Vous êtes sur la page 1sur 7

A CULTURA POPULAR

NO TEMPO DOS
ALMANAQUES*

JADIR DE MORAIS PESSOA**

E 
m um breve hiato entre o retorno a Goiás em meados de 1990 e o ingresso na
Universidade Federal de Goiás (UFG), em fins de 1991, tive a honra de per-
tencer ao quadro de professores do Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás
(IFITEG). A experiência foi breve por força da exigência contratual da dedicação exclusiva
na UFG. Foi breve, mas me deu muitas alegrias, sendo uma delas ter participado da criação
da Revista Fragmentos de Cultura, que já comemora seus 25 anos de existência. O convite
amigo e generoso veio do Editor e criador, Prof. Gil Barreto Ribeiro.
O número 1 foi em comemoração aos dez anos do IFITEG e, obviamente, como eu
era chegante não tinha como ajudar a contar essa história. Dele já fiz parte como membro do
Conselho Editorial, mas não me fiz contar entre os articulistas. Já para o número 2, em 1992,
colaborei com o Prof. Gil na elaboração do Editorial, apresentando-lhe subsídios antropo-
lógicos para uma explicitação dos sentidos do título do periódico recém-nascido. Daquele
Editorial é oportuno destacar:

[...] a compreensão da cultura não está dada nem será encontrada como uma totalidade, numa
única situação humana. A cultura é fragmentada pois a vida em sociedade é fragmentada. De
tudo o que queremos saber e dizer sobre o homem de hoje, uma parte terá que ser buscada
no gesto corajoso da mulher que se liberta; outra parte no olhar ansioso da criança na rua;
e outra parte na prece do operário que ainda agradece a Deus pelo seu patrão. Aí estaremos
nós, tentando juntar os inúmeros pedaços de vida, os FRAGMENTOS DE CULTURA.

* Recebido em: 13.09.2016. Aprovado em: 04.10.2016. Texto-memória solicitado por Ivoni Richter Reimer,
via e-mail.
** Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professor titular da Universidade
Federal de Goiás. E-mail: jadirpessoa@hotmail.com

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 4, p. 711-753, out./dez. 2016. 737


