Vous êtes sur la page 1sur 71

MATERIALISMO DIALÉTICO – BH

SUMÁRIO

Parte I
Texto nº. 1 - TEORIA DO CONHECIMENTO. LEFEBVRE, H................................................................ Pág. 2

Texto nº. 2 - MATERIALISMO CONTRA IDEALISMO. NOVACK, G..................................................... Pág. 2

Textos nº. 3 e 4 - A LÓGICA FORMAL E A DIALÉTICA. A LÓGICA FORMAL. NOVACK, G................... Pág. 5

Texto nº. 5 - AS LIMITAÇÕES DA LÓGICA FORMAL. NOVACK, G.................................................... Pág. 10

Texto nº. 6 - ALGO MAIS SOBRE AS LIMITAÇÕES DA LÓGICA FORMAL. NOVACK, G...................... Pág. 12

Parte II - DIMINUIR

Texto nº. 1 - A revolução Hegeliana na Lógica. NOVACK, G.......................................................... Pág. 17

Texto nº. 2 - O Método Dialético (A). NOVACK, G......................................................................... Pág. 21

Texto nº. 3 - O Método Dialético (B). NOVACK, G......................................................................... Pág. 25

Texto nº. 4 -. Em defesa do Marxismo. TROTSKY, L...................................................................... Pág. 29

Texto nº. 5 - O CARATER REVOLUCIONÁRIO DA FILOSOFIA DE HEGEL E O MATERIALISMO. ENGELS, F......... Pág. 29

Texto nº. 6 - LA FILOSOFIA DEL PORVENIR. …………………………………………………………………………………………. Pág. 32

Texto nº. 7 - MATERIALISMO E IDEALISMO. ENGELS, F................................................................................. Pág. 34

Texto nº. 8 - Sobre a produção da consciência. MARX, K............................................................. Pág. 35

Texto nº. 9 - O IDEALISMO DE FEUERBACH. ENGELS, F............................................................... Pág. 39

Parte III
Texto nº. 1 - TESES SOBRE FEUERBACH. MARX, K....................................................................... Pág. 42

Texto nº. 2 - O MATERIALISMO MODERNO. LEFEBVRE, H............................................................. Pág. 42

Texto nº. 3 - A REVOLUÇÃO MARXISTA NA LÓGICA. NOVACK, G.................................................. Pág. 44

Texto nº. 4 - O METODO: AS LEIS DA DIALÉTICA. LEFEBVRE, H................................................... Pág. 48

Texto nº. 5 - O MÉTODO DA ECONOMIA POLÍTICA. MARX, K.................................................... Pág. 50

Texto nº. 6 - A LÓGICA MARXISTA. MORENO, N........................................................................... Pág. 54

Parte IV
Texto nº. 1 - PECULIARIDADES DO DESENVOLVIMENTO DA RÚSSIA. Trotsky. L........................... Pág. 57

Texto nº. 2 – A LEI DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL e COMBINADO 1. MORENO N................................ Pág. 61

Texto nº. 3 - A LEI DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL e COMBINADO DA SOCIEDADE. NOVACK, G. ............. Pág. 64
DIMINUIR

1
Para os leitores pouco familiarizados com o pensamento marxista e suas distintas correntes apressamo-nos em efetuar o seguinte
esclarecimento: denomina-se assim a lei descoberta por Trotsky para explicar as peculiaridades dos países atrasados que “combinam”
segmentos “desigualmente desenvolvidos”, por exemplo, uma indústria moderna em alguns ramos com relações feudais no campo ou em
outros ramos.
1
MATERIALISMO DIALÉTICO - BH
Parte I
Texto nº. 1
TEORIA DO CONHECIMENTO
LEFEBVRE, Henri. Lógica forma e lógica dialética. – R. J.: Civilização Brasileira, 1995, pag. 49 e 50.

O conhecimento é um fato: desde a vida prática mais imediata mais simples, nós conhecemos objetos, seres
vivos, seres humanos.
E possível - e mesmo indispensável - examinar e discutir os meios de aumentar esse conhecimento, de aperfeiçoa-
lo, de acelerar seu progresso; mas o conhecimento em si mesmo deve ser aceito como um fato indiscutível.
Em termos filosóficos, o sujeito (o pensamento, o homem que conhece) e o objeto (os seres
conhecidos) agem e reagem continuamente um sobre o outro; eu ajo sobre coisas, exploro-as, experimento-
as; elas resistem ou cedem à minha ação, revelam-se; eu as conheço e aprendo a conhecê-las. O sujeito e o objeto
estão em perpétua interação; essa interação será expressa por nós com uma palavra que designa a relação entre dois
elementos opostos e, não obstante, partes de um todo, como numa discussão ou num diálogo; diremos, por
definição, que se trata de uma interação dialética.

Quais são as características mais gerais do conhecimento enquanto tal ?


a) Em primeiro lugar, o conhecimento é prático. Antes e elevar-se ao nível teórico, todo conhecimento
começa pela experiência, pela prática. Tão somente a prática nos põe em contato com as realidades objetivas.
Imaginemos um ser que tivesse uma consciência semelhante à consciência humana, mas que fosse - se possível
imaginá-lo - inteiramente passivo, sem atividade prática, sem carecimentos, sem movimento, sem poder sobre as
coisas através de seus membros e de suas mãos; em um tal ser, as próprias impressões se desenvolveriam como
uma espécie de sonho; ele nem sequer imaginaria o que pode ser um conhecimento que penetra nas coisas e
investiga o que elas são em si mesmas.
b) Em segundo lugar, o conhecimento humano é social. Na vida social, descobrimos outros seres
semelhantes a nós; eles agem sobre nós, nós agimos sobre eles e com eles. Estabelecendo com eles relações cada
vez mais ricas e complexas, desenvolvemos nossa vida individual; conhecemos tanto eles quanto nós mesmos.
Além disso, esses outros seres humanos nos transmitem - pelo exemplo ou pelo ensino - um imenso saber já
adquirido.
c) Finalmente, o conhecimento humano tem um caráter histórico. Todo conhecimento foi adquirido e
conquistado. Há que partir da ignorância, seguir um longo e difícil caminho, antes de chegar ao conhecimento. O
que é verdadeiro para o indivíduo é igualmente verdadeiro para a humanidade inteira: o imenso labor do
pensamento humano consiste num esforço secular para passar da ignorância ao conhecimento. A verdade não está
feita previamente; não é revelada integralmente num momento predestinado. Na ciência, tal como no esporte, por
exemplo, todo novo resultado supõe um longo treinamento; e todo novo desempenho, todo melhoramento de
resultados, são obtidos de modo metódico.

Texto nº. 2
MATERIALISMO CONTRA IDEALISMO
NOVACK, George. Origenes de la Filosofia Materialista. Págs. 19 a 28 – Ediciones Hispanicas, México, 1987.

Todas as filosofias se defrontaram com duas grandes questões: Em que consiste a realidade? Como se origina? E,
depois dos primeiros gregos, os filósofos devem responder outra pergunta: Como se conhece a realidade? As respostas
dadas a estas perguntas fundamentais determinaram o caráter da filosofia e a posição do filósofo.
Praticamente desde o começo da filosofia existiram duas posições sobre estes problemas: a materialista e
a idealista. Em sua fundamental História da Filosofia, Hegel declarou que “em todos os tempos houve só uma filosofia
cujas diferenciações contemporâneas constituem os aspectos necessários do principal”. Por suposto, diferentemente de
outras formas de atividade intelectual, a de filosofar conservou determinados traços comuns que lhe dão continuidade
desde os gregos até a atualidade. Mas, esse processo de generalização do pensamento constitui no fundo uma unidade de
modos divergentes e, em última instância, opostos, de explicar racionalmente o universo. O método materialista está num
pólo, e o idealista no outro.
Quais são os princípios essenciais do materialismo que o diferenciam de todas as demais tendências filosóficas? Quais
são os traços distintivos que nos permitem reconhecer um pensador materialista e afirmar que uma pessoa raciocina de
acordo com princípios materialistas? Vamos resumí-los brevemente.
1- A proposição básica do materialismo se refere à existência da realidade independente da existência
da humanidade. Afirma que a matéria é a substância primordial, a essência da realidade. Tudo se origina da matéria e de
seus movimentos, e a matéria é a base de tudo. A frase “Mãe Natureza” expressa esse pensamento. Isso significa, em
termos materialistas, que a natureza é a fonte última de tudo que existe no universo, desde os sistemas solares e galáxias
até os pensamentos mais íntimos e audazes do homo sapiens.
2- O segundo aspecto do materialismo se refere às relações entre a matéria e o pensamento. Segundo o
materialismo a matéria produz o pensamento, e este último não existe independente dela. O pensamento é o
produto mais elevado do desenvolvimento material e da organização animal, é também a forma mais complexa de
atividade humana.

2
3- Isto significa que a natureza existe independente do pensamento, mas este último não pode existir
separado da matéria. O mundo material existia muito antes do começo da humanidade ou de qualquer ser pensante.
Como diria Feurbach: “A verdadeira relação entre o Ser e o pensamento é esta: o Ser é o sujeito, o pensamento o
predicado. O pensamento surge do Ser, mas o Ser não surge do pensamento”.
4- Fica assim excluída a existência de algum Deus, ou deuses, espíritos, almas ou outras entidades
imateriais que supostamente dirigiriam os atos da natureza, da sociedade, do homem, ou influiriam sobre eles.
Estes são os princípios elementares da concepção materialista. Eles determinam se o modo de pensar de alguém é ou
não materialista, ainda que essa pessoa não o saiba.
Pode-se compreender o que significam os princípios materialistas comparando-os com uma maneira muito diferente de
interpretar o mundo: a filosofia idealista. Um dos métodos dialéticos de explicar uma coisa consiste em demonstrar como
se relaciona com seu contrário. Por exemplo, compreender o que é uma fêmea implica saber o que é um macho e como
funciona o ciclo reprodutivo. Se quisermos descobrir o que é um capitalista devemos conhecer também o surgimento e a
evolução do trabalhador assalariado. Só então poderemos apreender a essência do sistema capitalista, baseado nas
relações entre estas duas classes sociais interdependentes ainda que antagônicas.
O contrário filosófico do materialismo é o idealismo. Estas duas formas de pensamento se definem e se limitam
reciprocamente no campo da filosofia. Portanto, até que não saibamos o que é o idealismo não poderemos compreender a
fundo as posições do materialismo e vice-versa.
O que sustenta o idealismo (quer dizer, o idealismo conseqüente)?
1- O elemento fundamental da realidade não é constituído pela matéria, senão pela mente ou Espírito.
Em última instância, tudo provém deste e depende de sua atividade.
2- O pensamento gera os objetos materiais; atrás do mundo material, ou diante dele, observa-o o Espírito ou a
mente que o cria. A Natureza pode ser a mãe, mas há um Deus-Pai que a transcende.
3- Portanto, a mente ou Espírito é anterior a matéria e independe desta. O espírito é a realidade
permanente; a matéria apenas um aspecto ou ilusão passageira.
4- A mente ou espírito é idêntico ao divino, ou emana deste. No mínimo deixa aberta a possibilidade de
existência do sobrenatural, admite seu poder e sua interferência.
Deve-se notar que as posições básicas dos dois tipos de pensamento se opõem absolutamente. Um deve ser
correto e outro errôneo; ambos não podem ser corretos. Quem sustenta conseqüentemente as posições de um,
inevitavelmente chega a conclusões absolutamente opostas às do outro.
O materialismo e o idealismo são as duas tendências, as duas linhas, os dois campos principais no terreno
da filosofia, da mesma maneira que a classe capitalista e a classe trabalhadora são as duas forças sociais decisivas na
sociedade contemporânea. Isso não significa que não existam outras posições filosóficas. De fato, a história da filosofia
exibe muitas combinações de idéias e métodos que ocupam todo um espectro de posições entre ambos os extremos.
Ainda que estes matizes de pensamento não possam agrupar-se incondicionalmente sob nenhuma das duas
categorias claramente definidas, só podem ser entendidas referindo-se a elas.
Vejamos três exemplos dessas filosofias intermediárias e amorfas. Há agnósticos que não podem decidir se realmente
existe uma realidade exterior independente de nós e se é possível conhecê-la. Portanto, os agnósticos permanecem
suspensos entre o materialismo e o idealismo.
A teoria do conhecimento idealizada pelo famoso filósofo alemão Kant está estreitamente relacionada com
essa posição. Sustentava que as “coisas em si” existem como realidades objetivas. Nisso estava de acordo
com o materialismo. Mas, logo afirmava que o homem nunca poderá conhecê-las; só podemos conhecer
fenômenos, ou seja, “as coisas tal como nos aparecem”. Com essa conclusão Kant retrocedia ao idealismo.
Muitos pragmáticos norte-americanos se recusam a tomar uma posição firme sobre se a natureza existe ou não
independente da experiência humana. Não estão seguros sobre se a experiência necessariamente surge da natureza ou se
a natureza é produto da experiência. Esses vacilantes respondem com toda classe de evasivas quando se enfrentam com
essa alternativa. Ainda que os pragmáticos alegam terem superado a oposição entre materialismo e idealismo, na
realidade, no que diz respeito à teoria do conhecimento, esquivam-se das questões decisivas.
Estas formas de pensar são confusas e inconseqüentes em relação aos problemas fundamentais colocados pelo mundo
real e a teoria do conhecimento. Quando seus defensores se vêem entre a espada e a parede e são obrigados a abandonar
sua indefinição sobre estas questões básicas terminam aliando-se ao idealismo.
Estes filósofos sustentam posições essencialmente ecléticas. Há outros que devem ser localizados entre os materialistas
e os idealistas, já que o fundamental de sua teoria se orienta rumo a outra direção, ainda que numa quantidade de
questões secundárias exiba tendências rumo a direção oposta.
Mas, somente seremos capazes de analisar e compreender todas essas formações complexas e contraditórias da
historia da filosofia se captarmos a fundo as idéias que caracterizam os dois oponentes principais: materialismo e
idealismo. Eles não esgotam o campo da filosofia, mas o dominam. Determinam as tendências principais de sua evolução e
as reais posições das escolas que oscilam entre ambos. Constituem o guia que nos permite nos orientarmos firmemente e
sem nos perdemos através do confuso labirinto das opiniões e das controvérsias filosóficas.
Os princípios elementares do materialismo não mudaram, desde que este fez sua aparição na antiguidade até nossos
dias. Mas, a historia do materialismo não é a crônica de uma aborrecida repetição de um conjunto de princípios abstratos
que apareceram já completos de uma vez e para sempre, para serem redescobertos e reafirmados periodicamente em sua
forma primitiva. O materialismo sofreu todo um processo, que começou com as primeiras e toscas formulações de suas
proposições essenciais e continuou ramificando-se até adquirir sua forma atual. A filosofia materialista não só mudava
formalmente em cada etapa de seu desenvolvimento; também se diversificava consideravelmente e ampliava sua
perspectiva.
Durante os últimos 2500 anos se construíram superestruturas bastante variadas sobre as premissas
filosóficas do materialismo. Este apresenta, em cada época, diferenças muito marcantes. Por exemplo, é

3
muito diferente o primitivo evolucionismo naturalista de Mileto (século VI a.C.) do complexo atomismo
mecanicista de Lucrecio (século I d.C.). Inclusive, dentro da própria escola atomista há disparidades: Lucrecio
agrega às observações de Demócrito algumas novidades e rechaça algumas de suas afirmações.
Ainda maiores são as diferenças entre as correntes antigas do pensamento materialista e as modernas. Todos os
materialistas sustentaram que a matéria em movimento constitui o fundamento da realidade. Mas, em cada época, a
concepção de matéria, de movimento e de suas relações recíprocas foi diversa.
Consideremos, por exemplo, as seguintes definições de movimento, as da Antiguidade e as da época moderna. Para os
jônicos a principal propriedade do movimento da matéria consistia no modo em que começava a ser e deixava de ser. Os
atomistas davam destaque no desprendimento no vácuo das partículas de matéria.
Os materialistas burgueses baseavam sua concepção de mundo no simples movimento mecânico das
massas e seu impacto exterior; reduziam todos os modos de movimento a este. Por último, os materialistas
dialéticos definem o movimento de maneira muito mais complexa e correta; consideram-no o processo de
transformação universal no qual a matéria adquire as mais diversas qualidades do movimento, desde a do
movimento mecânico a do movimento mental. Qualquer um desses modos específicos de movimento pode converter-
se em outro, nas condições histórico-materiais adequadas. E, sem dúvida, existem importantes aspectos do movimento da
matéria que ainda não foram descobertos.
Igualmente diversas são as opiniões que surgiram nas sucessivas etapas do pensamento materialista sobre
a natureza da matéria e sua estrutura. Os gregos concebiam a substancia primaria (physis) composta de um ou
múltiplos elementos; Hobbes a concebia como corpo extenso; o conceito evolucionista moderno de matéria leva em conta
as infinitas determinações da existência material, desde as partículas subatômicas e os sistemas galácticos ate os seres
humanos que vivem, sentem e pensam.
Se passarmos da natureza à sociedade, teremos uma variação igualmente ampla nas perspectivas
históricas, nas concepções sociais e nos códigos morais das escolas materialistas. Ainda que as escolas antigas e
modernas se apoiavam numa concepção materialista do mundo e do lugar que o homem ocupa nele, a orientação social
dos epicuristas, por exemplo, era totalmente oposta a do marxismo. Os epicuristas predicavam a submissão à natureza,
o desapego dos problemas do mundo e da luta política, a pratica da contemplação. Predominava neles o passivo, o
restritivo, o pessimista. Contrario a esta filosofia da resignação, o materialismo dialético adota uma posição agressiva
frente à natureza, e exige sua alteração progressiva em função do bem-estar humano; e revolucionário na sua intervenção
nas questões sociais e políticas; coloca a atitude pratica acima da contemplação teórica. Sua atitude é enérgica,
expansiva, otimista e sempre construtiva.
As notáveis diferenças entre essas duas formas históricas do materialismo não se originam somente dos
distintos níveis de desenvolvimento social e cientifico e que surgiram e atuaram, mas também das distintas
forças de classe a que serviram. O epicurismo apareceu na transição da cidade-estado grega aos impérios alexandrino
e romano; expressava o protesto de elementos das classes altas e media pela desintegração da vida na comunidade antiga
e sua incapacidade para se estabelecer de maneira segura e estável nos novos regimes cosmopolitas. Os epicuristas
estavam suspensos entre dois mundos; um que morria e outro que os rechaçava. Em nenhum dos dois sistemas podiam
desempenhar um papel criativo.
O marxismo, pelo contrario, é o instrumento ideológico da classe operária industrial. Esta, ainda que também atada a
um sistema social em decadência, é depositaria e construtora de uma nova ordem social superior, e caminha para esta
transição imbuída de confiança social e compreensão teórica.
Esse exemplo específico demonstra que, ainda que o materialismo seja a mais correta e progressiva de todas as
filosofias, não esteve invariavelmente associado aos setores sociais mais avançados, como afirmam alguns comentaristas.
Não há uma correspondência simples, direta, mecânica entre as concepções do mundo e a dinâmica social. Uma vez
lançadas à existência, as idéias do materialismo puderam adaptar-se às necessidades das mais diversas forças sociais em
determinados momentos de seu desenvolvimento. O monarquista Hobbes e alguns dirigentes plebeus do Movimento dos
Niveladores predicavam idéias materialistas no mesmo período da revolução inglesa, no século XVII. Representavam duas
variantes sociais contemporâneas, porém, opostas, da mesma posição filosófica, uma era a aristocrática, a outra a
democrática.
Todas as escolas materialistas se desenvolveram em distintas direções. Num extremo, os materialistas gregos
(milésios) foram os primeiros a definir o conceito de natureza, mas não tocaram no problema do conhecimento. No
extremo oposto, os fundadores do marxismo analisaram a dinâmica da evolução social desde suas origens, mas não
puderam fazer o mesmo com as leis da natureza. Engels teve que deixar inconcluso o trabalho onde começa a se
aproximar brilhantemente do problema, a Dialética da Natureza.
O que uma escola não pôde analisar de maneira adequada foi apropriado e estudado exaustivamente por sua
sucessora. A unilateralidade de cada etapa teve que ser superada pelos avanços posteriores do pensamento cientifico e
filosófico, chegando assim à concepção atual, que abarca muitos aspectos e facetas.
Apesar dos inevitáveis erros, cada uma das grandes escolas deu a luz, a sua maneira e de acordo com sua época, a
novos aspectos do pensamento materialista. Cada uma contribuiu com elementos essenciais para a criação do todo,
aprofundando a compreensão da natureza, da sociedade, da mente humana, e das relações entre todos estes elementos.
Deste modo se penetra cada vez mais na realidade.
O reconhecimento de que o materialismo é incompatível com o idealismo não foi o menos importante
destes avanços. Nos primórdios da filosofia a oposição categórica entre estas duas posições não era evidente
em termos tão claros e contundentes como os expostos no começo desse capitulo. Esta clareza também é um triunfo
histórico, fruto de 2500 anos de investigação cientifica e social e de conflitos internos nos domínios da própria filosofia.
Porém, hoje, alguns confusonistas, interessados, às vezes inconscientemente, em perpetuar a confusão sobre as
verdadeiras relações entre materialismo e idealismo negam a necessidade de sustentar esta oposição. Esta atitude implica
em apagar os resultados de séculos de trabalho intelectual e retornar à infância da filosofia.

4
Os últimos pensadores gregos conheciam bem, e freqüentemente discutiam, as diferenças entre as opiniões e os
métodos do materialismo e do idealismo. Mas, as respectivas posições haviam de ser trabalhadas em detalhe. As
diferenças substanciais entre ambos, às vezes, se viam ocultas ou obscurecidas pela empresa comum de afirmar a
ofensiva do pensamento racional e critico contra as velhas idéias religiosas e os costumes institucionalizados.
Mas, o mais importante é que o materialismo necessitava da coexistência e do conflito com seu antagonista
idealista, e das contribuições deste, para adquirir consciência de suas próprias potencialidades e de sua
aplicação totalizadora. O idealismo fez muito mais que dar impulso ao materialismo criticando-o, desde fora.
Os avanços duradouros que alguns expoentes do idealismo, desde Sócrates até Hegel, realizaram em tal ou
qual setor da realidade foram incorporados posteriormente à estrutura do materialismo.
Nenhuma escola por si só monopolizou o descobrimento de novas idéias, especialmente nos períodos mais criativos da
filosofia. Ainda que os materialistas gregos captassem o essencial da realidade do mundo objetivo mais corretamente que
os idealistas, seus pontos de vista eram errôneos em outros aspectos. Por outra parte, quase todas as escolas idealistas,
como os eleatas, os céticos e os estóicos, agregaram algo novo e valioso à compreensão da realidade, em que pese seus
desacertos em questões fundamentais.
De conjunto, os idealistas contribuíram muito mais para a teoria do conhecimento do que para a da
natureza. Mas, inclusive, nesse último campo realizaram aportes notáveis. Os atomistas concebiam a princípio a natureza
como pequenas partículas que se movia no vácuo, cujas combinações e recombinações configuravam o transcorrer dos
acontecimentos. Os pitagóricos, por sua vez a descreviam como um conjunto de relações matemáticas e quantidades
mensuráveis. Ambas perspectivas eram válidas e valiosas. Mas, na sociedade antiga permaneceram diferenciadas, e os
caminhos distintos que tomaram as levaram e se desenvolverem separadamente, até o limite, suas respectivas posições.
Foi somente no início do século XVII, quando o avanço da mecânica coincidiu com o ressurgimento do atomismo
personificado por Galileu e Gassendi, estas duas aproximações dos fenômenos naturais, até então antagônicas, foram
unificadas numa síntese superior sob novas condições históricas. Seus respectivos ganhos floresceram finalmente na
hipótese atomista de Dalton, que revolucionou os fundamentos da química.
Uma unificação similar de linhas de pensamento até então desconectadas e opostas se deu no século XIX. Nessa etapa
do desenvolvimento da filosofia, os fundadores do marxismo separaram de sua casca idealista a lógica dialética formulada
e sistematizada pelo superidealista Hegel, e a integraram ao materialismo.
A oposição entre idealismo e materialismo, que já começava a se fazer notória entre os gregos, se manifestou de
maneira muito mais definitiva quando o materialismo passou novamente ao primeiro plano. Isso aconteceu com o
surgimento da sociedade burguesa. E adquiriu contornos definidos durante as lutas contra o medievalismo e com o avanço
das ciências durante os séculos XVI a XIX. O demonstra o fato de que desde de então se conhece esta corrente com o
nome de materialismo, o que a distingue inequivocamente de todas as suas rivais. A palavra materialismo começou a
difundir-se na época de Robert Boyle, o ilustre físico e químico inglês. Este menciona os “materialistas” junto com os
“naturalistas” num ensaio escrito em 1674 chamado Excelência e Fundamentos da Hipótese Mecânica. Ainda que Boyle
fosse um piedoso protestante, deu um grande impulso ao materialismo científico com sua exposição da concepção
mecânica da natureza.
O termo foi tomado pelo filósofo alemão Leibniz, em sua Resposta aos Pensamentos de (Pierre) Boyle, o
cético francês, escrito em 1702. Leibnitz, um conspícuo idealista, contrapôs conscientemente o materialismo
ao idealismo, considerando-os os principais adversários no terreno da filosofia. Assinalou a oposição que ocorre
nas ciências naturais, desde a época dos gregos, entre o pensamento de tipo mecânico e o seu próprio, e chegou a
conclusão que esta oposição se prenuncia nas doutrinas de Epicuro, o materialista, e Platão, o idealista.
O bispo Berkeley aprofundou a contradição no campo do idealismo. Logo o fez Kant, que se colocava numa
posição intermediária. Finalmente, a tarefa foi encarada pela crítica materialista ao idealismo conduzida por Diderot,
D’Holbach e seus colegas na segunda metade do século XVIII, continuada por Feurbach na Alemanha e concluída pelos
marxistas no século XIX.
(...).

Textos nº. 3 e 4
A LÓGICA FORMAL E A DIALÉTICA. A LÓGICA FORMAL
NOVACK, George. Introdução à Lógica Marxista. Editora José Luís e Rosa Sundermann, S.P., 2006. Págs. 21 a 32.

Primeira palestra - A LÓGICA FORMAL E A DIALÉTICA

Estas palestras versam sobre as idéias do materialismo dialético, a lógica do marxismo.


Já lhes ocorreu pensar que tarefa fantástica é esta? Temos aqui reunidos membros e simpatizantes de um partido
político revolucionário perseguido pelo governo, no fragor da Segunda Guerra Mundial, a maior guerra da história. Estes
operários, estes revolucionários profissionais se reuniram não para discutir e decidir sobre assuntos relacionados com a
ação imediata, mas com o propósito de estudar uma ciência que parece tão alheia da luta política diária como a
matemática superior.
Que contraste com a caricatura maliciosa do movimento marxista deliberadamente pintada pelos capitalistas! As
classes possuidoras descrevem os socialistas revolucionários como indivíduos enlouquecidos que se enganam a si mesmos
e aos demais com fantásticas visões de um mundo dirigido pelos trabalhadores. Os dirigentes capitalistas são como
crianças que não podem conceber um mundo no qual eles não existam e no qual não sejam figuras centrais.
Eles declaram estar guiados pela lógica e pela razão. Hoje em dia basta dar uma olhada pelo mundo para determinar
quem é irracional e quem é sadio, se os capitalistas ou seus oponentes revolucionários. Os atuais donos da sociedade
perderam o rumo e estão se comportando como dementes. Pela segunda vez em um quarto de século afundaram o mundo

5
no assassinato coletivo, colocaram a corda no pescoço da civilização e ameaçam destruir o resto da humanidade. E os
porta-vozes desses desequilibrados pretendem nos chamar de "loucos" e à nossa luta pelo socialismo de "irrealidade"!
Não; a coisa é ao contrário. Ao lutar contra o caos enlouquecido do capitalismo e por um sistema socialista livre de
exploração e opressão de classes, guerras, crise, escravidão imperialista e barbárie, nós, os marxistas, somos os
indivíduos mais razoáveis que existem. É por isso que, diferente de outros grupos políticos e sociais, nós tomamos a
ciência da lógica tão a sério. Nossa lógica é o instrumento indispensável para prosseguir na luta contra o capitalismo e pelo
socialismo.
A lógica da dialética materialista é sem dúvida muito diferente da lógica predominante no mundo burguês.
Nos propomos a provar que nosso método, como nossas idéias, é mais científico, muito mais prático e também muito mais
"lógico" que qualquer outra lógica. Nós sustentamos, com maior compreensão e alcance, o princípio fundamental da
ciência de que existe uma lógica interna das relações em toda realidade e que as leis desta lógica podem ser conhecidas e
transmitidas. O mundo social que nos cerca não faz sentido só para aqueles que o analisam superficialmente. Existe um
método ainda na loucura da classe capitalista. Nossa tarefa é descobrir quais são as leis mais gerais dessa lógica interna
da natureza, da sociedade e da mente humana. Enquanto os burgueses perdem suas cabeças, nós cuidaremos para
melhorar e clarear as nossas.
Temos excelentes precedentes para nos guiar nesta jornada. Durante o início da Primeira Guerra Mundial, Lênin,
exilado em Berna, Suíça, resumiu seu estudo sobre a lógica hegeliana simultaneamente com o desenvolvimento do
programa bolchevique de luta contra a guerra imperialista. As conseqüências deste trabalho teórico se encontram em
todos os seus escritos, idéias e atuações posteriores. Lênin se preparou e preparou seu Partido para os eventos
revolucionários vindouros estudando a fundo a dialética.
Nos primeiros meses da Segunda Guerra Mundial, enquanto concluía a luta contra a oposição pequeno-burguesa no
S.W.P., Trotski insistiu sempre sobre a crucial importância do método dialético para a política socialista revolucionária. Seu
livro Em Defesa do Marxismo gira em torno deste eixo teórico.
Nesta, como em todas as nossas atividades, nos guiamos pelos líderes do socialismo científico que ensinaram a verdade
dialética de que não há nada mais prático em política proletária que o correto método de pensamento. Esse método só
pode ser o da dialética materialista, que vamos estudar.

1. Definição preliminar de lógica


A lógica é uma ciência. Toda ciência estuda um tipo particular de proposição em conexão com outros tipos de
proposições concretas, e trata de descobrir as leis gerais e as formas específicas dessa relação. A lógica é a ciência dos
processos do pensamento. Os lógicos investigam o processo de pensamento que se produz nas mentes humanas e
formulam as leis, formas e interrelações desses processos mentais.
Dois tipos principais surgiram das grandes etapas do desenvolvimento da ciência lógica: a lógica formal e a lógica
dialética. Estas são as formas mais altamente desenvolvidas de proposições intelectuais. Tem como função a
compreensão consciente de todo tipo de proposição, incluindo-se a elas mesmas.
Mesmo que a princípio estejamos interessados na dialética materialista, não consideraremos diretamente o método
dialético de raciocínio. Nos aproximaremos da dialética indiretamente, examinando primeiro as idéias fundamentais de
outra forma de raciocínio: o método lógico formal. Como sistema de pensamento, a lógica formal é o pólo oposto da
dialética materialista.
Então, por que começamos nosso estudo do método dialético estudando seu oposto dentro da ciência lógica?

2. O desenvolvimento da lógica
Existem excelentes razões que avalizam este procedimento. Antes de tudo, no curso do desenvolvimento histórico a
dialética surgiu da lógica formal. Esta foi o primeiro grande sistema de conhecimento científico do processo do
pensamento, a consumação do trabalho filosófico dos antigos gregos, o ápice que coroou o pensamento grego. Os
primeiros pensadores gregos fizeram importantes descobertas acerca da natureza do processo de pensamento e seus
produtos. Quem o sintetizou foi Aristóteles, que recompilou, classificou e sistematizou esses resultados positivos das
investigações acerca do pensamento e criou assim a lógica formal. Euclides fez o mesmo com a geometria elementar,
Arquimedes com a mecânica, Ptolomeu de Alexandria com a astronomia e geografia, Galeno com a anatomia.
A lógica aristotélica manteve seu predomínio soberano no reino do pensamento durante dois mil anos. Não
teve rival até que foi desafiada, derrotada e afastada pela dialética, o segundo grande sistema da ciência lógica. A dialética
é o produto de um movimento científico revolucionário que engloba séculos de trabalho intelectual. É a consumação do
trabalho intelectual dos mais destacados filósofos da revolução democrático-burguesa da Europa Ocidental desde o século
XVI ao XIX. Hegel, o titã da escola burguesa alemã revolucionária de filosofia idealista, foi a cabeça pensante que
transformou a ciência lógica ao ser o primeiro, como assinalou Marx, em "expor as formas gerais de funcionamento (da
dialética) em uma forma ampla e totalmente consciente".
No campo da lógica Marx e Engels foram discípulos de Hegel. Por sua vez efetuaram uma revolução dentro
da revolução hegeliana da ciência lógica ao expurgar sua dialética de elementos místicos e assentá-la sobre
bases materiais concretas.
Portanto, se nos aproximarmos da dialética materialista através da lógica formal, estaremos recriando os passos do
desenvolvimento histórico da ciência lógica, que seguiu justamente este caminho.
Seria errôneo deduzir deste breve panorama da história da lógica que os gregos não sabiam nada de dialético ou que
Hegel e Marx renegaram totalmente as idéias da lógica formal. Como ressaltou Engels: "Os filósofos da Grécia antiga
foram todos dialéticos por natureza e Aristóteles, o intelecto mais enciclopédico dentre eles, já havia analisado as formas
mais essenciais do pensamento dialético". Apesar disso, a dialética permaneceu como elemento embrionário no
pensamento grego. Os filósofos gregos não tiveram êxito, ou melhor, não poderiam tê-lo ao desenvolver seus
conhecimentos confusos e dar-lhes forma científica sistemática. Deixaram à posteridade em forma acabada a lógica formal

6
aristotélica. Ao mesmo tempo suas observações dialéticas, suas criticas ao pensamento formal e seus paradoxos
colocaram pela primeira vez os problemas e as limitações da lógica formal, com as quais lutou a ciência lógica nos séculos
subseqüentes e que seriam resolvidos pelos dialéticos hegelianos e a seguir pelos marxistas.
Estes dialéticos modernos não consideram inútil a lógica formal. Pelo contrário; afirmam que a lógica
formal não só foi um método de pensamento histórico necessário, mas também indispensável, ainda agora,
para um pensar correto. Mas em si mesma a lógica formal era claramente deficiente. Seus elementos válidos se
converteram em parte constitutiva da dialética. A relação entre lógica formal e dialética se inverteu. Assim como entre os
filósofos clássicos gregos predominavam os aspectos formais e tinham menos importância os dialéticos, na escola moderna
a dialética ocupa a primeira fila e o lado puramente formal da lógica se subordina a ela.
Como estes dois tipos opostos de pensamento têm tantos pontos em comum e a lógica formal entra como material
estrutural na formação da lógica dialética seria útil que nos ocupássemos primeiro da lógica formal. Ao estudar a lógica
formal nos encontramos já a caminho da dialética. Apresentando as omissões ou limitações da lógica formal, nos
encontraremos concretamente na fronteira que separa a lógica formal da dialética. Hegel expressou a mesma idéia em sua
Lógica assim: "No limite é próprio ser uma contradição que ultrapassa a si mesma".
Deste procedimento podemos finalmente derivar uma importante lição sobre o pensamento dialético. Hegel assinalou
uma vez que nada se conhece realmente até que se conheça seu oposto. Não podemos, por exemplo, conhecer realmente
a natureza de um assalariado até que conheçamos o que é o seu oposto socioeconômico, o capitalista. Não podemos saber
o que é o trotskismo até ter mergulhado no mais profundo da essência de sua antítese política, o estalinismo. Da mesma
forma não podemos aprender a natureza da dialética sem primeiro compreender a fundo sua predecessora histórica e
antítese teórica, a lógica formal.

3. As três leis básicas da lógica formal


Existem três leis básicas da lógica formal. A primeira e mais importante é a lei da identidade. Pode ser formulada
de várias maneiras. Assim: uma coisa é sempre igual ou idêntica a si mesma. Em termos algébricos: A é igual a A.
A formulação particular desta lei é secundária em relação à idéia que envolve. O conteúdo essencial da identidade
formal "uma coisa é sempre igual a si mesma" é equivalente a assegurar que sob qualquer condição permanece única e a
mesma. Uma determinada coisa existe absolutamente para todo momento. Como costumam dizer os físicos: "a matéria
não pode ser criada nem destruída", ou seja, a matéria segue sempre sendo matéria.
Esta afirmação incondicional da absoluta identidade de uma coisa consigo mesma exclui as diferenças dentro da
essência das coisas ou do pensamento. Se uma coisa é sempre e sob qualquer condição igual ou idêntica a si mesma, não
pode ser nunca desigual ou diferente de si mesma. Esta conclusão deriva lógica e inevitavelmente da lei da identidade. Se
A é sempre igual a A, nunca será igual a não-A.
Esta conclusão é explicitada na segunda lei da lógica formal: a lei da contradição, que diz: A não é não-A. Esta
não é mais que a formulação negativa da afirmação expressada na primeira lei da lógica formal. Se A é A surge, de acordo
com o pensamento formal, que A não pode ser não-A. Assim, a segunda lei da lógica formal, a lei da contradição, constitui
o complemento essencial da primeira lei.
Alguns exemplos: um homem não pode ser inumano; uma democracia não pode ser não-democrática; um
assalariado não pode ser um não-assalariado. A lei da contradição significa a exclusão da diferença na essência das
coisas e no pensamento. Se A é sempre necessariamente idêntico a si mesmo, não pode ser diferente de si mesmo.
Diferença e identidade são, de acordo com essas duas regras lógicas, características completamente distintas,
absolutamente desconectadas e mutuamente excludentes, das coisas e do pensamento.
Esta qualidade de exclusão mútua das coisas está expressamente indicada na terceira lei da lógica formal, a lei do
terceiro excluído. De acordo com ela as coisas são e devem ser uma de duas mutuamente excludentes. Se A é
igual a A, não pode ser igual a não-A. A não pode ser parte de duas classes opostas ao mesmo tempo. Cada vez
que duas proposições ou estado de coisas opostos se enfrentam, não podem ser ambos corretos ou falsos. A é B ou não é
B,. A certeza de um juízo implica invariavelmente na incorreção de seu contrário e vice-versa. A terceira é uma
combinação das duas leis anteriores e surge logicamente delas.
Estas são as bases da lógica formal. Todo raciocínio formal funciona de acordo com estas proposições. Durante dois mil
anos foram os inquestionados axiomas do sistema aristotélico de pensamento, tal como a lei de troca de valores
equivalentes é a base da sociedade de produção de mercadorias.
Permitam-me citar um exemplo interessante deste tipo de pensamento, tomado dos escritos de Aristóteles. Em suas
Análises Posteriores diz que um homem não pode aprender primeiro que o homem é essencialmente animal - ou seja, que
não pode ser outra coisa que animal - e a seguir que não é essencialmente animal, assumir que é diferente de animal. É
dizer que um homem é essencialmente um homem e nunca pode ser ou ser pensado como um não-homem.
Assim deve ser de acordo com os princípios das leis da lógica formal. Mas isto contradiz os fatos. A teoria da evolução
ensina que o homem é essencialmente animal e não pode ser outra coisa que não animal. Falando logicamente, o homem
é um animal. Mas também sabemos da teoria da evolução social, que é uma continuação e aprimoramento da evolução
puramente animal, que o homem é mais e é outra coisa além de animal. Ou seja, que não é essencialmente animal, mas
homem, que é um ser bastante diferente dos outros animais. Somos e sabemos que somos duas coisas diferentes e
mutuamente excludentes ao mesmo tempo, ainda que pese Aristóteles e a lógica formal.

4. Conteúdo concreto e realidade objetiva dessas leis


Através destes exemplos vemos que rápida e espontaneamente surge o caráter dialético das coisas e do pensamento,
ao fazer uma consideração critica da lógica formal. Apesar de minhas boas intenções de restringir o enfoque à lógica
formal, perceberão que fui forçado a saltar seus limites no momento que quis chegar à verdade das coisas. Agora
voltemos ao campo da lógica formal.

7
Já esclareci antes que os modernos dialéticos não negam toda verdade às leis da lógica formal. Semelhante atitude
seria contrária ao espírito da dialética que vê algum elemento de verdade em todas as afirmações. Ao mesmo tempo a
dialética nos permite detectar as limitações e erros do pensamento formal sobre as coisas.
As leis da lógica formal contêm importantes e inegáveis elementos de verdade. São generalizações
razoáveis e não idéias puramente arbitrárias tiradas do nada. Não foram impostas ao pensamento e ao mundo real
por Aristóteles e seus seguidores e logo imitadas servilmente por milhares de anos. Milhões de pessoas que nunca ouviram
falar de Aristóteles ou de lógica tem pensado e seguem fazendo-o de acordo com as leis que formulamos. Da mesma
forma todos os corpos caem mais ou menos de acordo com as leis de movimento de Newton mesmo quando, exceto os
corpos humanos, são incapazes de compreender as teorias. Por que as pessoas pensam e as coisas atuam no mundo de
acordo com as generalizações teóricas de Aristóteles e Newton? Porque a essência natural da realidade os leva a pensar ou
atuar dessa forma. As leis de pensamento de Aristóteles tem tanto conteúdo concreto e tanta base no mundo real como as
leis do movimento mecânico de Newton. “... nossos métodos de pensamento, ambos, a lógica formal e a dialética, não são
construções arbitrárias de nossa razão, mas simplesmente expressões de interrelações reais na própria natureza."
(Trotski, Em defesa do Marxismo).
Quais características da realidade concreta se refletem e reproduzem conceitualmente nestas leis formais de
pensamento?
A lei da identidade formula o fato concreto de que determinadas coisas e alguns de seus traços persistem e
mantêm reconhecível similaridade em meio a suas mudanças. Sempre que existe uma continuidade essencial
na realidade, a lei da identidade é aplicável.
Não podemos atuar nem pensar corretamente sem obedecer, consciente ou inconscientemente, esta lei. Se não
pudéssemos reconhecer a nós mesmos momento a momento e dia a dia - e tem gente que não pode, já que por amnésia
ou outro distúrbio mental perdeu a consciência da própria identidade - estaríamos perdidos. Mas a lei da identidade não é
menos válida para o resto do universo que para a consciência humana. Aplica-se todos os dias e em todas as partes da
vida diária. Se não pudéssemos reconhecer a peça de metal através de todas as transformações que sofre, não iríamos
muito longe na produção. Se o agricultor não pudesse acompanhar o cereal que planta de semente a espiga e logo a
farinha, a agricultura seria impossível.
O bebê dá um grande passo na compreensão do mundo quando se dá conta do fato de que a mãe que o amamenta
segue sendo a mesma através dos distintos momentos. O reconhecimento dessa verdade não é mais que uma instância
particular do reconhecimento da lei da identidade.
Se não pudéssemos dizer o que tem sido um estado operário através de todas as suas mudanças, facilmente
erraríamos na compreensão das complicadas circunstâncias da luta de classes contemporânea. Concretamente, os
opositores pequeno-burgueses se equivocaram a respeito da questão russa, não só porque se opuseram à dialética, mas
especialmente porque não puderam aplicar corretamente a lei de identidade ao processo de desenvolvimento da União
Soviética. Não puderam entender que apesar de todas as mudanças ocorridas na URSS por sua degeneração sob o
estalinismo, a União Soviética manteve os fundamentos sócio-econômicos do estado operário criado pelos operários e
camponeses russos na Revolução de Outubro.
A correta classificação, partindo da comparação de similaridades e diferenças, é a base e o primeiro passo
de toda investigação científica. A classificação - a inclusão de algumas coisas em uma mesma classe, a
exclusão de outras e sua reunião em classes diferentes - seria impossível sem a lei da identidade. A teoria de
Darwin da evolução orgânica se originou e depende do reconhecimento da identidade essencial de todas as
diversas criaturas que povoam a Terra. A lei de Newton do movimento mecânico generalizou em um só todos os
movimentos dos corpos, desde a queda de uma pedra até a rotação dos planetas no sistema solar. Toda ciência, tomada
como processo do intelecto, repousa em parte sobre essa lei da identidade.
A lei da identidade nos leva a reconhecer o igual na diversidade, a permanência nas mudanças, a separar as
similaridades básicas entre instâncias e entidades separadas e aparentemente diferentes, a descobrir os laços que na
realidade as unem, a traçar as conexões entre fases diferentes e consecutivas do mesmo fenômeno. É por isso que a
descoberta e ampliação desta lei fizeram época na história do pensamento científico e continuamos a honrar Aristóteles
por haver compreendido seu extraordinário significado. E por isso também que a humanidade continua atuando e
pensando de acordo com esta lei básica da lógica formal.
Vocês poderiam perguntar o que tem de notável esta lei da identidade, se não diz mais que o fato óbvio de que "uma
coisa é uma coisa" ou "isto é isto".
Esta lei, sem dúvida, não é auto-evidente, nem tão trivial como pode parecer a primeira vista. É muito importante que
seja devidamente apreciado e entendido o significado histórico da descoberta desta lei transcendental
Houve um grande avanço no conhecimento do universo quando a humanidade descobriu que as nuvens, o vapor, a
chuva e o gelo eram todos água; ou que o céu e a terra - concebidos até então como substâncias diferentes e opostas -
eram realmente o mesmo. A descoberta de que todos os seres viventes, desde os organismos unicelulares ao ser humano,
têm a mesma formação, revolucionou a biologia. A física se comoveu com a demonstração de que todo movimento
mecânico podia ser convertido em outro e portanto eram todos essencialmente idênticos.
Não significa um grande passo adiante na compreensão social e política de um trabalhador descobrir que, por um lado,
um assalariado é um assalariado e, por outro, um capitalista é um capitalista e que os trabalhadores têm em qualquer
parte interesses de classe comuns que transcendem qualquer limite sindical, nacional e racial? Por isso dizemos que o
reconhecimento da verdade contida na lei da identidade é condição necessária para chegar a ser um socialista
revolucionário.
Sem dúvida, obedecer a uma lei e usá-la é muito diferente de entendê-la e formula-la de maneira científica, Todo
mundo come de acordo com leis fisiológicas determinadas, mas não se sabe como são e operam as leis da digestão. Todo
mundo pensa, mas nem todo mundo sabe que leis regulam sua atividade pensante. Um dos méritos adicionais de
Aristóteles foi tomar explícita e em termos lógicos a lei da identidade que usa nosso processo de pensamento.

8
A lei da contradição formula o fato concreto de que coisas e tipos de coisas coexistentes, ou estados
consecutivos da mesma coisa, diferem e se excluem mutuamente. Obviamente eu não sou igual a você, mas
bastante diferente. Tão pouco sou a mesma pessoa de ontem, sou diferente. A União Soviética não é o mesmo que
outros estados e é hoje diferente do que era há vinte anos.
A lei formal de contradição ou discernimento da diferença é tão necessária para classificar corretamente como a lei da
identidade. Na realidade se não existissem diferenças não seria necessária uma classificação, da mesma forma que sem
identidade não haveria possibilidade de classificação.
A lei do terceiro excluído expressa que as coisas se opõem e excluem mutuamente na realidade. Eu devo
ser eu ou algum outro, hoje posso ser o mesmo ou diferente do que era ontem. A União Soviética tem que ser
o mesmo ou algo diferente dos demais estados; não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Eu devo ser
homem ou animal; não posso ser as duas coisas ao mesmo tempo e no mesmo sentido.
Vemos, em conclusão, que as leis da lógica formal expressam traços significativos do mundo real. Têm conteúdo
concreto e base objetiva. São ao mesmo tempo leis do pensamento, da sociedade e da natureza. Esta raiz tripla lhes dá
um caráter universal.
As três leis nas quais nos centramos não constituem toda a lógica formal, mas são simplesmente seus alicerces. Sobre
esta base se levantou uma complexa estrutura de ciência lógica que examina com detalhes os elementos e mecanismos da
forma de pensamento. Mas não iremos discutir as diversas categorias, formas de proposição, juízos, silogismos, etc., que
constituem o corpo da lógica formal. Pode-se encontra-los em qualquer livro texto de lógica elementar e não servem para
nosso propósito atual. Queremos entender principalmente as idéias elementares da lógica formal e não seu
desenvolvimento detalhado.

5. Lógica formal e bom senso


Em círculos intelectuais burgueses se tem em grande estima ao bom senso como método de pensamento e guia de
ação. Só a ciência colocam mais alto na escala de valores. É em nome da ciência e do bom senso, por exemplo, que Max
Eastman chama os marxistas a descartar a "metafísica" e "mística" dialética. Lamentavelmente os ideólogos burgueses e
pequeno-burgueses nos informam pouco sobre o conteúdo lógico do bom senso e a relação que existe entre o bom senso
e sua "ciência".
Aqui teremos que fazer este trabalho por eles, porque na realidade os anti-dialéticos não só não sabem o que é a
dialética; tampouco sabem o que é a lógica formal. Não é de estranhar. Por acaso os capitalistas sabem o que é o
capitalismo, quais são suas leis, como operam essas leis? Se assim fosse não seriam surpreendidos por suas crises e
guerras, nem confiariam tanto na permanência de seu sistema. Seguramente os estalinistas não sabem realmente o que é
o estalinismo e ao que leva realmente. Se soubessem já estariam a caminho de deixar de ser estalinistas.
Até onde o bom senso tem características lógicas, sistemáticas, elas estão modeladas sobre as leis da
lógica formal. Poderíamos defini-lo como uma versão não sistematizada ou semiconsciente da lógica formal.
Suas idéias e métodos têm sido utilizados durante tantos séculos e estão tão entrelaçados com nosso processo de
pensamento e com a construção de nossa civilização que a maioria das pessoas crê que é o modo de pensar único, natural
e normal. As concepções e mecanismos da lógica formal - como os silogismos - são ferramentas de pensamento tão
familiares e universais como os talheres.
Vocês saberão que os burgueses crêem que a sociedade capitalista é eterna porque - dizem - está de acordo com a
invariável natureza humana. O socialismo, dizem, é impossível ou inconcebível porque os seres humanos sempre se
dividem em classes opostas, rico e pobre, forte e fraco, dirigente e dirigido, possuidor e despossuído, e estas classes
sempre lutarão até à morte pelas coisas boas da vida. Um tipo de organização social sem classes, em que reine a
planificação e não anarquia, em que o débil seja protegido pelo forte, em que exista a solidariedade em vez da luta
selvagem, lhes parece o cúmulo do absurdo. Descartam tais idéias socialistas considerando-as fantasias utópicas, vagos
desejos.
Agora sabemos que o socialismo não é um sonho, mas uma necessidade histórica, o próximo e inevitável passo na
evolução social. Sabemos que o capitalismo não é eterno e sim uma forma particular de produção que foi precedida por
outras menos evoluídas e está destinada a ser substituída por uma forma de produção superior: a socialista.
Consideremos agora a ciência do pensamento desde o mesmo ponto de vista que consideramos a ciência social. Os
pensadores burgueses e pequeno-burgueses crêem que o pensamento formal é a forma acabada da lógica, última e
imutável. Consideram ridícula a afirmação que o materialismo dialético é uma forma superior de pensamento.
Lembram de quando alguém lhes questionou pela primeira vez a permanência do capitalismo ou lhes falou da urgente
necessidade do socialismo e se sentiram inclinados a duvidar dessas novas Idéias revolucionárias? Por que? Porque suas
mentes estavam ainda subordinadas às idéias dominantes de nossa época que, como disse Marx, são as idéias da classe
dominante. As idéias dominantes da classe dominante sobre ciência lógica são hoje as idéias da lógica formal rebaixadas
ao nível do bom senso. Todos os opositores e críticos da dialética se situam no terreno da lógica formal, sejam ou não
conscientes de sua posição ou ainda que não o admitam publicamente.
As idéias da lógica formal constituem na realidade o mais forte dos prejuízos lógicos de nossa sociedade.
Mesmo depois que os indivíduos tenham deixado de lado sua fé no capitalismo e se tenham convertido em socialistas,
revolucionários, não poderão tirar completamente de suas mentes os hábitos de pensamento formal que absorveram na
vida burguesa e que continuam recebendo de seu meio ambiente. Se não é extremamente cuidadoso e consciente em seu
pensar, o dialético mais capaz pode recair, às vezes, em formalismo.
Assim como negam a realidade eterna do capitalismo, os marxistas negam igualmente a validade eterna
das formas de pensamento mais características das sociedades de classe como o capitalismo. O pensamento
humano mudou e evoluiu com a sociedade humana e no mesmo grau que esta. As leis do pensamento não são
mais eternas que as leis sociais. Assim como o capitalismo é só um escalão da cadeia de formas históricas de
organização social da produção, também a lógica formal é simplesmente um escalão na cadeia de formas histórica, de

9
produção intelectual. Assim como as forças do socialismo estão lutando para substituir a forma capitalista obsoleta de
produção social por um sistema mais evoluído, também os partidários do materialismo dialético, a lógica do socialismo
cientifico, estão lutando contra a desgastada lógica formal. A batalha teórica e a batalha política prática são parte do
mesmo processo revolucionário.
Antes do surgimento da moderna astronomia, as pessoas acreditavam que o Sol e os planetas giravam em torno da
Terra. Eles confiavam cegamente na evidência do "bom senso" que se apresentava perante seus olhos. Aristóteles ensinou
que a Terra era fixa e que em torno dela giravam perfeitas e invariáveis esferas celestes. Este ano celebra-se o 400º
aniversário da publicação do livro de Copérnico Sobre as Revoluções dos Corpos Celestes que revolucionou a concepção
predominante de universo estático com a Terra em seu centro.
Galileu demonstrou um século depois que a teoria de Copérnico de que a Terra e os outros planetas giram
ao redor do Sol estava certa. Os sábios professores do tempo de Galileu ridicularizaram suas idéias e lhes
deram as costas. Galileu se queixou dizendo "Se eu quisesse mostrar os satélites de Júpiter aos professores
de Florença, eles não veriam nem os satélites nem o telescópio." Os professores invocaram a tradicional autoridade
de Aristóteles e finalmente o poder do Index da Inquisição para forçar a Galileu a mudar suas opiniões. Estes servos da
autoridade oficial silenciaram os argumentos, proibiram os livros, semearam o terror e ainda mataram seus opositores
científicos porque suas ideais eram revolucionárias, ameaçavam as concepções da ordem dominante e portanto o poder da
classe dominante.
O mesmo ocorre com a dialética, particularmente com o materialismo dialético. As idéias e o método da dialética são
ainda mais revolucionários na ciência lógica do quê o foram as de Copérnico em astronomia. Um pôs o céu de pernas para
o ar. A outra, tomada pela única classe progressiva da sociedade moderna, ajudará a por de pernas para o ar a sociedade
capitalista. É por isso que suas idéias são combatidas com tanta força pelos adeptos da lógica formal e os apóstolos do
bom senso. Sob o capitalismo a dialética não é hoje bom senso ou senso comum, mas "incomum". Só a entende e
emprega conscientemente a vanguarda socialista da humanidade. Amanhã, com a revolução socialista, a dialética se
converterá em "senso comum" enquanto que a lógica formal ocupará seu próprio e subordinado lugar como auxiliar do
pensamento, em vez de atuar, como agora, dominando o pensamento, desencaminhando-o e obstruindo seu avanço.

