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RECÔNDITOS DO
MUNDO FEMININO!
Marina Maluf e
Maria Lúcia Mott
Sozinha pela rua, com as mãos na direção de seu auto; sozi-
nha no passeio e no dancing da moda. É a moça de hoje que
já não precisa da mamãe vigilante, nem a senhora de compa-
nhia [... ] Como os cabelos, como os vestidos, como o rosto, a
moça de hoje já fixou o espírito, fê-lo mais livre [... ] fê-lo apto
e forte [... ] Nas repartições públicas, no balcão, na fábrica ou
nas grandes casas, ela sabe estar sozinha pela vida [...) Sozi-
nha: para as mãos, já não faz falta o embrulhinho cúmplice e
dissimulador. Já sabe o que fazer com as mãos, que são igual-
mente adestradas para empunhar a direção de um auto ou
para mover-se sobre o teclado de uma máquina de escrever? /. Como foi educada a mãe -
Como é educada a filha. ( /921)

mente se fosse casada, evitasse "sair à rua com um homem

A
s mudanças no comportamento feminino ocorridas
ao longo das três primeiras décadas deste século inco- que não seja o seu pai, o seu irmão ou o seu marido". Caso
modaram conservadores, deixaram perplexos os de- contrário, iria expor-se à maledicência, comprometendo não
savisados, estimularam debates entre os mais progressistas. só a sua honra como a do marido, conforme se lia na Revista
Afinal, era muito recente a presença das moças das camadas Feminina, importante publicação do período.'
médias e altas, as chamadas "de boa família",que se aventura- O ritmo das mudanças ocorridas, considerado por mui-
vam sozinhas pelas ruas da cidade para abastecer a casa ou tos como alarmante, veio acompanhado de certa ansiedade
para tudo o que se fizessenecessário. Dada a ênfase com que por parte dos segmentos mais conservadores da sociedade,já
os contemporâneos interpretaram tais mudanças, parecia ter tomados pela vertigem das grandes transformações que o
soado um alarme. país vinha vivendo, sobretudo a partir do último quartel do
século XIX.4 Não faltaram vozes nesse começo de século para
Se as novas maneiras de se comportar tinham se tornado
entoar publicamente um brado feminino de inconformismo,
corriqueiras em menos de duas décadas, a ousadia, no entan-
tocado pela imagem depreciativa com que as mulheres eram
to, cobrava seu preço: que a senhora soubesse conservar um
vistas e se viam e, sobretudo, angustiado com a representação
"ar modesto e uma atitude séria, que a todos imponha o
social que lhes restringia tanto as atividades econômicas
devido respeito': E mais: que a mulher sensata, principal-
370 • :1I',T,'f:li> DA VIDA PRIVADA NO BRP,,11 ";

