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RECÔNDITOS DO
MUNDO FEMININO!
Marina Maluf e
Maria Lúcia Mott
Sozinha pela rua, com as mãos na direção de seu auto; sozi-
nha no passeio e no dancing da moda. É a moça de hoje que
já não precisa da mamãe vigilante, nem a senhora de compa-
nhia [... ] Como os cabelos, como os vestidos, como o rosto, a
moça de hoje já fixou o espírito, fê-lo mais livre [... ] fê-lo apto
e forte [... ] Nas repartições públicas, no balcão, na fábrica ou
nas grandes casas, ela sabe estar sozinha pela vida [...) Sozi-
nha: para as mãos, já não faz falta o embrulhinho cúmplice e
dissimulador. Já sabe o que fazer com as mãos, que são igual-
mente adestradas para empunhar a direção de um auto ou
para mover-se sobre o teclado de uma máquina de escrever? /. Como foi educada a mãe -
Como é educada a filha. ( /921)
A
s mudanças no comportamento feminino ocorridas
ao longo das três primeiras décadas deste século inco- que não seja o seu pai, o seu irmão ou o seu marido". Caso
modaram conservadores, deixaram perplexos os de- contrário, iria expor-se à maledicência, comprometendo não
savisados, estimularam debates entre os mais progressistas. só a sua honra como a do marido, conforme se lia na Revista
Afinal, era muito recente a presença das moças das camadas Feminina, importante publicação do período.'
médias e altas, as chamadas "de boa família",que se aventura- O ritmo das mudanças ocorridas, considerado por mui-
vam sozinhas pelas ruas da cidade para abastecer a casa ou tos como alarmante, veio acompanhado de certa ansiedade
para tudo o que se fizessenecessário. Dada a ênfase com que por parte dos segmentos mais conservadores da sociedade,já
os contemporâneos interpretaram tais mudanças, parecia ter tomados pela vertigem das grandes transformações que o
soado um alarme. país vinha vivendo, sobretudo a partir do último quartel do
século XIX.4 Não faltaram vozes nesse começo de século para
Se as novas maneiras de se comportar tinham se tornado
entoar publicamente um brado feminino de inconformismo,
corriqueiras em menos de duas décadas, a ousadia, no entan-
tocado pela imagem depreciativa com que as mulheres eram
to, cobrava seu preço: que a senhora soubesse conservar um
vistas e se viam e, sobretudo, angustiado com a representação
"ar modesto e uma atitude séria, que a todos imponha o
social que lhes restringia tanto as atividades econômicas
devido respeito': E mais: que a mulher sensata, principal-
370 • :1I',T,'f:li> DA VIDA PRIVADA NO BRP,,11 ";
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2. Na virada do século a moda eram
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ferro de frisar. Duas décadas depois, «';"""""""
05 cortes indicavam que as mulheres
não mais se contentavam com com o homem, o nosso déspota, o nosso tirano'." "Sejamos 3, 4, 5. 6. Em 1918, homells
a amiga imagem de "frequentadoras mulheres",proclamava de Minas Gerais uma colaboradora da e mulheres viveriam uma revolllção
do teatro e dos jantares" Estavam nos costumes:a ginástica. Luis
Revista Feminina, em 1920.Reivindicando igualdade de for- Edmu'ldo Costa lembra que
esculpindo uma silhueta de mulher
moderna. Em dezembro de 1924
mação para ambos os sexos,chamava a atenção das leitoras os brasileirosque viram 'tascer
a Revista Feminina já indagava para as mulheres "vítimas do preconceito",que viviam fecha- a República eram" uma geração
se o cabelo curto não seria "um das no lar, arrastando "uma existência monótona, insípida, de fracos e enfezados. de lâ'lgllidos
sintoma da emancipação do belo e raquíticos,sempre enrolada
despida de ideais",monetariamente algemadas aos maridos. em grossoscache-nez de lã.
sexo ': Devia ser, já que a própria
Era nas cidades, as quais trocavam sua aparência paro- a galocha no pé. um !(uarda-cltllva
revista identijicava, pelo corte
dos cabelos, a escultora, a literata, quial por uma atmosfera cosmopolita e metropolitana, que de cabo de volta debaixo do braço
a estudante, a datilografa, se desenrolavam as mudanças mais visíveis.Através de um I...J Condenava-se sumariamente
a sportswoman. (Cabcllos curtos, processo diagnosticado por vários críticos temerosos como a ginástica. Considerava-se perigoso
1924) o sport, por mais brando que fosse".
imperfeito e desorganizado,a nova paisagem urbana, embora Foram necessáriasmenos de três
ainda guardasse muito da tradição, era povoada por uma décadaspara que a Revista
quanto as políticas. "Entre nós",escreveu em 1921a articulis- população nova e heterogênea, composta de imigrantes, de Feminina alardeasse as mudanças:
ta Iracema, "a mulher só exerce sobre o homem o prestígio egressos da escravidão e de representantes das elites que se "Nossofim é a beleza. E a beleza
só pode coexistir com a saúde, com
do seu sexo. Quando o homem não está mais sob o sortilégio mudavam do campo para as cidades. a robustez e com a força". (A Belleza
exercido pelos encantos da mulher, esta deixa de ocupar-lhe Diante da variedade de questionamentos, experiências e Feminina e a Cultura Phvsica, 1918)
o espírito, de interessá-lo." linguagens tão novas que as cidades passaram a sintetizar,
E quais seriam nesses tempos os sinceros desejos da intelectuais de ambos os sexos elegeram como os legítimos
mulher?, indagava a escritora Chrysantheme (pseudônimo responsáveis pela suposta corrosão da ordem social a quebra
de Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos) à sua de costumes, as inovações nas rotinas das mulheres e, princi-
personagem, que lhe respondia, aborrecida com o tom prote- palmente, as modificações nas relações entre homens e mu-
tor e de disfarçado desdém dos homens superiores: "Nós lheres.' Conjugaram-se esforços para disciplinar toda e qual-
queremos a liberdade [...] ou pelo menos a sua igualdade quer iniciativa que pudesseser incerpretada como ameaçadora
372 • HI\TC':IA DA VIDA PRIVAOA NO BRASil J
• 373
RtC()HUl1ü~ DO MLJNl)O ffMIt -,mp)
assumisse a direção de modo a "harmonizar as relações da 13, 14, 15. Com a mulher dá-se
vida conjugal': As razões da hierarquia e das restrições im- o extremo oposto: a figura feminina
exerce as tarefas domésticas
postas à mulher não deveriam ser atribuídas à inferioridade
com wn permanente sorriso no rosto
física e mental, uma vez que homens e mulheres são dotados - e nunca se vê no traço
de capacidade equivalente. O condicionante, assinalava o ju- do desenhista uma só pon ta
rista, era a diversidade das funções que os consortes eram de ironia. (Sem título, 1915)
chamados a exercer "junto à sociedade e na família'."