Texto nº. 5
AS LIMITAÇÕES DA LÓGICA FORMAL
NOVACK, George. Introdução à Lógica Marxista. Ed. José Luís e Rosa Sundermann, S. P., 2006. Págs. 33 a 38.

Segunda Palestra - AS LIMITAÇÕES DA LÓGICA FORMAL

Na primeira palestra procuramos responder três perguntas:


1. Que é a lógica? Definimos a lógica como a ciência do processo do pensamento em suas conexões com todos
os demais processos do universo. Aprendemos que há dois sistemas principais de lógica: a formal e a dialética.
2. Que é a lógica formal? Vimos que a lógica formal é o processo de pensamento dominado pelas leis da
identidade, da contradição e do terceiro excluído. Assinalamos que estas três leis fundamentais da lógica formal têm um
conteúdo concreto e bases objetivas; que são formulações explícitas da lógica instintiva do bom senso; que constituem as
regras predominantes de pensamento no mundo burguês.
3. Quais são as relações entre lógica formal e dialética? Estes dois sistemas de pensamento cresceram e correspondem
a dois estágios diferentes do desenvolvimento da ciência do pensamento. A lógica formal precedeu à dialética na evolução
histórica, assim como geralmente o faz o desenvolvimento intelectual do indivíduo. Por ele a dialética nasceu da critica à
lógica formal, a venceu e a substituiu como opositora revolucionária, sucessora e superior.
Nesta segunda palestra nos propomos a discutir as limitações da lógica formal e indicar como a dialética surge
necessariamente de um exame crítico de suas idéias fundamentais. Agora que compreendemos quais são as leis básicas
da lógica formal, o que refletem na realidade, por que são necessários e valiosos instrumentos de pensamento, devemos ir
um passo adiante e encontrar o que as leis da lógica formal não são: quais traços da realidade não abrangem ou distorcem
e onde termina sua utilidade.
Este próximo passo em nossa investigação não produzirá resultados puramente negativos nem culminará em uma
negação cética de toda lógica. Pelo contrário, nos levará aos resultados mais positivos. Ao expor as deficiências da lógica
formal, simultaneamente aparecerá a necessidade e as principais características das novas idéias lógicas destinadas a
substituí-Ia. No mesmo processo de dissecação da lógica elementar e de separação de seus elementos válidos dos falsos,
estaremos firmando as bases da lógica dialética. Os atos de crítica e criação, negação e afirmação, irão de mãos dadas
com as duas faces do mesmo processo.
Este movimento duplo de destruição e criação ocorre não só na evolução da lógica, mas em todos os processos. Todo
salto adiante, todo ato criativo, envolve a destruição de condições superadas e intoleravelmente restritas. Para nascer, o
pinto deve quebrar a casca do ovo que o protegeu e nutriu em sua etapa embrionária. Assim também, para conseguir um
desenvolvimento posterior mais livre, a ciência lógica teve que romper, atravessar a casca petrificada da lógica formal.
A lógica formal parte da proposição de que A é sempre igual a A. Sabemos que esta lei de identidade é
parcialmente verdadeira, uma vez que serve como ferramenta indispensável em todo pensamento científico e
todos nós o usamos em nossa atividade diária. Mas, até onde é certa esta lei? É sempre um guia de total confiança
para atravessar o complicado processo da realidade? A isso devemos responder.
A verdade ou falsidade de uma proposição será provada na realidade objetiva e vendo na prática se é, e em
que grau, o conteúdo concreto da proposição fica exemplificado. Se o conteúdo da afirmação pode ser provado na
realidade, então a proposição é certa; senão é falsa.

10
Agora, que encontramos quando vamos à realidade e buscamos evidências da verdade da proposição: A é igual a A?
Descobrimos que nada na realidade corresponde exatamente ao conteúdo desta proposição. Encontramos, pelo contrário,
que está muito mais próximo da verdade o oposto deste axioma.
Onde quer que tropecemos com uma coisa realmente existente e examinemos seu caráter, encontraremos
que A nunca é igual a A. Trotski disse: "... se observarmos estas duas letras com uma lupa, são bastante diferentes uma
da outra. Pode-se objetar que a questão não é o tamanho ou forma da letra, se são símbolos de iguais quantidades, por
exemplo, um quilo de açúcar. A objeção não vem ao caso: na realidade um quilo de açúcar nunca é igual a outro quilo de
açúcar, uma balança mais precisa sempre mostra alguma diferença. Novamente pode-se objetar: mas um quilo de açúcar
é igual a si mesmo. Tão pouco isto é verdade, todos os corpos mudam constantemente de tamanho, peso, cor, etc.. Nunca
são iguais a si mesmos. Um sofista contestaria que um quilo de açúcar é igual a si mesmo “em um dado momento.
Além de seu duvidoso valor prático, este “axioma” tampouco suporta a crítica teórica. Como conceber
realmente a palavra momento? Se é um intervalo infinitesimal de tempo, um quilo de açúcar está sujeito no curso desse
“momento” a inevitáveis mudanças. Ou é o “momento” uma mera abstração matemática, ou seja, um zero de tempo? Mas
tudo existe no tempo... Em conseqüência, o tempo é uma condição fundamental da existência. Portanto o axioma “A é
igual a A” significa que uma coisa é igual a si mesma se não muda, ou seja se não existe." (Em Defesa do Marxismo).
Assim encurralados, alguns defensores da lógica formal tratam de sair do aperto aceitando que suas leis nunca podem
se aplicar com absoluta exatidão a nenhum objeto real, mas que isso não anula o valor destes princípios reguladores.
Apesar de que não correspondem direta e totalmente à realidade, estas generalizações ideais são verdades "em si
mesmas" sem referencia à realidade e, portanto, servem para dirigir o pensamento até as linhas corretas. Esta posição
não elimina a contradição, mas a acentua. Se, como pretendem, a lei da identidade se mantém totalmente válida só
enquanto não se a aplica, se conclui que no momento em se a aplica a um objeto real se converte em forte erro.
Como observa Trotski: "O axioma A é igual a A aparece por um lado como o ponto de partida de todo o nosso
conhecimento é, por outro, como o ponto de partida de todos os seus erros". (Em Defesa do Marxismo) Como pode ser de
uma só vez a fonte de conhecimento e de erro? Esta contradição sé explica pelo fato de que a lei da identidade tem duas
faces. É, em si, verdadeira e falsa. Julga corretamente as coisas enquanto estas podem ser consideradas fixas e imutáveis,
ou enquanto a quantidade de mudança nelas possa ser descartada ou considerada nula. Ou seja: a lei da identidade dá
resultados certos só dentro de certos limites. Estes limites estão dados por um lado pelas características essenciais que
mostra o desenvolvimento concreto do objeto em questão e por outro pelo propósito que tenhamos em vista.
Quando forem transgredidos estes limites específicos, a lei da identidade já não é suficiente e se converte em fonte de
erro. Quanto mais distante desses limites tenha ido o processo ou evolução, tanto mais distante da verdade nos leva a lei
da identidade. Deve se chamar e usar então outras leis para corrigir os erros emanados desta lei rudimentar e fazer frente
ao novo e mais complexo estado de coisas.
Vejamos alguns exemplos. De Albany a Nova Iorque, o rio Hudson é claramente igual a si mesmo e diferente de outro
curso de água. A é sempre igual a A. Mas, mais além desses limites fica cada vez mais difícil distinguir o rio Hudson de
outros. Na sua desembocadura depois do porto de Nova Iorque, o Hudson perde sua identidade e se toma cada vez mais
um só com o Oceano Atlântico. Em sua nascente o Hudson se desintegra em diferentes riachos que, ainda que venham a
formar o Hudson, têm cada um sua própria identidade e existência independente, diferente do rio em si. Nos dois
extremos de seu curso, portanto, a identidade do Hudson tende a desaparecer e a converter-se em não-identidade.
Tomemos o exemplo do dólar citado por Trotski. Geralmente consideramos, e atuamos de acordo com esta
consideração, que uma nota de um dólar é um dólar. A é igual a A. Mas, começamos a nos dar conta que hoje
um dólar não é mais o mesmo dólar que antes. Seu valor está cada vez menor que um dólar. O dólar de 1942
pode comprar somente três quartos do que comprava o dólar de 1929. (Em 1963 o dólar valia 40,8 centavos do dólar de
1929).
Parece o mesmo dólar - a lei da identidade é ainda aplicada - mas ao mesmo tempo o dólar começa a mudar sua
identidade ao diminuir de valor.
Em 1923 os alemães descobriram que como resultado da inflação o marco - que desde 1875 valia 23 centavos de ouro
- havia chegado a valer zero, não tinha mais valor. Por quase meio século A havia sido igual a A, e agora havia se tomado
repentinamente igual a não-A! No curso do processo inflacionário, A havia se convertido em seu oposto. O certificado de
valor não existia.
"Todo operário sabe que é impossível fazer dois objetos completamente iguais. Na elaboração de coxins, é
permitida uma margem de erro, ainda que não se deva exceder estes limites (isto se chama tolerância). Se estão dentro
das normas de tolerância, os coxins “são” iguais (A é igual a A). Quando se ultrapassa a tolerância a quantidade se
converte em qualidade, em outras palavras, os coxins têm menos ou nenhum valor.
Nosso pensamento científico é só uma parte de nossa prática geral, incluída a técnica. Para os conceitos também
existem "tolerância", que não se estabelece formalmente através do axioma A é igual a A, mas sim pela dialética através
do axioma de que tudo está sempre mudando. O “bom senso” se caracteriza pelo fato de que sistematicamente excede à
“tolerância” dialética". (Em Defesa do Marxismo).
Os graus de tolerância na indústria mecânica vão geralmente de um centésimo a um décimo de milésimo de polegada,
segundo a classe de trabalho que se está fazendo. O mesmo ocorre com o trabalho intelectual e os conceitos que são suas
ferramentas. Onde a margem de erro permissível é considerável, as leis da lógica formal são suficientes, mas quando é
necessária uma tolerância menor, deve se criar e usar novas ferramentas. No campo da produção intelectual essas
ferramentas são as “idéias da lógica dialética”.
A lei da identidade pode exceder a tolerância dialética em duas direções opostas. Assim como a tolerância não tem um,
mas dois limites, máximo e mínimo, igualmente a lei da identidade excede continuamente à tolerância dialética ao tornar-
se mais ou menos válida. Se, por exemplo, o dólar dobra seu valor como resultado da deflação, então A não é mais igual a
A, mas maior que A. Se, pela inflação ele cai à metade de seu valor, novamente A não é igual a A, mas muito menor. Em

11
ambos os casos a lei da identidade já não é estritamente certa, mas cada vez mais falsa, segundo a quantidade e caráter
da mudança de valor. Em vez de A igual a A, temos A igual a 2A ou a 1/2A
Note-se que corretamente partimos da lei da identidade. Tínhamos A e nada mais e inevitavelmente chegamos a esta
contradição: é certo que A é igual a A; também é certo que A não é igual a A. Além de ser igual a A, é igual a 2A e a 1/2A.
Isto nos dá uma pista sobre a verdadeira natureza de A. Esta não é mais uma categoria fixa e invariante criada pelos
lógicos formais. Esta é só uma das faces de A. Na realidade A é extremamente complexo e contraditório. Não é só A, mas
ao mesmo tempo algo mais. Isto o faz muito esquivo e volúvel. Nunca terminamos de compreendê-lo, porque quando
estamos por fazê-lo começa a converter-se em outra coisa mais ou menos diferente.
Então podemos nos exasperar e perguntar o que é A, se não é simples e somente A. A resposta dialética é
que A é ambas as coisas: A e não-A. Se a tomamos como A e nada mais, como fazem os lógicos formais, veremos só
uma face de A e não a outra, a negativa. Tomar A como simplesmente A e nada mais é uma abstração que nunca pode ser
encontrada ou realizada completamente na realidade. É uma abstração útil enquanto conheçamos seus limites e não a
interpretemos, ou melhor, mal-interpretemos como a verdade última e total de uma dada coisa. Esta lei elementar de
identidade serve para a maioria dos atos comuns da vida e do pensamento cotidiano, mas deve ser substituída por leis
mais complexas e que penetrem mais profundamente quando se encontram envolvidos processos mais complicados e
arriscados.
Qualquer mecânico compreenderá facilmente porque esta lei de pensamento não pode ter somente um valor limitado.
Ou por acaso não é válido para todas as ferramentas e máquinas? Cada uma é útil só sob determinadas condições e para
certas operações definidas: uma serra para cortar, um torno para tornear, uma broca para furar. Em cada etapa do
processo de produção industrial os operários se enfrentam com as limitações intrínsecas de cada ferramenta e máquina.
As limitações das ferramentas podem ser superadas de duas formas: usando uma ferramenta diferente ou combinando
diferentes ferramentas no mesmo processo de produção. As operações em tomo múltiplo oferecem um excelente exemplo
do que dissemos.
O pensamento é essencialmente um processo de produção intelectual e as limitações das ferramentas do pensamento
podem ser superadas da mesma forma. Onde a lei da identidade se converte em obstáculo teremos que recorrer a outra
lei lógica ou combinar as velhas leis de uma forma nova para chegar à verdade. Aqui é onde entra em cena a lógica
dialética. Assim como apelamos a uma máquina ou conjunto de máquinas mais evoluídas na produção industrial, quando
queremos resultados mais corretos e exatos na produção intelectual aplicamos as idéias superiores da dialética.
Se voltamos agora à equação abstrata original - A é igual a A - observaremos que evoluiu de uma forma muito
contraditória. A se diferenciou de si mesmo. Em outras palavras, A está sempre mudando em diferentes direções. A está
sempre se tornando mais ou menos que si mesmo, aproximando-se ou distanciando-se de si mesmo.
Neste processo de criação e perda de identidade chega um ponto no qual A se toma outra coisa diferente da que
começou. Se adicionamos ou subtraímos o suficiente de A, este perde sua qualidade específica e se converte em algo
mais, em uma nova qualidade. Neste ponto critico em que A perde sua identidade a lei da identidade, que até agora
mantinha certa validade, se torna totalmente falsa.
O rio Hudson perde sua identidade e começa a fazer parte do Oceano Atlântico; o marco alemão já não é um marco,
mas um pedaço de papel impresso; o coxim em vez de ser parte de uma máquina é um pedaço de metal sem valor. Em
termos algébricos, A se tora não-A. Em linguagem dialética, as mudanças quantitativas destroem a qualidade velha e
trazem uma nova. “Determinar o momento preciso, o ponto critico em que a quantidade se converte em qualidade é uma
das tarefas mais importantes e difíceis em todas as esferas do conhecimento, incluída a sociologia”. (Em Defesa do
Marxismo).
Um dos problemas centrais da ciência lógica é o reconhecimento e a formulação desta lei. Devemos
entender como e por que as mudanças quantitativas se tornam qualitativas em um certo ponto e vice-versa.
Chegamos então a esta conclusão. Enquanto que a lei da identidade reflete corretamente certas partes da realidade, as
distorce ou falha ao refletir outras. Mais ainda, os aspectos que distorce ou não pode expressar, são mais profundos e
fundamentais que os que descreve fielmente. Entrelaçada com sua parte de realidade, esta generalização elementar da
lógica contém uma boa proporção de ficção. Por isso este instrumento de verdade se converte em gerador de erros.

Texto nº. 6
ALGO MAIS SOBRE AS LIMITAÇÕES DA LÓGICA FORMAL
NOVACK, George. Introdução à Lógica Marxista. Ed. José Luís e Rosa Sundermann, S. P., 2006. Págs. 39 a 48.

Terceira Palestra - ALGO MAIS SOBRE AS LIMITAÇÕES DA LÓGICA FORMAL

Nas duas primeiras palestras aprendemos quais são as leis básicas da lógica formal, como apareceram, que relações
têm com a dialética e os limites de sua utilidade. Agora iremos fazer um repasse das limitações da lógica formal para
limpar o terreno para a exposição da evolução e as leis principais da dialética nas próximas três palestras.
Podemos assinalar cinco erros básicos ou elementos fictícios inerentes às leis da lógica formal.

1. A lógica formal requer um universo estático


Em primeiro e principal lugar está o fato de que estas leis excluem de si mesmas o movimento, a mudança e, portanto,
o fazem também com o resto da realidade. Não negam explicitamente a existência ou o significado racional do
movimento, mas estão obrigadas a fazê-lo indiretamente pela necessária inerência de sua própria lógica
interna.

12
Sim, como diz a lei da identidade, tudo é sempre igual a si mesmo, então, como diz a lei da contradição, nada pode ser
diferente de si mesmo, nunca. Mas a desigualdade é uma manifestação de diferença e a diferença indica a presença e
atuação de uma mudança. Onde toda diferença está logicamente excluída, não pode haver mudança ou movimento real e,
portanto nenhuma razão para que algo se transforme em outra coisa distinta do que era originalmente. O que é sempre
idêntico, e nada mais, não pode sofrer alteração e deve, por definição, ser imutável.
Se a lógica formal quer permanecer fiel a si mesma, usando suas próprias leis, não pode admitir nunca a existência real
ou a racionalizado do movimento. Não há lugar para a mudança no universo descrito ou pretendido pela lógica formal. Não
há movimento interno ou mútuo, em ou entre, suas leis. Não existe impulso lógico para que essas leis se insiram no
mundo que as rodeia. Não há relação dinâmica com esse mundo externo que tira as coisas de suas condições atuais a as
leva a ser outras novas. O movimento não pode ser incluído nesse reino de formas rígidas onde tudo está congelado em
seu lugar e ordenado em perfeitas fileiras, lado a lado, como um regimento prussiano.
Por que o formalismo dá as costas a um fato tão importante da realidade como é o movimento? Porque o movimento
tem um caráter autocontraditório. Como faz notar Engels: "... mesmo uma simples mudança mecânica de lugar só pode
ocorrer num corpo estando no mesmo momento num lugar e em outro, estando no mesmo lugar e ao mesmo tempo não
estando". (Anti-Dühring). No movimento tudo leva continuamente à contradição de estar ao mesmo tempo em dois
lugares diferentes, que é superada ao passar desse lugar ao seguinte.
Formas mais evoluídas de movimento, como o crescimento das plantas e árvores, a evolução das espécies,
a evolução da sociedade na história e a evolução das idéias filosóficas, trazem à lógica formal dificuldades
ainda maiores. Estágios sucessivos no processo de desenvolvimento se negam entre si, com o resultado de que o
processo total é uma série de contradições. No crescimento de uma planta, por exemplo, o botão é negado pela flor e esta
pelo fruto.
Sempre que se enfrenta com semelhante contradição os lógicos formais ficam desesperadamente frustrados. Que
fazem? Quando as crianças se enfrentam com um fenômeno estranho ou que não entendem e não podem enfrentar
fecham os olhos, cobrem o rosto com as mãos e esperam assim se livrar do fantasma. Os lógicos formais reagiam - e
ainda reagem - na presença da contradição, do mesmo modo infantil. Como não compreendem sua real natureza e não
sabem o que fazer com essa coisa terrível que revolve as bases de seu mundo lógico, tratam de expulsá-la.
As forças subversivas ameaçam as autoridades reacionárias, estas tratam de suprimi-las, prendê-Ias ou exilá-Ias de
seu regime. Os formalistas tratam assim a contradição. Reinam como Sir Anthony Absoluto a seu filho na comédia de
Sheridan Os Rivais. Sir Anthony impôs as seguintes condições a seu filho, no caso de que este não estivesse de acordo
"sem condições" com seus pontos de vista: “... não entre no mesmo hemisfério que eu! Não ouses respirar o mesmo ar
nem usar a mesma luz que eu, consegue uma atmosfera e um sol para ti !”
A assim chamada lei da contradição na lógica formal não expressa, como pretende, a verdadeira natureza da
contradição È como um decreto que emana da lógica e ordena que "consiga uma atmosfera e um sol para ela".
Esta lei diz que A nunca é não-A. Esta não é uma expressão real da contradição, se fosse diria: A é não-A,
ou A é ele mesmo e outro. É o oposto da contradição, é identidade. A canção de Gilbert-Sullivan diz: "As coisas
raramente são o que parecem, o leite desnatado se disfarça de creme". Neste caso, na assim chamada lei da contradição,
a identidade se disfarça de diferença. Esta lei é uma impostora que pretende ser contradição, mas não é mais que
identidade de forma negativa.
A lógica formal em si mesma não tolera uma verdadeira contradição. A suprime, a anula, a proscreve (ou
assim supõe). Mas, decretando a explosão da contradição de seu mundo de idéias, não consegue contudo
erradicar a existência da contradição no mundo real. Em seu esforço por se livrar da contradição, os
formalistas precipitam as contradições sobre a realidade objetiva. No mundo representado pela lógica formal tudo
se mantém em oposição absoluta a qualquer outra coisa. A é A, B é B; C é C. Logicamente não têm nada em comum. A
contradição reina!
A contradição, eliminada do sistema da lógica formal, adquire supremacia no mundo real. A contradição está morta,
viva a contradição! Os formalistas eliminam a contradição de seu sistema só ao preço de lhe dar o cetro fora dele.
A verdadeira contradição deve incluir em si identidade e diferença. Isto o formalismo não pode fazer. Em todas as leis
da lógica formal não há mais que identidade em formas diferentes. Não há uma única migalha de diferença nelas nem
entre elas.
É por isso que as leis das categorias imóveis da lógica formal são incapazes de explicar a essência do
movimento. O movimento é demasiado claro e explicitamente contraditório. Contêm em si mesmo dois momentos, fases,
elementos, ao mesmo tempo diametralmente opostos. Um objeto em movimento esta aqui e ali ao mesmo tempo. De
outra forma estaria em repouso ou em movimento. A não é simplesmente igual a A, mas também a não-A. O repouso é
movimento retido; o repouso é uma interrupção contínua do repouso
A lógica formal não pode compreender ou analisar esta natureza realmente contraditória do movimento
sem se violentar, sem deixar de lado suas próprias leis e transformar a si própria. Isto é equivalente a pretender
que o formalismo seja ou se converta em dialética. Isto é exatamente o que ocorreu com a lógica no curso de sua
evolução. Mas a lógica formal, em si e por si, não pode dar esse salto revolucionário para fora de si mesma. Todos os
pensadores formais conseqüentes permanecem cravados às bases originais da onipotência e universalidade da identidade,
e continuam negando - muito logicamente de acordo com sua lógica, mas muito ilogicamente de acordo com a realidade -
a existência real e objetiva da autodiferença ou contradição.
A categoria de identidade abstrata contida e repetida nas leis da lógica formal é a expressão conceitual
direta e o equivalente lógico da imobilidade na existência objetiva. Por isso a lógica formal é essencialmente a
lógica do inanimado, das relações vigidas, das coisas fixas, do repouso e repetição eternos. "Enquanto
considerarmos as coisas como estáticas e inanimadas, cada uma em si mesma, uma ao lado da outra, não encontraremos
nenhuma contradição nelas. Encontraremos certas qualidades, que serão em parte comuns, em parte distintas, e ainda

13
contraditórias entre si, mas nesse caso (isto é, no sistema de lógica formal) estarão atribuídas a objetos diferentes e
portanto não implicarão contradição alguma". (Anti-Dühring)
Observemos o que ocorre no outro caso, quando as coisas começam a se mover, não só em relação ao mundo exterior,
mas a si mesmas, internamente. Começam a perder sua identidade e tendem a se transformar em outra coisa. O rio
Hudson sobe, desce e corre com o Oceano Atlântico; o marco alemão se converte em um pedaço de papel sem valor;
mesmo os coxins perfeitamente fabricados se convertem eventualmente, com o uso, em pedaços de metal inútil. O
máximo que estas coisas podem fazer é adiar a data de sua perda de identidade, mas não podem escapar. Estes
resultados de movimentos externos e internos dos objetos reais são manifestadamente contraditórios, mas não por isso
menos certos, ou seja. correspondentes com a realidade.
Nada é permanente. A realidade nunca descansa, sempre muda, sempre flui. Este inquestionável processo
universal forma duas bases concretas da teoria que, segundo palavras de Engels ensina que: "... a totalidade da natureza,
do menor elemento ao maior, dos grãos de areia ao Sol, dos protozoários (organismos unicelulares) ao homem, transcorre
sua existência entre um eterno chegar a ser e deixar de ser, em um movimento e mudança sem descanso ..." (Dialética da
Natureza). Nenhuma generalização da ciência moderna está mais firmemente baseada sobre fatos experimentalmente
demonstrados que esta teoria da evolução universal, que foi a mais importante aquisição do pensamento humano no
século XIX.
As leis da lógica formal que banem a contradição se encontram em franca contradição com esta teoria e
realidade da evolução universal. A lei da identidade abstrata afirma que nada muda; a dialética assegura que
tudo está mudando constantemente Qual dessas proposições opostas é falsa e qual é verdadeira? A qual aderimos e
qual descartamos? Esta é a pergunta que os materialistas dialéticos fazem aos formalistas empedernidos. Esta é a
pergunta que o mesmo pensamento científico formulou à lógica formal não somente no século passado, mas muito tempo
antes. Esta é a pergunta que a lógica formal não se anima a ouvir nem considerar porque expõe o vazio de suas
pretensões e marca o fim de seu reinado de dois mil anos sobre o pensamento humano.

2. A lógica formal eleva barreiras intransponíveis entre as coisas


A lógica formal é falsa e defeituosa porque ergue barreiras intransponíveis entre uma coisa e outra, entre
sucessivas fases do desenvolvimento de uma mesma coisa e na imagem objetiva da realidade em nossas mentes. A toda
pergunta responde com um sim categórico ou um não incondicional. Entre a verdade e a mentira não há pontos
intermediários, não há transições aos escalões que as conectem.
Hegel discorreu sobre esse ponto no prefácio de sua Fenomenologia do Espírito: "Quanto mais a mente comum toma a
oposição entre verdadeiro e falso como algo fixo, mais se acostuma a esperar acordo ou contradição com um sistema
filosófico dado e só encontrar razão para um ou outro em toda explicação pertencente a esse sistema. Não concebe a
diversidade dos sistemas filosóficos como a evolução progressiva da verdade; pelo contrário, só vê contradição na
variedade.
"O botão desaparece quando se abre a flor e poderíamos dizer que o primeiro é negado pela segunda; da mesma forma
quando aparece o fruto, a flor pode ser considerada como uma forma falsa da existência da planta, porque o fruto cresce
como verdade natural no lugar da flor. Estas etapas não estão simplesmente diferenciadas; se superam uma à outra como
se fossem incompatíveis. Mas a atividade incessante inerente à sua natureza as faz ao mesmo tempo momentos de uma
unidade orgânica, onde não só se contradizem entre si, mas também cada uma é tão necessária como a outra; e esta
necessidade igualitária de todos os momentos constitui por si a vida da totalidade. Mas a contradição do tipo dos sistemas
filosóficos não pode só ser concebida desta forma; pelo contrário, a mente que percebe a contradição não pode só saber
como descarregá-la ou livrá-Ia de sua parcialidade e reconhecer no que parece conflitivo o inerentemente antagônico, a
presença de momentos mutuamente necessários".
Se tomamos as leis da lógica formal ao pé da letra, temos que assumir que cada coisa ou estado de uma
coisa é absolutamente independente de qualquer outra coisa ou estado. Pressupõe-se um mundo em que tudo
existe em perfeita solidão, isolado dos demais.
A posição filosófica que formula esta lógica como conclusão é a filosofa do idealismo subjetivo, que surge ao assumir
que nada existe realmente fora de si mesmo. Isto é conhecido como solipsismo, do latim solus ipse (eu só).
Não é necessário refletir muito para ver quão absurda e insustentável é esta postura. Independentemente de sua
posição teórica, toda pessoa normal age na prática sobre a base de que nada existe por si mesmo. Mais ainda, se
pensamos um pouco vemos que cada coisa, por mais solitária e independente que pareça, necessita realmente de todas as
demais para existir e ser ela mesma. Se não pudéssemos relacionar uma coisa com outra e esta, por sua vez, com o resto
da realidade, estaríamos num beco sem saída.
Cada coisa está sempre passando a ser e transformando-se em outra. Para isto ela necessariamente tem
que romper e enfrentar as barreiras que anteriormente a separavam dessa outra coisa. Até onde sabemos,
não há separações intransponíveis e irremissíveis entre as coisas.
Lênin assinalou que "a proposta fundamental dos dialéticos marxistas é que todas as barreiras na natureza e na
sociedade são convencionais e móveis, que não existe nenhum fenômeno que não possa, sob certas condições, ser
transformado em seu oposto".
Considerando as etapas históricas, Trotski disse: "A consciência nasceu do inconsciente, a psicologia da fisiologia, o
mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar de uma nebulosa". (Em Defesa do Marxismo)
Estas rupturas de barreiras, esta passagem de uma coisa a outra, esta dependência mútua entre uma coisa e outra não
ocorrem somente nas grandes etapas do desenvolvimento histórico; sucedem continuamente dentro e em tomo de nós. Os
pensamentos oscilam entre a consciência e a inconsciência. Quando atuamos de acordo com uma idéia, esta idéia perde
seu caráter predominantemente mental e se converte em uma força materialmente ativa, tanto no mundo como em nós
mesmos. Marx disse que os sistemas de idéias - como o socialismo - se convertem em poder material quando tomam
posse das mentes das massas trabalhadoras e estas se lançam a transformar estas idéias em ação social.

14
Tudo tem suas linhas de demarcação definidas que as separam das outras coisas. De outra forma não haveria
uma entidade distinta com uma identidade única. Devemos descobrir essas barreiras na prática e leva-Ias em conta ao
pensar.
Mas essas barreiras não permanecem inalteradas sob qualquer condição nem são as mesmas todo tempo. Mudam de
acordo com circunstâncias variadas. O caráter relativo, móvel e fluido das barreiras é ignorado e negado pelas leis da
lógica formal. Essas leis asseguram que tudo tem limites definidos, mas não notam o fato mais importante de que esses
limites têm também limitações.
Já vimos que a lógica formal traça a linha divisória mais marcante entre identidade e diferença. As coloca em absoluta
oposição, olhando-se cara a cara como estranhas. Mesmo quando se admite que existe relação de uma com outra, esta é
puramente externa, acidental e não afeta sua indivisível existência interna.
Os formalistas consideram como uma contradição lógica, uma monstruosidade, dizer - como o fazem os dialéticos - que
a identidade é (ou se converte em) diferença e a diferença em identidade. Insistem, a identidade é identidade; a diferença
é diferença; não podem ser o mesmo. Comparemos estas afirmações com os fatos experimentais, que são a prova da
verdade para todas as leis e idéias.
Na Dialética da Natureza Engels diz: "A planta, o animal, cada célula, são em cada momento de sua vida
idênticas a si mesmas e estão ao mesmo tempo tornando-se distintas de si mesmas, por absorção e excreção de
substâncias, pela respiração, pela formação de células novas e morte de outras, pelo processo de circulação, em suma, por
uma soma de incessantes mudanças moleculares que constituem a vida e a soma de cujos resultados é evidente nas fases
da vida - vida embrionária, juventude, maturidade sexual, processo de reprodução, velhice e morte. A isso se soma ainda
a evolução das espécies. Quanto mais avança a fisiologia mais importantes se tornam para ela essas mudanças
incessantes, infinitesimais e, portanto, também o considerar a diferença dentro da identidade e a velha regra de identidade
formal - de que um organismo deve ser tratado como algo simplesmente igual a si mesmo, algo constante - se torna
obsoleta.
"Sem dúvida, este tipo de pensamento e suas categorias persistem mesmo na natureza inorgânica, a identidade assim
formulada não existe na realidade. Todo corpo está exposto continuamente a influências mecânicas, físicas e químicas que
estão sempre mudando-o e modificando sua identidade".
As barreiras insuperáveis erguidas pela lógica formal entre estas duas faixas interdependentes da
realidade são destruídas continuamente no processo de evolução. O diferente se converte em idêntico. Nós
estávamos todos em diferentes partes de Nova Iorque antes de nos reunirmos aqui esta noite. O idêntico se torna
diferente. Depois da palestra nos dispersaremos novamente até lugares diferentes. Esta transformação da identidade em
diferença e da diferença em identidade tem lugar não só nas relações espaciais, mas em todas as relações. O botão se
converte em flor, a flor em fruto, todas essas diferentes fases de crescimento pertencem à mesma planta.
Assim, apesar das leis da lógica formal, a identidade material real não exclui de si a diferença, mas a contém como
parte essencial - da mesma forma que a diferença real não exclui a identidade, mas a inclui como elemento essencial.
Estas partes da realidade podem ser separadas ao se fazer distinções no pensamento. Mas isso não significa, como
pretende a lógica formal, que possam ser separadas na realidade

4- O Caráter absoluto das leis da lógica formal


O quarto defeito das leis da lógica formal é que se apresentam a si mesmas como absolutas, últimas e incondicionais.
Para elas a exceção não existe. Regem o mundo do pensamento de forma totalitária, exigem inquestionável obediência
de todas as coisas, reclamam autoridade soberana para seu reinado. Sempre A é igual a A e pobres dos que desconheçam
este dogma ou tratem de agir de outra maneira
Desgraçadamente para os formalistas nada no universo corresponde a semelhantes pretensões. Todo objeto real se
origina e nos apresenta sob condições históricas e materiais específicas em indissolúvel conexão com outras coisas e
sempre em proporções definidas e mensuráveis. A sociedade humana, por exemplo, apareceu em um ponto definido,
concretamente determinado, do desenvolvimento do homem a partir dos animais superiores. É inseparável do resto da
natureza orgânica e inorgânica: evoluiu gradualmente e está longe de seu total desenvolvimento, qualitativa e
quantitativamente. Cada etapa da evolução social tem suas próprias leis originadas e correspondentes a suas
características especiais.
As leis absolutas já não podem ter lugar no mundo físico. Em distintas fases do desenvolvimento das ciências
físicas os elementos químicos, as moléculas, os átomos, os elétrons, foram considerados por pensadores de mente
metafísica como substâncias invariáveis. Este tipo de gente já não se adequa à realidade filosófica. Com o avanço posterior
das ciências naturais, cada um desses eternos absolutos foi derrubado. Ficou experimentalmente demonstrado que cada
uma dessas partes constitutivas da matéria estava condicionada, limitada à relatividade. Demonstrou-se a falsidade de
suas pretensões de serem absolutas, ilimitadas e invariáveis.
Em fins do século XIX, enquanto os cientistas matutavam com a imutabilidade de tal ou qual elemento, os
cientistas sociais dos Estados Unidos seguiam insistindo que a democracia burguesa era a melhor forma de
governo para a humanidade. Desde 1917 a experiência histórica tem sido testemunha da derrubada da democracia
burguesa, atacada por lados diferentes pelo fascismo e pelos bolcheviques, demonstrando a limitação histórica, o caráter
inadequado e condicional desta forma particular de governo capitalista.
Se tudo existe sob limitações históricas e materiais definidas, evolui, se diversifica, muda e logo desaparece, como
pode ser aplicada uma lei absoluta no mesmo sentido, no mesmo grau, em todo tempo e sob qualquer condição? Isto é
precisamente o que pretendem as leis da lógica formal e a exigência que fazem à realidade. E na sua busca de leis que
sirvam em todo momento e sob todas as condições, os cientistas caem no beco sem saída da lógica formal.
Em última instância Deus é o único ser que pode afrontar completamente as normas da lógica formal. A
Deus se supõe absoluto, ilimitado, perfeito, independente de tudo exceto de si mesmo. Mas Deus, também, tem uma leve
imperfeição. Fora da imaginação das pessoas devotadamente religiosas, não existe.

15
5. A lógica formal presumivelmente pode explicar tudo, exceto a si mesma.
Finalmente, as leis da lógica formal, que se supõe que possam dar uma explicação racional para tudo, têm esse sério
inconveniente. A lógica formal não pode explicar a si mesma. De acordo com a concepção marxista tudo é resultado de
fatos concretos, evolui através de distintas fases e finalmente morre.
Que ocorre com a lógica formal e suas leis? Onde, quando e por que se originaram? Como se desenvolveram? São
eternas? Os lógicos formais dizem que por definição, ou afirmam diretamente que sua lógica não tem raízes terrenas, mas
que é produto de uma revelação divina, que suas leis são leis independentes da razão, que sua lógica é o único sistema
possível e que portanto é eterno.
Se lhes perguntamos com que direito elevam as leis da lógica acima da história e as eximem da regra universal de que
nada é invariável, somente podem contestar como os monarcas absolutos: "o fazemos por direito divino".
Fica claro agora a falsidade que envolve identificar a dialética com a religião como fazem os professores James
Burnham e Sidney Hook. Na realidade é a lógica formal que lança mão da religião e do dogmatismo. As leis eternas da
lógica se encontram na mesma posição que os eternos princípios morais, dos quais Trotski assinalou: "O céu se mantém
como a única posição fortificada para as operações militares contra o materialismo dialético". (Sua moral e a nossa).
Na realidade a lógica formal apareceu na sociedade humana em uma etapa definida de sua evolução e em um ponto
definido do domínio do homem sobre a natureza, evoluiu paralelamente ao crescimento da sociedade e suas forças
produtivas e foi agora assimilada e suplantada pela mais evoluída lógica dialética. Isto situa a lógica a par de qualquer
outra ciência, mas foi necessária uma revolução no pensamento humano para colocá-la em seu lugar.
Uma das principais vantagens do materialismo dialético sobre a lógica formal é o fato de que, diferente
dela, a dialética pode não só explicar a existência da lógica formal, mas também dizer porque a supera. A
dialética pode explicar a si mesma e aos demais. É por isso que é incomparavelmente mais lógica que o
pensamento formal.
Observem como evoluiu nossa critica à lógica formal. Partimos por afirmar a verdade das leis da lógica formal; logo
assinalamos os limites dessa verdade e a tendência dessas leis de gerar erros se eram levadas além de certas barreiras;
isto nos levou a negar a verdade incondicional do que havíamos afirmado anteriormente. Vimos então que as leis formais
tinham dois aspectos, um verdadeiro e outro falso, que eram complexas e contraditórias, capazes de evolução e mudança
em razão de tendências opostas que se movem constantemente nelas. Analisamos a seguir os dois pólos opostos de seu
caráter contraditório, descobrimos suas interrelações, e indicamos como e por que se transformaram uma em outra.
Este é justamente o método de pensamento dialético. Como resultado chegamos à fronteira da dialética por um
caminho genuinamente dialético. Esse é também o caminho pelo qual a humanidade chegou a ela como sistema explícito
de pensamento. Os homens descobriram as limitações da lógica formal na prática e superaram essas limitações na teoria,
criando uma forma superior de lógica. A dialética prova sua veracidade aplicando seu próprio método de pensamento para
se explicar e às suas origens.
A dialética surgiu como resultado de uma revolução social que perturbou todos os aspectos da vida. Na política, os
representantes das massas em ascenso, guiados incondicionalmente por uma compreensão dialética dos fatos, bateram às
portas das monarquias absolutas e gritaram: os tempos mudaram, queremos igualdade. No espírito do formalismo, os
defensores do absolutismo replicaram: Estão errados, são subversivos! As coisas não mudam ou não podem mudar tanto!
O rei é sempre e em qualquer lugar o rei; A é igual a A; a soberania não pode ser igual ao povo que é não-A. Esse
raciocínio formal não freou a marcha do progresso, o triunfo das revoluções populares democrático-burguesas, o
destronamento e a destruição das monarquias. A dialética revolucionária e não a lógica formal prevaleceu na prática
política.
Na esfera do conhecimento o formalismo foi levado à mesma crise revolucionária que o absolutismo em política. As
novas forças do conhecimento surgidas do desenvolvimento das ciências naturais e sociais, entraram em colisão com as
formas lógicas que haviam reinado durante dois mil anos, buscaram se expressar, reclamaram seus direitos. Como se
realizou esta revolução na lógica, e a que levou será o tema de nossa próxima palestra.

16
MATERIALISMO DIALÉTICO
Parte II
Texto nº. 1
A REVOLUÇÃO HEGELIANA NA LÓGICA
NOVACK, George. Introdução à Lógica Marxista. Ed. José Luís e Rosa Sundermann, S. P., 2006. Págs. 49 a 60.

Quarta Palestra - A REVOLUÇÃO HEGELIANA NA LÓGICA

Nesta palestra vamos discutir as origens históricas, avanços e o significado de uma revolução. Esta revolução em
particular não se deu no domínio da política ou da economia, mas no das idéias. O autor dessa revolução foi um professor
alemão, Jorge Hegel, que viveu entre 1770 e 1831. Ele revolucionou a ciência do pensamento demonstrando as limitações
das leis básicas da lógica formal e criando, com base em novos princípios, um sistema superior de lógica conhecido como
dialética.
A revolução da lógica feita por Hegel é parte desse colossal movimento revolucionário que transtornou o
mundo ocidental entre os séculos XVI e XIX e culminou com a substituição de todos os aspectos da vida social do
feudalismo e de outras formas e forças pré-capitalistas pelo sistema burguês. Toda verdadeira revolução social é um
processo que penetra total e profundamente na ordem social e reconstrói tudo, desde as bases materiais da produção à
superestrutura cultural e suas manifestações filosóficas. Assim, os movimentos revolucionários democrático-burgueses
originados pelo crescimento e expansão do capitalismo transformaram radicalmente não só os métodos de produção, as
relações políticas e a moral, mas também as mentalidades da humanidade.
As mudanças profundas nas condições de vida e de trabalho produzem mudanças não menos transcendentais nos
hábitos de pensamento dos homens. Os avanços do pensamento na prática industrial e cientifica estabeleceram,
por sua vez, a necessidade de uma forma mais evoluída de lógica e uma teoria do conhecimento superior para
enfrentar a nova acumulação de material de conhecimento.
Hegel, ao lado de Kant e o resto da escola revolucionária alemã de filosofia, era totalmente consciente da necessidade
premente de um método apropriado de pensamento e da incapacidade da antiga lógica para satisfazer as necessidades
dos novos conhecimentos. No prefácio de sua Lógica escreveu: "A forma e conteúdo da lógica têm seguido sendo os
mesmos que se herdou; uma grande tradição que ao cair se tornou ainda mais débil e tênue; não existem traços na lógica
do novo espírito que surgiu no conhecimento e na vida. É em vão, na realidade, (e digamos de uma vez por todas), tentar
reter as formas de uma etapa anterior de desenvolvimento quando a estrutura interna do espírito se transformou; estas
formas primitivas são como pétalas murchas que são substituídas por novos brotos que geram as raízes". "O novo espírito"
a que Hegel se refere é sua forma de denominar as conseqüências da revolução democrático-burguesa.
Hegel propôs formular uma lógica "adequada ao elevado desenvolvimento das ciências" e necessária "para
assegurar o progresso científico". Este novo método de pensamento era a dialética. Como sistematizador do método
dialético, Hegel deve ser considerado o fundador da lógica moderna, assim como Copérnico o pai da Astronomia, Harvey
da Fisiologia e Dalton da Química. Na realidade, desde Hegel até agora, não se descobriu nenhuma nova lei dialética além
das já formuladas por ele.

1. A natureza contraditória do pensamento de Hegel


Hegel disse uma vez: "A sentença que um grande homem deixa ao mundo é obrigá-lo a explica-lo". Isto é
absolutamente certo, até mesmo a respeito de Hegel, que sempre representou um problema para os que o estudam.
Como pode este pacífico professor, funcionário civil do governo prussiano, cujas opiniões políticas se tornavam cada vez
mais conservadoras à medida que ficava velho e célebre, conceber uma revolução em sua mente e lhe dar a luz?
Uma contradição similar pode ser observada nas relações provocadas pelas idéias de Hegel. Durante sua vida e até
uma década depois de sua morte foi, ao mesmo tempo, o mimado dos círculos ortodoxos e a inspiração intelectual dos
mais radicais.
Em todo caso, qualquer que seja a atitude tomada acerca dele, se aceitem ou rechacem suas idéias, use o que se use
dele, não se pode permanecer indiferente a respeito, o que demonstra a força explosiva de sua concepção. As pessoas
podem, e é o que fazem normalmente, permanecer indiferentes frente às idéias que não ameacem o status quo ou o corpo
estabelecido de conhecimentos, mas reage imediatamente quando aparecem em cena as idéias genuinamente novas e
influências vitais. Hoje ninguém pode permanecer indiferente ao marxismo, porque suas idéias demonstraram sua
potência revolucionária. Nenhum psicólogo se atreve a ignorar as descobertas de Freud.
Os verdadeiros revolucionários, tanto no campo das idéias como no dos fatos, provocam tremendas controvérsias e
sentimentos contraditórios. Poderia-se odiar a John Brown e enforca-lo, como o fizeram os reacionários em 1859, ou
poderia-se honrá-lo como um mártir da causa da emancipação humana. Mas não se poderia ignorar a John Brown, seu
espírito e seus atos. O mesmo ocorre com Lênin e Trotski em nossa geração, com Freud e Einstein hoje, com Darwin
ontem e com Bruno e Galileu nos séculos XVI e XVII.
O pensamento de Hegel arrasou como um furacão os salões empolados da filosofia, transtornando-o todo e obrigando a
todos a se aprumar com as poderosas idéias que ele havia desencadeado. O mundo do pensamento já não tem sido o
mesmo desde que Hegel passou por ele. As controvérsias que se desencadearam ao seu redor não cessaram até o
presente. Eis-nos aqui, defendendo Hegel de seus detratores cem anos depois de sua morte.
Os academicistas têm tratado de domesticar Hegel, de castrar e mutilar seu pensamento, de transformá-lo num ícone
inofensivo, como fazem com todos os revolucionários mortos, incluindo Marx. Mas não o conseguem. As idéias realmente
revolucionárias de Hegel seguem rompendo as interpretações convencionais que se dão dela, da mesma forma que
romperam com seu próprio sistema idealista.
17
As reações contra Hegel são tão extremas hoje como em sua época. Desperta uma furiosa, venenosa hostilidade por
parte de todos os formalistas empedernidos, de todos os anti-dialéticos. James Burnham ao se afastar do marxismo,
chamou a Hegel "o mortal arqui-embrulhão do pensamento humano do século". (Em Defesa do Marxismo). Max Eastman
lhe concede o ambíguo cumprimento de ser "o mais engenhoso de todos os teólogos disfarçados". (O Marxismo é uma
Ciência?).
Esta é a opinião predominante sobre Hegel nos círculos acadêmicos oficiais dos Estados Unidos. William James, o pai do
pragmatismo, nunca cessou de atacar Hegel por seu absolutismo e seu "universo em bloco". John Dewey e Santayana
reeditaram livros onde pretendiam responsabilizar Hegel pelo nazismo, tratando de identificá-lo como o mais reacionário.
O vice-presidente Wallace declarou em 8 de março de 1942: "Hegel expôs extensa e profundamente a filosofia do Estado
totalitário".
A atitude de Dewey é particularmente significativa, já que começou sua carreira filosófica como hegeliano com matizes
esquerdistas, e é muito versado no pensamento de Hegel. Na atualidade se afastou completamente de Hegel. Este ex-
discípulo de Hegel nem sequer menciona a seu antigo mestre ou suas idéias em sua obra, Lógica, publicada em 1938.
Enquanto Dewey preparava sua obra para a imprensa eu lhe pedi insistentemente que incluísse a lógica hegeliana em
seu próprio tratado. Sua resposta foi clara: no campo da lógica Hegel não é hoje digno de se ter em conta, é "um cachorro
morto". Nisso se converteu a principal escola de pensamento norte-americana.
Nós, marxistas, estimamos de forma diferente a Hegel e sua obra. O honramos como a um titã do pensamento, "um
gênio" (Trotski) que fez uma contribuição imortal ao pensamento humano com seu método dialético. Hegel tem outros
admiradores nos recantos acadêmicos. Mas os fossilizados filósofos profissionais honram Hegel por razões diametralmente
opostas das dos marxistas. Os hegelianos acadêmicos se prendem aos aspectos conservadores de Hegel, a todo o morto:
a seu sistema, ao seu idealismo, à sua apologia da religião. A partir de sua morte houve uma divisão similar entre seus
discípulos na Alemanha, entre velhos e jovens hegelianos, entre conservadores e radicais, entre devotos religiosos e
críticos ateus.
Hegel seria, obviamente um fenômeno histórico terrivelmente complexo, se o julgarmos pelas conseqüências objetivas
de seu pensamento. Na realidade, o filósofo da contradição era ele mesmo um filósofo contraditório. Isso o converte num
osso duro de roer. Seus inimigos dizem que é inútil tentar decifrar seu sistema de idéias; não se encontrará nele mais que
um interior podre de religião e idéias metafísicas. Nós dizemos, pelo contrário, que há um rico tesouro de pensamento
dentro da casca de idealismo.
Hegel, como todas as outras grandes figuras da época capitalista, apresenta ao mesmo tempo aspectos revolucionários
e reacionários. Nesta palestra só consideraremos os primeiros. Newton era um beato e até supersticioso protestante, mas
isso não o impediu de revolucionar a ciência física. Hobbes, o empedernido materialista, era sem dúvidas um partidário do
absolutismo contra os cromwellainos. Faraday, o descobridor da indução das correntes elétricas, era membro da pequena
seita dos sandenmanianos. Sir Oliver Lodge, o físico, acreditava na comunicação com os mortos.
Toda pessoa deve ser julgada em relação com as condições de sua época, e não de acordo com padrões absolutos
atemporais. "A verdade é sempre concreta". Robespierre é o líder revolucionário mais importante da democracia plebéia
mesmo quando tentou reviver o culto ao Ser Supremo quando dirigia o governo da Revolução Francesa. John Brown não
pode ser expulso do palco dos revolucionários por haver sido um pequeno-burguês que cria em Deus e na propriedade
privada. Não se pode aplicar o mesmo padrão a Toussaint L'Ouverture, o líder dos escravos rebeldes da ilha de Haiti em
fins do século XIX, que a um moderno líder proletário revolucionário. Os dialéticos devem aprender a ver cada pessoa
ou coisa em seu correspondente lugar histórico, em suas concretas proporções, em suas necessárias
contradições.
Burnham e seus colegas não podem compreender a natureza contraditória de Hegel e seu pensamento se não são
capazes de ver o caráter contraditório da URSS. Assim como hoje a União Soviética só é as abominações do estalinismo, á
obra de Hegel não é mais que metafísica antiquada. Burnham escreveu em Ciência e estilo: "Durante os 125 anos que
transcorreram desde que Hegel escreveu, a ciência progrediu mais que durante toda a história precedente da humanidade.
Durante o mesmo período, depois de 2300 anos de estabilidade, a lógica sofreu uma transformação revolucionária... na
qual Hegel e suas idéias tiveram uma influência nula". (Em Defesa do Marxismo).
Isto é totalmente falso. Como em outras questões, Burnham inverte as relações reais e põe tudo de pernas para o ar. A
lógica sofreu uma transformação revolucionária mas foram precisamente "Hegel e suas idéias" que iniciaram essa
revolução. Tentemos aclarar esse enigma que tanto contraria a Burnham e a todos os formalistas quando encaram o
pensamento de Hegel.