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2. Na virada do século a moda eram
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ferro de frisar. Duas décadas depois, «';"""""""
05 cortes indicavam que as mulheres
não mais se contentavam com com o homem, o nosso déspota, o nosso tirano'." "Sejamos 3, 4, 5. 6. Em 1918, homells
a amiga imagem de "frequentadoras mulheres",proclamava de Minas Gerais uma colaboradora da e mulheres viveriam uma revolllção
do teatro e dos jantares" Estavam nos costumes:a ginástica. Luis
Revista Feminina, em 1920.Reivindicando igualdade de for- Edmu'ldo Costa lembra que
esculpindo uma silhueta de mulher
moderna. Em dezembro de 1924
mação para ambos os sexos,chamava a atenção das leitoras os brasileirosque viram 'tascer
a Revista Feminina já indagava para as mulheres "vítimas do preconceito",que viviam fecha- a República eram" uma geração
se o cabelo curto não seria "um das no lar, arrastando "uma existência monótona, insípida, de fracos e enfezados. de lâ'lgllidos
sintoma da emancipação do belo e raquíticos,sempre enrolada
despida de ideais",monetariamente algemadas aos maridos. em grossoscache-nez de lã.
sexo ': Devia ser, já que a própria
Era nas cidades, as quais trocavam sua aparência paro- a galocha no pé. um !(uarda-cltllva
revista identijicava, pelo corte
dos cabelos, a escultora, a literata, quial por uma atmosfera cosmopolita e metropolitana, que de cabo de volta debaixo do braço
a estudante, a datilografa, se desenrolavam as mudanças mais visíveis.Através de um I...J Condenava-se sumariamente
a sportswoman. (Cabcllos curtos, processo diagnosticado por vários críticos temerosos como a ginástica. Considerava-se perigoso
1924) o sport, por mais brando que fosse".
imperfeito e desorganizado,a nova paisagem urbana, embora Foram necessáriasmenos de três
ainda guardasse muito da tradição, era povoada por uma décadaspara que a Revista
quanto as políticas. "Entre nós",escreveu em 1921a articulis- população nova e heterogênea, composta de imigrantes, de Feminina alardeasse as mudanças:
ta Iracema, "a mulher só exerce sobre o homem o prestígio egressos da escravidão e de representantes das elites que se "Nossofim é a beleza. E a beleza
só pode coexistir com a saúde, com
do seu sexo. Quando o homem não está mais sob o sortilégio mudavam do campo para as cidades. a robustez e com a força". (A Belleza
exercido pelos encantos da mulher, esta deixa de ocupar-lhe Diante da variedade de questionamentos, experiências e Feminina e a Cultura Phvsica, 1918)
o espírito, de interessá-lo." linguagens tão novas que as cidades passaram a sintetizar,
E quais seriam nesses tempos os sinceros desejos da intelectuais de ambos os sexos elegeram como os legítimos
mulher?, indagava a escritora Chrysantheme (pseudônimo responsáveis pela suposta corrosão da ordem social a quebra
de Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos) à sua de costumes, as inovações nas rotinas das mulheres e, princi-
personagem, que lhe respondia, aborrecida com o tom prote- palmente, as modificações nas relações entre homens e mu-
tor e de disfarçado desdém dos homens superiores: "Nós lheres.' Conjugaram-se esforços para disciplinar toda e qual-
queremos a liberdade [...] ou pelo menos a sua igualdade quer iniciativa que pudesseser incerpretada como ameaçadora
372 • HI\TC':IA DA VIDA PRIVAOA NO BRASil J
• 373
RtC()HUl1ü~ DO MLJNl)O ffMIt -,mp)

