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KONSTANDINOS KAVAFIS

) Alberta
segunda ( ABERTA
KONSTANDINOS KAVAFIS [1863-1933]
ㅡ 50 POEMAS ㅡ

Constantino Cavafy, 90 E MAIS QUATRO POEMAS, tradução de Jorge de Sena,


Porto, ASA, 2003.
Konstandinos Kavafis, PÁGINAS ÍNTIMAS, tradução de João Carlos Chainho,
Lisboa, Hiena, 1994.
Konstandinos Kavafis, POEMAS E PROSAS, tradução de Joaquim Manuel
Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa, Relógio d’água, 1994.
Konstandinos Kavafis, OS POEMAS, tradução de Joaquim Manuel Magalhães e
Nikos Pratsinis, Lisboa, Relógio d’água, 2005.
Konstantinos Kaváfis, 145 POEMAS, tradução de Manuel Resende, Porto, FLOP,
2017.
Jorge de Sena

SOMA

Não discuto se sou feliz ou não.


Mas de uma coisa faço por lembrar-me sempre:
que nessa grande soma ㅡ a deles, que eu detesto ㅡ
de tantas e tantas parcelas, não sou
uma delas. Eu nunca fui contado
para a soma total. Esta alegria basta.
João Carlos Chainho

UM VELHO MUROS

Lá dentro, na sala ruidosa do café, Sem cuidado, sem piedade, sem respeito,
está um velho curvado sobre a mesa, em meu redor muros altos foram levantados.
solitário, com o jornal à frente.
E agora vivo sem nenhuma esperança.
Vai pensando, com a indiferença que a velhice dá, Em mais não penso: um tal destino anula-me a razão,
que aos anos de força, de eloquência e formosura
pouco proveito soube retirar. pois tanto me faltava para fazer lá fora.
Ah, muros não vi quando os construíram.
Ele sabe ㅡ porque sente, porque vê ㅡ que está muito velho.
E no entanto parece de ontem Não ouvi ruídos nem vozes de pedreiros.
o tempo em que foi jovem. Passou tão depressa, passou tão depressa. Fora do mundo, sem saber, eu estava fechado.

Reconhece então que a Prudência se riu dele;


que sempre sentiu ㅡ oh loucura! ㅡ confiança nela
e a malvada lhe dizia: «Amanhã. Tens muito tempo.»

Recorda os impulsos que susteve; e o sacrifício


de quantas alegrias. Da insensata razão
anda a rir-se agora cada ocasião perdida.

… Porém, de tanto pensar e recordar


se atordoa o velho. E adormece
com a cabeça na mesa do café.
Manuel Resende Joaquim Manuel Magalhães

AS JANELAS DESEJOS

Nestes quartos escuros, onde passo Como corpos belos de mortos que não envelheceram
dias pesados, ando de um lado para o outro e estão fechados, com lágrimas, em esplêndida tumba grandiosa,
à procura das janelas. ㅡ Quando se abra com rosas na cabeça e nos pés jasmim ㅡ
uma janela terei consolo. ㅡ desse modo parecem os desejos que desapareceram
Mas as janelas não aparecem ou não consigo sem serem cumpridos; sem nenhum deles ser dignado assim
encontrá-las. Melhor talvez não as achar. com uma noite de prazer, ou manhã dele luminosa.
Talvez a luz fosse uma nova tirania.
Quem sabe que de novo nos traria.
NA ESCADA COISAS ESCONDIDAS

Quando descia a cabra da escada, No que fiz e no que disse


pela porta entravas, e por um momento que não procurem encontrar quem fui.
vi o teu rosto desconhecido e viste-me. Obstáculo havia levantado e transformava
Depois escondi-me para não voltares a ver-me, e tu as acções e o modo da minha vida.
passaste rápido escondendo o teu rosto, Obstáculo havia levantado e parava-me
e enfiaste-te para dentro da cabra da casa muitas vezes quando ia dizer.
onde o prazer não haverias de encontrar, como não encontrei. As minhas acções mais despercebidas
e os meus escritos os mais encobertos ㅡ
Porém o amor que tu querias tinha-o para to dar; só por aí me hão-de sentir.
o amor que eu queria ㅡ os teus olhos disseram-mo Mas talvez não valha a pena pôr
os cansados e suspeitos ㅡ tinha-lo para me dares. tanto cuidado e tanto trabalho para me saberem.
Os nossos corpos sentiram e buscavam-se; Mais tarde ㅡ na sociedade mais perfeita ㅡ
o nosso sangue e a nossa pele perceberam. outrem feito como eu
por certo aparecerá e fará livremente.
Mas escondemo-nos os dois, perturbados.
COISAS ACABADAS AS COISAS PERIGOSAS

