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Um pouco de história...
A fim de compreender o uso dos POPs (SOPs, nos EUA) e dos protocolos como um
todo, é interessante entender de onde eles vêm e por que um bom número de países
Europeus não os tem (ou pelo menos, não tanto como nos EUA e Brasil).
De um modo geral, a organização de socorro é influenciada pelo comportamento dos
exércitos, ou seja, grupos grandes e organizados.
Como o Brasil não teve conflitos grandes no seu território, sua organização não nasceu
da experiência, mas sim da influência, Americana principalmente. Visto que os Estados
Unidos são um país jovem, as respostas históricas devem ser buscadas do lado da
Europa. Os grandes conflitos Europeus organizados começaram com a Revolução
Francesa, seguida das Guerras Napoleônicas. A organização militar mudou totalmente
e os serviços de socorro utilizaram plenamente as lições da guerra. É por isso que os
Sapeurs-Pompiers (Sapadores-Bombeiros) Franceses têm uma organização derivada
das unidades de Engenharia (Génie) do Exército.
Depois de serem derrotados por Napoleão em Jena (1806), os Prussianos começaram a
analisar os princípios militares Franceses. Foi assim que eles criaram um grupo de
análise e de comando chamado "General Staff", concretizado em 1870. O "General
Staff" foi adotado em seguida pelos Americanos, que o utilizaram para criar seu
National Response Framework (sistema nacional de resposta a emergências), contendo
as diretivas sobre o socorro a pessoas e combate a incêndio, ligados ao NIMS (Sistema
Nacional de Gerenciamento de Incidentes) e ICS (Sistema de Comando de Incidentes).
Da guerra
A obra de Clauswitz inaugurou o estudo dos combates e definiu os conceitos de centro
de gravidade, usado até hoje pelos EUA
A metodologia militar foi descrita pela primeira vez na obra intitulada "Da Guerra"
(Vom Kriege), escrita por Carl Von Clauswitz e editada em 1832. Precedentes, como "A
Arte da Guerra", de Sun Tzu (entre outras) são interessantes, mas bem menos do que a
obra de Clauswitz, que analisa o próprio cerne dos combates. Sun Tzu é mais político.
Um grande princípio foi estabelecido por Clauswitz: o centro de gravidade. Este
princípio consiste em dizer que não basta matar inimigos ou lutar, é preciso ainda que
isso seja feito com um objetivo, definido previamente. É preciso procurar o ponto mais
sensível do inimigo e dirigir seu esforço contra esse ponto. O centro de gravidade pode
ser o posto de comando, as linhas de transmissão, pontes, etc... É esse ponto cuja
definição regulamentar é "fonte de potência material ou imaterial do adversário, de
onde ele tira sua liberdade de ação, sua força física e sua vontade de combater."
Nos Estados Unidos, esse conceito encontrou um eco extremamente favorável. De fato,
uma vez que o centro de gravidade tenha sido encontrado, basta investir todo o seu
esforço contra ele. Militarmente falando, os EUA são o país do material e dos grandes
equipamentos. Se são necessários 10 aviões, a gente coloca 20, se são necessários 50 a
gente coloca 100, etc... No socorro, encontramos exatamente esse princípio. Onde num
país da Europa vai-se empenhar um caminhão de combate a incêndio pequeno, os
Americanos empenham 4 ou 5 caminhões enormes, entupidos de material.
Mas, em todo caso, não dá para se contentar de repetir sempre a mesma ladainha, de
que é preciso seguir o protocolo.
Observação: enquanto todo mundo acha que nos Estados Unidos todo mundo usa o ICS
(Sistema de Comando de Incidente) em todas as ocorrências, ficamos surpresos de ler
as mensagens dos comandantes de socorro Americanos em fóruns de bombeiros
dizendo que existem realmente protocolos, mas que não são aplicáveis em operação. A
divulgação dos protocolos na verdade é obra de formadores, de empresas divulgando
normas, mas quase nunca são do pessoal operacional. É como se nós tivéssemos dois
universos distintos, sem ligação entre eles: de um lado os teóricos, convencidos da
qualidade de seus protocolos, e do outro os práticos que se viram com o aleatório do
terreno e da situação.
Em sua obra "Tactique Théorique" (Tática Teórica) o General Yakovlef, ex-Legionário (da
Legião Estrangeira da França), diretor geral da formação na Escola de Blindados de
Saumur, na França, cita um caso extremo da verdadeira intoxicação tecnológica.