O professor Washington de Barros Monteiro, ao comen-
tar a legislação de 1916, reiterava em outras palavras a supre-
macia masculina, mesmo tendo transcorrido quase meio sé-
culo: "Outrora dizia-se que essa preponderância do homem
era de Direito Natural; posteriormente procurou justificá-la
com a fragilidade da mulher", escreveu o jurista. "Moderna-
mente, porém, com muito acerto afirma-se que ao marido
12. A imprensa se revelava compete a chefia da sociedade conjugal pela necessidade de
implacável com a emancipação haver quem lhe assuma a direção e também por ser ele quem,
feminina. Quando executado
pelo sexo e pela profissão, mais apto se acha para receber a
por um homem, o trabalho
doméstico é pintado como algo investidura,">
duro e penoso - e o personagem O Código Civil de 1916 interpretou o modo como cada
que se submete a ele é tratado um dos cônjuges deveria ser apresentado socialmente. Um
como ridículo. (Sem título, 1926) conjunto de normas, deveres e obrigações, com seu correlato
inibidor e corretivo, foi formalmente estabelecido para regrar
o meu avô retirou a cinta da cintura e espancou-a. o vínculo conjugal, a fim de assegurar a ordem familiar. A
Dizia: cada representante da sociedade matrimonial conferiu-se um
atributo essencial. Assim, se ao marido cabia prover a manu-
- É a última vez que a senhora vai fazer compras
sem o meu consentimento. Quando quiser sair, peça-me tenção da família, à mulher restava a identidade social como
permissão. Quem manda na senhora sou eu! Se a senho- esposa e mãe. A ele, a identidade pública; a ela, a doméstica.
ra não sabe obedecer, vai ernbora.P À figura masculina atribuíram-se papéis, poderes e prerroga-
tivas vistos como superiores aos destinados à mulher. Deli-
Ao comentar o Código Civil no ano de 1917, Clóvis neava-se com maior nitidez a oposição entre esferas pública e
Beviláqua observou que a razão de se dar ao homem a chefia privada, base necessária para que a mulher se torne mulher e
da família se devia unicamente à necessidade de haver quem o homem se torne homem, ao mesmo tempo que fornece os
1
380 • IIISTÓ"A DA VIDA PRIVADA NO BRASil :J
A ,-
":'1' ~.
.~ foram dotadas de poder e de valor. O trabalho era o que de
:~) fato conferia poder ao marido, assim como lhe outorgava
1;}- pleno direito no âmbito familiar, ao mesmo tempo que o
I~ÂILIH~OR~.:;",~:::":;:',;:,'''
A"NO XXVI '.",/
N l: \1. I .1 I R tornava responsável, ainda que de modo formal, pela manu-
tenção, assistência e proteção dos seus, Ao ser assim conside-
rado, o marido desempenhava função de valor positivo e do-
QUANDO AS MULHERES FOREM ELEITAS minante na sociedade conjugal. Essa crença foi de tal modo
interiorizada pela família e pela sociedade que o descumpri-
mento dessa atribuição por parte do marido era tomado pela
mulher como falha, da mesma forma que fazer comentários
sobre os insucessos do marido fora dos muros estritamente
conjugais poderia ser razão suficiente para explosões de vio-
lência, uma vez que quebrar o silêncio sobre o assunto colo-
cava sob forte ameaça a representação masculina dentro e
fora de casa."
A repercussão nos sentimentos masculinos diante da
impossibilidade de ser o único provedor da família, de acor-
do com os padrões tradicionais, foi observada também por
Rosa Maria Barbosa de Araújo, na sua pesquisa sobre o Rio
de Janeiro das primeiras décadas do século. Alguns maridos
16. "Pode-se, acaso, conceber o anjo chegavam ao desespero e cometiam suicídio, "justificando o
do lar transformado num desses ato pela derrota moral de não cumprir seu dever"," Isso leva-
energúmenos de partido? Pode-se
va a se considerar desonrosa a alternância ou complementa-
conceber esse ser delicado e sensível
à controvérsia, à injúria, à calúnia?';
ridade do trabalho remunerado dos cônjuges para enfrentar
indagava a Revista Feminina. os custos da sobrevivência familiar, pois acreditava-se que
A divinização da mulher entrava feria tanto a identidade social desejável da mulher quanto a
em choque com a campanha do homem.
que agitou o puis nos anos 20:
No editorial de outubro de 1918 da Revista Feminina,
a aspiração da mulher à cidadania
- votar e ser votada. Mas não Ana Rita Malheiros, como vimos, pseudônimo de Cláudio de
faltavam publicações, corno Souza, chegou a responsabilizar o homem moderno pelo
O Malho, a tratar com ironia os dois avanço do feminismo. Transformado num "quase invalidado"
direitos reivindicados: o de votar {/III diQ dt so:ssiio NO plt,lamcN'o do t"hlfl1 porque incapaz de produzir "o suficiente para o sustento de
e O de ser votada e eleita. (Quando
seu lar", o marido compeliu a mulher ao trabalho, quando, na
as mulheres forem eleitas, /927)
verdade, ela preferiria, segundo o articulista, "continuar tran-
qüila no seu canto de sombra': ocupada com os "encargos da
elementos de identificação do lugar do homem e da mulher direção do lar".
em todos os aspectos da vida humana. Não se pode esquecer ainda que a contrapartida do ma-
As desigualdades entre as funções desempenhadas por rido provedor era a mulher responsável pela honra familiar,
homens e mulheres, que os identificaram ou com a rua ou Ou seja, em troca do sustento garantido, a mulher casada
com a casa, não vieram desacompanhadas de uma valoriza- deveria se distinguir socialmente, respeitando os ditames da
ção cultural. Isto é, as atividades masculinas foram mais re- moral e dos bons costumes, evitando assim incorrer em injú-
conhecidas que as exercidas pelas mulheres, razão pela qual
..