Dentro do medo e das suspeitas, Disse Myrtias (estudante sírio


com a mente agitada e os olhos aterrados, em Alexandria; sendo reis
fundimos e planeamos o que fazer augustus Constans e augustus Constantius;
para evitar o perigo em parte gentio, e em parte cristianizante):
certo que desta forma horrenda nos ameaça. «Fortalecido com teoria e estudo,
No entanto equivocamo-nos, não está esse no caminho; eu as minhas paixões não vou temer como cobarde.
falsas eram as mensagens O meu corpo aos prazeres vou dar,
(ou não as ouvimos, ou não as sentimos bem). aos deleites sonhados,
Outra catástrofe, que não imaginávamos, aos desejos eróticos mais audazes,
brusca, torrencial cai sobre nós, aos ímpetos lascivos de meu sangue, sem
e desprevenidos ㅡ como teríamos tempo ㅡ arrebata-nos. medo nenhum, pois sempre que queira ㅡ
e terei vontade, fortalecido
como estarei com teoria e estudo ㅡ
nos momentos críticos hei-de encontrar
o meu espírito, como dantes, ascético.»
CONTINUA A VOLTAR MUITO RARAMENTE

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me, É um ancião. Consumido e curvado,


sensação amada continua a voltar e a tomar-me ㅡ combalido pelos anos, e pelos abusos,
quando acorda a memória do corpo, caminhando lentamente atravessa a ruela.
e desejo antigo volta a passar no sangue; Porém quando entra em casa para ocultar
quando os lábios e a pele se lembram, o seu mau aspecto e a sua velhice, pondera
e sentem as mãos como se tocassem de novo. no quinhão de juventude que tem ainda.

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me à noite, Agora adolescentes dizem os seus versos.
quando os lábios e a pele se lembram… Nos vivos olhos seus passam as visões dele.
A mente saudável e hedónica deles,
a carne firme e de belas linhas deles,
com a manifestação do belo por ele feita emocionam-se.
Manuel Resende

FUI QUANTO PUDERES

Nada me prendeu. Abandonei-me todo e fui. Mesmo se não puderes fazer a vida como a queres,
Pelos prazeres que, meio reais, isto ao menos tenta
meio sonhados, rondavam na minha alma, quanto puderes: não a desbarates
fui pela noite iluminada. nos muitos contactos do mundo,
E dos mais fortes vinhos bebi, como na agitação e nas conversas.
bebem os heróis do prazer.
Não a desbarates arrastando-a,
e mudando-a e expondo-a
ao quotidiano absurdo
das relações e das companhias
até se tornar uma estranha importuna.
Joaquim Manuel Magalhães

COISAS PINTADAS À ENTRADA DO CAFÉ

O meu trabalho dá-me cuidado e prazer. A minha atenção por algo que disseram ao meu lado
Mas da composição desalenta-me hoje a lentura. dirigiu-se para a entrada do café.
O dia influenciou-me. A sua figura E vi o corpo belo que parecia
cada vez mais soturna. O vento e a chuva não têm parado. ter sido feito pela extrema experiência de Eros ㅡ
Desejo mais ver do que dizer. modelou os seus membros simétricos com alegria;
Neste quadro estou a olhar agora elevou a sua estatura esculpida;
um moço belo que da fonte perto modelou com emoção o rosto
se estendeu, depois da corrida está extenuado. e deixou pelo toque das suas mãos
Que beleza de jovem; que divino meio-dia o terá tomado uma sensação na testa, nos olhos, e nos lábios.
já para o não manter desperto.
Quedo-me a olhar assim por muito tempo fora.
E dentro da arte de novo, descanso da sua faina dura.
UMA NOITE JURA

O quarto era pobre e sórdido, Jura muitas vezes começar uma vida melhor.
escondido por cima da taberna suspeita. Mas quando vem a noite com os seus próprios conselhos,
Da janela via-se a travessa, com os seus compromissos, e com as suas promessas;
suja e apertada. De baixo mas quando vem a noite com a sua própria força
vinham as vozes de alguns operários do corpo que quer e pede, para a mesma
que jogavam às cartas e faziam uma farra. alegria fatal, perdido, vai de novo.

