... ao mesmo tempo é uma coisa extremamente difícil.
E acho que desde o começo sempre foi uma forma de luta.
Se nos lembrarmos dos negros chegando aqui, a forma de
manter a sua cultura, de lutar, se adaptando também aos
nossos costumes, provocando a miscigenação. Está bom, se
tem que ser na porta da igreja, seja, mas nós vamos cantar, dançar e
batucar. Esses dias mesmo eu disse à Fátima (Fátima Cabral,
Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências e participante
da Oficina) que o Divino Espírito Santo, na cultura popular,
era um pássaro de bico dourado, e que eu tinha me inspirado
nisso para fazer meu Pássaro Encantado “um bicho do sul da
América que tem que sobreviver” — isso já demonstra essa
maneira de troca, de mistura, de provocação. Os contatos dos
negros com as cheganças portuguesas, com nossos índios,
isso foi desde sempre, para a música, uma forma criadora e
forte. “Atirei pedra no vento com tambor feito de flor...” não
saberia responder muito bem a isso, mas acho que é disso
tudo que se tem na mão. Ainda bem que nasce um povo
musical, que já tem seu jeito de corpo, que se expressa dessa
maneira, e isso vai acontecendo à revelia de qualquer coisa.
Ainda ontem um amigo me ligou do Nordeste
para dar uma boa notícia: “a cultura popular aqui está forte,
maior esperança, o povo tá que tá...” E eu me lembrei do
405
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Ariano Suassuna, a estória que ele conta e relaciona com a


cultura popular: a mulher achou na cabeça do marido um
piolho, foi lá, pegou e mostrou: olha, tirei um piolho da sua
cabeça. Ele diz: não é piolho. Ela: é piolho. Não é piolho.
É piolho, insistia ela, até que ele a jogou no rio; quando
ela já estava quase se afogando o último gesto dela era este
[encontro dos dedos polegares matando piolho]. É piolho
de qualquer jeito. Assim é a cultura popular, tem uma força
incrível, à revelia de qualquer coisa. E mesmo nós, artistas
profissionais de hoje, estamos produzindo e fazendo uma
revolução. Isso é necessidade vital.
— Fale um pouco mais sobre sua relação com a
tradição, com a cultura popular, essa fonte onde você bebe
e traz para seu trabalho, produzindo uma estética musical
contemporânea. Para isso você diz que precisa “esquecer”.
Que processo é esse, como você elabora a síntese entre o
velho e o novo?
CP — Veio num ótimo momento essa pergunta.
Falei que comecei com a admiração, e achei que era a única
palavra para dizer aqui hoje, mas depois acabei achando mais
umas duas, e a próxima é o silêncio. Quando acabei o Samba,
Seresta & Baião quis começar o Tambor & Flor com o silêncio.
Acho que é parecido com aquilo que já expressei aqui: admirar,
admirar tanto as coisas da nossa cultura popular, do domínio
público, quanto a do direito autoral dos nossos compositores.
Nada mais forte que a admiração. Sem admiração não tem
arte, impossível. Não tem arte, não tem amor. Então admirei
muito, muito, muito. E depois o silêncio. Acho que ele é a
forma. Acaba acontecendo junto. Como essa admiração vai
se expressar, como esse esquecimento vai se dar? Foi um
namoro longo com o silêncio, longo e profundo, anos e
anos com esse silêncio para poder vir uma expressão, para
poder conseguir me expressar de uma forma artística, que
406
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

unisse a minha extrema necessidade com a música e o belo;


durante o tempo todo só estou dizendo isso: olha que lindo,
ouça como é belo... Tambor & Flor chega nesse momento de
aprofundamento, tanto que é uma obra bem essencial. Ela
cumpre essa função na trilogia, aquele filho do meio mais
quieto. Aqui eu já sabia que seria uma trilogia, a minha trilogia
amarela. O primeiro já tem três partes no título, tudo nele é
em terços; eu considero o disco da ideia. Este segundo é o
disco da voz, dos timbres, e nele surge a compositora; quis
tudo só na percussão suave, só no violão de nylon, apenas
eu, Mário Gil e Cássia Maria. Aqui são outros os terços
presentes: o mundo do domínio público, o de compositores
contemporâneos e as composições próprias. Vou mostrar
uma delas agora, mas antes vou revelar um pouco sobre o
processo dessa criação, que é bem interessante.
O Elson, um compositor amigo, violonista,
cearense, me contou que tinha uma grande amiga poetisa,
Maria Del Carmen. Natural da Argentina, sofreu na ditadura
e veio para cá quando sua obra era ainda pouco conhecida
por lá; quando estava começando a ser descoberta, ela teve
que vir para o Brasil. Certa vez ela pediu para ele musicar os
poemas dela, mas só quando ele soube da sua morte é que
fez uma melodia e deu para eu colocar letra. Foi uma coisa
muito forte isso — aquilo que eu falei sobre o mistério da
Santíssima Trindade — ele me passou a melodia, mas eu não
conhecia nada da história, só sabia que ela se chamava Maria
Del Carmen — nome que coloquei no título — e aquela
melodia me contou coisas que só depois eu soube. Quando
gravei o programa Ensaio da TV Cultura, o Fernando Faro
pediu uma foto dessa poetisa, eu não tinha, então entrei em
contato com o filho dela, que eu não conhecia. Quando ele
atendeu o telefone e eu falei que era Consuelo de Paula ele
ficou mudo, depois falou que eu havia pontuado a vida da mãe
407
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

dele. Disse que aos doze anos ela ganhara um concurso com
um poema sobre a Alfonsina — eu começo a letra falando da
Alfonsina — e foi falando outras coisas sobre ela, e acabou
que tudo o que eu descrevo na canção ela tinha pedido que
acontecesse. Foi a melodia que me contou isso. Aí está a
sensibilidade. A parceria exige isso, essa sensibilidade. Quem
faz letra e melodia ao mesmo tempo é diferente, mas na
parceria, chega uma melodia para mim e eu consigo entender
o que ela está dizendo em palavras.
[Toca e canta Maria Del Carmen.]

Vou queimar o teu poema / junto com teu corpo


/ pra te acompanhar / feito uma alfonsina / vou
jogar no mar. / vai voar, reescrever no ar / outras
palavras / pra te eternizar / como uma coralina /
vou poder plantar. / vão bailar / enquanto pousam
/ lá no mar / letras e canções / vão dançar / uma
linda valsa de adeus / uma dança de chão e de ar
/ onda, cinzas e carnaval / igual ressuscitar / pra
que um filho possa / valsar com a mãe. / vão bailar
/ enquanto pousam lá no mar / letras e canções /
vão dançar / uma linda valsa de adeus / uma valsa
boa de bailar / até o fundo do chão do mar / e o
poema também / já pode descansar / brilhar em
paz, amém. [Elson Fernandes e Consuelo de Paula]

Pois é, é uma maluquice e eu falei: e agora, o que


esse menino está me contando? É uma responsabilidade
enorme! E isso não parou aí. Marquei um encontro com ele
porque queria conhecer as poesias de Maria Del Carmen.
Ele me levou uns poemas — nos encontramos num bar, ele
colocou os poemas sobre a mesa — comecei a ler um que
se chamava “Poema para dança”. Li duas frases e aconteceu
408
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

uma coisa que se repetiu por mais umas duas vezes. A vista
turvou. Gostei demais daquilo, parei de ler. Cheguei em
casa e meu parceiro, que nunca me manda a melodia com
título, desta vez havia mandado uma com o nome Dança.
Imediatamente escrevi uma letra — que é a música que abre
meu terceiro cd (Dança das Rosas) — Dança para um poema,
inspirada nessa conversa maluca com esse poema que foi
dançado na Argentina. Eu estive lá, cantei em dois teatros
e me senti muito bem podendo registrar na Argentina essa
história da Maria Del Carmen.
Eu não sabia que ia conseguir fechar esse ciclo
criativo de uma forma autoral. Não imaginava, e veio esse
presente, que é a parceria com Rubens Nogueira. Enfim, a
rosa amarela toma conta da capa, vem essa sorte de poder
encerrar de forma autoral, de poder expressar aquilo tudo,
de conversar com aqueles universos todos que eu admirava,
que eu já havia gravado. Várias letras eu mandei antes para
o Rubão, ele me mandou algumas melodias, é uma parceria
muito abençoada. A primeira melodia que ele me mandou
foi isso aqui, e eu vi que a coisa era grave...
[Toca e canta Estrada de Água do cd Dança das rosas]

Meu amor vem com o rio / num dia de sol virá /


me dirá que já havia / já passou e vai passar / já
chegou e vai chegar / diferente a cada vez / vai
me amar e já sabia / com o rio ele vem. / e nem o
medo, nem treva / nem luz e nem a estrada / de
água, nem vento, nem sol / vai levar para longe de
mim meu amor / quando ele me olhar... / o meu
medo, espera e olhar... / meu cansaço, prazer e o
bem querer. / meu amor vem com o rio / com a
chuva ele virá / me dirá que já queria / já passou
e passará / já chegou e chegará / por um fio está
409
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

por vir / vai me amar e já trazia / com o rio, meu


amor. / o amor e o meu rio / água e sol dentro de
mim / depois dele eu já queria / água e sol dentro
de mim / já desvio minha dor / por prazer e por
calor / vai me amar e já podia / com o rio o meu
amor. [Rubens Nogueira e Consuelo de Paula]

— Na academia, quando há uma mudança na


forma de pensar fala-se em ruptura. Mas parece que você
propõe uma outra maneira de transformar. Você fala sobre
o ato de desviar. É isso?
CP — Pois é, tem coisas na escrita que não são
conscientes — “já desvio minha dor, por prazer e por calor...”
— e estas geralmente são as melhores; a cada audição me
surpreendo, me vejo remetida a um lugar distinto. Mas é uma
arte, o desviar. E agora pensando nas outras possibilidades
para esta frase, realmente, a melhor palavra é o desviar.
— Do que eu ouvi, pareceu-me que o elemento
água é muito presente em seu trabalho. É isso?
CP — Isso mesmo, você vê que está todo no
universo da água. Essa foi a primeira melodia, ele mandou
a fita, e quando eu ouvi aquilo [cantarola a melodia] fiquei
louca. E foi imediato, o movimento do rio, o tempo, a melodia
já sugere esse movimento: “meu amor vem com o rio...” o
movimento já transporta para isso. Também eu estava perto
de um rio, mas poderia não estar. Eu estava em Minas, num
sítio, olhando através de uma janela.
Fecho a trilogia conversando estreitamente com
os trabalhos anteriores: a mesma divisão e equilíbrio em
todos os aspectos, só que agora é o cd da compositora,
principalmente da letrista. Rubens Nogueira é o melodista.
O cd da canção.
410
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Aqui quero colocar outra palavra: simbologia. Penso


que é assim que tento expressar a brasilidade. Tudo o que falo
aqui é concebido depois da arte terminada; primeiro deixo a
necessidade, a expressão necessária, o conteúdo, a intuição,
a emoção. Depois posso olhar e tentar explicar algumas
questões que vejo, que na hora da criação provavelmente
estão juntas com as questões da inspiração [declama]:

Dou-te a minha pele, a minha mão / hoje sou a


terra da criação / passam rios / no meu corpo /
na minha voz / navios e embarcação / hoje sou
a terra onde nasceu / onde minha tribo nunca
morreu / meus pés irão / desenhar / o coração /
a montanha / e a nação / mostro minha dança /
vento, canção / lírios e madeiras / vinhos e pão
/ mostro a ti / com a minha mão / o amor, o
sal / pedra e paixão / ... / sou um continente /
desconhecido / um salão de dança / a imensidão
/ a minha pele / a minha mão / eu vou te dar / te
convidar / para dançar. [Trecho da canção Dança
para um poema, do cd Dança das Rosas, Rubens
Nogueira e Consuelo de Paula]

A canção que fecha o cd Dança das Rosas é muito


simples, mas exemplifica uma outra coisa. Eu escrevi um
poema, não pensando que fosse canção. Porque no Dança das
Rosas várias letras surgiram já como canção “A esperança é
insistente, mesmo triste ela reside...”. “A canção é meu pecado,
minha dor e redenção, meu brinquedo, meu reizado, meu
bocado de pão....” e essa aqui, letra de Curativo, não; tratava-
se de um pequeno poema que eu escrevi numa coluna na
internet; o Rubão foi lá, leu e musicou. Segundo ele, mesmo
que eu queira escrever uma coisa não musicada não vou
411
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

conseguir; segundo ele tudo o que escrevo já é musical. Vou


ler antes o “Amor violeta” da Adélia Prado, que é uma poeta
que eu adoro; é também uma outra mineira; só aos quarenta
anos começou a registrar, a expressar sua arte. [Lê o poema:]

O amor me fere é debaixo do braço, / de um vão


entre as costelas. / Atinge o meu coração é por
esta via inclinada. / Eu ponho o amor no pilão
com cinza / e grão de roxo e soco. / Macero ele,
/ faço dele cataplasma / e ponho sobre a ferida.
[Adélia Prado, Amor violeta, in: Poesia Reunida]

[Toca e canta Curativo:]

Coloquei sobre a ferida / a margarida branca /


demorou, demorou / esperei cada pétala / em
forma de vela / cobrir a dor / fiquei quieta / fiz
repouso / até que a cicatriz / marcou a pele / em
forma de flor. [Rubens Nogueira e Consuelo de
Paula]

Lancei Dança das Rosas em 2004; em 2005 fiz


shows e depois dei um tempo na produção da forma material
do cd, mas já tenho outros três trabalhos quase criados. Vou
ler uma letra que faz parte desse novo ciclo:

Asa de seda vazada de azul / banhada de vento,


cortada de sol / asa de nada, morada do céu /
cinza de lua caída no véu / do dia. / chamarei o
seu nome mil vezes / criatura de pólen, riscada de
flores / transparentes. / sua casa é a minha casa
/ figura de estrela / caminho onde vaza / amor
enfeitando ar / sua casa é a minha casa / pintura e
412
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

quimera / carinho de asa / azul inventando amor.


[Borboleta – Rubens Nogueira e Consuelo de Paula,
para o cd Casa, em processo de produção]

Essa letra abre o novo ciclo, mas Casa não deixa


de ser um aprofundamento do Dança das Rosas. Além deste
— que está praticamente pronto para a produção — estou
terminando a criação de outro álbum com vários parceiros;
um álbum guiado pela cor vermelha, que vai se chamar Negra.
As canções partem de trovas populares, que resultam num
mote, num refrão, e depois aprofundo na minha linguagem.
Será um cd mais quente e ao mesmo tempo mais leve.
[Toca e canta Água doce no mar]

Guarde um peixe do norte pra mim / um vestido


de renda menina / e um sentimento de mar / o
barco, o mar e o meu surubim / a minha oferenda
/ pra quando o vento acalmar / guarde esta prenda
menina / e a sorte de navegar. / A cidade passeia
/ tem rastro de amor na areia / a cidade ondeia /
é dia de maré cheia. / Cuide bem deste peixe pra
mim / cante um fado, ciranda menina / e uma
saudade de amar / a rede, o sal e o meu surubim
/ a estrela do norte / pra quando o amor terminar
/ será meu presente menina / voltar e voltar e
voltar. [Socorro Lira e Consuelo de Paula, para o
cd Negra, em processo de produção]

— Como alguém que não nasceu nem vive perto


do mar pode falar assim do mar?
CP — Surubim é um peixe que já foi símbolo
da riqueza do Rio São Francisco, principalmente no pedaço
mineiro. Então nessa música nunca sei onde estou. Se estou
413
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

me dirigindo para uma pessoa, se estou no rio, se estou


no mar; não dá muito a sensação do lugar, mas ao mesmo
tempo há várias possibilidades de lugar. Uma canção simples,
mas gostosa. Ainda bem que depois de produzir o azul, a
profundeza do azul, veio uma coisa mais quente.
Recebi também alguns poemas da Cecília
Meireles. Uma provocação da Fátima Cabral (Docente da
FFC, já referida.). Depois de entrar em contato comigo,
quando ela queria me trazer para cá, fez um comentário com
uma frase da Cecília, que desembocou numa canção. Então
eu falei, vamos fazer doze canções assim. Aqui acontece o
oposto do trabalho anterior: parto de um poema ou trecho
de poema, escrevo uma letra com meu estilo, e no final surge
um mote, um refrão. Esse álbum — de cor branca e ainda
sem título — fica entre a letra de canção e o poema; o Casa
é um pouco mais poema, por conta do lirismo presente; já
Negra é mais canção.
Vou mostrar uma dessas conversas. A Fátima
(Cabral) tirou a frase desse trecho:

E minha avó cantava e cosia. / Cantava canções


de mar e de arvoredo, em língua antiga. / E eu
sempre acreditei que havia música em seus dedos/
e palavras de amor em minha roupa escritas.
[Desenho, in: Mar Absoluto. Cecília Meireles]

Eu tinha mandado a letra da borboleta me


desculpando pelo atraso na resposta à entrevista solicitada
e ela respondeu: “deve haver música em seus dedos”. E eu
respondi em seguida:

Deve haver música em seus dedos / um barco


que navega ao longe / cecílias e dálias / proa e
414
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

vento / balanço / vou fazer uma casa dos seus


olhos / uma estrada que me leve ao fim / fagulhas
e ilhas / coroa e lenço / descanso. / camino y
piedra / um destino de terra / piedra y camino.
/ deve haver música em seus dedos / um grito
de cigarra esperançosa / um ramo, um aceno, um
pedido / amor atravessando o tempo. [Cecílias e
Dálias, Rubens Nogueira e Consuelo de Paula]

— Compor parece que é uma maneira de fazer


um artesanato. Fala um pouco sobre isso.
CP — Isso tudo porque essa [Artesanato] é
a música predileta dela. É tão bom quando alguém que
acompanha a gente há 11 anos tem um pedido de música
pra fazer!
— Antes de cantar, aproveitando o gancho
da colocação da Cássia, fale um pouco sobre a arte como
trabalho, a par da inspiração, isto é, conte-nos sobre seu
trabalho artesanal com a voz, com a palavra, com a construção
a partir de frases de poemas ou da cultura popular.
CP — Para mim o trabalho maior está na
consciência. Ai, que trabalho isso dá! O trabalho de
consciência. Afinação é consciência. Esse desenvolvimento
estético, por exemplo, se eu continuo repetindo o que já
foi feito e não estou percebendo que estou repetindo, não
consigo fazer nada. Para você seguir a coisa mais óbvia
do mundo — estava tentando escrever umas coisas para
falar aqui, não consegui ler nada, escrever nada, porque na
verdade tudo é muito óbvio: tudo é pela canção, por causa da
canção. O que é um cantor popular, o que é um compositor
popular, não é para a canção? E é difícil você encontrar isso
num trabalho. É louco, mais é. Porque os talentos são muito
diversos: há o talento do músico virtuoso, mas isso é uma
415
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

outra coisa. Há relações com a música, que são guiadas mais


pela matemática, ou pela estética, ou pelo som, pelo lugar para
onde ela te transporta, enfim, tem várias coisas, mas como é
fácil a gente esquecer o motivo pelo qual se está exercendo algo!
É preciso um trabalho de consciência muito grande. Quando
ouço minha voz, reflito: “é assim que ela deve soar?” Isso é um
ato solitário, trabalhoso e solitário, fruto de muitas madrugadas
sussurrando, cantando o máximo de sussurro possível. Dez
anos da minha vida, 24 horas por dia priorizando isso, esse
trabalho. Ontem a Cássia falou: você promete que vai mudar
de assunto? Vou tentar. Enfim, trabalho-audição-reflexão-
trabalho, a ponto de estar em um momento de cansaço. E por
falar em cansaço não resisto, vou ler algo da Adélia: O poeta
ficou cansado.... Esse poema é muito bom.

Pois não quero mais ser Teu arauto / já que todos


têm voz, / por que só eu devo tomar navios de rota
que não escolhi? / por que não gritas, Tu mesmo
/ a miraculosa trama dos teares, / já que Tua
voz reboa nos quatro cantos do mundo? / tudo
progrediu na terra e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo! / Olha aqui, cidadão,
/ repara, minha senhora, / neste canivete mágico:
/ corta, saca e fura/ é um faqueiro completo! /
Ó Deus, / me deixa trabalhar na cozinha, / nem
vendedor nem escrivão, / me deixa fazer Teu pão.
/ Filha, diz-me o Senhor, / eu só como palavras.
[Adélia Prado, “O poeta ficou cansado”, in:
Oráculos de maio]

— Você compõe poesias mais madrigais, ternas,


ou também de contestação?
— Você é revolucionária?
416
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

CP — “Atirei pedra no vento/ com canhão


feito de flor/ fita branca amarrada/ com pedido de amor/
atirei facho de fogo/ com canhão feito de ar/ fio brilhante
pendurado/ pra casar sol e luar/ eu já mandei pro céu/ com
arma de ferro/ uma branca flor/ a rosa que avoou/ de um
verso popular/ eu já finquei no chão/ com punhal de aço
minha paixão/ a rosa que brotou/ de um canto pra lutar.”
[Letra da música Canto de Guerra, do cd Dança das Rosas.
Rubens Nogueira e Consuelo de Paula].
É engraçado, depois do meu primeiro ciclo, minha
trilogia amarela, eu parei um pouco para olhar o que eu tinha
feito, e eu acho que essa é a minha revolução. Essa é a minha
revolução. Mas na minha obra tem, sim, uma forma mesmo
de expressão — você usou a palavra terna — porque é tudo
muito interiorizado... É um grito, é um grito.
— Eu sinto isso, sou poeta, escrevo há dez anos,
não tenho nada musicado, mas tenho sensibilidade aguçada
e a necessidade que vem de estar no mundo e querer fazer
minha voz ser ouvida.
[Consuelo o convida para falar alguma coisa e ele
lê dois poemas dele]

Porre da vida eu tomo todos os dias / se for com os


amigos / dobro a dose e bato o cartão da boemia,
de segunda a segunda. / Se eu cair / brindamos a
morte / embriagada, por não ter conseguido me
deixar infeliz / se assim ela quis.

Não tenho mais pai / mas é como se ainda tivesse.


/ Ele não tem a voz da gravidade / pesando
em meu ouvido aprendi. / muito menos aquele
semblante grisalho, bufando e dizendo: / é só com
você que eu ralho? / Em compensação / ela vem
417
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de salto / educando em jornada dupla / até tripla


/ pois tem muitos filhos estudantes / e só com luta
/ quem tropeça assim não é gente / é querubim.
(Homenagem a minha mãe, que dá aulas pra mim)

CP — Meu companheiro de sina, de dor e de


prazer. Obrigada, gostei muito.
— Obrigado a você, por presentear a gente com
essa música maravilhosa.
CP — Agora vou atender ao pedido da Cássia.
[Toca e canta Artesanato, do cd Dança das rosas.]

Vou lhe dar um anel de pedra preta / e olhar


pra sempre seu dedo / claro, claro, claro/ lindo.
/ amarrar uma pulseira de prata / e deixar solta
em seu pulso / solta, clara, prata / bela. / três
colares de contas coloridas / entre coração e colo
/ contas redondas soltas/ bonitas. / colocar um
par de brincos brancos / em minha orelha negra
/ e outro par da mesma cor/ na sua meu amor. /
vestir assim seu corpo e o meu / a ida inteira / seu
olho verde / sua pulseira / meu cabelo marrom
/ meu anel / a vida inteira / nosso beijo. [Rubens
Nogueira e Consuelo de Paula]

— Queria saber sobre as possibilidades para


compor. Falando sobre a música Maria Del Carmen você
se referiu ao mistério na relação com a história dela, na
relação com a melodia; quer dizer, o trabalho artístico
envolve certo mistério e muita sensibilidade. Como você
chega nisso? Haveria outras formas, por exemplo, através do
sonho? Outra pergunta é a seguinte: essa neutralidade que
você conseguiu, sem influência pop; isso é uma dedicação
418
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

muito sua à música. Você conseguiu essa neutralidade sem


influência?
CP — Tudo o que eu admirei me influenciou,
como eu falei, tanto coisas da cultura popular, às vezes me
observo sob certa respiração, um jeito de segurar o tambor,
e eu me lembro de alguns mestres de congada que eu
acompanhava... E mesmo compositores nossos, o mundo
do choro, o mundo do samba bom, coisas maravilhosas; mas
quando fui registrar e produzir minha obra isso já não entrou.
Até porque o trabalho de consciência não permite; quando
você toma consciência você evita certos ridículos. Veja, se eu
começasse a gravar e a registrar tudo o que eu gosto ou da
maneira que os outros que me influenciaram já gravaram, ia
soar ridículo porque eu não sou aquilo, eu sei fazer isso que
eu sou, eu sei fazer dessa maneira, dessa forma. Então foi
fácil escolher: isso aqui não é meu, isso aqui é para eu admirar,
ouvir quando chegar em casa... Isso [a escolha] resulta dos
talentos e dos não talentos, das facilidades e das dificuldades.
Agora, quanto a essa sensibilidade que você
colocou, vou repetir aqui umas frases que a Fátima (Cabral)
falou hoje, na exposição sobre Marx2: “...ser sensível é sofrer.
O homem como ser objetivo, sensível, é um ser sofredor; e
porque sente o que sofre, é um ser apaixonado.” Isso advém
da própria capacidade de admirar muito. Às vezes acontecia
um pôr-do-sol especial e em casa todo mundo me chamava:
“Consuelo venha ver o pôr-do-sol” e as pessoas ficavam
observando a minha cara, pois minha admiração era tanta —
não sei que cara eu fazia! Então é essa capacidade de admirar
muito, pois é tudo tão grandioso... E daí que eu preparei um
trabalho que é muito interiorizado — isso pode concluir
essa exposição sobre estética musical contemporânea:
então primeiro eu vou falar, vou gritar até ficar roxa: QUE
PÔR-DO-SOL MARAVILHOSO, até chegar aqui [quase
419
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

sussurrando], que pôr-do-sol lindo... interiorizado... Quem


pode vai ouvir, quem pode vai sentir.
Isso tem a ver com o que tenho a dizer sobre
estética musical contemporânea. É nisso que eu acredito.
Eu busco estar próxima da essência, porque para mim ela [a
estética] está interiorizada, está profundamente interiorizada;
é o oposto daquilo que a gente vive hoje, de um outro reino,
que é o reino do superficial: em tudo, é agoniante isso. Então o
sensível vai sofrer, o sensível vai ter que ser muito apaixonado.
Mas não sei responder a fundo a sua pergunta,
porque quando eu faço não estou percebendo tudo o que
está funcionando junto, tem uma inspiração, uma intuição
que eu deixo acontecer. Para mim isso é primordial, não gosto
de ver andaimes de nada, tipo “ai, ela pensou isso, analisou
aquilo...” não, primeiro crio, depois, quando vou analisar, vejo
que devia estar tudo junto; tem coisas que olho e parece que
exerci um logaritmo, uma fórmula matemática, só que são
muito rápidas essas questões do racional, das influências, das
inspirações. Mas eu deixo vir de uma forma tal que vou me
surpreender sempre que ouvir. Sou uma pessoa que adora
escutar os próprios cd’s — isso parece óbvio mas não é, quase
ninguém gosta de ouvir sua obra. Eu adoro, me surpreendo,
aprendo, é muito melhor do que eu.
— O que está acontecendo com a música popular?
Há uma crise de criatividade ou existem outras pessoas como
você fazendo coisas boas e a gente não está sabendo?
CP — A gente vive, de verdade, um massacre
cultural, criminoso, seriíssimo. Existe, claro, um mundo em que
as coisas estão acontecendo lindamente, mas as pessoas que
podem ter acesso fazem parte de uma minoria, pois é muito
diminuto o espaço que poderíamos estar ocupando para nos
expressar. Isso é agoniante, às vezes é quase impossível, pois
no âmbito da comunicação maior estão enterrando gerações
420
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

vivas. Escrevi depois que fiz Tambor & Flor: “enterrei-me e


brotam margaridas”. Nesse sentido o mundo onde antes as
pessoas tinham acesso a alguma arte nos grandes meios de
comunicação, hoje não tem mais. O mercado já tomou conta,
é só o mercado, o mercado; e quando só se tem objetivo bem
comercial já não se tem mais arte. Eu não reconheço mais
arte, não consigo mais ligar o rádio — ou raramente — ou
ligar a tv e receber alguma arte; você recebe no máximo um
entretenimento. Eu não me entretenho, não consigo separar
muito isso, mas algumas pessoas conseguem se entreter, se
divertir. Essa geração poderia produzir muito mais; ela produz
sim, estou com três cd’s para serem registrados e poderia
estar produzindo muito mais, se o espaço e as solicitações
fossem maiores. Mesmo assim tem muita coisa bonita sendo
produzida no Brasil inteiro.
Eu tenho sorte quando viajo, pois, em todo lugar
que vou, tem sempre alguém que conhece meu trabalho,
assim, algumas pessoas se organizam para mostrar o que
estão fazendo lá, e isso é uma maravilha. Eu sempre ouço
coisas lindas, impressionantes, mas que estão só ali, sempre
ali para aquela minoria, aquele gueto. É quase como aquilo
que o preconceito fez com algumas coisas, o que o objetivo
comercial faz com a arte: deixa restrita a um gueto. E seria
uma produção imensamente maior se ela tivesse mais espaço.
Muitas pessoas têm que parar porque precisam procurar
subsistência; são vários os motivos que fazem a arte ter o
alcance estreito que tem, e não maior, como poderia. Era
para ser absurdamente mais disseminada, mais do que em
qualquer tempo já vivido. Acho grande a produção, mas
poderia ser muito maior.
— O Chico Buarque, segundo alguns comentários
jornalísticos, teria dito que a canção está morta, mas pelo que
você está falando, estão tentando matar a canção.
421
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

CP — Eu que adoro o Chico; fiquei morrendo


de raiva dessa frase, mas como a gente nunca sabe, quando
sai na imprensa, qual o motivo, o contexto e a intenção... Eu
duvido que ele tenha pensado “a canção morreu”. Já chega
que estão tentando enterrar a gente viva, mas pensar que a
canção morreu já é demais. Não, está vivíssima, há muita coisa
bonita sendo feita. E é uma controvérsia, porque o Chico
deu uma declaração de que a canção mais bonita que ele já
ouviu na vida dele é Iara, do Luis Felipe Gama, compositor
contemporâneo que, como eu, está aí, tentando se colocar.
Então se ele deu uma declaração como essa, é contraditório.
Precisa ver o contexto.
Dá muita preguiça porque agora o meio cultural
começa a reproduzir também o meio comercial. Esse meio
cultural podia estar muito maior — é o que eu sempre quis
e desejei, nunca quis ou me vi fazendo coisas “estrondosas
de grande”, mas também nunca na Praça da Sé tocando e
implorando para as moedinhas irem caindo. Não, precisaria de
coisas mais estruturadas, sobreviver realizando o que preciso
realizar, ter essa profissão e viver dela. Esse caminho do
meio é que está sendo tirado, pois começou a se reproduzir
esse outro — o do mercado — e então as pessoas têm
mania, começam a analisar — mesmo os do meio dito mais
cultural — começam a analisar e dizem: ano tal tropicália,
ano tal bossa-nova, e depois pulam do Chico para o rap...
Que estranho, esse pessoal, onde está? Como se a sutileza
não fosse percebida, porque para mim a diferença entre o
passado e o contemporâneo é sutil, por ser profundo é sutil.
Ou precisa uma quebra enorme para significar que algo
andou? Em todos os livros que eu leio, em tudo o que eu
vejo, está colocada essa classificação, mesmo no meio cultural
que deveria oferecer uma crítica mais atenta. Imagine coisas
como isso que está acontecendo aqui, hoje, se o circuito
422
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

universitário estivesse a pleno vapor, desde o colégio, com


a possibilidade de retomar a proximidade do artista com o
povo; isso foi cortado. As pessoas acham que a música parou
lá com aquilo que se conhecia e tocava nos anos 70, e isso é
muito sério, é muito sério.
Ainda bem que o problema não está no público,
porque quando você chega perto o resultado é surpreendente.
No Projeto Pixinguinha a gente via isso: praças lotadas por
pessoas empolgadas, acompanhando. Quantas vezes eu
falei para a Cássia Maria: se prepara porque hoje a gente vai
levar tomate, ovo podre... E era aquela surpresa, as pessoas
gostando daquelas canções, pedindo, ouvindo. Parece então
que a questão não é só comercial, deve ser política também;
o sentido desse corte é o de deixar o artista longe, de não ser
interessante para nada. Não de não ser interessante só para
a música, mas também em outros aspectos.
— É que a arte nos faz pensar, nos faz sentir, e
politicamente é perigoso pensar, é perigoso sentir.
CP — As pessoas hoje não sabem mais o que
realmente são; essa questão da brasilidade, que eu tentei
colocar aqui... Não tem nada mais tocando que não seja
com acento da pop music, que tem seu lugar, tem muita coisa
bacana tocando, mas não é só isso. Então se traduz numa
imposição cultural, que vem de um poderio econômico
enorme, e se configura num crime cultural enorme. Eu
não gravaria, não estaria em uma grande gravadora com a
forma na qual apresento minha música. Tem um amigo que
brinca “o problema não está na canção, Consuelo, mas na
maneira como você canta”. Assim, se eu for lá e ... [canta
um trecho de Anabela e Riacho de Areia (e brinca) em ritmo
pop-music “vendável”], vai estourar... [risos]. E o pior — sobre
isso eu queria que alguém, um dia, fizesse uma tese: sobre a
forma de cantar. Por que as pessoas cantam como se fossem
423
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

