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[...] e junto com a crença em um único deus, inevitavelmente nasceu a intolerância religiosa [...] Este
imperialismo se refletiu na religião, como universalismo e monoteísmo.
Sigmund Freud (Moisés e Monoteísmo)
Mas afinal, por que falha o significante da religião?
Maria Angelina Khalil Aidé
*
Médico e Bacharel em Filosofia, ambos pela UFRJ; Mestre em Medicina (Psiquiatria) e Mestre em Filosofia,
ambos pela UFRJ; Doutor em Filosofia pela UFRJ; Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de
Psicanálise – Seção Rio de Janeiro; desde 1984 leciona em cursos de Graduação em: Psicologia, Pedagogia
e Letras; também leciona em cursos de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica e de Formação
Psicanalítica.
ção secreta entre a “Análise Leiga” e a todo. Foram escritos a partir de idéias
“Ilusão”1 . Na primeira desejei proteger que necessariamente derivam de con-
a análise dos médicos e na segunda dos ceitos como: pulsão, recalque, eu ideal
sacerdotes”. E, em seguida, Freud deli- e sexualidade infantil.
mita o campo da prática psicanalítica: O conceito de pulsão (ou de seu
[...] “uma profissão que ainda não exis- representante), como intermediário
te, a profissão de curadores de alma entre o psíquico e o somático, deriva
laicos, que não necessitam serem mé- do materialismo ateísta de Freud, para
dicos e não devem ser sacerdotes” quem não há mente sem cérebro e cor-
(FREUD; PFISTER, 1963, p.126). A po, muito menos há alma ou espírito
elegância e civilidade do diálogo Freud/ desencarnados. A sexualidade infantil,
Pfister pertenceria à história da psica- com sua perversão polimorfa, coloca a
nálise européia, não tivesse sido um agressividade humana como constitutiva
diálogo freqüentemente utilizado no e não um desvio, assim como sendo
Brasil atual para justificar o injustificável. universal a atopia do desejo, numa vi-
Dissequemos a questão por partes: são oposta à normatização do Velho e
desde o cerne da trama teórica freudiana, do Novo Testamento. Eu ideal, supereu e
passando pela confusão ocorrida no recalque: Freud sempre buscou compre-
Brasil entre psicanálise e religião e, des- ender a culpa através da psicologia e
ta questão, como parte de outra, mais da antropologia, não como meras au-
ampla, ressurgida na era da globalização. xiliares de alguma possível teologia, mas
Este percurso conduz a localizar e como explicações que desmontassem
conceituar, em diferentes campos, o todo pensamento mágico e religioso.
discurso da psicanálise e o da religião. Tudo isto passando por texto cujo títu-
Por fim, o mais importante: o que po- lo dispensa comentários, Rituais Religi-
demos por meio desta grande confusão osos e Práticas Obsessivas, sem falar na
aprender para a clínica psicanalítica e a adesão incondicional de Freud ao
ética que lhe é indissociável? darwinismo.
Assim como a correspondência
Uma psicanálise sem Freud?! entre Freud e Pfister foi desvirtuada,
tentar uma psicanálise, tanto em exten-
As opiniões de Freud sobre a reli- são quanto em intenção, negando os
gião poderiam permanecer neste domí- conceitos acima constitui mais que uma
nio mesmo, o das opiniões: pessoais, fraude, uma profunda ignorância do
particulares, direito de todo cidadão. texto freudiano. Embuste que só pode
Contudo não o fazem por não serem ser praticado por meio de um ensino
apenas preferências individuais, mas superficial, por apostilas, e sem o mais
parte central do arcabouço freudiano. importante da prática clínica: a análise
Os textos críticos sobre religião, indo pessoal. E não apenas o texto de Freud
desde Totem e Tabu até Moisés e o tem de ser escondido, mas os de todos
Monoteísmo, são mais do que especula- seus seguidores importantes: Abraham,
ções sobre a cultura, mas integrantes de Klein, Lacan, Winnicott, Bion e
reflexões que partiram da clínica e quantos mais sejam nomeados2 , pois
retornaram à clínica. Textos cuja con- todos lhe seguiram em ateísmo e críti-
testação nega a psicanálise como um ca à religião. Este engodo, um ensino
1
Referência de Freud aos textos A Questão da Análise Leiga e O Futuro de uma Ilusão.