E aí na cama modesta, para o povo


tive o corpo do amor, tive os deleitáveis
lábios corados da embriaguez ㅡ
corados de uma embriaguez tal, que mesmo agora
que escrevo, depois de tantos anos!,
na minha casa sozinha, de novo me embriago.
Manuel Resende

QUANDO SE EXCITAM NA RUA

Procura guardá-las, poeta, Seu rosto amável, um pouco pálido;


por muito que sejam poucas as coisas que podem ser detidas. seus olhos castanhos, como aturdidos;
As visões do teu erotismo. vinte e cinco anos, mas aparenta antes vinte;
Mete-as, meio escondidas, nas tuas frases. com algo de boémio no vestir
Procura segurá-las, poeta, ㅡ a cor da gravata, a forma do colarinho ㅡ
quando se excitam na tua mente, deambula sem rumo pela rua,
à noite ou no esplendor do meio-dia. como turvado ainda pelo prazer proibido,
pelo prazer totalmente ilícito que acaba de fazer seu.
Jorge de Sena Joaquim Manuel Magalhães

A MONTRA DA TABACARIA AO PRAZER

Ao pé da iluminada montra da tabacaria, Alegria e aroma da minha vida, a memória das horas
no meio de outra gente, ambos estavam. em que encontrei e segurei o prazer como o queria.
Por acaso aconteceu que os olhares se cruzaram, Alegria e aroma da minha vida para mim, pois abominei
e que o desejo carnal e proibido qualquer deleite de amores de rotina.
foi com hesitante timidez expresso.
Deram, depois, inquietos passos, pela rua ㅡ
até trocarem ambos um ligeiro aceno.

E então, é claro, o carro fechado...


os corpos que se roçam e se encostam
mãos apertadas, colados lábios.
MUITO ASSIM CONTEMPLEI PASSAGEM

A beleza muito assim contemplei, As coisas que aluno assustado imaginou, estão escancaradas,
que plena dela está a vista minha. reveladas diante de si. E anda por aí, e faz noitadas,
e deixa-se arrastar. E pois é (para a nossa arte) conveniente,
Linhas do corpo. Lábios vermelhos. Membros hedónicos. o seu sangue, jovem e quente,
Cabelos como que de estátuas helénicas tomados; a volúpia deita-se com ele. Seu corpo baixa a cerviz
sempre belos, mesmo que estejam por pentear, por embriaguez erótica sem lei; e os juvenis
e caem, um pouco, sobre as testas brancas. membros a ela cedem.
Rostos do amor, como os desejava membros a ela cedem. E um simples rapaz desta maneira
a minha poesia… Nas noites da juventude minha, torna-se digno do nosso olhar, pela Altaneira
nas minhas noites, às escondidas, encontrados... Esfera da Poesia também ele passa momentaneamente ㅡ
o estético rapaz com o seu sangue jovem e quente.
Manuel Resende Jorge de Sena

DIAS DE 1903 A MESA AO LADO

Não voltei a encontrá-los ㅡ perdidos tão depressa… Não deve passar dos vinte e dois. Contudo,
os poéticos olhos, o pálido quase tenho a certeza de que há uns vinte anos
rosto… no escurecer da rua... este mesmo corpo foi que possuí.
Não voltei a encontrá-los ㅡ possuí-os por total acaso,
e com tanta ligeireza os abandonei; Não é uma ilusão do meu desejo.
e logo com angústia desejei. Entrei neste casino apenas há instantes,
Os poéticos olhos, o pálido rosto, não tive tempo de beber demais.
esses lábios, não os encontrei. Foi este mesmo corpo que eu possuí.

Se não me lembra aonde ㅡ pouco importa.