norte-americanos e estivessem aqui tentando aprender


o português? Pronunciam járdim, etc, você nem entende
direito o que estão cantando, quer dizer, eu tenho que
fingir que sou norte-americano, que não sei falar direito a
minha língua... É muito louco isso, impressionante. Isso me
atrapalha até para ouvir aquela canção porque já começo
a achar que é uma mentira danada. A minha canção é
próxima do tom real da conversa, é como chegar aqui e: oi,
tudo bem? Se ao invés disso eu chegasse e dissesse hi, yes,
como isso soaria para vocês? Aí está a falta de consciência.
Está imitando uma coisa que você nem é. Está imitando
uma coisa e achando que aquilo é um modelo de venda,
um modelo de som. Enfim, isso é muito maluco, minha
inteligência não alcança isso.
— Valoriza-se muito a pop-music, a influência
americana, como se aqui não tivesse nada de bom. Mas, por
outro lado, exportamos música. Assim, parece haver mais
aceitação da música brasileira lá fora do que aqui.
CP — Infelizmente aquilo que se exporta, que
consegue maior alcance, tem que fazer alguma concessão
também. Dificilmente a canção, tratada da forma como eu
concebo, é exportada. A bossa nova, por exemplo: a harmonia
do jazz ajudou ela ser mais espalhada pelo mundo, bem como
a predominância da estética sonora. Ouvir João Gilberto é
uma aula de fonema, é incrível, tudo a serviço do fonema, da
afinação; é algo muito sonoro, e isso facilita a comunicação e
a exportação dessa música. Mas sem dúvida, você viaja e vê,
não tem nenhum lugar no mundo que tem essa criatividade
que encontramos aqui, essa produção. Lá fora as pessoas
estão cantando os mesmos fados, os mesmos flamencos de
sempre, reproduzindo, e o novo está nos grupos da pop music.
Aqui não, você tem uma gama enorme de artistas inovadores,
independentes, mas tem.
424
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

— Primeiramente quero agradecer a oportunidade


de estar aprendendo aqui. Você falou sobre a produção, a
música popular, mas tenho uma grande preocupação com as
formas de apropriação, pois a música popular não é apropriada
pela camada popular. Ou é muito pouco apropriada. Você
disse que não precisa participar de uma grande empresa
para a produção do seu cd, mas disse também que precisa
de um espaço apropriado, não pode ficar dependendo das
moedinhas. Mas se a gente pensar, tomando mesmo as
contradições, será que o fato de não estar na Sé não impede
que outras pessoas tenham acesso a esse tipo de cultura, a esse
tipo de música? Porque em São Paulo, só na Virada Cultural
ou no aniversário da cidade a gente tem oportunidade de
ver um José Miguel Wisnick, um Tom Zé, ou outros artistas
novos. Aí é uma dupla violência: ao mesmo tempo em que o
Estado oferece, a prefeitura oferece, como é tão esporádico,
fica demonstrado o que não temos acesso. O fato de ocupar
outros espaços e levar esse tipo de aprendizado, não seria
uma forma de socializar, de levar esse tipo de conhecimento
que é popular para as camadas populares?
CP — Eu tenho pensado muito nisso. No começo,
antes ainda de eu fazer meu primeiro cd tinha um projeto em
São Paulo que se chamava Arte nas Ruas, um projeto muito
bem feito. A Marilena Chauí era Secretária da Cultura, a Luiza
Erundina era prefeita, e levavam os artistas para a rua, daí se
chamar Arte nas Ruas. Foram experiências maravilhosas para
os artistas no exercício da função; não eram locais próprios
para shows, mas havia condições para isso acontecer. Eu me
lembro de um final de ano em que um mendigo foi lá e me
deu o seu champagne — a única coisa que ele tinha, foi lá me
ofertar. Eu não sabia mensurar aquele gesto. Era muito bom
esse projeto, a gente fez muito, muito mesmo, mas depois
foi deteriorando e hoje só temos praticamente isso que você
425
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

falou: oferecem um evento durante o ano e pronto. Essas são


políticas que não dependem do artista. O artista está sempre
pronto para ir. Tem o Projeto Pixinguinha, eu fiz, mas é pouco,
tinha que ter muito mais.
Eu já cheguei a pensar nisso que você está falando,
será que a gente conseguiria, por iniciativa própria? Quando
eu cito a moedinha, é porque a gente precisa de uma estrutura;
quando terminei meu terceiro cd eu tinha uma concepção
de show para mostrar a minha arte. Poderia ser em qualquer
lugar, mas aquele espetáculo idealizado seria maravilhosamente
perfeito se fosse mostrado em um lugar com acústica adequada,
com som e luz, com músicos para mostrar a harmonia, ou
seja, isso tudo demanda uma estrutura adequada e necessária.
Agora, mudar esse pensamento e achar que o artista pode
reverter isso, que está nas mãos dele, eu tenho minhas dúvidas,
não sei se daria muito certo. Sem uma coisa organizada você
fica parecendo um maluco ali, então não depende muito do
artista. Tem muito artista assim de arma na mão, esperando
para fazer, mas não é fácil, depende de um projeto maior, de
iniciativa maior, de programas mais bem feitos. Quando posso,
faço, tem muita escola chamando e eu estou indo, fazendo; já
vi muitas iniciativas de músicos “vamos fazer um comboio,
vamos fazer isso, aquilo...”, mas não é fácil, sem organização
e apoio a coisa não se dá, fica só um soco no ar.
— Queria que você declamasse sua Herança, o
poema que fala das suas influências, pois acho que ele define
bem seu estilo, sua poesia.
[Ela declama:]

Herdei uma dúzia de copos azuis / um vaso


alaranjado / onde coloquei a flor / presente de
aniversário / de cor rosa salmão / a cor do meu
vestido. / herdei um porta-jóias bege / broche de
426
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ouro acobreado / e anel de formatura / um vidro


de perfume espanhol / pós de arroz nacional / e
estojo de pintura. / herdei uma balança de precisão /
cálice, grau, lâmina e funil / uma apostila de poemas
do Brasil / livro francês / duas bonecas / camiseta
vermelha e jeans. / herdei um violão / afilhados e
sobrinhos / uma penca de honestidade / bananeiras
/ margaridas de pétalas mais que brancas / e miolo
amarelo profundo. / herdei um nome / o samba, o
cheiro, o verde. / toque de congo / jeito de corpo
/ espiga de milho / uma bicicleta bordô / pano de
prato bordado / e cobertor de lã. / herdei o medo
/ e uma coragem maior ainda / o gosto pela festa
/ a música / o erro e a força / o reinado. [Herança
está no encarte do cd Tambor & Flor]

CP — Obrigada pelo pedido.


Vou encerrar com uma composição recente que faz
parte daquele cd onde está Água doce no mar. [Toca e canta Vida]

A vida é senhora gorda / mandona / não pede


licença / atrevida / sofre menos quem sabe e pode
servi-la / a vida é senhorinha / criançona / estrada
comprida / sofre menos quem brinca sabe que é
séria / e se emociona. [Rubens Nogueira e Consuelo
de Paula]

Notas

A esse respeito Mauro Dias, então crítico de música no jornal Estadão,


1

escreveu o seguinte: “Consuelo não é uma folclorista, mas uma


427
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

musicista preocupada em revelar o tesouro cultural que vivenciou


privilegiadamente: a sutil erudição desse tesouro, o brilho de uma
cultura que ainda hoje se reelabora, arte forte e teimosa.” Mauro Dias,
O Estado de São Paulo, Caderno 2, 01/11/2002. Nota acrescentada pela
organizadora do texto.
Exposição oral de Fátima Cabral na mesa Cultura, mediação e
2

atividade: implicações pedagógicas. A citação literal é de Karl Marx.


Texto completo nesta mesma coletânea.

Referências

MEIRELES, Cecília. Desenho. In: ______. Mar absoluto. 2.


ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1983.

PRADO, Adélia. Amor Violeta. In: ______. Poesia reunida. 2.


ed. São Paulo: Siciliano, 1991.

PRADO, Adélia. O poeta ficou cansado. In: ______. Oráculos


de maio. São Paulo: Siciliano, 1999.

Referências sobre a obra fonográfica de


Consuelo de Paula

PAULA, Consuelo de. Samba, seresta & baião. São Paulo:


Produção Independente, 1998. 1 CD.

______. Tambor & Flor. São Paulo: Produção Independente,


2002. 1 CD.

______. Dança das Rosas. São Paulo: Produção Independente,


2004. 1 CD.

428
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RES
Educación en valores
desde la reflexión grupal
y la redimensión
del rol del educador

Ana Luisa Segarte Iznaga


Oksana Kraftchenko Beoto

1. Introducción

Como ya se ha planteado en múltiples ocasiones,


un principio fundamental de la pedagogía tradicional es la
individualización de la enseñanza. Desde los presupuestos
teórico-metodológicos de este trabajo, se considera que si
bien es ineludible, científicamente, la atención individualizada,
ya que en ocasiones es imprescindible, también se ha llegado
a tener en cuenta y fundamentar, a partir de los presupuestos
de partida que no se aspira a la eficiencia que margina las
necesidades del ser, ni a homologar personalidades, sino a
desarrollar al máximo posible las diferencias que favorezcan
la heterogeneidad, en un proceso saludable, por lo que se ha
llegado a considerar que esta corriente de individualización
no toma en cuenta, lo esencial del desarrollo científico que
han alcanzado en la actualidad la sociología, la psicología
social y otras disciplinas afines.
El grupo es lugar de intermediación de la
estructura social y la subjetividad, de transversalización
junqueira&marin editores 431
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de lo social, lo individual y lo institucional, de la génesis y


transformación de la subjetividad, donde, por tanto, se realiza
la formación y el crecimiento personal-social del ser humano,
precisamente donde este puede alcanzar las peculiaridades que
lo distinguen como individuo perteneciente a un sistema social
dado; concepción esta que posibilitó la superación, tan manida
tradicionalmente, de la contraposición individuo sociedad.
La indisociable unidad dialéctica de lo social y lo
individual es, sin lugar a dudas, el punto de partida teórico
metodológico para que el profesor a través de la trama que se
crea en el espacio grupal, pueda ejercer una acción educativa,
sobre cada uno de los estudiantes, de estos entre si y con el
profesor, es el todos educándose entre todos, parafraseando a P.
Freire, como condición imprescindible para la expansión de la
conciencia en el alcance de una moral de más vasta proporción
que aquélla en la que el enfoque individualista la ha encerrado.
Como la subjetividad, mundo interno, psicológico,
de cada sujeto, es primariamente intersubjetividad, a través
de la cual se produce el influjo de lo social-personal en lo
intrasubjetivo, y puesto que el ser se forma desde la más tierna
edad en un proceso de interacción grupal, en el seno de la
familia, como grupo primario, para después incorporarse a
otros grupos secundarios (escolares, laborales, científicos), es
imprescindible que el educador aprenda a trabajar el grupo
y no solo en grupo o con grupos.
Por supuesto que no se aspira a que el profesor
sea un especialista en esta disciplina, aunque no se refuta
esta posibilidad, pero si debe estar preparado seriamente
para realizar “lecturas” que le faciliten orientar al grupo en la
toma de decisiones consensuadas reflexivamente y por tanto
de un mayor protagonismo de los estudiantes en su propio
crecimiento personal y social. Consecuentemente con ello,
se crea la tendencia a una gradual disminución del desgaste
432
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

y el agobio del educador, quien va expresando deseos de


dominio de como proceder y por tanto de adquirir los medios
teóricos, metodológicos e instrumentales que se lo permitan,
disposición que va surgiendo en la medida en que comienza a
apropiarse del “secreto” de una acción educativa eficaz, con
fundamentos científicos.
Lo que el educador ha de ir descubriendo
progresivamente en todo este proceso, es la necesidad de
cambiar su posición de simple “trasmisor” de conocimientos,
por la de dirigir la actividad conjunta de los estudiantes, a los
que comienza a considerar como auto educándose entre todos.
En consecuencia con este enfoque es que se ha
planteado la necesidad de redimensionar el rol del educador,
para que en este se produzca el cambio de su función
tradicional, centrada en la “transmisión” de la herencia socio
cultural y las normas de convivencia social que tienen por fin
la conservación y reproducción de la sociedad, hacia la nueva
función de renovación de esta que lo incluye a el mismo como
sujeto del proceso educativo, sin que ello implique desvalorizar
la función conservadora, necesaria, si, pero no suficiente.

2. Grupo y educación de valores

Tener en cuenta a la clase como un grupo, es


condición sustancial para restituir al ser humano su carácter
de sujeto, a la vez producido y protagonista de su propia
formación y del desarrollo social, en un proceso interactivo
en el que “el otro” desempeña una función estructurante de
la subjetividad.
Los valores morales no tienen una vía adecuada
para formarse y para desarrollarse, si en la clase no es
condición esencial un espacio de interrelaciones entre todos.
No se trata de estar sustentando un enfoque masificador,
433
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

homogeneizante, que impida el crecimiento personal-


social, antes bien, se trata de que lo individual, lo singular,
lo heterogéneo, tengan la posibilidad de su formación y
desarrollo a través de la trama grupal. La clase es un grupo,
el profesor tiene necesidad de conocer qué es un espacio y un
proceso grupal, saber que en dependencia de los objetivos del
dispositivo grupal que seleccione, está de entrada colocando
límites a sus intentos educativos. La formación, desarrollo
y transformación de los vínculos no se realizan por obra
de la casualidad, ni por voluntarismo, sino precisamente
teniendo en cuenta el valor de lo causal y a partir de un trabajo
concientemente dirigido al logro de la plenitud educativa.
En el grupo, desde lo dinámico, se establecen
interrelaciones entre los participantes que pueden llegar a
integrar lo cognitivo y lo afectivo, lo instructivo y lo educativo,
lo teórico y lo práctico, siempre en dependencia de que
el educador haya sido preparado y el dispositivo grupal
seleccionado lo favorezca. Pero como no siempre es así,
según veremos más adelante, estas relaciones, comúnmente
permanecen encubiertas, por lo que no pueden ser educadas.
Si ya el profesor ha participado en una experiencia de
redimensión del rol y está realizando su labor educativa, en
el contexto de la trama grupal que todos viven, continúa
su propio proceso de crecimiento personal social, enlazado
al que dirige en los estudiantes quienes viven, y el resuena
con ellos, reviviendo sus propias experiencias de cambio.
Necesariamente esta vivencia compartida modifica sus
vínculos con los estudiantes, cambia su mirada. La vivencia
del proceso grupal, que realizan y viven juntos, conduce
al educador al descubrimiento de nuevas potencialidades.
Para el cambio, constituye una experiencia de indiscutible
valor emocional educativo que lo vincula, de una manera
novedosa, a la actividad educativa. De ahí la necesidad de
434
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

que el educador comience esta redimensión en condiciones


semejantes a aquéllas en las que deberá dirigir la actividad
educativa de los estudiantes.
Los profesores que realizan su trabajo profesional
en el nivel de educación superior, salvo raras excepciones,
no son educados para llevar a cabo realmente la actividad
educativa, es decir la formación moral de los estudiantes
en las condiciones que la garantizan. Ni el educador, ni los
estudiantes viven, disfrutan y tampoco se duelen de los
ineludibles cambios que han de experimentar. Todo sucede
discursivamente, en la superficie de la conciencia, en el afuera,
como si ello fuera suficiente a la educación.
Como recrear, es crear de nuevo, si ello está
referido a la conciencia moral, significa la activa participación
del sujeto en la elaboración personal de los valores ético-
morales que lo conduzcan a una forma superior de
autorregulación moral.
En nuestro trabajo, el dispositivo grupal que se
seleccionó para propiciar el cambio del rol del educador, se
valoró a partir de las posibilidades de su acción sobre los
sujetos, en lo que respecta precisamente a la “implantación”
que supone la recreación subjetiva, cognitivo afectiva, de
una moral de más vasta proporción, es decir, que desbordara
los límites estrechos, individualistas, en los que la Pedagogía
Tradicional la encerró.
El problema para la formación moral es valorar si
basta con lograr grupos eficientes en cuanto a lo instrumental,
a la democratización del conocimiento, o si es necesario ir
más allá y desarrollar grupos que sean capaces de lograr la
construcción conciente, activa, reflexiva, individual, de los
valores que todo proyecto social requiere, cuando se aspira
a una forma superior de ser del sujeto. Pero entonces el
dispositivo de grupo ha de ser aquel que tenga en cuenta
435
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