Também para o número 2 apresentei, para avaliação dos pares, o artigo “Reminis-
cências pedagógicas e ambientais nas festas juninas”. É um texto que ainda gosto de retomar,
pois, com ele eu reafirmava uma preocupação descortinada durante o curso de Mestrado, e
que ainda me acompanha nos dias de hoje, que é desvendar os inúmeros determinantes histó-
ricos, sociais e ambientais, muitos deles já com acúmulos centenários, quando não milenares,
na constituição das culturais populares.
O mesmo convite amável me chega agora da parte da Profa. Ivoni Richter Reimer,
desta vez para participar de um número que festeja os 25 anos de nossa querida Revista.
Como minha participação naquele segundo número foi sobre cultura popular, é também
sobre ela ou com ela que quero me inserir na festa de agora. Mais do que lembrar minha
história na Revista, quero continuar falando de como esse campo de pesquisa deve ao sonho
de Gil Barreto, sonho sonhado com suas mãos sempre realizadoras. Não trato aqui das cul-
turas populares de modo geral, mas de um de seus muitos fragmentos, que assim me torno
plenamente inserido nos anseios que fizeram nascer a nossa Fragmentos. Quem não se lembra
dos saudosos almanaques Sadol, Capivarol e Fontoura, que em meados do século XX eram
distribuídos nas farmácias e respondiam por grande parte da comunicação das populações do
interior com o mundo lá de fora? Pois bem! Eles tiveram importância capital na reprodução
e preservação das culturas populares. Faço aqui esse registro como minha forma pessoal de
“soprar velinhas” nesta importante comemoração.
Da cultura árabe chegaram ao ocidente vários significados para a palavra alma-
naque. Dentre eles adoto para consumo próprio aquele que localiza sua origem no costu-
me de as comitivas de grandes viagens pelo deserto adotarem determinados lugares como
pontos de parada para pernoite e descanso dos camelos. Enquanto os camelos descan-
savam os viajantes aproveitavam para contar as histórias pitorescas dos lugares visitados
e as agruras das longas viagens pelo deserto. Esse mesmo oásis de muitas curiosidades e
informações úteis para o cotidiano das famílias interioranas materializava-se na casa rural
de minha infância em Itapuranga-GO a cada vez que trazíamos da farmácia um novo
número do Sadol ou do Capivarol. Meu pai praticamente decorava as indicações mensais
de plantio e de colheita. Afora as lições obrigatórias nos livros de exercícios da escola o
almanaque era a única leitura disponível. Ainda eram raríssimas as casas em que a Bíblia
Sagrada começava a chegar.
Os almanaques se popularizaram no Brasil a partir de finais do século XIX em
grande variedade (MEYER, 2001). Havia os almanaques das livrarias (Garnier, Bertrand),
das farmácias ou de laboratórios (Fontoura, Capivarol, Sadol, Bristol, Catarinense) e até os
almanaques de cidades como Campinas, Amparo, Itatiba e Jundiaí no Estado de São Paulo.
Sim, mas, a indagação deste breve ensaio versa sobre a importância ou não dos almanaques
na preservação da cultura popular no Brasil.
O historiador inglês Peter Burke, em um audacioso projeto de pesquisa analisou a
situação da cultura popular na Europa com o advento da era moderna. Estudando seus três
primeiros séculos (1500-1800) Burke também se pôs esta questão para o caso do continente
europeu. A hipótese que o perseguia era a do desaparecimento da cultura popular, especial-
mente com o advento da imprensa, que determinaria um nivelamento cultural a partir de
parâmetros urbanos e eruditos. A conclusão do autor, no entanto, foi que, ao contrário disso,
houve uma difusão da cultura popular no período. E o que deu o maior suporte a esta con-
738 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 4, p. 711-753, out./dez. 2016.
clusão foi justamente o significado dos almanaques.
Os almanaques, um dos tipos de livros mais populares da época, pouco mudaram ao
longo dos anos e mesmo dos séculos, e ofereciam os mesmos ensinamentos astrológicos,
médicos, agrícolas e religiosos. Começa-se a pensar se a imprensa, ao invés de destruir,
não preservou e até difundiu a cultura popular tradicional (BURKE, 2010, p. 340).

Foi exatamente com este perfil, difundindo esses mesmos ensinamentos de forma
simples entre as populações frequentemente não escolarizadas das fazendas, vilas e pequenas
cidades brasileiras, que os almanaques chegaram ao Brasil e aqui também fizeram história e
participaram da conservação dos saberes populares de que as populações interioranas tanto
necessitavam. Segundo a professora de comunicação da USP, Jerusa Ferreira, os almanaques
são parte constitutiva do processo de integração dos domínios rurais e urbanos em nossa
história.

No caso do Brasil, pode-se mesmo falar no aspecto civilizador dos almanaques, do que
representaram chegando aos mais distantes sertões, aos povoados mais afastados, e mesmo
nas cidades, numa integração de domínios rurais e urbanos, transitando entre classes
sociais, exercendo a aproximação efetiva de repertórios. [...] Contando com uma intensa
atividade no Brasil do passado, o gênero se faz presente no Brasil de hoje, designa uma
operação de participação ativa, um ícone de nossa cultura (FERREIRA, 2001, p. 20).

