PINTO, V. G. Saúde bucal no Brasil. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 17:316-27, 1983.
RESUMO: Apresenta-se um retrato sobre a saúde bucal no Brasil, com
ênfase em informações relativas à situação econômica e epidemiológica, prevenção da cárie dental, recursos humanos, montante de gastos financei- ros e estrutura de prestação de serviços. O país mostra quadro típico de uma área em desenvolvimento, com elevada incidência de problemas, crescente oferta de cirurgiões-dentistas e difícil acesso aos serviços ofertados mor- mente face a barreiras de ordem econômica. Visando expandir cuidados odontológicos e reduzir a incidência dos principais problemas, propõe-se um programa de serviços básicos de âmbito nacional. UNITERMOS: Saúde bucal, Brasil. Odontologia sanitária. Odontologia, serviços de saúde. Cárie dentária, prevenção.
INTRODUÇÃO
O Brasil, país de extensão continental, fundamentalmente no sentido de impedir o
com mais de 120 milhões de habitantes 1 2 seu agravamento. Na realidade, apesar do e um PIB (Produto Interno Bruto) "per crescimento proporcional na relação dentis- capita" de Cr$ 110.030,00 (1980) 6 , apre- ta/habitante, a situação de saúde oral não senta um quadro epidemiológico típico de tem sofrido modificações visíveis na última uma área em desenvolvimento onde o acesso década, especialmente quando medida pela aos cuidados odontológicos é dificultado prevalência da cárie dental, sem dúvida o mormente por barreiras de caráter econô- problema odontológico de maior relevância mico. no Brasil. O principal objetivo deste trabalho é o No campo da prestação de serviços, ainda de permitir uma melhor compreensão da vigora uma prática eminentemente c u r a t i v a , situação vigente no país com respeito à com forte predominância do setor privado questão odontológica em seu todo, através e uma tímida intervenção do setor público da reunião de dados e indicadores, direta (cerca de 75% das horas/dentista dispo- ou indiretamente relacionados à saúde oral, níveis estão alocadas a atividades libe- e da sua análise crítica. rais) 2 1 , 2 3 , 3 9 O elevado número de Cursos de Odonto- logia — 66 no total, graduando cerca de Com uma densidade demográfica de 14 5.200 novos cirurgiões-dentistas ao ano 8,18 habitantes por k m 2 em 1980, o Brasil vem — pouco tem contribuído para melhorar o apresentando claro declínio na sua taxa de nível de saúde oral da população, atuando crescimento populacional (2,9% ao ano, entre
* Síntese do Informe Nacional apresentado durante reunião do "Grupo Conjunto n o 5 — Organização
Mundial da Saúde — Federação Dentária Internacional: Padrões de Mudança em Saúde Bucal", em Viena, Austria — Outubro 1982. ** Do Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA) — Secretaria de Planejamento da Presidência da República. Edifício BNDES, 14o — 70.076 — Brasília, DF — Brasil. 60 e 70, e 2,5% entre 70 e 80)12. Esta ten- pelo setor público * 9, 19, 23, 27, 33. Adicional- dência deverá manter-se no futuro, apesar mente, calcula-se que existam 143 milhões do acelerado processo de urbanização em de dentes temporários necessitando trata- marcha. Ainda são analfabetos 25,5% dos mento, além de que a grande quantidade de brasileiros de 10 anos e mais 26. extrações origina uma demanda por próteses Justifica-se, assim, uma renda "per ca- da ordem de 15 milhões de dentaduras pita" reduzida, embora venha experimentan- (Tabela 2) 40 . do um progressivo e contínuo aumento. A No que se refere à doença periodontal, economia nacional, medida pelo PIB, após os índices de prevalência são alarmantes crescimento médio de 8% ao ano entre 1970 principalmente junto à população rural, e 1980, apresentou crescimento negativo em estimando-se que a quase totalidade da 1981 6, enquanto a dívida externa que foi população adulta brasileira necessite trata- de US$ 53,8 bilhões em 1980 já atinge atual- mento conservador para um serviço que mente montante superior a US$ 85 bilhões1. somente está disponível em clínicas privadas, de alto custo 16. De acordo com estudos de Reside na zona rural 31% da população 12 Marcos16, utilizando o índice Periodontal e a expectativa de vida ao nascer é de (IP), a prevalência foi de 90% na faixa 56,3 anos para os homens e de 62,8 anos etária de 6 a 14 anos (IP: 0,40), de 88,7% para as mulheres 7 entre alunos de Odontologia entre 15 e 34 anos (IP: 0,32) e de 100% entre a população NÍVEL DE SAÚDE BUCAL rural com 15 anos e mais (IP: 2,20). Estatísticas referentes a casos notificados Existem escassos