2. As origens históricas do pensamento de Hegel


Hegel sabia que havia revolucionado a filosofia, mas explicou as origens e essência dessa revolução unilateralmente e,
portanto, incorretamente. Escreveu: "Toda revolução, em ciências não menos que na história, se origina só nisso, em que
o espírito do homem, pelo entendimento e a compreensão de si mesmo, tenha alterado suas categorias afiançando-se
numa relação consigo mesmo mais autêntica, profunda e íntima". Confundido por sua concepção idealista, Hegel
entendia a revolução que havia forjado como surgindo da mente dos homens através de uma mudança em
suas categorias de pensamento. Era um fato que pertencia essencialmente ao mundo do "espírito" ou das idéias que
envolviam transformações das relações conceituais. Não era um desenvolvimento necessário do contexto social em uma
etapa especifica de sua evolução, que surgia originalmente de mudanças nas relações materiais entre os homens.
Os materialistas dialéticos dão uma explicação inteiramente diferente da obra de Hegel. Se perguntássemos a Hegel por
que e como surgiu esta mudança de idéias, ele contestaria que pelos fatores contraditórios internos de cada sistema de
idéias, seu conteúdo e sua resolução. Para os materialistas isso não responde à pergunta. Explicar mudanças nas idéias
pelas mudanças delas mesmas é demasiado superficial e restrito.
As mudanças revolucionárias no mundo das idéias devem ser explicadas como resultado de mudanças
anteriores no mundo material. Na realidade, esta revolução intelectual teve suas verdadeiras raízes e seu motor no

18
movimento social revolucionário mais importante de sua época: o surgimento e a conquista do mundo pelo capitalismo.
Notemos, sem dúvidas, que não derivamos o princípio dessa explicação mais que do próprio Hegel, que ensinou que nada
pode ser explicado por si mesmo e através de si mesmo, como dizia a lógica formal baseando-se na lei da identidade, mas
por outro e através de outro. Aqui usamos o método de Hegel contra sua própria conclusão e isto é o que o materialismo
marxista fez em grande escala.
Nós entendemos a natureza peculiar do capitalismo através do sistema social do qual surgiu: o feudalismo, como
também da formação social a que dá lugar: o socialismo. Ao tentar compreender algo devemos saber não só o que este
algo é, mas também o que não é, ou seja, como surgiu, de que é parte e em que se converterá.
Desde o século XVI até a aparição de Hegel as novas forças do capitalismo haviam questionado, enfrentado
ou virtualmente derrotado todas as instituições e relações estáveis e antigamente honradas. Os fundamentos
produtivos da velha ordem social (feudalismo, escravidão) haviam sido minados ou subvertidos pelo crescimento das
relações capitalistas, a competição, a industrialização e o mercado mundial. As revoluções inglesa, francesa e americana
haviam destruído as monarquias absolutas e em seu lugar criado novas formas de governo.
A história do século XVIII esteve marcada por lutas entre os grandes impérios do mundo, por rebeliões
coloniais (a Revolução Americana) e finalmente pelas grandes guerras civis e nacionais produzidas pela Revolução
Francesa. Toda a sociedade civilizada era varrida por forças contraditórias e posta de pernas para o ar. Estes tremendos,
catastróficos conflitos ficaram impressos nas mentes dos homens que já não podiam trabalhar, viver ou pensar do modo
antigo. Viram-se arrancados de sua rotina e obrigados, pela força dos acontecimentos, a pensar ou atuar de um modo
diferente: a favor ou contra a revolução.
As condições históricas demandavam urgente a criação de um novo método de pensamento. As audaciosas
especulações de Hegel, seus saltos revolucionários que enlaçavam o velho mundo de pensamento com o novo, refletiam e
expressavam os impulsos revolucionários que agitavam a sociedade européia. No curso de sua evolução, a ciência lógica
se enfrentou com as mesmas categorias que as ciências sociais. As forças e técnicas produtivas do capitalismo superaram
as formas feudais de produção. Teve lugar um prolongado conflito entre os representantes destas irreconciliáveis forças
sociais. Os reacionários fizeram o possível para reencaixar as forças nascentes da produção capitalista na camisa de força
do feudalismo. Os elementos burgueses revolucionários lutaram por liberta-Ias dessas amarras e criar relações de
produção mais adequadas e livres.
Os filósofos enfrentaram um problema parecido no campo do pensamento. Manteriam enclausuradas dentro das leis da
lógica elementar - independente de sua falsidade ou escolasticismo - as novas forças de produção intelectual surgidas ou
que anteciparam a produção capitalista? Isto era o que recomendavam e praticavam os pensadores conservadores. A
outra opção significava às novas forças intelectuais o fim de sua submissão à lógica formal e criar um novo sistema lógico
em estreita conformidade com as necessidades do desenvolvimento do pensamento científico. E esta foi a escolha dos
filósofos mais progressitas desde Bacon e Descartes, que brigaram por reformar a lógica de acordo com a reconstrução da
sociedade e das outras ciências. Em vez de se preocupar por desenvolver seu conhecimento científico segundo a lógica
formal, trataram de fazer sua lógica mais científica. Foi Hegel quem conseguiu consumar esta revolução na lógica.

3. Hegel e a Revolução Francesa


As forças revolucionárias da época se concentravam em torno da grande Revolução Francesa de 1789. A Revolução
Francesa significou para os homens do século XVIII e XIX o que a Revolução Russa é para nós. Dividiu o
mundo civilizado em dois grupos opostos: a favor ou contra a Revolução. Germinaram idéias e tendências
revolucionárias na política, na música, escultura, poesia ("Então era glorioso estar vivo, mas ser jovem era celestial",
Wordsworth) e na filosofia.
A Revolução Francesa não era para Hegel um fato histórico remoto. Era seu contemporâneo; tinha 23 anos quando ela
alcançou seu apogeu em 1793 e foi a força mais influente em sua vida e pensamento. Esteve imerso em suas vicissitudes,
que o afetavam diretamente. Hegel deve ter terminado sua primeira grande obra, A Fenomenologla do Espírito, na mesma
tarde da batalha de Jena, na que Napoleão venceu aos exércitos prussianos e desmembrou o reino. Os soldados franceses
entraram na casa de Hegel e atearam fogo nela apenas depois que ele havia metido no bolso as últimas páginas da
Fenomenologia e buscara refúgio na casa de um alto oficial da cidade.
Apesar dessas dificuldades pessoais, Hegel sempre falou com entusiasmo da Revolução Francesa. Na Fenomenologia
procura justificar, a sua maneira idealista, o terror revolucionário dos jacobinos que era condenado por todos os
reacionários e contra-revolucionários dessa época com o mesmo espírito com que hoje se condena o terror bolchevique
contra os inimigos da Revolução Russa. Isto requeria não só uma alta coragem intelectual e moral mas também uma visão
revolucionária.
Poucos dias depois de ser despejado de seu domicílio, Hegel escrevia em uma carta a um amigo: "Vi o Imperador
(Napoleão), esse espírito universal, cavalgando através da cidade. É realmente uma rara emoção se ver frente a
semelhante indivíduo, que aqui, deste lugar, enquanto anda a cavalo, está abrangendo todo o mundo e remodelando-o...
Agora todos desejamos boa sorte ao exército francês, que não pode ser derrotado pela imensa diferença entre seus líderes
e soldados e os de seus inimigos", (Caird: Hegel). O equivalente intelectual deste panegírico seria o entusiasmo de um
intelectual - na Alemanha - saudando o avanço do exército soviético.
Eu outra carta Hegel escreveu: "A Nação Francesa, com a ducha de sua Revolução, foi liberada de muitas instituições
que o espírito do homem carregava sobre seus ombros como seus sapatos infantis e que logicamente pesavam sobre o
corpo como ainda pesam sobre outros, como peso morto. Ainda mais, os indivíduos dessa nação, pelo impacto da
Revolução, descartaram o temor à morte e a sua vida provinciana que, com a mudança de cenário, deixaram de ter
significado em si. Isso é o que lhes dá a força avassaladora que mostram contra outras nações. Daí vem especialmente
sua preponderância sobre o nebuloso e sub-desenvolvido espírito dos alemães que, sem dúvida, se alguma vez se virem
obrigados a deixar de lado sua inércia, despertarão à ação, e preservando em seu contato com o exterior a intensidade de
sua vida interior, talvez sobrepujarão seus mestres". (Caird: Hegel).

19
As queixas sobre o "nebuloso e sub-desenvolvido espírito dos alemães" referem-se à marcante diferença entre França e
Alemanha. Na França a revolução democrático-burguesa foi levada a cabo enérgica e abertamente. Havia sido anunciada
por uma agitada fermentação no mundo das idéias. Os escritores e ideólogos franceses progressistas travaram contínuas
batalhas contra a Igreja, o Estado e reconhecidas autoridades científicas; sofreram perseguições, prisão, exílio e todas as
penas previstas para as chamadas atividades "subversivas".
Devido ao atraso das condições sociais da Alemanha, o movimento revolucionário democrático-burguês e seus reflexos
no campo das idéias sofreu ali uma evolução muito diferente, com resultados distintos. Na primeira parte do século XIX,
quando Hegel chegou à maturidade, a burguesia alemã se mostrou incapaz de produzir ou completar uma autêntica
revolução na vida industrial ou política. Ao mesmo tempo as energias derivadas dessas esferas materiais da existência se
canalizaram preferencialmente no campo da filosofia e ali encontraram rica e concentrada expressão.
Os ideólogos da burguesia alemã compensaram a inferioridade econômica, debilidade política e escassa
liderança de sua classe com um extraordinário arrojo e uma aguda visão no âmbito do pensamento. Levaram
adiante uma revolução no mundo das idéias, ali onde seus colegas mais práticos falharam por realizar sua revolução
no âmbito da realidade prática. Marx caracterizou a filosofia de Kant, o fundador da escola da filosofia clássica
alemã, como "a teoria alemã da Revolução Francesa". Hegel desenvolveu ao seu mais alto grau essa "teoria alemã" em
sua dialética.

4. Hegel e a revolução nas ciências


Novas e revolucionárias idéias científicas precederam, acompanharam e seguiram ao surgimento da economia
capitalista e à fermentação política da revolução democrático-burguesa. As ciências exatas - matemática, mecânica,
astronomia - começavam a avançar a largos passos e a assentar-se sobre novas bases.
Mais tarde, essas e outras ciências - a geologia, a paleontologia, química, geografia, biologia, botânica, fisiologia,
anatomia - avançaram e foram revolucionadas uma a uma. Goethe, Treviranus e Lamark introduziram o conceito de
evolução na botânica e biologia.
As ciências sociais também reviveram e se transformaram. Criou-se a economia política. Surgiu a ciência
política, juntamente com os partidos políticos. Os grandes problemas estabelecidos pela Revolução Francesa e
Inglesa, deram um poderoso impulso à ciência histórica. Os homens refletiram sobre as forças motrizes da história e
começaram a busca-Ia em todos os lados, excluindo a Divina Providência. Hegel, por exemplo, em sua Filosofia da
História, procurou explicar a dinâmica da evolução histórica. Não conseguiu, mas seus magníficos erros foram a base da
solução correta dada pelo método do materialismo histórico de Marx.
Os cientistas destes distintos campos procuraram conciliar os novos temas de conhecimento que haviam coletado ou as
novas leis que haviam descoberto com a herança das velhas categorias de pensamento. Revolucionaram suas práticas
científicas muito antes de haver revolucionado completa e conscientemente seus hábitos e métodos de pensamento. A
maioria tentou, por exemplo, conciliar suas descobertas com idéias religiosas estabelecidas com as quais eram obviamente
incompatíveis ou, pelo menos, evitar um conflito direto com as autoridades eclesiásticas.
Mesmo depois que muitos haviam deixado de lado os sermões ou as normas religiosas, os cientistas continuaram
considerando a natureza como fundamentalmente invariável; às leis que a haviam promulgado como eternas; ao
movimento como algo pura e simplesmente mecânico. Faltou-lhes, em uma palavra, o conceito de evolução universal.

5. A relação da filosofia
"A primeira ruptura com essa visão petrificada da natureza não foi realizada por nenhum naturalista, mas por um
filósofo", assinala Engels em Dialética da Natureza. "Em 1755 apareceu a História natural geral e teoria dos céus de
Kant. A descoberta de Kant de que 'a terra e todo o sistema solar... chegaram a ser no curso do tempo'...
continha o ponto de partida de todo o progresso posterior. Se a terra era algo que tinha chegado a ser, então, seu
presente estado geológico, geográfico e climático, e igualmente suas plantas e animais, devem ser algo que chegou a ser;
devem haver tido uma história, não só de coexistência no espaço, mas também de sucessão no tempo".
Esta idéia revolucionária de Kant, que seria desenvolvida de forma muito mais compreensível e profunda por Hegel, foi
resultado de um prolongado processo de trabalho filosófico, que levou vários séculos. A revolução filosófica não surgiu de
repente, mas se desenvolveu gradualmente. Do mesmo modo que os comerciantes, banqueiros e industriais burgueses e
seus agentes, que atacaram e socavaram desde os alicerces e instituições do feudalismo com fatos econômicos, políticos e
militares, os ideólogos da burguesia também fizeram o mesmo, assaltaram e minaram o feudalismo desde cima até o mais
longínquo reino da teoria. Enfrentaram as idéias básicas do cristianismo primeiro, através da reforma protestante e depois
com um espírito revolucionário ateu. Levaram a cabo uma empedernida batalha contra as idéias e método escolásticos,
suporte ideológico do catolicismo e da ordem feudal. Recriaram o materialismo.
Os hegelianos e a seguir os marxistas não foram as primeiras nem as últimas escolas a notar a
inadequação da lógica de Aristóteles petrificada pelos escolásticos ou em buscar uma lógica melhor. Os
pensadores burgueses haviam começado já no século XVI a se rebelar contra as restrições da lógica formal
que se haviam tomado intoleráveis em suas versões escolatizadas e mortas. Bacon começou a luta na Inglaterra,
Descartes na França. Desde esse momento até Hegel, um atrás do outro, os mais destacados filósofos europeus
procuraram formular um método próprio para superar a lógica formal e se enfrentar com os problemas colocados pelo
crescimento das outras ciências. O Novum Organum de Bacon, o Discurso do Método de Descartes, o método
mecânico de Descartes, o método geométrico de Spinoza, o Ensaio sobre o entendimento humano de Locke,
representam marcos nesse caminho. Locke, por exemplo, conclui assim seu ensaio: "A consideração, então das idéias
e palavras como os grandes instrumentos do conhecimento, é parte importante de sua contemplação, o que daria uma
visão total do conhecimento humano. E se fossem claramente pesados e devidamente considerados, talvez nos levariam a
uma lógica e crítica diferente da que conhecemos".

20
A tentativa mais repetida e exitosa nesta linha foi feita pelos filósofos alemães clássicos, começando por Kant, seguindo
por Fichte e Schelling e culminando por Hegel. O que seus precursores haviam buscado, Hegel encontrou; onde eles
falharam, ele triunfou. Mas Hegel nunca teria conseguido desenvolver sua dialética sem os erros de seus predecessores.
Seus erros forneceram as condições e foram elementos necessários a seu êxito. Através de Hegel e Marx seus erros se
converteram em acertos.
Esta lição dialética da história da lógica deve ser lembrada pelos revolucionários. O êxito não é simplesmente êxito,
nem o erro simplesmente erro, como pensam e dizem os formalistas. Todo êxito contém algum CITO; e todo erro
contém em si algum acerto e, sob certas condições, podem ser transformados um em outro. Um exemplo é a
evolução e degeneração da Revolução Russa, e agora a perspectiva de sua recuperação.
O pensamento de Hegel e, especialmente, seu método dialético representaram a consumação da filosofia clássica alemã
e da grande filosofia grega da antiguidade. Foram a conseqüência teórica do progresso filosófico da civilização ocidental de
quatro séculos. Hegel explicitou que sua filosofia era a culminação dos dois séculos precedentes de pensamento filosófico e
que as principais conquistas do pensamento, desde os gregos, haviam sido incorporadas à sua obra. Isto não era uma
jactância, mas a pura verdade.
Ser o ápice de um gigantesco movimento revolucionário, o maior da história do socialismo, é o que dá significado
histórico universal à obra de Hegel. Seu trabalho abrange e resume em forma teórica concisa os resultados de séculos de
trabalho intelectual dos maiores pensadores. A filosofia de Hegel não só expressou os resultados destes grandes
movimentos da sociedade e da ciência, mas ela mesma em muitos campos deu seu impulso a movimentos que ainda estão
mudando no mundo. Sem ir mais longe, nosso próprio movimento marxista.
"Os trabalhadores alemães - disse Engels - são herdeiros da filosofia clássica alemã". Isso é válido para a
totalidade da classe trabalhadora, no mundo inteiro. É por isso que honramos a Hegel. A melhor forma de honrar este
grande pensador é estudar sua obra e entender suas idéias. É o que faremos com mais detalhes na próxima palestra.

Texto nº. 2
O MÉTODO DIALÉTICO (A)
NOVACK, George. Introdução à Lógica Marxista. Editora José Luís e Rosa Sundermann, S. P,, 2006. Págs. 61 a 72.

Quinta Palestra - O Método Dialético

Na última palestra verificamos que o grande avanço do conhecimento em muitas frentes desde o século XVI gerou uma
radical reconstrução da ciência lógica, da mesma forma que as forças em expansão da produção capitalista requesitaram
uma transformação radical na ordem econômica e política. Em seu trabalho filosófico, Hegel consumou esta revolução na
lógica com não menos audácia que os revolucionários plebeus, os jacobinos, empregaram para remodelar o Estado e a
sociedade francesa. O método dialético de Hegel é uma conquista na história somente comparável à de
Aristóteles.
Nesta palestra nos propomos a discutir os conceitos principais do método dialético. Quando consideramos na primeira
palestra as idéias fundamentais da lógica formal, principiamos por apresentar suas três leis básicas, expressando-as como
fórmulas e a seguir analisando seus aspectos aplicáveis e seus defeitos.
Às idéias do método dialético trataremos de outra forma. Não começaremos propondo uma ou mais leis fundamentais
da dialética em torno das quais gira todo o sistema lógico, como fizemos no caso da lógica formal. Não nos aproximaremos
da dialética como a um sistema fechado. Pelo contrário, é um sistema aberto e portanto nossa aproximação é flexível,
concreta mas informal.

1. Diferença na aproximação da realidade entre a lógica formal e a lógica dialética


É importante compreender os motivos dessa atitude porque surgem de uma profunda diferença de caráter entre o
pensamento formal e o dialético.
As leis e idéias básicas da lógica formal são facilmente expressáveis em simples fórmulas e equações porque estas
generalizações unilaterais expressam a natureza interna, a realidade, do pensamento formal. Como já explicamos, as leis
básicas da lógica formal não contém mais que reformulações de um mesmo conceito fixo da identidade.
O nome de lógica formal está muito bem colocado. O formalismo é sua verdadeira razão de ser e o formalismo sempre
tende a produzir fórmulas incondicionais e invariáveis do tipo das três leis da lógica formal, que crêem conter toda a
realidade com que operam. O formalismo toma o específico e o eventual que se manifesta na natureza como
final, eternamente fixo, invariável e incondicional.
A dialética se baseia num ponto de vista completamente diferente e tem uma visão distinta da realidade e suas
formas variantes. É a lógica do movimento, da evolução, da mudança. A realidade está demasiadamente cheia
de contradições, demasiadamente fugidia, por demais mutável para amarrá-la numa fórmula ou conjunto de fórmulas.
Cada fase particular da realidade constrói suas próprias leis, seus sistema de categorias peculiares, com as que
compartilha de outras fases. Estas leis e categorias devem ser descobertas por uma investigação direta da totalidade
concreta, não podem ser pensadas ou produzidas pela mente antes de ser analisada na realidade material. Além do mais,
toda realidade está em contínua mudança, descobrindo novos aspectos de si mesma, que devem ser tomados em conta e
que não podem sem enclausurados em velhas fórmulas porque não só são diferentes, mas em detalhes contraditórias com
elas.
O método dialético procura acomodar-se a estes aspectos fundamentais da realidade. Deve tomá-los como
pontos de partida e base de seus próprios procedimentos. Se a realidade está sempre mudando, concreta, cheia de
novidades, fluente como um rio, movida ao influxo de forças opostas, então a dialética, que pretende ser um autêntico
21
reflexo da realidade em termos lógicos, tem que adotar as mesmas características. O pensamento dialético deve ser
concreto, variável, sempre arejado e fluido como um riacho, pronto para detectar e usar as contradições que se lhe
apresentem.
Nós dialéticos reconhecemos que todas as fórmulas devem ser provisórias, limitadas, aproximadas, porque
todas as formas de existências são transitórias e limitadas. Isso também deve ser aplicado à ciência da dialética e à
formulação de suas leis e idéias. Uma vez que a dialética é manipulada com uma realidade sempre variante, complexa e
contraditória, suas fórmulas têm limitações intrínsecas. Em suas interações com a realidade objetiva e em seu próprio
processo de evolução relacionado com esta atividade, o pensamento dialético cria fórmulas, as mantém e logo as descarta
em cada etapa de seu crescimento. A própria dialética cresce e muda, a princípio de forma contraditória, de acordo
com as condições materiais e intelectuais específicas que governam sua evolução. Já passou por duas etapas cruciais
de evolução, na versão idealista de Hegel e na forma materialista do marxismo.
O pensamento dialético, portanto, não pode ser englobado completamente por nenhum conjunto fixo de fórmulas, nem
pode ser a dialética codificada de uma mesma forma e ao mesmo nível que a lógica formal. Exigir isto da dialética,
procurar impor fórmulas perfeitas a seus processos, significa prender-se ao método do pensamento formal. É alheio à
natureza essencial, ao espírito vivo da dialética como método de pensamento. "A teoria, amigos, é cinza, mas verde é a
árvore eterna da vida". (Goethe)
Mas isso não significa em absoluto que a dialética não esteja sujeita a leis ou que estas leis não possam ser formuladas
em termos claros. Toda lógica deve ser capaz de determinações e expressões categóricas. Se não fosse assim estas
palestras seriam uma empreitada insensata e a ciência lógica impossível. De outra forma, o pensamento lógico se
dissolveria no ceticismo ou no misticismo, que é seu resultado. Tudo o que ocorre não é resultado de forças arbitrárias,
mas de leis que operam definida e regularmente. Isto é válido para os processos mentais com os quais se maneja
diretamente a lógica dialética. As leis dos processos mentais existem. Podem ser descobertas, conhecidas e usadas.
A dialética incorpora a seu próprio sistema e usa o aparato da lógica formal: definição estrita, classificação,
coordenação de categorias, silogismos, juízos, etc. Mas faz dessas ferramentas do pensamento suas servas e não
as elege como donas do pensamento. Estes elementos da lógica devem se adaptar ao processo da realidade e
à realidade do pensamento. Não se lhes deve permitir ultrapassar os limites de sua utilidade nem forçar à realidade
objetiva e ao pensamento a adaptar-se a seus mecanismos, como fazem e exigem os formalistas fanáticos.
Na indústria as ferramentas estão subordinadas e adaptadas às necessidades do processo de produção e ao
produto, não o inverso. Assim deve ser com as ferramentas do pensamento criadas pelas lógicas formal e
dialética.. Devem encontrar seu lugar no processo de produção intelectual e cooperar com outras operações e
ferramentas para alcançar o resultado desejado: uma reprodução conceitual correta da realidade material.
Trotski, referindo-se à teorização formal de um professor alemão, Stammler, autor de um tratado sobre A Economia e a
Lei, que influiu sobre certos intelectuais socialistas europeus, assim como as idéias do filósofo Morris Cohen levaram certos
intelectuais norte-americanos, disse: "Foi simplesmente outra das inumeráveis tentativas de restringir a grande corrente
da história natural e humana, da ameba ao homem presente e do futuro, aos elos fechados das categorias eternas. Elos
que não só não são reais, como são impressões sobre o cérebro de um pedante (Minha Vida).
É difícil mudar os hábitos que nos fazem acreditar os pedantes, especialmente quando impregnaram nossas mentes
através de nossa formação por Universidades burguesas. Insistir que a dialética fornece uma expressão de suas leis e
idéias eternamente boas para qualquer intenção e lugar é pedir-lhes o impossível. A dialética não pode preencher estes
pré-requisitos. Toda tentativa de fazê-lo violaria sua natureza interna e a faria recair no formalismo.
As leis e idéias da dialética, por mais precisas e claramente delineadas que estejam, nunca podem ser mais
que aproximadamente corretas. Não podem ser universais e eternas. É importante notar que esta exigência é
requerida mais a fundo e insistentemente pelos pequeno-burgueses que chegaram ao movimento marxista ainda
subordinados ao formalismo da vida e do pensamento acadêmico. Engels disse: "Um sistema do conhecimento da
natureza e da história que seja universal e definitivo, para todos os momentos, está em contradição com as leis
fundamentais do pensamento dialético que, longe de excluí-Ia, pelo contrário a inclui, a idéia de que o conhecimento
sistemático do mundo externo pode realizar grandes avanços de geração em geração". (Anti-Düring)
Os críticos da dialética perguntam com desagrado o que os estudantes da dialética às vezes perguntam ansiosamente:
"Onde há um tratado autorizado de dialética?" Quando nos referimos às obras dos marxistas mais destacados - Marx,
Engels, Mehring, Plekanov, Lenin, Trotski, etc. - viram-se horrorizados e dizem: "Estes livros não são como os textos a que
estamos acostumados nas escolas e Universidades. As idéias não estão formatadas, nem numeradas, nem dissecadas. São
polêmicos da primeira à última página; tratam de problemas concretos de um ou outro tipo; não formulam suas leis ou
conclusões, cada uma com sua faixa e título, como oficiais de um exército. Em um lugar põem uma idéia como primeira,
em outro é ao contrário. Que pode pensar um cidadão decente de semelhante conduta?" É assim. O caráter desses
escritos marxistas não é acidental. Podemos fazer todos os textos e tratados que nos peçam sobre a dialética e suas leis.
O próprio Marx escreveu a Engels em 1885: "Se tivesse tempo de novo para semelhante trabalho, gostaria muito de fazê-
lo acessível para a inteligência humana comum, em duas ou três folhas de papel, o que há de racional no método
descoberto por Hegel, mas que ele mesmo envolveu no misticismo". (Marx-Engels Correspondência). Sem dúvida esse
trabalho teria sido de grande utilidade para todos os estudantes de lógica. Mais tarde Engels o começou em suas obras.
Ludwing Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e Anti-Düring.
Creio que uma apresentação tão sistemática como a que Marx teria escrito não satisfaria aos formalistas. Sua sede de
fórmulas, de expressões absolutas e finais não pode ser satisfeita pela dialética. De acordo com a dialética a verdade
sempre é concreta. É por isso, por exemplo, que a dialética se mostra melhor em conexão com a análise de questões
concretas em campos de experiência específicos, e através destes. Por isso assume natural e inevitavelmente um caráter
contraditório, polêmico. Não é acidental que a dialética tenha tido sua melhor expressão nos diálogos de Platão, polêmicos
em sua forma e dialéticos em seu conteúdo. Aristóteles também polemiza continuamente com os pontos de vista de seus
predecessores e contemporâneos.

22
Os pensamentos progressistas e revolucionários nas ciências têm espontaneamente um caráter mais ou
menos polêmico. Assim é o Diálogo sobre os principais sistemas universais de Galileu onde contrapõe os
esquemas astronômicos de Copérnico e Ptolomeu e pelo qual foi desterrado; o Progresso da Ciência de Bacon que
inaugurou a nova era do pensamento moderno. "Todo esse volume é um grande argumento", dizia Darwin sobre ele no
último capítulo da Origem das Espécies. Estas obras que sacudiram o mundo e estimularam o pensamento são polêmicas
em sua forma e dialéticas em seu conteúdo porque devem destruir o velho para dar lugar a novas idéias que abrem
caminho na consciência social.
Em seu famoso discurso Que é uma Constituição, reeditado em janeiro de 1942 na Fourth Internacional, Lasalle
explica como a constituição escrita de um Estado é a expressão jurídica da constituição material da estrutura
social específica, e como muda segundo as alternativas das relações de forças entre as classes. As definições formais
das constituições não podem explicar sua origem, evolução e desaparição. Por isso devemos ir às reais relações e luta de
classes da sociedade que necessariamente estabelecem as formas constitucionais, as criam, as alteram e as destroem.
Não é muito difícil redigir uma constituição. Foi feito em poucos dias. Os dirigentes bolcheviques, Lênin em particular,
escreveram uma constituição para a República Soviética em 1917 quase que de passo e de acordo com as necessidades da
luta revolucionária nessa etapa particular. Os bolcheviques não eram formais. Eles compreendiam o papel subordinado dos
documentos formais e o lugar predominante que deve ocupar, nas questões constitucionais ou não, a luta viva e as reais
relações das forças envolvidas.
O mesmo aconteceria com uma "constituição" escrita de lógica dialética. Refletiria o estado da dialética em
um dado momento e desde um ponto de vista específico e limitado. Este tipo de codificação é importante,
necessário e útil. Mas não pode substituir a atenção cuidadosa e direta que se deve prestar às realidades materiais e
forças em conflito sobre as quais se baseia a dialética e que determinam suas características e também as mudanças
sobre estas.
Temos que entender a relação entre a matéria e as formas que adota. Estas são sempre interdependentes e
surgem uma da outra. Mas, para os materialistas dialéticos, o decisivo é o movimento da matéria, agora expressado
cientificamente como a relação massa-energia e não as formas transitórias ou particulares que adota esse movimento
material em um dado momento de uma formação específica. O materialismo dialético repudia as questões formais.
Ao discutir este e outros temas relacionados com o camarada Vincent Dunne, ele ilustrou como esta exigência de uma
formulação acabada da dialética lhe lembra os militantes dos movimentos de massa que pedem instruções rígidas sobre
como negociar um acordo, levar a cabo uma greve, organizar uma equipe, etc.. Estes manuais e orientações são uma boa
ajuda, como sabem
todos os que recebem um documento de direção partidária. Mas têm limitações próprias e definidas. Não podem
substituir uma apreciação concreta da situação baseada sobre uma análise de todas as complexas circunstâncias, incluída
a relação de forças e sentido de sua evolução. Para a solução de cada problema específico é necessário algo mais. Qual é
esse ingrediente essencial?
O camarada Cannon o expressou em detalhes da seguinte forma: "Não há substituto para a inteligência". A forma mais
alta da inteligência é a guiada pelo método do materialismo dialético. Como se pode adquirir esta inteligência
marxista? Através da experiência no movimento de massas, pelo estudo, pelo pensamento crítico, pela
participação na vida e nas lutas da classe operária de forma que os movimentos, modalidades e mentalidade das
massas se tomem familiares e conhecidos. É este movimento social que deu vida ao materialismo dialético e ele que
continua inspirando e promovendo sua evolução ao comprometê-lo com a realidade concreta.
Durante a luta com os opositores pequeno-burgueses, estes exigiram respostas imediatas e globais para todo tipo de
perguntas abstratas. Que fazer e dizer se ocorrer tal ou qual coisa? Trotski lhes contestou: "Como respostas a perguntas
‘concretas', os opositores querem receitas de bolo para a época das guerras imperialistas. Não tenho intenção de escrever
este livro de receitas. Mas uma vez estabelecida nossa aproximação escrupulosa às questões fundamentais, sempre
poderemos chegar a uma solução concreta de qualquer problema concreto, por mais complicado que seja. (Em Defesa do
Marxismo)
Ninguém pode proporcionar um "livro de receitas" sobre dialética, mas as idéias fundamentais podem ser
colocadas de forma que o método possa ser entendido e usado para a solução de problemas concretos. Engels
escreveu uma vez: "Desde o momento que aceitamos a teoria da evolução todos os nossos conceitos sobre a
vida orgânica correspondem só aproximadamente à realidade. De outra forma não haveria mudança; o dia em que
no mundo orgânico os conceitos e a realidade coincidam completamente termina a evolução. O conceito peixe inclui uma
vida aquática que respira por brânquias: Como se pode passar de peixe a anfíbio sem romper com este conceito? Já foi
rompido. Agora já conhecemos toda uma série de peixes que transformaram suas bexigas natatórias em pulmões e podem
respirar ar. Como se pode passar de réptil ovíparo a mamífero que é vivíparo sem por um ou ambos os conceitos em
conflito com a realidade? Na realidade, nos monotrematas temos toda uma subclasse de mamíferos ovíparos - em 1843 eu
vi os ovos do ornitorrinco em Manchester e com arrogante estreiteza mental desviei de semelhante estupidez - como se
um mamífero pudesse por ovos! E agora foi provado. Não tenham então os mesmos conceitos que me levaram a ter que
pedir perdão ao ornitorrinco". (Marx-Engels, Correspondência)
Para as leis da dialética vale o dito pela lei do valor em economia política (e para todas as demais leis). São
reais somente como aproximações, tendências, médias. Não coincidem nem podem fazê-lo, imediata, direta e
completamente com a realidade. Se não fosse assim não seriam reflexos conceituais da realidade, mas a própria realidade
objetiva. O pensamento e a existência, mesmo sendo interdependentes, não são idênticos.

2 - As leis da realidade e sua necessidade


Com a lógica formal iniciamos esclarecendo o que é. Com a dialética, pelo contrário, começamos por explicar o que não
é. Agora propomos discutir o que a dialética é, em que consiste seu conteúdo positivo.

23
Hegel extraiu de sua filosofia e sua lógica a premissa "tudo o que é real é racional". Ainda que esta proposição
raramente se explicite em termos conscientes, guia toda a nossa prática e nossa teoria. Nos conduzimos na vida diária e
em nosso trabalho baseando-nos no fato de que existem objetos materiais com relações estáveis ao nosso redor, ocorrem
fenômenos regulares na natureza, as coisas mudam de acordo com leis definidas e essas coisas e suas conexões, estes
acontecimentos e essas leis que se repetem, podem ser conhecidos e explicados corretamente ou, como dizem os
acadêmicos, racionalmente.
A mesma regra de racionalidade do real prevalece no campo da teoria. Mais ainda, a teoria seria impossível sem esta
regra. Toda investigação científica se realiza sobre a base de que as coisas estão conectadas uma com as outras, de
modos definidos, que suas mudanças mostram uma certa uniformidade, uma certa regularidade e portanto é possível
formular leis sobre elas. Houve pensadores céticos e religiosos que negaram a racionalidade do mundo real. Este
é o postulado essencial do existencialismo. Mas mesmo aqueles filósofos que afirmaram que a realidade era irracional e
portanto não cognoscível pela mente humana, chegaram a esta conclusão por métodos racionais. Seu método racional
desmentiu sua conclusão irracional e se manteve em franca contradição com ela.
A ciência lógica deve tomar como ponto de partida a unidade dos processos subjetivos do pensamento com
os processos do mundo externo.
A natureza não pode ser irracional, nem a razão contrária à natureza. Tudo o que existe deve ter uma razão
necessária e suficiente de existência e esta razão pode ser descoberta e comunicada aos demais. Este
conceito foi formulado em 1646 por Leibnitz, o grande lógico, matemático e filósofo alemão, como "o princípio da
razão suficiente" pelo qual, diz, "sabemos que nenhum fato pode ser considerado real, nenhuma proposição verdadeira,
sem uma razão suficiente pela qual é como é e não de outra forma".
As bases materiais desta lei residem na autêntica interdependência de todas as coisas e em suas interações recíprocas.
Os aspectos do mundo real localizam a determinação conceitual e a expressão lógica em categorias como causa e efeito,
determinismo e liberdade, etc.. Se tudo o que existe tem uma razão necessária e suficiente para sua existência,
isto significa que tinha que chegar a ser. Foi levado à existência e se abriu caminho para ela por necessidade natural.
Teve que lutar contra todo tipo de forças opostas para se fazer chegar ao mundo. A realidade é provada em virtude de sua
necessidade. Realidade, racionalidade e necessidade estão intimamente associadas em todo momento.
Consideremos o movimento socialista à luz destas idéias. Até Marx, o socialismo era uma utopia, um antigo sonho
da humanidade, que não podia adquirir realidade pela falta de condições materiais. O socialismo não era real nem
necessário para a humanidade nessa etapa de sua evolução e portanto era irracional, uma alucinação, uma antecipação da
realidade.
Com o desenvolvimento do capitalismo, o socialismo se converte pela primeira vez numa perspectiva real.
Marx e Engels o demonstraram com seu socialismo científico. Descobriram teoricamente a realidade, a
racionalidade e necessidade do socialismo e da luta proletária por sua realização. Mas esta era uma antecipação
teórica da realidade, não uma perspectiva prática imediata. O socialismo era, fundamentalmente, um programa e
uma meta comparado com a realidade social do capitalismo.
Mas, com o crescimento do movimento de massas proletário e com a expansão das idéias socialistas, o
socialismo começou a adquirir então mais e mais realidade, mais e mais necessidade, mais e mais
racionalidade. Por que? Porque, como estabeleceram Marx e Engels, as idéias se convertem em forças quando as
massas as aceitam. O primeiro grande salto da idealização à realidade teve lugar na Revolução Bolchevique de 1917 que
fez o socialismo muito mais real que o capitalismo em um sexto da superfície terrestre.
Assim, a realidade do socialismo foi adquirindo mais e mais existência material. Isto é o que prova sua
racionalidade, ou seja, suas correspondência com as reais e urgentes necessidades da humanidade, e especialmente de
seu setor mais progressivo, a classe operária. O socialismo demonstrou ser o resultado racional dos esforços humanos por
melhorar suas condições. Torna-se autêntico porque é racional, ou seja, porque está em harmonia com as tendências do
progresso social. É racional porque se torna real, ou sela, uma força ativa na vida e nas lutas da humanidade. Sua
racionalidade e sua realidade reagem entre si e se reforçam.
Ao mesmo tempo, do mesmo modo que prova sua racionalidade e sua realidade, o socialismo prova também sua
necessidade. Se não fosse necessário e se não se dessem as condições para sua produção e reprodução sobre uma
extensa base, não se converteria em realidade, não perduraria nem floresceria.
Uma situação similar prevalece a respeito da origem e evolução das espécies através da luta pela existência no mundo
orgânico. As espécies persistem porque estão adaptadas às condições de seu meio. As espécies mudam, porque ocorrem
mudanças nelas mesmas que levam à seleção natural de indivíduos melhor dotados para as mudanças do meio e
eventualmente à criação de novas espécies. Existe uma relação real, racional e necessária entre as espécies de plantas ou
animais e seu meio, ainda que seja que as espécies apareçam, persistam, mudem ou desapareçam.
Se tudo o que existe na realidade é necessariamente racional, isso quer dizer que cada objeto do mundo real tem razão
suficiente para sua existência e deve ter uma explicação racional. Muitos se equivocaram por ignorar a existência ou por
negar o significado racional de alguma parte da realidade. Os gregos declararam que números como a raiz quadrada de
dois eram "irracionais" e portanto não eram números nem se devia prestar atenção a eles. Atualmente o estudo e
desenvolvimento destes números "irracionais" deu lugar a um frutífero ramo da matemática. Os filósofos gregos
depreciavam por princípio o valor da prática como elemento do conhecimento. Nós, pelo contrário,
consideramos a prática como base do verdadeiro conhecimento.
Até Freud os psicólogos consideravam os sonhos, os atos falhos, os erros verbais, como fenômenos mentais
triviais e sem significado. Freud demonstrou como estes revelavam as operações da mente inconsciente.
Da mesma forma que nas refinarias de petróleo recupera-se por destilação e craqueamento subprodutos mais valiosos
que o petróleo original, também das páginas da história têm sido recuperados inestimáveis tesouros através de processos
de pensamento e de trabalho mais profundos. Por exemplo, a concepção materialista da história se baseou, como notou

24
Engels, sobre "o simples fato, antes escondido sob excrescências ideológicas, de que os seres humanos devem primeiro
comer, beber, cobrir-se e vestir-se antes de poder voltar sua atenção à política, à ciência, às artes e à religião..."
Os fatos mais terríveis de nossa época, as crises econômicas, as guerras imperialistas e civis, o fascismo,
são irracionais, incríveis e não necessários para as mentalidades mercenárias dos democratas pequeno-
burgueses. Sem dúvida, não só são reais mas necessários, e portanto têm uma explicação racional. São os
processos mais importantes e decisivos da vida contemporânea. Expressam na natureza interna e os movimentos
compulsivos da agonia do capitalismo. São manifestações racionais de um sistema altamente irracional de relações sociais.
Mais ainda, o que parece racional e necessário aos membros de uma classe (para os operários melhores salários,
frente aos impostos excessivos e à alta do custo de vida) parece irracional e não necessário para a classe
antagônica (os patrões cujos lucros são reduzidos). O que é racional a partir de um ponto de vista social parece o cúmulo
do absurdo do outro. Esta aparente irracionalidade encontra sua explicação real e racional nos interesses contraditórios
das duas classes comprometidas na luta pela distribuição da renda nacional.
Para os liberais pequeno-burgueses também nosso movimento é irreal, demasiado insignificante para ser levado a sério
ou para que governos poderosos nos persigam. Nos "defendem" nesse sentido. Mas somos significativos para Stalin,
Hitler, Roosevelt, por nossa realidade, pelo poder social e político latente em nossas idéias. Assim, a perseguição
aparentemente irracional aos trotskistas pode ser explicada racionalmente. E nos tornaremos mais significantes à medida
que os impulsos revolucionários dos operários e dos povos coloniais obtenham uma expressão mais poderosa.
Por que surgiu nosso Partido e Movimento Internacional? O que levou indivíduos tão diferentes, de paises diferentes, a
estreitar laços políticos e a se unir disciplinadamente? Nascemos e continuamos crescendo porque nossa existência é uma
necessidade racional sob as presentes condições sociais. O movimento trotskista não é um acidente, não é uma força
trivial. Nosso movimento foi criado pela necessidade de uma direção revolucionária para a classe operária.
Nossa realidade política e nossa nacionalidade são conseqüência dessa necessidade.
Também é por isso que levamos nosso método e nossas idéias tão a sério. Os princípios e tradições segundo o qual
selecionamos nossos quadros não são secundários, mas vitais para nossa existência. É por isso que tomamos o conjunto
de nossas idéias tão seriamente, porque para nós são literalmente assunto de vida ou morte política, estamos envolvidos
com uma batalha de vida ou morte contra adversários poderosos e dissimulados, para protegê-las, preservá-las e
disseminá-las.
Somos o mais racional dos movimentos políticos porque somos, no sentido histórico, o mais real e mais
necessário. Temos que ser racionais para chegar a ser reais. Por isso podemos por tanta vida em nossa lógica e tanta
lógica em nossa vida. Para nós ambas são inseparáveis.
Há aqueles que vêm a mim e dizem: "Você faz a lógica tão viva". Isto não é mérito pessoal meu. Nossa lógica, o
materialismo dialético, é em si a lógica da vida. Está transbordante de movimento, de vitalidade, de força. A lógica dos
professores burgueses e pequeno-burgueses é mortal ao ser estudada e ensinada porque é a lógica de um universo
estático, de coisas mortas. Sua lógica tem cada vez menos conexão com a realidade atual da vida social e científica.
Pertence ao passado morto, não ao presente vivo nem ao futuro criativo. Uma lógica formalizada chegou a ser tão inútil,
tão estéril que seus professores fizeram de uma virtude sua debilidade e dizem, como Burnham, que a lógica tem pouca
ou nenhuma utilidade prática ou aplicação no mundo real. Esta é a confissão de sua bancarrota teórica.
De forma que a realidade, a racionalidade e a necessidade fogem das mãos.
Esta proposição parece justificar tudo o que existe, seja bom, mau ou diferente. Em um sentido isso é o que faz.
Porque tudo o que existe tem necessidade de justificação teórica, porque o mero fato de sua existência lhe dá direito de
reclamar racionalidade, realidade e necessidade.
Os conservadores e reacionários que se apóiam em Hegel, vêem só este aspecto de suas doutrinas; sua
justificação do que existe. Este é o aspecto conservador do pensamento de Hegel e também, se quiserem, do
método dialético em geral. Constitui um elemento indispensável da dialética, inclusive da materialista, porque as coisas
existem e se mantém por um certo tempo. Além do mais, tudo aquilo que alguma vez existiu se conserva até certo ponto
e também é destruído por aquele que surge dele e lhe sucede. O passado serve como matéria-prima para que novas
gerações trabalhem sobre ele na preparação do futuro.
Mas esta não é a verdade última de nosso conhecimento da realidade. Só é o começo da sabedoria. Em que consiste o
outro aspecto e sua dialética será tema de nossa próxima palestra.

Texto nº. 3
O MÉTODO DIALÉTICO (B)
NOVACK, George. Introdução à Lógica Marxista. Editora José Luís e Rosa Sundermann, S. P., 2006. Págs. 73 a 82.

Sexta Palestra - O MÉTODO DIALÉTICO (b)

Na última palestra consideramos o significado de duas proposições de Hegel; a verdade é concreta e tudo o que é real é
racional. Verificamos que tudo chega a existir e permanece não por acidente, mas como resultado de determinadas
condições e causas necessárias. Existe uma trama de leis através dos processos da realidade que se descobre na
existência e persistência de seus produtos. Existe uma razão no mundo real - portanto o mundo real é refletido e
trasladado racionalmente à nossa mente.
Nesta discussão queremos examinar o que aparentemente é a outra face dessa proposição, mas que, como veremos, é
um aspecto inseparável da realidade. Giremos nossa afirmação anterior . sobre seu eixo e vejamos seu aspecto negativo.
Já havíamos visto quanta verdade há na proposição de que o real é racional. Afirmamos que tudo aparece e perdura de
uma forma regulada e necessária. Mas esta não é a verdade total e última sobre as coisas. É uma verdade unilateral,
relativa e transitória. A autêntica verdade sobre as coisas é que estas não só existem e persistem, mas que

25
evoluem e desaparecem. Esta desaparição ou eventual morte das coisas é expressada na terminologia lógica pelo termo
"negação". A verdade total sobre as coisas só pode ser expressada se tivermos em conta este aspecto oposto e
negativo. Em outras palavras, a menos que incluamos a negação de nossa afirmação prévia, tenderemos a uma
investigação superficial e abstrata da realidade.
Todas as coisas são limitadas e variantes. Não só abrem caminho e são impulsionadas à existência e se mantém
ali. Também evoluem, se desintegram, são separadas da existência e eventualmente desaparecem. Em termos lógicos
diríamos que não só se afirmam mas que também se negam e são negadas por outras. Ao chegar à existência
dizem : "Sim, aqui estou!" à realidade e ao pensamento que procura compreendê-las. Ao evoluir e eventualmente deixar
de existir dizem, pelo contrário: "Não, já não estou mais; não posso continuar sendo real". Se tudo o que chega a existir
deve deixar de fazê-lo, como nos demonstra constantemente a realidade, então toda afirmação deve inexoravelmente
expressar sua negação no pensamento lógico. Este movimento das coisas e do pensamento se chama
movimento dialético.
"Todas as coisas... encontram seu fim; e ao dizer isto temos uma percepção de que a dialética é o poder universal e
irresistível perante o qual nada pode ser mantido, por mais seguro e estável que pareça a si mesmo", escreve Hegel,
(Enciclopédia das Ciências Filosóficas).
Há uma fábula nas Mil e uma Noites sobre um monarca oriental que, bem jovem, perguntou a seus sábios pela soma e
conteúdo de todo o saber, pela verdade que pudesse ser aplicada a todos e em todos os tempos e sob todas as condições,
uma verdade que fosse tão absolutamente soberana como ele pensava que era. Finalmente, em seu leito de morte seus
sábios lhe deram a seguinte resposta: "Oh, poderoso rei, esta verdade será aplicada sempre a todas as coisas. E isto
também desaparecerá!" Se a justiça houvesse prevalecido, o rei deveria ter outorgado uma boa recompensa a seus sábios
porque lhe haviam revelado o segredo da dialética. Este é o poder, a onipotência do lado negativo da existência que
sempre está surgindo do afirmativo, aniquilando-o e transcendendo-o.
Esta "poderosa inquietude", como a chamou Leibnitz, esta força aceleradora e ação destrutiva da vida - a negativa -
está presente em tudo: no movimento das coisas, no crescimento dos seres vivos, na transformação das substâncias, na
evolução da sociedade e na mente humana que reflete todos estes processos objetivos.
Desta essência dialética da realidade, Hegel tirou a conclusão que é parte indispensável de seu famoso aforismo "tudo o
que é racional é real". Mas, para Hegel, nem tudo o que é real deve, sem exceção ou qualificação, existir. "A existência é
em parte mera aparência e só em parte realidade". (Introdução à Enciclopédia das Ciências Filosóficas). A existência
divide a si mesma, elementar e necessariamente, (e ao investigá-Ia encontra-se-lhe assim dividida) em aspectos opostos
de aparência e essência. Este desdobramento em aparência e essência não é mais misterioso que a diferenciação entre o
interior e o exterior de um objeto.
O que distingue a essência ou realidade essencial da mera aparência'? Uma coisa é autenticamente real se
é necessária, se sua aparência corresponde totalmente à sua essência e somente enquanto prove ser
necessária. Hegel, ao ser o idealista mais conseqüente, buscou a origem desta necessidade no movimento da
mente universal, na Idéia Absoluta. Os materialistas, pelo contrário, reviram as raízes da necessidade no mundo
objetivo, nas condições materiais e nas forças conflitantes que criam, sustentam e destroem todas as coisas.
Mas desde um ponto de vista puramente lógico, ambas as escolas filosóficas estão de acordo em conectar realidade com
necessidade.
Alguma coisa adquire realidade porque as condições necessárias para sua produção estão presentes e operando
objetivamente. Se torna mais ou menos real de acordo com as mudanças nas circunstâncias externas e internas de sua
evolução. Permanece verdadeiramente real somente, sempre e quando seja necessária, sob as condições dadas. Logo,
quando as condições mudam, perde sua necessidade e sua realidade e se dissolve em mera aparência.
Exemplifiquemos este processo, esta contradição entre essência e aparência, que resulta das diferentes formas
adotadas pela matéria como resultado de sua mobilidade. Na produção da planta, semente, broto, flor e fruto são fases ou
formas igualmente necessárias de sua existência. Tomadas em separado, são fases igualmente reais, igualmente
necessárias e racionais da evolução da planta.
Sem dúvida, cada uma a sua vez é suplantada pela outra e se torna não necessária e não real. Cada forma de
manifestação da planta aparece como uma realidade, para se converter a seguir em uma irrealidade ou uma aparência.
Este movimento, triplo no caso, de irrealidade à realidade e logo à irrealidade novamente, constitui a essência, o
movimento intrínseco contido em toda aparência. A aparência não pode ser compreendida se não se compreende este
processo. É isso o que determina quando uma aparência, na natureza, na sociedade ou na mente, é racional ou não-
racional.
Engels escreveu: "A República Romana foi real, mas também o foi o Império Romano que a substituiu. Em 1789 a
monarquia francesa havia se tornado tão irreal, ou seja, estava tão sem necessidade, tão não-racional, que teve que ser
destruída pela Grande Revolução (francesa), da qual Hegel sempre falou com o máximo entusiasmo. Neste caso a
monarquia era o irreal e a revolução o real. Assim, no curso da evolução, tudo o que previamente era real se toma irreal,
perde sua necessidade, seu direito à existência, sua racionalidade.
E em substituição à realidade moribunda aparece uma nova realidade vital. Praticamente se a velha tem inteligência
suficiente para morrer sem luta, pela força se aquela resiste a essa necessidade. Assim a proposição hegeliana se
transforma em sua oposta, através da mesma dialética hegeliana: tudo o que é real na esfera da história humana se torna
irracional com o decorrer do tempo e está portanto destinado a ser irracional, está previamente tingido de irracionalidade
e tudo o que é racional na mente dos homens está destinado a tornar-se real, por mais que contradiga a aparente
realidade das condições existentes. De acordo com as regras do método hegeliano de pensamento, a proposição
da racionalidade de tudo o que é real se resolve na outra proposição: Tudo o que existe deve perecer" (L.Fe. e
o fim da Filosofia Clássica Alemã).
O capitalismo foi em seu momento um sistema social real e necessário. Chegou a existir em função das condições
sociais existentes e do crescimento das forças produtivas do homem. Apareceu e continuou a extender-se pelo mundo em