Dentre os muitos títulos e formatos de almanaques conhecidos no Brasil, impri-


mindo suas marcas na formação de leitores e de mentalidades, um deles teve uma particula-
ridade. É o Almanaque Brasileiro Garnier, que foi publicado de 1903 a 1914, pela Livraria
Garnier, na Capital Federal, a cidade do Rio de Janeiro. A livraria pertencia ao francês Bap-
tiste Louis Garnier e era associada à livraria Garnier Frères em Paris, de propriedade de Bap-
tiste e outros dois irmãos. A particularidade do Almanaque Garnier começa pelo volume de
material a compor cada número. Os almanaques de farmácia, por exemplo, eram pouco mais
de 30 páginas. O Capivarol de 1943 saiu com 36 páginas, contando com capa e contracapa,
enquanto o Garnier de 1908 saiu com 466 páginas e o de 1912 com 644 páginas.
Mas o verdadeiro projeto do Garnier não se media pela extensão do material ou
pelo número de páginas. Seu interesse era a constituição da nacionalidade, com uma profun-
da profissão de fé no sentido de que a República é o regime certo para a construção da nação
brasileira. Para isso seriam necessários cidadãos à altura e compromissados com essa causa e,
acima de tudo, o país precisava de lideranças intelectuais e políticas desembaraçadas das oli-
garquias tradicionais. Esse era o projeto do Almanaque Garnier, desenvolvido sob a orienta-
ção intelectual do historiador João Ribeiro, dirigido inicialmente por Ramiz Galvão e, a partir
de 1907, pelo próprio João Ribeiro (DUTRA, 2005). Por isso os grandes intelectuais da capi-
tal federal à época – Machado de Assis, José Veríssimo, Artur Azevedo, Rocha Pombo, Pedro
do Couto e outros – exercitavam seus pendores literários a cada número anual do Garnier.
Com esse projeto, desenvolvido por um dono de livraria no Brasil e na França, não
se pode dizer que o Garnier foi um almanaque popular ou preocupado com a cultura popu-
lar. Apareciam sempre as seções tratando de cronologia e calendário; geografia e estatística,
literatura, o ano político, ciência, erudição e variedades. Mas o folclore aparecia apenas para
se garantir que o Almanaque estava tratando do Brasil, de “nossas cousas” (DUTRA, 2005,
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 4, p. 711-753, out./dez. 2016. 739
p. 33). Estava em causa a existência de uma identidade cultural como suporte para a ideia de
unidade moral e social, expressa em uma língua nacional dos brasileiros e, segundo enten-
diam, desta língua não podiam faltar as particularidades regionais – o folclore, os provérbios,
os costumes (p. 120). Tinha-se um perfil de público a ser atingido, este, sim, seria capaz de
capitanear a construção da nacionalidade pretendida.

[...] o Garnier é visivelmente endereçado a um público urbano, aos setores médios cita-
dinos, alfabetizados, integrados por funcionários públicos, profissionais liberais, profes-
sores e estudantes, aptos a se transformarem em um público leitor especial, porquanto
suscetíveis de serem sensibilizados por um regime de opinião. Ou seja, de se colocarem
em conformidade com a importante tarefa de edificação nacional e a necessidade do
alinhamento brasileiro com a modernidade europeia(DUTRA, 2005, p. 36).

Mas acontece que a população urbana ainda era minoria no Brasil de então. Se
em 1940 ela ainda atingia apenas 1/3 da totalidade, imagine nas décadas anteriores. Era
preciso dialogar com os contingentes populacionais do nosso sertão de dentro, ainda que
fosse para difundir as representações e valores do mundo urbano começando a emergir nas
primeiras décadas do século XX. Os almanaques mais populares que o Garnier, principal-
mente os de farmácia, pegaram essa veia e se popularizaram.

O deslocamento da economia brasileira, entre 1930 e 1950, de um eixo agrário para um


eixo industrial, está presente no almanaque, através das transformações ocorridas e das
representações por ele veiculadas. As campanhas de higiene, presentes no discurso do
almanaque, por exemplo, mostram um dos processos dessa transformação na sociedade
brasileira, ao lado da irresistível atração que a cidade exerce sobre as populações rurais,
através da expectativa de melhores condições de vida e trabalho (MEYER, 2001, p. 130-1).