/7. Nos recônditos do mundo
feminino a promessa é de [clicidade.
Como se o casamento por amor,
a realização da mais sagrada missão
da maternidade e o cumprimento
regrado dos deveres da boa dona CONFf:CCÃO DE ENXOVAES FARA NOIVi\S
de casa fossem o passaporte para
o sonhado "lar doce lar': Com 'I Lençócs .1.' ),nh() puro t"lritado~ cueu b~.oh~s .:Ibert,n ( ra-
de Almeida apontou: "Uma só alma " Iii Fronhas de lil,ho puro, enfeitadas COm bainhJs aber t .. s e ,~.
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que está a seus pés, obediente ao seu ti Toalllas para mesa sendo: :I de linhu pum e /2 t.le a1iodão
rcsooo
gesto': Até mesmo as portas abrenHe superiorp:)'
N Guardanapos para janiar, sendo 11 de iinho ~'lIro e I<!de ..I.
"a 'luem ele quer, fecham-se a quem ria grave, definida como o procedimento que "consiste em godiiosuperiorpor
lhe convém': (Familia italiana no
salão, J 929) ofensa à honra, respeitabilidade ou dignidade do cônjuge"." I Gn.unição para cM, de linho pUfO (0'" ban~ de cor C bzi
1OIfOO
Isso significa dizer que o julgamento do comportamento do 18 Pannos para copa, linho vuperior ~ __~~ _~ __~,2'i~
lMJOOO
homens e mulheres dentro de uma moldura estritamente 945WOO 18. Possívelgarantia de uscensâo
normativa. Homens e mulheres, maridos e esposas passaram 520S!}W
social, um bom casamento também
a se defrontar não só com uma noção mais delimitada dos 10lill ~~ podia gerar bons negócios. Não
papéis sociais atribuídos a cada sexo mas, sobretudo, com faltava quem quisesse tirar proveito
disso: como "livrar-se do aperto"
uma rigidez provavelmente desconhecida até então em suas Wagner Schâdlich & Coo ao fazer face aos custos dos enxovaisi
experiências cotidianas. nossos Enxorces paro
Muito simples: tomar dinheiro
Iloíuos
Se uma coisa era o rigor da lei, outra coisa podia aconte- RUA DIREITA N. 18
emprestado com um dos tIl'útos
cer na intimidade de alguns lares. Foi uma dessas situações "capitalistas" da época. (Confecção
que o escritor paulista Alcântara Machado construiu em seu de Enxovais para Noivas, 1917)
tão, "conversou com o advogado, estabeleceu os quinhões ter a relação entre homens e mulheres em um vínculo disci-
[...] e, concluído () inventário, passou a tomar conta de todos plinado, ou mesmo harmonioso, de modo a tornar segura a
os negócios, do pai inclusive,'?" reprodução da ordem e afastar os riscos que ameaçavamde-
sarranjar os planos da organização doméstica. O menor sinal
A PEDAGOGIA DO CASAMENTO de flexibilizaçãona divisão sexual das funções no interior da
família era repercutido pelos conservadores e reformistas
Cenas de um casamento. Antes de perguntar ao noivo e à como uma ameaçadora vaga modernizante. Contra os "sur-
noiva se eles de fato querem unir-se pelos sagrados laços do tos grandiosos do progresso" que faziam "oscilar o mundo",
matrimônio, o oficiante faz uma prudente advertência ao alertavam eles, "sejamos como a árvore poderosa arraigada
homem: "Se o senhor quer se casar com a senhora, devo ao solo, imutável, idêntica a ela mesma",procuremos no "lar
preveni-lo de que ela, como todas as demais mulheres, tem o ser estávelque nenhum acontecimento pode abalar"," Rosa
um dia ou mais de nervos por mês. Ao unir seus destinos à Maria Barbosa de Araújo acredita que no caso do Rio de
dona de seus mais caros sonhos, o senhor 'deverá comprome- Janeiro prevaleciauma dupla moral, responsávelpelas ruptu-
ter-se a suportá-Ia com paciência nesses dias". ras do equilíbrio e pelas explosões de conflitos dentro do lar,
Antes mesmo da anuência do noivo, ele acautela a mu- muito presentes no período. Alguns fatores precisam ser con-
lher: "Se a senhora está decididamente resolvida a casar-se, siderados, sublinha a autora: primeiro, a discrepância entre a
advirto-a, para sua segurança futura, de que o senhor, como expectativa de uma divisão rigorosa das esferas de atuação
todos os homens, poderá ter acessos de loucura transitória. entre os cônjuges e a prática cotidiana; segundo, um sistema
Ou, digamos, de pronunciado mau humor. Tal estado costu- rígido de valores que exigia coerência de comportamentos,
ma durar pouco. Quase nunca excede a um dia, e é muito tanto na esfera doméstica quanto fora dela, algo bastante di-
raro que se repita por mais de três a quatro vezes por semana. fícil num período de urbanização e industrialização crescen-
Fica a noiva avisada de que, para contrabalançar seu dia de tes, as quais convocavamos indivíduos e a família para novas
nervos, terá que suportar o dobro em peso e medida, por formas de associaçãoe lazer,ao mesmo tempo que ofereciam
parte de seu marido, que é o rei da criação e o chefe da outras oportunidades, ainda que desiguais, de trabalho."
família". As inovaçõestrazidas pela tal "vida moderna" povoavam
A cena imaginária, que no final do século xx pode soar as páginas dos mais diferentes tipos de literatura, o que por si
como uma caricatura anedótica das relações entre marido e só indicava um forte movimento em prol da defesade deter-
mulher, está expressamente sugerida em um artigo da Revista minadas instituições basilares da sociedade, mesmo que para
Feminina, na edição de abril de 1916.Ainda que com a suti- isso fosse necessário acatar mudanças e introduzir outras.
leza permitida pelos valores de então, a autora da situação Nada, entretanto, que pudesse ferir a legitimidade das regras
acima inquieta-se pela injustiça. Se é difícil agüentar os pró- do sistema familiar e social.Carregava-se no tom para justifi-
prios nervos, escreve ela, "é mais cruel ter que suportar os car a reação "contra certas teorias dissolventes"que dia a dia
dos outros, principalmente quando o contrato é indissolúvel, alimentam "a onda de imoralidade e da perversão dos costu-
com todos os agravos e todas as restrições para nós mulheres mes que tenta levar de vencida tudo o que a humanidade
- e todas as vantagens e toda a liberdade para nossos mari- possui de melhor'."
dos, que em tudo nos levam cento por cento". Não é sem desconfiança que lemos sobre a intensidade e
Longe de indicar o colapso do casamento, as reclama- velocidade das mudanças na vida das mulheres brasileiras.