al factor humano, el crecimiento personal-social, es decir el


grado de autonomía que el sujeto pueda alcanzar respecto
a lo instituido social, durante la educación de la conciencia
moral, en un espacio grupal construido para tales fines.
Todo dispositivo fija en sus objetivos los limites
de su acción, así por ejemplo, una técnica dinámica no va más
allá de la eficiencia, sin tener en cuenta los costos personales
para lograrla, pero no es posible esperar que pueda realizarse;
ni tampoco está en su concepción; con el objetivo de ejercer
una acción formativa de lo interno, de lo psicológico.
El grupo tiene una realidad, leyes propias que
debemos comprender. Lo social da espacio a lo grupal y esto
tiene una doble trascendencia; por una parte, en el espacio
social, lo grupal hace suya toda la herencia histórico-social-
cultural (mitos, leyendas, modos de pensar y actuar, valores,
sentimientos, tradiciones, producciones de sentido) y por
otra parte, es en el espacio grupal donde el individuo tiene
contención; es el lugar de pertenencia concreta de los sujetos
a la estructura social a que pertenecen, es lugar de génesis y
de crecimiento personal.
Así, el dispositivo grupal no ha de ser un
instrumento para que los profesores realicen la sola
democratización discursiva de las normas y valores morales,
ni para el consenso que violenta la singularidad del ser que
borra la diversidad individual que masifica significaciones de
sentido y provoca violencia simbólica, sino para la democracia
participativa, el consenso que deriva de la reflexión crítica,
de la confrontación colectiva, de un atarse y desatarse
dialécticamente a producciones de sentido socialmente
significativas; para el develamiento de impensables, para la
recreación individual de la moral colectiva, la elaboración
de nuevos sistemas de significación; desatándose de aquello
que en lo instituido social lastra la posibilidad del crecer
436
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

personal-social, en correspondencia con las necesidades del


proyecto social que se construye, por ello y para ello, el rol
del educador tiene que ser redimensionado.
El grupo instituye al sujeto y este dialécticamente
en su praxis social instituye al grupo; así, el sujeto es a la
vez producido, instituido, determinado y determinante,
productor de instituyentes. Estos referentes llevados al
contexto pedagógico, han de ser productores de instituyentes
teóricos metodológicos y prácticos que eduquen para el
cambio. Necesario es, tomar en cuenta leyes del desarrollo
que expresan el carácter primario de lo interindividual-social
de las funciones psíquicas superiores que tan brillantemente
expresara en una síntesis histórica Vigotski (1987, p. 161).
Ahora bien, no todo lo histórico-cultural que
se reproduce en el espacio grupal tiene un valor positivo
para el crecimiento, para el desarrollo de sus miembros,
sino que pueden subsistir modos de sentir, pensar y actuar
arcaicos, que se transmiten acríticamente de una generación
a otra, en forma de modelos que operan en la vida cotidiana
provocando insatisfacción, malestar. Estas representaciones
o modelos sociales, no desaparecen por un proceso natural,
ni por un esfuerzo de voluntad, junto con la desaparición de
la vieja estructura socio-económica.
Generalmente estos modelos, for mas de
comportamiento de sentir y de pensar, se asumen por los
individuos irreflexivamente, y es en el espacio grupal, a
través de un proceso de reflexión y concientización que se
supera o repara aquello que desde lo tradicional empobrece el
crecimiento personal-social en la vida cotidiana y distorsiona,
limita o dificulta y las más de las veces impide, el protagonismo
y la autogestión del sujeto, en la praxis social.
Si bien se ha intentado revertir dicha situación,
no siempre se han obtenido los mejores resultados, en
437
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

cuanto al logro de una verdadera transformación de los


grupos y de sus miembros, con respecto al protagonismo
social, al crecimiento personal-social, sobre todo porque
los dispositivos de grupo que se han utilizado, no lo tienen
en cuenta en su concepción y por tanto, tampoco en los
objetivos ni en el proceso. El Grupo Formativo como
método de trabajo grupal ofrece la posibilidad para que el
cambio se realice.
El método de Grupo Formativo introduce un
elemento nuevo en el trabajo grupal que ha posibilitado
superar las limitaciones a las cuales se ha hecho referencia.
Este elemento es el Indicador Diagnóstico de Población
(IDdeP), develado y elaborado por M. Cucco García.
El IDdeP es un potente organizador del
proceso grupal ya que por una parte, posibilita al
investigador-coordinador leer, decodificar y sistematizar las
características esenciales del modo de vida de la población,
llevándolas a indicadores que permiten su interpretación
a la luz de un contexto teórico-metodológico, referencial
general y particular, y además, crear las condiciones para
el protagonismo individual y colectivo, la participación
conciente de los participantes del grupo, en la transformación
de su realidad y de si mismo.
El IDdeP es una señal que nos indica que algo no
está funcionando bien en la comunidad, grupo, institución,
respecto a lo esperado y por tanto, constituye un alerta
sobre lo cual hay que realizar un proceso de desocultación-
reflexión que permita a la población identificar que su
actuación no depende de su propia voluntad, sino que
existen condicionantes socioculturales e históricas, que al
comprenderlas le permite colocarse en otro lugar de análisis
de la realidad en que vive, deviniendo así, protagonista de
sus propios cambios.
438
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

3. Redimensión del rol del educador y educación


de valores

Propiciar un cambio en el rol del profesor, en


relación a la tarea educativa; cuya esencia es, precisamente,
la educación en valores morales de los estudiantes; es posible
a partir de la apropiación de herramientas que le posibiliten
desocultar los conflictos del rol que distorsionan la tarea
educativa y empobrecen su crecimiento personal en la labor
profesional que realiza, así como instrumentar una práctica
educativa en la dirección del crecimiento personal-social,
tanto de sí mismo como de los estudiantes.
Al situar a la persona en el plano de la reflexión,
aparecen las resistencias al cambio, las cuales son, en última
instancia, modos de preservación de la identidad lograda,
la que no siempre posee un mecanismo de crecimiento
personal-social, capaz de elaborar la desestructuración
cuando lo nuevo afecta los modos habituales de sentir, pensar
y actuar; lo previo, lo ya establecido, lo que no es necesario
controlar, se resiste a pasar al plano de la conciencia para ser
reestructurado.
Todo trabajo que intente la transformación del
profesional, ha de comenzar por revelar el contenido de
lo asignado, es decir, de cuál es el prototipo de persona, de
profesional diseñado y acuñado desde las aspiraciones de la
sociedad, el rol ideal.
Como modelo social instituido e históricamente
conformado, la imagen del rol ideal del educador; el deber
ser; rol asignado-asumido; ha asimilado, progresivamente,
exigencias que han ido surgiendo como necesidades del
desarrollo de la sociedad y este es un proceso que ha dado
lugar, en la actualidad, a la estructuración, cada vez más
amplia y compleja de tareas profesionales y no profesionales
439
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

asignadas al rol del educador, las que relegan a un segundo


plano su función principal como profesional de la educación.
A falta de un proceso reflexivo, se conforma
una imagen global, ilimitada, estereotipada del rol. Por el
mecanismo de reproducción social; con la omnipotencia que
le es consustancial; dicha imagen se transfiere pasivamente
de una generación a otra, como una producción de sentidos,
ciertamente, pero que ya es intemporal y ahistórica, y por lo
mismo, está desarticulada tanto de las condiciones concretas
en las que surgió como de aquellas en las que el educador
lleva acabo su trabajo, en las cuales realiza el rol real.
En estas condiciones, el educador tiene la vivencia,
las más de las veces no comunicada, de estar desprotegido;
de no estar suficientemente satisfecho de los resultados que
obtiene, los que no se corresponden con sus expectativas
educativas; por insuficiencia de recursos humanos, teóricos,
metodológicos y prácticos que le son indispensables para la
realización de su labor profesional como educador.
En un espacio de reflexión grupal, como el que
crea el Grupo Formativo, en el que se desocultan, se revelan,
estas contradicciones y que por tanto no solo se intente la
eficiencia, la democratización del conocimiento o la reflexión,
pero de verdades ya reveladas, puede el profesor elaborar la
necesaria articulación del rol ideal y del rol real, para colocarle
los límites necesarios a cada uno, y así poder realizar la función
esencial, educativa, que como profesional de la educación ha
delegado en el la sociedad.
El develamiento, solución o búsqueda de
nuevas alternativas a las contradicciones contenidas en las
circunstancias antes referidas, no es un proceso fácil ya
que se generan resistencias al cambio que evidentemente
dan fe de la participación de la subjetividad en el proceso
elaborativo de una nueva posición interna como educador.
440
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Este es un proceso difícil pero necesario cuando se quiere


recorrer el camino de la transformación, de la apropiación
de instrumentos para el protagonismo personal social.

4. Momentos del proceso de cambio

En el difícil y hasta doloroso proceso de cambio


que tuvo lugar durante el curso inicial “Redimensión del
Rol del Educador”, con la utilización del método de Grupo
Formativo, fueron registradas expresiones comunicativas de
diversa índole que interpretadas a la luz de los IDdeP revelan
el proceso interno, subjetivo que vivían los profesores durante
el crecimiento que se operaba en ellos, en la dinámica del
proceso grupal, las que se encuentran relatadas en el informe
de investigación (KRAFTCHENKO; SEGARTE, 2000).
En dichas expresiones pudieron ser constatados, diferentes
momentos por los que transitaba el proceso grupal, así como
los educadores que participaron en la investigación.
El interés principal de las investigadoras en esta
ponencia es poner a disposición de los interesados una relatoría
de las posibilidades que brinda un proceso enrumbado,
fundamentalmente hacia el cambio y el crecimiento personal,
a partir de una metodología que traspasa los límites de lo
discursivo, para penetrar en lo interno de los sujetos.
Es necesario esclarecer que los diferentes
momentos que aquí se relatan no tuvieron un carácter lineal
sino en espiral dialéctica, como es consustancial al Grupo
Formativo. Se presentaban en cualquiera de las partes de una
sesión de trabajo, así como en cualquiera sesión, con avances y
retrocesos en el proceso de cambio, pérdidas, ganancias, es decir,
desprendimientos y adquisiciones, los que caracterizaron todo
el proceso de crecimiento humano que los educadores vivieron.
Podía suceder que aunque el grupo se encontrara centrado en
441
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

la tarea, un nuevo obstáculo lo condujera a pre-tarea, lo que


resulta necesario para la realización del aprendizaje. En una
visión integral del proceso realizado se podía vislumbrar como,
a pesar de las resistencias que expresaban los participantes en
la asunción de determinados roles, el proceso avanzaba hacia
un crecimiento personal profesional, en la casi totalidad de los
participantes.
Estos momentos fueron:
MOMENTOS RESISTENCIALES: se
caracterizaron fundamentalmente por una tendencia a
preservar lo ya aprendido, el rol ideal se mostró muy idealizado
y fuertemente asumido; lo ya conocido, los modos de pensar de
sentir y de actuar, habituales en el trabajo educativo, lo instituido
social, se resistía a ser cambiado, expresando las más variadas
excusas, justificaciones. Fueron expresiones de un mecanismo
de preservación de la persona ante lo desconocido, cuando está
involucrado un cambio en la identidad personal y profesional,
cambio para el cual el sujeto no está suficientemente preparado.
El cambio siempre implica renuncias y si estas afectan al sujeto,
a lo que vivencia como su sustancia más íntima, considerada
como surgida desde sí mismo, aparecen las resistencias al
cambio, puesto que el mecanismo de asimilación consensual
irreflexivo le impide percatarse de las posibilidades de
elaborar nuevas alternativas para un rol más saludable. En
tales circunstancias lo aparente se convierte en lo esencial,
desapareciendo, ocultándose lo histórico del proceso de
construcción social de los modelos o representaciones sociales,
las posibilidades de crear nuevas construcciones sociales. De
allí proceden, en principio, las resistencias a la elaboración de
las contradicciones que necesariamente han de ser resueltas.
Un ejemplo de este momento resistencial se aprecia
en lo que expresa uno de los profesores (sujeto 1) cuando
afirma:
442
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

— “El problema del trabajo educativo es un


término discutible, en el sentido que nosotros podemos
continuar una educación, pero no la podemos empezar,
ya ellos tienen una formación, además, nuestra tarea es
llevar conocimientos a los alumnos y presionados por
esas cantidades de horas, no podemos hacer más nada, ni
comunicarnos, ni trabajo educativo”.
Imprescindible resulta señalar que las resistencias
fueron, sobre todo las iniciales, como en el ejemplo
precedente, momentos muy virulentos con manifestaciones
afectivas negativas, de desagrado y hasta de amenazas de
abandono del grupo; sin embargo, resultaron positivas
para el cambio mismo ya que expresaban que el sujeto se
movilizaba internamente, no estaba totalmente desprotegido,
y que por tanto requería de una elaboración de lo nuevo, lo
que no es una exigencia en el aprendizaje intelectualizado.
MOMENTOS DE LA TOMA DE
CONCIENCIA, consistieron en la “visualización” de las
contradicciones principales entre el rol ideal y el rol real que
obstaculizan la realización de la tarea educativa, las que se
expresaron en dos fases:
Progreso: las contradicciones se expresaban en
diversos modos comunicativos durante el proceso grupal,
en el que comenzaba un desacuerdo del sujeto consigo
mismo, de lo cual devenía una vivencia de insatisfacción
por la disociación que “visualizaba” entre sus modos de
actuar, su pensar y su sentir, y que manifestaba como
reconocimiento de errores cometidos, con sentimientos
de culpabilidad.
Como un ejemplo de ello situamos la expresión
de “6”cuando afirma: “El problema de que lo educativo sea
algo externo, ajeno, es algo que debemos cambiar, lo hemos
estado haciendo mal”.
443
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Elaboración: se podía observar que se producía la


centralización de los participantes en la realización de la tarea
grupal, de intercambios positivos entre los miembros del grupo,
con predominio de la reflexión.
MOMENTOS DE EMANCIPACIÓN: en estos
momentos surgía en los miembros del grupo la necesidad de
solución de las contradicciones porque lograban distanciarse
de la situación real que viven para analizar críticamente los
conflictos inherentes a su rol, “visualizaban” que estos son un
producto histórico-social y no de su voluntad y que existe la
posibilidad de realizar una labor correctora al respecto.
Se observa en el sujeto 5 cuando afirma: “Es bien
difícil que adquiramos muchas cosas que no tenemos, yo creo
que no podré dejar de ser impulsivo... siendo como somos
tendríamos que encontrar esos instrumentos, la ayuda, yo soy
potencialmente capaz de aprender, de llegar a ser un buen
educador”.
En el sujeto 1 se observa un cambio cuando afirma:
“Se puede trabajarlo en grupo. Yo he entendido qué es hacer
trabajo educativo en el aula: solidaridad, responsabilidad, ayuda
mutua, yo creí que eso era normal, pero ahora me doy cuenta
que no”.
MOMENTOS DE PROTAGONISMO: se
presentaron como momentos en los cuales los miembros del
grupo comenzaron a plantearse objetivos que sobrepasaban
los límites de la tarea que realizaban, expresaban el inicio de
estructuración en su práctica profesional de estrategias como
nuevas alternativas particulares para la conformación de la
Situación Plena de Aprendizaje, así como sus deseos de poseer
herramientas teóricas y metodológicas para poder realizar
cambios en las condiciones concretas de realización de la
actividad educativa, iba surgiendo gradualmente la necesidad
de elaboración de un proyecto para el cambio.
444
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

En relación con ello, el sujeto 8 expresa: “Aprendí


que el proceso de aprendizaje es muy complejo, que no sólo
depende de la voluntad del profesor ni del estudiante. Tenemos
que buscar herramientas para poder instrumentar el trabajo de
la forma más correcta”.
A U T O G E S T I O N ( C R E A T I V I DA D ) :
comenzaron a presentarse, principalmente, en los momentos
finales de la experiencia realizada, cuando la transformación
deseada se materializó en un proyecto de Diplomado para el cambio
del rol profesional, en la dirección de la tarea educativa, en
particular, la educación de valores en sus estudiantes, con
el planteamiento de que entre los programas o módulos del
Diplomado se incluyera el relativo al espacio y proceso grupal.
Posteriormente este Diplomado fue realizado, con
una duración de dos años, obteniéndose resultados positivos
en la casi totalidad de los participantes.
Al finalizar dicho Diplomado, los docentes
expresaron su deseo de continuar su crecimiento, por lo que
solicitaron un curso sobre familia, ya que el proceso de cambio
no solo se produjo en el área profesional sino también, como
se esperaba, en lo personal social, por lo que al saber de la
existencia de un programa de Escuela de Padres, quisieron
extender al área familiar las potencialidades para el cambio que
habían descubierto en ellos mismos, durante su participación
en el curso sobre Rol de Educador y en el Diplomado.