à ordem familiar, tida como o mais importante "suporte do


Estado" e única instituição social capaz de represar as intimi_
dadoras vagas da "modernidade':
8. De um lado ti revolução
"Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades munda_
dos costumes subia ti barra .
nas, passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É da saia. Do outro, ti moral ngorosa
como se a um templo se evadisse um ídolo. É como se a Um inventava a moda que iria cobrir
frasco se evolasse um perfume. A vida exterior, desperdiçada com botinhas de cano alto
em banalidades, é um criminoso esbanjamento de energia. A o pedaço de canela exposta. .
família se dissolve e perde a urdidura firme e ancestral dos Quanto mais curtas as saras:.maIs
seus liames. 'Rumo à cozinha'! eis o lema do momento", longas as "pelicanas botl~as .
a que se referia Barros Ferreira.
conclamava a Revista Feminina em agosto de 1920,
(O calçado feminino, 1921)
Homens e mulheres se acusavam reciprocamente como
os principais causadores de uma intolerável corrosão dos
costumes, Em 1916,a colaboradora Bebé de Mendonça Lima " s senhoresMenotti del Picchia
7. Para ver modestos centimetros Os "rapazeshonestos ,a quem ~ s chamados "filhos-fá-
declarava o homem culpado pela ruína da felicidade conju- I de crítica se relerem, o b
do pé de uma dama, os homens
gal: sempre com o vinco "cavado entre os supercílios', dei- e seus co egas . r t tomam por elegante e de om-
se obrigavam a ginásticas que mílias",escreveu a artlC~is a, de divertimentos livres, ao
os deixavam com "dores de espinha': xa rastros de mau humor pela casa, embaraça os criados e
tom passar suas noites nas cadsas spírito aviltando a alma
Os dias de chuva produziam visões amedronta as crianças, Ofendido e ligeiro, o escritor René fé brutecen o o e ,
mais sensuais: para não molhar Thiollier contra-atacou no número seguinte, Afinal, argu- jogo ou nos ca es, em I b bidas cocaína morfina ou car-
a barra do vestido, as mulheres e arruinando o c~rpo pe ashe) , ouco ~ducados que as
mentava, ele também fazia parte "dessa cãfila doce-amarga, • " E a esses omens p
arrebanhavam as saias, exibindo tas de poquer , t a finaliza' ainda teremos o
tão detestada e, ao mesmo tempo, tão querida, que se chama
alguns centímetros a mais. O preço esposas se entregam, E a au or [1 q'uedar-se indecisa,
da indiscrição costumava ser alto: os maridos'" Em outubro do mesmo ano, a romancista Júlia . d ver uma moça ..'
valia a pena tomar chuva e pegar Lopes de Almeida escreveria, tornando ainda mais público "prazer de OUVlfe e I'" do pretendente, interrogar-
mirando e remirando a e egan~ta ?" II
"doença do peito" para ver um único um descontentamento tanto tempo represado: "Se não fosse dê . Caso ou nao caso, ' ,
pé. Mas isso tudo era coisa a prudência das mulheres o casamento seria uma fonte se com pru encia.., lh b asileiras nas três primeiras
de antigamente, Em 1917 a imprensa O dever ser das.mu ,eres rado or um preciso e vigo-
abundantíssima de escândalos': pois fosse o amor uma ques-
já denunciava que as mulheres décadas do século fOl,assim, traç, ~nservadores e diferen-
estavam determinadas a "gastar tão de natureza, "não sei o que seria dessa história de fideli- di id ológico que reuma c , ,I
dade conjugal'." roso iscurso i e " bou por desumamza- as
menos seda": primeiro foram
tes matizes de reformistas e que aca tempo que cristalizava
os decotes que abaixaram. Depois foi Se as reclamações das mulheres estavam pontuadas de , h' te 'cOS ao mesmo
a vez de as saias subirem. (Foz, mágoa e revolta, as dos homens pareciam revelar desconfian- como sujeitos ,iSoncos, t mento convertendo-os em
Sempre a poderosa Light! Os determinados tipos de comPlhora é em tudo o contrário
ça para com a "nova mulher". "Caso ou não caso?",indagava " ""A mu er que , ,
maiores estribos dos bondes, 1912)
o conservador poeta modernista Menotti dei Picchia, em rígidos papeis sO~iaiS, dã sintetizou o pensamento de
do homem'," foi o bor ao ~ue , 'I na construção e difusão
1920, "Eis o dilema que arrepia a espinha do celibatário," E
uma época intranqüila e por iSSOagi to feminino ideal, que
arrematava: "Os moços, com razão, andam ariscos [...] Será t - es do comportamen
justo que um moço trabalhador e honrado entregue seu das represen aço ". dito do lar" e reduziram ao
limitaram seu horizonte ao r~con_ até encaixá-la no papel
nome nas mãos de uma cabecinha fútil e doidivanas (...]?".
máximo suas atividades e adsPlfaío~s~é mãe-esposa-dona de
Antigamente as mulheres "não serelepeavam nos asfaltos, ir- de "rainha do lar",sustenta a pe o np
requietas e sirigaitas; não saíam sozinhas [...] nem se desarti- casa,
culavam nos regamboleios do tango e do maxixe".10 A respos-
ta não tardaria, Sob o pseudônimo de Rosa Bárbara, uma HISTORlClZANDO O RECONDITO
intelectual de Minas Gerais publica na edição de junho da
revista aquilo que ela denomina de a "outra face da medalha". d atureza feminina, que dota-
Baseado na crença e uma n d empenhar as funções da
ria a mulher biologicamente para es
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376 . HI,;TClRIA [>,\ VIDA I'RIVAI)~ iiO ~RA:,j1 3