26
sua marcha triunfal derrubando, subordinando ou suplantando as relações sociais anteriores. Provou assim sua
necessidade, sua inevitabilidade na prática histórica, estabelecendo sua realidade e racionalidade e exercendo seu poder
na sociedade.
Existe uma parte de verdade na afirmação que tanto horroriza aos filisteus "o poder faz o direito". Mas os filisteus, na
sua carência de dialética, não entendem que a proposição contrária é igualmente válida: "O direito faz o poder'". Hoje em
dia o capitalismo acabou com sua corda e está mais que pronto para a sepultura. Este antiquado sistema de produção é
não-necessário, irreal, irracional no século XX; era o contrário quando surgiu no século XV e através dos séculos XVIII e
XIX. Tem que ser abolido ou negado se a humanidade vai viver e progredir. Será negado em todo o mundo por toda uma
força social dentro do mesmo capitalismo que é muito mais real e poderosa, muito mais necessária e racional que o
imperialismo capitalista: o proletariado socialista e seus aliados, os povos coloniais oprimidos.
A classe trabalhadora tem, de sua parte, a razão histórica, e portanto, o direito histórico. Isto provará ser mais efetivo
que todo poder que possui agora a reação capitalista e o que possa haver acumulado no passado. Que esta razão e este
direito podem tomar-se suficientemente poderosos para derrubar o capitalismo já foi demonstrado na prática pela
Revolução de Outubro de 1917. Esta negação do poder capitalista foi a afirmação mais contundente possível do direito
social e político dos operários de reger e reconstruir a ordem social.
Vemos assim que a negação não é algo estéril ou autodestrutivo. Também é seu oposto, a mais positiva e
poderosa das afirmações. Do mesmo modo que a afirmação se transforma, necessariamente, em negação e por sua vez
a negação mostra seu lado positivo, como a negação da negação, ou seja, uma afirmação inteiramente nova que, por sua
vez, contém o germe de sua própria negação. Esta é a dialética da evolução, a necessária transformação de um
processo em outro.
Na etapa de formação do movimento trotskista era necessário e correto que tentássemos permanecer ligados à
decadente Terceira Internacional, reformar seu curso retrógrado e ganhar as massas de trabalhadores revolucionários de
suas sessões para o programa bolchevique de Lênin. Quando ocorreu a rendição ao hitlerismo na Alemanha em 1933, sem
que isso provocasse sérias repercussões em suas fileiras, se tornou evidente que o processo de decadência havia
alcançado seu ápice. As mudanças quantitativas haviam levado a uma nova qualidade. A Terceira Internacional não tinha
cura, estava morta e havia se tornado, como a Segunda Internacional, um "cadáver mal-cheiroso". Stalin a enterrou em
1943.
Nossa política original em relação ao Comintern se tornou portanto não-necessária, incorreta, inútil e não-realista. A
nova etapa de desenvolvimento demandava uma nova política e um novo curso ajustados às novas condições. Os
trotskistas tiveram que romper os laços que os uniam à estalinizada Terceira Internacional e começar a construir uma
internacional nova e completamente independente, a Quarta. A tentativa de reforma da Terceira Internacional foi
substituída pela de criar uma organização internacional genuinamente revolucionária da classe operária.
Alguns viram -e ainda vêem -uma indissolúvel contradição nesta seqüência de fatos. Como pode ser possível a reforma
do Comintern em um momento e logo favorecer sua destruição? Eram formalistas até o pedantismo e nada dialéticos em
seu pensamento e atividade política. Não entendiam que era necessário e racional mudar a política e a estratégia de
acordo com as mudanças da realidade objetiva. Não compreendem que políticas diferentes e ainda contraditórias podem
servir aos mesmos fins estratégicos. Em termos lógicos não compreendem como o que é diferente em aparência pode
permanecer idêntico em essência ou, mais globalmente, que o que pode parecer diferente é, às vezes, idêntico. Eles
arrazoam de acordo com a lei da identidade da lógica formal: o que é idêntico deve sempre permanecer igual, tanto em
aparência como em essência, sem importar as circunstâncias. Mas a dialética ensina que o que é idêntico não só pode,
mas deve mudar.
O mesmo problema surgiu em cada nova etapa do desenvolvimento de nosso movimento. Cada mudança em nossa
tática política, necessária pelas variantes condições do movimento, provocou uma luta entre formalistas e dialéticos. Na
unidade que se fez em 1934 com o American Workers Party, os sectários seguidores de Oehler - que se opunham à fusão
e pretendiam estipular condições e travas formais aos centristas de Muste – postulavam que havia significado impedir a
frutífera unificação de dois grupos políticos diferentes. Romperam por sua incapacidade de reconhecer seu formalismo com
a necessidade de construir um partido revolucionário em nosso país.
Os formalistas se opuseram a entrar no Partido Socialista em 1935 porque queriam manter a forma de organização
partidária, sem dar importância às importantes necessidades políticas do processo de construção do partido proletário.
Pensavam que nosso Partido tinha alcançado uma estrutura organizacional acabada, quando recém se encontrava no
começo de sua estruturação. O afastamento do Partido Socialista, por sua vez, encontrou oposição por parte de outros
formalistas, que haviam começado a se acomodar, mesmo quando as necessidades políticas determinavam que a luta
contra o centrismo devia ser levada até o fim. Pode ser importante ressaltar que alguns dos mesmos indivíduos que se
opuseram à nossa entrada no Partido Socialista, foram os mais frouxos a abandoná-lo (Martin Abern). Quanto maior é a
mudança, mais se mantém o formalismo fiel a si mesmo e por isto não coincide com a realidade.
Todas estas diferentes ações, que pareciam tão contraditórias e portanto incompreensíveis para os formalistas e
sectários, foram etapas igualmente necessárias e racionais com o processo dialético de reunir nossas forças. As fórmulas
táticas, como todas as fórmulas, devem se adaptar ao curso mutável dos acontecimentos reais.
Poderíamos citar muitas outras instâncias destes giros dialéticos na história de nosso Partido: o passo ao Programa de
Transição, nossa mudança de atitude frente à formação de um Partido Trabalhista, etc.. Tudo isso confirma, à sua
maneira, a verdade dialética de que toda evolução real ocorre de forma contraditória, pelo conflito entre forças opostas
que rodeiam e formam parte de todo o existente. Nada é inalterável nem está terminado. Tudo termina no curso da
evolução. A necessidade se converte em ausência de necessidade ou em contingência ou em mudança; a realidade se
transforma em irrealidade ou aparência, a racionalidade se converte em irracionalidade; a verdade de ontem se toma hoje
uma meia verdade, amanhã um erro para logo ser absoluta falsidade.
Hegel generalizou este aspecto da realidade em sua lei lógica de que tudo, necessária, natural e
razoavelmente, se converte em seu oposto no curso de sua existência. De acordo com as leis da lógica formal isso

27
é impossível, ilógico e absurdo porque é autocontraditório. Em lógica formal a contradição e especialmente a
autocontradição são impossíveis na realidade, assim como ilegítimas no pensamento.
Ao introduzir a dialética, Hegel inverteu e subverteu totalmente esta lei básica da lógica formal e revolucionou a ciência
lógica. Em vez de eliminar a contradição a converteu em chave de seu conceito da realidade e de seu sistema lógico. Toda
a estrutura lógica de Hegel é originada da proposição de identidade, unidade e interpenetração dos opostos.
Uma coisa não só é ela mesma, mas ao mesmo tempo outra. A não é simplesmente igual a A; também é, mais
profundamente, igual a não A.
Assim como afirmamos que o grande achado de Aristóteles foi haver analisado a profunda descoberta de
seus predecessores gregos de que A é igual a A e haver feito desta lei de identidade a base de uma exposição
sistemática da ciência lógica, foi um fato que fez época a sistematização feita por Hegel da descoberta de que A é
igual não só a A, mas também a não-A. Hegel fez desta lei de identidade, unidade e interpenetração de dois opostos a
base de seu sistema dialético de lógica.
Esta lei de unidade dos opostos que tanto horroriza e aniquila os adeptos da lógica formal, pode ser facilmente
entendida não só quando se aplica a processos reais de evolução e interrelação de fatos, mas também quando enfrenta a
lei formal de identidade. É logicamente certo que A é igual a A, que João é João e que dois e dois são quatro. Mas é muito
mais profundamente certo que A é também não-A. Que João não é simplesmente João: é um homem. Esta proposição
correta não é uma afirmação de identidade abstrata, mas uma identificação de opostos. A categoria lógica ou classe
material humanidade com a qual identificamos João é muito mais e diferente de João, o indivíduo. A humanidade é ao
mesmo tempo idêntica a João e diferente dele.
A lógica formal não encontra mais utilidade à oposição (nem falemos da contradição) de que os indígenas americanos
faziam ao petróleo ou os totalitários fazem à democracia. Ou a ignoram ou a jogam no lixo. Hegel recuperou esta pedra
preciosa, lapidou e poliu suas facetas e assim fez uma valiosa contribuição à lógica. Demonstrou que a contradição e a
oposição, em lugar de ser insignificantes ou desprezíveis, são os fatores mais importantes na natureza, na sociedade e no
pensamento. Somente compreendendo-as totalmente podermos compreender a força motriz da realidade, da vida. Por
esta razão Hegel fez dela o fundamento de sua lógica.
"Em vez de nos bancarmos na máxima do terceiro excluído (que é a máxima da compreensão abstrata) deveríamos
dizer melhor: Tudo é seu oposto. Nem no céu nem na terra, nem no mundo nem na natureza, existe um 'isto-ou-aquilo'
como sustenta o pensamento do senso comum. Tudo o que é, é concreto, com diferença e oposição em seu seio. A
finalidade das coisas reside na necessidade de correspondência entre seu ser imediato e o que são virtualmente"
(Enciclopédia).
Consideremos, por exemplo, as duas proposições que temos vindo analisando. A segunda: "Tudo que é racional é real",
afirma o oposta da primeira e, na realidade a contradiz: "Tudo o que é real é racional". Hegel não se molestou com esta
contradição. Pelo contrário, como dialético, utilizou esta contradição como guia para chegar à essência da realidade. Ele
entendeu que se tratava de uma verdadeira contradição e a aceitou e trabalhou com ela, porque tanto a oposição como a
contraposição são genuinamente reais e racionais. Esta contradição em particular expressa a natureza inerente das coisas
e surge do caráter contraditório da própria realidade.
Os lógicos formais decretam sua lei de identidade da mesma forma que os monarcas absolutos ditam as leis a seus
súditos. Esta é a lei: não ousem violá-la. Da mesma forma que surgem rebelando-se os súditos conta as políticas
absolutistas, também as forças da realidade seguem contrariando e violando as leis da lógica formal. Os processos da
natureza estão permanentemente contradizendo-se em sua evolução. O broto nega a semente, a flor nega o broto,
o fruto nega a flor. O mesmo é válido para a sociedade. O capitalismo nega ao feudalismo, o socialismo ao
capitalismo. "Acima de todas as coisas, a contradição é a que move o mundo; é ridículo dizer que a contradição é
impensável. O correto nesta proposição é que a contradição não é o fim da questão, mas invalida a si própria".
(Enciclopédia)
A flor que nega o broto é por sua vez negada pelo fruto. O capitalismo que substitui o feudalismo é por sua vez
substituído pelo socialismo. Este processo é conhecido, na lógica, como a lei da negação da negação.
Neste movimento dialético, nesta passagem dentro e fora da oposição reside o segredo do movimento de todo o real.
Portanto, ali está também a principal fonte do método dialético de lógica, que é uma translação conceitual correta dos
processos de evolução da realidade. A dialética é a lógica da matéria em movimento e portanto a lógica das contradições,
porque a evolução é intrinsecamente autocontraditória. Tudo gera em si mesmo essa força que leva à sua negação, sua
transformação em outra e mais elevada forma de existência.
"Onde quer que exista movimento, onde quer que haja vida, onde quer que algo se leve a cabo no mundo
real, atua a dialética. É também a alma de todo o conhecimento cientifico. Para a visão popular das coisas, a negativa
de sujeitar-se a alguma forma abstrata do conhecimento é considerada só justiça. Como diz o provérbio, viva e deixa
viver. Cada um deve ter sua vez; admitimos um, mas admitimos também o outro.
"Mas, se analisamos mais de perto, encontramos que as limitações do finito [assim como as do infinito (George
Novack)] não vêm somente de fora; que (em cada caso e à sua maneira) sua própria natureza é a causa de sua liquidação
e que por seus próprios meios se transforma em seu oposto. Dizemos, por exemplo, que o homem é mortal e que parece
que pensávamos que a origem de sua morte se deve a circunstâncias externas somente, de forma que, se este modo de
ver as coisas fosse correto, o homem teria duas propriedades especiais, vitalidade e mortalidade. Mas a visão correta do
assunto é que a vida, como vida, envolve (a partir de um princípio) o germe da morte e que o finito, em luta consigo
mesmo, causa sua própria dissolução" (Enciclopédia). Locke, entre outros, expôs a mesma idéia ao afirmar que tudo que
existe está em processo de "perpétuo perecer".
Esta atividade dialética é universal. Não há possibilidade de escapar a seu irremissível e incessante abraço. "A dialética
dá forma a uma lei que é sentida em todos os graus da consciência e na experiência geral. Tudo que nos rodeia pode ser
visto como uma instância da dialética. Estamos prevenidos de que todo o finito, em vez de ser inflexível e final, é variável

28
e transitório; e isto é exatamente o que queremos dizer com a dialética do finito, pela qual o finito, ao ser implicitamente
outro, se vê obrigado a abandonar seu próprio ser imediato ou natural, e a converter-se em seu oposto" (Enciclopédia).
O civil é o oposto ao soldado. Contudo, a convocação militar ensina a muitos civis que sua condição de civil não é
"inflexível e final, mas variável e transitória" e que está obrigado a abandonar seu próprio ser imediato e convencional
para se converter, subitamente, em seu oposto. Pode ignorar que este é um lugar comum da transformação dialética,
ainda que conheça o caráter imperialista que contém por si a guerra, mas a ignorância do indivíduo não altera o caráter
dialético do processo.
Esta dialética é o aspecto revolucionário da doutrina de Hegel. "Mas precisamente ali jaz o verdadeiro
significado e o caráter revolucionário da filosofia hegeliana... em que destronava para sempre o caráter
definitivo de todos os resultados do pensamento e da ação do homem. Em Hegel, a verdade procurada pela
filosofia não era uma coleção de teses dogmáticas fixas que, uma vez encontradas, basta memorizá-las; agora, a verdade
residia no próprio processo do conhecimento, na larga trajetória histórica da ciência que, desde as etapas inferiores, se
remonta a fases cada vez mais altas de conhecimento mas sem chegar jamais, pela descoberta de uma chamada verdade
absoluta, a um ponto em que já não possa seguir avançando, em que só lhe reste cravar os braços e sentar a apreciar a
verdade absoluta conquistada.
"E o que é bom no reino do conhecimento filosófico o é também para qualquer outro tipo de conhecimento e também
para assuntos práticos. Da mesma forma que o conhecimento é incapaz de alcançar uma culminação perfeita em uma
condição perfeita, ideal da humanidade, assim também a história é incapaz de fazê-lo; uma sociedade perfeita, um estado
perfeito são coisas que só podem existir na imaginação. Pelo contrário, as sucessivas situações históricas são só
etapas transitórias do curso inacabável da evolução da sociedade humana, do mais baixo ao mais alto.
"Cada etapa é necessária e portanto justificada para o momento e as condições a que deve sua origem. Mas, nas novas
e superiores condições que gradualmente gera em sua própria origem, perde sua validade e justificação. Deve dar lugar a
uma forma superior que também por sua vez decai e morre. Assim como a burguesia com a indústria em grande escala, a
competição e o mercado mundial, dissolve na prática todas as instituições estáveis, amplamente honradas, também esta
visão dialética do mundo dissolve todas as concepções de verdade absoluta e final e de um estado absoluto e final
correspondente a esta. Para ela nada é final, absoluto, sagrado. Revela o caráter transitório de tudo em tudo, nada pode
perdurar depois dela, exceto o ininterrupto processo de aparição e desaparição, da inesgotável influência desde o inferior
ao superior.
"E a visão dialética do mundo em si não é mais que o mero reflexo deste processo na mente humana pensante.
Também tem, é claro, seu lado conservador, reconhece que determinados estágios do conhecimento e da sociedade estão
justificados para seu momento e circunstâncias; mas só dentro de certos limites. O conservadorismo deste modo de ver as
coisas é relativo; seu caráter revolucionário é absoluto, o único absoluto que admite" (Engels: Ludwing Feuerbach e o fim
da filosofia clássica alemã).

Texto nº. 4
TROTSKY, Leon. Em defesa do Marxismo, São Paulo: proposta Editorial Ltda, pág. 71 a 72.

O pensamento vulgar trabalha com conceitos tais como capitalismo, moral, liberdade, Estado operário etc.,
considerando-os como abstrações fixas, presumindo que capitalismo é igual a capitalismo, moral é igual a moral etc. O
pensamento dialético analisa todas as coisas e fenômenos em suas mudanças continuas, uma vez que determina, nas
condições materiais daquelas modificações, esse limite critico em que “A” deixa de ser “A”, um Estado operário deixa de
ser um Estado operário.
O vício fundamental do pensamento vulgar radica no fato de querer se contentar com fotografias inertes de uma
realidade que se compõem de eterno movimento. O pensamento dialético dá aos conceitos, através de aproximações,
sucessivas, correções, concreções, riqueza de conteúdo e flexibilidade; diria, inclusive, até certa suculência que, em certa
medida, os aproxima dos fenômenos vivos. Não existe um capitalismo em geral, mas um capitalismo dado, em uma
determinada etapa de desenvolvimento. Não existe um Estado operário em geral, mas um Estado operário determinado,
em um país atrasado, rodeado por um certo capitalista etc.
A relação entre o pensamento dialético e o pensamento comum é semelhante ao de um filme com uma fotografia. O
filme não invalida a fotografia imóvel, mas combina uma série delas, de acordo com as leis do movimento. A dialética não
nega o silogismo, mas nos ensina a combinar os silogismos de tal forma que nos leve a uma compreensão mais certeira da
realidade eternamente em mudança. Hegel, em sua Lógica, estabeleceu uma série de leis: mudança de quantidade em
qualidade, desenvolvimento através das contradições, conflito entre o conceito e a forma, interrupção da continuidade,
mudança e possibilidade em inevitabilidade etc., que são tão importantes para o pensamento teórico como o silogismo
simples para as tarefas mais elementares.

Texto nº. 5
O CARATER REVOLUCIONÁRIO DA FILOSOFIA DE HEGEL E O MATERIALISMO
ENGELS, F. LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ. Marx/Engels O.E. S.P: Alfa-Omega v. 3. pág. 171 a 177.

A obra em questão faz-nos recuar a uma época que, separada de nós no tempo por toda uma geração, já é ato tão
estranho para os alemães de hoje como se todo um século tivesse decorrido desde então. E, no entanto, foi a época da
preparação da Alemanha para a revolução de 1848; e tudo o que vem ocorrendo, até hoje, em nosso país, nada mais é
que uma continuação de 1848, a execução do testamento da revolução.

29
Tanto quanto na França do século XVIII, a revolução filosófica foi na Alemanha do século XIX o prelúdio do
desmoronamento político. Mas quanta diferença entre uma e outra! Os franceses em luta aberta contra toda a ciência
oficial, contra a Igreja e, não raro, mesmo contra o Estado; suas obras impressas fora das fronteiras, na Holanda ou na
Inglaterra, e, além disso, os autores, com muita freqüência, iam dar com os costados na Bastilha. Os alemães, ao
contrário, eram professores cujas mãos o Estado colocava a educação da juventude; suas obras; livros de texto
consagrados; e o sistema que coroava todo o processo de desenvolvimento – o sistema de Hegel – era inclusive elevado,
em certa medida, ao nível de filosofia oficial do Estado monárquico prussiano! Como poderia a revolução esconder-se por
trás desses professores, por trás de suas palavras pedantemente obscuras e de suas frases longas e aborrecidas? Pois não
eram precisamente os liberais, considerados então os verdadeiros representantes da revolução, os inimigos mais
encarniçados desta filosofia que trazia confusão às consciências? O que, enfrentando, não puderam ver nem o governo
nem os liberais, viu-o pelo menos um homem, já em 1833, que, aliás, se chamava Henrich Heine.
Exemplifiquemos. Nunca houve uma tese filosófica que atraísse tanto o reconhecimento de governos míopes e a cólera
de liberais, não menos curtos de visão, como a famosa tese de Hegel: “Tudo o que é real é racional; e tudo o que é
racional é real”. Não era, concretamente, a satisfação de tudo que existe, a benção filosófica dada ao despotismo, ao
Estado policial, à justiça de gabinete, à censura? Assim acreditavam, realmente, Frederico Guilherme III e seus súbitos.
Para Hegel, porém, o que existe está longe de ser real pelo simples fato de existir. Em sua doutrina, o atributo da
realidade corresponde apenas ao que, além de existir, é necessário; “em seu desdobramento, a realidade revela-se como
necessidade”. Eis porque Hegel não considera, absolutamente, como real, pelo simples fato de ser imposta, qualquer
medida governamental – como um “sistema tributário determinado”, exemplo citado por ele mesmo. Entretanto, o que é
necessário demonstra-se também, em última instância, como racional. Assim, aplicada ao Estado prussiano da época, a
tese hegeliana permite uma única interpretação: este Estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é
necessário; se, no entanto, nos parece mal, e continua existindo, apesar disso, a má qualidade do governo justifica-se e
explica-se pela má qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos da época tinham o governo que mereciam.
Contudo, segundo Hegel, a realidade não constitui absolutamente um atributo que, em todas as circunstâncias e em
todas as épocas, seja inerente a um determinado estado de coisas político ou social. Ao contrário. A república romana era
real, mas o império romano que a suplantou também o era. Em 1789, a monarquia francesa se havia tornado tão irreal,
isto é, tão destruída de toda necessidade, tão irracional, que teve de ser varrida pela grande Revolução, de que Hegel
falava sempre com o maior entusiasmo. Aqui, pois o irreal era a monarquia e o real era a revolução. E assim, no processo
de desenvolvimento, tudo que antes era real se transforma em irreal, perde sua necessidade, seu direito de existir, seu
caráter racional; à realidade que agoniza sucede uma realidade nova e vital; pacificamente, se o que caduca é bastante
razoável para desaparecer sem luta; pela força, se se rebela contra essa necessidade. A tese de Hegel transforma-se
assim pela própria dialética hegeliana, em seu contrário: tudo que é real, nos domínios da história humana, converte-se
em irracional, com o correr do tempo; já o é, portanto, por seu próprio destino, leva previamente, em si mesmo, o germe
do irracional, e tudo que é racional na cabeça do homem está destinado a ser real um dia, por mais que ainda se choque
hoje com a aparente realidade existente. A tese de que tudo que é real é racional se resolve, segundo todas as regras do
método de pensamento de Hegel, nesta outra: tudo o que existe merece perecer.
E nisso, precisamente, residia a significação real e o caráter revolucionário da filosofia hegeliana (à qual nos
limitaremos aqui, como coroamento de todo o movimento filosófico iniciado por Kant): ela acabou, para sempre, com o
caráter definitivo de todos os resultados do pensamento e da ação do homem. Em Hegel, a verdade que a filosofia
procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas que, uma vez descobertas, bastaria guardar de
memória; agora a verdade residia no próprio processo do conhecimento, através do longo desenvolvimento histórico da
ciência, que sobe, dos degraus inferiores, até os mais elevados do conhecimento, sem porém, alcançar jamais, com o
descobrimento de uma pretensa verdade absoluta, um nível em que já não se possa continuar avançando, em que nada
mais reste senão cruzar os braços e contemplar verdade absoluta conquistada. E isso não se passava apenas no terreno
da filosofia, mas nos demais ramos do conhecimento e no domínio da atividade prática. Da mesma forma que o
conhecimento, também a história nunca poderá encontrar seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito da
humanidade; uma sociedade perfeita, um “Estado” perfeito, são coisas que só podem existir na imaginação. Pelo contrário,
todas as etapas históricas que se sucedem nada mais são que outras tantas fases transitórias no processo de
desenvolvimento infinito da sociedade humana, do inferior para o superior. Todas as fases são necessárias, e, portanto,
legítimas para a época e as condições que as originam; uma vez, porém, que surgem condições novas e superiores,
amadurecidas pouco a pouco em seu próprio seio, elas caducam e perdem sua razão de ser e devem ceder o lugar a uma
etapa mais alta, a qual, por sua vez, também terá um dia de envelhecer e perecer. Da mesma forma que, através da
grande indústria, da livre concorrência e do mercado mundial, a burguesia liquida na prática todas as instituições estáveis,
consagradas por uma venerável antiguidade, esta filosofia dialética põe fim a todas idéias de verdade absoluta e definitiva,
e a um conseqüente estágio absoluto da humanidade. Diante dela, nada é definitivo, absoluto, sagrado; ela faz ressaltar o
que há de transitório em tudo que existe; e só deixar de pé o processo ininterrupto do vir-a-ser e do parecer, uma
ascensão infinita do inferior ao superior, cujo mero reflexo no cérebro pensante é esta própria filosofia. É verdade que ela
tem também seu aspecto conservador quando reconhece a legitimidade de determinadas formas sociais e de
conhecimento, para sua época e sob suas circunstâncias; mas não vai alem disso. O conservantismo desta concepção é
relativo; seu caráter revolucionário é absoluto, e a única coisa absoluta que ela deixa de pé.
É desnecessário discutir, aqui, se este ponto-de-vista está plenamente de acordo com o atual estado das ciências
naturais que prevêem um fim possível à própria Terra e fim quase certo à sua habitabilidade; isto é, que confere à história
da humanidade não apenas um ramo ascendente, como também um descendente. De qualquer forma, estamos ainda
bastante longe também do ápice de onde a história da sociedade começará a declinar e não podemos exigir tampouco que
a filosofia hegeliana se preocupe com um problema que as ciências naturais de sua época não tinham ainda colocado na
ordem-do-dia.

30
O que se pode, entretanto, dizer é que a argumentação que acabamos de apresentar não se encontra desenvolvida, em
Hegel, com a mesma nitidez. Ela decorre, necessariamente, em seu método, mas o autor jamais a deduziu com a mesma
clareza. E, isto, pela simples razão de que Hegel se via espremido pela necessidade de construir um sistema, e um sistema
filosófico, de acordo com as exigências tradicionais, deve ser coroado com uma espécie qualquer de verdade absoluta. Daí
porque, embora Hegel insista, particularmente em sua Lógica, em que essa verdade absoluta nada mais é que o mesmo
processo lógico (e por sua vez histórico), é obrigado a pôr um ponto final nesse processo, já que, necessariamente, tinha
que chegar a um fim fosse qual fosse, com o seu sistema. Na lógica, pode fazer novamente desse fim um ponto de
partida, pois ali o ponto final, a idéia absoluta - que só tem de absoluto o fato de que ele nada sabe dizer sobre ela - se
“exterioriza isto é, transforma-se na natureza, mas para mais tarde recobrar seu ser no espírito, ou seja, no pensamento e
na história. Entretanto, só há um meio para essa volta ao ponto de partida no momento em que se chega ao fim de sua
filosofia: é supor que a história chega a seu ponto final no momento em que a humanidade toma consciência dessa mesma
idéia absoluta e proclama que essa consciência se adquire através da filosofia hegeliana. Com isso, porém, proclama-se
como verdade absoluta todo o conteúdo dogmático do sistema de Hegel, o que está em contradição com seu método
dialético que se opõe a todo dogmático. Assim, o lado revolucionário da doutrina de Hegel morre asfixiado pelo seu lado
conservador. O que dizemos do conhecimento filosófico é, também, aplicável à prática histórica. A humanidade, que na
pessoa de Hegel foi capaz de descobrir a idéia absoluta, deve também na prática ser capaz de implantar essa idéia
absoluta na realidade. As exigências políticas práticas que a idéia absoluta coloca para seus contemporâneos não devem,
portanto ser demasiado surpreendentes. E assim que, no final da Filosofia do Direito, constata-se que a idéia absoluta
devia tomar forma naquela monarquia representativa que Frederico Guilherme III prometera a seus súditos tão
tenazmente e tão em vão, isto é, uma dominação das classes possuidoras, em forma indireta, limitada e moderada,
adaptada as condições pequeno-burguesas, da Alemanha de então; demonstrando-se ainda, de passagem, por via
especulativa, a necessidade da aristocracia.
Como se vê, as necessidades internas do sistema conseguem explicar como, de um método de pensamento
absolutamente revolucionário, pode decorrer uma conclusão política extremamente dócil. Aliás, a forma específica dessa
conclusão provém de que Hegel era um alemão e, como seu contemporâneo Goethe, guardava seu lado de filisteu. Hegel e
Goethe eram verdadeiros Júpiteres olímpicos, cada um em seu domínio, mas nunca chegaram a livrar-se inteiramente do
que tinham de filisteus alemães.
Tudo isto não impedia, porém o sistema hegeliano de abarcar um campo incomparavelmente mais vasto que o de todos
os que haviam procedido, e de desenvolver, nesse domínio, uma riqueza de pensamento que causa assombro, ainda hoje.
Fenomenologia do Espírito que poderíamos chamar um paralelo da embriologia e da paleontologia do espírito: o
desenvolvimento da consciência individual concebido, através de suas diferentes etapas, como a reprodução abreviada das
bases por que, historicamente, passa a consciência do homem. Lógica, Filosofia da Natureza, Filosofia do Espírito, também
investigada em suas diversas subcategorias históricas: Filosofia da História, do Direito, História da Filosofia, Estética, etc. -
em todos esses variados domínios da história, Hegel esforçou-se por descobrir e demonstrar a existência de um fio
condutor do desenvolvimento. E como não era apenas um gênio criador, mas possuía também uma erudição enciclopédica,
suas investigações marcam época em todos os terrenos. È bem verdade que, em conseqüência das necessidades do
“sistema”, ele se vê obrigado, como muita freqüência, a recorrer a construções arbitrárias que, ainda hoje, fazem com que
se esgoelem os pigmeus que o atacam. Essas construções constituem, porém, apenas os limites e os andaimes da sua
obra: se não nos detemos, além do necessário, diante delas, e se penetramos mais profundamente no grandioso edifício,
deparamos com tesouro incontável que ainda hoje conservam intacto o seu valor. O “sistema” representa, precisamente, o
que é efêmero em todos os filósofos, e o é, justamente, porque brota de uma perene necessidade do espírito humano: a
necessidade de superar todas as contradições. Superadas, porém, essas contradições de uma vez e para sempre, teremos
à chamada verdade absoluta: a história universal está terminada, e, não obstante, deve continuar existindo embora nada
mais tenha a fazer: o que representa, como se vê, uma nova e insolúvel contradição. Logo que descobrimos - e afinal de
contas ninguém mais do que Hegel nos ajudou a descobri-lo - que, assim colocada, a tarefa da filosofia se reduz a
pretender que um filósofo isolado realize aquilo que somente a humanidade em seu conjunto poderá realizar, em seu
desenvolvimento progressivo - assim que descobrimos isso a filosofia, no sentido tradicional da palavra, chega a seu fim.
Já não interessa a “verdade absoluta”, inatingível por este caminho e inacessível ao único indivíduo, e o que se procura
são as verdades relativas, adquiridas através das ciências positivas e da generalização de seus resultados por meio do
pensamento dialético. A filosofia, em seu conjunto, termina com Hegel; por um lado, porque em seu sistema se resume da
maneira mais grandiosa, todo o desenvolvimento filosófico; por outro lado, porque este filósofo nos indica, ainda que
inconscientemente, a saída desse labirinto dos sistemas para o conhecimento positivo e real do mundo.
É fácil compreender a enorme ressonância que o sistema de Hegel deveria ter numa atmosfera impregnada de filosofia,
como a Alemanha. Foi uma marcha triunfal que durou decênios inteiros e que não terminou sequer com a morte de Hegel.
Muito ao contrário, foi precisamente de 1830 a 1840 que a “hegelomania” reinou da maneira mais absoluta, contaminando
inclusive em maior ou menor medida, seus próprios adversários. Foram precisamente nessa época que as idéias de Hegel
penetraram em maior número, consciente ou inconscientemente, nas mais, variadas ciências e também fermentou na
literatura popular e na imprensa diária, de que o “espírito culto” vulgar se alimenta ideologicamente. Esse triunfo total
nada mais era, porém, que o prelúdio de uma luta intestina. O conjunto da doutrina de Hegel dava bastante margem,
como vimos, a que nela se abrigassem as mais diversas idéias partidárias práticas. E na Alemanha teórica daquela época
duas coisas, sobretudo, revestiam-se de caráter prático: a religião e a política. Quem fizesse finca-pé no sistema de Hegel
podia ser bastante conservador em qualquer desses domínios; aquele que considerasse essencial o método dialético podia
figurar, tanto no plano religioso como no político, na oposição extrema. No conjunto, Hegel parecia pessoalmente inclinar-
se mais para o lado conservador, apesar das explosões de cólera revolucionárias bastante freqüentes em sua obra. Não
sem razão, seu sistema lhe havia custado um “mais duro trabalho mental” que seu método 2. A cisão da escola hegeliana

2
Grifo nosso.
31
foi tornando-se, no fim da década de 30, cada vez mais patente. A ala esquerda, os chamados jovens hegelianos,
abandonavam pouco a pouco, na luta contra os ortodoxos pietistas e os reacionários feudais, aquela atitude filosófico-
distinta de retraimento diante das questões candentes da atualidade, que valera até então às suas doutrinas a tolerância e
inclusive a proteção do Estado. E quando em 1840 a beateria ortodoxa e a reação feudal-absolutista subiram ao trono,
com Frederico Guilherme IV, já não havia mais remédio senão definir-se abertamente por um ou outro partido. A luta
continuava a ser travada com armas filosóficas, mas já não se lutava por objetivos filosóficos abstratos; agora, tratava-se
diretamente de acabar com a religião tradicional e com o Estado existente. E se nos Anais Alemães os objetivos práticos
finais apareciam ainda, de preferência, sob uma roupagem filosófica, na Gazeta Renana de 1842 a escola dos jovens
hegelianos já se revelava nitidamente como a filosofia da burguesia radical que lutava para abrir caminho e que utilizava a
máscara filosófica apenas para enganar a censura.
No entanto, a política era nessa época matéria muito espinhosa; daí porque a luta principal fosse dirigida contra a
religião; essa luta, contudo, era também indiretamente uma luta política, particularmente depois de 1840. Strauss havia
dado o primeiro impulso de 1835, com a sua Vida de Jesus. Mais tarde, Bruno Bauer levantou-se contra a teoria da
formação dos mitos evangélicos, desenvolvida nessa obra, e demonstrou que uma série de relatos do Evangelho tinham
sido fabricados por seus próprios autores. “A luta entre essas duas correntes desencadeou-se, sob o disfarce filosófico de
uma luta entre a “consciência” e a substância”. Tratava-se de saber se as lendas Evangélicas dos milagres tinham nascido
dos mitos criados espontaneamente e pela tradição, no seio da comunidade religiosa, ou se haviam sido, simplesmente,
fabricados pelos evangelistas. A polêmica avolumou-se, até converter-se num outro problema; define como potência
decisiva, o rumo da história universal é a “substância” ou a “consciência”? Finalmente, apareceu Stirner, o profeta do
anarquismo moderno - pois o próprio Bakunim muito lhe deve - e coroou a “consciência” soberana com a ajuda de seu
“único” soberano.
Não insistiremos sobre esse aspecto do processo de decomposição da escola hegeliana. O importante é que a grande
maioria dos jovens hegelianos mais combativos, levados pela necessidade prática de lutar contra a religião positiva,
tiveram que se voltar para o materialismo anglo-francês. E, ao chegar aqui, viram-se envoltos num conflito com o sistema
de sua escola. Para o materialismo, a única realidade é a natureza: no sistema hegeliano, porém, esta é apenas a
“exteriorização” da Idéia absoluta, algo assim como uma degradação da idéia: em todos os casos, o pensamento e seu
produto, a idéia, são aqui o elemento primário e a natureza, o derivado, o que só pode existir graças à condescendência
da Idéia. E, bem ou mal, davam voltas e mais voltas em torno dessa contradição.
Foi então que apareceu A Essência do Cristianismo, Feuerbach. De repente, essa obra pulverizou a contradição criada
ao restaurar o materialismo em seu trono. A natureza existe independentemente de toda filosofia, ela constitui a base
sobre o qual os homens cresceram e se desenvolveram, como produtos da natureza que são; nada existe fora da natureza
e dos homens; e os entes superiores, criados por nossa imaginação religiosa, nada mais são que os outros tantos reflexos
fantásticos de nossa própria essência. Quebrara-se o encantamento: o “sistema” salva em pedaços e era posto de lado - e
a contradição ficava resolvida, pois existia apenas na imaginação. Só tendo vivido, em si mesmo, a força libertadora desse
livro, é que se pode imaginá-la. O entusiasmo foi geral - e momentaneamente todos nós nos transformamos em
“feuerbachianos”. Com que entusiasmo Marx saudou a nova concepção e até que ponto se deixou influenciar por ela -
apesar de todas as suas reservas críticas - pode ser visto em A Sagrada Família.

Texto nº. 6
LA FILOSOFIA DEL PORVENIR. CRITICA A LA FILOSOFIA DE HEGEL. LUDWIG FEUERBACH. Ed. Roca, México, 1976.

4
A filosofia especulativa é a elaboração e a resolução racional ou teórica de Deus que, para a religião, é transcendente e
não objetivo. (Pág.14)

5
A essência da filosofia especulativa não é mais que a essência de Deus racionalizada, realizada e atualizada. (...) (Pág.
14)

7
(...) A natureza de um ser se reconhece, pois, em seu objeto (Gegenstand) 3 O objeto com o qual se relaciona um ser
não é mais que a revelação de sua essência. (...) Se Deus é, pois necessária e essencialmente, um objeto do homem,
então a essência deste objeto expressa tão somente a própria essência do homem. (Pág. 18)

12
(...) a representação humana de Deus é a representação que o individuo humano faz de sua espécie. Deus, como soma
de todas as realidades e todas as perfeições, não é mais que a soma, organicamente reconstruída para o uso do indivíduo
limitado, das propriedades da espécie distribuída entre os homens e realizadas no curso da história mundial.O domínio das
ciências da natureza em sua extensão quantitativa não pode ser alcançado pela visão e medido por um homem isolado.
(...) Assim, o saber divino, que conhece ao mesmo tempo todos os detalhes, encontra sua realização no saber da espécie.
(pág.28)

19

3
Gengestand será traduzido por objeto e Object por Object.
32
A filosofia de Hegel representa a conclusão da filosofia moderna. Por isso, a necessidade e justificativa histórica da nova
filosofia se relacionam antes de tudo com a crítica a Hegel.(pág45)

21
(...) Hegel se distingue da filosofia anterior ao determinar de outra forma as relações que existem entre o ser material,
sensível, e o ser imaterial. Antes dele, os filósofos e teólogos concebiam o ser verdadeiro e divino com um ser desligado e
emancipado da natureza, [matéria](...)
[Para Hegel] a matéria não é um contrario que precederia de forma incompreensível ao eu e ao espírito: é a
autoalienação (selbstengtausserung) do espírito. Desta forma ocorre que, a matéria mesma, espírito e entendimento; é
integrada no ser absoluto como um momento de sua vida, de sua formação e de seu desenvolvimento. Mas ao mesmo
tempo a situa como um ser nulo e sem verdade, na medida que o único ser que se considere como ser em sua plenitude,
sua figura e sua forma verdadeiras é o ser que se desprende desta alienação e se reconstitui liberando-se da matéria e do
sensível. (...) A matéria permanece em contradição com o ser, que a filosofia considera por hipótese como o ser
verdadeiro.(pág47)
(...) Hegel não dissimula nem obscurece esta contradição, senão porque faz da negação de Deus, do ateísmo, uma
determinação objetiva (objectiven) de Deus, porque determina Deus como um processo e o ateísmo como um momento
deste processo. (...) (pág 48)

22
Kant diz:

“Como é natural, se considerarmos os objetos dos sentidos como puros fenômenos, reconhecemos, ao mesmo tempo,
que existe por fundamento uma coisa em si, ainda que não conheçamos sua natureza, mas a exceção do fenômeno, ou
seja, o modo segundo qual nossos sentidos se vêem afetados por este algo desconhecido. Do mesmo modo o
entendimento, precisamente porque apreende fenômenos, reconhece também a existência de coisas em si,” (...)

Os objetos dos sentidos, e da experiência, não são, pois, para o entendimento mais do que puros fenômenos, não são
uma verdade; não satisfazem, pois, o entendimento, não respondem a sua essência. (Pág. 22)
A filosofia de Kant é a contradição do sujeito e do objeto (Object), da essência e da existência, do pensamento e do
ser.(...) As coisas em si são as coisas verdadeiras, mas não são coisas reais, e não são, pois, coisas para o entendimento,
coisas que ele possa determinar e conhecer. Mas que contradição a de separar a verdade da realidade e a realidade da
verdade! (pág 23)

24
A identidade do pensamento e do ser, coração da filosofia da identidade, não é mais do que uma sucessão e um
desenvolvimento necessários do conceito de Deus, concebido como o ser cujo conceito ou essência envolvem a existência.
(...) A identidade do pensamento e do ser não é assim outra coisa que a expressão da divindade da razão; a expressão
desta verdade: que o pensamento ou a razão é o ser absoluto, a quinta-essência de toda a verdade e realidade, (...) A
identidade do pensamento e do ser não expressa, pois, outra coisa que a identidade do pensamento consigo mesmo. (Pág
54).

30
Hegel é um pensador que insiste sobre si mesmo no pensamento, quer captar a coisa mesma, mas no pensamento da
coisa; quer está fora do pensamento, mas no seio do próprio pensamento: daí a dificuldade de conceber o conceito de
concreto. (Pág. 67)

31
O conceito concreto, a idéia é, segundo Hegel, primeiro, tão somente abstrato, e não existe mais do que no elemento
do pensamento (...). (Pág. 67)
Mas quando entramos no reino do realismo com a realização da idéia, quando a verdade da idéia é ser real e existir
temos na existência o critério da verdade: tão somente é verdade o que é real. E então a única questão que salta é: O que
é o real? Tão somente o que é pensado? Somente o que é objeto do pensamento, do entendimento? Mas desta forma não
sairíamos da idéia in abstract. (...) Se a realidade do pensamento é a realidade tanto quanto é pensamento, então, a
realidade do pensamento mesmo não é mais que pensamento,e ficamos sempre com a identidade do pensamento consigo
mesmo, no idealismo: um idealismo que não se diferencia do idealismo subjetivo a não ser que abarcando todo o conteúdo
da realidade e transformando-a em uma determinação do pensamento. Desta forma, para levar a realmente a sério a
realidade do pensamento ou da idéia, deve-se acrescentar algo que seja diferente (...) o que é então este não-
pensamento, este elemento distinto do pensamento? A sensibilidade. (...) (Pág 68)

32
O real em sua realidade, o real em tanto que real é objeto (object) real dos sentidos: a sensibilidade. (...) Somente os
sentidos, e não o pensamento por si mesmo, podem da a um objeto compreensão em seu verdadeiro sentido. (Pág.70)

33
(...) Unicamente no sentimento, no amor, “isto” (esta pessoa, esta coisa), no singular, possui um valor absoluto, o
finito é infinito: nisso e somente nisso, consiste a profundidade, a divindade e a verdade infinitas do amor. (...) O mesmo

33
Deus cristão não é mais do que a abstração do amor humano. Não é mais do que uma figura deste amor, (...) é
unicamente no amor, e não no pensamento abstrato onde se revela o segredo do ser. (...) (Pág 71)

45
Não temos o direito de pensar as coisas de forma distinta de como são na realidade. Não se pode identificar no
pensamento o que está separado da realidade. Excluir o pensamento, a idéia (o mundo inteligível dos neoplatônicos) das
leis da realidade é privilégio do arbítrio teológico. As leis da realidade são também as leis do pensamento. (Pág. 84)

58
A verdade não existe no pensamento, no saber em si mesmo. A verdade não é outra coisa que a totalidade da vida e da
essência humana. (Pág. 95)

59
O homem por si não possui em si a essência do homem nem em qualidade de ser moral, nem em qualidade de ser
pensante. A essência do homem não está contida senão na comunidade, na unidade do homem com o homem, unidade
que não descansa em outro lugar que sobre a realidade da distinção do eu e do tu. (Pág 95)

Texto nº. 7
MATERIALISMO E IDEALISMO. AS LIMITAÇÕES DO MATERIALISMO DE FEUERBACH
ENGELS, F. LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ. Marx/Engels O.E. S.P: Alfa-Omega v3. pág. 181 a 185.

(...) Durante trezentos anos, o sistema solar de Copérnico foi uma hipótese em que se podia apostar na base de cem,
mil e dez mil contra um, mas apesar de tudo uma hipótese: até que Leverrier, com os dados tomados desse sistema, não
só demonstrou que deveria necessariamente existir um planeta até então desconhecido, mas ainda determinou o lugar em
que esse planeta deveria encontrar-se, no firmamento; e quando mais tarde, Galle 4 descobriu efetivamente esse planeta,
o sistema de Copérnico ficou demonstrado. Se, apesar disso, os neo-kantianos pretendem rejuvenescer na Alemanha a
concepção de Kant e se os agnósticos querem fazer o mesmo com a concepção de Hume, na Inglaterra (aonde ela nunca
chegara a morrer inteiramente), essas tentativas, agora que tais doutrinas de há muito se acham teórica e praticamente
refutadas, representam cientificamente um retrocesso e, na prática, nada mais são que uma forma vergonhosa de aceitar
o materialismo às escondidas e de renegá-lo em público. Durante esse longo período, de Descartes a Hegel e de Hobbes a
Feuerbach, os filósofos não avançaram impelidos apenas, como julgavam, pela força do pensamento puro. Ao contrário. O
que na realidade os impelia para frente era, principalmente, os formidáveis e cada vez mais rápidos progressos das
ciências naturais e da indústria. Nos filósofos materialistas, essa influência é visível, na própria superfície, mas também os
sistemas idealistas foram impregnando-se, cada vez mais, de um conteúdo materialista e esforçavam-se por conciliar, de
maneira panteísta, a antítese entre o espírito e a matéria; até que, por último, o sistema de Hegel, por seu método e por
seu conteúdo, já não era mais que um materialismo posto de cabeça para baixo de forma idealista. (...)
A trajetória de Feuerbach é a de um hegeliano - não inteiramente ortodoxo, é verdade - que marcha para o
materialismo: trajetória que, ao chegar a uma determinada fase, implica numa ruptura total com o sistema idealista de
seu predecessor. Finalmente, impõe-se a ele com força irresistível a convicção de que a existência da “Idéia absoluta”,
anterior ao mundo, preconizada por Hegel, a “preexistência das categorias lógicas” antes que existisse um mundo, não são
mais que o resíduo fantástico da crença num criador ultraterreno: de que o mundo material e perceptível pelos sentidos, e
do qual nós, homens, também fazemos parte, é o único real; e de que nossa consciência e nosso pensamento, por muito
supersensíveis que pareçam, são o produto de um órgão material, corpóreo: o cérebro. A matéria não é um produto do
espírito e o próprio espírito não é mais que o produto supremo da matéria. Isto é, naturalmente, materialismo puro. Ao
chegar aqui Feuerbach detém-se. Não consegue superar o preconceito filosófico rotineiro, não contra a coisa, mas contra o
nome de materialismo. Afirma ele: “O materialismo é para mim, o alicerce sobre o qual repousa o edifício do ser e do
saber do homem; não é, porém, para mim, o mesmo que é, em seu sentido rigoroso, para o fisiológico, para o naturalista,
para Moleschott, por exemplo, o que, aliás, tem que ser forçosamente, por sua maneira de ver e por sua profissão: o
próprio edifício. Retrospectivamente, estou inteiramente de acordo com os materialistas; entretanto, olhando para frente,
não o estou”.
Aqui, Feuerbach confunde o materialismo, que é uma concepção geral do mundo baseada numa interpretação
determinada das relações entre o espírito e a matéria, com a forma concreta que essa concepção do mundo revestiu numa
determinada fase histórica, isto é, no século XVIII. Mas ainda: confunde-o com a forma grosseira, vulgarizada, sob a qual
o materialismo do século XVIII perdura ainda hoje na mente de naturalistas e médicos, e como era apregoado, na década
de 1850, por Buchner, Vogt e Moleschott. Mas, da mesma forma que o idealismo, o materialismo percorre uma série de
fases em seu desenvolvimento. Cada descoberta transcendental que se opera, inclusive no campo das Ciências Naturais,
obriga-o a mudar de forma; que o método materialista passa também a aplicar-se à história, abre-se diante dele uma via
de desenvolvimento nova.
(...)
A segunda limitação específica desde materialismo consistia sua incapacidade de conceber o mundo como um processo,
como uma matéria sujeita a desenvolvimento histórico. Isto correspondia ao estado das ciências naturais naquela época e
ao modo metafísico, isto é, antidialético de filosofar, que lhe correspondia. Sabia-se que a natureza estava sujeita a
movimento eterno. Mas, segundo as idéias dominantes naquela época, esse movimento se fazia não menos perenemente
em órbita circular, razão pela qual não mudava de lugar e produzia sempre os mesmos resultados. Naqueles tempos, essa

4
Trata-se do planeta Netuno descoberto em 1846 por Johann Galle, astrônomo do observatório de Berlim. (N. da R.)
34
idéia era inevitável. Mal acabava de ser formulada a teoria Kantiniana sobre a formação de nosso sistema solar, que era
considerada ainda como mera curiosidade. A história do desenvolvimento da terra, a geologia, era ainda totalmente
desconhecida e na época não se podia estabelecer cientificamente a idéia de que os seres animados que hoje vivem na
natureza são resultado de um longo desenvolvimento que vai do simples ao complexo. A concepção anti-histórica da
natureza era, portanto, inevitável. Esta concepção não pode ser lançada à fase dos filósofos do século XVIII, tanto mais
porque aparece também em Hegel. Neste, a natureza, como simples “exteriorização” da idéia, não é suscetível de
desenvolvimento no tempo, podendo apenas desdobrar sua variedade no espaço, razão por exibe conjunta e
simultaneamente todas as fases do desenvolvimento que traz em seu seio e se acha condenada à repetição eterna dos
mesmos processos. E este contra-senso de uma evolução no espaço, mas à margem do tempo - fator fundamental de toda
evolução - Hegel o impõe à natureza precisamente no momento em que se haviam formado a geologia, a embriologia, a
fisiologia vegetal e animal e a química orgânica, e quando brotavam por toda parte, com base nestas novas ciências,
previsões geniais (como por exemplo, as de Goethe e Lamarck), do que havia de ser tarde a teoria da evolução. O
sistema, porém, assim o exigia e, por respeito ao sistema, o método tinha que trair a si mesmo.
Esta concepção anti-histórica imperava também no campo da história. Aqui, a visão era limitada pela luta contra as
sobrevivências da Idade Média. A Idade Média era considerada uma simples interrupção da história por um estágio milenar
de barbárie generalizada; não se viam os grandes progressos do período medieval, a expansão do domínio cultural
europeu, as grandes nações de poderosa vitalidade que se vinham formando, umas ao lado das outras, durante esse
período e, finalmente, os enormes progressos técnicos dos séculos XIV e XV. Esse critério tornava, contudo, impossível,
uma visão racional das grandes conexões históricas e assim a história era utilizada, quando muito, como uma coleção de
exemplos e ilustrações para uso dos filósofos.

Texto nº. 8
2.] SOBRE A PRODUÇÃO DA CONSCIÊNCIA
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã - Feuerbach. São Paulo: Grijalbo, 1977, pág. 53 a 77.

Vê-se igualmente nessa discussão o quanto Feuerbach se engana (na revista trimestral de Wigand, 1845, tomo II 5)
quando, por meio da qualificação de “homem comum”, declara-se um comunista e transforma este último em predicado
“do” homem, acreditando, assim, poder transformar em mera categoria a palavra comunista que, no mundo real, designa
o adepto de determinado partido revolucionário. Toda a dedução de Feuerbach no que concerne às relações recíprocas
entre os homens visa unicamente a provar que os homens têm necessidade uns dos outros, e sempre tiveram. Ele quer
estabelecer a consciência sobre este fato, quer, portanto, como os outros teóricos, criar apenas uma consciência correta
sobre um fato existente, ao passo que para o verdadeiro comunista o que importa é derrocar este existente.
Reconhecemos plenamente que Feuerbach, em seus esforços por criar justamente a consciência deste fato, vai tão longe
quanto pode chegar um teórico sem deixar de ser teórico e filosofo. É sintomático, entretanto, que São Bruno e São Max
coloquem imediatamente a representação feuerbachiana do comunista em lugar do comunista real – o que fazem, em
parte, para que também possam, como adversários da mesma estirpe, combater o comunismo como “espírito do espírito”,
como uma categoria filosófica e, no caso de São Bruno, além disso, por interesses pragmáticos. Como exemplo do
reconhecimento e, ao mesmo tempo, do desconhecimento do existente, que Feuerbach continua compartilhando com
nossos adversários, recordemos a passagem de sua filosofia do futuro 6 onde desenvolve o ponto de vista de que o ser de
uma coisa ou do homem é, simultaneamente, sua essência; de que as determinadas condições de existência, o modo de
vida e a atividade de um individuo animal ou humano é aquilo em que sua essência se sente satisfeita. Toda exceção é
aqui expressamente concebida como um acidente infeliz, como uma anormalidade que não pode ser modificada. Quando,
portanto, milhões de proletários não se sente de forma alguma satisfeitos com suas condições de vida quando seu “ser” 7
em nada corresponde à sua essência, isto então seria, de acordo com a passagem citada, uma desgraça inevitável que se
deveria suportar tranqüilamente. Contudo, milhões de proletários ou de comunistas pensam de modo inteiramente
diferente e provará isto no devido tempo, quando puseram seu “ser” em harmonia com sua essência de uma maneira
prática, através de uma revolução. É por isto que em casos dessa espécie Feuerbach jamais fala do mundo dos homens,
mas refugia-se na natureza exterior, na natureza ainda não dominada pelos homens. Mas, cada nova invenção, com cada
progresso da indústria, uma nova parte é arrancada deste terreno e o solo sobre o qual crescem os exemplos de tais
proposições feuerbachianas se restringe cada vez mais. A essência do peixe é seu ser: a água para retomar uma das
proposições de feuerbach. A essência do peixe de rio é a água do rio; contudo, esta água deixa de ser sua “essência”
quando se torna um meio de existência que não mais lhe convém, tão logo o rio sofra influencia da indústria, tão logo
tenha poluídos por colorantes e outros dejetos, tão logo navios a vapor naveguem pelo rio, tão logo suas águas sejam
dirigidas para canais onde simples drenagens podem retirar do peixe seu meio de existência. Declarar que contradições

5
Wigand’s Vierteljahrsschrift (Revista trimestral de Wigand): Jornal Filosófico dos jovens hegelianos por Hotto Wigand em Leitzig de
1844 a 1845. Entre seus colaboradores estavam Bauer, Stirner e Feurbach. É a um artigo deste último que Marx e Engels se referem. O
artigo, em que Feurbach polimisa com Stirner, fora publicado em 1845 no segundo Tomo do jornal, sob o título “Uber das ‘Wesen des
Christenthums’ in Bbeziehung auf den ‘Einzigen und sein Eigenthum “(Sobre a essência do cristianismo em relação ao Único e sua
propriedade.)”“.
6
Feuerbach Grundsatze der Philosophie der Zukunft (Princípios da Filosofia do Futuro), Zurique, 1843, p.47.
7
Em certas adições de A Ideologia Alemã, o texto interrompe-se neste ponto, não constando toda a passagem que se estende até as
palavras “tem apenas importância local”, um pouco mais à frente. Segundo informa a edição em inglês de Progress Publishrs cuja
ordenação se tornou por base nesta passagem na presente tradução – tal lacuna foi em parte preenchida pela descoberta de algumas
pág.inas do manuscrito, publicadas pela primeira vez em 1962. (N. dos T.)
35
deste gênero são anormalidades inevitáveis não diferem, fundamentalmente, do consolo que São Max Stirner 8 oferece aos
insatisfeitos, ao confirmar que esta contradição é a sua própria contradição que esta má situação é a sua própria má
situação, na qual poderiam, ou acalmar-se, ou guardar sua própria indignação para si, ou rebelar-se contra isso de modo
fantástico. Isto difere muito pouco da alegação de São Bruno 9 de que estas circunstâncias infelizes seriam provenientes do
fato de que os insatisfeitos se detiveram no lixo da “substância” não progrediram para a autoconsciência absoluta e não
reconheceu estas más condições de vida como espírito do seu espírito.