Na mesa ao lado, agora, vem sentar-se:


ah reconheço os gestos dele ㅡ e sob a roupa
vejo-lhe nus os membros que eu amei.
Joaquim Manuel Magalhães

PERCEPÇÃO EM BAIXO DA CASA

Anos da mocidade, anos devassos ㅡ Ontem caminhando por um bairro


quão claro vejo o seu sentido agora. fora do centro, passei em baixo da casa
onde entrava quando era muito jovem.
Que inútil era, e vão, arrepender-me… Aí tinha-se apoderado do meu corpo Eros
com a sua força magnífica.
Nos anos dissolutos que gastei,
traçavam-se-me os rumos da poesia, com a sua força magnífica. E ontem
delimitavam-se os domínios dela. quando passei pela antiga rua,
logo se embelezaram do encantamento erótico
Por isso, o arrepender-me era tão breve. as lojas, os passeios, as pedras,
E as firmes intenções de honesta vida e paredes, e varandas, e janelas;
duravam quinze dias, quando muito. nada aí ficou feio.

E enquanto estava, e olhava para a porta,


e estava, e me demorei em baixo da casa,
a minha substância inteira devolvia
a guardada emoção do prazer.
Jorge de Sena

LEMBRA-TE, CORPO IMENOS

Corpo, lembra-te não só do quanto foste amado, «Que mais amado seja
não só das camas onde te deitaste, o prazer que se busca mórbido e se obtém corrupto,
mas também daqueles desejos que para ti raro se encontrando o corpo que vibre como se deseja ㅡ
brilhavam nos olhos abertamente, prazer que por morbidez e corrupção provoca
e tremiam na voz ㅡ e algum uma tensão maior que o vulgar desconhece...»
obstáculo casual os frustrou.
Agora que tudo está no passado, Trecho de uma carta do
quase parece como se também àqueles jovem Imenos (de família patrícia), notório
desejos tivesses sido dado ㅡ como brilhavam, em Siracusa por seus vícios,
lembra-te, nos olhos que para ti olhavam; nos viciosos tempos de Miguel Terceiro.
como tremiam na voz, para ti, lembra-te, corpo.
Manuel Resende Jorge de Sena

VEIO FICAR A ORIGEM

Seria uma hora da noite Consumara-se o prazer ilícito.


ou uma e meia. Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
ou uma e meia. Num canto da taberna, Saíram separados, furtivamente;
por trás de um tabique de madeira. e, ao caminhar inquietos pela rua,
Para além de nós dois, estava o local deserto, como que receavam que algo neles traísse
mal iluminado por uma lâmpada de petróleo. em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Na porta dormitava o empregado cansado da vigília.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Não nos podia ver. Mas já Amanhã, depois, anos depois, serão
tanto nos tínhamos excitado, escritos os versos de que é esta a origem.
que não éramos capazes de precaução.

As roupas entreabriram-se ㅡ não eram muitas,


já que ardia o divino mês de Julho.

Da carne o prazer por entre


a roupa entreaberta;
breve nudez da carne ㅡ cuja imagem
percorreu vinte e seis anos; e agora veio
ficar neste poema.
Manuel de Resende Joaquim Manuel Magalhães

ARTÍFICE DE CRATERAS NUM LIVRO VELHO

Nesta cratera aqui de puríssima prata ㅡ Num livro velho ㅡ dez décadas quase completas ㅡ
feita para adornar a casa de Heraclides, por entre as suas folhas esquecida,
na qual a elegância supremamente reina ㅡ encontrei uma aguarela sem assinatura.
pus flores delicadas, riachos e tomilho; Devia ser a obra de artista assaz forte.
no centro coloquei um formoso rapaz, Levava por título, «Apresentação do Amor».
despido e amoroso; o qual dentro da água
descansa ainda o pé. ㅡ Memória, te implorei Mas antes lhe convinha, «ㅡ do amor dos ultra estetas».
que me desses ajuda para melhor formar,
tal como era, o rosto desse rapaz que amei. Pois era evidente quando se via a obra
Grande a dificuldade da minha tarefa pois (com facilidade se sentia a ideia do artista)
já quinze anos passaram desde o dia longínquo que para quantos amam um tanto higienicamente,
em que caiu, soldado, na derrota de Magnésia. mantendo-se dentro do permitido de todas as maneiras,
não era destinado o adolescente
da pintura ㅡ com olhos castanhos muito acentuados;
com a beleza selecta do seu rosto,
a beleza das atracções perversas;
com os seus lábios ideais que levam
o prazer a um corpo amado;
com os seus membros ideais para camas talhados
a que chama depravadas a moral corrente.
Jorge de Sena