dados epidemiológicos de câncer 3 revelam um alto percentual de disponíveis. A maioria diz respeito à preva- localização na boca (8,5% no homem e 2,3% lência da cárie dental em escolares de 1o nas mulheres), observando-se que nos grupos grau, nos quais o índice CPO-D (mede o etários de 15 a 44 anos, e de 45 a 64 anos, ataque de cárie, identificando dentes caria- o câncer oral ocupa o 3o lugar como área dos, perdidos e obturados) tem um valor de incidência masculina (Tabela 3). médio de 1,64 aos 6 anos, atingindo 7,25 Em relação a problemas ortodônticos, aos 12 anos, sempre com largo predomínio utilizando o índice de Draker, Viegas 40 do fator "C" que representa, no grupo etário estima que 10% das crianças entre 7 e de 6 a 14 anos, 61% do total de dentes 14 anos necessitam de tratamento no país. atacados (Tabela 1)10, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 38. Para a população de 6 a 59 anos de PREVENÇÃO DA CÁRIE DENTAL idade, observa-se um crescimento gradativo do índice CPO-D, basicamente às custas A fluoretação da água de abastecimento dos dentes extraídos, observando-se que público constitui o método de escolha para principalmente por razões de ordem econô- a prevenção da cárie dental no Brasil 15,21. mica, um brasileiro em média chega aos 39 A recente implantação deste processo nas anos com 12 dentes extraídos, e aos 59 maiores cidades, embora não incluindo a anos já perdeu 24 dentes (Tabela 2). maior delas que é São Paulo, fez com que Estimativas para o ano de 198040 indicam a cobertura populacional chegasse a 21% que no grupo de 6 a 59 anos há uma neces- em 1982, beneficiando um total de quase sidade acumulada de tratamento de 558 26 milhões de pessoas em 444 cidades milhões de dentes (para restauração ou (Tabela 4)4, 5, 15. extração), o que implica num custo aproxi- O fluossilicato de sódio é o sal mais mado de Cr$ 240 bilhões (equivalente a usado (71% dos sistemas de fluoretação), US$ 4,5 bilhões) caso fossem solucionadas seguido pelo ácido fluossilícico (17%) e
* Acrescente-se a informação pessoal obtida na Fundação Serviços de Saúde Pública, em 1982.
pelo fluoreto de cálcio ( 1 1 % ) , todos já em 1981. O Brasil é o segundo produtor produzidos nacionalmente 13, 15. A ocorrên- mundial de cana de açúcar (após a Índia) 2 2 , cia de flúor natural é rara. Para o ano com 149 milhões de toneladas colhidas em 2.000, cerca de 85% da população urbana 198114. De fato, foi o açúcar que constituiu deverá contar com água tratada, esperando- a base econômica para a colonização do -se que cerca de metade com flúor 15 . país por europeus (portugueses e holandeses Métodos alternativos são utilizados em pe- principalmente, no Século X V I ) , numa época quena escala, como bochechos com fluoreto em que este era o mais importante artigo de sódio ou aplicações tópicas de f l ú o r em de escambo internacional 3 4 . Além da programas para escolares. vulgarização do chocolate, o café encar- O consumo "per capita" de açúcar que regou-se de dinamizar a expansão do uso era de 107 gramas/dia em 1972, subiu para do açúcar (o consumo do café obriga à 120,5 gramas em 1976 e para 124 gramas utilização de pelo menos igual quantidade de açúcar, normalmente), dificultando da informalmente pelos próprios cirurgiões- extremamente a difusão de preceitos educa- -dentistas, e exercendo funções de recepcio- tivos no sentido de obter o controle da nistas ou de auxiliares de Cadeira. Nos cárie dental através da redução do seu programas de saúde pública para escolares, consumo. Na pauta de produtos exportados é cada vez maior o emprego de "técnicos pelo Brasil, fundamental para o pagamento de higiene dental", os quais chegam a da elevada divida externa, o café ocupa o executar restaurações em dentes preparados 1o lugar e o açúcar o 4o (minérios em 2o por cirurgiões-dentistas. e soja em 3o)14, 22. A legislação não proíbe o treinamento e Programas regulares de controle da placa utilização de operadores dentais 17,23 com bacteriana dental ainda são raros, embora funções expandidas, mas na prática a pro- um crescente número de especialistas na fissão consegue manter seus privilégios, área de saúde pública esteja desenvolvendo dominando o mercado. estudos com vistas a generalizar o uso de Os grupos mais pobres, afora os serviços métodos preventivos a custos aceitáveis neste públicos, buscam atendimento junto a um campo16. numeroso contingente de "dentistas prá- ticos"*, que cobram preços mais acessíveis, RECURSOS HUMANOS embora prestem serviços freqüentemente