Naturalmente, não nos daremos ao trabalho de explicar aos nossos sábios filósofos que a libertação do “homem” não
deu sequer um passo adiante ao dissolverem a filosofia, a teologia, a substância e todo este lixo na autoconsciência, ao
libertarem o “homem” da dominação dessa fraseologia, dominação a qual nunca esteve escravizado. Nem lhes
explicaremos que somente é possível efetuar ∗ a libertação real no mundo no mundo real e através de meios reais; e não
se pode superar a escravidão sem a máquina a vapor e a Mule-Jenny 10, nem a servidão sem melhorar a agricultura; e que
não é possível libertar os homens enquanto não estiverem em condições de obter alimentação e bebida, habitação e
vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas. A “libertação” é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é
efetivada por condições históricas, pela [situ] ação da indústria, do comércio, da agricultura, do intercâmbio] [...] 11 [...] e
então, posteriormente, conforme suas diferentes fases de desenvolvimento, o absurdo da substância, do sujeito, da
autoconsciência e da crítica pura, assim como o absurdo religioso e teológico, são novamente eliminados quando
suficientemente desenvolvidos ∗∗. Naturalmente, num país como a Alemanha onde não ocorre senão um desenvolvimento
histórico miserável, estes desenvolvimentos intelectuais, estas trivialidades glorificadas e ineficazes servem naturalmente
de substitutos para a ausência de desenvolvimento histórico: incrustam-se e têm que ser combatidos ∗. Mas esta luta tem
apenas importância local ∗∗.
(...) 12 na realidade, para o materialismo prático, isto é, para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo existente,
de atacar e transformar, praticamente, o estado de coisas que ele encontrou ∗∗∗. E se, por vezes, encontram-se em
Feuerbach pontos de vistas deste gênero, eles não são mais do que intuições isoladas e têm muito pouca influência sobre
toda a sua concepção geral para serem aqui considerados como algo mais do que embriões capazes de desenvolvimentos.
A “concepção” Feuerbachiano do mundo sensível ∗∗∗∗ limita-se, de um lado à simples contemplação deste último e, de outro
lado, ao simples sentimento; ele diz “o homem” ao invés de dizer os “homens históricos reais”. “O homem” é na realidade
“o alemão”. No primeiro caso, na contemplação do mundo sensível, ele se choca, necessariamente, com coisas que
contradizem sua consciência e seu sentimento, que perturbam a harmonia por ele pressuposta entre todas as partes do
mundo sensível e, sobretudo entre homem e natureza ∗∗∗∗∗. Para eliminar estas coisas tem que se refugiar numa dupla
concepção, oscilando entre uma concepção profana, que percebe apenas o que é “imediatamente palpável”, e uma
concepção mais elevada, filosófica, que contempla a “essência verdadeira” das coisas. Ele não percebe que o mundo
sensível que o envolve não é algo dado imediatamente por toda a eternidade, uma coisa sempre igual a si mesma, mas
sim o produto da indústria e do estado da sociedade; isto, na verdade, no sentido de que é um produto histórico, o
resultado da atividade e de toda uma série de gerações ∗, cada uma das quais se alçando aos ombros da precedente,
desenvolvendo sua indústria e seu comercio, modificando a ordem social de acordo com as necessidades alteradas. Mesmo
os objetos das mais simples certeza sensível são dadas a Feuerbach apenas através do desenvolvimento social, da
indústria e do intercâmbio comercial. Sabe-se que a cerejeira como quase todas as árvores frutíferas, foram
transplantadas para nossas zonas pelo comercio, alguns séculos apenas, e foi, portanto, tão – somente através desta ação
de uma determinada sociedade em uma época determinada que foi dada à “certeza sensível” de Feuerbach.

8
Os autores referem-se aqui a Marx Stiner, Der Einzige Und sein Eigenthum (o único e sua propriedade), pp. 155-156.
9
Referencia ao artigo de Bruno Bauer, “Charakteristik Ludwig Feuerbachs” (Caracterização de Ludwig Feuerbach), in Wigand’s
Vierteljahsschrift, 1845, tomo III.

[Suprimido no manuscrito:] [... em A Sagrada Família foi suficientemente refutada a idéia de que estes santos filósofos e teólogos ao
produzirem uma fraseologia insípida sobre o espírito absoluto, teriam criado a “não-autonomia dos indivíduos”. Como se o individuo,
isto é, todo homem fosse “não autônomo” ou superado realmente “no espírito absoluto pelo fato de alguns mascates especulativos do
pensamento poderem chegar – não pela “não-autonomia do individuo” mas por uma situação social miserável – às suas manias
filosóficas, que são impedidas ao individuo, ao qual é ordenado “ser absorvido no espírito absoluto” momentaneamente sem raciocínio”.

[Observação marginal de Marx:] libertação filosófica e libertação real. O homem. O único. O individuo. Condições geológicas,
hidrográficas etc. o corpo humano. Necessidade de trabalho.
10
Trata-se da primeira máquina de tecer automática (N. do T.)
11
Algumas linhas e palavras dessa passagem não puderam ser decifradas devido ao mau estado do manuscrito.
∗∗
[Observação marginal de Marx:] Fraseologia e movimento real.

[Observação marginal de Marx:] A importância da fraseologia para a Alemanha.
∗∗
[Variante original no manuscrito:] É luta que não tem importância histórica geral, mas apenas local, uma luta que não trás resultados
novos para a massa de homens mais do que a luta da civilização contra a barbárie.
[Observação marginal de Marx:] A linguagem é a linguagem da rea[lidade].
12
Há uma lacuna neste ponto do manuscrito.
∗∗∗
[Observação marginal de Marx:] Feuerbach.
∗∗∗∗
[Variante original no manuscrito:] “Concepção” teórica.
∗∗∗∗∗
[Observação marginal de Engels:] N.B. O erro de Feuerbach] não consiste em que subordine o que é imediatamente palpável, à
aparência sensível, à realidade sensível constatada graças a um exame mais aprofundado dos fatos sensíveis; consiste, ao contrário, em
que ele, em última instancia, não pode chegar ao mundo sensível sem considerá-lo com os olhos, isto é através dos óculos do filósofo.

[Variante marginal no manuscrito:] Que ela é em cada época histórica o resultado da atividade de toda uma série de gerações.
36
Aliás, nesta concepção que ver as coisas tais como são e aconteceram realmente, todo o profundo problema filosófico
resolve-se simplesmente do fato empírico, como adiante se verá ainda de maneira mais clara. Tomemos, por exemplo, a
importante questão das relações entre o homem e a natureza (ou então, como Bruno nos mostra na pág..110 13, “as
oposições em natureza e história”, como se as duas“coisas” fossem separadas uma da outra, como se o homem não se se
encontra sempre em face de uma natureza histórica e de uma história natural). Esta questão, donde surgiram todas as
“obras de grandeza insondável” 14 sobre a “substância” e a “autoconsciência” desaparece por si mesma perante a
compreensão do fato de que a celebre “unidade do homem com a natureza” sempre existiu na indústria e se apresenta de
maneira diferente, em cada época, segundo desenvolvimento maior ou menos da indústria; e o mesmo no que se refere à
luta do homem com a natureza, até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base correspondente. A
indústria e o comércio e a produção e a troca das necessidades de vida, condicionam, o seu lado, a distribuição, a
estrutura das diferentes classes sociais, para serem, por sua vez, condicionadas por estas em seu modo de funcionamento.
Eis porque Feuerbach, em Manchester, por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas onde há cem anos atrás havia apenas
roda de fiar e teares manuais, ou por que, na campagna diroma, encontra apenas pastagens e pântanos onde no tempo de
Augusto não teria encontrado mais do que as vinhas e quintas dos capitalistas romanos. Feuerbach fala em particular da
concepção da ciência natural e menciona segredos que se revelam apenas aos olhos do físico e do químico; mas, o que
seria da ciência natural sem o comércio e a indústria? Mesmo essa ciência natural pura adquire tanto sua finalidade como
seu material graças apenas ao comércio e à indústria, à atividade sensível dos homens. E até tal ponto é esta atividade,
este continuo trabalhar e criar sensíveis, esta produção, a base de todo o mundo sensível tal e como agora existe, que, se
fosse interrompida até mesmo por um ano apenas, Feuerbach não só encontraria enormes mudanças no mundo natural,
mas logo sentiria falta de todo o mundo dos homens e de sua própria capacidade de percepção, e até mesmo de sua
própria existência. Certamente, em tudo isto, a prioridade da natureza exterior subsiste, e tudo isto não pode ser aplicado
aos homens primitivos produzidos por generation a equívoca 15; mas esta diferenciação só tem sentido na medida em que
o homem é considerado como distinto da natureza de resto, a natureza, a natureza que precede a história humana, não é
de forma alguma a natureza na qual vive Feuerbach, é natureza que hoje já não existe em parte alguma (exceto talvez em
algumas ilhas de coral australiana de formação recente) e que, portanto, não existe para Feuerbach.
É verdade que Feuerbach tem sobre os materialistas puros a grande vantagem de compreender que o homem é
também um objeto sensível. Mas, façamos abstração do fato de que ele concebe o homem apenas como objeto sensível e
não como atividade sensível, pois ainda permanece no reino da teoria e não concebe os homens em sua conexão social
dada, em suas condições de vidas existentes, que fizeram deles o que são; por isto mesmo, jamais chega até os homens
ativos realmente existentes, mas se detém na abstração o homem e apenas consegue reconhecer sentimentalmente o
homem real, individual, corporal, isto é, não reconhece outras relações humanas entre o homem e o homem senão às do
amor e da amizade, sendo estas, além disso, idealizadas. Não nos oferece crítica alguma das condições de vidas atuais.
Não consegue nunca, portanto, conceber o mundo sensível como a atividade sensível, viva e total, dos indivíduos que
constituem, razão pela qual é obrigado, ao ver, por exemplo, ao invés de homens sadios um bando de pobres diabos,
escrufulosos, esgotados e tísicos, a recorrer a uma concepção superior e à ideal igualização no gênero; ou seja, por
conseguinte, a reincidir no idealismo precisamente ali onde um materialista comunista vê a necessidade e
simultaneamente a condição de uma transformação tanto na indústria como na estrutura social.
Na medida em que Feuerbach é materialista, não aparece nele à história, na medida que toma a história em
consideração, não é materialista. Materialista e historia aparece completamente divorciados nele, fato que é explicado pelo
o que até aqui dissemos ∗.
A história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, os capitais
e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado, prossegue em condições
completamente diferentes a atividade precedente, enquanto, de outro lado, modifica as circunstâncias anteriores através
de uma atividade totalmente diversa. O que pode ser especulativamente distorcido, na medida em que se converte a
história posterior em finalidade da anterior, na medida em que, por exemplo, é atribuída à descoberta da América a
finalidade de auxiliar a erupção da Revolução Francesa – com o que a história recebe finalidades à parte, tornando-se uma
“pessoa ao lado de outras pessoas” (tais como “autoconsciência”, crítica, o único etc.), enquanto que o que se designa
com as palavras “destinação”, “finalidade”, “núcleo”, “idéia”, da história anterior nada mais é do que uma abstração da
história posterior, uma abstração da influência ativa que a história anterior exerce sobre a posterior.
Ora, quanto mais os círculos singulares que atuam uns sobre os outros se expandem no curso desse desenvolvimento,
quanto mais o isolamento primitivo das diferentes nacionalidades é destruído pelo modo de produção desenvolvido, pelo
intercâmbio e pela divisão do trabalho que surge de maneira natural entre as diferentes nações, tanto mais a história
torna-se uma história mundial. Assim é que se inventa, por exemplo, na Inglaterra uma máquina que, na Índia ou na
China, rouba o pão a milhares de trabalhadores e subverte toda a forma de existência desses impérios, tal invento torna-
se um fato histórico-mundial. E vemos também como o açúcar e o café demonstram sua importância histórico-mundial no
século XIX, pelo fato de que a escassez desses produtos, resultante do sistema continental napoleônico 16, incitou a
sublevação dos alemães contra Napoleão, estabelecendo-se com isso a base real das gloriosas guerras de libertação de
1813. segue-se daí que essa transformação da história em história mundial não é, digamos, um simples fato abstrato da

13
In Bruno Bauer, “Charakteristik Ludwig Feuerbachs”.
14
Paráfrase de um verso do Fausto, de Goethe: “Prolog im Himmel” (“Prólogo no céu”).
15
Em latim no original: geração espontânea. (N. dos T.)

[Suprimido no manuscrito:] a razão pela qual, contudo, aqui discutimos detalhadamente a historia deve-se ao fato de os alemães estarem
acostumados a representar com os termos história e histórico não apenas o real, mas todo o possível; disto São Bruno, com sua
eloqüência de púlpito, é um brilhante exemplo.
16
Referência ao Bloqueio Continental, proclamado por Napoleão I em 1805, que proibia o comércio entre os países da Europa
continental e a Inglaterra.
37
“autoconsciência”, do espírito mundial ou de qualquer outro fantasma metafísico, mas sim uma ação puramente material,
verificável de maneira empírica, uma ação para a qual cada individuo fornece a prova, na medida em que anda e para,
come, bebe e se veste.
As idéias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força
material dominante da sociedade e, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição
os meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias
daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal
das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as idéias de sua dominação. Os indivíduos que
constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que
dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda sua extensão
e, conseqüentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de idéias; que regulem a
produção e a distribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da
época. Por exemplo, numa época e num país em que a aristocracia e a burguesia disputam a dominação e em que,
portanto, a dominação está dividida, mostra-se como idéia dominante a doutrina da divisão dos poderes, enunciada então
como “lei eterna”.
A divisão do trabalho, de que já tratamos acima (pp.[44-48]) como uma das forças principais da história até aqui,
expressa-se também no seio da classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no
interior desta classe, uma parte aparece como os pensadores desta classe (seus ideólogos ativos, conceptivos, que fazem
da formação de ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo principal de subsistência), enquanto que os outros
relacionam-se com estas idéias e ilusões de maneira mais passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos
desta classe e têm pouco tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si próprios. No interior desta classe, essa cisão
pode mesmo conduzir até a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas esta hostilidade, entretanto,
desaparece por si mesma logo que surge qualquer colisão prática capaz de colocar em perigo a própria classe, ocasião em
que desaparece também a aparência de que as idéias dominantes não são as idéias da classe dominante e têm um poder
diferente do poder desta classe. A existência de idéias revolucionárias numa determinada época já pressupõe a existência
de uma classe revolucionária, sobre cujos pressupostos já dissemos anteriormente o necessário.
Se, na concepção do decurso da história, separarmos as idéias da classe dominante da própria classe dominante e se
as concebermos como autônomas, se nos limitarmos a dizer que em uma época estas ou aquelas idéias dominaram, sem
nos preocuparmos com as condições de produção e com os produtores destas idéias, se, portanto, ignoramos os indivíduos
e as circunstâncias mundiais que são a base destas idéias, então podemos afirmar, por exemplo, que, na época em que a
aristocracia dominou, os conceitos de honra, fidelidade etc. dominaram, ao passo que na época da dominação da
burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc. ∗ é o que, em média, imagina a própria classe dominante.
Tal concepção da história, comum a todos os historiadores, especialmente desde o século XVIII, defrontar-se-á
necessariamente com o fenômeno de que idéias cada vez mais abstratas dominam, isto é, idéias que tomam cada vez
mais a forma de universalidade. Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que dominava antes dela é obrigada,
para alcançar os fins a que se propõe, a apresentar seus interesses como sendo o interesse comum de todos os membros
da sociedade, isto é, para expressar isso mesmo em termos ideais: é obrigada a emprestar às suas idéias a forma de
universidade, a apresentá-las como sendo as únicas racionais, as únicas universalmente válidas. A classe revolucionária
surge, desde o início, não como classe, mas como representante de toda sociedade, porque já se defronta como uma
classe aparece como a massa inteira da sociedade frente à única classe dominante ∗. Ela consegue isso porque no inicio seu
interesse realmente ainda está ligado ao interesse coletivo de todas as outras classes não-dominantes e porque, sob a
pressão das condições prévias, esse interesse particular de uma classe particular. Sua vitória útil, também, a muitos
indivíduos de outras classes que não alcançaram uma posição dominante, mas apenas na medida em que coloque agora
esses indivíduos em condições de elevar-se à classe dominante. Quando a burguesia francesa derrubou a dominação da
aristocracia, permitiu que muitos proletários se elevassem acima do proletariado, mas unicamente na medida em que
tornaram-se burgueses. Cada nova classe estabelece sua dominação sempre sobre uma base mais extensa do que a da
classe que até então dominava, ao passo que, mais tarde, a oposição entre a nova classe dominante e a não-dominante se
agrava e se aprofunda ainda mais. Ambas estas coisas condicionam o fato de que a luta a ser conduzida contra essa nova
classe dominante propõe-se novamente a uma negação mais decisiva e radical das condições sociais anteriores, mais do
que a que puderam fazer todas as classes precedentes que haviam aspirado à dominação.
Toda esta aparência, a aparência de que a dominação de uma classe determinada é somente a dominação de certas
idéias, desaparece naturalmente, por si mesma, tão logo a dominação de classe deixe de ser a forma da ordem social, tão
logo não seja mais necessário apresentar um interesse particular como geral ou “o geral” como dominante ∗.
Uma vez que as idéias dominantes tenham sido separadas dos indivíduos dominantes e, principalmente, das relações
que nascem de uma dada fase do modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que na história as idéias
sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas idéias “a idéia” etc. como o dominante na história e nesta medida conceber


[Suprimido no manuscrito:] me média, a própria classe dominante tem a representação do que este seus conceitos dominaram e os
distingue das representações dominantes das épocas anteriores apenas porque os apresenta como verdades eternas. Estes conceitos
dominantes terão forma tanto mais geral e ampla quanto mais a classe dominante for obrigada a apresentar seus interesses como sendo os
interesses de todos os membros da sociedade.

[Observação marginal de Marx:] (A universalidade corresponde: 1º a classe contra o estamento; 2º à concorrência, ao intercâmbio
mundial; 3ºao grande contingente numérico da classe dominante; 4º à ilusão dos interesses coletivos. No começo, essa ilusão [é]
verdadeira; 5º à ilusão dos ideólogos e à divisão do trabalho).

[Variante original no manuscrito:] de apresentar um interesse particular, no plano prático, como interesse comum a todos e, no plano
teórico, como interesse geral.
38
todos estes conceitos e idéias particulares como “autodeterminação” do conceito que se desenvolve na história, é então
também natural que todas as relações dos homens podem ser deduzidas do conceito de homem, do homem representado,
da essência do homem, do homem. Assim procedeu a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa que no final da
Filosofia da História que “só considera o progresso do conceito” e que expõe na história a “verdadeira teodicéia” (p.446).
Agora pode-se voltar novamente aos produtores “do conceito”, aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chega-se então ao
resultado de que os filósofos, os pensadores como tal, dominaram sempre na história – um resultado que também Hegel
já proclamara, como acabamos de ver. Todo truque que consiste em provar a supremacia do espírito na história (a
hierarquia em Stirner) limita-se aos três esforços seguintes:
1º) Deve-se separaras idéias dos dominantes (que dominam por razões empíricas, sob condições empíricas e como
indivíduos materiais) destes próprios dominantes, reconhecendo com isso a dominação das idéias ou ilusões na história.
2º) Deve-se introduzir uma ordem nesta dominação das idéias, estabelecer uma conexão mística entre as idéias
sucessivamente dominantes, o que se consegue concebendo-as como “autodeterminações do conceito” (isto é possível
porque, em virtude de sua base empírica, essas idéias estão realmente ligadas entre si e porque, concebidas como meras
idéias, convertem-se em autodiferenciações, diferenças estabelecidas pelo pensamento).
3º) Para eliminar o aspecto místico deste “conceito que se autodetermina” transforma-se-o numa pessoa – “a
autoconsciência” – ou a fim de aparecer exatamente como materialista, numa série de pessoas que representam o
conceito na história, a saber, os pensadores, os filósofos, os ideólogos, concebidos como fabricantes da história, como o
conselho dos guardiões, como os dominantes. Desta forma, eliminam-se todos os elementos materialistas da história e
pode-se então soltar, tranqüilamente, as rédeas do corcel especulativo.
Enquanto que na vida comum qualquer shopkeeper sabe perfeitamente distinguir entre o que alguém diz ser e que
realmente é, nossa historiografia não alcançou ainda este conhecimento trivial. Toma cada época por sua palavra e
acredita no que ela diz e imagina a respeito de si mesma.
Este método histórico, que reinou, sobretudo na Alemanha, e com razão, deve ser explicado a partir da conexão com a
ilusão dos ideólogos em geral – por exemplo, com as ilusões dos juristas, dos políticos (incluindo entre estes os estadistas
práticos) – a partir dos devaneios dogmáticos e das distorções destes fulanos, o que se explica de forma muito simples a
partir de sua posição prática na vida, de seus negócios e da divisão do trabalho.

Texto nº. 9
O IDEALISMO DE FEUERBACH
ENGELS, F. LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ. Marx/Engels O.E.. S.P: Alfa-Omega v. 3. Pág. 186 a 192.

Onde se revela o verdadeiro idealismo de Feuerbach é em sua filosofia da religião e em sua ética. Feuerbach
não pretende, de forma alguma, suprimir a religião, o que deseja é completá-la. A própria filosofia deve converter-se
em religião. Os períodos da humanidade distinguem-se uns dos outros apenas pelas transformações de
caráter religioso. Para que se produza um movimento histórico profundo é necessário que este movimento se dirija ao
coração do homem. O coração não é uma forma de religião, de tal modo que ela devesse estar também no coração; ele
é a essência de religião “(citado por Starcke, pág.. 168). Para Feuerbach, a religião é a relação sentimental, a relação de
coração de homem para homem, que ele agora procurava sua verdade numa imagem fantástica da realidade - por
intermédio de um ou de muitos deuses, imagens fantásticas das qualidades humanas - e agora a encontra, diretamente,
sem intermediários, no amor entre Eu e Tu. Assim, para Feuerbach, o amor entre os sexos acaba sendo uma das formas
supremas, senão a forma culminante em que se pratica sua nova religião.
Ora, as relações, sentimentais entre seres humanos, particularmente entre dois sexos, existiram desde que
existe o homem. Nos últimos 800 anos, o amor entre dois sexos, especialmente passou por um desenvolvimento e
conquistou uma posição que o converteram, durante esse tempo, no eixo obrigatório de toda a poesia. As religiões
positivas existentes limitaram-se a dar altíssima consagração à regulamentação do amor entre os sexos pelo
Estado, isto é a legislação do matrimônio, e poderiam todas elas desaparecer amanhã mesmo, sem que se
alterasse, no mínimo que fosse, a prática do amor e da amizade. Com efeito, de 1793 a 1798, a França viveu de
fato sem religião cristã, a tal ponto que o próprio Napoleão, para restaurá-la, não deixou de tropeçar com resistências e
dificuldades; e, no entanto, durante esse intervalo ninguém sentiu a necessidade de procurar um substitutivo para ela, no
sentido Feuerbachiano.
O idealismo de Feuerbach baseia-se aqui em que, para ele, as relações de uns seres humanos com outros, baseados na
mútua afeição, como o amor entre os sexos, a amizade, a compaixão, o sacrifício, etc., não constituem pura e
simplesmente o que são em si mesmas, se não recuam, na recordação, a uma religião particular que também para ele faz
parte do passado e só adquirem sua significação integral quando aparecem consagradas sob o nome da religião. Para ele,
o essencial não é que essas relações puramente humanas existam e sim que sejam concebidas como a nova, a verdadeira
religião. Só adquirem plena legitimidade quando ostentam o selo religioso. A palavra religião vem de “relegare” e, por sua
origem, significa união. Toda união de dois seres humanos é, pois, uma religião. Estes malabarismos etimológicos
constituem o último recurso da filosofia idealista. Pretende-se que tenha valor, não o que as palavras significam segundo o
desenvolvimento histórico do seu emprego real, mas o significado que deveriam ter por sua origem. E, desta forma,
glorifica-se como uma “religião” o amor entre os dois sexos e as uniões sexuais, pura e exclusivamente para que não
desapareça da língua a palavra religião, tão cara à recordação idealista. Exatamente da mesma forma exprime-se os
reformistas parisienses da tendência de Luis Blanc, no decênio 1840/1850, os quais, só podendo conceber como um
monstro um homem sem religião, nos diziam: “Donc, I’athéismo c’est votre religion! Quando Feuerbach se empenha em
encontrar a verdadeira religião, à base de uma interpretação substancialmente materialista da natureza, é como se
empenhasse em conceber a química moderna como a verdadeira alquimia.Se a religião pode existir sem Deus, a alquimia

39
pode também prescindir de sua pedra filosofal. Aliás, existe uma relação muito estreita entre a religião e a alquimia. A
pedra filosofal encerra muitas das propriedades que se atribuem a Deus, e os alquimistas egípcios e gregos dos dois
primeiros séculos de nossa era deram também sua mão na elaboração da doutrina cristã, como bem o demonstraram os
dados fornecidos por Knopp e Berthelot.
A afirmação de Feuerbach de que “períodos da humanidade apenas se distinguem uns dos outros pelas
mudanças religiosas” é inteiramente falsa. Grandes momentos de transição históricas foram acompanhadas
de transformações religiosas somente no que se refere às três religiões universais existentes até hoje: o
budismo, o cristianismo e o islamismo. As antigas religiões de tribos e de nações de forma espontânea, não tinham
um caráter projetista e perdiam toda sua capacidade de resistência logo que desaparecia a independência das tribos e dos
povos que às professavam; aos germanos bastou inclusive, para isso, o simples contato com o império romano em
decadência e com a religião universal do cristianismo que este império acabava de abraçar e que tão bem se adaptava a
suas condições econômicas, políticas espirituais, criadas mais ou menos artificialmente, sobretudo no cristianismo e no
islamismo, que se podem ver os movimentos históricos mais gerais tomarem em selo religioso; e, mesmo no campo do
cristianismo, esse selo religioso, tratando-se de revoluções de um alcance verdadeiramente universal, circunscrevia-se às
primeiras fases da luta de emancipação da burguesia, do século XIII, e não se explica, como quer Feuerbach, pelo
coração do homem e sua necessidade de religião mas por toda a história anterior da Idade Média que não conhecia outras
formas ideológicas além da religião e da teologia. No entanto, no século XVIII, quando já se sentiu suficientemente forte
para ter também uma ideologia própria, adequada à sua perspectiva de classe, a burguesia fez sua grande e definitiva
revolução, a revolução francesa, tão somente sob a bandeira de idéias jurídicas e políticas, só se preocupando com a
religião na medida em que esta estorvava; mas não pensou em colocar uma nova religião em lugar das anteriores; sabe-
se como Robespierre fracassou nesse empenho.
A possibilidade de experimentar sentimentos puramente humanos em nossas relações com outras seres
humanos acha-se, já hoje, bastante atrofiada pela sociedade erigida sobre os antagonismos e o regime de
classe em que nos vemos obrigados a mover-nos; não há razão alguma para nós mesmos a atrofiemos ainda
mais, sacramentando esses sentimentos em alguma religião. E a compreensão das grandes lutas históricas de
classe já bastante obscurecida pelos historiadores habituais, sobretudo na Alemanha, sem que acabemos de torná-la
inteiramente impossível, transformando esta história de lutas num simples apêndice da história eclesiástica. Só isso já
mostra bem o quanto estamos hoje afastados de Feuerbach. Seus “trechos mais famosos”, consagrados ao enaltecimento
dessa nova religião do amor, são hoje ilegíveis.
A única religião que Feuerbach, investiga seriamente é o cristianismo, a religião universal do Ocidente, baseada no
monoteísmo. Feuerbach mostra que o Deus dos Cristãos nada mais é que o reflexo imaginário, a imagem refletida do
homem. Mas esse Deus é, por sua vez, o produto de um longo processo de abstração, a quintessência concentrada dos
numerosos deuses tribais e nacionais existentes antes dele. Em conseqüência, o homem, cuja imagem refletida aquele
Deus representa, também não é um homem real, mas é também a quintessência de muitos homens reais, é o homem
abstrato, e portanto também uma imagem mental. O mesmo Feuerbach que a cada página prega o império dos sentidos, o
mergulho no concreto, na realidade, torna-se completamente abstrato logo que começa a falar de outras relações entre os
homens que não sejam as simples relações sexuais.
Ele só vê nestas relações um aspecto: o da moral. E aqui volta a surpreender-nos a assombrosa pobreza de Feuerbach,
comparado com Hegel. Neste, a ética ou teoria da moral é a filosofia do Direito e compreende: 1 - o direito
abstrato; 2 - a moralidade; 3 - a moral prática que, por sua vez engloba a família, a sociedade civil e o Estado.
Aqui tudo que a forma tem de idealista, tem o conteúdo de realista. Engloba-se, juntamente com a moral, todo
o campo do direito, da economia, da política. Em Feuerbach, dá-se o contrário. Quanto à forma, Feuerbach é
realista, seu ponto de partida é o homem; mas, como não diz uma única palavra sobre o mundo em que vive
esse homem, continua ele sendo o mesmo homem abstrato que se destacava na filosofia da religião. Esse
homem não nasceu de ventre de mulher, mas saiu como a borboleta da crisálida, do Deus das religiões monoteísta e,
portanto, não vive num mundo real, historicamente criado e historicamente determinado; é verdade que ele entra em
contato com outros homens, mas estes são tão abstratos quanto ele. Na filosofia da religião, ainda existiam homens e
mulheres; na ética, mesmo essa última diferença desaparece. É verdade que em Feuerbach encontramos, muito
espaçadamente, afirmações como estas: “Num palácio pensa-se de forma diferente que numa cabana”; “Quem nada tem
no corpo, por causa da fome e da miséria, também nada pode ter para a moral no cérebro, no espírito, nem no coração”;
A política deve ser nossa religião”; etc. Não sabe, porém, o que fazer com essas afirmativas, elas não passam de formas
de expressão, e o próprio Starcke vê-se a reconhecer que, para Feuerbach, a política era uma fronteira infranqueável e a
sociologia a teoria da sociedade – uma terra incógnita.
A mesma superficialidade ele revela, comparado com Hegel, na maneira como aborda a contradição entre o bem e o
mal. Quando se diz – escreve Hegel – que o homem é bom por natureza, pensa-se afirmar algo muito grandioso; mas
esquece-se que se diz algo muito mais grandioso quando se afirma que o homem é mau por natureza. Em Hegel, a
maldade é a forma que exprime a força propulsora do desenvolvimento histórico. E este critério encerra um duplo sentido,
visto que, de um lado, todo novo progresso representa um ultraje a algo santificado, umas rebeliões contra as velhas
condições, agonizantes mais consagradas pelo hábito; e que de outro lado, desde o surgimento dos antagonismos de
classe, são precisamente as paixões dos homens, a cobiça e a sede de domínio que servem de alavanca ao progresso
histórico, como, por exemplo, a história do feudalismo e da burguesia constitui uma contínua comprovação. A investigação
do papel histórico da maldade moral é, porém, uma idéia que nem de longe passa pela mente de Feuerbach. Para ele, a
história é um domínio desagradável e inquietante. Mesmo sua afirmação: “o homem que surgiu originalmente da Natureza
era um ser puramente natural, e não um homem. O homem é um produto do homem, da cultura, da história”; até essa
afirmação permanece nele inteiramente estéril.
Com essas premissas, o que Feuerbach possa nos dizer sobre a moral tem de ser extremamente pobre. A anciã da
felicidade é inata no homem e deve, portanto, constituir a base de toda moral. Essa sede de ventura sofre, porém, duas

40
correções. A primeira é a que lhe impõem as conseqüências naturais de nossos atos: à embriaguez segue-se a ressaca, e
dos excessos habituais segue-se a doença; a segunda decorre de suas conseqüências sociais: se não respeitarmos a
mesma sede de felicidade dos outros, estes se defenderão e, por sua vez, perturbarão a nossa. Donde se conclui que, para
satisfazer esse desejo, devemos estar em condições de calcular bem as conseqüências de nossos atos, e, ainda, de
reconhecer a igualdade de direitos dos outros a satisfazerem o mesmo desejo. Autodomínio racional em relação a si
mesmo, e Amor - sempre o amor! - em nossas relações com os outros, constituem, pois as regras fundamentais da moral
feuerbachiana , das quais derivam toas as demais. Para encobrir a pobreza e a vulgaridade dessas teses, não são
suficientes nem as considerações engenhosíssimas de Feuerbach, nem os calorosos elogios de Starcke.
O homem muito raramente satisfaz sua aspiração à felicidade - e nunca em proveito próprio nem de outros - ocupando-
se consigo mesmo. Tem que se relacionar com o mundo exterior, encontrar meios para satisfazer àquele anelo: alimentos,
um indivíduo de outro sexo, livros, conversação, debates, uma atividade, objetos de consumo e de trabalho. Ou a moral
feuerbachiana parte de que todo homem dispõe desses meios e objetos de satisfação ou, então lhe dá conselhos
excelentes, mas inaplicáveis e, portanto, não vale um vintém para os para os que careçam daqueles recursos. O próprio
Feuerbach o confessa, franca e secamente: “Num palácio pensa-se de forma diferente de uma cabana. Quem nada tem no
corpo, por causa da fome e da miséria, também nada pode ter, para a moral, no cérebro, no espírito e no coração”.
Por acaso sucede algo melhor com a igualdade de direitos dos outros no que se refere a seu anseio de felicidade?
Feuerbach apresenta este postulado com caráter absoluto, como se fosse válido para todos os tempos e todas as
circunstâncias. Mas desde quando esse postulado é posto em prática? Falava-se, por acaso, em reconhecer a igualdade de
direito à felicidade entre o senhor de escravos e o escravo, na Antiguidade ou entre o barão e o servo da gleba, na Idade
Média? Não se sacrificava à classe dominante, sem contemplações e “por causa da lei”, o anseio de felicidade da classe
oprimida? - Sim, mas aquilo era imoral; hoje, em compensação, a igualdade de direitos está reconhecida e sancionada.
Está, sim, mas apenas no papel, desde e porque a burguesia, em sua luta contra o feudalismo, e visando o
desenvolvimento da produção capitalista, se viu obrigada a abolir todos os privilégios de casta, isto é, os privilégios
pessoais, proclamando, inicialmente, a igualdade dos direitos privados e, em seguida, pouco a pouco, a dos direitos
públicos, a igualdade jurídica de todos os homens. No entanto, a ânsia de ventura só numa parte mínima se alimenta de
direitos ideais; o que ela mais reclama são meios materiais e nesse terreno a produção capitalista cuida de que a imensa
maioria dos homens iguais em direitos só receba a dose estritamente necessária para sobreviver, mal respeitando, pois, o
princípio da igualdade de direito no tocante ao desejo de felicidade da maioria - se é que se respeita - mais que o regime
de escravidão ou de servidão da gleba. Acaso a realidade é mais consoladora no que se referem aos meios espirituais de
felicidade, aos meios de educação? O próprio “mestre-escola de Sadowa” não continua sendo um personagem nítido?
Mais ainda. Pela teoria feuerbachiana da moral, a Bolsa é o templo supremo da moralidade... desde que se
especule de maneira certa. Se minha anciã de felicidade me leva à Bolsa e, uma vez ali, sei calcular de modo tão
acertado as conseqüências de meus atos que estes só me trazem vantagens e nenhum prejuízo, isto é, se com isso saio
ganhando sempre, então terei cumprido a prescrição de Feuerbach. E, com isso não prejudico tampouco o desejo de
felicidade de outro homem, tão legítimo quanto o meu, pois ele se dirigiu à Bolsa tão voluntariamente quanto eu e, ao
tratar comigo e negócio de especulação, obedecia à sua anciã de felicidade, nem mais nem menos como eu obedecia à
minha. E se perde seu dinheiro, isso demonstra que sua ação era imoral, por ter calculado mal suas conseqüências. E, ao
castigá-lo como merece, posso inclusive orgulhar-me como se fosse um Radamante moderno. Na Bolsa também impera
o amor na medida em que este é algo mais que uma frase puramente sentimental, pois aqui cada homem
encontra noutro homem a satisfação de seu direito de felicidade, que é precisamente aquilo que o amor
procura e de que, na prática ele cuide. Por conseguinte, se jogo na Bolsa, calculando bem as conseqüências de
minhas operações, Isto é, com êxito, atuo ajudando-me aos postulados mais severos da moral feuerbachiana,
e, além disso, torno-me rico. Em outros termos, a moral de Feuerbach é feita sob medida, para a atual
sociedade capitalista, embora seu autor não o quisesse nem o suspeitasse.
Mas... é amor? Sim, o amor é em Feuerbach a fada maravilhosa que ajuda a vencer, sempre e em toda parte, as
dificuldades da vida prática; e isso, numa sociedade dividida em classes com interesse diametralmente opostos. Com isso,
desaparece de sua filosofia até o último resíduo de seu caráter revolucionário e voltamos à velha canção:
amai-vos uns aos outros, abraçai-vos sem distinção de sexo ou posição social. É o sonho da reconciliação universal. Em
resumo: à teoria moral de Feuerbach sucede o mesmo que a todas as suas antecessoras. Serve para todos os tempos,
todos os povos e todas às circunstâncias, razão por que não é aplicável em parte alguma e em tempo algum e se revela
tão impotente face à realidade quanto o imperativo categórico de Kant. A verdade é que cada classe e mesmo cada
profissão tem sua moral própria, que ela viola sempre que pode fazer impunemente; e o amor, que tem por missão tramar
tudo, manifesta-se sob a forma de guerras, litígios, processos, escândalos domésticos, divórcios e exploração máxima de
uns por outros.
Como é possível, no entanto, que o gigantesco impulso dado por Feuerbach resultasse tão estéril nele próprio?
Simplesmente porque Feuerbach não consegue encontrar a saída do reino das abstrações, moralmente odiado por ele
próprio, para a realidade viva. Aferra-se desesperadamente à natureza e ao homem quando, na história, a natureza e o
homem são vistos em ação. E nada sabe dizer de concreto nem sobre a natureza real, nem sobre o homem real.
Passa-se do homem abstrato de Feuerbach aos homens vivos e reais; mas a natureza e o homem
permanecem, para ele, meras palavras. Feuerbach, porém, resistia a isso; eis porque o ano de 1848, que ele não
conseguiu compreender, só representou para ele a ruptura com o mundo real, o retiro à solidão. E a culpa disso voltam a
tê-la, principalmente, as condições da Alemanha, que o deixaram cair na miséria. No entanto, o passo que Feuerbach não
deu tinha que ser dado era necessário substituir o culto do homem abstrato medula da nova religião feuerbachiana, pela
ciência do homem real e de seu desenvolvimento histórico. Esse desenvolvimento das posições feuerbachianas, superando
a Feuerbach, foi iniciado por Marx, em 1845, com A Sagrada Família.

41
MATERIALISMO DIALÉTICO
Parte III

Texto nº. 1
TESES SOBRE FEUERBACH. MARX, Karl. Edição Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril S.A., 1974, pág. 55 à 59.

1. A falha fundamental de todo o materialismo precedente, incluindo o de Feurbach, reside em que só capta a coisa
(Gegenstand), a realidade, o sensível, debaixo da forma do objeto (Objekt) ou da contemplação (Anschauung), não como
atividade humana sensorial, como prática, não de um modo subjetivo. Daí que o lado ativo fosse desenvolvido de um
modo abstrato, em contraposição ao materialismo, pelo idealismo, o qual, naturalmente, não conhece a atividade real,
sensorial, enquanto tal. Feuerbach aspira a objetos sensíveis, realmente distintos dos objetos conceituais, mas
não conhece a atividade humana, ela própria, como uma atividade objetiva (Gegenstandliche). Por isso, na
Essência do Cristianismo, só se considera como autenticamente humano o comportamento teórico e pelo
contrário a prática só se capta e se plasma debaixo da sua suja e judaica forma de se manifestar. Daí que
Feuerbach não compreenda a importância da atividade "revolucionária", da atividade "crítico-prática".

2. O problema de saber se ao pensamento humano se pode atribuir uma verdade objetiva não é um problema prático.
É na prática onde o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, a materialidade do seu
pensamento. A discussão em volta da realidade ou irrealidade do seu pensamento - isolado da prática - é um problema
meramente escolástico.

3. A teoria materialista da mudança constante das circunstâncias e da educação esquece que os homens fazem mudar,
eles próprios, as circunstâncias e que o educador necessita por sua vez de ser educado. Há, pois que distinguir na
sociedade duas partes, uma das quais se encontra colocada por cima dela.
A coincidência da mudança das circunstâncias coma mudança da atividade humana ou com a mudança dos
próprios homens, só pode conceber-se e entender-se racionalmente como prática revolucionária.

4. Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa do homem, do desdobramento do mundo em um mundo


religioso e um mundo terreno. O seu trabalho consiste em reduzir o mundo religioso ao seu fundamento terreno. Mas o
fato de que o fundamento terreno se separe de si próprio para se plasmar como um reino independente que flutua nas
nuvens é algo que só pode explicar-se pelo próprio afastamento e contradição deste fundamento terreno consigo mesmo.
Portanto é necessário tanto compreendê-lo na sua própria contradição como revolucioná-lo praticamente. Assim, pois,
por exemplo, depois de descobrir a família terrena como o segredo da família sagrada, há que destruir teórica
e praticamente a primeira.

5. Feuerbach não se dá por satisfeito com o pensamento abstrato e recorre à contemplação (Anschuung); mas não
concebe o sensorial como atividade sensorial-humana prática.

6. Feuerbach resolve a essência religiosa na crença humana. Mas a essência religiosa não é alguma coisa
que seja abstrata e imanente a cada indivíduo. É na sua realidade, o conjunto das relações sociais.
Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real, vê-se obrigado portanto:
1. - A prescindir do processo histórico, plasmando o sentimento religioso por si e pressupondo um indivíduo
humano abstrato, isolado.
2. - A essência só pode conceber-se, portanto, de um modo genérico, como uma generalidade interna, muda, que
une de um modo natural, muitos indivíduos.

7. Feuerbach, não vê, por conseguinte, que o "sentimento religioso" é, por sua vez, um produto social e que
o indivíduo abstrato que ele analisa pertence a uma determinada forma de sociedade.

8. Toda a vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que induzem a teoria do misticismo encontram
a sua solução racional na prática humana e na compreensão desta prática.

9. O máximo onde pode chegar o materialismo contemplativo, isto é, o que não concebe o sensível como uma atividade
prática, é contemplar os diversos indivíduos soltos e desgarrados da sociedade civil.

10. O ponto de vista do materialismo antigo é a sociedade civil; do materialismo moderno, a sociedade humana ou a
humanidade social.

11. Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata é de o transformar.

Texto nº. 2
O MATERIALISMO MODERNO. LEFEBVRE, Henri. Lógica forma e lógica dialética. – R. J: Civilização Brasileira, 1995.

(...)
9. Materialismo metafísico e materialismo moderno

42
Poder-se-á, contudo, apresentar a seguinte objeção: o próprio materialismo é uma metafísica, não do espírito ou
da idéia, mas da matéria.
Ele admite uma realidade absoluta; aceita o impensável, o inconcebível, uma "coisa em si": a matéria situada fora
da consciência e da experiência, até mesmo do conhecimento. Como os metafísicos e os místicos, os materialistas
saltam um rio desconhecido, admitindo a existência de algo na outra margem, além dos limites do conhecido.
Reconhecendo nossas sensações como a única fonte de nossos conhecimentos, os materialistas não se atêm a
sensações efetivamente experimentadas, aos "fenômenos"; admitem a "coisa em si" (expressão kantiana que designa
a realidade absoluta), duplicando assim o mundo dos fenômenos através de um mundo absolutamente real e
verdadeiro (i).
Essa crítica atinge um tipo de materialismo hoje ultiapassado: o atomismo, o mecanicismo.
O atomismo de Epicuro e de Lucrécio leva em conta certas propriedades simples dos objetos materiais - a dureza, a

elasticidade - e os eleva ao absoluto, definindo através deles uma matéria eterna. Segundo esses dois pensadores, o

mundo se forma pela aglomeração instável de pequenos corpos, os átomos, que são os elementos últimos, irredutíveis,

simples, do universo material.

Quando o materialismo afirma, com Karl Vogt, que "o pensamento tem com o cérebro a mesma relação que a bílis
com o fígado"; ou, com certas escolas de psicologia, que a consciência é um "epifenômeno" sem eficácia e que somos
"autômatos conscientes" (I-luxley); esse materialismo nega uma parte da realidade: a consciência e sua história
biológica e social; leva ao absoluto um fato fisiológico: a secreção, o reflexo.
(...)
O materialismo vulgar responde negando o "eu", a consciência, a atividade humana; levando ao absoluto
constatações de detalhe (por exemplo, os reflexos), sai desse círculo vicioso da consciência, mas para renunciar à
consciência, que, na opinião dele, continua a ser um círculo vicioso!
Por essas razões, tal materialismo conserva-se brutalmente "mecanicista"; aplica aos processos da
natureza química e orgânica tão-somente os métodos de exploração e explicação puramente mecânicos.
Assim, leva em consideração apenas as propriedades mais elementares - e, portanto, num certo sentido,
as mais abstratas - da natureza material. Negligencia a variedade inumerável das formas de energia e de
potência criadora na natureza; e, além disso, deixa de lado todos os processos históricos, a história humana e mesmo
a história da natureza, naquilo que essa tem de complexo e de evolutivo. Por isso, o idealismo conservou até bem
pouco tempo uma espécie de monopólio efetivo no que se refere à teoria do pensamento e ao conhecimento da
sociedade; tão-só ele -à sua maneira - abordava os problemas respectivos a essas áreas, que eram negligenciados ou
tratados superficialmente pelo materialismo mecanicista.
O pensamento oscilava incessantemente entre essas duas variedades da metafísica, o idealismo e o materialismo,
desencorajado por seus paradoxos e contradições, indo de um suicídio pela negação mecanicista de si mesmo a um
outro suicídio pela negação idealista do mundo, sem motivo para se fixar, ora seduzido pelo encantamento idealista,
ora atraído pelo realismo materialista.
O materialismo moderno ultrapassa resolutamente essas controvérsias estéreis, porque as define como
uma oposição no interior da metafísica; e ultrapassa resolutamente os "problemas" metafísicos.
A única propriedade atribuível filosoficamente (na teoria do conhecimento) à "matéria" e cuja admissão define o
materialismo moderno é o fato de existir fora de nossa consciência, sem nós, antes de nós - qualquer que seja essa
existência.
Um "sistema" fechado da natureza, que pretendesse abarcar e definir tudo, notadamente a "matéria", é
incompatível com esta lei: o conhecimento humano progride da ignorância à ciência. Um sistema desse tipo,
pretendendo fechar o saber, paralisa o trabalho da ciência. Ora, a ciência da natureza - e somente ela - descobre
pouco a pouco o que é essa existência "material", essa realidade objetiva; e a descobre progressivamente: certas
descobertas inauguram períodos novos do saber e nos obrigam a revisar todas as nossas velhas idéias. Quaisquer
que sejam as transformações da ciência da natureza, mantém-se o fato de que ela conhece uma natureza!
Cada época deve esforçar-se por organizar, sistematizar numa "síntese", o conjunto dos conhecimentos sobre a
natureza. Mas nenhuma dessas sínteses pode se pretender definitiva.
Esse materialismo moderno, em particular, constata a existência - real, efetiva, eficaz - da consciência
e do pensamento. Nega apenas que essa realidade possa ser definida isoladamente e destacar-se da
história humana (social), do organismo humano e da natureza. O espírito, se se deseja empregar esse
termo, é distinto da natureza, mas a ela ligado. E isso é um fato.
Os produtos da fantasia são ainda aqueles da natureza, pois o poder da imaginação, como as demais forças do
homem, é também... uma força da natureza. O homem, porém, é um ser diferente do sol, da lua, das estrelas, das
pedras, dos animais e das plantas; diferente, em suma, de tudo o que existe e daquilo a que ele aplica o termo genérico
de natureza. As imagens que o homem se faz do sol, da lua, etc., são assim produtos da natureza, mas que diferem
daquilo que elas representam. 17
E Feuerbach concretiza:
“Meu nervo gustativo é, como o sal, um produto da natureza; não decorre disso que o gosto do sal seja uma
propriedade do sal... O homem é um produto da natureza... mas a natureza na cabeça e no coração do homem difere
da natureza fora de sua cabeça e do seu coração”.

17
Feuerbach, Euvres, VII, p. 516.
43
Em outras palavras, não há "identidade" entre as sensações e representações humanas, por um lado, e, por outro, os
seres da natureza que elas representam, mas sim uma correspondência de fato, que a ciência deve experimentar,
aprofundar, criticar.
(...)
O materialismo moderno, assim, restitui ao pensamento materialista a variedade, a riqueza, a poesia que havia
perdido desde a Antiguidade (desde Lucrécio, em quem a poesia já se unia com dificuldade a um mecanicismo
atomista já frio e ressecado). O materialismo moderno nos restitui a natureza, ou, melhor, no-la da em sua
imensidade, em sua potência destrutiva e criadora , em sua fecundidade de formas e de seres - e isso não como
uma existência mística e sagrada, que caberia adorar com humildade (panteísmo), mas como uma realidade que é
nosso bem humano, que possuímos (enquanto espécie humana saída do seu seio) pelo poder do trabalho e do
conhecimento.

Sumarizemos esse primeiro esboço de uma teoria do conhecimento

a) o conhecimento supõe: um "objeto" real exterior, a natureza ou matéria penetrada progressivamente -


no curso da história da prática, da ciência e da filosofia - pelo "sujeito" humano ativo, cujas representações,
imagens e idéias correspondem ao objetivo de modo mais ou menos exato;
b) o ser humano é um "sujeito-objeto": ele pensa, é "sujeito", mas sua consciência não se separa de
uma existência objetiva, seu organismo, sua atividade vital e prática. Ele age, enquanto tal, e é objeto para
outros sujeitos agentes;
c) o sujeito e o objeto, o pensamento e a matéria, o espírito e a natureza, são ao mesmo tempo
distintos e ligados: em interação, em luta incessante no seio de sua própria unidade;
d) para o materialismo moderno, o idealismo se define e se critica por sua unilateralidade. Mas os
materialistas não devem permitir que se simplifiquem as verdades primeiras do materialismo, que elas recaiam ao
nível do materialismo vulgar, através do esquecimento dos preciosos resultados obtidos pelos idealistas na história
do conhecimento e, em especial, na lógica. Ao contrário: o materialismo deve dar todo seu sentido e todo seu valor
aos instrumentos do conhecimento forjados pelos grandes idealistas.

Texto nº. 3
A REVOLUÇÃO MARXISTA NA LÓGICA. NOVACK, G. Introdução à Lógica Marxista. Ed. José Luís e Rosa S, S. P, Págs. 83 a 92.