EM DESESPERO VIERA PARA LER

De todo o perdeu. E agora diante Viera para ler. E os livros, dois ou três,
dos lábios de um seu qualquer novo amante de História e de Poesia, estão ali, abertos.
seus lábios demanda; na união de um qualquer Não lera dez minutos quando
seu novo amante o engano demanda logo os largou. E agora no sofá
de ser aquele rapaz, a quem ele se entrega. dormita. É dado inteiramente aos livros ㅡ
mas tem vinte e três anos, muito belo.
De todo o perdeu, como se nem existisse. E hoje, esta tarde, penetrou o amor
Porque pretendia ㅡ ele lho disse ㅡ pretendia salvar-se nessa carne perfeita, nos seus lábios.
do estigmatizado, do mórbido prazer; Na sua carne inteiramente bela,
do estigmatizado, do infame prazer. a febre do desejo perpassou, sem que ele
Ainda era tempo de ㅡ ele o disse ㅡ salvar-se. por pudor recusasse um especial prazer.

De todo o perdeu, como se nem existisse.


Por imaginação, por alucinações
nos lábios doutros rapazes seus lábios demanda;
procura saborear seu amor de novo.
Joaquim Manuel Magalhães Jorge de Sena

A FOTOGRAFIA NESSA ALDEIA MESQUINHA

Ao olhar a fotografia de um companheiro seu, Nessa aldeia mesquinha onde trabalha ㅡ


o seu belo rosto juvenil caixeiro de uma firma comercial,
(agora já perdido; ㅡ tinha um dia e muito jovem ㅡ e onde tem de estar
de noventa e dois a fotografia,) pelo menos mais uns dois ou três meses,
sobreveio-lhe do efémero a melancolia; ainda o tempo até que os negócios declinem
mas reconforta-o que pelo menos e ele possa ir à cidade para mergulhar
não deixou ㅡ não deixaram nenhuma vergonha pateta logo nas distracções e nos prazeres,
o amor deles impedir ou desfear. nessa mesquinha aldeia onde tem de estar ㅡ
Aos «viciosos», «prostituídos», dos néscios caiu na cama à noite ébrio de cio,
a sua estética do amor nunca ligou. a juventude a arder-lhe na excitada carne.
Numa tensão de amor a juventude inteira.
Quando dormia, o gozo veio. Em sonhos,
ele viu e possuiu a carne desejada.
Joaquim Manuel Magalhães

O 25.º ANO DA SUA VIDA REMORSO

Vai à taberna regularmente Diz-lhe a este remorso que se modere,


onde se tinham conhecido no mês passado. é bom por certo, mas perigosamente parcial.
Perguntou; mas não sabiam nada para lhe dizer. Não te inculpes e atormentes tanto com o passado.
Das suas palavras, percebeu que se começara a dar Não dês tanta importância a ti próprio.
com um indivíduo totalmente desconhecido; Menor foi o mal que fizeste
uma das muitas figuras juvenis desconhecidas do que tu julgas; muito menor.
e suspeitas que por ali passam. A virtude que te trouxe agora o remorso
Vai contudo à taberna regularmente, de noite, também estava na altura latente em ti.
e queda-se e olha para a entrada; Eis que um acontecimento que de repente
até à fadiga olha para a entrada. à tua memória regressa explica
Talvez possa entrar. Esta noite talvez possa chegar. o motivo duma acção tua que te parecia
não louvável, mas agora se justifica.
Perto de três semanas assim faz. Não confies totalmente na tua memória;
Adoeceu a sua mente de lascívia. muitas coisas esqueceste ㅡ miudezas diversas ㅡ
Na sua boca ficaram os beijos. que te justificavam bastante.
Enlouquece da ânsia incessante toda a sua carne.
Daquele corpo o tacto está sobre ele. E não julgues que o ofendido
Quer a união com ele outra vez. o conhecias tão bem. Havia de ter dons, que ignoravas;
talvez nem sequer fossem arranhões aquilo
Para não se trair, percebe-se que faz o esforço. que tu julgas (por ignorância da vida dele)
Mas em momentos fica indiferente quase. ㅡ terem sido feridas terríveis causadas por ti.
Além disso, ao que se expõe sabe-o,
tomou essa decisão. Não é improvável que esta sua vida Não confies na tua fraca memória.
em escândalo nefasto vá levá-lo. Modera a memória que é sempre
até à falácia parcial contra ti.
Manuel Resende