ções e acusações mútuas de maridos e esposas apontavam a Algumas décadas não foram suficientes para influenciar tão
necessidade de remodelar o casamento para reforçá-lo como fortemente a mulher, transformá-la em "pobre mariposa" e
instituição social. Argumentos foram elaborados para apazi- arrastá-la para "viver com o mundo e para ele",como queria
guar e tornar legítimas diferenças injustas, pois urgia conver- uma leitora da seção "Jardim fechado';" Ao contrário, tais
palavras mais revigoravam uma velha moral e menos revela- ao edifício social e à pureza do casamento, eram motivo de
vam "a dissolução dos costumes",como denunciava o dr. Vi- discursos que não poupavam os homens tampouco as mu-
veiros de Castro, presidente da Comissão Executiva da Liga lheres. "É um erro funesto crer que a virgindade conserve o
de Defesa Nacional." brilho da tez e os atrativos da juventude. A maior parte das
Qual é a missão da mulher? E qual é a do homem?" mulheres que ficam virgens depois de ter atingido o desen-
Essas eram indagações com as quais homens e mulheres, volvimento completo são assaltadas por LImamultidão de
maridos e esposas se debatiam na tentativa de delinear para indisposições mortais", inimigas da beleza e da saúde. Na
si mesmos e para a sociedade em mudança seus respectivos medida em que "tardam a cumprir os deveresde amante e de
papéis sociais e familiares. Sem poder dizer com exatidão mãe", sua pele tende a tornar-se "terrosa e baça".Com mais
quais seriam os futuros encargos de ambos, intelectuais das freqüência que os "indivíduos normais", os castos "estão su-
mais variadas correntes de pensamento empenharam-se em jeitos a tornar-se escravos de paixões sexuais tirânicas. A na-
estabelecer "com precisão" os limites entre os caracteres dos tureza nunca perde os seus direitos e a sua desforra é às vezes
dois sexos. penosa'."
Diferentes biologicamente, diversas psicologicamente, Foram, porém, as camadas mais baixas da população -
desiguais socialmente, as psiques do homem e da mulher operários, imigrantes, mulheres pobres, mulheres sós, negros
eram vistas como "meros reflexos de suas posições físicas no e mulatos - que tiveram o comportamento mais fiscaliza- 20. No Brasil do começo do SéCIIlo,
19. O significado do verbete Mãe,
amor: um procura, domina, penetra, possui; a outra atrai, do e submetido a medidas prescritivas.As múltiplas e impro- condcrlava-se qualquer alimento
segundo o Grand Dictionnaire abre-se, capitula, recelie. O trabalho, pura sublimação dos visadas formas de união amorosa nesses segmentos recebe- que não o leite materno - tanto
Larousse do final do século XIX, impulsos naturais, sempre será alocado pelosexo, em harmo- ram especial atenção das camadas médias e altas, bem como pelos nutrientes como porque por
é revelador do entendimento que meio do aleitamento a mãe
nia com estas disposições'l" Os mais variados discursos sobre dos intelectuais conservadores e dos clérigos. Decididas a
a sociedade tinha da maternidade: transmitia sua herança moral
a família e o casal - literários, religiosos,médicos e jurídicos institucionalizar o amor com vistas a sustentar uma determi- e o amor matemo. Condenavam-se
"Ela recebeu da natureza a tripla
c sublime missão de conceber, de pôr - decretavam, a partir de meados do século passado, que.era nada ordem social, as elites transformaram em ameaça os tlS amas-de-leite: vistas como agentes
no mundo e criar o gênero humano. no lar, no seio da família, que se estabeleciam as relações relacionamentos ajustados por padrões mais flexíveise simé- de contaminação, elas poderiam 'Ião
Convém pois esquecer as lacunas sexuais desejadas e legítimas, classificadas como decentes e tricos, classificando de imorais as uniões cujo epílogo não só trazer doença para dentro de caSII,
do seu caráter, as perfídias das suas higiênicas. como causar danos morais e físicos
coincidia com o casamento."
seduçoes, as imperfeições da sua ao bebê. Como garantia foi criado
natureza, e não lembrar senão esse
Ao sentenciar que "o amor ao próximo, à família, à pá- Traçadas as linhas da "conduta decente",os promotores um serviço de inspeção da boa saúde
fato que é como que a razão do seu tria, à humanidade são metamorfoses ou sublimações do da moral e da ordem classificaramcomo ilícita toda e qual- das amas. Muitas foram recusadas
ser': (Sem título, 1920) amor inicialmente sexual",isto é, a domesticação das paixões quer relação entre homens e mulheres que se firmasse fora pelos médicos pois eram portadoras
e dos desejos pecaminosos," os "higienistas da alma",a exem- do contrato matrimonial. Em nome de uma ligação de amor de doenças como corrimento vaginal,
infecção urinária, tuberculose, má
plo do psiquiatra progressista Antônio Austregésilo Lima, que fundisse existências, e não somente sexos, o amor na
qualidade do leite, anemia, infecção
reafirmaram o juízo já de larga tradição cristã: "Fora do casal mancebia foi transformado em objeto de intervenção. Amor na pele, sífilis, entre outras.
não existe salvação possível'." Paralelamente a tais incursões, degenerado, espectro de amor, imitação de amor: esses eram (R. Lindemann, Ama - Bahia,
sentiram-se à vontade para esquadrinhar, fiscalizar e con- os termos do discurso que pretendia regular as uniões c. 1905)
frontar padrões de comportamento. E, em nome da salva- consensuais. Na obra anónima O problema sexual, escrita em
guarda da família, condenar os desvios da norma. 1913 (assinada apenas por "Leitura Reservada",e prefaciada
Se o casamento representava uma etapa superior das re- por Ruy Barbosa e pelo escritor Coelho Neto), o leitor en-
lações amorosas, se foi proclamado "garantidor da saúde da contrará certezas como a que afirma que "no concubinato
humanidade", o melhor remédio para o corpo e para a alma, dissipam-se sensaçõesde que temos necessidade para o casa-
e se constituía uma das maiores fontes de "estabilidade so- mento, para as grandes ações da nossa existência, para
cial",era preciso, então, divulgá-lo e transformá-lo numa ne- reacender a chama da vida",em razão do que todas as "forças
cessidade para todos." Os celibatários, vistos como ameaça das nossas faculdades amatoriais" devem ser reservadas para
l'
"aquele amor'; pois é muito longa a vida "para ser suportável
com UIll amor valetudinãrio"." .
