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Al Berto
I
recado
ouve-me
que o dia te seja limpo
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vestígios
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
outro dia
cai na manhão do coração desolado
a toutinegra que longe daqui cantava e
nesse instante
a tristeza do rosto subiu aos lábios
para queimar a morte próxima do corpo e
da terra
depois
deixarei o dia avançar com o barco
que levanta voo e traz as más noticias dos jornais
e o cheiro espesso das coisas esquecidas - os óculos
para ver o mar que já não vejo e um dedo incendiado
esboçando na poeira uma janela de ouro
e de vento
horto
homens cegos procuram a visão do amor
onde os dias ergueram esta parede
intransponível
adormecem sempre
antes que a cinza dos olhos arda
e se disperse
prosseguem caminho
com a voz atada por uma corda de lírios
os cegos
são o corpo de uma fogo lento - uma sarça
que se acende subitamente por dentro
acordar tarde
tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte
euforia
cai neve no cérebro vivo do miraculado - dizem
que estes milagres só são possíveis com rosas e
enganos - precisamente no segundo em que a insónia
transmuda os metais diurnos em estrume do coração
dizem também
que um duende dança na erecção do enforcado - o fulgor
dos sémenes venenosos alastra no brilho dos olhos e
um sussurro de tinta preta aflora os lábios
fere a mão de gelo que se aproxima da boca
inferno
na suave asa do grito reflecte-se o lume
comestível do tempo - a mão transformada
em polvo sacode a erva seca no sangue
da manhã
e que te vingues
do hábil sedutor de feras
avião
envolto num lençol de cal duas cintilações
sobre as pálpebras húmidas e um ardor perfura
a noite onde uma ponte atravessa um rio
o voo é demorado
ficaste a saber que nem deus é eterno
desfez-se no erro daquilo que criou perdeu-se
nas sua imperfeições e certezas
agora
pela janela do avião vês como tudo é mínimo
lá em baixo - quando a oriente da loucura
a mão cinzenta do inverno perdura no rosto
daqueles que sonolentos viajam dentro
deste pequeno túmulo de serenidade
casa
durante a noite
a casa geme agita-se aquece e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia
levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa - respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo
olhas-te no espelho
atribuis-te um nome um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas - com o vento
que arrasta consigo esta chuva de fósforos e
estes presságios de tranquilos ossos
fantasmas
bateram à porta - não abriste
estavas a convocar nesse instante a brancura
dos dados por lançar e o corvo do sr. poe mais
o maléfico negrume dos mares de melville e
os passos em redor do andarilho etíope e
as mulheres da patagónia que estão sentadas
ao fim da tarde
à beira de insondáveis glaciares
vê
como um protege o outro - os dois procurando
um sémen limpo e
nenhuma palavra será adiada ou dita como dantes
vê
como a terra é um veludo a escorrer da boca
para a boca - triste néctar envenenado
contra os lábios que se despedem da casa
dos afectos
dos amigos
das coisas insignificantes e
da rua que não voltarão a ver
mektoub
a luminosidade é uma placa de zinco suspensa
do céu de deserto
em redor
a imensidão das areias vibra contra o caos
de pedra e de eufórbios que se multiplicam
a perder de vista
caminhas
sitiada pelo canto agudo do muezzin
chamado à oração
mektoub
sítios onde a vida cessou e tudo está escrito
há séculos - onde o coração dos homens
é uma rosa nómada e calcária
bisédimo
perseguem-te os cães de ninguém e
por trás da tua cabeça rebenta a luz
que lhes devora a reles pelagem - com um dardo
abres a ferida do ouro que carregas à cintura
senhor da asma
deitado há muito tempo - o cigarro luzindo
como um olho de tigre da noite e
lá fora
ainda se apercebe a húmida incandescência das frésias
o rumor surdo de vozes pelo jardim onde
a florida macieira se recorta do intenso céu de verão
mais além
o rouxinol a madressilva
sebe de pilriteiros
a brisa de um mar invisível - aflora-te a boca
arde no coração
a memória álgida dos limos dos casinos das praias
saturadas de sal e de sedução
engate
é uma ameaça encontrar-te à esquina das ruas
rente aos grandes cinemas do mar
como se fosses o espelho côncavo de feira
onde posso mergulhar e renegar-me
sim
se olhares o céu lúgubre deste fim de século
se fizeres um movimento de farol com o cigarro
eu - que vou a passar - tudo verei
mas nada será meu
porque não se pode falar com o espectro mudo
do engate - nem o desejo se levantará
para seduzir o corpo daquele que se ausentou
mantenho-me de pé e fumo
dentro deste túmulo de incertezas onde
nos encostámos de mãos enlaçadas à espera
que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos
obrigados a vender o corpo já usado
aos insuspeitos violadores de poemas
sida
aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz
incêndio
se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva miudinha - não te assustes
e morres
carregado de tristezas e de mistérios - morres