NAS TABERNAS DIAS DE 1896

No meio das tabernas no meio dos bordéis Degradou-se de todo. O seu pendor erótico,
de Beirute me perco. Não podia ficar fortemente banido e alvo de desprezo,
eu em Alexandria. Tamides me deixou; (ainda assim inato) fora disso a razão:
com o filho do eparca se juntou pra gozar muito puritana era então a sociedade.
de uma vila no Nilo, da mansão na cidade. Aos poucos foi perdendo o seu pouco dinheiro;
Não convinha ficar eu em Alexandria. ㅡ depois a posição e a reputação.
No meio das tabernas no meio dos bordéis Rondava os trinta anos sem, sequer por um ano,
de Beirute me perco. Na sordidez abjecta ter um trabalho fixo, que se soubesse ao menos.
eu vivo envilecido. Só me salva uma coisa, O dinheiro pròs gastos por vezes o ganhava
beleza perdurável, perfume que na carne em mediações que eram tidas por vergonhosas.
se tivesse prendido: é que, por uns dois anos, Acabou por ser um tipo que quem o frequentava
o Tamides foi meu, o rapaz mais excelso; era muito provável ficar comprometido.
meu, não por uma vila, nem por uma mansão.
Mas não era só isso. Não seria correcto.
Muito mais que isso tudo, vale a sua beleza.
E se o considerarmos de outro ponto de vista,
vemos um ser simpático; um simples, genuíno
filho do amor erótico, que por cima da honra
e da reputação pôs, sem vacilar,
o mais puro fruir da sua carne pura.

E da reputação? A sociedade, que era


puritana demais, tirava estultas ilações.
Cheios de gozo e energia, sensualidade e beleza,
DOIS JOVENS DE 23 A 24 ANOS foram-se ㅡ não para as casas das honradas famílias
(onde, por certo, já ninguém os queria):
a uma que eles conheciam e muito especial,
Desde as dez e meia estava no café a uma casa de vício se foram onde pediram
esperando que logo aparecesse. quarto para dormir, bebidas caras e de novo começaram a beber.
Chegou a meia-noite ㅡ e continuava a esperá-lo.
Deu a uma e meia; quase vazio E quando as bebidas caras terminaram,
ficara já o café. quando eram cerca das quatro,
Cansou-se de ler maquinalmente ao amor felizes se entregaram.
os jornais. Dos seus três xelins solitários
só lhe restava um: com tanta espera,
em café e conhaque outros dois já os gastara.
Fumara todos os cigarros.
Tâo larga espera o esgotou. Pois
além disso, como estivera só tantas horas,
apoderaram-se dele
importunos pensamentos de sua vida desviada.

Mas quando viu entrar o seu amigo ㅡ súbito,


o cansaço, a tristeza e os pensamentos se esfumaram.

O amigo trazia uma notícia inesperada.


Ganhara sessenta libras às cartas.

Os seus rostos formosos, a sua juventude maravilhosa,


o amor sensual que entre eles existia,
reviveram tonificados pelas refrescantes
sessenta libras das cartas.
Joaquim Manuel Magalhães