II
Não há felicidade senão no casamento, profetizava o
médico eugenista Renato Kehl. É nesse "estatuto que a mu-
lher se transforma em Esposa e o homem em Esposo, e que a
Esposa e o Esposo se transfiguram em Mãe e Pai':·13Seme-
lhantes lições e argumentos foram propagados por todo o
país com o intuito de "civilizar o amor"," Alguns propósitos
profiláticos deveriam ser disseminados com a finalidade de
instruir moças e rapazes a protestar contra a paixão infecun-
da, indicativa de desordem, em favor do sereno e saudável
amor conjugal. A ordem era combater com ânimo a invasão
impetuosa dos desejos para se atingir a serenidade da exis-
tência, pois a saúde da alma dependia de uma atenção vigi-
lante pelo amor intenso. Ao mesmo tempo que atacavam a
21. Em quase todos os números
exaltação da paixão romanesca, tais conselhos reforçavam a
da Revista Feminina podia-se ler instituição matrimonial. Mais do que estabelecer uma rela-
o eterno refrão: toda mulher deve ção conjugal, o casamento visava, ainda, instituir uma união
tornar-se mãe. Havia quem, cuja finalidade era não apenas generativa mas a produção de
entretanto, remasse contra essa maré: uma prole legítima."
em 1893 o médico Abel Parente
Na obra Matrimônio perfeito, que, por se tratar de um
enfremaria forte oposição por hoje é o mesmo do bacteriologista, isto é, descobrir e isolar o 22. ''.4. esposa, a boa dmUl de casa
ler desenvolvido um método trabalho de "ciência sexual", era recomendada por seu sabe perfeitamente (luai, os gostos
micróbio. O resto está escrito, é aplicar as regras","
destinado a esterilizar mulheres. prefaciador para "figurar na 'corbeille' de todas as noivas", do marido, seus pratos p"cJúidos
Argumentava-se que o Brasil era O campo semântico do amor conjugal passou ~ ,~gitar-~e e a maneira pelo qual os quer
T. H. Van de Velde assinalou que a instituição matrimonial é
um país novo e despovoado e que em torno da idéia da "alegria serena" para fazer face a escravi- arranjados. Ela sabe ludo: o lugar
para os crentes um sacramento, é para o Estado e para a socie-
seu desenvolvimento dependia dão das paixões cegas",cujo corolário er~m as "torturas d~cor- que o marido gosta mais de estar,
do aumento populacional. dade um consórcio indispensável, mas é para a progenitura a cadeira escolhida, o descanso para
rentes do ciúme"." Não por acaso a Imprensa do penado
Eugenistas; no entanto, saíram que se constitui, de fato, em uma instituição de absoluta neces- pôr os pés I...J Qual1do o marido lê
carregou nas tintas ao criar o espetáculo daquilo que a juris-
em defesa do médico, mas sidade. Tal certeza levou o autor a indagar: se os filhos "são o não o interrompe, nem deixa
preconizando um processo selctivo prudência denominava de "crim,~~,da paixão". Títl~~osesc~~~a~ perturbá-lo sem motivo. Mas se ele
laço de união espiritual mais poderoso no matrimônio nor-
de esterilização, que ficaria restrita losos ("Liquidação de mulheres, Mulheres assassl~:d,~s , . ,D~ llle fala do que a leitura sugere,
mal", o que mais poderá unir um casal que os cuidados com
aos casais pobres, às mulheres 12 em 12 horas assassina-se uma mulher no Brasil, O jun, a esposa mostra-se interessada -
que corressem risco de vida sua progénie!"
esperança dos assassinos ..:', "A apoteose ao as~assi~ato") r~ve- ou procura interessar-se pelo assunto
em decorrência da gravidez Recorrendo a uma argumentação que invocava os supos- lavam menos uma preocupação com a banalização do cn~e - porque em tudo qller ser
e aos casais com doenças que, tos rigores metodológicos e explicativos do saber científico, o agradável ao marido, e isso agrada-
acreditava-se, provocavam a passional que a reiteração de que aqueles .eram te~p~s muito lhe sem dúvida. Tudo isso são
amor ideal tornou-se uma questão de ciência e foi transforma- maus "hora das liberdades de toda espécie, da falência de to- pequeninos nadas. Pois esses
degenerescência da raça, como
a tuberculose e a sífilis. (Sem título, do em objeto de técnica, de "argúcia, análise e ação paciente", das as virtudes';" Criava-se uma atmosfera que já vinha sendo, pequeninos nadas é qlle têm maior
1917) como sublinhou um autor na revista Para Todos, 110 ano de pouco a pouco, construída de maus presságios: Diante de tan- importância na vida." (O menu
1918. O "amor de sofrimentos" passou de tal forma a fazer to perigo e das incertezas geradas pe!o ambiente urbano, o do meu marido, 1920)
parte do repertório das patologias que amor, saúde e felicidade amanho do lar e da família foi convertido em ancoradouro da
passaram a coincidir nos discursos sobre a família." Certa- moral sagrada. .'