algures
sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo
no inferno marítimo das aves
lisboa
(2)
desejaste um país de silêncio
de chuvas salgadas - sem caminhos nem sonhos
lisboa
(3)
imaginaste um país imóvel devorado pelo sol
e o arrepio do canto espalhou-se pelas ruas
onde o tempo passa lento e branco em direcção
a outro tempo igual
lisboa
(4)
vieste dos remotos desertos africanos onde
semeaste tormentos e filhos negros
e tu
sob o sol cruel - perdido de olhar em olhar
jogando a vida contra o sujo casco dos cacilheiros
vagueias
pelos becos à procura de um rosto que imite
a felicidade da voz perdida - ou um corpo qualquer
para fingir o sono junto ao teu
carta de emile
a minha cidade tinha um rio
donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo
e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos
as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória
tudo se decompões
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
na boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna
resposta a emile
a guerra daqui não mata - mas abre fissuras
nos nervos - é o que te posso dizer
deste país que escolhi para definhar
mudança de estação
para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpos o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe o brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
mapa
abres o mapa da europa e
assinalas o lugar perdido junto ao mar - o sol
fulmina a narceja e o leite sábio das mães
coalhou num sabor a plâncton e húmus
mas
no cansaço da torna-viagem no desalento de tudo
o mapa da europa ficou aberto no sítio
onde desapareceste
febre
sopra um vento pelo peito do mareante - vento
cinzento capaz de apagar os gestos que restam e
de limpar os passos incertos pelas ruas do cais
vento
um vento que te sacode as veias os tendões
faz vibrar os músculos e a mastreação - como a árvore
que se desprende das entranhas do mar
corre
corre um vento pelas fissuras da pele - vento
de pó enferrujado abrindo feridas nos animais vivos
colados à memória onde
uma serpente mergulhou no sangue e
desata a fulgurar
corre um vento
vento de febre - sismo de orquídeas que acalma
quando acendes a luz e abres as asas
vibras e
levantas voo
não cantes
olha em redor dos bosques as veredas destruídas
pela explosão devastadora das minas e ouve
as vozes límpidas morrerem no poema
antes e depois da alegria
antes e depois do pânico
não cantes
clamor
I
Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram
a casa.
Levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio
de água e de estrelas.
A noite está próxima.
Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.
Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon, com
suas traições... ouço hélices de barcos, motores... quando um rosto
esvoaça ao alcance da mão.
A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um
sussurro cortante nos lábios.
E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam
uma treva a outra treva.
Caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando
paisagens, sulcando mares, devorando imagens.
II
Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro.
Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que
me devora o sonho.
Pela janela vejo a linha crepuscular da duna. Um novo corpo liberta-
se do meu e caminha fora de mim - vejo-o afastar-se em direcção aos
nevoeiros das cidades.
Sei, neste instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da
separação.
Afastados - tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do
outro.
O que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
Harrar, Aden, Lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar
o mundo... o canto sublime das miragens.
Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à
roda da cabeça.
Abri a janela. Avisto uma nesga de céu limpo.
Lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou por um
insulto. Imitávamos assim a felicidade...
(Mas) O sol fulmina a memória. Limpa-a da crueldade do passado.
(E) A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas,
ideias que se evaporam lentamente.
III
Os dias estão cheios de cartas e recomendações, de amigos que
partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas
intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
De morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.
IV
Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
Mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no
primeiro dia dos dias sem ninguém.
A dor, a perna amputada - a mapa da abissínia.
O sol enterra-se nas areias.
Viajo, sem me mexer desta enxerga branca. Tento encontrar espaço
para a lucidez do meu silêncio.
No lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são
formas etéreas que se me colam ao rosto.
O que morrer, quase não faz falta...
Dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do
outro.
Mas um homem em cujo coração esteja concentrada toda a fúria de
viver, será um homem feliz?
Não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.