juriado gravemente ao recusar-se a viver em sua companhia


onde ele determinasse, de ter lhe usurpado o pátrio poder
(ao internar em um colégio, sem sua autorização, uma das
filhas do casal) e de tê-lo impedido de se encontrar com os
filhos.A ação de Cora foi repelida por unanimidade, enquan-
to a reconvcnção foi julgada procedente."
Processos de divórcio de ricas famílias paulistas nesse
período revelamo recurso freqüente à coerção físicadas mu-
lheres. Pesquisasregistram que o marido, tal como um pai, se
sentia no dever de punir com violência sua esposa quando
desobedecido. Embora nenhum código permitisse ou sequer
10. 11. ''Ah. O lar! A sagração
da mulher ..:; ironizava a escritora
relevasse tais agressões,estas se davam sob a proteção de re-
Júlia Lopes de Almeida. Mas o lar gras do costume. A violência só era vista como selvageriae
idealizado pelo discurso dominante, brutalidade quando exercida diante dos considerados pelas
na verdade. não encontrava classesmédias e altas como seus iguais, ou daqueles que pri-
ressonância na vida real do Brasil
do começo do século. Se entre
vavam com o casal. Dessa categoria estavam excluídos, por
as mulheres de elite esse espaço tinha exemplo, os empregados domésticos, tratados como inferio-
efetivamente a aparência de reino, res, não como iguais. Diante destes, a coerção física não era
entre as camadas mais baixas tomada como humilhante."
do povo era difícil imaginar que da mulher casada ao trabalho iria depender da autorização
No seu livro de memórias Diário de Bitita, a escritora
alguém pudesse "reinar" nos cortiços dele ou, em certos casos, do arbítrio do juiz."
em que vivia a maioria negra Carolina Maria de Jesus, nascida no Sul de Minas Ge-
Usos e costumes, porém, revelam que o âmbito do poder
da população. ( 10. Quarto de vestir rais em 1917,relembrou uma cena de infância, vivida entre o
da residência do Dr. João Dente _ do marido ia mais longe do que o previsto pela lei. A ele
avô, ex-escravo,e sua mulher. Além de corroborar exemplar-
Avenida Paulista 55. São Paulo, cabi~ deliberar sobre as questões mais importantes que en-
mente a violência doméstica consentida, o episódio relatado
1924; 11. Raul Pederneiras. Casa volviam o núcleo familiar: a apropriação e a distribuição dos
de cómodos, 1924)
recursos materiais e simbólicos no interior da família, o uso pela escritora revela como as classesmais pobres, muitas ve-
da violência considerada "legítima",cujos limites eram debil- zes, incorporaram não apenas os padrões de comportamento
mente contornados por aquilo que se considerava excessivo,e familiar mas também os valores das elites:
o controle sobre aspectos fundamentais da vida dos familia- Quando vovô veio almoçar, não tinha farinha. Ele não
res, como as decisões sobre a escolha do tipo e local da for- comia sem farinha porque na época da escravidão os ne-
mação educacional e profissional dos filhos."
Isso pode ser atestado, por exemplo, no processo que se
I gros eram obrigados a comer o angu e a farinha. À tarde,
quando foi jantar, encontrou farinha. Perguntou a siá
seguiu ao pedido de separação de Cora de Magalhães, ocorri- Maruca:
do na cidade de São Paulo em 1928. Ela propusera ação de
desquite alegando, entre outros problemas conjugais, que le-
vava uma vida de vexames e humilhações. O marido, Manoel
I - Onde e quando conseguiste dinheiro para com-
prar esta farinha?
Os seus olhos voaram para o rosto de siá Maruca, que
Martins Erichsen, contra-atacou solicitando a reconvenção havia mordido os lábios. Por fim ela resolveuresponder:
do processo - recurso que o transformava de réu em vítima. - Eu lavei roupas para dona Faustina, ela pagou e
Erichsen inverteu os papéis, acusando a esposa de tê-lo in- eu comprei cinco quilos de farinha, lavei duas dúzias por
um mil réis. O quilo da farinha custou duzentos réis.
Iti FIo't'JNUI1<Y, IJO MUNDO ftMleJI"J<, • 379