Durante a Guerra Fria entre o bloco do leste e o ocidente, a OTAN havia empregado
meios de observação para ver, com muita precisão, uma faixa de 5000km de
comprimento e várias centenas de quilômetros de largura , tudo isso para observar
toda e qualquer atividade soviética, até a menor que fosse. Entre março e junho de
1999, todo esse equipamento foi redirigido pela OTAN para observar a situação dentro
do Kosovo (ex-Ioguslávia), ou seja, um território igual a aproximadamente a 2 vezes o
Distrito Federal. Ora, isso resultou numa massa de informação cuja quantidade e
evolução permanente tornavam a análise tão difícil que nunca foi possível saber o
número de brigadas que os Sérbios tinham no Kosovo, onde elas estavam e em que
situação. Quanto aos refugiados, as estimativas oscilavam entre 100.000 e 400.000, e
nunca chegaram a ser mais exatas.
A neblina e os protocolos
Ao contrário, se nós aceitamos essa ideia da neblina, nós concluímos rapidamente que
ela dificulta a aplicação dos protocolos. De fato, o protocolo define uma ação a realizar
conforme a situação. Se temos apenas 2 ou 3 protocolos extremamente simples,
escolher aquele que vamos aplicar é muito fácil, não é preciso grande análise. Mas
nesse caso, esses protocolos vão ser gerais demais para ajudar em grande coisa. Por
outro lado, se temos todo um conjunto de protocolos precisos, a escolha é mais difícil e
exige mais informações. Ora, informações existem em quantidade impossível de
estimar-se com antecedência, sensíveis à neblina e evoluindo no tempo. Quanto mais
recebermos informação, mais teremos tendência a esperar outras, para verificar a
verificação da verificação anterior. E durante esse tempo, nada se faz, a situação
continua mudando e se degradando.
Prever tudo...Funciona nas empresas com certificação ISO
O princípio do protocolo tem um outro inconveniente, também ligado ao tempo e ao
aspecto imprevisto da situação. No espírito Americano, tudo está previsto, tudo é
previsível e tudo se resolve com material. A dúvida não existe.
Quando a gente analisa a organização de uma empresa certificada ISO, constata que
nela tudo é previsto: cada ação é definida, com parâmetros de entrada e um resultado
na saída. Mas todos os responsáveis da qualidade concordam num ponto: isso funciona
perfeitamente, desde que os elementos de entrada de uma ação sejam provenientes
de uma ação dentro da empresa. Ao contrário, todas as ações ao redor da organização,
ou seja, que recebem dados externos à empresa, têm dificuldades frequentes. Mesmo
se você tem absoluta confiança na sua metodologia, ferramentas e competência para
fabricar cadeiras de madeira (por exemplo), se o seu fornecedor de madeira não
entrega a madeira certa ou se ele entrega com atraso, você não pode fazer nada.
Ora, é exatamente o que acontece em socorro: a gente toma as decisões e realiza
ações considerando elementos que a gente não conhece: não conhecemos bem o
local, não temos nenhuma ideia do comportamento que a multidão ou as vítimas
podem adotar, etc.
O protocolo dizendo que primeiro é preciso fazer isso, depois aquilo, continuar assim e
assado... é de fato o reflexo de uma visão teórica de como as coisas vão acontecer, mas
não é a realidade. Pois, se a primeira ação que supostamente vai dar certo não der, o
que a gente faz? Nesse caso, seria lógico que depois da primeira ação A não basta uma
ação B. É preciso ter uma ação B1, para o caso de A dar certo, e outra B2, para o caso
de A falhar. Assim, nós teríamos B1 e B2. Mas, para C, acontece o mesmo problema:
precisamos de uma ação C1-1 se B1 dá certo, uma ação C1-2 se B1 falha, uma ação C2-
1 se B2 funciona e assim por diante... Não precisa ser um grande matemático para
entender que o número de possibilidades vai ficar rapidamente impossível de
gerenciar.
O problema é que esse modo de formação não imagina a "neblina" e por isso não dá
elementos de decisão para o aluno. Resultado: fora do protocolo, cada um se vira sem
nenhuma ajuda. A formação cai em descrédito quando os recém-formados percebem a
ineficácia do protocolo. Verdadeiros choques psicológicos. Como imaginar que um
aluno a quem foi explicado que os protocolos dão todas as respostas possa reagir
eficazmente quando ele percebe que isso não funciona? E pior, sabendo que ele
percebe isso numa situação de estresse, às vezes junto a uma multidão agressiva e
sozinho diante de uma realidade que vai além do que ele entende...
Não apenas o protocolo é uma ferramenta frequentemente ineficaz, mas ele leva além
disso a um sentimento de falsa segurança.
Analisamos recentemente um vídeo mostrando uma equipe Americana combatendo
um incêndio de veículo. As ações são perfeitas, os EPIs são colocados com perfeição, o
material é impressionante. Infelizmente para os intervenientes, o combustível utilizado
no carro não é comum. O primeiro ataque falha. Ora, ao invés de parar, refletir e
procurar uma solução em função do que está acontecendo e do que se vê, o que a
equipe faz é utilizar, um após o outro, todos os métodos.
