A China é conhecida, dentre outras coisas, pela rota da seda, quando o
mundo ocidental descobriu esse valioso tecido, como uma boa oportunidade para se fazer bons negócios. Desta vez, quero mostrar ao leitor uma peculiaridade do mercado chinês, que envolve um aspecto cultural na escolha do cônjuge. A cada fim de semana, pais se reúnem na praça do povo, em Shanghai (pronuncia-se Shan – Rai, na China), para buscar um candidato para casar-se com seus filhos. O ideal é que sejam da mesma classe socioeconômica. Álbum com fotos, referências ao horóscopo, incluindo agências matrimoniais, completam a oferta e constituem-se símbolo cultural: a pressão social para que formem suas próprias famílias. Localizada no final da avenida Nanjing Leste, local que, até antes da chegada do partido comunista (oficialmente em 01 de outubro de 1949), existia uma pista de corrida a cavalos, a praça do povo é um dos locais nevrálgicos de Shanghai (lê- se: Shan-Rai), onde se cruzam várias avenidas, subestações, além de concentrar dois dos museus da cidade e também o Grande Teatro. Ao redor da mesma praça, também se encontra um magnífico hotel, em estilo art decó, de 1934, chamado de Park Hotel. Nessa praça há um rincão conhecido como o local de “avaliação dos potenciais candidatos”, onde todos os fins de semana, uma ruidosa multidão de pais se reúne para buscar um marido ou esposa para seus fihos. Eles se localizam como se estivessem instalados em um posto de mercado, portando um pedaço de papel, onde estão escritos os dados dos seus filhos, como foto, data de nascimento, formação escolar, habilidades e traços da personalidade e também de temperamento. Alguns colocam os papéis sobre o chão e outros sobre pequenos bancos ou aparadores improvisados. Outros ainda penduram em árvores, de acordo com a disponibilidade de espaço encontrado. Afinal, na China até mesmo o espaço para mostrar um pequeno cartaz é muito concorrido. Tal grupo de pais, visto de longe, parece uma formação caótica, mas chegando perto, percebe-se uma ordem, com uma formação que lembra uma pequena rua, com postos de pessoas ao lado. Dentro dessa trama de ruas, há inclusive zonas específicas, como por exemplo, os pais cujos filhos estão no estrangeiro. O ambiente nos corredores da feira é animado e cheio de movimento. Pais que batem papo com outros pais, agentes que buscam prospectar clientes, turistas, curiosos e até candidatos que se apresentam pessoalmente. O mercado de matrimônios na China começou a funcionar recentemente, em 2004. Em seu auge, chegou a reunir cerca de 2000 pessoas. Hoje, além dos pais, várias agências de matrimônio cuidam dos interesses dos candidatos, ou mesmo pessoas físicas que os apresentam. Estes são reconhecidos de imediato. Em vez de portarem uma simples folha impressa, têm um pôster, onde exaltam a experiência, prometem resultados e expõem o seu book de candidatos, sempre com uma foto, e o resumo introdutório relativo a cada um destes. Chegam a oferecer o serviço gratuitamente para os homens, e para as mulheres, em alguns casos, cobram uma tarifa. Ou seja, para a mulher é mais difícil conseguir um candidato ao matrimônio, do que para o homem. Isso ocorre pelo fato de que a oferta de mulheres nesta praça é amplamente superior a de homens. São mulheres formadas, com boa posição econômica, com idade média de vinte ou um pouco acima dos trinta anos, como a da um cartaz, pendurado em uma árvore, logo na entrada da feira: “Mulher solteira, nascida em Shanghai, em 1981; altura: 1,68; dois títulos universitários; professora de inglês. Membro do partido; bons rendimentos; com carro; sem dívidas”. Ao final da folha, uma frase chama a atenção: “Se não for honesto, não se incomode”. Ou seja, se o homem que estiver interessado não for honesto, nem se incomode