assumisse a direção de modo a "harmonizar as relações da 13, 14, 15. Com a mulher dá-se
vida conjugal': As razões da hierarquia e das restrições im- o extremo oposto: a figura feminina
exerce as tarefas domésticas
postas à mulher não deveriam ser atribuídas à inferioridade
com wn permanente sorriso no rosto
física e mental, uma vez que homens e mulheres são dotados - e nunca se vê no traço
de capacidade equivalente. O condicionante, assinalava o ju- do desenhista uma só pon ta
rista, era a diversidade das funções que os consortes eram de ironia. (Sem título, 1915)
chamados a exercer "junto à sociedade e na família'."
O professor Washington de Barros Monteiro, ao comen-
tar a legislação de 1916, reiterava em outras palavras a supre-
macia masculina, mesmo tendo transcorrido quase meio sé-
culo: "Outrora dizia-se que essa preponderância do homem
era de Direito Natural; posteriormente procurou justificá-la
com a fragilidade da mulher", escreveu o jurista. "Moderna-
mente, porém, com muito acerto afirma-se que ao marido
12. A imprensa se revelava compete a chefia da sociedade conjugal pela necessidade de
implacável com a emancipação haver quem lhe assuma a direção e também por ser ele quem,
feminina. Quando executado
pelo sexo e pela profissão, mais apto se acha para receber a
por um homem, o trabalho
doméstico é pintado como algo investidura,">
duro e penoso - e o personagem O Código Civil de 1916 interpretou o modo como cada
que se submete a ele é tratado um dos cônjuges deveria ser apresentado socialmente. Um
como ridículo. (Sem título, 1926) conjunto de normas, deveres e obrigações, com seu correlato
inibidor e corretivo, foi formalmente estabelecido para regrar
o meu avô retirou a cinta da cintura e espancou-a. o vínculo conjugal, a fim de assegurar a ordem familiar. A
Dizia: cada representante da sociedade matrimonial conferiu-se um
atributo essencial. Assim, se ao marido cabia prover a manu-
- É a última vez que a senhora vai fazer compras
sem o meu consentimento. Quando quiser sair, peça-me tenção da família, à mulher restava a identidade social como
permissão. Quem manda na senhora sou eu! Se a senho- esposa e mãe. A ele, a identidade pública; a ela, a doméstica.
ra não sabe obedecer, vai ernbora.P À figura masculina atribuíram-se papéis, poderes e prerroga-
tivas vistos como superiores aos destinados à mulher. Deli-
Ao comentar o Código Civil no ano de 1917, Clóvis neava-se com maior nitidez a oposição entre esferas pública e
Beviláqua observou que a razão de se dar ao homem a chefia privada, base necessária para que a mulher se torne mulher e
da família se devia unicamente à necessidade de haver quem o homem se torne homem, ao mesmo tempo que fornece os

1
380 • IIISTÓ"A DA VIDA PRIVADA NO BRASil :J
A ,-
":'1' ~.
.~ foram dotadas de poder e de valor. O trabalho era o que de
:~) fato conferia poder ao marido, assim como lhe outorgava
1;}- pleno direito no âmbito familiar, ao mesmo tempo que o