Sétima Palestra - A REVOLUÇÃO MARXISTA NA LÓGICA

Na introdução de sua Lógica, Hegel escreveu: "Não podia imaginar, e é claro, que o método que segui neste sistema de
lógica - ou que este sistema segue por si - fosse suscetível de ser melhorado ou de muita elaboração em detalhes, mas, ao
mesmo tempo, sei que é o único método verdadeiro".
Hegel não podia, naturalmente, antecipar-se à grande transformação que ia sofrer o seu método dialético em mãos de
seus sucessores socialistas, Marx e Engels. Estes pensadores revolucionários não se limitaram em "melhorar" ou "elaborar
detalhes" à dialética de Hegel, assim como tão pouco introduziram só reformas às teorias da economia burguesa clássica,
ou ao sistema político democrático-burguês. No curso de seu trabalho crítico Marx e Engels superaram a dialética idealista
e a revolucionaram, criando um novo instrumento lógico: o materialismo dialético. Assim como Aristóteles sintetizou as
maiores conquistas do pensamento grego e Hegel a dos filósofos alemães, também assim encontramos a síntese mais alta
de ambas as escolas filosóficas na obra de Marx e Engels.
Hegel revolucionou a velha lógica formal e a reconstruiu sobre novas bases teóricas. Marx e Engels levaram esta
revolução na ciência lógica a um nível ainda mais elevado, ao separar o conteúdo racional do pensamento de Hegel de sua
couraça idealista irracional e assentar a dialética sobre sólidas bases materialistas. Eles fizeram materialista a dialética e
dialético o materialismo. Esta dupla transformação marcou época na história do pensamento.
Marx e Engels se ocuparam da dialética hegeliana assim como de seus predecessores socialistas. Assim como deixaram
de lado os falsos aspectos idealistas e utópicos da crítica social de Saint-Simon, Owen e Fourier e incorporaram suas
doutrinas e enfoques socialistas a uma elaboração materialista consistente, separaram a dialética de Hegel de sua couraça
místico-idealista, assimilando seu conteúdo válido e suas idéias vitais à sua nova concepção do mundo.
Deste modo, a moderna dialética seguiu por ela mesma uma evolução dialética. Da forma unilateral, distorcida, que
assumiu primeiramente na filosofia de Hegel, a dialética se viu transformada em seu oposto no sistema materialista do
marxismo. O idealismo hegeliano e o materialismo marxista são dois pólos da lógica dialética moderna. A
primeira é sua expressão falsa e fetichista; a segunda é a autenticamente revolucionária.
Da mesma forma que a Rússia experimentou um duplo processo revolucionário em 1917, passando por uma revolução
democrático-burguesa e outra proletária, também a ciência lógica, na primeira metade do século XIX, sofreu uma dupla
revolução ao surgir nas mentes criadoras dos grandes filósofos burgueses alemães e logo passando pela crítica dos
fundadores do socialismo científico. De certa forma, este é um dos mais chamativos exemplos de desenvolvimento
combinado da história do pensamento humano.

1. Como Marx e Engels partiram do hegelianismo

Marx e Engels disseram que sua doutrina é produto de uma reconstrução crítica da filosofia clássica alemã,
do socialismo francês e da economia política inglesa. "Sem a grande filosofia alemã, particularmente a de Hegel",
escreveu Engels, "o socialismo cientifico alemão (o único socialismo cientifico esclarecido) não haveria chegado a existir

44
nunca". Esta é uma das razões pelas quais temos em grande estima esta filosofia e estamos obrigados a estudá-la e
respeitá-la.
Marx e Engels tiveram dois predecessores imediatos importantes na filosofia, um foi Hegel, o maior representante da
escola idealista na Alemanha, o outro Feuerbach, o cabeça da tendência materialista. Estes dois pensadores forneceram a
Marx e Engels os ingredientes essenciais para a construção de seu próprio enfoque. Eles adotaram uma atitude crítica
frente às idéias que receberam de seus mestres. Não só retiveram certos elementos de seu pensamento; também
transformaram outros, ao mesmo tempo que rejeitaram idéias de ambos. Marx e Engels, como muitos brilhantes jovens
universitários da Alemanha de sua época, começaram suas carreiras intelectuais como discípulos de Hegel. O pensamento
de Hegel, como já notamos, sofria uma aguda contradição: sua dialética essencialmente revolucionária estava
amalgamada com um idealismo reacionário que distorcia seu verdadeiro caráter e do qual clamava por se ver livre.
A escola hegeliana, que depois da morte de Hegel dominava o pensamento alemão avançado de já um século, se
dividiu em duas tendências opostas, produtos de dois aspectos antagônicos do pensamento de Hegel e correspondente a
eles. Os chamados Velhos Hegelianos aderiram imediatamente aos aspectos mais reacionários de seu sistema,
extraindo as conclusões mais conservadoras. Os Jovens Hegelianos de esquerda, por outro lado, enfatizaram
e desenvolveram as implicações mais radicais das idéias de Hegel, na linha de seu método dialético. Isto os
levou, primeiro, sob o empuxo crescente do movimento revolucionário democrático-burguês, à critica da religião, a seguir
à crítica da sociedade e do estado e finalmente às idéias anarquistas, socialistas e comunistas.
Marx e Engels, que se encontravam na extrema esquerda dos Jovens Hegelianos e nunca se identificaram totalmente
com os chamados Hegelianos de Esquerda, entraram rapidamente em colisão com as idéias e conclusões errôneas de seus
principais lideres (Bauer, Hess, Stirner, etc) e criaram um enfoque próprio. Os passos para sua emancipação do
hegelianismo e outras formas de idealismo por um lado e do materialismo unilateral por outro, estão claramente
delineados em seus escritos da década de 1840. Escreveram uma notável série de trabalhos críticos, entre eles A Sagrada
Família e A ldeologia Alemã; nos quais polemizavam com seus predecessores e rivais filosóficos. Nesses escritos estão
traçadas, com clareza e precisão não usuais, as sucessivas etapas da evolução da lógica marxista. Este registro é muito
mais claro e mais concreto que a gênese de qualquer outra escola de pensamento. Assim como o socialismo está se
fazendo de forma muito mais consciente que qualquer dos sistemas sociais anteriores, sua teoria foi criada muito mais
conscientemente que a filosofia anterior.

2. A lista de Feuerbach

A crítica materialista de Feuerbach a Hegel tornou possível e acelerou o progresso filosófico de Marx e Engels em sua
evolução do idealismo hegeliano ao materialismo dialético. Feuerbach foi o agente catalisador que iniciou e logo acelerou a
criação do materialismo dialético a partir do contato de Marx e Engels com o hegelianismo.
De Hegel, Marx e Engels derivaram seu método lógico. De Feuerbach receberam uma critica materialista de
Hegel e uma reafirmação da posição fundamental do materialismo que havia caído em grande desprestígio na
Alemanha e no resto da Europa. Hegel levou as especulações idealistas da escola alemã, começando por Kant e
seguindo por Fichte e Schelling, à sua máxima expressão. Seus epígonos ortodoxos as precipitaram no absurdo e
esterilidade.
Feuerbach expôs a realidade e os erros dos excessos especulativos de Hegel desde o ponto de vista materialista.
Substituiu as especulações fetichistas dos hegelianos pela verdade limpa e clara do materialismo. Graças a Feuerbach,
cujos escritos despertaram seu entusiasmo, Marx e Engels puderam liberar suas mentes do idealismo de que estava super-
saturado Hegel.
Mas Marx e Engels não puderam ficar com o enfoque de Feuerbach mais do que ficaram com o de Hegel.
Seu pensamento, disseram, teve sérios erros. Não era dialético e nem completamente materialista. Feuerbach
refutou erroneamente a lógica dialética de Hegel, juntamente com suas aberrações idealistas. Assim como os
grandes idealistas em sua ansiedade por fazer justiça aos processos e produtos do pensamento suprimiram a verdade do
materialismo, também este pensador materialista depreciou os avanços dos grandes idealistas na ciência lógica.
Os anti-dialéticos contemporâneos repetem o erro de Feuerbach sobre Hegel, mas com muito menos desculpas e com
um resultado muito menos progressivo. Sua refutação ou indiferença à dialética os retroage à idéias e métodos pré-
hegelianos obsoletos; ao passo que Feuerbach abriu a porta ao marxismo.
Em segundo lugar, Feuerbach era materialista em seu enfoque geral mas não na aplicação específica do
materialismo à historia e à sociedade. Neste campo não havia depurado seu pensamento de todos os vestígios
de idealismo. "Até onde Feuerbach é materialista, não se ocupa da história e quando considera a história não
é materialista" ressaltaram Marx e Engels em sua Ideologia Alemã. Ele acreditava, por exemplo, que o amor era o
elemento básico e a força motriz da sociedade humana.
Marx e Engels descobriram essas diferenças no materialismo de Feuerbach e as superaram. Eles se tornaram
materialistas dialéticos do modo mais profundo e consciente, precisamente porque retiveram e aplicaram o método
dialético que Feuerbach deixara de lado. Porque a dialética é a lógica da evolução e da revolução, ou seja, dos processos
moleculares lentos e graduais que em um certo momento produzem um salto a uma nova qualidade molar. O materialismo
de Feuerbach estava mais relacionado com o materialismo mecânico e metafísico dos materialistas ingleses do século XVII
e franceses do XVIII que com o materialismo dialético.

3. Os efeitos do pensamento de Hegel

O próprio Hegel não tirou, e nem poderia, todas as conclusões necessárias de seu método revolucionário de
pensamento. Sérias limitações em sua compreensão e na aplicação da lógica dialética que ele havia sistematizado
restringiram sua obra e lhe impediram de desenvolver totalmente seu rico conteúdo. Hegel preparou o terreno e

45
plantou a semente da renovação da lógica e colheu a primeira safra: a primeira, e até agora a única, exposição
sistemática das leis da dialética. Marx e Engels continuaram o cultivo e colheram a segunda e mais rica
produção: a estrutura do materialismo dialético.
Hegel errou, em primeiro lugar, ao construir um sistema filosófico completo e fechado, no qual o fluxo total
da realidade estava enclausurado de uma vez por todas, e do qual não podia sair. Esta tentativa vã de construir
um sistema totalmente definitivo, herdado dos metafísicos do passado, contradizia a concepção chave da dialética de
Hegel de que tudo é limitado, perecível e está destinado a converter-se em seu oposto. O pensamento de Hegel estava
afetado por esta oposição inerente e incurável entre sua pretensão de ser um sistema de verdade absoluto e seu método
dialético, que assegurava que todas as verdades são relativas. Assim foi, disse Engels, que "o aspecto revolucionário ficou
oculto pela exuberância do conservador" (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã).
Além do mais, o sistema de Hegel era idealista. Tendia a distorcer o caráter essencialmente revolucionário
da dialética contida nele. Ele acreditava que as idéias constituíam a essência da realidade e que era a
evolução das idéias o que arrastava o resto da realidade. Reduzia todos os processos da realidade ao processo
único da Idéia Absoluta. O processo histórico da evolução, na natureza, na sociedade e na mente, eram no fundo um
reflexo e uma réplica da evolução das idéias do homem. "O espírito... é a causa do mundo" diz Hegel na introdução
de sua Enciclopédia.
A realidade externa não era mais que uma cópia imperfeita das manifestações do pensamento em sua progressão até a
perfeição da Idéia Absoluta, que é o pseudônimo de Hegel para Deus. Sua idéia era a história da realização desta Idéia
Absoluta. Como disse Trotsky: "Hegel operava com sombras ideológicas como última realidade. Marx demonstrou que o
movimento dessas sombras ideológicas refletia, simplesmente, o movimento das coisas materiais" (Em Defesa do
Marxismo).
Na versão idealista de Hegel do processo histórico não havia, em última análise, nenhuma evolução genuína do velho
ao novo, mas um movimento circular da idéia abstrata original pré-existente, passando pela natureza e pela sociedade, a
sua culminação na Idéia Absoluta concreta. Devido ao atraso do conhecimento cientifico em sua época, a própria natureza
não experimentava, aos olhos de Hegel, nenhuma evolução histórica fundamental, mas que se mantinha mais ou menos
igual. A evolução da sociedade também se deteve para Hegel em sua forma capitalista. Tinha um horizonte
exclusivamente burguês. Em política, por sua vez, não podia visualizar um estado mais perfeito que a monarquia
constitucional (seu modelo era o primeiro do capitalismo: a Inglaterra). Finalmente, sustentava que o pensamento
humano havia alcançado o ápice de sua evolução em seu próprio sistema do Idealismo Absoluto.
Mas todos esse erros do pensamento de Hegel que o levaram a conclusões incorretas e conservadoras em muitas
questões práticas e teóricas, não reduzem o valor de suas descobertas lógicas ou a riqueza contida em seus escritos.
Assim como as sombras refletem a figura e os movimentos dos corpos reais, também a filosofia idealista absoluta de Hegel
reflete o múltiplo conteúdo concreto da história e a evolução do pensamento científico.

4- A crítica marxista do hegelianismo

Marx e Engels nunca deixaram de admitir o significado histórico e os perduráveis acertos dos grandes titãs da filosofia e
também sua dívida com Hegel e Feuerbach que foram seus mestres. O sistema hegeliano, escreveu Engels, cobre "um
domínio incomparavelmente maior que qualquer sistema anterior" e origina "uma riqueza de pensamento que se mantém
até hoje... E como ele (Hegel) era não só um gênio criativo, mas também um homem de erudição enciclopédica,
desempenhou um papel importantíssimo em todas as esferas" (Ludwig Feuerbach e o fim...).
Reconheceram que a ruptura de Feuerbach com o idealismo de Hegel e seu retorno ao materialismo foi a influência
intelectual decisiva em sua libertação do feitiço da filosofia idealista. Mas nem Feuerbach, nem nenhum outro de seus
contemporâneos, haviam feito uma crítica conscienciosa das idéias de Hegel. Feuerbach simplesmente deixou de lado o
enfoque idealista de Hegel a favor do materialismo, sem reconhecer a decisiva importância do método dialético. O
progresso da filosofia requeria, sem dúvida, uma crítica não só materialista, mas também dialética, e um desenvolvimento
da filosofia hegeliana. Esta crítica genuinamente dialética e materialista do hegelianismo foi realizada somente por Marx e
Engels em seus trabalhos filosóficos.
Tal como Feuerbach, Marx e Engels repudiaram totalmente o idealismo de Hegel. Opuseram um materialismo
intransigente ao idealismo igualmente inflexível de Hegel, "isto quer dizer que estava resolvido a compreender o mundo
real, natureza e história, como se apresenta a quem quer que se aproxime livre de imagens idealistas preconcebidas.
Estava decidido a sacrificar toda fantasia idealista que pudesse não se encontrar em harmonia com os fatos concebidos,
não em uma conexão fantástica, mas em sua própria. O materialismo não significa mais que isto. Mas aqui o enfoque
materialista do mundo estava sendo levado realmente a sério pela primeira vez e levado adiante consequentemente, pelo
menos em seus aspectos básicos, em todos os domínios concernentes do conhecimento" (Ludwig Feuerbach e o fim...).
Isto também significava que a dialética que, de acordo com Hegel, era essencialmente "o auto-desenvolvimento" do
conceito, tinha que se desligar de sua falsa forma idealista e se situar sobre bases materialistas concretas. Hegel havia
invertido as relações reais nas idéias e nas coisas. Ele sustentava que as coisas reais eram somente realizações
imperfeitas da Idéia Absoluta e suas manifestações. Marx e Engels assinalaram que o verdadeiro estado de coisas era
exatamente o oposto. "Nós também compreendemos de forma materialista os conceitos em nossa mente, como imagens
de coisas reais, em vez de considerar as coisas reais como imagens desta ou aquela etapa da Idéia Absoluta" (Ludwig
Feuerbach e o fim... ).
Graças a esta inversão materialista, a própria dialética se tomou em seu oposto. "Assim a dialética se reduziu à ciência
das leis gerais do movimento no mundo externo e no pensamento humano: dois grupos de leis que são idênticos em
substância, mas que diferem em sua expressão até onde a mente humana pode aplicá-Ias conscientemente, enquanto que
na natureza, e também até agora na maior parte da história humana, estas leis se afirmam a si mesmas
inconscientemente em forma de necessidade externa em meio a uma série inacabável de aparentes acidentes. Portanto, a

46
dialética do próprio conceito se converte meramente em reflexo consciente do movimento dialético do mundo real e a
dialética de Hegel se vê posta de cabeça para cima; ou pelo menos de pé, em vez do contrário, como se encontrava antes"
(Ludwig Feurbach e o fim... ).
Podemos ver, por estes fatos e citações, quão falsas e estúpidas são as acusações feitas por Eastman, Edmundo Wilson
e outros, de que Marx e Engels foram imitadores encobertos do idealismo de Hegel. Na realidade, Marx e Engels foram
infinitamente mais rigorosos, bem informados e conseqüentes adversários do idealismo hegeliano que estes opositores do
socialismo científico e seu método. E eles eram materialistas muito mais intransigentes que se teriam tido do
"senso comum" de Eastman e da política moralista de Wilson, como de coisas próprias para um jardim de
infância e não para conversa adulta. Lendo os trabalhos filosóficos dos jovens Marx e Engels, quando estavam
dedicados à tarefa de elaborar seu enfoque do mundo, em conjunto com as maduras observações de seus anos
posteriores, pode-se encontrar uma crítica do idealismo e uma exposição do materialismo que nunca foram superadas.
Mas Marx e Engels selecionaram e preservaram o que era valioso da obra de seus predecessores. Ao contrário dos
pedantes que não vêem mais que inutilidades sem sentido em Hegel, viram que seu pensamento continha sementes
capazes de um desenvolvimento posterior que, entrelaçada com as inevitáveis superstições, prejuízos e erros, existia um
elemento válido, perdurável, revolucionário, digno de ser preservado e capaz de posterior evolução. Era sua dialética.
Apesar da fundamental oposição entre o idealismo de Hegel e o materialismo do marxismo, estas duas escolas de
pensamento têm um elemento de extrema importância em comum: seu método lógico. O método dialético e suas leis
foram os principais aspectos do pensamento de Hegel que Marx reteve e desenvolveu. Este vínculo lógico os une apesar de
outras e decisivas diferenças.
Esta afinidade e este antagonismo com a obra de Hegel foi esclarecido da forma mais definitiva pelo próprio Marx no
prefácio da segunda edição de O Capital: "Meu próprio método dialético é não só fundamentalmente diferente do
hegeliano, mas é diretamente oposto. Para Hegel, o processo de pensamento (que ele transforma realmente em um objeto
independente, dando-lhe o nome de "idéia") é o criador do que é real; e para ele o real é somente a manifestação exterior
da idéia. No meu enfoque, pelo contrário, o ideal não é mais que o material quando foi trasladado e transposto à mente
humana..."
"Ainda que nas mãos de Hegel a dialética tenha se convertido em uma mistificação, isto não torna óbvio o fato de que
ele foi o primeiro a expor as formas gerais de seu movimento de um modo amplo e totalmente consciente. Nos escritos de
Hegel, a dialética está com a cabeça parada. Deve se dar a volta novamente para descobrir o miolo racional escondido em
sua couraça mística".
Note-se que Marx e Engels afirmam sem ambigüidades que a dialética surge dos processos naturais e se aplica a eles.
"Marx e eu -diz Engels- fomos os únicos a resgatar conscientemente a dialética da filosofia alemã e aplicá-la à concepção
materialista da natureza e da história". Aqueles revisionistas que clamam que a dialética não se aplica à natureza mas
somente à sociedade ou à mente, contradizem as manifestações diretas de Marx e Engels. São ignorantes ou impostores
premeditados.
Faz falta a dialética para compreender a evolução histórica do materialismo dialético. O hegelianismo e o marxismo têm
certos aspectos comuns, mas estes são menos decisivos que sua oposição fundamental. O governo soviético sob Stalin
tinha muitas características em comum com o totalitarismo fascista. Isto levou muitos, que pensaram superficialmente, a
identificá-los. Mas são basicamente diferentes e antagônicos, como o demonstrou na realidade a guerra nazi-soviética. Da
mesma forma, revisionistas pequeno-burgueses tentam identificar estalinismo com bolchevismo porque o primeiro está
conectado historicamente com o segundo e tem certas semelhanças superficiais com seu oposto revolucionário.
Esses críticos que identificam marxismo com hegelianismo não só adoecem de falta de dialética; também violam as leis
da lógica formal. Duas coisas que têm algumas características em comum, não são necessariamente o mesmo, mesmo
para o raciocínio da lógica formal. O fato de que o ganso seja um animal não torna gansos todos os animais. O fato de que
o marxismo derive historicamente de Hegel e de que marxismo e hegelianismo usem, ambos, métodos dialéticos, não
prova que sejam essencialmente o mesmo. E precisamente através deste tipo de falso raciocínio que Eastman e Wilson
tentam classificar o marxismo como um ramo do hegelianismo e do idealismo. A astronomia surgiu da astrologia e a
química da alquimia. Devem, portanto, essas ciências serem consideradas idênticas a suas predecessoras pré-científicas?
O materialismo dialético de Marx se desprendeu do hegelianismo, da mesma forma que surgira a astronomia da
astrologia e a química da alquimia, não como sua cópia, mas como seu oposto, como sua negação revolucionária. Sob um
ponto de vista - o da evolução da lógica pura - constituem uma unidade. Mas são uma unidade de opostos. No curso de
sua evolução histórica, a lógica moderna assumiu duas formas diferentes e contraditórias: primeiro a dialética idealista de
Hegel e depois a dialética materialista do marxismo.
Confrontados com as duas filosofias opostas de Hegel e Feuerbach, Marx e Engels expuseram os defeitos de cada uma,
explicando ao mesmo tempo sua necessidade histórica. Logo partiram para combinar as idéias válidas de ambos os
pensadores em um novo sistema de pensamento. A rejeição das limitações e erros de ambos, seus mestres idealistas e
seus precursores materialistas, foi seguida por uma fusão de suas concepções opostas em uma unidade sob bases
superiores. Esta é a real derivação dialética do próprio materialismo.
Para atingir sua unificação do método dialético com o enfoque materialista, Marx e Engels tiveram que reunir esses dois
movimentos que existiram até então em absoluto antagonismo. Por um lado tinham que liberar a dialética do idealismo
que a havia feito nascer e com a qual havia ficado identificada. Por outro, tinham que dissolver as conexões entre o
materialismo e as formas mecanicistas e metafísicas às quais havia estado ligado até o momento.
A dialética idealista delineava mais corretamente as formas dos processos de pensamento. O materialismo insistia
corretamente na primazia do conteúdo material da realidade objetiva. O materialismo dialético combinou as verdades
essenciais desses dois ramos do pensamento em um novo e mais elevado sistema filosófico.
Assim, Marx e Engels criaram seu método filosófico ao transformar radicalmente os pensamentos de Hegel e
Feuerbach. O hegelianismo, essa negação suprema do materialismo, encontrou sua própria negação no materialismo
dialético. O frio materialismo de Feuerbach, que se opunha totalmente ao idealismo alemão, também encontrou sua

47
negação no materialismo dialético. Este movimento de duas tendências opostas até sua dissolução e a seguir sua fusão em
uma nova síntese genuinamente dialética. Desta forma, a evolução do materialismo dialético dá provas da veracidade de
suas próprias idéias.
Temos ouvido algumas vezes esta pergunta: É a dialética a forma mais elevada de pensamento? Assumirá a lógica
novas formas no futuro? O materialismo dialético é a forma atual mais elevada de pensamento científico conhecida ou
acessível a nós. Nossa tarefa atual é desenvolver este sistema de pensamento, disseminar suas idéias: em outras
palavras, socializar a dialética que Engels definira como "nossa melhor ferramenta de trabalho e nossa arma mais
penetrante".
Isto não significa que a ciência do processo do pensamento ou o processo do pensamento em si, tenham alcançado seu
limite máximo. Pelo contrário, ainda não começamos realmente a pensar. Avanços sociais posteriores produzirão,
inevitavelmente, tremendos avanços no pensamento e prática humanos e no conhecimento do pensamento humano.
Antes de Marx e Engels a lógica, a ciência do processo de pensamento, tinha um papel subordinado no processo
histórico. Como ensinam estes socialistas científicos, o pensamento e a auto-consciência do pensamento não
determinaram a evolução da sociedade, pois o fizeram o jogo cego das forças naturais e sociais. Mas agora a humanidade
começou a entender o curso lógico dos processos naturais e a guiá-los e usá-los. Com o movimento socialista, temos
começado a entender também a lógica dos próprios processos de pensamento histórico. Com o crescimento do socialismo
a lógica se converterá, e deve fazê-lo, em uma potência cada vez maior na direção do curso da evolução social. Se as
forças naturais e sociais são colocadas cada vez mais sob a linha de ação humana organizada e planejada, o pensamento e
a ciência do pensamento expandirão, indubitavelmente, seu conteúdo, produzirão novas formas, exibirão novas
propriedades e novos poderes. A lógica dialética é o instrumento indispensável para o avanço do progresso do pensamento
científico a seu nível seguinte. A dialética materialista abre perspectivas sem limites ao futuro do pensamento humano.

Texto nº.4
O METODO: AS LEIS DA DIALÉTICA. LEFEBVRE, H. Lógica formal e lógica dialética. Civilização Brasileira, pag. 236 a 241.

Já formulamos, empregamos e definimos constantemente, através de regras práticas, o método. Todavia, é


somente aqui, no grau supremo de objetividade e de verdade, no nível da idéia, que o método se legitima e
encontra seu fundamento. Ele foi encontrado no início; ele é reencontrado no fim da lógica, mas aprofundado.
voltando-se sobre si mesmo a fim de tomar consciência de todos os seus momentos e de todos os seus aspectos.
O método, com efeito, representa o universal concreto. Fornece leis que são supremamente objetivas, sendo ao
mesmo tempo leis do real e leis do pensamento, isto é, leis de todo movimento, tanto no real quanto no
pensamento.
Universais, essas leis não podem sê-lo no sentido da universalidade abstrata da razão metafísica. Assim, os
princípios formais, abstratamente racionais, de identidade, de causalidade, de finalidade, passavam por ser
universais, mas eram de escassa utilização para o conhecimento do concreto. As leis do método devem ser
concretas no sentido de que nos permitem penetrar em todo objeto, em toda realidade. Com efeito, são
as leis internas, necessárias, de todo devir: de todos os objetos e de cada objeto, do universo como
totalidade e de cada objeto como parcela do universo.
Nesse sentido, portanto, elas são universais e concretas. Mas não nos permitem prever nem deduzir um
objeto qualquer. Não substituem nem a investigação nem o contato com o conteúdo, Por quê? Porque a relação
entre o universal e o concreto não é uma relação de inclusão ou de exclusão formais, mas também ela uma relação
dialética. Remetem dialeticamente um ao outro, através de uma mediação, de um termo médio. Entre o universal e
o concreto, é impossível suprimir a mediação do particular. Para descobrir as leis particulares, portanto, será
necessário, no quadro das leis universais, investigar nas realidades particulares (conjuntos, classes,
espécies) sua essência, seu conceito, suas relações; e isso através da experiência, do contato com o
conteúdo. Aqui, o método dá lugar a um silogismo, cuja premissa maior é por ele fornecida: "Todo ser é um devir,
todo ser determinado apresenta qualidade e quantidade, etc.; ora, isto é uma realidade particular determinada;
logo; isto mostrará, quando analisado, devir, qualidade, quantidade, etc.". Quando se trata de conhecer um ser
singular, o silogismo do método pode ser considerado com sua forma alterada e enunciar-se do seguinte modo:
Esse ser singular não pode ser separado do universo; ora, as leis universais afirmam que tudo é movimento,
qualidade, quantidade, etc.; logo. . . ". Aqui, o método fornece o termo médio (premissa menor). Por conseguinte,
o método é alternadamente a expressão das leis universais e o quadro da aplicação delas ao particular; ou, ainda, o
meio, o instrumento que faz o singular subsumir-se ao universal.

Quais são, por conseguinte, as grandes leis do método dialético?

a) Lei da interação universal (da conexão, da "mediação" recíproca de tudo o que existe)

Nada é isolado. Isolar um fato, um fenômeno, e depois conservá-lo pelo entendimento nesse
isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo. É imobilizá-lo artificialmente, matá-lo.
É transformar a natureza - através do entendimento metafísico - num acúmulo de objetos exteriores uns aos
outros, num caos de fenômenos.
A pesquisa racional (dialética) considera cada fenômeno no conjunto de suas relações com os demais fenômenos
e, por conseguinte, também no conjunto dos aspectos e manifestações daquela
realidade de que ele é "fenômeno", aparência ou aparecimento mais ou menos essencial.

48
b) Lei do movimento universal

Deixando de isolar os fatos e os fenômenos, o método dialético reintegra-os em seu movimento:


movimento interno, que provém deles mesmos, e movimento externo, que os envolve no devir
universal. Os dois movimentos são inseparáveis.
O método dialético busca penetrar - sob as aparências de estabilidade e de equilíbrio – naquilo que já tende
para o seu fim e naquilo que já anuncia seu nascimento. Busca, portanto, o movimento profundo (essencial) que se
oculta sob o movimento superficial. A conexão lógica (dialética) das idéias reproduz (reflete), cada vez mais
profundamente, a conexão das coisas.

c) Lei da unidade dos contraditórios

Repitamos, mais uma vez, que a contradição lógica formal conserva os dois contraditórios à margem um do
outro; ela não é mais que uma relação de exclusão, enquanto a tautologia, a identidade, representa uma inclusão
vazia.
A contradição dialética é uma inclusão (plena, concreta) dos contraditórios um no outro e, ao mesmo tempo,
uma exclusão ativa. E o método dialético não se contenta em dizer que "existem
contradições", pois a sofística, o ecletismo ou o ceticismo são capazes de dizer o mesmo. O método dialético
busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz
com que se choquem, que os quebra ou os supera. Assim, no mundo moderno, o exame e a análise mostram
que as condições econômicas - a própria estrutura das forças produtivas industriais - criam as contradições entre
grupos concorrentes, classes antagonistas, nações imperialistas. Portanto, convém estudar esse movimento, essa
estrutura, suas exigências, com o objetivo de tentar resolver as contradições. Não existe, dialeticamente, a
"contradição" em geral; existem contradições, cada qual com seu conteúdo concreto, com seu movimento próprio,
que deve ser penetrado em suas conexões (cf. a 2ª lei), em suas diferenças e semelhanças. A contradição
dialética, portanto, difere
da contradição formal porque esta permanece na generalidade abstrata, enquanto a dialética se estabelece no
universal concreto.

d) Transformação da quantidade em qualidade (lei dos saltos)

As modificações quantitativas lentas, insignificantes, desembocam numa súbita aceleração do devir.


A modificação qualitativa não é lenta e contínua (conjunta e gradual, como é a caso das modificações
quantitativas) ; apresenta, ao contrário, características bruscas, tumultuosas; expressa uma crise interna
da coisa, uma metamorfose em profundidade, mas brusca, através de uma intensificação de todas as
contradições.
O crescimento do poder humano sobre a natureza (das forças criadoras, produtivas) não produz apenas novos
graus no pensamento. Produz também crises econômicas, sociais; políticas: transformações bruscas. Põe
problemas; e quem diz "problema" diz contradição, não-latente, porém em sua mais alta tensão, no momento
mesmo da crise e do salto, quando a contradição tende para a solução objetivamente implícita no devir que a
atravessa. O pensamento humano, também aqui, reflete a solução - "encontra" a solução; e, inserindo-se assim no
movimento, resolve pela ação a crise, superando a situação contraditória.
Notamos que a lei dos saltos é a grande lei da ação. A ação e o conhecimento não podem criar nada já
pronto e acabado. O momento da ação, do fator "subjetivo", aparece quando - reunidas já todas as
condições objetivas - basta um fraco impulso proveniente do "sujeito" para que o salto se opere. Isso
pode ocorrer em todos os tipos de dispositivos experimentais (onde basta apertar um botão, fazer passar uma
fraca corrente elétrica, etc.), bem como na vida psicológica e social.
Quando um conjunto de realidades conexas atravessam a mesma crise, ou são submetidas a transformações
solidárias, produz-se o que Hegel chama de "uma linha nodal". Cada ponto de
transformação aparece como um "nó" de relações e mudanças; desse modo, o conjunto desses "nós" ou "pontos
nodais" forma efetivamente uma linha. Assim, a crise de uma civilização pode consistir numa crise da cultura, da
economia, da política, da vida social, do pensamento. Cada crise tem suas particularidades. O conjunto forma uma
"linha nodal", no sentido hegeliano da expressão .
O salto dialético implica, simultaneamente, a continuidade (o movimento profundo que continua) e a
descontinuidade (o aparecimento do novo, o fim do antigo).

e) Lei do desenvolvimento em espiral (da superação)

A vida não destrói a matéria sem vida, mas a compreende em si e a aprofunda. O ser vivo tem sua química; há
entre a vida e a matéria sem vida apenas um "salto" dialético, não uma descontinuidade absoluta. E mesmo a
química do ser vivo ou química orgânica aparece como mais rica, mais vasta que a química da matéria.
Do mesmo modo, o pensamento compreende e aprofunda a vida em si próprio. E mesmo a vida - com seus
carecimentos, suas atividades fisiológicas, seus órgãos como a mão - apareceu
em seu posto em nossa lógica CONCRETA. Não é a vida a base do entendimento e o ponto de inserção perpétua de
nossa razão concreta na interação universal? E a vida não é a separação efetiva, bem como a unidade sempre
renovada, entre o singular (o individual) e o universal, que submete mais profundamente ainda esse ser singular às
leis universais?

49
No devir do pensamento e da sociedade, revela-se ainda mais visivelmente o movimento "em espiral":
o retorno acima do superado para dominá-lo e aprofundá-lo, para elevá-lo de nível libertando-o de seus
limites (de sua unilateralidade).
A contradição dialética é já "negação" e "negação da negação", visto que as contradições estão em luta efetiva.
Desse choque, que não é um choque "no pensamento", no abstrato, no plano subjetivo (embora dê lugar a um
"choque de pensamentos"), surge uma promoção mais elevada do conteúdo positivo que se revela e se libera no e
pelo conflito.
Observamos que todas essas leis dialéticas constituem, pura e simplesmente, uma análise do movimento. O
movimento real, com efeito, implica essas diversas determinações: continuidade e
descontinuïdade; aparecimento e choque de contradições; saltos qualitativos; superação.
Temos aí tão-somente "momentos" ou aspectos do movimento. De tal modo que a multiplicidade das leis dialéticas
implica uma unidade fundamental. Encontram essa unidade na "idéia" do movimento, do devir universal.
O acento pode ser colocado, alternadamente, sobre essa ou aquela lei. Em certos casos, a lei da contradição
parecerá mais essencial, pois na cortradição encontra-se a raiz, o fundamento de todo movimento. Mas as próprias
contradições, em certo sentido, resultam de um movimento profundo, que as condiciona e as atravessa! E, nesse
sentido, o acento será colocado sobre a lei da conexão, da interdependência universal. Ou, ainda, se se estuda uma
metamorfose ou uma crise, a lei dos saltos passará ao primeiro plano. Pouco importa. Os aspectos do devir são
igualmente objetivos e indissoluvelmente ligados no próprio devir.

Poderíamos resumir do seguinte modo as regras práticas, do método dialético:

a) Dirigir-se à própria coisa. Nada de exemplos exteriores, de digressões, de analogias inúteis; por
conseguinte, análise objetiva;
b) Apreender o conjunto das conexões internas da coisa, de seus aspectos; o desenvolvimento e o momento
próprios da coisa;
c) Apreender os aspectos e momentos contraditórios; a coisa como totalidade e unidade dos contraditórios;
d) Analisar a luta, o conflito interno das contradições, o movimento, a tendência (o que tende a ser e o que
tende a cair no nada);
e) Não esquecer - é preciso repeti-lo sempre - que tudo está ligado a tudo; e que uma interação insignificante,
negligenciável por que essencial em determinado momento, pode tornar-se essencial num outro momento ou sob um
outro aspecto;
f) Não esquecer de captar as transições: transições dos aspectos e contradições, passagens de uns nos outros,
transições no devir. Compreender que um erro de avaliação (como, por exemplo, acreditar-se estar mais longe no
devir do que o ponto em que se está efetivamente, acreditar que a transição lá se realizou ou ainda não começou)
pode ter graves conseqüências;
g) Não esquecer que o processo de aprofundaznento do conhecimento - que vai do fenômeno à essência e
da essência menos profunda à mais profunda - é infinito. Jamais estar satisfeito com o obtido. "Naquilo com que um
espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda" (Hegel). Pensamento admirável, ao qual objetaríamos,
todavia, que apenas um "espírito" se satisfaz; e que um homem digno desse nome não conhece nem a satisfação
nem a vã inquietação e a angústia dos "espíritos";
h) Penetrar, portanto, mais fundo que a simples coexistência observada; penetrar sempre mais
profundamente na riqueza do conteúdo; apreender conexões de grau cada vez mais profundo,
até atingir e captar solidamente as contradições e o movimento. Até chegar-se a isso, nada foi feito;
i) Em certas fases do próprio pensamento, este deverá se transformar, se superar: modificar ou rejeitar
sua forma, remanejar seu conteúdo - retomar seus momentos superados, revê-los, repeti-los, mas apenas
aparentemente, com o objetivo de aprofundá-los mediante um passo atrás rumo às suas etapas anteriores e, por
vezes, até mesmo rumo a seu ponto de partida, etc.
O método dialético, desse modo, revelar-se-á ao mesmo tempo rigoroso (já que se liga a princípios
universais) e o mais fecundo (capaz de detectar todos os aspectos das coisas, incluindo os aspectos mediante os
quais as coisas são "vulneráveis à ação").

Texto nº. 5
O MÉTODO DA ECONOMIA POLÍTICA. MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. S.P.: Martins Fontes, pág. 218.

Quando consideramos um determinado país do ponte de vista da economia política, começamos por
estudar a sua população, a divisão desta em classes, a sua repartição pelas cidades, pelo campo e à beira-mar, os
diversos ramos da produção, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias,
etc.
Parece que o melhor método será começar pelo real e pelo concreto, que são a condição prévia e efetiva;
assim, em economia política, por exemplo, começar-se-ia pela população que é a base e o sujeito do ato social de
produção como um todo. No entanto, numa observação atenta, apercebemo-nos de que há aqui um erro. A
população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compõe. Por seu lado, essas
classes são uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo o trabalho assalariado, o
capital, etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho
assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população
50
teríamos uma visão caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos
a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaríamos a abstrações cada vez mais delicadas até
atingirmos as determinações mais simples. Partindo daqui, seria necessário caminhar em sentido contrário
até se chegar finalmente de novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um
todo, mas uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas. A primeira via foi a que,
historicamente, a economia política adotou ao seu nascimento. Os economistas do século XVII, por exemplo, começam
sempre por uma totalidade viva: população, Nação, Estado, diversos Estados; mas acabam sempre por formular,
através da análise, algumas relações gerais abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro o
valor, etc. A partir do momento em que esses fatores isolados foram mais ou menos fixados e teoricamente formulados,
surgiram sistemas econômicos que partindo de noções simples tais como o trabalho, a divisão do trabalho, a
necessidade, o valor de troca, se elevavam até ao Estado, às trocas internacionais e ao mercado mundial. Este segundo
método é evidentemente o método científico correto. O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas
determinações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um
resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de
partida da observação imediata e da representação. O primeiro passo reduziu a plenitude da representação a
uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto
pela via do pensamento. Por isso Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento, que se
concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se movimenta por si mesmo, enquanto que o método que
consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar
do concreto, de o reproduzir como concreto espiritual. Mas este não é de modo nenhum o processo da
gênese do próprio concreto Por exemplo, a categoria econômica mais simples, o valor de troca, por hipótese, supõe
a população, uma população produzindo em condições determinadas; supõe ainda um certo gênero de família, ou de
comuna, ou de Estado, etc. Só pode pois existir sob a forma de relação unilateral e abstrata de um todo concreto, vivo,
já dado. Como categoria, pelo contrário, o valor de troca leva uma existência antediluviana. Para a consciência - e a
consciência filosófica considera que o pensamento que concebe constitui o homem real e, por conseguinte, o mundo só
é real quando concebido - para a consciência, portanto, o movimento das categorias surge como ato de produção real -
que recebe um simples impulso do exterior, o que é lamentado - cujo resultado é o mundo; e isto (mas trata-se ainda
de uma tautologia) é exato na medida em que a totalidade concreta enquanto totalidade-de-pensamento, enquanto
concreto-de-pensamento, é de fato um produto do pensamento, da atividade de conceber; ele não é pois de forma
alguma o produto do conceito que engendra a si próprio, que pensa exterior e superiormente à observação imediata e à
representação, mas um produto da elaboração de conceitos a partir da observação imediata e da representação. O
todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-pensamento, é um produto do cérebro pensante,
que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, de um modo que difere da apropriação desse
mundo pela arte, pela religião, pelo espírito prático. Antes como depois, o objeto real conserva a sua
independência fora do espírito; e isso durante o tempo em que o espírito tiver uma atividade meramente especulativa,
meramente teórica. Por conseqüência, também no emprego do método teórico é necessário que o objeto, a
sociedade, esteja constantemente presente no espírito como dado primeiro.
Mas as categorias simples não terão também uma existência independente, de caráter histórico ou natural, anterior à
das categorias mais concretas? Depende. Hegel, por exemplo, tem razão em começar a filosofia do direito pelo estudo
da posse, constituindo esta a relação jurídica mais simples do problema. Mas não existe posse antes de existir a família
ou as relações entre senhores e escravos, que são relações muito mais concretas. Pelo contrário, seria correto dizer que
existem famílias, comunidades de tribos, que estão ainda apenas no estágio da posse e não no da propriedade. Em
relação à propriedade, a categoria mais simples surge pois como a relação de comunidades simples de famílias ou de
tribos. Na sociedade num estágio superior, ela aparece como a relação mais simples de uma organização mais
desenvolvida. Mas pressupõe-se sempre o substrato concreto que se exprime por uma relação de posse. Podemos
imaginar um selvagem isolado que possua. Mas a posse não constitui neste caso uma relação jurídica. Não é exato que
historicamente a posse evolua até à forma familiar. Pelo contrário, ela supõe sempre a existência dessa «categoria
jurídica mais concreta». Entretanto, não deixaria de ser menos verdadeiro que as categorias simples são a expressão de
relações em que o concreto ainda não desenvolvido pôde realizar-se sem ter ainda dado origem à relação ou conexão
mais complexa que encontra a sua expressão mental na categoria mais concreta; enquanto que o concreto mais
desenvolvido deixa subsistir essa mesma categoria como uma relação subordinada. O dinheiro pode existir e existiu
historicamente antes de existir o capital, os bancos, o trabalho assalariado, etc. Neste sentido, podemos dizer que a
categoria mais simples pode exprimir relações dominantes de um todo menos desenvolvido ou, pelo contrário, relações
subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que existiam já historicamente antes que o todo se
desenvolvesse no sentido que encontra a sua expressão numa categoria mais concreta. Nesta medida, a evolução do
pensamento abstrato, que, se eleva do mais simples ao mais complexo, corresponderia ao processo
histórico real.
Por outro lado, podemos dizer que há formas de sociedade muito desenvolvidas, mas a quem falta historicamente
maturidade, e nas quais descobrimos as formas mais elevadas da economia, como, por exemplo, a cooperação, uma
divisão do trabalho desenvolvida, etc., sem que exista qualquer forma de moeda: o Peru, por exemplo. Também entre
os eslavos, o dinheiro e a troca que o condiciona não aparecem ou aparecem pouco no interior de cada comunidade,
mas aparecem nas suas fronteiras, no comércio com outras comunidades. Aliás, é um erro colocar a troca no centro das
comunidades, fazer dela o elemento que está na sua origem. A troca surge nas relações das diversas comunidades
entre si, muito antes de aparecer nas relações dos membros no interior de uma só e mesma comunidade. Além disso,
embora o dinheiro apareça muito cedo e desempenhe um papel múltiplo, é na Antigüidade, enquanto elemento
dominante, apanágio de nações determinadas unilateralmente, de nações comerciais. E mesmo na Antigüidade de
menor duração, entre os gregos e os rumanos, ele só atinge o seu completo desenvolvimento, postulado da sociedade

51
burguesa moderna, no período da sua dissolução. Esta categoria, no entanto tão simples, só aparece portanto
historicamente com todo o seu vigor nos Estados mais desenvolvidos da sociedade. Não abre caminho através de todas
as relações econômicas. No Império romano, por exemplo, no apogeu do seu desenvolvimento, o tributo e as
prestações em gêneros continuavam a ser fundamentais. O sistema monetário propriamente dito só estava
completamente desenvolvido no exército. E nunca se introduziu na totalidade do trabalho. Assim, apesar de
historicamente a categoria mais simples poder ter existido antes da mais concreta, pode pertencer, no seu completo
desenvolvimento - em compreensão e em extensão - precisamente a uma forma de sociedade complexa, enquanto que
a categoria mais concreta se achava já completamente desenvolvida numa forma de sociedade mais atrasada.
O trabalho parece ser uma categoria muito simples. A idéia de trabalho nesta universalidade - como trabalho em
geral - é, também, das mais antigas. No entanto, concebido do ponto de vista econômico nesta forma simples, o
«trabalho» é uma categoria tão moderna como as relações que esta abstração simples engendra. O sistema monetário,
por exemplo, situa ainda de forma perfeitamente objetiva, como coisa exterior a si, a riqueza no dinheiro. Em relação a
este ponto de vista, fez-se um grande progresso quando o sistema inchaetrial ou comercial transportou a fonte de
riqueza do objeto para a atividade subjetiva - o trabalho comercial e fabril -, concebendo ainda esta atividade apenas
sob a forma limitada de produtora de dinheiro. Face a este sistema, o sistema dos fisiocratas admite uma forma
determinada do trabalho - a agricultura - como a forma de trabalho criadora de riqueza, e admite o próprio objeto não
sob a forma dissimulada do dinheiro, mas como produto enquanto produto, como resultado geral do trabalho. Este
produto, em virtude do caráter limitado da atividade, continua a ser ainda um produto determinado pela natureza -
produto da agricultura, produto da terra por excelência.
Um enorme progresso é devido a Adam Smith, que rejeitou toda a determinação particular da atividade criadora de
riqueza, considerando apenas o trabalho puro e simples, isto é, nem o trabalho industrial, nem o trabalho comercial,
nem o trabalho agrícola, mas todas estas formas de trabalho no seu caráter comum. Com a generalidade abstrata da
atividade criadora de riqueza igualmente se manifesta então a generalidade do objeto na determinação de riqueza, o
produto considerado em absoluto, ou ainda o trabalho em geral, mas enquanto trabalho passado, objetivado num
objeto. O exemplo de Adam Smith, que pende por vezes para o sistema dos fisiocratas, prova quanto era difícil e
irryportante a transição para esta nova concepção. Poderia assim parecer que deste modo se encontrara simplesmente
a expressão abstrata da relação mais simples e mais antiga que se estabeleceu - seja qual for a forma de sociedade -
entre os homens considerados como produtores. O que é verdadeiro num sentido mas falso em outro. A indiferença em
relação a um gênero determinado de trabalho pressupõe a existência de uma totalidade muito desenvolvida de gêneros
de trabalhos reais, dos quais nenhum é absolutamente predominante. Assim, as abstrações mais gerais só nascem,
em resumo, com o desenvolvimento concreto mais rico, em que um caráter aparece como comum a muitos,
como comum a todos. Deixa de ser possível deste modo pensá-lo apenas sob uma forma particular. Por outro lado,
esta abstração do trabalho em geral não é somente o resultado mental de uma totalidade concreta de traballios. A
indiferença em relação a esse trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos
mudam com facilidade de um trabalho para outro, e na qual o gênero preciso de trabalho é para eles fortuito, logo
indiferente. Aí o trabalho tornou-se não só no plano das categorias, mas na própria realidade, um meio de criar a
riqueza em geral e deixou, enquanto determinação, de constituir um todo corri os indivíduos, em qualquer aspecto
particular Este estado dc: coisas atingiu o seu mais alto grau de desenvolvimento na forma de existência mais moderna
das sociedades burguesas, nos Estados Unidos. Só aí, portanto, a abstração da categoria «trabalho», «trabalho em
geral», trabalho «sans phrase» 18, ponto de partida da economia moderna, se torna verdade prática. Assim, a abstração
mais simples, que a economia política moderna coloca em primeiro lugar e que exprime uma relação muito antiga e
válida para todas as formas de sociedade, só aparece no entanto sob esta forma abstrata como verdade prática
enquanto categoria da sociedade mais moderna. Poder-se-ia dizer que esta indiferença em relação a uma forma
determinada de trabalho, que se apresenta nos Estados Unidos como produto histórico, se manifesta na Rússia, por
exemplo, como uma disposição natural. Mas, por um lado, que extraordinária diferença entre os bárbaros que têm uma
tendência natural para se deixar empregar em todos os trabalhos, e os civilizados que empregam a si próprios. E, por
outro lado, a esta indiferença em relação a um trabalho determinado corresponde na prática., entre os russos, a sua
sujeição tradicional a um trabalho bem determinado, ao qual só influências exteriores podem arrancá-los.
Este exemplo do trabalho mostra com toda a evidência que até as categorias mais abstratas, ainda que válidas -
precisamente por causa da sua natureza abstrata - para todas as épocas, não são menos, sob a forma determinada
desta mesma abstração, o produto de condições históricas e só se conservam plenamente válidas nestas condições e no
quadro destas.
A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida e mais variada que existe. Por este
fato, as categorias que exprimem as relações desta sociedade e que permitem compreender a sua estrutura permitem
ao mesmo tempo perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre
cujas ruínas e elementos ela se edificou, de que certos vestígios, parcialmente ainda não apagados, continuam a
subsistir nela, e de que certos signos simples, desenvolvendo-se nela, se enriqueceram de toda a sua significação. A
anatomia do homem é a chave da anatotrila do macaco. Nas espécies anünais inferiores só se podem compreender os
signos denunciadores de uma forma superior, quando essa forma superior é já conhecida. Da mesma forma a economia
burguesa nos dá a chave da economia antiga, etc. Mas nunca à maneira dos economistas que suprimem todas as
diferenças históricas e vêem em todas as formas de sociedade as da sociedade burguesa. Podemos compreender o
tributo, o dízimo, etc., quando conhecemos a renda imobiliária. Mas não se deve identificar estas formas. Como, além
disso, a sociedade burguesa é apenas uma forma antitética do desenvolvimento histórico, há relações pertencendo a
formas de sociedade anteriores que só poderemos encontrar nela completamente debilitadas ou até disfarçadas. Por
exemplo, a propriedade comunal. Se, portanto, é certo que as categorias da economia burguesa possuem uma certa

18
Em francês no texto: “pura e simples”.
52
verdade válida para todas as outras formas de sociedade, isto só pode ser admitido cum grano salis [com um grão de
sal]. Elas podem encerrar estas formas desenvolvidas, debilitadas, caricaturadas, etc., mas sempre com uma
diferença essencial. Aquilo a que se chama desenvolvimento histórico baseia-se, ao fim e ao cabo, sobre o fato da
última forma considerar as formas passadas, como jornadas que levam ao seu próprio grau de desenvolvimento, e
dado que ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica, e isto em condições bem determinadas - não estão
naturalmente em questão os períodos históricos que consideram a si próprios como épocas de decadência - concebe-
as sempre sob um aspecto unilateral. A religião cristã só pôde ajudar a compreender objetivamente as mitologias
anteriores, depois de ter feito, até certo grau, por assim dizer dünámei [virtualmente], a sua própria crítica.
Igualmente a economia política burguesa só conseguiu compreender as sociedades feudais, antigas e orientais, no dia
em que empreendeu a autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em que a economia política burguesa, criando
uma nova mitologia, não se identificou pura e simplesmente com o passado, a crítica que fez às sociedades
anteriores, em particular à sociedade feudal contra a qual tinha ainda que lutar diretamente, assemelha-se à crítica
do paganismo feita pelo cristianismo, ou a do catolicismo feita pela religião protestante.
Do mesmo modo que em toda a ciência histórica ou social em geral, é preciso nunca esquecer, a propósito da
evolução das categorias econômicas, que o objeto, neste caso a sociedade burguesa moderna, é dado, tanto na
realidade como no cérebro; não esquecer que as categorias exprimem portanto formas de existência, condições de
existência determinadas, muitas vezes simples aspectos particulares desta sociedade determinada, deste objeto, e
que, por conseguinte, esta sociedade de maneira nenhuma começa a existir, inclusive do ponto de vista científico,
somente a partir do momento em que ela está em questão como tal. É uma regra a fixar, porque dá indicações
decisivas para a escolha do plano a adotar. Nada parece mais natural, por exemplo, do que começar pela renda
imobiliária, pela propriedade fundiária, dado que está ligada à terra, fonte de toda a produção e de toda a existência,
e por ela à primeira forma de produção de qualquer sociedade que atingiu um certo grau de estabilidade - à
agricultura. Ora, nada seria mais errado. Em todas as formas de sociedade é uma produção determinada e as
relações por ela produzidas que estabelecem a todas as outras produções e às relações a que elas dão origem a sua
categoria e a sua importância. É como uma iluminação geral em que se banham todas as cores e que modifica as
tonalidades particulares destas.
É como um éter particular que determina o peso específico de todas as formas de existência que aí se salientam.
Tomemos como exemplo os povos de pastores. (Os simples povos de caçadores e pescadores estão aquém do ponto
em que começa o verdadeiro desenvolvimento.) Entre eles aparece uma certa forma de agricultura, uma forma
esporádica. É o que determina entre eles a forma de propriedade fundiária. Trata-se de uma propriedade coletiva que
conserva mais ou menos esta forma enquanto estes povos continuam mais ou menos ligados à sua tradição: por
exemplo, a propriedade comunal dos eslavos. Entre os povos onde a agricultura está solidamente implantada -
implantação que constitui já uma etapa importante - onde predomina esta forma de cultura, como acontece nas
sociedades antigas e feudais, a própria indústria, assim como a sua organização e as formas de propriedade que lhe
correspondem, tem mais ou menos o caráter da propriedade fundiária. Ou a indústria depende completamente da
agricultura, como entre os antigos romanos, ou, como na Idade Média, imita na cidade e nas suas relações a
organização rural. Na Idade Média o próprio capital - na medida em que não se trata apenas de capital monetário -
tem, sob a forma de aparelhagem de um ofício tradicional, etc., esse caráter de propriedade fundiária. Na sociedade
burguesa é o contrário. A agricultura torna-se cada vez mais um simples ramo da indústria e acha-se totalmente
dominada pelo capital. O mesmo acontece com a renda imobiliária. Em todas as formas de sociedade onde predomina
a propriedade fundiária, a relação com a natureza é predominante. Naquelas em ; que o capital domina é o elemento
social formado ao longo da história que prevalece. Não se pode compreender a renda imobiliária sem o capital. Mas
podemos compreender o capital sem a renda imobiliária. O capital é a força econômica da sociedade burguesa que
tudo domina. Constitui necessariamente o ponto de partida e o ponto de chegada e deve ser explicado antes da
propriedade fundiária. Depois de os ter estudado a cada um em particular, é necessário examinar a sua relação
recíproca.
Seria portanto impossível e errado classificar as categorias econômicas pela ordem em que foram
historicamente determinantes. A sua ordem é pelo contrário determinada pelas relações que existem
entre elas na sociedade burguesa moderna e é precisamente contrária ao que parece ser a sua ordem
natural ou ao que corrrsponde à sua ordem de sucessão no decurso da evolução histórica.
Não está em questão a relação que se estabeleceu historicamente entre as relações econômicas na sucessão das
diferentes formas de sociedade. Muito menos a sua ordem de sucessão «na idéia» (Proudhon) (concepção nebulosa
do movimento histórico). Trata-se da sua Hierarquia no quadro da moderna sociedade burguesa.
O estado de pureza (determinação abstrata) em que apareceram no mundo antigo os povos comerciantes -
fenícios, cartagineses -, é determinado pela própria predominância dos hovos agricultores. O capital, enquanto capital
comercial ou capital monetário, aparece precisamente sob esta forma abstrata sempre que o capital não é ainda o
elemento dominante das sociedades. Os lombardos e os judeus têm a mesma posição em relação às sociedades da
Idade Média que praticam a agricultura.
Um outro exemplo do lugar diferente que estas mesmas categorias ocupam em diferentes estágios da sociedade:
uma das mais recentes formas da sociedade burguesa são as joint stocks companies [sociedades por ações]. Mas
aparecem também no princípio das grandes companhias privilegiadas de comércio que gozavam de um monopólio.
O próprio conceito de riqueza nacional se insinua na obra dos economistas do século XVII - a idéia subsiste ainda
em parte nos da século XVIII - desta forma: a riqueza é criada unicamente pelo Estado, e o poder deste mede-se por
esta riqueza. Esta era a forma ainda inconscientemente hipócrita que anuncia a idéia que faz da própria riqueza e da
sua produção o objetivo final dos Estados modernos, considerados assim exclusivamente como meios de produzir a
riqueza.