5. A modo de conclusiones

Esta fue una experiencia auto formativa que


condujo a los educadores a un importante movimiento
en la dirección de la actividad docente: descentración
tradicional del conocimiento como fin del proceso docente,
para situar al joven como centro, por lo que se produjo un
445
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

cambio importante en la “mirada” del educador que ahora


comenzó a situarse en los estudiantes, experimentando así,
los profesores, su responsabilidad en la tarea educativa, en
tanto el conocimiento, comenzó a ser considerado como un
medio valioso para la educación y el desarrollo personal social
y científico de los estudiantes.
Un logro especial aquí obtenido es la valoración
positiva que los profesores realizaron del proceso grupal
en el que participaron, en la que mostraron la necesidad
de formación en este sentido, para poder obrar con los
estudiantes de forma similar, y obtener cambios internos (es
decir subjetivos) como los que se operaron en ellos, por lo
que plantearon a dicha formación como parte del proyecto
que se elaboraba.
La vivencia auto formativa, la elaboración conjunta
con reflexión crítica, en la que se confrontaban creencias,
mitos, leyendas, lenguaje, en fin, producciones de sentido,
significaciones adquiridas de forma acrítica, el protagonismo
en el cambio, como necesidad de asumir una nueva posición
respecto al rol del educador, se traducía en disposición para
introducir progresivamente variaciones didácticas en su
trabajo cotidiano, en un proceso de crecimiento personal-
social que expresaba el logro de grados de autonomía del
imaginario social instituido. Un nuevo sentido del rol del
educador se recreaba en la conciencia de los profesores. La
elaboración conjunta de un proyecto que se concretó en un
Diplomado, fue la expresión del surgimiento de la necesidad
de adquirir instrumentos para operar el cambio, se había
comenzado a realizar la redimensión y por tanto una asunción
reflexiva de un ideal de rol más adecuado y saludable, en
proceso de elaboración. En fin que esta fue una experiencia de
como es posible para los profesores, lograr el protagonismo,
pero no como un recurso, sino como necesidad del sujeto
446
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

para la transformación personal y social, para rescatarse del


activismo que conduce a la muerte del ser humano como
sujeto histórico.
Todo este proceso, visualizado en el espacio
grupal, fue, para las autoras, una experiencia inolvidable. Les
permitió, además, constatar en los momentos aquí relatados,
la revelación de leyes, principios y categorías del Enfoque
Histórico Cultural, entre ellas: la ley genética del desarrollo,
el carácter activo del sujeto, de lo histórico y lo social, zona
de desarrollo próximo, potencialidades para el cambio, los
principios del historicismo, mediatización, interiorización;
la unidad de lo afectivo-cognitivo, de la comunicación y la
actividad, como procesos íntimamente imbricados, en los
que lo vivencial del proceso que se realizaba, expresaba como
lo cognitivo no podía ser independizado de la emoción, los
sentimientos. En las vivencias expresadas, se denotaban
emociones y sentimientos tanto positivos como negativos,
anudados a las elaboraciones teóricas que se realizaban y
que acompañaron en todo momento al proceso de auto
transformación que los profesores vivían. Todos en íntima
conjunción fueron componentes intrínsecos inseparables del
proceso de aprendizaje de un nuevo rol del educador.

Referências

KRAFTCHENKO, O.; SEGARTE, A. L. La redimensión


del rol del educador y el desarrollo de la responsabilidad
profesor-alumno ante la tarea educativa. Informe de investigación.
CEPES. Cuba: Universidad de la Habana, 2000.

VIGOTSKI, L. S. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas


superiores. Ciudad de La Habana, Cuba: Editorial Científico, 1987.
447
Formação de professores:
desafios contemporâneos e
alternativas necessárias

Lígia Márcia Martins

Nenhuma força social pode apresentar suas


reivindicações como uma alternativa hegemônica
sem também indicar, pelo menos em linhas gerais,
a dimensão positivo-afirmativa de sua negação
radical. Isto é verdadeiro para milhares de anos
da história, não apenas para os últimos séculos.
Via de regra, as ideologias que se esgotam na
negação pura e simples fracassam logo e não
conseguem fazer valer qualquer reivindicação
real de construírem uma alternativa viável.
(MÉSZÁROS, 2002, p. 1033)

A formação de professores, seja ela inicial ou


contínua, sempre mobiliza atenção no cenário educacional.
Na atualidade, contraditoriamente (ou não!), essa atenção
se revela proporcional à sua desvalorização e esvaziamento,
dado não ocasional ou fortuito, mas engendrado pelas
demandas do capital travestidas em falaciosas propostas
pseudo-humanizadoras. Vivemos tempos em que, dentre
outras mazelas, converte-se a educação em mercadoria e
se desqualifica a transmissão de conhecimentos pela via da
negação de sua existência objetiva. E claro, esse quadro se
junqueira&marin editores 449
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

reflete de forma brutal sobre a escola e sobre a formação de


professores.
Desde as décadas de 80 e 90, no esteio
do desenvolvimento do pensamento pós-moderno 1 ,
acompanhamos debates no campo educacional marcadamente
caracterizados pela desqualificação do ato de ensinar e da
propriedade de se transmitir conhecimentos. Nessa perspectiva,
questiona-se a própria existência do conhecimento objetivo
acerca da realidade, subjugado a contextos culturais particulares
numa declarada investida contra a universalidade do saber.
Mas não se trata apenas de um questionamento
sobre concepções de conhecimento, uma vez que a premissa
fundante desse questionamento assenta-se na própria
concepção do que seja realidade, reduzida, simplesmente, a
significações consensuais. Em nome de uma suposta “crise
paradigmática” nas formas clássicas de se conceber os saberes
científicos, a transmissão de conhecimentos e a própria
função social da escola, anuncia-se a necessidade de uma
profunda revisão das práticas pedagógicas e da formação de
professores.
Defende-se, portanto, uma “nova pedagogia”, que
privilegia as competências desenvolvidas pela prática, que
referencia-se nos saberes experienciais e de senso comum
e que, sobretudo, se coloca contrariamente ao modelo de
racionalidade próprio ao pensamento científico moderno.
Essa nova pedagogia, explícita ou implicitamente
ancorada no ideário pós-moderno, segundo Santos (1988) deve
assegurar dentre outras premissas, que: todo conhecimento
seja local e total; todo conhecimento seja autoconhecimento
e que todo conhecimento científico deva constituir-se em
novo senso-comum. Ou seja, para esse autor o conhecimento
deve estar ajustado ao contexto, deve corresponder às
manifestações fenomênicas dadas à percepção, congregar
450
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

significações compartilhadas e tangenciar a subjetividade


dos indivíduos para, só assim, poder orientá-los no mundo.
Verifica-se um forte apelo a estratégias educacionais
contextuais e individualizadas, que sugerem uma formação
escolar centrada em atividades cotidianas, quer da vida quer da
sala de aula. O saber particularizado, o saber da experiência,
adquire grande importância, ocupando um lugar outrora
concedido aos conhecimentos clássicos.
Tais premissas são bastante representativas das
orientações impressas tanto em documentos oficiais de
âmbito nacional, a exemplo do volume I “Introdução” —
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) das séries iniciais do
Ensino Fundamental (BRASIL, 1997), quanto em programas
institucionais de formação contínua de professores, a exemplo
do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores
Letra e Vida (SÃO PAULO, 2006).
Essas orientações, consubstanciadas no lema
“aprender a aprender”, foram profundamente analisadas
por Duarte (2000, p. 8) para quem: “[...] o núcleo definidor
do lema “aprender a aprender” reside na desvalorização do
saber objetivo, na diluição do papel da escola em transmitir
esse saber, na descaracterização do papel do professor como
alguém que detém um saber a ser transmitido aos seus alunos,
na própria negação do ato de ensinar”.
O mote do pensamento pós-moderno e das
políticas neoliberais transpostos para a formação de
professores se expressa fortemente na grande relevância
conferida à relação entre formação pessoal e formação
profissional, indicada como antídoto às cisões entre
objetividade e subjetividade, entre realidade interna e
realidade externa, entre razão e emoção etc.
Entretanto, em nome dessa pretensão; diga-se
de passagem, bastante sedutora; instalam-se procedimentos
451
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de particularização e relativização do ensino de conteúdos


historicamente sistematizados, fortalecidos pela ideia de
que não é somente por meio da escola que se ensina e
que se aprende, corroborando para mais uma forma de
depauperamento de educação escolar.
O que esses ideários ocultam é, por um lado, a mais
absoluta desqualificação da educação escolar como direito
social, como condição inalienável do efetivo desenvolvimento
dos indivíduos, e por outro, o seu alinhamento à ordem do
capital sobre a vida da grande maioria das pessoas. Nessa
direção, concordamos com Rossler (2004) ao afirmar que:

O discurso educacional contemporâneo está


impregnado por essa fraseologia ideológica que tenta
embelezar as relações no interior da escola e da sala
de aula. Nossos dirigentes e seus representantes
no âmbito da educação costumam falar da busca
por formar seres humanos melhores.[...] Homens
livres, adequados às novas exigências da sociedade
moderna, do novo milênio — que saibam fazer (saber
fazer), que saibam aprender (aprender a aprender) e
pensar criticamente por si sós; agir livremente, com
competência, habilidade e responsabilidade. Enfim,
falam de novos homens adaptados ao novo mundo,
cabendo à educação o papel de melhorá-los, ou seja,
de produzi-los. (ROSSLER, 2004, p. 79-80)

Produção essa que não ficará isenta de um “bom”


controle de qualidade, pois, quanto mais se abandona o
processo formativo escolar maior a necessidade do controle
sobre seu produto. Não por acaso, também travestidas sob
a forma de compromisso com a qualidade educacional,
proliferam as estratégias de avaliação institucional, tais
452
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

como: Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior


(SINAES), Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB)
— antigo Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica (SAEB), Avaliação Nacional do Rendimento Escolar
(ANRESC / “Prova Brasil”), Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM), Sistema de Avaliação de Rendimento
Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) etc.
Nas palavras de Ramos-de-Oliveira (1998):

[...] O sistema cede aos reclamos da sociedade e cria


escolas, mas diferenciadas porque as pessoas são
diferentes. (Nesse sentido, a diferenciação é aceita.
É, aliás, parte essencial da dominação de classe).
Mas o sistema não confia nos resultados de seu
ensino e levanta uma barreira para reafirmar que os
resultados de seu ensino são duvidosos, deficientes
mesmo. [...] Tenham um mau ensino e sejam
castigados porque o ensino era fraco! (RAMOS-
DE-OLIVEIRA, 1998, p. 21, grifo do autor)

E como não poderia ser diferente, tanto a formação


quanto a profissionalidade do professor adquirem novos
atributos, representativos da destruição imposta à educação
escolar destinada aos filhos e filhas, principalmente, da classe
trabalhadora. Ainda segundo Ramos-de-Oliveira (1998):

Também o professor deve ser padronizado, um


operário a mais. De pequena qualificação, pois
muitos estão se formando em faculdades de
fim de semana. O processo de ensino precisa ter
a objetividade da produção industrial. Adotem-
se, portanto, objetivos concretos, pequenos,
mensuráveis; façam-se detalhados planejamentos
453
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

de ensino. E disseminem-se manuais coloridos,


ilustrados e, acima de tudo, com livros do professor.
Com exercícios e perguntas e, acima de tudo, com
respostas. [...] Assim que o professor, tornado
indiferenciado, for dispensado, qualquer outro
assume-lhe o posto, verifica o caminho já percorrido
e segue para o item seguinte do planejamento [...]
(RAMOS-DE-OLIVEIRA, 1998, p. 22)

Diante desse cenário, compartilhamos o proposto


por Freitas (2002, p. 31), ao afirmar a urgência na proposição
de projetos político-pedagógicos de resistência, uma vez que
nossos objetivos não são os de aperfeiçoamento da atual
sociedade, regida pela lógica do capital, mas, outrossim, os
de luta pela sua abolição.
Como, então, imprimir essa luta no âmbito
da formação de professores? Acreditamos que, primeiro,
afirmando a educação escolar como uma das condições
imprescindíveis pelas quais os indivíduos desenvolvem suas
propriedades ontológicas essenciais e uma sólida formação
de professores como um dos requisitos para a assunção desse
objetivo. Segundo, considerando a referida formação um
instrumento de luta contra a alienação. Nessa perspectiva,
apresentamos, sumariamente, os conteúdos que têm norteado
nossas ações em formação de professores.

Formação de Professores: alternativas


necessárias

Pelo exposto, procuramos explicitar nossa


discordância em relação ao subjetivismo idealista que
impregna o campo pedagógico e que tão parcamente
contribui para a qualificação do trabalho docente. Buscamos,
454
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

também, apontar algumas de suas consequências para a


formação de professores, em especial, a ênfase num tipo
de formação que oblitera as possibilidades humanas na
direção da transformação das circunstâncias que esvaziam o
trabalho e empobrecem o trabalhador. Em face desses limites,
consideramos premente a afirmação do caráter práxico da
educação posto que ele, mais do que se refletir na formação
de indivíduos particulares, revela-se uma das importantes
condições para a edificação de uma outra ordem social.
Defendemos, portanto, uma formação de
professores que seja, por um lado, via de formação
profissional, determinante da aprendizagem de um conjunto
de conhecimentos e domínios teóricos, metodológicos e
técnicos e, por outro, via estruturante de recursos afetivo–
cognitivos imprescindíveis para que os futuros professores
(ou professores em formação contínua) possam conhecer
com o devido rigor, cientificidade e criticidade não apenas
as dimensões técnicas próprias ao seu exercício profissional,
mas, sobretudo, as condições histórico-sociais nas quais esse
exercício ocorrerá e que precisam ser transformadas.
Concordamos com Severino (2002) ao afirmar que:

[...] numa sociedade organizada, espera-se que


a educação, como prática institucionalizada,
contribua para a integração dos homens no tríplice
universo das práticas que tecem sua existência
histórica concreta: no universo do trabalho, âmbito
da produção material e das relações econômicas;
no universo da sociabilidade, âmbito das relações
políticas; e no universo da cultura simbólica,
âmbito da consciência pessoal, da subjetividade
e das relações intencionais. (SEVERINO, 2002,
p. 11)
455
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Consolidar a formação de professores para as três


esferas referidas nas quais, em última instância, é construída
a existência de todos os indivíduos, indiscutivelmente não
é tarefa fácil, mas é tarefa imprescindível. E, para tanto,
acreditamos na possibilidade de um processo formativo
calcado em preceitos do materialismo histórico dialético e
em fundamentos da psicologia vigotskiana, sobre os quais
versaremos na sequência.