I~ÂILIH~OR~.:;",~:::":;:',;:,'''
A"NO XXVI '.",/
N l: \1. I .1 I R tornava responsável, ainda que de modo formal, pela manu-
tenção, assistência e proteção dos seus, Ao ser assim conside-
rado, o marido desempenhava função de valor positivo e do-
QUANDO AS MULHERES FOREM ELEITAS minante na sociedade conjugal. Essa crença foi de tal modo
interiorizada pela família e pela sociedade que o descumpri-
mento dessa atribuição por parte do marido era tomado pela
mulher como falha, da mesma forma que fazer comentários
sobre os insucessos do marido fora dos muros estritamente
conjugais poderia ser razão suficiente para explosões de vio-
lência, uma vez que quebrar o silêncio sobre o assunto colo-
cava sob forte ameaça a representação masculina dentro e
fora de casa."
A repercussão nos sentimentos masculinos diante da
impossibilidade de ser o único provedor da família, de acor-
do com os padrões tradicionais, foi observada também por
Rosa Maria Barbosa de Araújo, na sua pesquisa sobre o Rio
de Janeiro das primeiras décadas do século. Alguns maridos
16. "Pode-se, acaso, conceber o anjo chegavam ao desespero e cometiam suicídio, "justificando o
do lar transformado num desses ato pela derrota moral de não cumprir seu dever"," Isso leva-
energúmenos de partido? Pode-se
va a se considerar desonrosa a alternância ou complementa-
conceber esse ser delicado e sensível
à controvérsia, à injúria, à calúnia?';
ridade do trabalho remunerado dos cônjuges para enfrentar
indagava a Revista Feminina. os custos da sobrevivência familiar, pois acreditava-se que
A divinização da mulher entrava feria tanto a identidade social desejável da mulher quanto a
em choque com a campanha do homem.
que agitou o puis nos anos 20:
No editorial de outubro de 1918 da Revista Feminina,
a aspiração da mulher à cidadania
- votar e ser votada. Mas não Ana Rita Malheiros, como vimos, pseudônimo de Cláudio de
faltavam publicações, corno Souza, chegou a responsabilizar o homem moderno pelo
O Malho, a tratar com ironia os dois avanço do feminismo. Transformado num "quase invalidado"
direitos reivindicados: o de votar {/III diQ dt so:ssiio NO plt,lamcN'o do t"hlfl1 porque incapaz de produzir "o suficiente para o sustento de
e O de ser votada e eleita. (Quando
seu lar", o marido compeliu a mulher ao trabalho, quando, na
as mulheres forem eleitas, /927)
verdade, ela preferiria, segundo o articulista, "continuar tran-
qüila no seu canto de sombra': ocupada com os "encargos da
elementos de identificação do lugar do homem e da mulher direção do lar".
em todos os aspectos da vida humana. Não se pode esquecer ainda que a contrapartida do ma-
As desigualdades entre as funções desempenhadas por rido provedor era a mulher responsável pela honra familiar,
homens e mulheres, que os identificaram ou com a rua ou Ou seja, em troca do sustento garantido, a mulher casada
com a casa, não vieram desacompanhadas de uma valoriza- deveria se distinguir socialmente, respeitando os ditames da
ção cultural. Isto é, as atividades masculinas foram mais re- moral e dos bons costumes, evitando assim incorrer em injú-
conhecidas que as exercidas pelas mulheres, razão pela qual

..
/7. Nos recônditos do mundo
feminino a promessa é de [clicidade.
Como se o casamento por amor,
a realização da mais sagrada missão
da maternidade e o cumprimento
regrado dos deveres da boa dona CONFf:CCÃO DE ENXOVAES FARA NOIVi\S
de casa fossem o passaporte para
o sonhado "lar doce lar': Com 'I Lençócs .1.' ),nh() puro t"lritado~ cueu b~.oh~s .:Ibert,n ( ra-

lucidez, a romancista Júlia Lopes se:ulosa1\lão. rts no&uoo

de Almeida apontou: "Uma só alma " Iii Fronhas de lil,ho puro, enfeitadas COm bainhJs aber t .. s e ,~.
;:'105000

em dois corpos é a metáfora que foi :!8q~llOO


s.cadas. a mão.
criada pelo diabo em hora de Ironia': II Colchas de FusU .. I1fliOOO

Afinal, não é a mulher, quem I Mm;'luit~iro ..:__ .~~


faz ou deixa de fazer. É o marido
1'2 Toalhil~ de Unhu adamascado liMa ,o~t"
quem "dá gostos, impõe vontades". !tI Toalhas telpndaspara msto
Na verdade, a "casa é o mundo ti Toalhas lelpud.'IS para banho

que está a seus pés, obediente ao seu ti Toalllas para mesa sendo: :I de linhu pum e /2 t.le a1iodão
rcsooo
gesto': Até mesmo as portas abrenHe superiorp:)'
N Guardanapos para janiar, sendo 11 de iinho ~'lIro e I<!de ..I.
"a 'luem ele quer, fecham-se a quem ria grave, definida como o procedimento que "consiste em godiiosuperiorpor
lhe convém': (Familia italiana no
salão, J 929) ofensa à honra, respeitabilidade ou dignidade do cônjuge"." I Gn.unição para cM, de linho pUfO (0'" ban~ de cor C bzi
1OIfOO