de menor qualidade. O número de cirurgiões-dentistas cresce Nada menos que 66 cursos de Odontologia anualmente em ritmo superior ao do aumento (com 25.500 alunos matriculados) existem da população geral :o índice dentistas/10.000 hoje no Brasil, graduando 5.208 novos habitantes passou de 3,28 em 1960 para cirurgiões-dentistas/ano. No entanto, qua- 3,65 em 1970 e para 5,13 em 1980, já sendo tro novos cursos recém criados farão com de 5,51 em 19828, 18. Mantido o número que este número suba para 5.650 novos atualmente previsto de aumento anual de profissionais a partir de 1984 8,18,19. profissionais (5.650 ao ano a partir de 1984)17,18, o índice será de 9,54 no ano O Ministério da Educação proíbe, atual- 2.000 (Tabela 5). mente, tanto a abertura de novos cursos como a expansão do número de vagas. A Há, no entanto, uma forte concentração tendência é de que esta orientação se man- de dentistas tanto nas cidades maiores tenha, com pequenos acréscimos, principal- (cerca de 50% clinicam nas capitais, onde mente considerando a incapacidade do residem 25% dos habitantes) 8 , como junto mercado em absorver os profissionais for- à população de mais alta renda 23,39. Cal- mados dentro da estrutura social e econô- cula-se que em 1980, para 70% da população mica vigente. (com renda mensal máxima de 5 salários mínimos) 6 o índice foi de 1,67 C.D. por GASTOS EM SAÚDE GERAL E 10.000 habitantes; enquanto que para os EM CUIDADOS ODONTOLÓGICOS 30% financeiramente capazes de custear o seu tratamento, a taxa foi de 11,71/ O serviço público contrata, direta ou indi- /10.000 21, 23, portanto similar à dos países retamente, cerca de 25% das horas/dentista desenvolvidos. disponíveis, e responsabiliza-se por cerca de Cerca de 36 mil auxiliares atuam no 36% dos gastos em Odontologia afetuados país2, 17, 20, 28, 31,35, 36 a quase totalidade treina- no país (Tabela 6).
* Uma estimativa, embora ainda de reduzida consistência, baseada na extrapolação de informações
do Distrito Federal e de Goiás, somadas a declarações do próprio grupo interessado (por ex., no Encontro Nacional de Dentistas Práticos, Goiânia, 1979) indica a existência de cerca de 25.000 práticos no país. Na verdade, diante da falta de serviços odontológicas ao ano)19. Só em 1982 o públicos eficazes em suficiente quantidade, Ministério da Saúde criou um grupo de tra- balho com a tarefa de elaborar normas as pessoas são obrigadas a custear direta- gerais. Não há uma coordenação a nível mente o tratamento odontológico de que central do trabalho desenvolvido por estas necessitam; em proporção bem maior diversas instituições e pela clínica liberal, do que ocorre com os serviços médicos. embora em cada unidade federativa existam seções organizadas de odontologia nas Do total de Cr$ 52 bilhões despendidos Secretarias de Saúde ou nas Secretarias de em 1981 com cuidados odontológicos, Educação. somente Cr$ 287 milhões (0,5%) foram Contudo, especialmente a partir de 1977, aplicados em fluoretação de água*11,15,19,21,27. o desenvolvimento de serviços dotados de A maior participação relativa aos Estados características claramente inovadoras (por exemplo, o Programa Integrado de Saúde nos gastos públicos odontológicos deve-se Escolar da Secretaria de Educação do à presença de programas específicos para Distrito Federal) 20 e a introdução de escolares desenvolvidos por Secretarias de currículos universitários mais dirigidos à Educação. realidade social vigente 37 , indicam que a direção da política odontológica nacional Em 1981, o total de gastos em saúde está começando — pelo menos qualitativa- (Cr$ 1,2 trilhão) significou 4,8% do P I B 6 , 11, mente — a mudar. enquanto que os gastos com cuidados odon- tológicos representaram 0,2% do PIB. SERVIÇOS BÁSICOS EM ODONTOLOGIA (PROGRAMA PROPOSTO) ESTRUTURA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A cárie dental é, destacadamente, o pro- O modelo atual de prestação de serviços blema prioritário em termos de saúde bucal odontológicos no Brasil está constituído de no Brasil, não só por atingir virtualmente dois grandes setores: o privado, com um a totalidade da população, como por seus sub-setor formal (cirurgiões-dentistas) e um elevados níveis de prevalência e incidência. sub-setor informal ("práticos") e o público, Com o objetivo de expandir a atenção com serviços nas esferas federal, estadual odontológica e reduzir a incidência dos e municipal. problemas de maior prevalência, a política de saúde bucal atualmente sugerida para Suas principais características