1. Formação humana: ser gente...

Nas duas últimas décadas disseminaram-se


no campo educacional, com razoável penetração, alguns
princípios para a formação de professores que, em síntese,
anunciam a subjetividade do professor como referência
nuclear tanto de sua formação quanto de seu exercício
profissional e conferem grande destaque à promoção dos
meios para uma autoformação, entendida como condição
para o desenvolvimento do pensamento autônomo e crítico.
Uma formação de professores, portanto, identificada com a
promoção de condições pelas quais o aluno deva, acima de
tudo, refletir sobre o modo pelo qual se forma.
Embora discordemos radicalmente do viés
particularizante e subjetivista presente nessas proposições,
entendemos que podemos, sim, tomar como ponto de partida
a autoformação. Trata-se de iniciar a formação buscando
resposta a uma questão central: como é que se forma cada
um de nós?
Essa indagação reporta-nos ao pensamento
fundante da escola de Vigotski, qual seja: o ser humano e seu
psiquismo se formam sob condições que são histórico-sociais,
isto é, os processos intrapsíquicos derivam dos processos inter-
psíquicos por meio da internalização dos signos. Assim sendo,
456
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

a explicação acerca da subjetividade dos homens e mulheres


só pode ser encontrada como correlação entre processos
psíquicos e realidade social objetiva e o seu desenvolvimento
compreendido como resultado da apropriação do patrimônio
intelectual e material historicamente construído.
Nesta direção, urge saber que aquilo de que
dispomos ao nascer não comporta os germens para o
nosso pleno desenvolvimento porque eles assentam-se,
efetivamente, na cultura, nas objetivações humanas. É no
esteio desse conhecimento que devemos, então, afirmar o
papel do ensino e da educação escolar como condição sine qua
non de humanização dos indivíduos, uma vez que ser humano
representa tornar-se humano, isto é, adquirir as propriedades
representativas das máximas conquistas do gênero humano2.
Lembremos que, segundo Vigotski (1991), a
evolução da espécie assegura aos indivíduos apenas as
características biológicas próprias às funções psicológicas
primárias, ou elementares, na base das quais se edificam as
funções psicológicas superiores caracterizadoras dos seres
humanos. Essas, por sua vez, compreendem os processos
mentais estruturados por decorrência das apropriações do
patrimônio humano genérico, dependentes, portanto, das
condições objetivas de vida e das aprendizagens que nela se
efetivam.
Tais proposições visam a demonstrar, inclusive,
que o dado distintivo da atividade especificamente humana
das demais formas vivas de atividade reside na aquisição
de propriedades que capacitam o homem para intencionar,
projetar e implementar operacionalmente seu projeto. Toda
ação verdadeiramente humana pressupõe a consciência de uma
finalidade que precede a transformação concreta da realidade
natural ou social. A atividade essencialmente humana é ação
material, consciente e objetiva, ou seja: é práxis.
457
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Portanto, qualquer enfoque sobre autoformação


que prescinda dessa verdade torna-se artificial e incompleto,
pois a práxis outra coisa não é, senão, a real dimensão
autocriativa do homem, manifestando-se tanto em sua ação
objetiva sobre a realidade quanto na construção de sua própria
subjetividade. Ora, como então conferir crédito aos ideários
pedagógicos que apregoam a desqualificação da escola
como lócus privilegiado dos conhecimentos clássicos e o
esvaziamento do ensino pela desqualificação da transmissão
dos conhecimentos científicos, fazendo apologia da “prática”
em detrimento da teoria!
Colocar em questão a autoformação em sua
concreticidade determina sabê-la síntese de múltiplas
determinações, pressuposto do homem unido a outros
homens, fundando-se em relações sociais objetivas mediadas
por apropriações e objetivações que lhes são disponibilizadas.
Anteriormente, ao afirmarmos a autoformação apenas como
ponto de partida do processo formativo, referíamo-nos,
indiretamente, a esse percurso, que instiga o formando à
compreensão da formação histórico-social dos homens a
partir de sua própria história, de seu próprio desenvolvimento.
Consideramos, ainda, que essa compreensão torna-se
facilitada pela promoção do “diálogo” entre os conteúdos
do que Leontiev (1978, p. 176) denominou como consciência
sobre si e autoconsciência.
Referindo-se ao desenvolvimento da consciência,
esse autor afirma que a consciência sobre si, como qualquer
outro conhecimento, compreende a delimitação de
propriedades externas e internas resultantes de comparações,
análises e generalizações sintetizadas num sistema de conceitos
e significados. Esse sistema de representações sobre si vai
construindo-se já nas etapas iniciais do desenvolvimento,
ainda que originariamente em formas sensoriais não
458
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

conscientes, culminando num conhecimento dos traços e


propriedades individuais. Nesse sentido, o autoconhecimento
pressupõe a consciência sobre si, mas não pode ser com ela
identificado.
A autoconsciência implica, para além da
consciência sobre si, o estabelecimento dos nexos entre
esse conhecimento e o sistema de relações sociais no qual
se insere o indivíduo. Pressupõe o conhecimento sobre si
posto diante das condições objetivas de existência, ou seja,
nas intersecções que estabelece com o mundo circundante.
Identifica-se com o processo do ir além de si mesmo, pelo
qual o indivíduo se reconhece na realidade mais ampla na
mesma medida em que a reconhece em si.
Assim, consideramos que o processo de formação
de professores precisa explicitar essas ideias tendo em vista
o entendimento de que a essencialidade dos indivíduos não
se encerra na particularidade, tal como pressuposto pela
psicologia burguesa, mas na existência relacional, real e
objetiva. Nessa perspectiva, refletir acerca da autoformação
do professor implica trazer à discussão a dialeticidade
singular-particular-universal num processo que mobilize
sua vivência3. Conforme disposto por Oliveira (2001), na
concepção histórico-social do homem, a formação dos
indivíduos só pode ser explicada de fato, levando-se em conta
a relação indivíduo-genericidade, isto é:

[...] a relação do homem com o gênero humano,


a relação de cada indivíduo com as objetivações
humanas. São objetivações que precisam ser
apropriadas, pelo indivíduo, para que possa
dominar o sistema de referência do contexto em
que vive e, assim, objetivar-se como sujeito ativo
e participante das transformações desse contexto.
459
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Mas para que isso possa ser compreendido em


suas múltiplas relações, é preciso considerar que
todo esse processo entre o indivíduo (singular)
e o gênero humano (o universal) se concretiza
na relação que o indivíduo tem com a sociedade
(particular). (OLIVEIRA, 2001, p. 16-17)

Por essa via buscamos, também, sensibilizar o


formando para compreender-se como alguém que pertence
a uma classe social que na atualidade, muito provavelmente,
não é a classe dominante. Colocamos em questão o quanto as
condições de vida dos trabalhadores são as expressões vivas
das relações sociais injustas e desiguais e que na sociedade
capitalista, em razão da divisão social do trabalho, essas
relações articulam-se estruturalmente na instituição das
classes sociais.
Vivemos numa sociedade de classe, dividida
entre a classe dos detentores e a classe dos espoliados dos
meios de produção, dados que culminarão, seguramente,
na existência de dois tipos de demandas, que a tais classes
correspondem. E como assinalado por Gramsci (1982, p. 9),
uma das características mais decisivas da classe dominante
se revela na luta pela conquista ideológica dos intelectuais,
dos formadores de opinião (dentre os quais se incluem os
professores), num processo velado de assimilação pelo qual
os tornam seus próprios intelectuais orgânicos.
Deste modo, temos como imprescindível, na
formação de professores, o desvelamento da ideologia de
dominação e a explicitação da existência de apenas duas
alternativas: ou se está a serviço da manutenção do status quo
da classe dominante ou a serviço da luta pela abolição da
sociedade de classe, isto é, do capitalismo. Sabidamente esse é
um dado que encerra grande complexidade, pois, como bem
460
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

alertado por Mészáros (2002, p. 1032), a reprodução até hoje


bem sucedida das condições de dominação ilustra a poderosa
força ideológica que, com seus inúmeros meios e métodos,
mobiliza os indivíduos que, mesmo sem compreendê-la,
atuam a seu favor.
Portanto, entendemos que toda formação escolar
deveria equipar os indivíduos com a ideologia da classe a
que pertencem para que possam se alinhar à causa de sua
própria emancipação. Mas, para tanto, essa formação precisa
promover a apropriação dos conhecimentos historicamente
acumulados, da cultura científica e teórico-técnica, condição
preliminar para a decodificação do real, para a interpretação
dos fatos, para a superação das aparências, enfim, para a
implementação da práxis.
Em suma, esse primeiro eixo do processo
formativo compreende um trabalho pedagógico voltado para
a sensibilização e para a instrumentalização teórico-filosófica
tendo em vista que os formandos se compreendam como
representantes, em maior ou menor grau, do gênero humano,
condição requerida ao ser gente!

2. Trabalho humano: ser professor...

Pelo disposto anteriormente, procuramos afirmar


o quanto somos expressões das relações sociais e, portanto,
nos encontramos inevitavelmente unidos aos outros homens
organizando historicamente, por meio do trabalho, as
formas dessa união. Nesse sentido, o tratamento dispensado
à formação de todos os profissionais, aqui em especial, de
professores, demanda a análise acerca da dimensão ontológica
do trabalho social.
Segundo Marx (1978) é pelo trabalho, atividade
vital humana, que o homem se firma como sujeito de sua
461
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

existência, construindo um mundo humano e humanizando-


se nessa construção4.

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre


o homem e a Natureza, um processo em que o
homem, por sua própria ação, media (sic), regula
e controla seu metabolismo com a natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como
uma força natural. Ele põe em movimento as
forças naturais pertencentes à sua corporalidade,
braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-
se da matéria natural numa forma para sua própria
vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre
a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele
modifica ao mesmo tempo sua própria natureza.
(MARX, 1978, p. 149)

Portanto, é a atividade vital humana que garante


a existência não apenas da vida individual, mas de toda a
sociedade que a sustenta, dado que determina apreendê-la
em sua dupla dimensão: objetiva e subjetiva.
Tendo em vista que o trabalho é a atividade pela
qual o homem produz e reproduz a sua vida e a vida da
sociedade, é incontestável a centralidade de sua expressão
em todas as esferas da existência humana. Ou seja, ele
encerra conteúdos subjetivos, expressos nas expectativas,
significações e sentidos do indivíduo em relação à dada
atividade e ao mesmo tempo, conteúdos objetivos, expressos
nas funções sociais, nas demandas que a sociedade lhe impõe.
Ocorre, porém, que, vivendo numa sociedade
capitalista, a vida do indivíduo organiza-se em função das
possibilidades determinadas por esse modelo de organização
social, que confere características específicas para o trabalho
462
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

humano. Dentre essas características destaca-se o divórcio


entre a subjetividade das pessoas e suas condições objetivas
de existência. Dito de outro modo, sob a égide do capital,
instala-se um hiato entre as dimensões causal e teleológica
da atividade humana, ou, entre seu motivo (por quê) e sua
finalidade (para quê).
O trabalho humano, fundando-se nesse hiato,
esvazia-se de suas máximas possibilidades humanizadoras
convertendo-se em mera “tarefa” ou “ocupação” requerida
à obtenção de um salário: converte-se em emprego! Por
consequência, ocorre um esgarçamento entre o trabalho e
seu resultado na medida em que as necessidades às quais
corresponde a atividade produtiva podem não ser as do
indivíduo que produz, da mesma forma que o salário que
recebe não reflete efetivamente a tarefa realizada.
Consideramos, portanto, que a questão da
alienação do trabalho e do trabalhador, em sua acepção
marxiana, precisa constituir-se como conteúdo para a
formação de todos os profissionais, mas, em especial, de
professores. Conforme analisamos em outro trabalho
(MARTINS, 2007), trata-se de afirmar o quanto a atividade
docente subordina-se ao desenvolvimento humano genérico
de seu autor, uma vez que seu produto outra coisa não é,
senão, a promoção desse desenvolvimento junto a outros
indivíduos. Ou seja:

A alienação, por exemplo, do operário da indústria


automobilística não compromete a qualidade do
automóvel que ele contribui para construir, mas
a alienação do trabalhador professor interfere
na qualidade do produto de seu trabalho. O
trabalho educativo pressupõe o homem frente a
outro homem de quem não pode estar estranho
463
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

(alienado), fundando-se numa relação que é


por natureza inter-pessoal e mediada pelas
apropriações e objetivações desses homens.
(MARTINS, 2007, p. 5)

O empobrecimento do trabalho promovido


pela alienação se expressa tanto em sua dimensão objetiva
quanto subjetiva. No plano da primeira, revela-se no não
atendimento da função social precípua da atividade, isto
é, no seu boicote! No plano da segunda, na expressão dos
sentimentos de falta de sentido e de impotência, na perda de
ideais, na desesperança e, consequentemente, numa valoração
negativa da própria vida em sociedade.
Com isso, sentimentos como a resignação, a
passividade e o conformismo da desesperança são gerados
e expressos em diferentes formas de sofrimento psicológico
ou em outras formas de adoecimento representativos da
falta de sentido da vida. Nesse sentido, cabe aqui observar
que consideramos a Síndrome de Burnout e outras
denominações conferidas aos sentimentos de desânimo,
apatia e despersonalização que, segundo pesquisas (CODO,
1999), se abatem sobre os trabalhadores encarregados de
cuidar de outros, entre os quais se incluem os professores,
mais uma expressão da alienação, mutiladora da plena
existência dos indivíduos.
Ao romper a articulação necessária entre o trabalho
e seu resultado, a alienação cria profundas contradições na
existência humana. As pessoas, subrepticiamente, deixam
de ser sujeitos do desenvolvimento de suas capacidades
individuais, do seu próprio crescimento e destino convertendo-
se em executores de tarefas definidas por exterioridade em
relação aos indivíduos. Apenas retomando para si o controle
consciente das transformações das circunstâncias e de si
464
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

mesmos, as pessoas estarão a caminho da superação da


alienação e das dissonâncias entre as dimensões objetiva e
subjetiva do trabalho social, um dado que se identifica com
a superação do capitalismo.
Entendemos que a educação escolar deva colocar-
se a serviço dessa superação se, verdadeiramente, tem como
objetivo a libertação dos indivíduos das condições de opressão
em que vive a grande maioria das pessoas. Acreditamos que,
por mais que as atividades escolares se encontrem subjugadas
à ideologia do capital, elas encerram potencialmente
possibilidades para o crescimento dos indivíduos. Mas a
superação desta contradição encontra-se na dependência do
grau de alienação a que se encontra subjugado o educador,
que será tanto maior ou menor quanto puder apropriar-se
das objetivações genéricas para-si5 e estabelecer relações
conscientes entre os significados e sentidos de seus atos.
No âmbito da formação de professores conferimos
grande crédito à construção do sentido de ser professor pela
ampliação dos significados6 atribuídos ao trabalho docente, isto
é, à construção de congruência entre suas dimensões objetiva
e subjetiva. Isso requer uma sólida instrução filosófica, ético-
política, teórica e metodológico-técnica, uma vez que a atividade
humana exige mediações, necessita de um direcionamento que
auxilie a edificação da unidade necessária entre os motivos e
as finalidades das ações que lhe correspondem.
É a serviço desse direcionamento que concebemos
a formação acadêmico-profissional comprometida com a
humanização dos educandos; uma formação que não se
resume a um treinamento técnico, que não se encerra nos
estreitos limites da prática esvaziada de seus fundamentos,
que não se coloca refém das exigências de mercado e/ou dos
modismos pedagógicos sem se ter, sequer, clareza daquilo
que representam.
465
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Assim, consideramos que apenas uma sólida


formação acadêmica permitirá aos futuros professores,
para além do estabelecimento de articulações entre os
significados e sentidos de suas ações, a estruturação das
complexas capacidades humanas que apenas se consolidam
nos indivíduos particulares à medida que conquistam as
objetivações humanas.