mente foi essa convicção que conduziu o mesmo "epicurista" a A construção de uma referência normativa de afeti-
escrever em seu artigo que "o trabalho do homme ti femme de vidade conjugal era o que se alinhavava, de fato, no avesso do
1
390 . I W;[C;'IA DA -/ID,\ Pl'lvADA NO B~ASll 3
lema "Poupai o coraçao - e suas marcas mais relevantes 23. Pretendia-se ensinar uulo
às mulheres. Para evitar equtvoa»,
foram o ascetismo e a disciplina. E mais: ao mesmo tempo a Revista Feminina re(lmlnui~lj!tl,
que procurava instituir um espaço e um âmbito exclusivo do rIOartigo «Deveres de uma st'lIhora ":
casal, separava para os sexos as esferas tanto de atuação "Quando receber um CIIvalhei,.o
quanto simbólicas." A esposa virtuosa foi aclamada e cercada da.<suas relações,se não prcfcrir
por comandos morais. Prescreveu-se para ela complacência e apresentar qualquer pretexto para
o lião receber,[a-lo-à muito
bondade, para prever e satisfazer os desejos do marido sequer naturalmmte, mas empregando sem
expressos; dedicação, para compartilhar abnegadamente com aietação todos os meios para lião se
o cônjuge os deveres que o casamento encerra; paciência, comprometer, como deixando aberta
para aceitar as fraquezas de caráter do cônjuge. E, enlaçando a porta da sala e indicaIlda parti e/e
sentar-se em um lugar em frente
tamanhas disposições, a virtude maior da amizade indulgen-
de/a, afastado e mmca ao seu lado':
te.? O perfil traçado para a esposa conveniente contava ainda (lO Protocolobeija-mãos!, 1920)
com indefiníveis qualidades, tais como simplicidade, justiça,
modéstia e humor. Seu antípoda ameaçador era a moça dos veniências econômicas e os interesses de classe moveram a
tempos modernos, "esbagachada", cheia de liberdades, "de linha da parentela para relacionamentos mais horizontais,
saia curta e colante, de braços e aos beijos com os homens, uma vez que a "riqueza tornou-se um critério de status mui-
com os decotes a baixarem de nível e as saias a subirem de to mais importante'." Os vínculos matrimoniais eram garantia
audácia';" exposta à análise dos sentidos masculinos, "perfu- de controle sobre o poder, da mesma forma que funciona-
madas com exagero, pintadas como palhetas, estucadas a ges- vam como proteção contra as freqüentes ameaças de desas-
so e postas na vida como a figura disparate de uma paisagem tres económicos. Assim, longe de ter esgotado sua capacidade
cubista"> de interferência, os pais não negligenciavam a vigilância so-
No bojo da urbanização que punha em convívio tradi- bre os filhos solteiros, agora rodeados pelos desvelos pedagó-
ções e costumes tão díspares e mesclados, a imprensa, princi- gicos das "mães educadoras". Instrumento das estratégias fa-
palmente a feminina, realçava a importância e o sentido da miliares e cercados por toda sorte de "estímulos", os jovens 24, 25, 26, 27. A mulher recebeu
educação: "Sem instrução e com essa espécie de educação, deveriam se comprometer com pessoas do mesmo círculo do século XIX uma duvidosa
que pode ser da menina modernai";" Acolhiam-se, assim, os social. O amor não atuava sozinho, sublinhou Jeffrey D. herança: a cintura de vespa.
propósitos positivistas e impunha-se uma missão, a de mol- Needell," o que em certa medida relativizava a questão da Para obter tal predicado, no entanto,
a mulher teve que submeter-se
dar o pensamento, o comportamento e, em última análise, o livre escolha dos cônjuges. Se alguns eram estimulados, ou-
ao espartilho. Mal dissimulado
caráter das gentes. Em tom freqüentemente professoral, tros eram coagidos pelos pais, como atestam inúmeros pedi- i'Jstrumento de tortura - rígido,
invectivava-se a formação dada às moças daquele tempo. Do dos de anulação de casamento, cuja principal alegação é "ví- feito de pano forte, mantido ereto
que a brasileira mais precisava para fazer valer o seu "direito cio da coação'i'" por varetasfeitas de barbatana
de ente pessoal e civilizado", escreveu a articulista Chrysan- Novas estratégias de educação amorosa eram elaboradas de baleia -, ele atrofiava as últimas
costelase sacrificava também o baço,
theme, "não é de elegâncias nem de danças, mas sim de ins- com o objetivo de preservar o tradicional modelo matrimo-
o fígado e os rins. A partir de 1918
trução e de educação'l" Admoestados com conselhos, fórmu- nial. Se o propósito era expandir e legitimar a instituição varetasflexíveis de aço vieram
las e regras, homens e mulheres aprendiam a conservar o conjugal, a causa final consistia em normalizar a sociedade e diminuir um pouco tal sofrimento.
matrimônio, "fatalidade social necessária'." regrar os comportamentos sexuais. A imposição era obstina- As gordas com pretensões à elegância,
nO entanto, continuavam padecendo:
Muito embora as estratégias matrimoniais no interior da e vinha sempre secundada por considerações de caráter
li transpiração produzida por seus
das elites tenham iniciado, no transcorrer do século XIX, um científico: "[ ... J não desprezais os vossos órgãos de amor, mas corposprovocava ferrugem
movimento de superação das relações mais verticalizadas, ou regrai-os!"," O processo civilizador das relações interpes- e destruía não só os espartilhos;
endogâmicas, os interesses familiares continuaram represen- soais, moldado conforme o padrão das elites, deveria "conta- mas toda a roupa que os cobrisse.
tando um papel fundamental nos arranjos conjugais. As con- minar" todos e de todas as classes. No âmago do sistema ([ Espartilhos e concepção I, 1982)
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ordenado de acordo com aquelas regras, a família - consti-
tuída por um único "princípio de regulação e reprodução: o
r século xx é um debate cauteloso sobre a conveniênciaou não
de os educadores iniciarem a mocidade nos assuntos da vida
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Conter os excessos masculinos e "equilibrar a contabili-
dade de afetos para a preservação do lar", faziam parte do
conjunto dos deveres da mulher." Assim,a própria galanteria
conjugal passou a ser entendida como a arte moral de encan-
maridos no primeiro contato sexual.Ao mesmo tempo pro-
porão para as jovens uma iniciação sexual de cunho livresco,
pois a inocência, ou, melhor dizendo,"a ignorância em maté-
ria sexual, esse estado beatífico em que muita gente aspirou
29. As mulheres experimentariam
vitórias pontuais no [ma!
da Primeira Guerra: para
as dotadas das chamadas
"exuberâncias adiposas'; a boa
!."""'.' ",iti,., 1"""""""1
';.,; .~~I"t"'·HS. conservar as próprias filhas'?" significa, de fato, aparelhá-las notícia foi o advento da cinta
Il',c,.,-~ ;\ ucsueo
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(Pf.{jli' O tdlat~g~Illustrad~) I tar, de agradar, tanto no campo social quanto na intimidade, mal para o desempenho conjugal desejado. O conflito da elástica. Mas não foi sJ isso:
I ". i sem se comprometer." Mais próxima do ideal de amizade noite de núpcias tem sido para "essasdesgraçadasingênuas a no lugar do cano das botinas, já
:' I amorosa, pretendia-se purgar os exageros e os percalços das beira do abismo [...] a fobia sexual,a desinteligênciado lar, o se podia ver um palmo de perna
.----=/
- embora as saias insistissem em
relações conjugais de modo a torná-las mais fortalecidas e inferno dentro do céu doméstico'." De nada valem as pala- continuar próximas do tornozelo.