A operação parece um catálogo de soluções que os firefighters vão folheando sem
jamais ter a capacidade de jogar fora o catálogo e encontrar por si mesmo uma outra
opção. O que acontece? Além de não conseguir apagar, a equipe recebe "apoio" de
outros veículos que chegam com pessoal e equipamento e cada um com o mesmo
"catálogo de soluções", aumentando a confusão: cada um vem e faz de novo o que já
tinha sido feito, há até mesmo brigas entre os firefighters... Existe a surpresa de
descobrir que as ações são ineficazes, o que piora a situação.
A sincronização impossível
É igualmente interessante constatar que a implantação de protocolos mais e mais
detalhados e estritos trata essencialmente de técnicas realizadas individualmente ou
em grupos muito pequenos. Em desencarceração, as análises mostram que quanto
mais os protocolos e ferramentas tornam-se complexos, tanto mais cada micro-grupo
de intervenientes fecha-se sobre si mesmo, faz suas ações sem preocupar-se com as de
outros. A coesão global não existe mais e as ações de uns podem colocar os outros em
perigo.
Uma análise dos acidentes acontecidos nos Estados Unidos em incêndios estruturais
mostra frequentemente uma situação totalmente paradoxal: o grupo inteiro é dividido
em sub-grupos, cada um executando seu próprio protocolo, geralmente com seriedade
e qualidade. De fato, a intervenção para eles é constituída somente de sucessos de
micro-protocolos. Mas não basta seguir um protocolo ao pé da letra: ainda é
necessário que no conjunto da intervenção a ação realizada seja sincronizada com as
ações dos outros. Note-se que mais de 300 acidentes no uso de ventiladores foram
levantados pelo site Firefighter Near Miss. Em quase todos os acidentes, cada pequeno
grupo seguiu perfeitamente o protocolo. Simplesmente, os diversos protocolos
revelaram-se incompatíveis entre si, seja em termos de resultado, duração, efeito, etc.
fazendo com que o todo levasse a acidentes. De fato, constatamos que quanto maior o
número de intervenientes, maior o número de protocolos executados
simultaneamente e mais o resultado vai escapar a qualquer tipo de controle. Isso pode
ser comparado à Guerra do Vietnam: os Americanos ganharam todas as batalhas de
que participaram, então seria lógico que ganhassem a guerra, mas o resultado foi um
fracasso total.
Mas o pior de tudo, é que este fracasso em nível global não pode ser sentido pelos
executantes. De fato, cada um fez o seu melhor, cada um seguiu perfeitamente o
protocolo. O fracasso, algo global e real, é no fim das contas "culpa de ninguém". Mas
se não podemos mostrar o ponto que está falhando, não há melhoria possível.
Exemplos históricos
É sempre possível, para os defensores dos POP, dizer que o exército Americano usa e
que isso é razão suficiente. Mas os fatos históricos estão aí: o aumento das técnicas e
do material jamais levou a um resultado satisfatório. Vietnam, Iraque ou Afeganistão
são, a longo prazo, fracassos. Uma análise atenta da segunda guerra mundial mostra
igualmente os limites do sistema: o desembarque aconteceu na Normandia em 6 de
junho de 1944 e a cidade de Alençon foi alcançada pelos Aliados em 12 de agosto, ou
seja, 67 dias mais tarde. Ora, da praia de "Omaha beach"(local do desembarque) até
Alençon são apenas... 160km! O exército Alemão, um exército que funciona
plenamente em modo "iniciativa" (Auftragstaktik) e não em modo protocolo,
alimentado em armamanto e material em 1944 por fábricas bombardeadas noite e dia,
empenhado no fronte leste (União Soviética) e num grande número de teatros de
operação conseguiu bloquear durante várias semanas um exército largamente superior
em número e em equipamento.
Isso evidentemente não quer dizer que as coisas são sempre assim, mas isso dá uma
ideia da distância que pode haver entre teoria e planejamento e a realidade, pois se no
final do dia 6 de junho de 1944 as perdas Alemãs e Aliadas (Estados Unidos,
Inglaterra...) eram semelhantes (cerca de 10 mil mortos de cada lado), as forças
empregadas eram muito diferentes (156 mil Aliados, 40 mil Alemães).
Se nós comparamos isso com os incêndios em que é preciso empregar muita gente, dá
para imaginar que o modo de organização é crucial. Porque o desembarque em 1944
deu certo, foi graças ao potencial empenhado, mas principalmente por causa da
organização extrema. Pois não basta aumentar o número para ter sucesso: se a tropa
não está organizada, o aumento do número só aumenta a desorganização.