Assim, os almanaques tiveram grande importância pedagógica para o interior bra-


sileiro, um instrumento muito mais pedagógico do que de ações políticas, e serviram precio-
samente à formação de uma comunidade de leitores (DUTRA, 2005), ainda que, em grande
medida, esses “leitores” se expressassem muito mais “por tabela” – um filho que já estava na
escola, lendo para o pai e/ou para a mãe. Mesmo nessas condições, eles representaram uma
“janela” pela qual os pobres do campo e das vilas podiam observar o mundo que estava de-
pois de um rio, depois de uma serra, nas cidades maiores. Os almanaques de farmácia desde
o final do século XIX eram distribuídos gratuitamente. O Capivarol de 1957 assinalou esse
compromisso em seu editorial. “Quanto ao Almanaque Capivarol, na impossibilidade de o
fazer chegar, diretamente, às mãos de todos os nossos leitores, rogamos seja ele solicitado, gra-
tuitamente, em sua farmácia, ou no estabelecimento de armarinhos mais próximo, pois que
aos mesmos procuraremos suprir, na medida do possível”. Em muitos casos isso exigia lançar
mão de alguma logística disponível à época, para que os exemplares a serem distribuídos che-
gassem aos estabelecimentos distribuidores. O Almanaque do Biotônico Fontoura pode ser
um bom exemplo. Ele era produzido pelo Instituto Medicamenta Fontoura, com sede em São
Paulo, e ainda existe. O exemplar que eu tenho contém um carimbo publicitário indicando
que foi distribuído pela Farmácia Guimarães, da cidade de São João del-Rei em Minas Gerais.
Quanto ao formato eram brochuras de divulgação de determinados medicamentos pe-
740 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 4, p. 711-753, out./dez. 2016.
los respectivos laboratórios (Fontoura, Capivarol, Sadol, Bristol, Catarinense), em cujas páginas se
podiam ler receitas da culinária da época e dicas para a solução de problemas (como tirar manchas
de vinho na roupa, por exemplo), anedotas, curiosidades. O grande investimento de todos os labo-
ratórios eram as informações para cada mês do ano, sobre plantio, fases da lua e manejo adequado
dos diversos cultivares nas diferentes fases do calendário agrícola e de criatório. O do Biotônico
Fontoura fazia isso com certa sofisticação, diferenciando-se dos demais. A cada mês as orientações
agrícolas eram separadas e específicas para as regiões: Norte, Brasil Central e Sul.

Com uma forma intencionalmente popular (máximo de 35 páginas, formato 18,3 x 13,4 cm),
o almanaque de farmácia podia ser levado de um lado para o outro com a maior facilidade –
brinde das lojas, presente de Natal ou Ano Novo. E assim se espalhava pelo interior do Brasil,
interessando sobretudo ao homem do campo e a sua família, carentes de informação, que,
no início de cada ano procurava nas farmácias, para se informar e se distrair, como se fosse
um livro, objeto de difícil acesso para a maioria (MEYER, 2001, p. 127-8).

O que explica a grande importância dos almanaques e dá razão ao sucesso que


tiveram é o contexto de precárias condições sanitárias, de verminoses, anemias, subnutrição
que assolava o país desde os séculos anteriores ao XX, somada à inexistência de informações
agronômicas mínimas para os trabalhadores rurais da época. Para os dois carecimentos, res-
pectivamente, quaisquer indicações que representassem alívio para os achaques das pessoas ou
quaisquer curiosidades sobre formas de plantio e manejo eram sempre muito bem acolhidas.
Emergia a mentalidade do higienismo que teve como decorrência concreta as inúmeras cam-
panhas de orientação da população. Isso se aplicava principalmente à população rural, tanto
que em 1917 foi criado pelo Governo do Estado de São Paulo o Código Sanitário Rural. Os
almanaques materializavam esse imperativo propagandístico.
Um desses almanaques tornou-se célebre por ter sido uma espécie de laboratório
que fez emergir da realidade para a ficção e da ficção para a cultura brasileira o personagem
emblemático da falta de saneamento, o Jeca Tatu. É o Almanaque Fontoura, criado em 1920
por Monteiro Lobato, assim caracterizado:

Uma combinação de ingredientes publicitários, educacionais e literários que juntos tri-


lharam o ambiente rural nacional, assegurados por aportes teóricos de intelectuais que
estavam interessados no crescimento da nação em suas esferas progressistas. O Alma-
naque foi dosado de ideais educacionais capazes de se sobrepor ao produto que estava
encarregado de divulgar, o elixir Biotônico Fontoura (MACHADO et alii, 2012, p. 81).