53
O plano a adotar deve evidentemente ser o seguinte: 1º as determinações abstratas gerais, convindo portanto
mais ou menos a todas as formas de sociedade, mas consideradas no sentido anteriormente referido: 2º as
categorias que constituem a estrutura interna da sociedade burguesa e sobre as quais assentar: as classes
fundamentais. Capital, trabalho assalariado, propriedade fundiária. As suas relações recíprocas. Cidade e campo. As
três grandes classes sociais. A troca entre estas. A circulação. O crédito (privado). 3°, Concentração da sociedade
burguesa na forma do Estado. Considerado na sua relação consigo próprio. As classes «improdutivas». Os impostos.
A dívida pública. O crédito público. A população. As colônias. A emigração. 4º, Relações internacionais de produção. A
divisão internacional do trabalho. A troca internacional. A exportação e a importação. Os câmbios. 5º, O mercado
mundial e as crises.

Texto nº. 6
A LÓGICA MARXISTA. MORENO, Nahuel. Logica Marxista y Ciências Modernas. México, D. F.: Editorial Xólotl, 1981, Cap. VII
(...).
4 – A Lógica Marxista

A lógica marxista não é a de Hegel aperfeiçoada ou expurgada de vícios idealistas. É uma nova lógica
concreta porque é uma nova combinação de métodos com um novo critério de verdade totalmente diferente
do de Hegel.
Nessa combinação, o método dialético de Hegel de produção do concreto pelo pensamento é um elemento decisivo.
Marx combina-o com a observação, o experimentalismo, a observação indireta das ciências modernas, a
prática social e, todas elas, com as ciências formais de sua época, a lógica formal aristotélica e umas
matemáticas primárias. E, como critério de verdade objetiva, impõe a prática, ou seja, parte da desigualdade
permanente entre o objeto e o sujeito, incluído o pensamento, para exigir que o conhecimento prove sua
verdade na realidade.
A história das relações entre Marx e Hegel, assim como a construção do método de Marx e Engels, confirmam a
combinação de que falamos. Marx começa a elaboração de seu método reivindicando os das ciências empíricas e atacando
Hegel. Essa etapa é a que gostam de citar os anti-hegelianos. Mas é exatamente no momento em que tem de elaborar seu
sistema, a sua concepção de conjunto da economia e da sociedade capitalistas, que redescobre Hegel e começa a dar-lhe
uma grande importância e a reivindicá-lo: “no método do tratamento, o fato de que por puro acidente voltasse a folhear a
Lógica de Hegel, foi de grande utilidade para mim (Freiligrath encontrou alguns volumes de Hegel que pertenceram a
Bakunin e me enviou de presente). Se tiver tempo, gostaria muito de tornar acessível à inteligência humana comum em
dois ou três artigos, o que é racional no método que descobriu Hegel, mas que ao mesmo tempo se encontra envolto em
misticismo...” 19
Uma casualidade? Não, é a profunda necessidade do desenvolvimento de seu trabalho, o que o leva a essa
redescoberta. Tanto essa carta a Engels, como seu comentário sobre Hegel no Método, ou os prólogos de O Capital,
assinalam claramente que Marx se elevava de sua etapa relativamente empírica, com um Hegel implícito, para a
constituição definitiva de seu método, com a incorporação do método de Hegel de forma explícita.
Isso explica as atuais discussões entre os marxistas, sobre a importância do método de Hegel: alguns consideram Marx
como dado desde sua juventude para sempre e opõem umas citações contra outras. Só se pode entendê-lo se
enquadrarmos cada uma delas nos distintos períodos da elaboração de seu método.
Ainda que, para Marx e Engels, faça parte fundamental de seu método o hegeliano, ao combiná-lo com os
outros métodos e alcançar uma nova estrutura lógica, enriquecem e superam o próprio método hegeliano.
Esses enriquecimentos e superações, entre outras, são os seguintes:
Generalizam o método de Hegel atribuindo-o à realidade e à natureza. Não só o homem e a construção do
conhecimento se dão no tempo e têm uma evolução contraditória e formadora de totalidades, mas também a natureza, à
sua maneira, faz o mesmo. A construção hegeliana existe, atua não só no pensamento, mas também na realidade. É um
mérito colossal de Engels haver tentado “dialetizar” a natureza, tratando de descobrir as leis comuns existentes entre a
natureza, com seus distintos níveis, e o homem.
Superar o caráter especulador, absolutista, portanto idealista, religioso, do método de Hegel, assinalando
seu caráter relativo, de um método entre outros, que não superava nem esse, nem nenhum outro método, nem
combinação de métodos, a contradição absoluta entre a realidade e o homem, entre o objeto e o sujeito, mas que
enriquecia essa contradição, tornando-a mais dinâmica e sempre aberta, com soluções relativas, dadas pela práxis e não
só pelo conhecimento científico, que é só um aspecto dessa práxis.
Marx faz a distinção entre totalidade e gênese, liquidando a identificação hegeliana de ambas as
categorias. Consegue, assim, totalidades abertas, que vêm de outras e vão para outras num movimento perpétuo que faz
da totalidade uma realidade relativa, não absoluta.
Isso lhe permite formular claramente duas necessidades lógicas, que, por sua vez, são leis de todas as realidades, as
“leis das conexões internas” ou da “totalidade orgânica” ou “da passagem de um sistema a outro”. Graças a isso, começa a
ordenar as leis descobertas por Hegel, embora sem formular explicitamente como pertencentes a uma ou a outra
necessidade lógica. O salto de quantidade em qualidade, a negação da negação etc., são do processo histórico. A
ação recíproca, a unidade dos contrários, o todo determinando as partes etc., das “conexões internas”.
Dão uma importância fundamental à observação e à experimentação, como acopladores de materiais para a
construção dos sistemas científicos e como prova deles. Reivindicam as matemáticas e a lógica formal de sua época
como ferramenta fundamental para o conhecimento científico.

19
Correspondência Marx-Engels, pag. 75
54
Como conseqüência de todo o anterior, impõem como critério da verdade objetiva a prática e não só a
construção coerente do conhecimento.
É impossível precisar se Marx chegou a ver que havia dois tipos de verdades, as objetivas e as formais, com dois tipos
de relações, as causais e as de implicação. Na tese II, sobre Feuerbach, fala de verdade objetiva. Isso é muito profundo,
porque justamente as únicas verdades cujo critério de verdade é a prática são as das ciências objetivas, não as formais,
cujo critério de verdade é a coerência da estrutura.
Visto que este livro está dedicado à lógica marxista, não acreditamos ser necessário repetir o que foi dito sobre outros
aspectos do método marxista.

5 – Lógica marxista e ciências formais

Se, com Marx, surge uma nova lógica do concreto, aberta, contraditória, que unificava distintos métodos, um fenômeno
parecido se produzia no campo das ciências formais. Começava a surgir uma nova ciência formal que engloba, como fez
Marx com as lógicas concretas, todas as ciências formais, ou melhor, que tende a alcançar essa combinação.
Desde meados do século passado tentou-se, a partir das matemáticas e da lógica formal, encontrar uma formulação
estritamente coerente dos métodos da lógica e as matemáticas. Isso levou a uma superação fundamental da lógica
aristotélica, do conceito, do juízo e do raciocínio para se começar a desenvolver uma lógica das relações e da ordem, como
bem resumiu Russell, um dos criadores desse novo ramo da ciência lógica: “Quem não sucumbe à lógica do sujeito-
predicado só pode dar um passo adiante, e admitir relações dos termos, tais como antes-e-depois, maior-menor, direita-
esquerda. A própria linguagem se presta a essa ampliação da lógica de sujeito-predicado, já que dizemos “A precede B”,
“A ultrapassa B”, e assim sucessivamente”. 20
Esse novo ramo da lógica revelou-se muito profundo e foi assim que Piaget conseguiu uma combinação 21 da lógica
formal aristotélica e da lógica moderna das relações, em uma lógica muito mais ampla, de tipo formal, que generaliza e
deixa abertas as portas para a possibilidade de seguir alcançando a formalização das atividades interiorizadas do sujeito
em combinações cada vez mais ricas. Nosso autor (Novack – somente na versão portuguesa) sustenta que entre as lógicas
das classes (aristotélica) e a das relações há uma profunda diferença pelo tipo distinto de reversibilidade que utilizam a
primeira por inversão, a segunda por reversão. A primeira lógica, a das classes, formaliza e generaliza as ações do sujeito
de reunir e separar os objetos e suas propriedades, suas qualidades. Se eu reúno a classe humanos com a dos mamíferos
não-humanos, obtenho uma classe de ordem superior, que é a dos mamíferos. Se agora inverto o processo e da classe
mamíferos retiro as classes dos mamíferos não-humanos, sobra de novo a classe humanos. Ou seja, se anulou toda a
operação anterior de reunir. Essa reversibilidade que Piaget chamou de inversão ou negação, própria da lógica das classes,
é diferente da reversibilidade da lógica das relações, como conseqüência das ações que formalizam essa lógica, o ordenar
e não o reunir e separar. Por exemplo, se temos uma mesa A que é menor que uma mesa B, o processo reversível é que a
mesa B é maior que a mesa A, o que não anula nenhuma das duas, nem a relação, já que a única coisa que se fez foi
obter uma reciprocidade de suas diferenças, ou seja de sua relação, mas esta permanece. Piaget defende que combinando
esses dois tipos de reversibilidade se alcança uma lógica formal muito mais rica que é a dos adolescentes e a hipotético-
dedutiva.
As matemáticas tiveram, desde o século XIX, um processo parecido com o da lógica formal, o que permitiu alcançar no
século XX a formulação de três grandes estruturas matemáticas, que abarcam e expressam todas as matemáticas: as de
Bourbaki, ou as algébricas, a da ordem e as topológicas que, surpreendentemente, coincidem com as análises psicológicas
de Piaget sobre a existência também de três estruturas irredutíveis entre si, uma cuja reversibilidade é a inversão ou
anulação e que cabe descrever “por referência a modelos algébricos ou de grupo; as que têm uma forma de reversibilidade
que consiste na reciprocidade, que se descreve apoiando-se nas estruturas da ordem; e as estruturas de base do contínuo,
em particular, as estruturas especiais, que possuem a notável característica de que suas formas elementares são de índole
topológica, antes de chegar às construções métricas e projetivas.” 22
Todas essas estruturas matemáticas e lógicas tendem a se combinar entre si para nos dar formas cada vez mais úteis
para captar os distintos segmentos da realidade. É assim que a álgebra de Boole, as leis da termodinâmica, o cálculo de
possibilidade, tal como as distintas lógicas formais, são utilizadas hoje em dia para formalizar as ciências mais diversas:
etnologia, sociologia, comunicação etc., e ainda técnicas (a cibernética etc.)
Essas novas ciências formais, que vão adquirindo coerência e se unificando em um grande sistema lógico-matemático e
que se desenvolveram (até há poucas décadas) de forma relativamente independente dos métodos das ciências objetivas,
o que explica a tendência platonizante de seus defensores e descobridores, como o Russell da primeira fase, devem ser
combinadas conscientemente com a única lógica científica expressamente concreta existente, a marxista.
Assim como, no começo da lógica e das matemáticas, estas se combinavam com a observação para desembocar na
lógica concreta aristotélica, de classificação dos objetos e dos seres, hoje em dia é a nova ciência formal lógico-
matemática que deve se combinar com a lógica marxista (combinação por sua vez da dialética de produção do concreto
pensado, com a observação direta e indireta do empirismo, a experimentação e o critério de verdade objetiva pela prática)
para termos uma lógica muito mais rica. É assim que nosso esboço da história da lógica termina, com a pretensão de
abandonar de vez a falsa e a-histórica combinação da lógica formal aristotélica com a lógica dialética marxista, com uma
lógica aberta que se apóia na aplicação metodológica, agora, e até que seja superada, da lei do desenvolvimento desigual
e combinado e dos distintos métodos de pesquisa e exposição descobertos pelo homem para conhecer a realidade e suas
próprias ações.

20
Russell, B: Atomismo Lógico, ensaio feito como colaboração à Contemporary British Philosophy, para série, livro publicado em
1924, extraímos de El positivismo lógico, de A.J.Ayer, F.C.E, México, 1965, pag. 45.
21
Piaget, J.: Traité de Lógique, essei de logistique operatorie. A.Collins, Paris, 1949.
22
Relación entre a lógica formal y el pensamiento real, Pág.. 210
55
(...)
7 – Por uma lógica da política revolucionária

Se a sistematização da lógica marxista está longe de terminar, temos uma situação parecida no terreno que
aparentemente é o mais forte do marxismo, a lógica ou a metodologia política.
A lógica marxista, a única lógica concreta, científica, existente, eficiente e com pretensões a tal, alcançou um
importante progresso, ainda que na maior parte das vezes inconsciente, prático, nas mãos dos cientistas, que
redescobrem e enriquecem todos os dias essa lógica e essa epistemologia, mesmo que sem o saber (o caso de Piaget é o
mais notório, já que não tem consciência do vínculo entre o marxismo e o seu método) Algo parecido ocorreu com a lógica
política marxista. Por meio de seus grandes mestres, principalmente Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky, alcançou um
desenvolvimento espetacular, mas sem que se chegasse a uma sistematização.
Pensamos que esse desenvolvimento parcial, inconsciente e não-sistemático da lógica marxista, nas ciências e na
política (dentro de cada uma delas por sua vez em diferentes setores), obedece, entre outras, a uma causa principal: o
retrocesso da revolução mundial a partir de 1923, provocado pela contra-revolução stalinista que dogmatizou e canonizou
o marxismo oficial e obrigou o marxismo revolucionário a defender a herança política e metodológica do marxismo (não
falta alguma coisa?). Isso fez com que o desenvolvimento do marxismo se tornasse desigual, contraditório e não-
homogêneo. As discussões atuais entre marxistas demonstram que a situação se inverteu e que o atual ascenso da
revolução mundial provocou, paralelamente, um renascimento teórico do marxismo, que se colocou em marcha rumo a
novas conquistas e construções, tanto científicas como políticas. Nesse caminho começam a se combinar, novamente, as
ciências e o marxismo, fecundando-se. Demos dois exemplos, um de Piaget, cientista puro que chega a conclusões
explicitamente marxistas: outro o de Naville, grande pensador marxista que se torna um cientista de notável. Ambos
assinalam o caminho que se inicia. Ambos tendem a fazer, e conseguem, o trabalho em equipe, como uma antecipação do
futuro trabalho científico interdisciplinar da sociedade socialista. O resultado de tudo isso está aí, a lógica marxista de
conhecimento da realidade começará a ser sistematizada. Um fenômeno parecido irá se produzir no campo político. Uma
conseqüência disso será que o segmento essencial da lógica marxista atual, a lógica política, se aperfeiçoará e se
sistematizará.
O livro de Novack se inscreve como um marco histórico dessa sistematização de uma lógica revolucionária, à qual
estará sujeita à do conhecimento da realidade. Porque a contradição principal que a lógica revolucionária tende a mediar, e
a superar, é a de conhecer exaustivamente a realidade, mas para revolucioná-la. É a lógica da contradição levada à sua
máxima expressão: conhecer para mudar radicalmente. Mas nem mesmo revolucionando, transformando a realidade, a
lógica marxista deixa de ser conhecimento dessa realidade, já que revoluciona desenvolvendo possibilidades: as hipóteses
e as tendências que existem na própria realidade. Ou seja, a lógica marxista desenvolve as contradições que existem na
própria realidade. Esta é repleta de desenvolvimentos desiguais e combinados de unidades contraditórias: entre a situação
objetiva da classe operária e do povo trabalhador e sua consciência; entre a capacidade de luta e de organização, por um
lado, e as direções reconhecidas que não querem lutar nem organizar, por outro. Essas e outras contradições se resumem
em uma fundamental: condições objetivas mais que maduras para o socialismo, falta de uma direção revolucionária do
movimento de massas.
Essas unidades contraditórias, essas combinações, são dinâmicas, rompem seu equilíbrio e tendem a alcançar novas
estruturas equilibradas, nas quais o movimento de massas tende a elevar sua consciência ao nível da situação objetiva.
Essa marcha acidentada, contraditória, formadora de combinações inesperadas, se produz por meio de objetivos
momentâneos do movimento de massas que, respondendo às suas necessidades objetivas mais prementes, servem para
colocá-las em movimento e, junto com isto, superar seu nível de organização e consciência. Os objetivos momentâneos se
encadeiam entre si historicamente, e, no momento atual, com a única possibilidade certa, com a do socialismo e a tomada
do poder pelo proletariado. A teoria dessa marcha pelos objetivos das massas, combinando-se, sem trégua, para
impulsioná-las rumo à revolução socialista, é a teoria da revolução permanente. Mas, quem pode atuar cientificamente
para alcançar uma compreensão da realidade no sentido descrito anteriormente e, ao mesmo tempo, utilizar esse
conhecimento na realidade para atuar revolucionariamente? Esse “quem” é o partido marxista revolucionário; não há e
não se conseguiu descobrir outro. Assim como os executores conscientes ou inconscientes da lógica marxista do
conhecimento objetivo são os cientistas; não há e nem pode haver outro executor da política marxista revolucionária que
não seja o partido marxista revolucionário. Essa foi a grande descoberta de Lenin, que não só descobriu a única
ferramenta que podia dirigir a revolução ao socialismo, mas, de passagem, o único sujeito possível da lógica marxista
revolucionária.
Tudo isso torna necessário, contra a moda do “novo” – que não é mais que a negação da lógica, da necessidade do
programa e do partido marxista, em nome de algo muito mais velho: o socialismo humanista, o terrorismo individual,
elitista, típico dos anarquistas e populistas, a propaganda pelos fatos, o empirismo como desprezo da teoria e do
programa, a adoração dos fatos e êxitos momentâneos – que reivindiquemos, mais do que nunca, a lógica geral do
conhecimento marxista, sintetizada na teoria do desenvolvimento desigual e combinado, inseparavelmente unida à única
lógica política marxista existente, a teoria da revolução permanente e ao único capaz de aplica-la, o partido marxista
revolucionário.

56
MATERIALISMO DIALÉTICO
Parte IV

Texto nº. 1
PECULIARIDADES DO DESENVOLVIMENTO DA RÚSSIA. Trotsky. L. HISTÓRIA DA REVOLUÇÃO RUSSA. R.J.: Civilização
Brasileira, 1980, 1º vol., pág. 23.

Capítulo I

O traço essencial e o mais constante da História da Rússia é a lentidão com que o país se desenvolveu,
apresentando como conseqüência uma economia atrasada, uma estrutura social primitiva e baixo nível
cultural.
A população da gigantesca planície, com seu clima rigoroso, exposta ao vento leste e às migrações
asiáticas, estava destinada, pela própria natureza, a uma prolongada estagnação. A luta contra os nômades
durou quase até o fim do século XVII. E, ainda hoje, não encontrou fim a luta contra os ventos portadores de
espêssa neblina, no inverno, e da sêca, no estio. A agricultura - base de todo o desenvolvimento - progredia
de maneira extensiva: no Norte cortavam-se e queimavam-se florestas; no Sul desorganizavam-se as estepes
virgens. Tomava-se posse da natureza em extensão e não em profundidade.
Na época em que os bárbaros ocidentais se instalavam sôbre as ruínas da civilizaçào romana e utilizavam
tanto pedras antigas como material de construção, os eslavos do Oriente, em suas inóspitas planícies, nada
encontravam para herdar: o nível de seus predecessores era ainda mais baixo que o seu. Os povos da Europa
Ocidental, cedo bloqueados em suas fronteiras naturais, criavam as aglomerações econômicas e culturais das
cidades industriais. A população da planície oriental, tão logo se sentia comprimida, embrenhava-se nas
florestas ou então emigrava para a periferia, nas estepes. Os elementos camponeses mais dotados de
iniciativa e mais empreendedores transformavam-se, no lado oeste, em cidadãos, artífices, mercadores. No
leste, certos elementos nativos, audaciosos, estabeleceram-se como comerciantes, porém em maior número
fizeram-se cossacos, guardas-fronteiras ou colonos. O processus de diferenciação social, intenso no ocidente,
retardava-se no oriente e se difundia por expansão: "O tzar de Moscóvia - apesar de cristão - governa um
povo de espírito preguiçoso", escrevia Vico, contemporâneo de Pedro I. O espírito "preguiçoso" dos moscovitas
era um reflexo do ritmo lento da evolução econômica, das relações amorfas entre as classes, da indigência de
sua história interior.
As civilizações antigas do Egito, da Índia e da China tinham um caráter suficientemente autônomo e, por
medíocres que fôssem as suas possibilidades de produção, dispuseram de tempo bastante para elaborar
relações sociais tão bem acabadas em seus detalhes quanto os trabalhos dos artífices dêsses países. Tanto
pela sua história quanto pela vida social, e não somente devido à sua posição geográfica, a Rússia ocupava,
entre a Europa e a Ásia, uma situação intermediária. Diferenciava-se do Ocidente, europeu, mas também
diferia do Oriente, asiático, embora aproximando-se em alguns períodos, em vários aspectos, ora de um ora
de outro. O Oriente impôs o jugo tártaro, que entrou como elemento importante na edificação do Estado
russo. O Ocidente era um inimigo ainda mais temível que o Oriente, ao mesmo tempo que um mestre. Não foi
possível à Rússia formar-se segundo os moldes do Oriente, compelida como estava em acomodar-se à pressão
militar e econômica do Ocidente. A existência do feudalismo na Rússia, negada pelos antigos historiadores,
pode ser considerada c,cmo incontestàvelmente demonstrada pelos estudos mais recentes. Ainda melhor: os
elementos essenciais do feudalismo na Rússia eram os mesmos existentes no Ocidente. O fato de terem sido
necessárias longas discussões científicas para demonstrar a existência de uma época feudal na Rússia trouxe
também a prova de que o feudalismo russo nasceu prematuramente e que revelava formas indefinidas e
pobres quanto aos monumentos de sua cultura.

Um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países adiantados. Não significa isto,
porém, que siga servilmente ëstes países, reproduzindo tôdas as etapas de seu passado. A teoria da repetição
dos ciclos históricos - a de Vico e, mais tarde, de seus discípulos - baseia-se na observação dos ciclos per-
corridos pelas velhas estruturas pré-capitalistas e, parcialmente, sobre as primeiras experiências do
desenvolvimento capitalista. O caráter provincial e transitório de todo processus admite, efetivamente, certas
repetições das fases culturais em meio ambiente sempre novos. O capitalismo, no entanto, marca um
progresso sôbre tais condições. Preparou e, em certo sentido, realizou a universalidade e a permanência do
desenvolvimento da humanidade. Fica, assim, excluída a possibilidade de uma repetição das formas de
desenvolvimento em diversas nações. Na contingência de ser rebocado pelos países adiantados, um país
atrasado não se conforma com a ordem de sucessão: o privilégio de uma situação históricamente atrasada - e
éste privilégio existe - autoriza um povo ou, mais exatamente, o força a assimilar todo o realizado, antes do
prazo previsto, passando por cima de uma série de etapas intermediárias. Renunciam os selvagens ao arco e à
flecha e tomam imediatamente o fuzil, sem que necessitem percorrer as distâncias que, no passado,
separaram estas diferentes armas. Os europeus que colonizaram a América não recomeçaram ali a História
desde seu início. Se a Alemanha e os Estados Unidos ultrapassaram econômicamente a Inglaterra, isso se
deveu exatamente ao atraso na evolução capitalista daqueles dois países. Em aompensação, a anarquia

57
conservadora que reina na indústria carbonífera britânica, como no cérebro de Mac Donald e seus amigos, é o
resgate de um passado durante o qual a Inglaterra - e por muitos anos - manteve a hegemonia do
capitalismo. O desenvolvimento de uma nação historieamente atrasada conduz, necessariamente, a uma
combinação original das diversas fases do processus histórico. A. órbita descrita toma, em seu conjunto, um
caráter irregular, complexo, combinado.
A possibilidade de superar os degraus intermediários não é, está claro, absoluta; realmente, está limitada
pelas capacidades eocnômicas e culturais do país. Um país atrasado freqüentemente rebaixa as realizações
que toma de empréstimo ao exterior para adaptá-las à sua própria cultura primitiva. O próprio processo de
assimilação apresenta, neste caso, um caráter contraditório. Foi ëste o motivo pelo qual, na Rússia, a
introdução de elementos da técnica e do saber ocidentais e, sobretudo, da arte militar e da manufatura, sob
Pedro I, agravou a lei de servidão, na medida que representava a forma essencial da organização do trabalho.
O armamento segundo os moldes europeus e os empréstimos feitos à Europa, nos mesmos moldes -
incontestáveis resultados de uma cultura mais adiantada - conduziram ao fortalecimento do tzarismo que, de
seu lado, refreava o desenvolvimento do país.
As leis da História nada têm em comum cem os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei
mais geral do processus histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países
atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos
saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação
apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas,
combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei,
tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia,
como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.
Sob a pressão da Europa mais rica, o Estado russo, em comparação com o Ocidente, absorvia uma parte
proporcional bem maior da riqueza pública, e, desta forma, não apenas condenava as massas populares a uma
redobrada miséria, mas ainda enfraquecia as bases das classes possuidoras. Tendo porém o Estado
necessidade do apoio destas últimas, apressava e regulamentava sua formação. Como resultado, as classes
privilegiadas, burocratizadas, jamais conseguiram erguer-se em tôda a sua pujança, e o Estado russo não fêz
senão aproximar-se ainda mais dos regimes despóticos da Ãsia. A autocracia bizantina, adotada oficialmente
peles tzares moscovitas no início do século XVI, submeteu os grandes senhores feudais boiardos com o auxílio
da nobreza, e dominou-os transformando em servos a classe camponesa e erigindo-se por tais meios em
monarquia absoluta: o absolutismo de São Petersburgo. O atraso no conjunto do processo está
suficientemente caracterizado pelo fato de o direito de servidão, surgindo em fins do século XVI, estabelecido
no século XVII, ter atingido o pleno desenvolvimento no século XVIII, sendo juridicamente abolido apenas em
1861.
O clero, após a nobreza, desempenhou, na formação da autocracia tzarista, um papel bastante apreciável,
se bem que apenas de um funcionalismo. A Igreja não alcançou na Rússia a fôrça d , cminadora idêntica à do
Catolicismo no Ocidente; contentou-se com a condição de domesticidade espiritual ao lado dos autocratas, do
que tirava mérito de humildade. Os bispos e arcebispos só dispunham de certo poder, a título de subalternos
da autoridade civil. Os Patriarcas eram substituídos sempre que um nôvo tzar assumia o poder. Quando a
capital se estabeleceu em Petersburgo, a dependência da Igreja ao Estado tornou-se ainda mais servil.
Duzentos mil padres seculares e monj es integraram parte da burocracia, espécie de polícia de confessionário.
Em retribuição, o monopólio do clero ortodoxo nas questões de fé, suas terras e seus rendimentos estava sob
a proteção da política geral.
O eslavofilismo, messianismo de um país atrasado, edificava sua filosofia sobre a idéia de que o povo
russo e sua Igreja eram profundamente democratas, enquanto que a Rússia oficial era uma burocracia alemã,
implantada por Pedro I. Marx observou sobre este assunto: "Foi assim que os asnos da Teutônia fizeram recair
a responsabilidade do despotismo de Frederico II sobre os franceses, como se escravos atrasados não
tivessem sempre necessidade do auxilio de outros escravos mais civilizados para o seu indispensável
aprendizado." Esta breve observação atinge até o fundo não apenas a velha filosofia eslavófila como também
tôdas as descobertas contemporâneas dos "racistas".
A indigência, traço característico não sómente do feudalismo russo porém de toda a história da antiga
Rússia, encontrou a sua mais triste expressão na falta de cidades do verdadeiro tipo medieval, como centros
de artífices e mercadores. O artesanato, na Rússia, não conseguiu desvincular-se da agricultura e conservou o
caráter de pequenas indústrias locais. As cidades russas de outrora eram centros comerciais, militares,
administrativos, centros portanto de consumo e não de produção. Novgorod 23 mesmo, que fazia parte da Liga
Hanseática e que jamais conhecera o jugo tártaro, era uma cidade comercial e não industrial. É verdade que
as pequenas indústrias rurais, espalhadas pelas diversas regiões do país, exigiam os serviços intermediários
de um comércio bastante extenso. Os mercaderes nômades, porém, não podiam de modo algum ocupar, na
vida social, um lugar idêntico ao ocupado no Ocidente pela pequena e média burguesia das corporações de
artífices, de comerciantes e industriais, burguesia que estava indissolúvelmente ligada à periferia rural. Além
disso, as principais vias de comunicação do comércio russo conduziam ao estrangeiro, garantindo, desde
séculos remotos, um papel dirigente ao capital comercial externo e emprestando um caráter semicolonial a
qualquer movimento de negócios nos quais o mercador russa servia apenas de intermediário entre as cidades
do Ocidente e as aldeias russas. Tais relações econômicas continuaram a se desenvolver na época do
capitalismo russo e encontraram sua mais alta expressão na guerra imperialista.

NiJinskí-Novgorod passou depois a chamar-se Stalingrado e hoje se chama Volgogrado. [N. da E.]
23

58
A insignificância das cidades russas contribuiu ao máximo para a formação de um Estado de tipo asiático,
e excluía em particular a possibilidade de uma reforma religiosa, isto é, a substituição da ortodoxia
burocrática feudal por outra forma de cristianismo mais moderno, adaptado às necessidades da sociedade
burguesa. A luta contra a Igreja do Estado não foi além da formação de seitas de camponeses, das quais a
mais poderosa foi a dos "Velhos Crentes".
Quinze anos antes da grande Revolução Francesa rebentou, na Rússia, um movimento de cossacos, de
camponeses e de servos operários no Ural, denominado Revolta de Pugachev. Que faltou para que êste
terrível movimento popular se transformasse em revolução? Um Terceiro Estado. Na falta de uma democracia
industrial nas cidades, a guerra camponesa não se poderia transformar em revolução assim como as seitas
religiosas das aldeias não puderam atingir a Reforma. O resultado da Revolta de Pugachev foi,
contrariamente, conseguir consolidar o absolutismo burocrático que protegia os interësses da nobreza,
guardiã que demonstrou novamente o quanto valia em hora de perigo.
A europeização do país, iniciada quanto à forma sob Pedro I, transformou-se dia a dia, no século seguinte,
numa necessidade para a classe dirigente, isto é, para a nobreza. Em 1825 os intelectuais pertencentes à
casta, dando expressão política a esta necessidade, chegariam a uma conspiração militar cuja finalidade era
restringir a autocracia. Impulsionados pela burguesia européia que se desenvolvia, es elementos mais
avançados da nobreza tentavam suprir o Terceiro Estado que faltava. Entretanto, era intenção dêles combinar
o regime liberal com as bases da dominação de casta e foi por êste motivo que temeram sublevar os
camponeses. Não é de admirar, portanto, que esta conjuração tenha sido obra de um grupo brilhante, porém
isolado, de oficiais sacrificados sem quase combater. Tal é o sentido da revolta dos decembristas.
Os nobres, proprietários de fábricas, foram os primeiros, em suas castas, a opinar pelo salário livre em
substituição ao trabalho de servo. Eram igualmente levados a tais medidas devido à exportação crescente do
trigo russo. Em 1861 a burocracia nobre, apoiando-se sôbre os proprietários liberais, efetuou a reforma cam-
ponesa. Impotente, o liberalismo burguês assistiu a esta operação reduzido a um côro dócil. Inútil dizer que o
tzarismo resolveu o problema essencial da Rússia - a questão agrária - de forma ainda mais ladra e
fraudulenta do que a empregada pela monarquia prussiana, nos dez anos que se seguiram, a fim de resolver o
problema essencial da Alemanha - a unificação nacional. Uma classe tomar a si o encargo de resolver os
problemas de outra classe é uma das muitas combinações próprias de países atrasados.

A lei do desenvolvimento combinado está demonstrada como sendo a mais inacntestável na história e no
caráter da indústria russa. Tardiamente nascida, essa indústria não percorreu, desde o início, o ciclo dos
países adiantados, porém nêles se incorporou, adaptando ao seu estado atrasado as conquistas mais
modernas. Se a evolução econômica da Rússia, em conjunto, passou por cima de períodos do artesanato
corporativo e da manufatura, muitos de seus ramos industriais pularam parcialmente alguma etapa da téc-
nica, que exigiram, no Ocidente, dezenas de anos. Como conseqüência, a indústria russa desenvolveu-se em
certos períodos com extrema rapidez. Entre a primeira revolução e a guerra a produção industrial da Rússia
quase dobrou. Julgaram alguns historiadores russos ser isto motivo suficiente para concluir que era necessário
abandonar a lenda de um país atrasado e de lento progresso do país. 24 Na realidade, a possibilidade de um
progresso assim rápido era precisamente determinada pelo estado atrasado do país, que, infelizmente, não
apenas subsistiu até a liquidação do antigo regime mas que, como sua herança, perdura até hoje.
O mensurador essencial do nível econômico de uma nação é a produtividade do trabalho, o qual, por sua
vez, depende do péso específico da indústria na economia geral do país. Nas vésperas da guerra, quando a
Rússia dos tzares alcançara o apogeu de sua prosperidade, a renda pública per capita era oito a dez vézes in-
ferior à dos Estados Unidos, a que não surpreende se considerarmos que 4/5 da população obreira russa,
trabalhando por si mesma, compunham-se de camponeses, enquanto que, nos Estados Unidos, a proporção
era de um camponês para 2,5 operários industriais. Acrescentemos que nas vésperas da guerra a Rússia
possuía 400 metros de linha férrea para cada 100 km2, enquanto que, na Alemanha, esta proporção era de
11,7 km para a mesma extensão e, na Austria-Hungria, era de 7 km. Os demais coeficientes comparativos
estão na mesma proporção.
Como já dissemos, é precisamente no domínio da economia que a lei da evolução combinada se manifesta
com maior fôrça. Enquanto que a agricultura camponesa, até a Revolução, em sua maior parte, permanecia
quase no mesmo nível do século XVII; a indústria russa, quanto à técnica e sua estrutura capitalista,
encontrava-se no mesmo nível dos países adiantados e, mesmo sob alguns aspectos, os ultrapassava. Em
1914 as pequenas indústrias com menos de 100 operários representavam, nos Estados Unidos, 35% do
efetivo total dos operários de indústrias, ao passo que na Rússia a proporção era de 17,8%. Admitindo-se um
pêso específico aproximadamente igual para as emprêsas médias e grandes, ocupando de 100 a mil operários,
as emprésas gigantes, que ocupavam mais de mil operários cada uma, empregavam, nos Estados Unidos,
apenas 17,8 da totalidade dos operários, enquanto que na Rússia a proporção era de 41,4%..Nas principais
regiões industriais a percentagem era ainda mais elevada: na região de Petrogrado, 44,4%; na região de Mos-
cou,57,3%. C hegaremos a os me smo s resultados se estabelecermos uma comparação entre a indústria
russa e a indústria britânica ou a alemã. Este fato apresentado pela primeira vez por nós em 1908, dificilmente
poderia ser inserido na representação banal que nos dão de uma economia atrasada na Rússia. Entretanto,
não nega o caráter retardatário do país, oferecendo apenas um complemento dialético.

24
A afirmação é do Professor M. N. Pokrovsky. Ver Apêndice L

59
A fusão do capital industrial com o capital bancário efetuouse na Rússia, de forma tão integrail como
talvez não se tenha visto semelhante em qualquer outro país. A indústria russa, porém, subordinando-se aos
bancos, demonstrava efetivamente sua submissão ao mercado monetário da Europa Ocidental. A indústria
pesada (metais, carvão, petróleo) estava quase inteiramente sob o controle financiador estrangeiro que
criara, na Rússia, para uso próprio uma rêde de bancos auxiliares e intermediários. A indústria leve seguia o
mesmo caminho. Se os estrangeiros possuíam, no total, mais ou menos 40% de todos os capitais investidos
na Rússia, esta percentagem nos ramos principais da indústria era bem mais elevada. Pode-se afirmar, sem
receio de exagëro, que o centro de contrõle das ações emitidas pelos bancos, pelas fábricas e manufaturas
russas encontrava-se no estrangeiro e a participação da Inglaterra, da França e da Bélgica no capital atingia o
dôbro da participação alemã.
As condições em que se organizou a indústria russa, a própria estrutura desta indústria, determinaram o
caráter social da burguesia do país e sua fisionomia política. A forte concentração da indústria demonstra por
si mesma que entre as esferas dirigentes do capitalismo e as massas populares não existia hierarquia
intermediária. A isto se soma o fato de serem as mais importantes emprësas industriais, bancárias e de
transportes propriedade de estrangeiros, que não sòmente auferiam lucros sôbre a Rússia mas ainda por cima
fortaleciam a própria influência política nos parlamentos de outros países, razão pela qual, em vez de
fomentar a luta pelo regime parlamentar, na Rússia, a tal se opunham não raras vêzes. Basta lembrar aqui o
papel abominável desempenhado pela França oficial. Foram estas as causas elementares e irredutíveis do
isolamento político da burguesia russa e de sua atitude contrária no s interêsses populares. Se na aurora de
sua história, mostrou-se muito pouco amadurecida para realizar uma reforma, ainda mais se encontrava
quando chegou o instante de dirigir a revolução.
De acôrdo com a evolução do país, o reservatório de onde saía a classe operária russa não era um
artesanato corporativo: era o meio rural; não a cidade, mas a aldeia. É preciso notar que o operariado russo
se formou não paulatinamente, no decurso dos séculos, arrastando o enorme fardo do passado, como na
Inglaterra, mas sim aos saltos, por meio de transformações bruscas das situações, de ligações, acordos e,
ainda, por meio de ruturas violentas com tudo o que, na véspera, existia. Foi precisamente assim - sobretudo
durante o regime da opressão concentrada do tzarismo - que os operários russos puderam assimilar as
deduções mais ousadas do pensamento revolucionário da mesma forma que a retardatária indústria russa era
capaz de compreender a última conquista da organização capitalista.
O proletariado russo recomeçava sempre a curta história de suas origens. Enquanto que na indústria
metalúrgica, sobretudo em Petrogrado, se cristalizava o elemento proletário de procedência autêntica- aquêle
que, definitivamente, rompera com a aldeia - nos Urais predominava ainda o tipo meio proletário meio
camponês. O afluxo anual da mão-de-obra, oriunda dos campos, para todos os ramos da indústria,
restabelecia o contato entre o proletariado e o reservatório social de onde se originava.
A incapacidade política da burguesia era diretamente determinada pelo caráter de suas relações com o
proletariado e os camponeses. Não era possível arrastar consigo os operários que a ela se opunham
rancorosamente na vida cotidiana e que, muito cedo, aprenderam a dar um sentido mais geral aos seus
objetivos. Por outro lado a burguesia era igualmente incapaz de arrastar a classe camponesa porque estava
enredada nas malhas de interésses comuns com os proprietários de terras e porque temia um abalo da
propriedade sob qualquer forma em que se apresentasse. Se, portanto, a revolução russa tardou em rebentar,
não foi tão-sòmente por motivo cronológico: a culpa desta demora cabe também à estrutura social da nação.
Quando a Inglaterra realizou a sua revolução puritana, a população do país não ia além de 51/2 milhões
de habitantes, dos quais meio milhão vivia em Londres. A França, por ocasião de sua revolução, contava com
apenas meio milhão de habitantes em Paris, contra 25 milhões da população total. A Rússia, no princípio do
século XX, possuía mais ou menos uma população de 150 milhões de habitantes, dos quais mais de 3 milhões
fixados em Moscou e Petrogrado. Êstes dados comparados encobrem ainda dissemelhanças sociais da maior
importância. Não sòmente a Inglaterra do século XVII, mas também a França do XVIII ignoravam o
proletariado conhecido em nossa época. Ora, na Rússia, a classe operária em todos os setores de trabalho,
nas cidades e nos campos, contava em 1905 com pelo menos 10 milhões de pessoas, o que, compreendendo
suas famílias, representava mais de 25 milhões - ou seja, mais do que a população da França na época da sua
grande Revolução. Partindo dos rudes artesãos e dos camponeses independentes que formaram o exército de
Cromwell - passando em seguida pelos sans-culottes de Paris - para chegar aos proletários industriais de S.
Petersburgo, a Revolução teve que modificar profundamente seu mecanismo social, seus métodos e, por
conseguinte, seus desígnios.
Os acontecimentos de 1905 foram o prólogo das duas revoluções de 1917 - a de Fevereiro e a de Outubro.
O prólogo já continha todos os elementos do drama que, entretanto, ainda não estava terminado. A guerra
russo-japonésa abalou o tzarismo. Utilizando o movimento de massas como alavanca, a burguesia liberal
abalou a Monarquia devido a sua oposição. Os operários organizavam-se independentemente da burguesia,
opondo-se mesmo a ela em sovietes, aparecidos pela primeira vez. A classe camponesa, numa extensão
imensa do território, levantava-se para a conquista das terras. Assim como os camponeses, alguns efetivos
revolucionários, no Exército, se voltaram para os sovietes que, no momento em que o impulso revolucionário
era mais forte, disputaram abertamente o poder à Monarquia. Entretanto, tôdas as fôrças revolucionárias ma-
nifestavam-se, pela primeira vez, carecendo de experiência e sem confiança em si mesmas. Os liberais
afastaram-se ostensivamente da revolução logo se tornou evidente não ser suficiente apenas abalar o trono
mas que seria necessário derrubá-lo. A rutura brutal entre a burguesia e o povo, tanto mais que a burguesia
arrastava consigo grupos consideráveis de intelectuais democratas, facilitou à Monarquia sua obra de
desagregação no Exército, a triagem de contingentes fiéis e ainda a repressão sangrenta contra os operários e

60
os camponeses. O tzarismo saiu de seus sofrimentos de 1905 vivo. suficientemente vigoroso, apesar de
algumas de suas costelas terem ficado quebradas.
Durante os onze anos intermediários entre o prólogo e o drams, quais foram as modificações provocadas
pela evolução histórica na correlação das fôrças? Durante êste período o regime tzarista conseguiu ainda
mais colocar-se em contradição com as exigências históricas. A burguesia tornara-se econômicamente mais
poderosa, mas seu poder, conforme vimos, repousava sôbre a concentração mais forte na indústria e sôbre a
importância crescente do papel representado pelo capital estrangeiro. Influenciada pelas lições de 1905,
tornou-se a burguesia ainda mais desconfiada e conservadora. O peso específico da pequena e média
burguesia, anteriormente insignificante, diminuiu ainda mais. Os intelectuais democratas não tinham, em
geral, base social estável. Podiam exercer transitoriamente certa influência política mas não podiam
desempenhar papel i ndependente: a sujeição dos intelectuais ao liberalismo burguês tinha se agravado
extraordinariamente. Nestas condições sòmente o jovem proletariado poderia dar à classe camponesa um
programa, uma bandeira, uma direção. Os grandiosos problemas que se lhe apresentam exigiam a criação
inadiável de uma organização revolucionária especial que pudesse englobar as massas populares e torná-las
capazes de uma ação revolucionária sob a direção dos operários. Foi assim que os sovietes de 1905
alcançaram em 1917 um formidávvl desenvolvimento. Note-se que os sovietes não são simplesmente um
produto do atraso histórico da Rússia, mas sim o resultado de um desenvolvimento combinado, e isto é
comprovado pelo fato de o proletariado do país mais industrializado do mundo, a Alemanha, não ter
encontrado, na época do impulso revolucionário de 1918 a 1919, outra forma de organização senão a dos
sovietes.
A revolução de 1917 tinha ainda como fim imediato derrubar a monarquia burocrática. Diferenciava-se,
entretanto, das antigas revoluções burguesas, pelo fato de o elemento decisivo que se manifestava agora
ser uma nova classe constituída sôbre a base de uma indústria concentrada, possuidora de nova
organização e novos métodns de luta. A lei do desenvolvimento combinado se revela agora em sua
expressão mais alta: começando por derrubar o edifício medieval apodrecido, a Revolução eleva ao poder,
em poucos meses, o proletariado, encabeçado pelo Partido Comunista.
Assim, segundo as suas finalidades primeiras, a Revolução russa era democrática. Colocava porém, sob
novo aspecto, o problema da democracia política. Enquanto os operários cobriam todo o país com os
sovietes, nêles admitindo soldados e, parcialmente, camponeses, a burguesia continuava a negociar,
perguntanso se convocaria ou não a Assembléia Constituinte. À medida que formos descrevendo os
acontecimentos esta questão se nos apresentara de modo mais concreto. Aqui pretendemos apenas fixar o
lugar dos sovietes na sucessão histórica das idéias e das formas revolucionárias.
Em meados do século XVII, a revolução burguesa realizada na Inglaterra decorreu sob o envólucro de
uma reforma religiosa. A luta pelo direito de rezar segundo um determinado livro de orações se identificou à
luta levada a cabo contra o rei, a aristocracia e os príncipes da Igreja e Roma. Os presbiterianos e os
puritanos estavam profundamente persuadidos de terem colocado os seus interësses terrestres sob a égide
da Divina Providência. Os fins pelos quais combatiam as novas classes confundiam-se indissolüvelmente, em
suas mentalidades, com os textos bíblicos e com os ritos eclesiásticos, Os que emigraram para além dos
mares consigo levaram esta tradição confirmada no sangue. Daí a excepcional vitalidade das interpretações
do Cristianismo apresentadas pelos anglo-saxões. Vemos, ainda hoje, ministros "socialistas" da Grã-
Bretanha esconderem a covardia sob os mesmos textos mágicos com que os homens do século XVII
buscavam a justificação de sua coragem.
Na França, país que pulou sôbre a Reforma, a Igreja Católica, em sua qualidade de Igreja do Estado,
conseguiu sobreviver até à Revolução, que foi buscar, não nos textos bíblicos mas em abstrações
democráticas uma expressão e uma justificação para os desígnios da sociedade burguesa. Qualquer que seja
o ódio dos regentes atuais da França pelo jacobinismo, a verdade é que, precisamente graças à ação
rigorosa de um Robespierre é que êles ainda têm a possibilidade de dissimular a dominação dos
conservadores que são, sob fórmulas que, outrora, fizeram explodir a velha sociedade.
Cada uma das grandes revoluções marcou uma nova etapa da sociedade burguesa assim como novas
formas na consciência de suas classes. Assim como a França pulou por sôbre a Reforma, a Rússia
ultrapassou de um salto a democracia puramente formal. O partido revolucionário da Rússia, que poria uma
pedra sôbre tôda uma época, procurou uma fórmula para os problemas da revolução não na Bíblia nem no
cristianismo secularizado de uma democracia "pura", mas nas relações materiais entre as classes. O sistema
deu a tais relações a expressão mais simples, a menos dissimulada, a mais transparente. A dominação dos
trabalhadores encontrou pela primeira vez sua realização no sistema dos sovietes que, sejam quais forem as
vicissitudes históricas que lhes está reservada, penetrou na consciência das massas de forma tão
inextirpável quanto, em outros tempos, em outros povos, a Reforma ou a democracia pura.

Texto nº. 2
A LEI DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E COMBINADO 25. MORENO. Logica Marxista y Ciências Modernas. Ed. Xólotl, 1981, cap V
(...).

25
Para os leitores pouco familiarizados com o pensamento marxista e suas distintas correntes apressamo-nos em efetuar o seguinte
esclarecimento: denomina-se assim a lei descoberta por Trotsky para explicar as peculiaridades dos países atrasados que “combinam”
segmentos “desigualmente desenvolvidos”, por exemplo, uma indústria moderna em alguns ramos com relações feudais no campo ou em
outros ramos.
61
1. Marx

Na Introdução Geral à critica da Economia Política, Marx diz: “Em geral, o progresso não deve ser concebido da maneira
abstrata habitual”. E, não conformado com isso, precisa: “A relação desigual do desenvolvimento da produção material e,
por exemplo, o desenvolvimento da produção artística”. “Esta desproporção não é tão importante nem tão difícil de
apreciar como no interior das relações sociais práticas, por exemplo, da cultura. Relação dos Estados Unidos com a
Europa. O ponto verdadeiramente difícil a discutir é o de saber como as relações de produção, enquanto relações jurídicas,
têm um desenvolvimento desigual. Assim o é, por exemplo, a relação entre o Direito privado romano (isto é menos válido
para o Direito penal e o Direito público) e a produção moderna. Essa concepção aparece como um desenvolvimento
necessário. É, sem dúvida, justificação do acaso. Como? (justificar igualmente a liberdade, entre outras coisas). Influência
dos meios de comunicação. A história universal não existiu sempre; em seu aspecto de história universal, é um
resultado”. 26
Marx era consciente de que, no mínimo, em algumas estruturas havia “relação desigual” e
“desenvolvimento desigual” entre diferentes categorias sociais: “produção material”, “produção artística”,
“relações de produção”, “relações jurídicas” etc.
Essa concepção de uma “relação desigual” e não só de um “desenvolvimento”, é relativamente constante em Marx e é
aplicada não só às relações entre a “estrutura econômica” e a “superestrutura artística ou jurídica” , mas também no
campo econômico.
Referindo-se às conquistas diz: “Todas as conquistas pressupõem três possibilidades: o povo conquistador submete o
povo conquistado ao seu próprio modo de produção (é o que os ingleses fazem neste século na Irlanda e parcialmente na
Índia); ou, então, deixa subsistir o antigo modo de produção e se limita a cobrar um imposto (por exemplo, os turcos e os
romanos); ou, então, se produz uma interação da qual nasce uma nova forma, uma síntese (particularmente nas
conquistas romanas). Em qualquer dos casos, o modo de produção, seja o do povo conquistador, seja o do povo
submetido, ou o resultante da fusão dos dois, é determinante para a nova produção que se estabelece”. 27
Muitos anos depois, na História Crítica da Teoria da Mais Valia, caracteriza a colonização nas plantações da seguinte
forma: “Na segunda espécie de colônias – as plantações, que são as mesmas desde o momento que surgiram,
especulações comerciais, centros de produção capitalista, embora apenas de um modo formal, já que a escravidão dos
negros exclui o livre trabalho assalariado, que é a base sobre a qual se apoia a produção capitalista. São, no entanto,
capitalistas que fazem o negócio do comércio dos escravos. O sistema de produção introduzido por eles não provém da
escravidão, mas insere-se nele. Nesse caso, o capitalista e o latifundiário são uma só pessoa”. 28
As leis gerais não só da estrutura capitalista, mas também de suas crises, provocadas pelo
desenvolvimento desigual de seus distintos setores, já tinham sido visualizadas por Marx quando assegurou: “O
resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, a troca e o consumo sejam idênticos, senão que
constituem as articulações de uma totalidade, diferenciações dentro de uma unidade. A produção transcende a si mesma
na determinação contraditória da produção; transcende também aos outros momentos do processo”. 29
Não diremos que Marx formula explicitamente uma nova teoria com distintas leis, mas sim que assinala
com toda clareza: primeiro, que há um desenvolvimento desigual entre os distintos ramos da sociedade;
segundo, que há em algumas estruturas “relações desiguais”, “uma síntese” ou “fusão”; terceiro, que
algumas “novas” estruturas ou “sistemas” ou “modos” de produção são produtos dessa “fusão” ou “inserção”
de um modo de produção no outro; quarto, que esse desenvolvimento provoca crises; e quinto, coloca, sem
solucionar, a relação entre “necessidade” e “acaso” nesse “progresso” “não-abstrato”. Ou seja, que esteve a
ponto de descobrir a teoria que fez história no marxismo: a lei do desenvolvimento desigual e combinado, que explica
cientificamente a relação entre a gênese e a estrutura.