Goose Green
Mesmo assim, é evidente que comparar dois modos de funcionamento simplesmente
pela confrontação de dois grupos armados é particularmente difícil. De fato, o
resultado de uma batalha não depende exclusivamente do funcionamento, mas
também do moral, das condições, dos equipamentos. Então, não é porque uma batalha
é ganha utilizando um sistema que ele é obrigatoriamente o melhor. Mas o caso da
batalha de Goose Green permite fazer uma comparação entre sistemas: o resultado
pendulou realmente de um campo ao outro, simplesmente porque um dos campos
mudou os fundamentos do seu comportamento, e isso em pleno combate.
Nos dias 28 e 29 de maio de 1982, os Britânicos desembarcaram nas Ilhas Malvinas
tentando retomar a cidade de Goose Grens, ocupada pelos Argentinhos. São um pouco
mais de 1000 Argentinos, enquanto os Britâncios são apenas 690. Além disso a cidade
foi fortificada e os Agentinos dispõem de artilharia, morteiros de 35mm e
metralhadoras.
O batalhão Britânico é dirigido pelo Tenente-Coronel Herbert 'H Jones, que exerce o
comando na sua forma "hierarquia e disciplina estritas" então em vigor no exército
Britânico e não deixando espaço para iniciativa dos subordinados. O Tenente-Coronel
havia previsto um plano em 6 partes. Tudo estava preparado e as ordens eram estritas.
Mas como a neblina da guerra continua sendo um elemento fundamental dos
conflitos, desde o início o plano mostrou-se inadequado. E conforme as coisas
evoluíam, a inadequação só fez aumentar. O sistema então começou a se bloquear: as
informações chegavam ao ao Tenente-Coronel com um certo atraso, ele analisava
conforme sua própria opinião, as ordens partiam e eram recebidas com atraso (em
situação de combate, o atraso às vezes é de apenas alguns segundos que, sob fogo,
parecem uma eternidade). Sem poder tomar iniciativa, os homens no combate
estavam totalmente bloqueados sob o fogo dos argentinos. Diante do impasse na
situação, Herbert 'H' Jones decide avançar, ficar bem próximo do front, sempre na
intenção de decidir e aplicar protocolos. Ao invés de melhorar a situação, essa escolha
piora tudo ainda mais: seu grupo é bloqueado sob o fogo dos Argentinos, e os
Britânicos ficam totalmente imobilizados. Para sorte dos Britânicos, e azar dele, o
Tenente-Coronel Herbert 'H' Jones é atingido por um tiro Argentino, e morto. Ele é
substituído imediatamente por seu ajudante, o Major Chris Keeble. Mas Keeble tinha
estado durante dois anos num intercâmbio no exército Alemão (Bundeswher), onde
tinha descoberto e praticado a Auftragstaktik, sistema que não utiliza protocolos, e sim
deixa um grande espaço para a iniciativa. Keeble então escolheu modificar o eixo do
assalto, delegando a escolha dos métodos às diversas pessoas ao seu redor, cada um
podendo então escolher seu método e modificá-lo em função dos acontecimentos,
tendo assim a possibilidade de "agarrar a oportunidade". Logo que ela aparecesse, sem
esperar ordens. A batalha então virou rapidamente em benefício dos Britânicos,
mesmo sendo que a única mudança foi na metodologia, optando por uma solução mais
simples e, principalmente, mais flexível. A batalha terminou com um saldo pesado para
os Argentinos: 47 mortos, 145 feridos e 961 prisioneiros, contra 17 mortos e 64 feridos
do lado Britânico. O historiador militar Fitz-Gibson, especialista na batalha de Goose
Green, considera que o sucesso Britânico foi resultado de dois parâmetos: de um lado,
essa mudança radical de método do lado Britânico. De outro o fato que os Argentinos
foram vítimas de seu comando rígido e detalhista que lhes tornava incapazes de lançar
o mínimo contra-ataque, mesmo sabendo-se que tiveram várias oportunidades.
Inclusive, note-se que a ANSB, nesse nível, optou por dois modos de organização
diferentes: fora de socorro, a ANSB funciona numa base ISO-9001 com procedimentos,
processos, manuais de documentação, seguimento de tarefas, gestão de não-
conformidade, etc. e principalmente com MELHORIA CONTÍNUA. Mas em socorro, o
sistema funciona num modelo militar Francês (Efeito Maior) e Alemão (Auftragstaktik),
ou seja, sem procedimentos pré-estabelecidos.
Conclusão
Começamos a entender por que os protocolos são inadequados e por que o pessoal de
socorro que só tem essa solução fica geralmente desamparado diante do
desconhecido. Mas nada nos oferece claramente outra solução. Nós citamos a
Auftragstaktik, sem detalhar o que é. Nós também podemos citar o conceito Francês
do Efeito Maior, mas somente citar não esclarece coisa nenhuma.
Por isso, vamos dedicar um outro artigo para responder a questão que fica evidente:
Como ser eficaz em socorro, quase sem usar protocolos?