Não se pode negligenciar que, como era o mais efetivo veículo publicitário da pri-
meira metade do século XX, o almanaque veiculava também a ideologia dominante, interes-
sada em fomentar salvacionismo em torno da industrialização e da urbanização. O exemplo
mais expressivo dessa apropriação é a criação do personagem emblemático dos interesses em
fazer o Brasil passar de uma sociedade agrária, em que sobressaíam a pobreza, a falta de saúde,
a falta de higiene, por dentro das páginas do mais famoso dos almanaques de farmácia, o Al-
manaque Fontoura, para uma sociedade consumidora dos produtos manufaturados.

Mostrar a tristeza, a pobreza, a doença são artifícios do discurso médico para que o ideal

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 4, p. 711-753, out./dez. 2016. 741


seja a Felicidade, a Riqueza e a Saúde. É objetivo da classe dominante construir uma
identidade cultural, através de valores inculcados pela ideologia que representa o cam-
ponês como “alicerce da nação”, pois precisa de seu braço de sua produção. Após tomar
a poção mágica – o Biotônico Fontoura ou a Ankilostomina Fontoura – o camponês
humilde transforma-se em um imigrante europeu, modelo de Força, Beleza e Saúde,
empunhando galhardamente a enxada. Os anos de trinta a cinquenta se caracterizam
pela industrialização e consequente urbanização (MEYER, 2001, p. 133).

Do anúncio desses fármacos nasceu o personagem que em 1918 chegaria ao livro


de contos Urupês, de Monteiro Lobato (1882-1948), e o título do conto que o retratava deu
também o nome ao livro-coletânea. No volume de 1956 (p. 16-17) o anúncio deste medica-
mento do Laboratório Fontoura ainda veio ilustrado ao estilo “bico de pena” caracterizando
um trabalhador descalço, deitado no chão, dormindo com o chapéu sobre o rosto e a enxada
tombada ao chão do seu lado, com os seguintes dizeres: “Rosto abatido, amarelo e um can-
saço eterno, são indícios de amarelão ou opilação. Combata êsses males com ANKILOSTO-
MINA FONTOURA – destrói e elimina os vermes do amarelão”.
Mas, vamos imaginar uma outra situação, a da escola. Qual escola, em plena pri-
meira metade do século XX, era dotada de uma biblioteca? Por sua distribuição gratuita, so-
mada à ausência de bibliotecas, especialmente nas escolas rurais, os almanaques impactaram
inclusive as escolas, como material de leitura.

O uso do Almanaque na escola e em outros espaços levou o Jeca a tornar-se conhecido


em praticamente todo o Brasil. Como representante caricatural do caboclo brasileiro,
sobretudo daquele residente no interior paulista, a história dessa personagem trazia lições
de higiene, de trabalho e, especialmente, de mudanças de hábitos e costumes, enfocadas
como a “chave mágica” que conduziria a boas e novas condições de vida aquele que a
elas se lançassem. Afinal, o entendimento de que gente da roça não carecia de estudos,
cedia lugar a outro discurso que voltava suas intenções para o homem do campo (p. 83).

O escritor Inácio de Loyola Brandão registra uma lembrança de quando, ainda em


criança no interior de São Paulo, vivia intensamente a espera e a chegada do almanaque, que,
normalmente era ao final de cada ano, para que os leitores o aproveitassem integralmente ao
longo de todo o ano seguinte.