mitado, e o desejo impossível de ser sa- mas sua multiplicidade. Mesmo que se
tisfeito plena e permanentemente. A fi- tente reduzir toda fala à univocidade,
losofia que embasa a ambos é a da a malha de significantes, mesmo sob
finitude, do limite e da falta. Ambos uma aparência de totalidade, revela:
compartilham de uma concepção trá- suas falhas, seus duplos sentidos, suas
gica do homem, e da inalienável res- antíteses, outros caminhos além daque-
ponsabilidade de todos os nossos atos, le que aparenta. Se a psicanálise fosse
concepção em oposta à noção de que perfeita, estaríamos quase inteiramen-
se não há deus, então tudo é permitido. te no registro do simbólico. Mas não
Como somos portadores deste furo in- apenas por fugir de um sentido unívoco,
terno – dê-se-lhe vários nomes: falta, por fugir da idéia de que a psyché saudá-
ferida narcísica, castração, não-ser, ob- vel seria um bloco compacto e, mais ain-
jeto a, a coisa, por exemplo -, também da, por não ser perfeita e por não ter um
somos circunscritos externamente por ideal por meta, a psicanálise foge de um
uma linha em que o desejo alheio é o simbólico puro e do discurso totalitário.
limite para o meu desejo. Não apenas Se a psicanálise busca o registro do
Freud e Lacan, mas todos os nomes mais simbólico e de sua própria impossibili-
conhecidos da psicanálise – Abraham, dade de absolutização, pergunta-se
Ferenczi, Klein, Winnicott, dentre mui- qual o objetivo da religião. Segundo
tos - partilharam desta compreensão trá- Freud, a religião sempre busca o pai ide-
gica, pois sem ela não seriam psicanalis- alizado da infância: todo poderoso,
tas. Freud, ele mesmo, defendeu a idéia onipresente e onipotente, infalível,
de que sem a falta não haveria palavra. garantia de completa segurança. Pai de
Tanto em Lacan quanto em Freud, o de- um registro herdeiro de uma época do
sejo está indissoluvelmente vinculado à predomínio do narcisismo infantil e suas
lei que institui o simbólico, “ainda que imagens, época de intensa ambivalência.
para o primeiro esta lei indique, mais A religião, ao menos suas vertentes
que uma proibição, a presença de im- monoteístas e ocidentais, está no regis-
possibilidade” (RINALDI, 1996, p.69). tro do imaginário e na possibilidade do
A maiêutica socrática buscava, por absoluto6 .
meio de um único diálogo, que o
interlocutor reconhecesse a incoerên- Ilusões da transferência e delírios
cia de seu discurso, e isto lhe permitiria religiosos
construir um discurso próprio. À dife-
rença de Sócrates, Freud procurava, por Portanto a psicanálise, em qualquer
meio de pequenas intervenções, des- de suas vertentes, encontra-se no pólo
obstruir a livre associação do paciente. oposto ao da aplicação do discurso re-
Então, espontaneamente, é retomada ligioso do monoteísmo. Não há verda-
a construção do discurso. Uma produ- de externa, dogmática e atemporal.
ção por meio de várias narrativas, que Não há livro sagrado ou revelação di-
não são ouvidas como se fossem dota- vina. No máximo um ou outro presi-
das de um sentido unívoco, mas com dente Schreber mais popularizado. En-
vários sentidos. Isto pressupõe não ape- caixar alguém numa verdade que lhe é
nas a existência de um sujeito desejante, exterior constitui uma violência tão
6
Agradecemos a idéia sobre a diferença entre psicanálise e religião, nos registros do simbólico e imaginário,
proposta e discutida nos seminários do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, ao Prof. Dr. Marco Antonio
Coutinho Jorge.
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O Caso Schreber (The Case History of Schreber, FREUD, 1978) apresenta-se como o texto de conexão
entre a primeira parte da obra de Freud, voltada mais para a clínica, e conceitos como a pulsão e o
inconsciente, e a segunda parte de sua obra, onde surgem os textos sobre religião e sociedade. É possível ler
o Caso Schreber como fruto de Freud, o escritor, e perceber a discreta ironia na qual os delírios místico-
religiosos e soteriológicos de Schreber servem de voz à crítica freudiana da religião.
DAWKINS, R. Deus, um delírio. São Paulo: HARRIS, S. The end of faith: religion, terror and
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Institute of Psycho-Analysis, 1978. v. XXI.