3. Desenvolvimento humano: ser capaz

Tecidas essas considerações, pelas quais procuramos


destacar a interdependência entre o desenvolvimento das
pessoas e suas condições objetivas de vida e educação,
cumpre-nos colocar em foco, mais especificamente, o papel
que a educação escolar desempenha nesse desenvolvimento.
Avaliamos como condição indispensável à formação de
professores que os mesmos entendam o ato de ensinar como
dado inalienável da formação humana, ou seja, voltado para a
aquisição individual das complexas capacidades consolidadas
pela humanidade.
Para tanto, primeiramente, é preciso que se defina
o que é capacidade e como esta se consolida. Segundo
Petrovski (1985), as capacidades são: “[...] particularidades
psicológicas das pessoas das quais depende a aquisição de
conhecimentos, hábitos ou habilidades, mas que não se
reduzem a estes conhecimentos, hábitos ou habilidades” (p.
405). Ou seja, desenvolvem-se por meio dessas aquisições,
mas generalizam-se ampliando as possibilidades para novas
conquistas.
As capacidades são formações complexas que
ensejam um conjunto de propriedades psíquicas requeridas
à realização exitosa de atividades que são aptas a satisfazer
necessidades, socialmente úteis e historicamente formadas.
466
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Deste modo, não é possível compreender o desenvolvimento


de capacidades senão em relação com a elaboração, cada vez
mais complexa, das atividades humanas.
Fica assim evidente que é a especialização do
trabalho que tem conduzido historicamente a formação
e especialização de capacidades. Portanto, elas não são
dons naturais dos indivíduos, mas produtos da história
humana. Desenvolvem-se pela apropriação da linguagem,
dos instrumentos de trabalho, da ciência, da arte etc.,
por consequência, vê-se que os homens constroem suas
capacidades à medida que conquistam tais objetivações.
Esse desenvolvimento efetua-se em relação direta
com o ensino e com a apropriação de conhecimentos, embora
a apropriação de conhecimentos não seja necessariamente
coincidente com o desenvolvimento de capacidades. Falamos
em desenvolvimento de capacidades quando a apropriação
de determinados conhecimentos resulta na estruturação
de condições internas e externas que originam novas
apropriações, das quais resultam novas condições e assim
sucessivamente.
Assim, esse é um processo que transcende o
sentido utilitário e pragmático do conhecimento e da ação
(a exemplo do que se define por competência!), implicando,
sempre, possibilidades de análise, síntese e generalização.
Resulta em um desenvolvimento criador que opera como
substrato na constituição de inúmeros hábitos e habilidades7.
Entretanto, devemos observar que nem os hábitos nem as
habilidades identificam-se com as capacidades, existindo entre
eles relações bastante complexas.
Tendo em vista que toda capacidade é capacidade
para algo, o fato de ela existir não determina que hábitos e
habilidades lhe sejam correspondentes; por exemplo, é possível
que um indivíduo tenha capacidade para ler sem, contudo,
467
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ter o hábito para tanto. Em contrapartida, toda capacidade


se reforça e se aperfeiçoa à medida que é acompanhada por
eles, de maneira que um alto nível de capacidade demanda o
desenvolvimento de hábitos, bem como a possibilidade de
utilizar diferentes habilidades para se alcançar um mesmo
fim, segundo as condições disponibilizadas para a atividade.
Pelo exposto, vemos que a realização de qualquer
atividade demanda capacidades requisitadas e mobilizadas
pela própria natureza da atividade. Em se tratando da
atividade docente, muitas são essas capacidades, mas dentre
elas, uma se destaca especialmente, qual seja, a capacidade
para ensinar. Assim sendo, a formação de professores deve
orientar-se por esse objetivo, promovendo, acima de tudo, a
aquisição da cultura pedagógica, produzida pela unidade entre
os conteúdos escolares e as formas de sua transmissão, isto
é, entre os conhecimentos clássicos requeridos à educação
escolar (de qualidade!) e os meios didático-pedagógicos pelos
quais eles devam ser ensinados.
Ora, se for mar professores significa,
fundamentalmente, promover nos formandos a capacidade
para ensinar, urge considerá-la em íntima relação com a
forma de pensamento mais desenvolvida pela humanidade,
ou seja, relacioná-la ao processo de superação do pensamento
empírico pelo pensamento teórico8. Segundo Abrantes e
Martins (2007):

O pensamento empírico, derivado direto da


atividade sensorial do homem sobre os objetos
da realidade é, indiscutivelmente, a forma primária
de pensamento, levando ao conhecimento do
imediato na realidade, isto é, ao conhecimento da
realidade em suas manifestações exteriores [...].
Diferentemente, o pensamento teórico apreende
468
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

o objeto em suas relações internas e leis que regem


seu desenvolvimento, compreensíveis por meio
das elaborações racionais dos dados dispostos
pelo conhecimento empírico. Sua forma lógica é
constituída pelo sistema de abstrações que explica
o objeto, isto é, pelos conceitos [...]. (ABRANTES;
MARTINS, 2007, p. 316-317)

Essa distinção entre as formas de pensamento e a


afirmação do pensamento teórico (conceitual) como requisito
para o conhecimento do fenômeno em sua essencialidade
é reiterativa da importância do ato de ensinar e da seleção
dos conteúdos de ensino, pois, seguramente, esse modo de
pensamento não será desenvolvido espontaneamente ou
independentemente da qualidade das mediações educativas.
O desenvolvimento do pensamento, como dado que não está
assegurado naturalmente aos indivíduos, é uma conquista
promovida pela capacidade humana de ensinar, e do
desenvolvimento dessa capacidade nenhum futuro professor
pode ser isentado...

Em suma...

Ao longo desse texto apresentamos os três eixos


temáticos representativos da metodologia por nós adotada na
formação de professores, e que podem ser assim sintetizados:
*ser Gente: cujo conteúdo de formação aponta o
estudo da natureza histórico-cultural do desenvolvimento
humano;
*ser Professor: cujo conteúdo de formação
aponta o estudo da centralidade do trabalho social nesse
desenvolvimento, da alienação como negação do verdadeiro
trabalho e do significado de ser professor;
469
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

*ser Capaz: cujo conteúdo formativo corresponde à


afirmação da apropriação dos conhecimentos historicamente
sistematizados como condição para o desenvolvimento
das capacidades ontológicas essenciais e, sobretudo, para a
superação do desenvolvimento do pensamento empírico em
direção ao pensamento teórico.
Esperamos ter demonstrado, ainda que em linhas
gerais, que:

A verdadeira educação é, portanto, transformação


do ser em direção a um ideal humano superior, de
tal forma que os esforços para a transformação do
indivíduo se tornam indissociáveis dos esforços
para a transformação da sociedade. Neste sentido,
se a tarefa educativa pressupõe um projeto
pedagógico, ela pressupõe também um projeto
político, pois ambos se encontram dialeticamente
condicionados como substrato para uma práxis
concretamente transformadora. (MARTINS, 2007,
p. 147)

É com esse objetivo que entendemos uma


formação de professores a serviço da emancipação humana
das condições de exploração em que vive a grande maioria
dos indivíduos, nas quais se incluem, muitas vezes, os próprios
professores.

Notas
1
Adotamos essa expressão tal como Duarte (2004, p. 219) que a
propõe como: “uma vasta gama heterogênea e ampla de correntes
de pensamento que possuem em comum a atitude cética em relação
à razão, à ciência, ao marxismo e à possibilidade de o capitalismo ser
superado por uma sociedade que lhe seja superior”.
470
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

2
A expressão gênero humano designa as máximas objetivações
alcançadas pela humanidade como resultado de sua história social e,
portanto, aquilo que se tem como meta no desenvolvimento de cada
indivíduo particular.
3
Na concepção vigotskiana esse termo designa unidade afetivo-
cognitiva construída no dado experiencial do sujeito.
4
Pelos limites objetivos desse texto não exploraremos com toda
abrangência possível a importância ontológica do trabalho social.
Sugerimos, portanto, a leitura de: Márkus, G. (1974) e Marx, K. (1978).
5
As objetivações genéricas para-si compreendem aquelas referentes
à ciência, à moral, à arte etc., nas quais os homens concretizaram
historicamente e continuam concretizando suas máximas possibilidades
intelectuais, políticas, éticas e estéticas.
6
Segundo Leontiev (1978, p. 94) os significados são supra-individuais,
resultam de todo um sistema de objetivações e das relações que
sustentam a prática histórico-social dos homens. Diferentemente, os
sentidos são individuais, assentam-se na experiência de dado indivíduo,
conferindo aos significados um caráter subjetivo particular.
7
Os hábitos correspondem à atuação, ao exercício regular que uma vez
instalado dispensa o planejamento prévio da ação, pois automatiza
seus nexos operacionais. Eles promovem a destreza, facilitando a
execução concomitante de várias operações ou de ações complexas,
para as quais se diz ter desenvolvido habilidades.
8
Sobre as características e formação desses modos de pensamento
sugerimos a leitura de Davídov, V. (1998) e Kopnin, P.V. (1978).

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à teoria crítica em educação. 1. ed. Petrópolis: Vozes; São
Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 1998. p. 13-44.
473
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

ROSSLER, J. Educação como aliada da luta revolucionária


pela superação da sociedade alienada. In: DUARTE, N.
(Org.). Crítica ao fetichismo da individualidade. 1. ed. Campinas:
Autores Associados, 2004. p. 75-98.

SANTOS, B. Um discurso sobre as ciências na transição para


uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, v. 2, p. 56-71,
1988.

SÃO PAULO (Governo do Estado de São Paulo. Secretaria de


Estado da Educação/Coordenadoria de Estudos e Normas
Pedagógicas – CENP). Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores Letra e Vida. Coletânea de Textos – Módulo
1. São Paulo, 2006.

SEVERINO, A. Competência técnica e sensibilidade ético-


política: o desafio da formação de professores. Cadernos
FEDEP – S.P (Fórum Estadual Paulista em Defesa da
Escola Pública). Subsídios ao debate do plano estadual de educação:
formação de professores. São Paulo, n. 1, p. 7-13, fev. 2002.

VIGOTSKI, L. Formação social da mente. São Paulo: Martins


Fontes, 1991.

474
Reflexões acerca da
proposta bakhtiniana para
uma metodologia do estudo
da língua e implicações sobre a
profissão docente

Stela Miller

A língua como objeto de estudo

O presente trabalho tem como objetivo realizar


algumas reflexões sobre a proposta feita por Mikhail
Bakhtin, em sua obra “Marxismo e filosofia da linguagem”
(BAKHTIN, 1990), para o estudo da língua, e, a partir daí,
pensar uma metodologia para o ensino da língua materna,
bem como trazer à discussão um modo de ser do educador
compatível com essa escolha metodológica.
Para Bakhtin (1990), “a língua vive e evolui
historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema
lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual
dos falantes” (p. 124, grifos no original).
A língua é dinâmica; renova-se de forma contínua,
num processo histórico evolutivo ininterrupto que se realiza
por meio de situações em que ocorrem comunicações verbais
concretas, nos processos interativos que se dão entre os falantes
da língua. Esses processos interativos estão organizados pelas
enunciações dos falantes dentro de uma situação interativa dada.
junqueira&marin editores 475
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Nessa evolução, há uma ordem pela qual, em


primeiro lugar, evoluem as relações sociais em função das
forças sociais presentes nos diferentes setores da infraestrutura
social. Em seguida, no quadro dessas relações sociais
dinâmicas, evoluem os processos comunicativos marcados
pelas interações verbais que se dão entre os participantes
dos processos enunciativos concretos aí estabelecidos, o que
ocasiona a evolução das formas dos atos de fala presentes
nessas interações; culmina essa evolução com a mudança das
formas da língua.
Deduz-se daí que a substância da língua encontra-
se na interação verbal que acontece entre os usuários da
língua e que se concretiza nas enunciações produzidas nesse
processo. É, portanto, da própria língua em movimento, como
discurso, que se extrai a sua substância e se pode compreender
a dinâmica de seu funcionamento.
Sendo assim, essa substância não pode ser
encontrada no sistema abstrato das formas linguísticas,
consubstanciado em um modelo fechado que se obtém por
um corte sincrônico que se faz na linha evolutiva da língua e
que reflete um momento dessa evolução e se mostra como
um sistema organizado de regras e normas que caracterizam a
língua naquele exato momento. Vista sob esse ângulo, a língua
é apenas uma abstração, um objeto de estudo desprovido
da significação que se encontra no interior das enunciações
dos sujeitos usuários da língua dentro dos processos
interativos que acontecem no interior das relações sociais que
caracterizam a vida das pessoas em uma dada comunidade
linguística. Como afirma Bakhtin,

A consciência subjetiva do locutor não se


utiliza da língua como de um sistema de formas
normativas. [...] Na realidade, o locutor serve-se
476
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

da língua para suas necessidades enunciativas


concretas [...]. Trata-se, para ele, de utilizar as
formas normativas [...] num dado contexto
concreto. Para ele, o centro de gravidade da língua
não reside na conformidade à norma da forma
utilizada, mas na nova significação que essa forma
adquire no contexto. O que importa não é o
aspecto da forma lingüística que em qualquer caso
em que é utilizada, permanece sempre idêntico.
Não; para o locutor o que importa é aquilo que
permite que a forma lingüística figure num dado
contexto, aquilo que a torna um signo adequado
às condições de uma situação concreta dada.
(BAKHTIN, 1990, p. 92)

Do ponto de vista do receptor, que deve levar em


consideração o ponto de vista do locutor ao interagir com
ele, a norma lingüística também é vista em sua significação
dentro de um contexto dado. Como afirma Bakhtin,

[...] o essencial na tarefa de descodificação não


consiste em reconhecer a forma utilizada, mas
compreendê-la num contexto concreto preciso,
compreender sua significação numa enunciação
particular. Em suma, trata-se de perceber seu caráter
de novidade e não somente sua conformidade à
norma. (BAKHTIN, 1990, p. 93)

Como decorrência, podemos afirmar que a


substância da língua não pode ser encontrada na enunciação
monológica isolada do contexto das interações verbais que
se dão entre os usuários da língua e, muito menos, no ato
fisiológico da fala.
477
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Tal substância se encontra na língua em uso,


que supõe relações dialógicas que acontecem na interação
entre sujeitos, em contextos comunicativos específicos.
Nesse momento, “a consciência linguística do locutor e do
receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas
normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de
conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma
particular” (BAKHTIN, 1990, p. 95).
Vista por esse prisma, a língua “implica sempre
um contexto ideológico preciso” (p. 95), de modo que tudo o
que é dito ou escrito está impregnado desse sentido ideológico.
Quando estamos envolvidos em uma situação de interação
discursiva, “não são palavras o que pronunciamos ou escutamos,
mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou
triviais, agradáveis ou desagradáveis etc.” (p. 95).
Para a prática pedagógica voltada ao ensino de
língua, decorre daí um problema: como estudar a língua
sem reduzi-la a um sistema abstrato de normas, despido
dos condicionantes ideológicos que caracterizam os seus
contextos de uso?

Implicações para a prática pedagógica

Tendo esses elementos como pressupostos,


Bakhtin (1990) propõe uma ordem metodológica para o
estudo da língua, que pode, igualmente, ser uma proposta
metodológica para o ensino da língua (leitura e escrita,
especialmente) em seus vários níveis de complexidade,
além de servir como norte para o estabelecimento de uma
metodologia de trabalho para outros conteúdos curriculares.
Tal proposta metodológica supõe uma sequência
que indica a ordem em que os estudos linguísticos deveriam
ser realizados, a saber:
478
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

1 - As formas e os tipos de interação verbal


em ligação com as condições concretas em que se
realiza.

2 - As formas das distintas enunciações, dos


atos de fala isolados, em ligação estreita com a
interação de que constituem os elementos, isto é,
as categorias de atos de fala na vida e na criação
ideológica que se prestam a uma determinação pela
interação verbal.