DIAS DE 1901 UM JOVEM, DA ARTE DA PALAVRA ㅡ NO SEU 24.º ANO

Isto havia nele de excepcional: Trabalha lá como puderes, mente. ㅡ


no meio dessa sua vida dissoluta Desgasta-o a ele um deleite truncado.
e a sua muita experiência no amor, Está numa circunstância enervante.
apesar de todo o acordo habitual Beija o amado rosto todos os dias,
entre a sua conduta e a sua idade, suas mãos estão sobre os mais excelsos membros.
ocorriam momentos ㅡ muito poucos, Nunca amou com tamanha
é certo ㅡ em que dava a impressão paixão. Mas falta a bela realização
de uma carne quase intocada. do amor; falta a realização
que deve por ambos ser com intensidade desejada.
A beleza dos seus vinte e nove anos,
tão experimentada no prazer, (Não estão ambos de forma semelhante dados ao prazer anormal.
por estranho paradoxo, às vezes Somente dele absolutamente se apoderou.)
lembrava um efebo ㅡ um pouco fruste ㅡ
que pela primeira vez ao amor E desgasta-se, e enervou-se por completo.
entregasse o seu corpo casto. Para além disso está desempregado; e isso contribui muito.
Algumas pequenas quantidades de dinheiro
com dificuldade pede emprestadas (quase
por esmola as pede algumas vezes) e sobrevive mal.
Beija os lábios adorados; sobre
o corpo excelso ㅡ que todavia sente agora
que mal aguenta ㅡ satisfaz-se.
E de seguida bebe e fuma; bebe e fuma;
e arrasta-se pelos cafés o dia inteiro,
arrasta com dissabor a sua beleza que murcha. ㅡ
Trabalha lá como puderes, mente.
Manuel Resende

IMAGEM DE UM JOVEM DE VINTE E TRÊS ANOS DIAS DE 1909, ‘10, E ‘11


FEITA POR AMIGO DA MESMA IDADE, AMADOR

Acabou a imagem ontem a meio do dia. Agora Era filho de um velho, atormentado
em detalhe a vê. Fê-lo com roupa e pobre marinheiro (de uma ilha do Egeu).
cinzenta desabotoada, cinzento-escuro; sem Trabalhava numa forja. Tinha a roupa gasta.
colete nem gravata. Com uma camisa Roto seu mísero calçado de trabalho.
cor-de-rosa; desapertada, para ver-se também algo Sujas as suas mãos de ferrugem e óleo.
da beleza do peito, do pescoço.
O lado direito da testa quase por inteiro À tardinha, fechada a oficina,
cobrem-no os seus cabelos, os seus cabelos belos se desejasse muito alguma coisa,
(segundo o penteado que prefere este ano). uma gravata um pouco cara,
Existe o tom inteiramente hedonista uma gravata de domingo,
que ele quis dar quando fazia os olhos, ou se tivesse visto numa montra
quando fazia os lábios… A sua boca, os lábios uma bela camisa malva desejada,
que são para satisfazer superior erotismo. vendia o corpo por um ou dois táleres.

Pergunto se nos tempos antigos


teve a gloriosa Alexandria um jovem tão belo,
um rapaz mais perfeito que este ㅡ o qual se perdeu:
não se fez, claro está, a sua estátua nem o seu retrato;
perdido na velha oficina de uma forja,
breve se consumiu no trabalho esgotante
e o deboche barato e atormentado.
Joaquim Manuel Magalhães
Quando ao fim do dia foi ㅡ apareceu um trabalho,
BELAS FLORES BRANCAS COMO MUITO BEM IAM para ganhar o pão ㅡ ao café onde
juntos iam: uma faca no seu coração
o lúgubre café onde juntos iam.
Entrou no café onde juntos iam. ㅡ
Aqui o seu amigo disse-lhe há três meses;
«Não temos um tostão. Somos dois rapazes completamente
pobres ㅡ rebaixados aos locais baratos.
Digo-te abertamente, contigo não posso
andar. Um outro pede-me, a sabê-lo fica.»
O outro fizera-lhe a promessa de dois fatos e alguns
lenços de seda. ㅡ Para recuperá-lo
moveu céus e terra, e conseguiu vinte libras.
Voltou outra vez para ele pelas vinte libras;
mas também, além delas, pela amizade antiga,
pelo amor antigo, pela sua profunda intimidade. ㅡ
O «outro» era aldrabão, autêntico garoto;
um fato apenas lhe tinha feito, e
esse de má vontade, depois de mil súplicas.

Mas agora já não quer nem os fatos,


e nem por sombra os lenços de seda,
e nem vinte libras, e nem vinte piastras.

No domingo enterraram-no, às dez da manhã.


No domingo enterraram-no: há quase uma semana.