A espera do almanaque começava nos primeiros dias de dezembro. Passávamos todos os


dias na farmácia, perguntando: “Chegou?” Principalmente nós, os mais pobres, que não
tínhamos dinheiro para os gibis. Os almanaques supriam a ausência. Quase todos os grandes
laboratórios editavam os seus, sendo que, na minha infância, os mais famosos eram os do
Biotônico Fontoura, Capivarol e Saúde da Mulher. A fórmula era invariável: calendário
agrícola, o que plantar, o que colher. O tempo. Os feriados, dias santos, o horóscopo,
charges, piadas, conselhos úteis, receitas, poesias, pensamentos (BRANDÃO, 2004).

Nesta mesma crônica o escritor araraquarense, explicando a origem do seu próprio


nome, assinala o que era uma recorrente forma de relação das famílias com esta publicação:
“Está no Almanaque Nestlé: 31 de julho. Dia de Santo Inácio de Loyola”. É que cada número
742 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 4, p. 711-753, out./dez. 2016.
trazia o calendário mês a mês, com as festas dos santos de cada dia no calendário litúrgico
católico. E o almanaque, então, presente na maioria das famílias, era a fonte mais utilizada
para se buscar indicações de nomes para as crianças que nasciam. Ficou conhecida no Oeste
da Bahia a expressão “O filho já vem com o nome”. Era o costume de olhar no almanaque ou
na folhinha de parede para ver o santo do dia, com o qual era nominado um recém-nascido,
já que o catolicismo popular era predominante na cultura interiorana brasileira.
Em geral, no interior da própria família havia apropriações distintas de cada nú-
mero que chegava: o pai já consultava as previsões de chuva, os conselhos importantes sobre
épocas e cultivares; a mãe buscava logo algum conselho útil para a vida doméstica; e, quando
ele chegava às mãos dos filhos, a busca era maior quanto ao lazer e brincadeiras.

Lazer e utilidade parecem caracterizar o almanaque de farmácia enquanto leitura po-


pular, que ensina, brincando, a adultos e crianças. [...] O lazer no almanaque é o jogo,
o passatempo, a carta enigmática. Há sobretudo, a piada, a anedota. A cada página é o
riso ou o sorriso que nos espera e nos espreita como que a dizer: o tempo passa, a morte
vem, mas, antes, vamos nos divertir, sorria! (MEYER, 2001, p. 129).

A propósito, deu na página 16 do Capivarol de 1957, o 38º ano de sua circulação:


“A PIOR COMPRA. – Qual a pior compra que o homem pode fazer? – A de um chapéu:
porque, ou “leva na cabeça”, ou “vai no embrulho”, ou “fica na mão””. Mas agora já estamos
em outros tempos. Se a crônica bem humorada de Ruy Castro (2016) tem razão, as pessoas
do mundo virtual da atualidade já se orientam com o auxílio de outras ferramentas. Narrando
as peripécias e tragédias que já se acumulam nas histórias dos muitos meses de agosto, o cro-
nista diz que não precisou busca-las em sua própria memória: “Fui ao órgão que substituiu e
aposentou o Almanaque Capivarol: o Google”.

Referências
CASTRO, Ruy. Grandezas e misérias de agosto. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2016/08/1802968-grandezas-e-miserias­-
de-agosto.shtml> Acesso: 15 ago 2016.
BRANDÃO, Inácio de L. Coleção melhores crônicas: seleção de Cecília Almeida Salles. São
Paulo: Global, 2004.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa 1500-1800. Trad. Denise Bott-
mann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
DUTRA, Eliana de Freitas. Rebeldes literários da república: história e identidade nacional no
Almanaque brasileiro Garnier (1903-1914). Belo Horizonte: UFMG, 2005.
FERREIRA, Jerusa P. Almanaque. In: MEYER, Marlyse (Org). Do Almanak aos almana-
ques. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 19-22.
MACHADO, Marcelo O.; ROSSI, Ednéia R.; NEVES, Fátima M. O discurso educacional
e o Almanaque do Biotônico Fontoura: por entre práticas de leitura e a produção de uma
representação do sertanejo (1920-1950). Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 45, p.
78-88, mar 2012.
MEYER, Marlyse (Org). Do Almanak aos almanaques. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p.
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 4, p. 711-753, out./dez. 2016. 743

Vous aimerez peut-être aussi