afastar cada vez mais a ameaça do divórcio. Na busca da vras rápidas da véspera, proferidas pelas mães. Antes abrem, Segundo Barros Ferreira, até
"união para toda a vida': o casamento encontra sua razão de de chofre, um mundo inteiramente estranho, e perigoso, ad- mesmo essas fímbrias de liberdade
28, A medicina viria em socorro ser na "mútua estima e amizade dos esposos",e "seja qual for verte Porto-Carrero. Não raro a noite nupcial se transforma iriam encontrar a resistência
da mulher, qualificando o espartilho a maneira por que se manifeste': é sempre na forma de sim- para a moça, entre ingênua e ignorante, numa noite de sacri- de um "coro composto por muitas
como "uma fraude, um logro [... ) patia, "independente dos arroubos sentimentais", que se des- pessoas, que reclamava: - O
fício, em que ela se submete à sagacidade do noivo, "ávido
uma escravidão e uma crueldade': mundo está perdido! Para onde
vanecem com o tempo. "Não se enganem as jovens espo- para mostrar a energia potencial';"
Em seu livro - Cuidados caminhamos com tão generalizada
higiênicos da mulher grávida, sasl?" O que se vê, de fato, é a construção de uma relação Clotilde do Carmo Dias lembra que na sua noite de falta de pudor?': (Cinta "de bom
o médico Antônio dos Santos conjugal mais marcada pelo respeito que pelo princípio do núpcias ficou durante bom tempo no quarto, sem coragem elástico Malhou", 1924)
Coragem trata do problema sem prazer. de se deitar, enquanto seu marido a esperava ansioso.Aquela
rodeios: "O trabalho às vezes Apesar da ênfase na amizade entre os cônjuges era pa-
extenuante de apertá-lo, o suplício
era a primeira noite que eles estavam a sós: "[...] agora tinha
daquele aperto, os vincos que deixa
tente, sobretudo entre os médicos, a progressiva conscienti- até medo do meu próprio marido. Onde não existeamor não
na carne macia, () aUvia que sentem zação sobre a necessidade de educação sexual dos jovens. há confiança, e eu não estava enganada. Meu marido nesta
quando se despem [... ) Ela acaricia Convertidos em guias científicosda família,os doutores mos- noite deu largas a seus instintos bestiais, cheios de luxúrias
com as mãos crispadas as carnes travam-se cada vez mais preocupados com a inocência,a igno- indecentes e insaciáveis, que em vez de gerar em mim o
machucadas pelas barbatanas, pelos rância e, principalmente, a brutalidade que cercavam as prá-
atilhos, pela tela rude. Depois,
amor, faziam-me sentir repugnância por ele. Eu desejavaum
mira-se 110 espelho e verifica com
ticas sexuais, desastrosas para a estabilidade do casamento. "A carinho todo especial, delicado, respeitoso e moderado. Eu
tristeza que aquela carcaça deixou nossa educação está errada. Todo o domínio sexual anda en- lutava em pro I d e um amor sublinne e et erno"73
.
sobre o corpo delicado pisaduras volvido em um mistério que não é natural, entre véus de Os maridos recém-casados foram persuadidos a "prati-
violáceas': (Le Corset "Hann" 1914) excessivo pudor."? O que se vê nas primeiras décadas do
1
car o defloramento, com especial cuidado", a se comportar
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• 411
inundações", conta que nos períodos de estiagem prolongada doméstica então difundida: para
enjrentar o forno e o fogiío lU' sua
as torneiras de muitas casas da cidade de São Paulo funciona-
cozh.ha "higienizada': a mulher
vam como cabides! 121 trajava vestidos lânguidos, sapatos
. Embora algumas donas de casa já tivessem fogão a gás, de salto alto e aventais adornados
sinal de bom gosto e prestígio da família, este permanecia com engomados laçarotes. (Sem
52. Ao se referir à luz elétrica, título, 1920)
encostado, enquanto no uso diário acendia-se o fogão a lenha
os médicos enumeravam, ao lado
das facilidades, os maleficios
ou a carvão, chamado de "econórnico'l!" para o preparo das
causados pelas formas tradicionais refeições mais elaboradas, e a espiriteira, para fazer comidas
de iluminação, como o gás, rápidas e para esquentar água. A cozinha higienizada, veicu-
o petróleo, a benzina, a vela lada pelas revistas desde as primeiras décadas do século, com
e o lampião. Causadores de lenta
ladrilhos, paneleiro repleto de panelas de alumínio reluzen-
intoxicação, esses combustíveis eram
considerados maléficos. A luz
tes, fogão elétrico ou a gás, mesa, pia com água encanada,
elétrica, ao contrário, além de ser boa iluminação comandada por uma cozinheira branca, com eram criados frangos, patos e perus. Antes de ser abatidas, as
um recurso fácil, não roubava avental impecável, elegante, bem vestida e de sapatos de salto aves eram examinadas para se diagnosticarem possíveis doen-
oxigénio, não envenenava o ambiente alto, elaborando pratos tão complicados e sofisticados como ças e passavam por uma quarentena de cerca de três dias,
com gases letais e não superaquecia tempo suficiente para que eliminassem das entranhas "qual-
o Foie Gras à Brasileira.!" ou a Sopa Teológica, 12~ acabou por
o ar. Para economizar, aconselhava-se
que a dona de casa tivesse uma apagar das nossas memórias suas antigas configurações e quer porcaria que houvesselrn] comido sabe-se lá onde" e se
lâmpada presa a um fio comprido funções. 125 livrassem de "canos e bicheiras"!" Para se transformar em
para se locomover nos diferentes Muitas cozinhas permaneceram até meados do século alimento tinham que ser mortas (em algumas receitas, como
cômodos da casa, carregando consigo como um apêndice da casa, um puxado coberto por telhas- o Frango ao Molho Pardo, era necessário colher-lhes o san-
a iluminação. (Lâmpadas Edison
vãs, voltado mais para o quintal do que propriamente para o gue fresco, em pleno abate), depenadas em água quente, cha-
Mazda A Última Palavra, 1924)
interior da residência. Era um lugar quente, enfumaçado, muscadas, abertas para a extração das vísceras, lavadas, pi-
cheio de picumã, engordurado pela carne-seca, lingüiça e cadas, temperadas, moqueadas e, finalmente, cozidas ou
toucinho pendurados no fumeiro, com os tijolos do chão assadas no próprio fogão ou em fornos a lenha.