No seu pobre caixão pôs-lhe flores,


belas flores brancas como muito bem iam
com a sua beleza e os seus vinte e dois anos.
Não deixavam de dizer qualquer coisa da mercadoria ㅡ mas
PERGUNTAVA PELA QUALIDADE o objectivo único: tocarem-se as mãos
por cima dos lenços; aproximarem
os rostos, os lábios como por acaso;
Do escritório onde como empregado o aceitaram os membros num instante contactarem.
para tarefa insignificante e mal remunerada
(até oito libras a sua mensalidade: extras incluídos) Rapidamente e às escondidas, para não sentir
saiu quando a seca do trabalho ficou concluída o dono da loja que no fundo sentado estava.
em que esteve a tarde inteira debruçado:
saiu às sete horas, e caminhava indeciso
e olhava para se distrair pela rua. ㅡ Belo;
e interessante: por assim mostrar ter chegado
ao seu pleno rendimento sensual.
Vinte e nove, no mês passado tinha-os feito.

Olhava para se distrair pela rua, e nas pobres


travessas que conduziam à sua morada.

Ao passar diante de uma pequena loja


onde se vendiam umas coisas
falsas e baratas para operários,
viu lá dentro um rosto, viu uma figura
que o apelaram e entrou, e pedia
supostamente para ver lenços de cor.

Perguntava pela qualidade dos lenços


e quanto custam; em voz sufocada,
quase apagada pelo desejo.
E semelhantes vieram as respostas,
absortas, em voz abaixada,
com implícito consentimento.
Manuel Resende

GRUPO DE QUATRO DIAS DE 1908

O dinheiro ganham-no por certo não honestamente. Naquele ano, ficou desempregado;
Mas inteligentes rapazes todos os quatro, o modo ia vivendo com o dinheiro arranjado
encontram de escapar à polícia. com as cartas e o gamão, ou emprestado.
Para além da inteligência, são plenamente fortes.
Pois os dois tem unido o laço do prazer. Um emprego, três libras ao mês, lhe ofereceram
Os outros dois tem unido o laço do prazer. numa pequena papelaria.
Muito bem vestidos como convém a Mas recusou-o, sem qualquer hesitação.
rapazes tão bonitos; e teatro e bar, Não dava. Isso não era salário pra ele,
e o seu carro, e por vezes uma viagem rapaz bastante lido, vinte e cinco anos.
não lhes falta nada.
Uns dois ou três xelins ganhava ao dia, quando ganhava.
O dinheiro ganham-no por certo não honestamente, Com cartas e gamão que podia tirar o moço,
às vezes com medo de serem esfaqueados, nos cafés aonde ia, cafés populares,
de serem presos. Mas que coisa o Amor mesmo sendo ele esperto e escolhendo burros?
uma força tem que no seu dinheiro sujo Quanto aos empréstimos ganhava o que ganhava.
pega e torna-o brilhante, puro. Raramente sacava um táler, mais vezes meio,
de quando em vez, quedava-se por um xelim.
O dinheiro não o quer nenhum deles
como seu, por interesse; nenhum deles conta Durante uma semana ou mais por vezes,
avaramente, grosseiramente; não anota nunca se escapava às terríveis noites sem dormir,
se um traz pouco e o outro mais. ia ao mar refrescar-se com um banho matinal.
O dinheiro deles comum o têm para
estarem bem vestidos, para terem para gastar, Sua roupa, uns trapos desgraçados.
para fazerem a sua vida de bom gosto, como convém Sempre vestia o mesmo fato, um fato
a rapazes tão bonitos para ajudarem os amigos, de cor canela muito descorada.
e depois, seu sistema, o que deram esquecer.
Ah, dias do Verão de mil novecentos e oito!
na vossa evocação, graciosamente,
falta o descolorido fato de canela.
A vossa evocação o preservou,
quando ele se despia e de si arrojava
a roupa indigna e a roupa interior remendada.
Pura beleza na nudez total: que maravilha.
Despenteados, os seus cabelos revoltos;
os seus membros um pouco bronzeados
na nudez matinal do banho, ali na praia.
) Alberta
( ABERTA

«Poesia grega clássica ㅡ 50 fragmentos», primeira ABERTA, setembro, 2018.


«Konstandinos Kavafis ㅡ 50 poemas», segunda ABERTA, outubro, 2018.

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