são: forte implantação no país — como parte do predomínio do setor privado formal, repre- sistema global de serviços básicos de sentado principalmente pela clínica privada saúde 23 — está estrategicamente fundamen- individual; expressiva participação do setor tada na generalização de um núcleo mínimo privado informal junto à população de de serviços de forma a incorporar de baixa renda; papel crescente do setor maneira gradativa cuidados mais complexos. público; forte ênfase terapêutica; uso de tecnologia sofisticada e escassa utilização Quatro diretrizes devem reger o programa de pessoal técnico e auxiliar qualificado39. de Odontologia: — prioridade à prevenção da cárie dental O setor público na área odontológica desde o nascer, ao tratamento do grupo encontra-se fundamentalmente sob responsa- etário de 6 a 14 anos, aos grupos de bilidade da previdência social (o INAMPS baixa renda e às áreas economicamente efetua cerca de 40 milhões de consultas deprimidas;
* Acrescente-se a informação pessoal obtida na Fundação Serviços de Saúde Pública, em 1982.
— máxima simplificação de insumos, tra- Atenção a escolares de 1o grau em escolas duzida na produção nacional de equipa- públicas pelo "sistema incremental"; 5) mentos e materiais de baixa densidade Utilização de unidades de cuidados com- tecnológica, custo mínimo e adequado plexos já disponíveis mormente nas Univer- padrão qualitativo, assegurada sua aqui- sidades, para cobertura de pessoas referidas sição e uso pelo setor público; pelas unidades básicas; 6) Oferta de pró- — utilização de recursos humanos de quatro teses sob lucro zero, com serviços custeados tipos 17 : a) cirurgião-dentista; b) técnico pelos usuários a preços equivalentes aos de higiene dental, caracterizado pela gastos de produção. realização de restaurações dentárias e Prevê-se que ao longo da presente década de atenção emergencial simples sob o esforço de racionalização e de desenvolvi- supervisão; c) auxiliar de consultório mento de uma nova política odontológica dentário; d) atendente, que é um para o Brasil deverá incluir, sob o ponto auxiliar de saúde geral com atribuições de vista organizacional, a adaptação dos elementares em Odontologia; currículos acadêmicos aos quadros econô- — regionalização da atenção, fundamentada mico e epidemiológico nacionais, a estrutu- na maior amplitude de serviços conside- ração de um departamento nacional de rados essenciais e na diferenciação de odontologia para exercer a coordenação das complexidade por áreas, partindo da ações institucionais, a definição do papel zona rural e das periferias urbanas até do setor público encarregando-o da pres- os centros populacionais mais densos. tação dos serviços básicos, e a alocação A atenção odontológica deverá, em conse- de recursos específicos com um orçamento qüência, ser estruturada em seis blocos de consolidado através de fundos provenientes, atividades: 1) Fluoretação da água de principalmente, dos Ministérios da Saúde e abastecimento público em cidades com mais da Previdência e Assistência Social, soma- de 5 mil habitantes; 2) Cuidados elementares dos aos Estados e municípios. executados por pessoal local polivalente, disponível em todas as localidades do país; AGRADECIMENTOS 3) Atividades de apoio a cargo dos atuais Centros de Saúde que acrescentam ao Aos colegas Alfredo Reis Viegas, Badéia atendimento à demanda, a supervisão do Marços, Creuse Pereira Santos, M. Cristina nível elementar e a consulta de pacientes C. Barbosa, Paulo A. Verney Ramos e referidos pelos atendentes periféricos; 4) Sebastião F. Camargo pelo apoio recebido.
PINTO, V. G. [Oral health in Brazil]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 17:316-27, 1983.
ABSTRACT: The oral health situation in Brazil is described, with special
emphasis on data relating to the economic and epidemiological situation, caries prevention, human resources, health expenditure and dental care struc- ture. The country presents a picture typical of a developing area, with high disease rates, an increase in the offer of dentists and access to dental care hindered principally by economic barriers. A comprehensive program of basic services in odontology is proposed, with the objective of expanding dental care and reducing the incidence of more prevalent problems. UNITERMS: Oral health, Brazil. Public health dentistry. Dental health services. Dental carie, prevention. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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