em se candidatar. A frase entre aspas também é um programa televisivo de namoro, muito popular na China, onde doze mulheres avaliam um candidato. Tal é a ansiedade dos pais por conseguir um par para os seus filhos, que, no fim do ano, quando todo o comércio fecha as portas, a feira segue firme, tal qual acontece todos os fins de semana. É durante esses dias que o estado civil dos filhos se converte em um tema especialmente sensível. Os pais os pressionam com perguntas ou cobranças, de tal forma que, os que estudam ou trabalham em outras cidades, buscam desculpas para não voltar para casa. Um provérbio local batizou esses jovens em “A tribo dos que têm medo de voltar”. Mas a pressão não é somente dos pais para os filhos, mas também das pessoas que se relacionam com os pais, como vizinhos e parentes, de quem têm de enfrentar perguntas. Como se vê, na China o casamento faz parte de uma obrigação, e não apenas uma opção voluntária. A importância do mercado matrimonial chinês é observada pelo número de empresas dedicadas ao serviço de casamento, wedding planners (planejadores de casamento), e estúdios fotográficos que oferecem extensas sessões de fotos, em pontos da cidade considerados mais românticos ou de grande expressão de beleza cênica. Os noivos são vistos em parques, lagos, diques, trajando roupas cerimoniais, às vezes com mulheres vestidas de vermelho. Mas casar-se, exige dinheiro, pois além do planejamento e da festa, implica ter também um apartamento e um carro. Para uns isso pode ser apenas um dote familiar, mas para outros, isso pode se converter em uma enorme pressão e esforço econômico, ou mesmo a contração de uma dívida por toda vida. Por conta dessa pressão, uma parcela da juventude tem aderido a uma nova visão do matrimônio, resumida em um termo que se popularizou na internet, a partir de 2008: luohun ou “casamento nu”. São casais que decidem casar-se sem festas ou álbuns fotográficos, sem carro, sem apartamento ou sem anéis de compromisso. “Não buscamos uma pessoa de dinheiro, mas um equilíbrio entre as famílias”, diz o depoimento de Zhen Lan, que tem uma filha de 28 anos, graduada em uma das melhores universidades do país. O termo exato que ela utiliza é: “men dang hu dui”, literalmente, “a porta correta e a janela adequada”, uma antiga frase que expressa a forma tradicional dos casamentos arranjados, no interior de uma mesma classe. Como muitos outros pais, Zhen Lan não confia nas agências e prefere ocupar-se ela mesma, pessoalmente. Começou a vir ao parque há um ano, e desde então já consegui vários encontros e namoros, mas sem êxito. Começa a escurecer e muitos pais se retiram da feira. Nos galhos de uma árvore chamada de plátano, vê-se vários papéis pendurados, como se fossem literatura de cordel. Há um de um homem de 45 anos, que põe a foto de uma casa; destaca a obtenção em 1991 do prêmio A Nova Larga Marcha, outorgado aos jovens do partido com um desempenho brilhante, e esclarece que procura uma mulher nascida entre 1972 e 1980, “mas idealmente entre 73 e 78”. Outro, de uma mulher de Shanghai, com um doutorado e com um capital acumulado de 10 mil renminbi (equivalente a 3.400 reais em cotação atual). Passando os cartazes, está o posto de uma agência, com o seu grande cartaz cheio de fotos de rapazes e moças de não mais de 30 anos. A uns metros, duas mães conversam. Teoricamente há uma correspondência: uma delas tem um filho de 34 anos e a outra, uma filha de 28; ambos são membros do partido e, embora a relação zodiacal não seja a mais desejável, (rato e cavalo), não convém serem demasiadamente exigentes a esse respeito.
Bráulio Antonio Calvoso Silva é licenciado em língua portuguesa e respectiva
literatura pela UnB, pesquisador, escritor, tradutor e jornalista. brauliocalvoso@hotmail.com