2. Trotsky

Foi Trotsky, levado pela necessidade de precisar as características gerais da Rússia (estrutura) e a
dinâmica histórica (gênese) que provocaram a Revolução Russa de fevereiro primeiro e a de outubro depois,
quem veio a formular de forma explícita a famosa teoria. Dizemos que foi seu descobridor. De suas tantas
expressões, compilamos a que dá no livro História da Revolução Russa 30.
“As leis da história não têm nada em comum com o esquematismo pedante. O desenvolvimento desigual, que é a lei
mais geral do processo histórico, não se revela em parte alguma, com a evidência e a complexidade com que o demonstra
o destino dos países atrasados. Fustigados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados vêem-se
obrigados a avançar aos saltos. Dessa lei universal do desenvolvimento desigual deriva outra que, na falta de nome mais
adequado, qualificaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho
e à combinação de distintas fases, à mistura de forma arcaicas e modernas. Sem recorrer a essa lei, enfocada,
naturalmente, na integridade de seu conteúdo material, seria impossível compreender a história da Rússia ou de qualquer
outro país considerado atrasado culturalmente, qualquer que seja o seu grau”.

26
Cuadernos de pasado y presente. Pág. 63.
27
Ibid. pág. 47
28
Historia Critica de la Teoria de la Plusvalia, F.C.E, México, 1944, t. II, págs. 332 e333
29
Cuadernos de pasado y presente. Pág. 49.
30
Ediciones Indoamérica, Buenos Aires, 1964, T I, pág. 22
62
Trotsky limitou o alcance da sua teoria à analise histórica, principalmente dos países atrasados, o que não é casual, já
que era um revolucionário que não tinha tempo para especializar-se em questões de método ou epistemologia. De
qualquer forma, a teoria, apontada por Marx, alcançou com ele uma formulação expressa.

3. Piaget

Seria interessante traçar um paralelo entre esses dois gigantes do pensamento, que são Trotsky e Piaget.
Encontraríamos muitos mais pontos em comum. Os dois são mais “cientistas práticos” que “especuladores”. Um
tinha como campo de experimentação nada menos que o mundo depois de dirigir, junto com Lenin, a
transformação mais radical que conheceu a humanidade. O outro, o homem e todo o conhecimento, desde o
nascimento até a maturidade. Não se conhecendo, chegaram à mesma teoria. Temos de acrescentar, no entanto, que
Piaget não formula explicitamente, como Trotsky, essa lei, nem com outro nome. Em suas duas obras dedicadas à
gênese e à estrutura, já citadas, limitou-se a afirmar que há uma unidade íntima entre as duas categorias e
que é “o equilíbrio”. Em Epistemologia Genética e Biologia e Conhecimento descreve o funcionamento da lei mas sem
nomeá-la. Mas é tal a importância que dá a essa descrição que nos permitimos igualá-lo a Trotsky e afirmar que, num
sentido, o superou. Parafraseando Hegel, poderíamos dizer que Piaget conhece, mas não reconhece a lei. Essa falta de
reconhecimento origina lacunas em suas teorias e explicações, mas não lhe tira o mérito de ter sido o primeiro que
descreveu seu funcionamento no mundo biológico, psicológico e do pensamento.
Para esse autor “no desenvolvimento orgânico ou ontogenético” ”pode-se admitir em linhas gerais” “que a
integração é diretamente proporcional à diferenciação e constitui cedo ou tarde seu complemento
necessário”. 31 Agrega: “Em primeiro lugar, o desenvolvimento orgânico ou individual reúne, como já dissemos, em uma
mesma totalidade funcional os processos de diferenciação e de integração que se dissociam mais ou menos no
desenvolvimento genealógico”. 32 “No caso da filogênese, encontramos o que podemos chamar de desenvolvimento
genealógico ou coletivo por formação de ramos sucessivos a partir de troncos comuns ou de ramificações de diversas
ordens a partir dos ramos. Nesse caso, há transformações ordenadas no tempo e que se orientam, se nos atentamos às
linhas gerais, no duplo sentido da diferenciação e da integração”. 33 “Mas a maioria dos esquemas, em vez de
corresponderem a uma montagem hereditária acabada, se constróem pouco a pouco, e dão lugar, inclusive, a
diferenciações, por acomodação a situações modificadas ou por combinações (assimilações recíprocas com ou sem novas
acomodações) múltiplas e variadas”. 34
4. O novo, segundo Piaget

Sartre, e outros anti-engelsianos, criticam Engels por sustentar que a lei hegeliana do salto de quantidade em
qualidade explica a novidade, o aparecimento de uma nova existência. Esses autores assinalam um fato correto: a lei
citada jamais poderá explicar o surgimento do verdadeiramente novo. O salto de quantidade em qualidade explica as
mudanças de forma dentro do já existente, do que já nasceu. O famoso exemplo da água confirma isso. A água a 20º C
tem forma líquida, a 100º C é gasosa e a 0º C é gelo, mas é sempre H²O, não é um novo elemento: só sua forma mudou.
Um homem ou uma mulher podem ter mais anos, mas continuarão sendo os mesmos; são essa pessoa, jovem ou velha, e
nunca outra.
O que então é o novo? Piaget, em suas investigações epistemológicas faz uma descrição do surgimento do novo. Até
ele, todas as explicações eram de dois tipos: “preformistas” (o novo já estava no velho) ou “emergentes” (o novo não
estava no velho, era completamente “novo” “produto do acaso” ou “emergente”). Piaget sintetiza as duas posições,
tradicionais, em uma terceira: “Por outro lado, pelo fato de que eles servem de matéria a novas composições de conjunto
(a novos sistemas de operações), os elementos abstraídos das operações anteriores podem permanecer difíceis de
reconhecer, por causa da junção das características novas nascidas dessa composição”.
“Em que consiste, então, essa junção, fonte da novidade? Os elementos abstraídos das ações ou operações
anteriores, tornados independentes (ou diferenciados) por essa mesma abstração, dão lugar a uma nova
composição operatória de conjunto, distinta da composição anterior da qual faziam parte. Um elemento
abstraído de um sistema anterior não poderá certamente dar lugar por si só à elaboração de um sistema novo:
é por combinação ou posto em relação a outros elementos, abstraídos de outros conjuntos, que ele engendra
a composição não contida nas precedentes”. 35 “Além do mais, e isso é igualmente essencial para a compreensão do
processo genético, essa combinação entre elementos abstraídos dos sistemas anteriores não consiste em uma simples
associação: a síntese não se efetua e não é realmente construtora mais que na medida em que esses elementos dão lugar
a uma composição operatória inteira, com suas propriedades de conjunto”, “nova construção” que se torna “irredutível
para cada um de seus elementos colocados separadamente”. 36
Consideramos isso uma descrição da gênese do novo no conhecimento, mas nossa pergunta: “Que é o novo?” segue de
certa maneira sem resposta. A lei do desenvolvimento desigual e combinado é a única que explica o surgimento de uma
nova estrutura, além das transformações dentro dela, que já haviam sido explicadas de certa maneira pelo salto
de quantidade em qualidade. Só a combinação do desigualmente desenvolvido originará uma nova estrutura.
Voltando ao exemplo do homem e da mulher diremos que é necessária a união dos dois para que surja um novo ser. Se
ficássemos no salto de quantidade em qualidade, só poderíamos ficar no desenvolvimento do embrião, mas de onde ele

31
Biologia y Conocimiento, op. Cit., pág. 67
32
Ibid., pág. 74
33
Bid., pág. 66.
34
Ibid., pág. 68
35
Epistemologie Genetique, op. Cit.., págs. 302 e 303.
36
ibid., pág. 303
63
surge? Da combinação do óvulo e do espermatozóide; e essa é a resposta, e não seu desenvolvimento posterior, porque o
embrião já é o novo ser.
Como já vimos, Piaget descreve essa lei do desenvolvimento desigual e combinado com uma explicação do
novo em suas pesquisas epistemológicas. Entreviu-a também como explicação das novas formas no mundo
orgânico, ao dizer: “A razão profunda desta continuidade é que uma tal criação perpétua de novas formas que atuam
sobre os elementos que são próprios a qualquer desenvolvimento biológico (orgânico ou mental): a diferenciação e a
integração complementares”. 37 O que não fez foi: 1) formulá-la; 2) generalizá-la; 38 3) entender que esaa lei (do
desenvolvimento desigual e combinado ou, para ele, de “diferenciação-integração” no plano orgânico ou “abstrativa-
construtiva” no plano do pensamento ou de “combinação” em geral), é a única que unifica a gênese e a estrutura, e,
portanto, é a lei do equilíbrio e do desequilíbrio entre ambas.

Texto nº. 3
A LEI DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL e COMBINADO DA SOCIEDADE. NOVACK, George. Lei do
Desenvolvimento Desigual e Combinado. Rabisco, 1988.

O CURSO DESIGUAL DA HISTÓRIA

Este ensaio pretende dar uma explicação compreensível e coerente de uma das leis fundamentais da história humana,
a lei do desenvolvimento desigual e combinado.
É a primeira vez, em minha opinião, que se tenta fazer isto. Procurarei demonstrar o que é esta lei, como funcionou nas
principais etapas da história e também como pode clarificar alguns dos mais importantes fenômenos sociais e problemas
políticos de nossa época.

A DUPLA NATUREZA DA LEI

A lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma lei científica da mais ampla aplicação no processo histórico. Tem
um caráter dual ou, melhor dizendo, é uma fusão de duas leis intimamente relacionadas. O seu primeiro aspecto se refere
às distintas proporções no crescimento da vida social. O segundo, à correlação concreta destes fatores desigualmente
desenvolvidos no processo histórico.
Os aspectos fundamentais da lei podem ser brevemente exemplificados da seguinte maneira:
O fator mais importante do progresso humano é o domínio do homem sobre as forças de produção. Todo avanço
histórico se produz por um crescimento mais rápido ou mais lento das forças produtivas neste ou naquele segmento da
sociedade, devido às diferenças nas condições naturais e nas conexões históricas. Essas disparidades dão um caráter de
expansão ou compressão a toda uma época histórica e conferem distintas proporções de desenvolvimento aos diferentes
povos, aos diferentes ramos da economia, às diferentes classes, instituições sociais e setores da cultura. Esta é a essência
da lei do desenvolvimento desigual. Essas variações entre os múltiplos fatores da história dão a base para o surgimento de
um fenômeno excepcional, no qual as características de uma etapa inferior de desenvolvimento social se misturam com as
de outra, superior.
Essas formações combinadas têm um caráter altamente contraditório e exibem acentuadas peculiaridades. Elas podem
desviar-se muito das regras e efetuar tal oscilação de modo a produzir um salto qualitativo na evolução social e capacitar
povos que eram atrasados a superar, durante certo tempo, os mais avançados. Esta é a essência da lei do
desenvolvimento combinado. É óbvio que estas duas leis, estes dois aspectos de uma só lei, não atuam ao mesmo nível. A
desigualdade do desenvolvimento precede qualquer combinação de fatores desproporcionalmente desenvolvidos. A
segunda lei cresce sobre a primeira e depende desta. E, por sua vez, esta atua, sobre aquela, afetando-a no seu posterior
funcionamento.

O ENQUADRAMENTO HISTÓRICO

A descoberta e formulação desta lei são resultado de mais de dois mil e quinhentos anos de investigações teóricas
sobre as formas de desenvolvimento social. As primeiras observações sobre ela foram feitas pelos filósofos e historiadores
gregos. Mas a lei como tal foi levada a primeiro plano e efetivamente aplicada, pela primeira vez, pelos fundadores do
materialismo histórico, Marx e Engels, há aproximadamente um século. Esta lei é uma das maiores contribuições do
marxismo à compreensão científica da história e um dos mais poderosos instrumentos de análise histórica.

37
Epistemologie Genetique, op.cit. pág. 306
38
Em um trabalho anterior (Las revoluciones china e indochina, Pluma, Buenos Aires, 1973, pág. 35) já dizíamos: “O marxismo se
colocou como um princípio o problema da lei científica e histórica que explicará o salto ao novo. Encontrou uma lei geral no salto de
quantidade em qualidade de Hegel, baixada à terra por Marx e Engels. A dialética descoberta por Marx entre o desenvolvimento das
forças produtivas, as relações e lutas de classes e a superestrutura, é a chave última das transformações revolucionárias de uma sociedade
em outra. Estas, sem dúvida, não explicam exaustivamente o novo na história e no mundo”.
“Trotsky, com sua descoberta e formulação da lei do desenvolvimento desigual e combinado, consegue alcançar uma lei mais geral para
compreender o surgimento do novo: é a combinação, ou crise de segmentos desigualmente desenvolvidos da sociedade. O salto de
quantidade em qualidade é para a lei do desenvolvimento desigual e combinado o que a lei da gravidade é para a lei da relatividade”
64
Marx e Engels, por sua vez, derivaram a essência desta lei da filosofia dialética de Hegel. Hegel utilizou a lei em suas
obras sobre a história universal e a história da filosofia, porém sem lhe dar um nome especial nem reconhecimento
explícito.
Da mesma maneira, muitos pensadores dialéticos, antes e depois de Hegel, utilizaram esta lei em seus estudos e
aplicaram-na mais ou menos conscientemente, para a solução de complexos problemas histórico-sociais e políticos. Os
mais destacados teóricos do marxismo, desde Kautsky e Luxemburgo até Plekhanov e Lênin, reconheceram a sua
importância, observaram seu funcionamento e conseqüências e usaram-na para a solução de problemas que confundiam a
outras escolas de pensamento. (...).

O FORMULADOR DA LEI

Este processo está totalmente explicado por Trotsky em sua "História da Revolução Russa". A própria revolução russa
foi o exemplo mais claro do desenvolvimento desigual e combinado na história moderna. Em sua análise clássica deste
acontecimento, Trotsky deu ao movimento marxista a primeira formulação explícita da lei.
Trotsky, como teórico, é célebre sobretudo pela formulação da teoria da Revolução Permanente. Contudo, sua
exposição da lei do desenvolvimento desigual e combinado poderia ser comparada àquela em importância. Trotsky não só
deu nome a essa lei, como também foi o primeiro que a expôs em seu pleno significado e lhe deu expressão acabada.
Estas duas contribuições à compreensão científica dos movimentos sociais estão, de fato, intimamente ligadas. A
concepção de Trotsky da Revolução Permanente resultou de seu estudo das peculiaridades do desenvolvimento histórico
russo, à luz dos novos problemas que se apresentaram ao socialismo mundial na época do imperialismo. Esses problemas
eram particularmente agudos e complexos em países atrasados, onde a revolução democrático-burguesa não tinha
ocorrido, e exigiam a solução de suas tarefas mais elementares em um momento em que estava colocada a revolução
proletária. Os frutos de suas idéias sobre esta questão, confirmados pelo desenvolvimento real da Revolução Russa,
prepararam e estimularam sua subseqüente elaboração da lei do desenvolvimento desigual e combinado.
Certamente, a teoria de Trotsky da Revolução Permanente é a aplicação mais frutífera desta verdadeira lei aos
problemas cruciais da luta de classes internacional de nosso tempo - época de transição da dominação capitalista ao
mundo socialista - e oferece o mais alto exemplo de seu penetrante poder. Contudo, a lei é aplicável não apenas aos
acontecimentos revolucionários da época presente como também, como veremos, a toda evolução social. Possui também
aplicações mais amplas. (...).

O NOVO E O VELHO MUNDO

A desigualdade do desenvolvimento histórico mundial raras vezes foi tão notável como quando os nativos da América
se enfrentaram pela primeira vez com os invasores brancos que vinham da Europa. Encontraram-se ali duas rotas de
evolução social completamente separadas, produtos de dez a vinte mil anos de desenvolvimento independente nos dois
hemisférios. Ambas se viram obrigadas a comparar suas proporções de crescimento e a medir seus respectivos resultados
globais. Esta foi uma das mais marcantes confrontações de diferentes culturas em toda a História.
Naquele momento a Idade da Pedra chocou-se com o final da Idade do Ferro e o começo da mecanização. Na caça e na
guerra, o arco e a flecha tiveram que competir com o mosquete e o canhão; na agricultura, a enxada e o bastão, com o
arado e os animais de tração; no transporte aquático, a canoa com o navio; na locomoção terrestre, as pernas humanas
com o cavalo e os pés descalços com a roda. Na organização social, o coletivismo tribal contra as instituições e costumes
feudal-burgueses; a produção para o consumo imediato da comunidade contra uma economia monetária e o comércio
internacional.
Poderíamos multiplicar estes contrastes entre os índios americanos e os europeus ocidentais. Contudo, a desigualdade
dos produtos humanos de enormes etapas separadas de desenvolvimento econômico foi, aparentemente, demasiado
violenta. Surgiram grandes antagonismos; trataram de manter-se separados uns dos outros e, assim como no princípio os
chefes astecas identificaram os recém chegados brancos com deuses, os europeus, reciprocamente, olhavam e tratavam
os nativos como animais.
Como sabemos, a desigualdade de produtividade e poder destrutivo na América do Norte não foi superada pela adoção,
pelos índios, dos métodos dos brancos e sua assimilação gradual e pacífica à sociedade de classes. Pelo contrário, nos
quatro séculos seguintes chegou-se à expropriação e aniquilação das tribos indígenas.

O ATRASO DA VIDA COLONIAL

Se os colonizadores brancos desenvolveram sua superioridade material sobre os povos nativos, eles próprios estavam
atrasados em relação à pátria de origem.
O atraso geral do continente norte-americano e suas colônias, em comparação ao ocidente europeu, predeterminou as
principais linhas de seu desenvolvimento desde o começo do século XVI até meados do século XIX. Neste período, a tarefa
central dos americanos foi alcançar a Europa e superar a disparidade no desenvolvimento social dos dois continentes.
Como e por quem foi feito isto é o principal tema da história norte-americana ao longo destes três séculos e meio.
Isto exigiu, entre outras coisas, duas revoluções para completar a tarefa. A revolução colonial, que coroou a primeira
etapa de progresso, deu ao povo americano instituições políticas mais avançadas que as de qualquer outro lugar do velho
mundo e aplainou o caminho para a rápida expansão econômica. De toda maneira, depois de haver conquistado a
independência nacional, os EUA tiveram ainda que conquistar a independência econômica dentro do mundo capitalista. A
diferença econômica entre esse país e as nações do ocidente da Europa limitou-se à primeira metade do século XIX e
encerrou-se virtualmente com o triunfo do capitalismo industrial do Norte sobre os poderes escravistas, na guerra civil.
Não foi necessário muito tempo para que os Estados Unidos superassem a Europa Ocidental.

65
A DESIGUALDADE DOS CONTINENTES E PAÍSES

Estas mudanças na posição dos Estados Unidos ilustram a desigualdade de desenvolvimento entre os centros
metropolitanos e as colônias, entre os diferentes continentes e entre os países de um mesmo continente. Uma comparação
entre os diversos modos de produção nos diversos países demonstraria mais abruptamente suas desigualdades. O
escravismo havia virtualmente terminado, como modo de produção, nos países da Europa, antes de ser introduzido na
América, em virtude das necessidades dos próprios europeus. A servidão havia desaparecido na Inglaterra antes de surgir
na Rússia e houve tentativas de implantá-la nas colônias norte-americanas depois de ter sido varrida na metrópole. Na
Bolívia, o feudalismo floresceu sob os conquistadores espanhóis e fez deteriorar o escravismo, ao passo que, nos Estados
Unidos, este surgiu ficando o feudalismo.
O capitalismo estava altamente desenvolvido no ocidente da Europa, enquanto que no Leste era implantado só
superficialmente. Uma disparidade similar no desenvolvimento capitalista prevaleceu entre os Estados Unidos e México.
A desigualdade é a "lei mais geral do processo histórico" (História da Revolução Russa, pág. 5). Estas desigualdades
são a expressão específica da natureza contraditória do progresso social e da dialética do desenvolvimento humano. (...).

IRREGULARIDADES NA SOCIEDADE

As pronunciadas irregularidades que se produziram na historia induziram alguns pensadores a negar que haja, ou possa
haver, alguma causalidade ou lei no desenvolvimento social. A escola mais conhecida de antropólogos norte-americanos,
encabeçada pelo falecido Franz Boas, nega explicitamente que possa haver alguma seqüência determinada de etapas que
possam ser descobertas na evolução social, ou que as expressões culturais estejam ligadas à tecnologia ou à economia.
Segundo R. H. Lowitt, o expositor mais conhecido deste ponto de vista, os fenômenos culturais apresentam meramente o
caráter de "um caos sem plano", uma "selva caótica". A "selva caótica" está na cabeça desse antimaterialista e
antievolucionista, e não na história ou na constituição da sociedade.
É possível que os povos que vivem, no século XX, sob as condições da Idade da Pedra, possuam um rádio - resultado
do desenvolvimento combinado. Mas é categoricamente impossível encontrar tal produto da eletrônica contemporânea
enterrado com os resquícios humanos da Idade da Pedra depositados há muitíssimos anos.
Não é preciso ser muito esperto para perceber que um coletor de alimentos, de ervas, um caçador, um pescador ou um
caçador de aves, existiram muito antes que a produção de alimentos em forma de horticultura ou criação de gado. Ou que
as ferramentas de pedra precederam as de metal; que a palavra precedeu a escrita; que as cavernas existiram antes das
aldeias; que a troca de bens precedeu a moeda. Numa escala histórica geral, estas seqüências são absolutamente
invioláveis.
As principais características da estrutura social simples dos selvagens são determinadas por seus primitivos métodos de
produzir os meios de vida, que dependem, por sua vez, do baixo nível de suas forças produtivas.
Estima-se que os povos coletores de alimentos requerem, em média, 40 milhas quadradas per capita para se
manterem. Não podem produzir nem manter grandes concentrações de população sobre tais fundamentos econômicos.
Geralmente agrupam menos de quarenta pessoas e raras vezes excedem a cem. A ineludível estreiteza de sua produção
de alimentos e a dispersão de sua força limitam estritamente seu desenvolvimento.

DA BARBÁRIE À CIVILIZAÇÃO

Que se pode dizer a respeito da etapa seguinte de desenvolvimento social, a barbárie? O notável arqueólogo V. Goroon
Childe publicou recentemente, num livro chamado "Evolução Social", um resumo dos "sucessivos passos através dos quais
as culturas bárbaras entram na via da civilização, em contraste com seu ambiente natural". Childe reconhece que o ponto
de partida na esfera econômica foi idêntico em todos os casos, "na medida em que as primeiras culturas bárbaras
examinadas estavam baseadas no cultivo dos mesmos cereais, e no pastoreio das mesmas espécies de animais". Ou seja,
a barbárie separa-se das formas selvagens de vida pela aquisição e aplicação de técnicas produtivas mais elevadas para a
agricultura e a criação de gado.
A chegada ao resultado final - a civilização - exibe diferenças concretas em cada caso, "contudo, em toda parte,
significa a agregação de grandes populações nas cidades, assim como a diferença entre a produção primária (pescadores,
agricultores etc.) e a de artesãos especializados em tempo integral, mercadores, burocratas, clero e governantes; uma
efetiva concentração do poder político e econômico; o uso de símbolos convencionais para lembrar e transmitir
informações (escrita) e também padrões convencionais de pesos e medidas e de medidas de tempo e espaço que levam a
um tipo de ciência matemática e calendário".
Ao mesmo tempo, Childe assinala que "os passos que integram este desenvolvimento não apresentam, igualmente, um
paralelismo abstrato". A economia rural do Egito, por exemplo, tem um desenvolvimento diferente do da Europa de clima
temperado. Na agricultura do velho mundo, a enxada foi substituída pelo arado, ferramenta que não era conhecida pêlos
maias.
A conclusão geral que Childe tira destes fatos é que "o desenvolvimento da economia rural bárbara das regiões
estudadas não apresenta paralelismo e sim convergências e divergências" (pág. 162). Mas isto não é suficiente.
Considerados em sua totalidade e em sua inter-relação histórica, a maioria dos povos que entram na barbárie surge
das mesmas atividades econômicas essenciais, o cultivo de cereais e criação de gado. Tiveram um desenvolvimento
diversificado de acordo aos diferentes habitais naturais e circunstâncias históricas e comprovam, ao percorrer o caminho
rumo à civilização, que não foram detidos na rota ou obliterados, e atingiram por fim o mesmo destino: a civilização. (...).

66
A EVOLUÇÃO DESIGUAL DO CAPITALISMO

Isto está exemplificado com maior ênfase na evolução do capitalismo e suas partes componentes. O capitalismo é um
sistema econômico mundial. Nos últimos cinco séculos se desenvolveu de país a país, de continente a continente, e passou
através das fases sucessivas do capitalismo comercial, industrial, financeiro e capitalismo estatal monopolista. Cada país,
mesmo que atrasado, foi levado à estrutura das relações capitalistas e se viu sujeito às suas leis de funcionamento.
Enquanto cada nação entrou na divisão internacional do trabalho sobre a base do mercado mundial capitalista, cada uma
participou de forma peculiar e em grau diferente na expressão e expansão do capitalismo, e jogou diferente papel nas
distintas etapas de seu desenvolvimento.
O capitalismo surgiu com muito maior força na Europa e América do Norte do que na Ásia e África. Estes foram
fenômenos interdependentes, lados opostos de um único processo. O fraco desenvolvimento capitalista nas colônias foi
produto e condição do superdesenvolvimento das áreas metropolitanas, que se realizou às custas das primeiras.
A participação de várias nações no desenvolvimento do capitalismo não foi menos irregular. A Holanda e a Inglaterra
tomaram a direção no estabelecimento das formas e forças capitalistas nos séculos XVI e XVII, enquanto a América do
Norte estava ainda, em grande medida, em posse dos índios. Contudo, na fase final do capitalismo, no século XX, os
Estados Unidos superaram amplamente a Inglaterra e a Holanda. À medida que o capitalismo ia captando dentro de sua
órbita um país após o outro, aumentavam as diferenças mutuas. Esta crescente interdependência não significa que sigam
pautas idênticas ou possuam as mesmas características. Quando mais se estreitam as suas relações econômicas, surgem
profundas diferenças que os separam. O seu desenvolvimento nacional não se realiza, em muitos aspectos, ao longo de
linhas paralelas, e sim através de linhas angulares, às vezes divergentes como ângulos retos. Adquirem traços não
idênticos, mas complementares.

CAUSAS IGUAIS, EFEITOS DIFERENTES

A regra que diz que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos não é incondicional e geral. A lei só é válida
quando a história produz as mesmas condições, mas geralmente há diferenças para cada país e constantes mudanças e
intercâmbios entre eles. As mesmas causas básicas podem conduzir a resultados muito diferentes e até opostos.
Por exemplo, na primeira metade do século XIX, a Inglaterra e os EUA eram ambos governados pelas mesmas leis do
capitalismo industrial. Mas estas leis operavam sob diferentes condições nos dois países e produziram resultados muito
diferentes na agricultura. A enorme demanda da indústria britânica por algodão e alimentos baratos estimulou
poderosamente a agricultura norte-americana, ao mesmo tempo que os mesmos fatores econômicos sufocaram os
camponeses da Inglaterra. A expansão da agricultura num país e sua contração no outro foram conseqüências opostas,
mas interdependentes, das mesmas causas econômicas.
Passando do processo econômico ao intelectual, o marxista russo Plekhanov assinalava, no seu notável trabalho "Em
defesa do materialismo" (pág. 126), como o desenvolvimento desigual dos diversos elementos que compõem uma
estrutura nacional permite ao mesmo conjunto de idéias produzir um impacto social muito diferente sobre a vida filosófica.
Falando do desenvolvimento ideológico no século XVIII, Plekhanov assinalava: “O mesmo conjunto de idéias levou ao
ateísmo militante dos materialistas franceses, ao indiferentismo religioso de Hume, e à religião ‘prática’ de Kant. A razão
foi que a questão religiosa na Inglaterra, nesse tempo, não jogava o mesmo papel que na França, nem nesta como na
Alemanha. E esta diferença no significado da questão religiosa tinha suas raízes na distinta relação em que estavam as
forças sociais em cada um desses países. Similares em sua natureza, mas díspares em seu grau de desenvolvimento, os
elementos da sociedade combinavam-se de modo diferente nos distintos países europeus e conduziam, cada um deles, a
um estado de consciência muito particular, que se expressava na literatura nacional, na filosofia, na arte etc. Como
conseqüência disto, uma mesma questão pode apaixonar os franceses e deixar indiferentes os britânicos. Um mesmo
argumento pode ser considerado com respeito por um alemão”. Progressista, enquanto um francês progressista o verá
com ódio amargo ““.

PECULIARIDADES NACIONAIS

Desejaria terminar este exame do processo de desenvolvimento desigual com uma discussão do problema das
peculiaridades nacionais. Os marxistas são amiúde acusados por seus inimigos de negar, ignorar ou subestimar as
peculiaridades nacionais em favor das leis históricas universais. Não é verdade. Não é correia essa crítica, embora alguns
marxistas individualmente possam ser acusados de tais erros.
O marxismo não nega a existência e a importância das peculiaridades nacionais. Seria teoricamente estúpido e
praticamente sem valor se o fizesse, dado que as diferenças nacionais podem ser decisivas para orientar a política do
movimento operário, de uma luta nacional ou de um partido revolucionário, durante um certo período num dado país. Por
exemplo, a maior parte dos ativistas operários da Grã-Bretanha seguem o partido trabalhista. Este monopólio é uma
peculiaridade fundamental da Grã-Bretanha e do desenvolvimento político dos seus trabalhadores. Os marxistas que não
levarem em conta este fator, como chave de sua orientação organizativa, estarão violando o espírito do seu método. Há
outro exemplo remoto: na maior parte dos países coloniais, hoje em dia, as raças de cor estão lutando contra o
imperialismo pela independência nacional contra a opressão das nações brancas. Nos Estados Unidos, pelo contrário, a luta
dos negros contra seu caráter de cidadãos de segunda classe se caracteriza por não ser um movimento pela separação e
sim pela demanda de integração incondicional à vida americana, sobre bases iguais. Sem ter em conta este caráter
específico é impossível compreender as principais tendências da luta dos negros americanos na atual etapa. Longe de
rejeitar as diferenças nacionais, o marxismo é o único método histórico, a única teoria sociológica que as explica
adequadamente, demonstrando quais são suas raízes nas condições materiais de vida e considerando suas origens
históricas, desenvolvimento, desintegração e desaparecimento. As escolas burguesas de pensamento vêem as

67
peculiaridades nacionais com um critério distinto, como acidentes inexplicáveis, como produto da vontade divina ou de
características fixas e finais de um determinado povo. O marxismo as vê como um produto histórico que surge de
combinações concretas de forças e condições internacionais.
Este procedimento de combinar o geral com o particular e o abstraio com o concreto está de acordo não somente com
as exigências da ciência como também com nossos hábitos diários de raciocínio. Cada indivíduo tem uma expressão facial
diferente, o que nos permite reconhecê-lo e separá-lo dos outros. Ao mesmo tempo, compreendemos que este indivíduo
tem o mesmo gênero de olhos, ouvidos, boca, fronte e outros órgãos que o restante da raça humana. De fato, a fisionomia
particular que produz sua expressão diferente é só a manifestação fundamental de um conjunto específico dessas
estruturas e características humanas comuns. O mesmo ocorre com a vida e a fisionomia de uma dada nação.
Cada nação tem seus próprios traços característicos. Mas essas peculiaridades surgem como consequência da
modificação de leis gerais em função das condições materiais e históricas específicas. São, em última instância, a
cristalização particular de um processo universal.
Trotsky concluiu que as peculiaridades nacionais são o produto mais geral do desenvolvimento histórico desigual, seu
resultado final.

OS LIMITES DAS PECULIARIDADES NACIONAIS

Contudo, por mais profundamente assentadas que estejam estas peculiaridades na estrutura social e por mais poderosa
que seja sua influência sobre a vida nacional, elas são limitadas. Em primeiro lugar, são limitadas na ação. Não substituem
o processo superior da economia e política mundial nem podem abolir o funcionamento de suas leis.
Consideremos, por exemplo, as diferentes conseqüências políticas da crise mundial de 1929, nos EUA e Alemanha,
devidas às diferenças no contexto histórico, na estrutura social específica e na evolução política nacional. Num caso, o New
Deal de Roosevelt chegou ao poder e no outro, o fascismo de Hitler. O programa de reforma sob os auspícios democrático-
burgueses, e o programa da contra-revolução sob a fria ditadura totalitária, foram métodos totalmente diferentes
utilizados pelas respectivas classes capitalistas para salvar a pele.
Este contraste entre as formas capitalistas americana e alemã de autopreservação foi explorada até a exaustão pêlos
apologistas do capitalismo norte-americano, os quais o atribuíram ao espírito democrático inerente à nação americana e
aos seus governantes capitalistas. Na realidade, a diferença se deveu à maior riqueza e recursos do imperialismo dos EUA,
por um lado, e à imaturidade das relações de classe e conflitos, por outro. Contudo, na etapa seguinte e antes que
sobreviesse a decadência, o processo do imperialismo levou ambas as potências a uma segunda guerra mundial, para
determinar quem dominaria o mercado mundial. Apesar de significativas diferenças em seus regimes políticos internos,
ambas chegaram ao mesmo destino. Continuaram subordinadas às mesmas leis fundamentais do imperialismo capitalista
e não puderam impedir seu funcionamento nem evitar suas conseqüências.
Em segundo lugar, as peculiaridades nacionais têm limites historicamente definidos. Não estão fixadas para sempre
nem têm um destino absolutamente determinado. Condições históricas as geram e as suplantam; novas condições
históricas podem alterá-las, eliminá-las e ainda transformá-las em seus opostos.
No século XIX, a Rússia era o país mais reacionário da Europa e da política mundial; no século XX transforma-se no
mais revolucionário. Em meados do século XIX os Estados Unidos eram a nação mais revolucionária e progressista; em
meados do século XX, substituíram a Rússia como fortaleza da contra-revolução mundial. Mas este papel tampouco pode
ser eterno, como assinalaremos no próximo capítulo, onde estudaremos o caráter e conseqüências do desenvolvimento
desigual e combinado.

O DESENVOLVIMENTO COMBINADO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

Analisaremos agora o segundo aspecto da lei do desenvolvimento desigual e combinado. Seu nome indica de qual lei
geral é ela uma expressão particular, ou seja, a lei da lógica dialética chamada "lei da interpenetração dos opostos". Os
dois processos - desigualdade e combinação - que estão unidos nesta formulação representam dois aspectos ou etapas da
realidade opostos e, não obstante, integralmente relacionados e interpenetrados.
A lei do desenvolvimento combinado parte do reconhecimento da desigualdade nas proporções de desenvolvimento de
vários fenômenos das mudanças históricas. A disparidade no desenvolvimento técnico e social, e a combinação fortuita de
elementos, tendências e movimentos pertencentes a diferentes etapas da organização social, dão a base para o
surgimento de algo novo e de qualidade superior.
Esta lei permite-nos observar como surge a nova qualidade. Se a sociedade não se desenvolvesse num caminho
diferencial, ou seja, através do surgimento de diferenças, às vezes tão agudas que se tomam contraditórias, não haveria
possibilidade de combinação e integração de fenômenos contraditórios. Contudo, a primeira fase do processo evolutivo -
desigualdade - é o pré-requisito indispensável para a segunda fase: a combinação de características que pertencem a
diferentes etapas da vida social nas distintas formações sociais, desviando-se dos padrões deduzidos abstratamente ou
tipos "normais".
Esta combinação surge como a necessária superação da desigualdade pré-existente. Podemos ver como ocorrem quase
sempre juntas e ligadas na simples lei da combinação e desigualdade do desenvolvimento. Partindo do fato dos níveis
diversos de desenvolvimento que resultam da progressão desigual dos distintos aspectos da sociedade, poderemos agora
analisar a próxima etapa e a necessária conseqüência desta situação: a sua combinação.

FUSÃO DE DIFERENTES FATORES HISTÓRICOS

Antes de tudo, devemos perguntar-nos o que significa combinado. Pudemos ver como características que pertencem a
uma etapa da evolução se ligam a outras que são essencialmente próprias de uma etapa mais elevada. A igreja católica,
68
cujo centro está no Vaticano, é uma característica instituição feudal. Na atualidade, o papa usa rádio e televisão -
invenções do século XX - para disseminar a doutrina da igreja. Isto conduz a uma segunda questão: como se combinam as
diferentes características? Aqui, as combinações dos metais nos proporcionam uma analogia útil. O bronze, que joga um
grande papel no desenvolvimento das mais antigas construções de ferramentas, que deu seu nome a toda uma etapa do
desenvolvimento histórico, compôs-se de dois metais elementares, o cobre e o estanho, misturados em proporções
específicas. A sua fusão produz uma liga com propriedades importantes que diferem de ambos os metais que o
constituem. Algo semelhante ocorre na história quando se unem elementos que pertencem a diferentes etapas da
evolução social. Esta fusão dá origem a um novo fenômeno, com suas próprias características especiais. O período colonial
da história norte-americana une-se à selvageria e barbárie, quando a civilização européia mudava do feudalismo para o
capitalismo. Deste modo, proporcionou um magnífico caldo de cultivo para as combinações e deu o mais instrutivo campo
para seu estudo. Quase todos os gêneros de relações sociais conhecidos, desde a selvageria às companhias por ações,
podiam ser encontradas no novo mundo durante o período colonial. Várias colônias, como Virgínia e Carolina do Norte e do
Sul, foram originalmente civilizadas por empresas capitalistas por ações, cujas licenças haviam sido garantidas pela Coroa.
As formas mais avançadas de capitalismo regiam a empresa acionária que entrou em contato com os índios que viviam
ainda sob primitivas condições tribais.
As formas pré-capitalistas de vida com as que depararam foram combinadas num grau ou outro com as características
fundamentais da civilização burguesa. Tribos indígenas, por exemplo, foram anexadas ao mercado mundial através do
comércio de peles; e é verdade que os índios se tornaram, em certa medida, civilizados. Por outro lado, os colonos
brancos europeus, caçadores, lenhadores e pioneiros da agricultura barbarizaram-se parcialmente por terem sobrevivido
no deserto das planícies e nas montanhas dos campos "virgens". Contudo, o lenhador europeu que penetrava nos desertos
da América, com seu rifle e sua enxada de ferro, e também com sua concepção e hábitos de civilização, foi muito diferente
do índio Pele-Vermelha, ainda que muitas das atividades da sociedade bárbara do lenhador também lhe correspondessem.
Em sua obra sobre as forças sociais na história norte-americana, A. M. Simon, um dos principais historiadores
socialistas, escreveu: "O curso da evolução seguiu em cada colônia uma linha de desenvolvimento muito parecida à que a
raça havia seguido" (pág. 30-31). No começo - assinalou - houve um comunismo primitivo. Depois, uma pequena
produção individual, e assim prosseguiu até chegar ao capitalismo.
Contudo, a concepção segundo a qual a colônia americana, ou algumas delas, substancialmente repetiram as
seqüências das etapas que as sociedades avançadas haviam atravessado antes delas, é excessivamente esquemática e
ignora o principal ponto relativo ao seu desenvolvimento e estrutura. A peculiaridade mais significativa da evolução das
colônias britânicas na América deriva do fato de que todas as formas de organização e as forças impulsionadoras
pertencentes às primeiras etapas do desenvolvimento social, desde a selvageria e igualmente no caso da escravidão,
foram incorporadas e condicionadas pelo sistema em expansão do capitalismo internacional. Não há, no solo americano,
repetição mecânica das etapas historicamente superadas. Pelo contrário, a vida colonial testemunha uma mescla dialética
de todos esses variados elementos, da qual resultam deformações sociais combinadas de um tipo novo e especial. A
escravidão nas colônias americanas foi muito distinta da escravidão na Grécia clássica e em Roma. A escravidão norte-
americana foi uma escravidão burguesifícada, não se tratando apenas de um braço subordinado do mercado capitalista
mundial, senão que cada ramificação dessa fusão de escravidão e capitalismo resultou na aparição de traficantes de
escravos entre os índios Creek, no Sul. Poder-se-ia encontrar algo mais contraditório que índios comunistas, agora
proprietários de escravos, vendendo seu produto num mercado burguês?

DIALÉTICA DA COMBINAÇÃO

O resultado desta fusão de diferentes etapas ou elementos de progresso histórico é, por conseqüência, uma mescla ou
ligação particular de coisas. Na união de elementos diferentes e opostos, a natureza dialética da história manifesta-se por
si mesma mais poderosa e proeminente. Aqui a contradição simples, óbvia, flagrante, predomina.
A história prega peças a todas as formas rígidas e às rotinas fixas. Surgem todos os gêneros de desenvolvimentos
paradoxais que confundem e deixam perplexas as mentes limitadas e formalizadas.
Como um importante exemplo disto, permita-nos considerar a natureza do stalinismo. Na Rússia atual, a mais
avançada forma de propriedade, a propriedade nacionalizada, e o mais eficiente modo de organização industrial, a
economia planificada, ambas logradas através da revolução proletária de 1917, uniram-se numa só massa com o tipo mais
brutal de tirania, criada por uma contra-revolução política da burocracia soviética. Os fundamentos econômicos do regime
stalinista historicamente pertencem à era socialista do futuro. Contudo, este fundamento econômico está unido a uma
superestrutura política que mostra os aspectos mais malignos das ditaduras de classe do passado. Não devemos admirar-
nos com o fato de que este fenômeno extraordinariamente contraditório tenha confundido muita gente e as tenha levado
pelo mau caminho.
O desenvolvimento desigual e combinado apresenta-se-nos como uma mescla particular de elementos atrasados com
os fatores mais modernos. Muitos católicos devotos levam imagens em seus canos, supondo que os protegerão contra os
acidentes. Este costume combina o fetichismo dos crédulos selvagens com o produto da indústria automobilística, uma das
indústrias mais automatizadas, mais avançadas do mundo moderno.
Por outro lado, estas anomalias são mais evidentes nos países mais atrasados. Existem curiosidades como haréns com
ar condicionado!
O desenvolvimento das nações historicamente atrasadas leva necessariamente a uma combinação peculiar de
diferentes etapas do desenvolvimento histórico", escreveu Trotsky na "História da Revolução Russa" (pág. 5).
Carlton S. Coone escreveu: “... Há, todavia regiões marginais onde a difusão cultural é desigual, onde simples
caçadores da Idade da Pedra surpreendentemente se enfrentam com estranhos caçadores com rifles, onde trabalhadores
neolíticos estão mudando suas enxadas de pedra por outras de aço e seus potes de barro por vasilhas de lata para
carregar água, onde orgulhosos cidadãos dos antigos impérios costumavam receber as notícias algumas semanas depois

69
das caravanas de camelos, ouvem agora a propaganda através de rádios públicas. E na calçada de ladrilhos azuis e
brancos das cidades, o claro apelo dos muçulmanos, incitando a fé do crente, será substituído um dia por uma caixa
metálica pendurada no minarete. Fora, no aeroporto, os peregrinos dos lugares santos saltam diretamente do lombo de
seus camelos aos assentos do DC-4. Estas mudanças na tecnologia levam ao nascimento de novas instituições nestes
lugares, como em qualquer outro, mas o recém-nascido geralmente é uma criatura não familiar, que não se recorda nem
dos parentes próximos nem dos distantes, superando a ambos". “The History of Man" (pág. 113-114).
Na África atual, entre os kikuyos do Quênia, como também entre os povos da Costa do Ouro, as antigas ligações e
costumes ajudam a fortalecer sua solidariedade na luta pelo avanço social e pela independência nacional contra o
imperialismo britânico. No movimento nacionalista de Nkrumah, o partido parlamentar nacional está ligado aos sindicatos
e ao tribalismo - os três pertencem a diferentes etapas da história social.
A mescla de elementos atrasados com os mais modernos fatores pode ser vista quando comparamos a China moderna
com os Estados Unidos da América. Atualmente, muitos camponeses chineses de pequenas aldeias têm retratos de Marx e
Lênin em suas paredes e inspiram-se em suas idéias. O operário norte-americano médio vive em cidades mais modernas e
tem, em contraste, pinturas de Cristo ou fotografias de Eisenhower ou do Papa sobre suas paredes pré-fabricadas.
Contudo, os camponeses chineses não têm água corrente, estradas asfaltadas, automóveis, rádios ou televisão, como têm
os operários norte-americanos.
Desta maneira, ainda que os Estados Unidos e a sua classe operaria tenham progredido mais que a China em seu
desenvolvimento industrial e padrão de vida e de cultura, em certos aspectos os camponeses chineses superaram o
operário norte-americano. "A dialética histórica não conhece nada semelhante ao atraso absoluto ou ao progresso
quimicamente puro" como assinalou Trotsky. (...).

OS SALTOS PROGRESSIVOS NA HISTÓRIA

A manifestação mais importante da interação do desenvolvimento desigual e combinado é o surgimento de "saltos" no


fluxo histórico. Os maiores saltos tornam-se possíveis pela coexistência de povos de diferentes níveis de organização
social. No mundo atual, estas organizações sociais variam muito, desde a selvageria até o verdadeiro limiar do socialismo.
Na América do Norte, enquanto os esquimós no Ártico e os índios Seri na Baixa Califórnia vivem ainda na selvageria, os
banqueiros de Nova Iorque e os operários de Detroit vivem na mais elevada etapa do capitalismo monopolista. Os "saltos"
históricos se tomam inevitáveis porque os setores atrasados da sociedade enfrentam tarefas que só podem ser resolvidas
com a utilização dos métodos mais modernos. Sob a pressão das condições externas, vêem-se obrigados a saltar ou pre-
cipitar etapas da evolução que originalmente requerem um período histórico inteiro para desenvolver as suas
potencialidades.
Quanto mais amplas são as diferenças do desenvolvimento e maior o número de etapas presentes num dado período,
mais dramáticas são as possíveis combinações de condições e forças, e mais rápida a natureza dos saltos. Algumas
combinações produzem extraordinárias erupções e rápidos movimentos na história. O transporte fez evoluir lentamente a
locomoção humana e animal, desde os veículos de rodas até o trem, os automóveis e aviões. Recentemente, contudo, os
povos da América do Sul e da Sibéria passaram diretamente, e de um só salto, do animal ao uso de aviões.
Tribo, nação e classe são capazes de comprimir etapas ou de saltar sobre elas, assimilando as conquistas dos povos
mais avançados. Usam isto como uma alavanca para se elevarem sobre as etapas intermediárias e ultrapassam obstáculos
de um só salto. Mas não podem fazer nada até que os países pioneiros na vanguarda do gênero humano tenham
previamente aberto o caminho, pré-fabricando as condições materiais. Outros povos preparam os meios e modelos para,
uma vez maduros, adaptá-los às suas condições peculiares.
A indústria soviética foi capaz de progredir tão rápido porque, entre outras razões, pôde importar as técnicas e
maquinários do Ocidente. Agora também a China pode marchar em um ritmo mais acelerado em sua industrialização
porque se baseia não somente nas conquistas técnicas dos países capitalistas avançados, como também em métodos de
planificação da economia soviética.
Em seus esforços para superar a Europa Ocidental, os colonizadores da costa do Atlântico Norte passaram através da
"barbárie selvagem", saltando virtualmente por cima do feudalismo, implantando e extirpando a escravidão, constituindo
grandes povoações e cidades sobre uma base capitalista. Isto se fez em ritmo acelerado. Aos povos europeus foram
necessários três mil anos para saltar da etapa superior da barbárie da Grécia homérica à Inglaterra vitoriosa da revolução
burguesa de 1849. A América do Norte cobriu as mesmas transformações em trezentos anos, ou seja, a um ritmo de
desenvolvimento dez vezes mais rápido. Mas isto foi possível pelo fato de que a América do Norte pôde beneficiar-se com
as aquisições prévias da Europa, combinando-as com a impetuosa expansão do mercado capitalista em todos os cantos do
globo.
Ao longo desta aceleração e compressão do desenvolvimento social foi-se acelerando também o tempo de
desenvolvimento dos acontecimentos revolucionários. O povo britânico tardou oito séculos desde o começo do feudalismo
no século IX, até a sua revolução burguesa vitoriosa no século XVII. Os colonos norte-americanos somente em cento e
setenta e cinco anos passaram de seus primeiros assentamentos no século XVII à sua revolução vitoriosa no último quarto
do século XVIII.
Nestes saltos históricos as etapas do desenvolvimento são algumas vezes comprimidas e outras omitidas, o que
depende das condições e das forças particulares. Nas colônias norte-americanas, por exemplo, o feudalismo - que
floresceu na Europa e na Ásia por muitos séculos - mal conseguiu existir. As instituições características do feudalismo
(feudo, servos, monarquia, a igreja estabelecida e as corporações medievais) não tiveram um ambiente favorável e foram
comprimidas entre a escravidão comercial por um lado, e a sociedade burguesa enxertada por outro. Paradoxalmente, ao
mesmo tempo em que o feudalismo ia sendo atrofiado e estrangulado nas colónias norte-americanas, adquiria uma
vigorosa expansão no outro lado do mundo, na Rússia.

70
REVERSÕES HISTÓRICAS

A história tem as suas reversões, assim como seus movimentos para frente, seus períodos de reação, formas infantis e
características caducas próprias de etapas primitivas de desenvolvimento. Podem unir-se com estruturas avançadas para
gerar formações extremamente regressivas e impedir o avanço social. Um exemplo primário de tal combinação regressiva
foi a escravidão na América do Norte, onde um modo de propriedade e uma forma de produção anacrônica, pertencente à
infância da civilização se inseriu num ambiente burguês que pertencia a uma sociedade de classe madura.
A recente história política familiarizou-nos com os exemplos do fascismo e do stalinismo, que são fenômenos históricos
do século XX simétricos, ainda que não idênticos. Ambos representam reversões de formas de governos democráticos pré-
existentes que tinham bases sociais completamente diferentes. O fascismo foi o destruidor e substituto da democracia
burguesa no período final da decadência e destruição do imperialismo. O stalinismo foi o destruidor e substituto da
democracia operaria da Rússia revolucionária no período inicial da revolução socialista internacional.
Desta forma, encontramos misturadas duas etapas no movimento dialético da sociedade. Primeiro, algumas partes do
gênero humano e certos elementos da sociedade movem-se mais rapidamente e desenvolvem-se antes que outros. Mais
tarde, sob o choque de forças externas produz-se um retrocesso, ou uma estagnação, em relação ao ritmo de progresso
de seus precursores, pela combinação das ultimas inovações com velhos modos de existência.

A DESINTEGRAÇÃO DAS COMBINAÇÕES

Mas a história não se detém neste ponto. Cada síntese única surgida do desenvolvimento desigual e combinado
engendra em si mesma posteriores crescimentos e mudanças, as quais, por sua vez, podem levar a uma eventual
desintegração e destruição da síntese.
Uma formação combinada é um amálgama de elementos derivados de diferentes níveis de desenvolvimento social. A
sua estrutura interna é, portanto, altamente contraditória. A oposição dos seus pólos constituintes não só provoca
instabilidade na formação, senão que leva diretamente a posteriores desenvolvimentos. Mais claramente que a qualquer
outra formação, a luta dos opostos caracteriza o curso de vida de uma formação combinada.
Há dois tipos principais de combinação. Em um caso, o produto de uma cultura avançada é absorvido na estrutura de
um organismo social arcaico. Em outro, aspectos de uma ordem primitiva são incorporados a um organismo social em
grau mais elevado de desenvolvimento.
O efeito que produz a assimilação de elementos mais modernos numa estrutura depende de muitas circunstâncias. Por
exemplo, os índios puderam substituir a enxada de pedra pela de ferro sem deslocamentos fundamentais da sua ordem
social, porque esta mudança significou apenas uma dependência mínima da civilização branca, da qual a enxada de ferro
foi tomada. A introdução do cavalo mudou consideravelmente a vida dos índios das pradarias, ao estender o alcance de
seus campos de caça e de suas habilidades guerreiras. Contudo, o cavalo não transformou sua relação tribal básica. Mas,
em contrapartida, a participação num nascente comércio e a penetração da moeda teve conseqüências revolucionárias
sobre os índios destruindo seu sistema tribal, opondo os interesses privados aos costumes comunitários, lançando uma
tribo contra outra e subordinando os novos comerciantes e caçadores índios ao mercado mundial.
Sob certas condições históricas a introdução de novas coisas pode, também, prolongar por algum tempo a vida das
instituições mais arcaicas. A entrada dos grandes consórcios de petróleo capitalistas no Oriente Médio fortaleceu
temporariamente os sheiks, dando-lhes enormes quantidades de riquezas. Mas em longo prazo, a invasão de técnicos e
idéias modernas não pode ajudar, e sim minar os velhos regimes tribais, porque rompem as condições sobre as quais eles
se apoiam e criam novas forças que se lhes opõe para substituí-los.
Um poder primitivo pode afirmar-se rapidamente sobre um mais moderno, ganhando renovada vitalidade, e pode
também aparecer por um certo período como superior ao outro. Mas o poder menos desenvolvido levará uma existência
essencialmente parasita e não poderá sustentar-se indefinidamente às expensas do mais desenvolvido. Falta-lhe adequado
terreno e atmosfera para seu crescimento, enquanto as instituições mais desenvolvidas não só são superiores por
natureza, como além disso, podem contar com um favorável ambiente para a sua expansão. (...).

71

Vous aimerez peut-être aussi