desgastados pelas pancadas do machado na lenha, onde a Para a limpeza das panelas e frigideiras de ferro, pedra,
dona de casa permanecia de cócoras, debruçada sobre ga- barro, cobre e, modernamente, alumínio, consideradas mais
melas e peneiras, ou em pé, socando o pilão, o que deixava as econômicas e higiênicas."? utilizava-se sabão feito em casa
mais novas e inexperientes com as mãos vermelhas e cheias com uma mistura de cinzas e folha de pau de pita.!" As
de bolhas em razão do esforço repetido, sendo freqüente- panelas eram areadas com arda, cacos de telha reduzidos a
mente obrigadas a parar o serviço para matar baratas, espan- pó, e batatinha.!" para ficar brilhantes, deveriam ser postas
tar as moscas ou lutar contra o exército de formigas. para secar ao sol no jirau. Além de ser o local onde eram
Ali era realizado um trabalho cansativo, demorado e pilados diferentes produtos, preparados os alimentos e lavada
sujo, seja pela preparação dos pratos, seja pela limpeza das a louça, a cozinha era também onde se guardava a bacia para
panelas engorduradas e enegrecidas pela fuligem. Basta to- banhos e se fervia a água, banhavam-se as crianças, passava-
mar como exemplo o consumo de aves. Antes da populariza- se a roupa e onde, em muitas casas, as empregadas dormiam
ção da geladeira, mesmo nas cidades e nas casas mais ricas, sobre esteiras. Poucas casas conheciam a função, divisão e
sobrevivia o costume ancestral de manter galinheiros, onde restrição de espaço, modernidades preconizadas e prescritas
l'f~iVP..D,·'\ r',j() BRASil 3
fO(iÕ~S
f' CONOMICOS
~M[:I~IG'NOS
56. Entre os diferentes tipos defogáes
~. Lt::MH~ usados, o elétrico era ammc:iado
~'C~Rvi\o como o melhor e o mais asseado.
O fogão a gás era considerado
55. Levou tempo para que" uso ~'OI\Z
do gelo e da geladeira perigoso:causava incêndios,explosôes
se popularizasse no Brasil. e graves intoxicações.Já o fogtlO
Um comerciante do Serro, a lenha, além de ser desvantajoso,
no interior de Minas, ao receber era caro, sobretudo nas capitais, onde
Peçam Ilatalogos e mais
um medicamento conservado lnfornações, mencionando o
a lenha se tornava cada vez mais
em gelo,ficou tü" maravilhado nome desta Rllvista á
rara. Não bastasseisso,produzia
que pendurou a novidade na porta muita fumaça e deixava uma crosta
de sua loja, enquanto almoçava. r, H. I(RISCHI(~ escura nas panelas, de difícil
Ao retornar, no lugar da pedra e penosa limpeza. Mesmo assim
de gelo encontrou apenas uma poça
Rua da Boa Vista, 30 continuou a ser largamente utilizado
d'água no chão. Indignado, no pais até depois da década de 50.
Caixa postal, 900-S. Paulo
exclamou: "Moleques sem-vergonha! (Fogõesamericanos, 1916)
Furtaram o gelo e ainda urinaram
na porta!': (Verifique as dez
Verifique as dez vantagens
cotidianas'I'ê' OU, ainda, pelo seguinte trecho do livro A fa-
vantagens do novo G.F.. "De Luxe",
1933)
do novo G.E. "De Luxe" lência, de Júlia Lopes de Almeida: "Isto de se dizer que uma
mulher pode fazer todo o serviço doméstico sem se enxova-
não só por higienistas, engenheiros e construtores, como pe- lhar, é coisa de romance. A Emilia andava com as mangas do
las posturas municipais.!" avental sujas de carvão,tinha as unhas impregnadas do chei-
Assim como a lavagemda roupa, o preparo da alimenta- ro da cebola e do alho; e as mãos avermelhadas pelo uso do
ção e a limpeza da casa, passar e engomar a roupa eram ati- sabão da terra com que esfregavaa roupa, tinham perdido °
vidades igualmente exaustivas e demoradas, Um ferro aque- jeito para a carícia doce, macia, tão querida das crianças e dos
cido com brasas pesavaentre três e cinco quilos.':" Para que o doentes"!"
serviço fosse feito com rapidez e eficiência,era preciso que a Apesar da importância social do trabalho realizadopelas
dona de casa contasse com três ferros; um terno de linho mulheres dentro de casa, enquanto produtoras e reproduto-
exigia, para ser passado sem interrupção, pelo menos cinco ras da mão-de-obra, e não obstante ser gratuito o trabalho
ferros previamente aquecidos,132 prestado à família,outra imagem freqüentemente associadaà
O desgaste físicosofrido pelas "rainhas do lar" no exercí- rainha do lar é a de perdulária. O papel do marido de prove-
cio do trabalho doméstico pode ser avaliado por um texto dor da família, com o direito a autorizar ou não o trabalho
publicado na Revista Feminina de 1920,na qual a autora con- da mulher fora do lar, conforme determinavam as leis vigen-
voca as leitoras a desobedecer à moda que preconizava o fim tes no começo do século, levou a dependência económica da
do uso das luvas, "essa moda antidemocrática, criadora de esposa a ser não apenas estimulada, mas sobretudo bem-vis-
uma irritante desigualdade entre a mulher que trabalha, mu- ta. Esse"privilégio",porém, nem sempre significoualegria ou
tilando as suas pobres mãos, e, a ociosa, que as poupa e res- felicidade para muitas mulheres, Por trás de frases como "ela
guarda de todos os perigos, para afrontar com sua beleza é feliz, não lhe falta nada" ou "o que mais ela deseja, se o
criminosa, as santificadas no cumprimento das ocupações marido lhe dá tudo?", é possível enxergar um ambiente de
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