3 - A partir daí, exame das formas da língua na


sua interpretação lingüística habitual. (BAKHTIN,
1990, p. 124)

Tomando como base essa sequência, podemos


pensar uma proposta metodológica para o ensino de língua
materna, adaptável aos diferentes níveis de complexidade
que caracterizam os diferentes momentos da organização
curricular das instituições escolares para essa área do
conhecimento.
A se quê n c ia p a r a e ssa p r o p o s t a s e g u e
aquela mesma apontada por Bakhtin para os estudos
linguísticos:
(1) focalizar as formas e os tipos de interação
verbal entre os usuários da língua, considerando-se o contexto
em que se dá essa interação, ou seja, tratar os diferentes
gêneros textuais em seu contexto de uso social, em sua
habitual forma de comunicação entre os usuários da língua
para que o aluno compreenda tanto a forma pela qual se
organizam os diferentes textos nos diferentes contextos de
comunicação verbal, como também a função social que eles
cumprem na dinâmica da língua em uso;
479
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

(2) na sequência, focalizar a forma específica de


cada enunciação, vista à luz do processo interativo em que
foi produzida, considerando-se a sua organização global e os
elementos que garantem sua coesão e sua coerência; vale dizer,
explorar o texto quanto aos seus elementos de organização
interna e de conformação externa no caso do texto impresso,
explicitando os recursos que o fazem funcionar como uma
unidade linguística significativa, com uma intencionalidade e
um valor apreciativo que determinam a escolha e o arranjo
dos elementos mais carregados de sentido que orientam as
enunciações e tornam explícitos os componentes ideológicos
que permeiam qualquer forma de discurso;
(3) finalmente, focalizar as formas linguísticas que
caracterizam cada enunciação, considerando-se os recursos
disponíveis para concretizá-las, isto é, para cada gênero
textual, evidenciar os aspectos da organização gramatical
de suas partes constitutivas que são essenciais para o
entendimento de como esses recursos colaboram para a
conformação do texto em suas características globais de sua
organização e funcionamento.
Em síntese, essa proposta metodológica propõe
que o ensino da língua forneça ao aluno compreensão da
língua não como um sistema fechado de regras e normas que
devem ser memorizadas para posterior uso, mas como uma
realidade viva cuja substância é constituída das interações
verbais concretizadas por meio do jogo de enunciações que
se estabelece entre os usuários da língua.
Como consequência, a situação de sala de aula,
dentro dessa perspectiva, deixa de valorizar o estudo do
sistema da língua tomado em seu corte sincrônico, visto
como um sistema de regras e normas desvinculadas das ações
interativas de seus usuários, e passa a considerar a necessidade
de trabalhar a língua em seu uso habitual nos mais diversos
480
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

contextos de sua realização concreta, nas diferentes formas de


comunicação verbal que o sistema em uso permite acontecer.
Assim, professor e alunos transformam a sala
de aula em um espaço de interlocução que toma a língua
como objeto vivo e a compreende em sua dinâmica de
funcionamento, pelo confronto de ideias entre seus usuários,
considerados estes últimos como sujeitos que têm voz e vez
no interior das relações sociais estabelecidas tanto na sala de
aula como nos diversos contextos sociais em que se inserem
como cidadãos que pertencem a uma dada comunidade.
Não se descartam, entretanto, os momentos
dedicados ao estudo da língua como sistema organizado
de regras e normas, porém com a ressalva de que esses
momentos não têm valor em si mesmos, senão que valem por
sua contribuição para o desvelar dos fenômenos linguísticos
por trás dos discursos proferidos, dos textos lidos e/ou
escritos. Além disso, permitem o desenvolvimento de um
processo de reflexão acerca desses fenômenos e de sua
sistematização visando à apropriação, pelos alunos, dos
conceitos subjacentes aos recursos linguísticos de que eles
lançam mão quando buscam compreender um texto que está
sendo lido e quando se empenham na produção de textos
orais e escritos.
Dentro dessa visão de trabalho com a língua,
vale destacar alguns aspectos que devem estar presentes no
trabalho pedagógico realizado em sala de aula, com o objetivo
de levar o aluno à compreensão de que:
1 - existe uma relação entre a situação interativa em
que se produz a comunicação verbal concreta e os elementos
da situação extra-linguística em que ela ocorre, “não só a
situação imediata, mas também, através dela, o contexto social
mais amplo. [...] A comunicação verbal não poderá jamais ser
compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação
481
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

concreta” (p. 124). Uma conversa sobre um tema qualquer


insere-se numa discussão mais ampla;
2 - a comunicação verbal associa-se a outras
formas de comunicação não-verbal, como gestos, olhares,
ações, etc. que fazem parte do contexto das interações sociais
que ocorrem no momento da comunicação verbal e ampliam
e completam seu sentido;
3 - o livro e outros suportes de escrita constituem
atos de fala impressos, sendo, da mesma forma, elementos
de comunicação verbal. O discurso escrito é, conforme
Bakhtin, “parte integrante de uma discussão ideológica em
grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma,
antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio
etc.” (p. 123);
4 - a palavra, tanto a falada como a escrita,
comporta duas faces: por um lado, ela procede de alguém, e
por outro, ela se dirige a alguém. “Ela constitui justamente
o produto da interação do locutor e do ouvinte” (p. 113, grifos do
autor), do leitor e do escritor;
5 - para cada situação social específica de
interação entre os usuários da língua há uma forma
determinada de organização dessas relações. Decorre daí
que para cada situação concreta de comunicação haverá uma
forma específica de organização textual a ser construída e,
consequentemente, a ser ouvida, falada, lida ou escrita;
6 - cada elemento da enunciação que faz parte de
um todo só tem sentido dentro desse todo e por isso deve ser
sempre analisado e compreendido a partir dele, decorrendo
daí a necessidade de se tratar as formas linguísticas que
participam da estruturação das enunciações como elementos
importantes para a compreensão do conjunto de enunciações
de que faz parte e não como elementos de análise desprovida
do contexto concreto que lhe dá a devida significação.
482
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Essa proposta metodológica de trabalho,


concebida dentro dos limites do ensino de língua, pode
também, como anunciamos mais acima, ser tomada como
referência para pensar o ensino dos demais componentes
curriculares das instituições educadoras. Destituída de seu
conteúdo específico, a metodologia de trabalho poderia
ser assim caracterizada: (1) em primeiro lugar o fato, o
fenômeno ou o aspecto da realidade a ser estudado deve ser
visto em seus elementos de contextualização, seja do ponto
de vista histórico, das relações sociais de produção, dos
embates políticos, dos processos científicos e tecnológicos,
das relações entre os conceitos matemáticos etc.; (2) em
seguida, o fato, o fenômeno ou o aspecto da realidade em
foco é visto em seu todo, como uma unidade significativa,
com uma determinada estrutura de organização, uma lógica
interna, uma função específica, um ordenamento próprio;
(3) e, finalmente, o conteúdo é abordado nos seus elementos
constitutivos que forem relevantes para o entendimento do
fato, do fenômeno ou do aspecto da realidade que se quer
estudar.
Dentro desse contexto, um outro ponto de
reflexão afigura-se como importante para pensarmos a
prática pedagógica no interior da sala de aula. Como deveria
ser o professor, para pensar seu trabalho nos moldes
dessa metodologia? Como deveria agir em uma instituição
educadora, que representa um segmento específico das
relações sociais mais amplas, que se dão na sociedade em
que está inserida? Como considerar que o seu trabalho como
educador acontece também dentro de um determinado
contexto, e que, portanto, deve ser realizado levando em conta
as características desse contexto? Que seu trabalho específico
na escola supõe a interação com vários atores sociais que
devem ser sujeitos de suas próprias ações? Que o conteúdo de
483
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

seu trabalho é apenas parte de um conhecimento mais amplo


que constitui o acervo do conhecimento historicamente
acumulado pelo homem?
Sabemos que é por meio desse conhecimento que
se desenvolve o pensamento científico, que permite ao homem
ver e pensar o mundo para além das ideias pré-concebidas,
das crendices, dos tabus, etc. É preponderantemente por
esse conhecimento que se desenvolvem as consciências dos
homens que passam a ter a possibilidade de analisar e criticar o
mundo das complexas relações sociais, econômicas e culturais
à sua volta e, consequentemente, maior possibilidade de êxito
ao inserir-se nesse mundo.
Grande parte da responsabilidade de tornar
possível o acesso desse conhecimento ao aluno, como um
ser em processo de desenvolvimento de suas capacidades
essencialmente humanas, cabe aos educadores. E a
metodologia de trabalho de que eles lançam mão constitui
um dos elementos auxiliares na realização dessa tarefa.
Se admitirmos que a adoção de uma metodologia
de trabalho pelo professor está, de alguma maneira, relacionada
a uma postura sua como participante de uma comunidade
educativa, poderíamos pensar que, ao adotar a metodologia
de trabalho aqui abordada, o professor pudesse se colocar
como membro integrante dessa comunidade e, juntamente
com seus pares e com os demais profissionais, planejar um
trabalho educativo voltado para o desenvolvimento de todos
os participantes desse processo.
Seria muito pouco adequada a figura do
professor competitivo, que disputa espaços, promoções,
atenções, realizando trabalho solitário, sem diálogo com
os demais colegas de sua profissão, sem dar a conhecer
o seu trabalho, ou sem permitir que o outro o conheça,
e desinteressado daquilo que o outro faz. Um trabalho
484
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

assim realizado pouco contribuiria para o crescimento do


grupo como um todo.
Pouco adequada seria, ainda, a figura do professor
colaborativo, ou seja, que opta por colaborar com o outro,
realizando trabalho solidário, ajudando sempre que possível
para fazer funcionar o trabalho dos demais colegas. Neste
caso, há um avanço, mas ainda o foco é seu próprio trabalho,
é o trabalho de cada um, enriquecido agora pela colaboração
de outros profissionais. Porém o trabalho educativo em seu
conjunto fica na dependência da vontade de cada um em
dar sua parcela de contribuição para o bom funcionamento
da instituição.
Um terceiro modo que tem o profissional de
realizar o seu trabalho é o de reunir-se a todo o grupo pela
cooperação, realizando um trabalho conjunto, levando adiante
um projeto que não é seu tão-somente, nem é do outro com
sua ajuda, ou seu com a ajuda do outro, mas é partilhado,
comum, da responsabilidade de todos, coletivo, cooperativo,
implicando, como o próprio nome diz, co-operação, ou seja,
operação com outro, visando ao desenvolvimento de toda
a coletividade, de todo o grupo de uma dada instituição.
É, certamente, a opção mais difícil, mais trabalhosa, mais
complexa, mais carregada de compromissos, mas é, de
longe, a mais compensadora, a mais efetiva na conquista dos
objetivos de uma educação que contribua, de fato, para o
desenvolvimento do processo de humanização do conjunto
dos alunos de uma instituição.
Além disso, o trabalho de um professor de
uma determinada área ou disciplina não se desvincula das
demais atividades da escola e das discussões mais amplas
que acontecem na sociedade em que se encontram os
responsáveis pelo trabalho educativo. E, da mesma forma
que o funcionamento da língua supõe uma atitude interativa
485
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

entre sujeitos — falante/ouvinte, escritor/leitor —, um


trabalho educativo supõe também a interação entre sujeitos
que ensinam e sujeitos que aprendem, caracterizando uma
situação educativa dialógica propícia ao desenvolvimento
dos alunos.
Um diálogo, por mais trivial que seja, marca
a posição de cada interlocutor com relação ao tema em
conversação. Com o diálogo educativo ocorre o mesmo: é
na interação entre professor e alunos e alunos entre si que
se configura a possibilidade do estabelecimento, em sala de
aula, de um trabalho co-operativo, em que cada participante se
faz sujeito de seu próprio discurso, de suas ações, de seus
posicionamentos e, por meio das trocas sociais que se dão no
plano coletivo, realizadas com o auxílio da linguagem, constrói
sua individualidade, sua subjetividade, seu modo próprio de
pensar, agir, sentir e valorizar o mundo no qual se insere.

Referência

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 5. ed. São


Paulo: Hucitec, 1990.

486
Autores

Ana Luisa Segarte Iznaga — Licenciada em Psicologia,


Mestre em Psicologia da Educação, Especialista em
Intervenção Comunitária, Doutora em Pedagogia. Professora
Titular consultora da Faculdade de Psicologia: Universidade
de La Habana, Cuba.

Antonio Carlos Mazzeo — Doutor em História Econômica


e Livre-Docente em Ciência Política. Atualmente é Professor
Adjunto do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas
da Faculdade de Filosofia e Ciências — UNESP — Campus
de Marília.

Candido Giraldez Vieitez — Professor Assistente Doutor


do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Filosofia e Ciências — UNESP — Campus de Marília.
Vice-líder do Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia.

Consuelo de Paula — Cantora, compositora, diretora e


produtora musical. Natural de Pratápolis (MG), atualmente
reside na cidade de São Paulo. Para informações adicionais
e para ouvir trechos da obra da artista, consultar: www.
consuelodepaula.com.br.

Edmundo Fernandes Dias — Professor aposentado


do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da UNICAMP. Foi editor da Revista
Universidade e Sociedade do Sindicato Nacional dos
Docentes do Ensino Superior e membro do Conselho
Editorial da Revista Outubro.
junqueira&marin editores 487
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Eduardo Magrone — Professor Adjunto de Sociologia da


Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
e Pesquisador Associado ao Centro de Políticas Públicas e
Avaliação da Educação (CAEd) da Faculdade de Educação
da UFJF.

Fátima Cabral — Doutora em Sociologia pela Universidade


de São Paulo (2000). Docente do Departamento de Sociologia
e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências da
UNESP, Campus de Marília. Membro de corpo editorial
das Revistas Margem Esquerda, Perspectivas (São Paulo),
Novos Rumos e Revista Eletrônica Baleia na Rede. Atua
com as temáticas: modernidade e pós-modernidade; relações
entre arte e novas tecnologias, indústria da cultura, consumo,
ideologia e estranhamento.

Giovanni Semeraro — Doutor em Filosofia da Educação


(UFRJ), é professor associado na Universidade Federal
Fluminense (UFF). Autor de vários livros e artigos, é
coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia,
Política e Educação (Nufipe).

Lígia Márcia Martins — Doutora em Educação, professora


do Curso de Graduação em Psicologia, Faculdade de Ciências
— UNESP/Bauru — e do Programa de Pós-Graduação
em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras
— UNESP/Araraquara. Membro do Grupo de Pesquisa
“Estudos Marxistas em Educação” e autora de livros,
capítulos de livros e artigos na área de Psicologia da Educação.

Marcos Del Roio — Doutor em Ciência Política pela


USP. Fez pós-doutorado na Universidade de Milão e na
Universidade de Roma Tre. É professor livre-docente
488
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da


Faculdade de Filosofia e Ciências — UNESP — Campus
de Marília. Pesquisa e orienta nas áreas de teoria política do
socialismo e política operária.

Neusa Maria Dal Ri — Doutora em Educação pela USP.


Livre-docente em Metodologia da Pesquisa pela UNESP.
Realizou Pós-doutorado na Universidade do Minho-Portugal.
Professora Adjunta do Departamento de Administração e
Supervisão Escolar e do Programa de Pós-graduação em
Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências — UNESP —
Campus de Marília. Líder do Grupo de Pesquisa Organizações
e Democracia. Editora do periódico científico Org&Demo.

Newton Duarte — Newton Duarte, pedagogo e mestre em


educação pela UFSCar, doutor em educação pela UNICAMP,
livre-docente em psicologia da educação pela UNESP, pós-
doutorado pela Universidade de Toronto. Atualmente é
professor titular do Departamento de Psicologia da Educação
da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de
Araraquara. Líder do grupo de pesquisa “Estudos Marxistas
em Educação”. Bolsista de produtividade em pesquisa pelo
CNPq desde 1993.

Oksana Kraftchenko Beoto — Professora Titular do


CEPES (Centro de Estudios para el Perfeccionamiento de la
Educación Superior) da Universidade de La Habana, Cuba.

Regina Maria Michelotto — Doutora em Educação pela


Universidade Federal de São Carlos (1999), com doutorado
sanduíche na Università degli Studi di Padova (1997). Realizou
pós-doutorado em Cuba, sobre Políticas da Educação
Superior, em 2007. Docente da Universidade Federal do
489
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Paraná — Curitiba — PR — Setor de Educação. Atua com


foco nos seguintes temas: políticas públicas, compromisso
político, avaliação da universidade e Antônio Gramsci.

Roberto Leher — Doutor em Educação pela Universidade


de São Paulo (1998). É professor da Faculdade de Educação
e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisador do
CNPq, coordenador do Observatório Social da América
Latina do CLACSO no Brasil (OSAL-Brasil) e do Programa
Outro Brasil auspiciado pela Fundação Rosa Luxemburgo
(Alemanha). Atua na linha de pesquisa Políticas e Instituições
Educacionais. Desenvolve pesquisas sobre Universidade,
capitalismo dependente e organismos internacionais.

Rosemary Dore — Professora associada da Faculdade de


Educação da UFMG, onde leciona a disciplina Filosofia da
Educação no curso de Pedagogia. No Programa de Pós-
graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social,
leciona as disciplinas Referenciais de Pesquisa: Sociedade
Civil, Estado e Educação; Gramsci, o Estado e a escola.
No mesmo Programa, atua na linha de Políticas Públicas e
Educação: Formulação, Implementação e Avaliação.

Stela Miller — Pedagoga. Doutora em Educação pela


Faculdade de Filosofia e Ciências — UNESP — Campus
de Marília. É membro do Grupo de Pesquisa “Implicações
pedagógicas da teoria histórico-cultural”. Estuda as
implicações pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural para
o Ensino de Língua Portuguesa (séries iniciais do Ensino
Fundamental). Docente do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências — UNESP
— Campus de Marília.
490
MARX, GRAMSCI E VIGOTSKI: APROXIMAÇÕES

Suely Amaral Mello — Doutora em Educação pela UFSCar,


São Carlos. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências — UNESP
— Campus de Marília. É Vice-líder do Grupo de Pesquisa
“Implicações pedagógicas da teoria histórico-cultural”,
coordenadora do Grupo de Estudos em Educação Infantil
da FFC-Unesp- Campus de Marília e membro do grupo
gestor do Fórum Paulista de Educação Infantil. Atua com
os temas: Educação Infantil e implicações pedagógicas da
Teoria Histórico-Cultural.

Vandeí Pinto da Silva — Doutor em Educação. Docente


do Departamento de Didática da Faculdade de Filosofia
e Ciências — UNESP — Campus de Marília. É membro
do Grupo de Pesquisa “Implicações pedagógicas da teoria
histórico-cultural”.

491
www.junqueiraemarin.com.br

2012

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