Isso significa dizer que o julgamento do comportamento do 18 Pannos para copa, linho vuperior ~ __~~ _~ __~,2'i~

marido pela sociedade dependia em grande parte do com-


portamento da mulher.
O mesmo discurso que tornou correiatos trabalho e
identidade masculina concebeu a mulher circunscrita ao es-
paço interior da casa. A arquitetura do lar feliz aprisionou Roupa p,lfa o corpo R5 1:650S(OO

lMJOOO
homens e mulheres dentro de uma moldura estritamente 945WOO 18. Possívelgarantia de uscensâo
normativa. Homens e mulheres, maridos e esposas passaram 520S!}W
social, um bom casamento também
a se defrontar não só com uma noção mais delimitada dos 10lill ~~ podia gerar bons negócios. Não
papéis sociais atribuídos a cada sexo mas, sobretudo, com faltava quem quisesse tirar proveito
disso: como "livrar-se do aperto"
uma rigidez provavelmente desconhecida até então em suas Wagner Schâdlich & Coo ao fazer face aos custos dos enxovaisi
experiências cotidianas. nossos Enxorces paro
Muito simples: tomar dinheiro
Iloíuos
Se uma coisa era o rigor da lei, outra coisa podia aconte- RUA DIREITA N. 18
emprestado com um dos tIl'útos
cer na intimidade de alguns lares. Foi uma dessas situações "capitalistas" da época. (Confecção
que o escritor paulista Alcântara Machado construiu em seu de Enxovais para Noivas, 1917)

romance inacabado Mana Maria, cujos originais foram loca-


lizados após sua morte, em 1935. O autor cria um persona- discutiu com tal firmeza seus direitos de filha legítima que
gem - Purezinha, dona de casa, mãe de uma filha - que, até o pai se surpreendeu. E ainda mais se espantaria ao ouvir
navegando contra a corrente das normas de então, assume o a explicação da filha: "[...] conheço as leis do meu país': Ma-
governo da casa, aluga imóveis, aplica dinheiro. Converte-se, ria vai ao quarto e de lá retorna trazendo consigo um exem-
enfim, no cabeça do casal. Quando Purezinha morre, a filha plar encadernado do Código Civil, o que levaria o pai, Joa-
Maria emerge "de palavra medida e dura, gesto brusco e deci- quim Pereira, a "estourar" de admiração: "Você é sua mãe
dido, olhar firme, direto, autoritário". Por ocasião da partilha escarradinha". Fora Purezinha, sua esposa, quem comprara o
dos bens da mãe, a moça fez questão de estar presente, e Código agora descoberto, lido e relido pela filha. "Incrível.
Definitivamente sumiu diante da filha",que, a partir de en-
384 • HIS10RIA DA ViDft. i'RIVAlJt-, "lU ~RA)ll :J

tão, "conversou com o advogado, estabeleceu os quinhões ter a relação entre homens e mulheres em um vínculo disci-
[...] e, concluído () inventário, passou a tomar conta de todos plinado, ou mesmo harmonioso, de modo a tornar segura a
os negócios, do pai inclusive,'?" reprodução da ordem e afastar os riscos que ameaçavamde-
sarranjar os planos da organização doméstica. O menor sinal
A PEDAGOGIA DO CASAMENTO de flexibilizaçãona divisão sexual das funções no interior da
família era repercutido pelos conservadores e reformistas
Cenas de um casamento. Antes de perguntar ao noivo e à como uma ameaçadora vaga modernizante. Contra os "sur-
noiva se eles de fato querem unir-se pelos sagrados laços do tos grandiosos do progresso" que faziam "oscilar o mundo",
matrimônio, o oficiante faz uma prudente advertência ao alertavam eles, "sejamos como a árvore poderosa arraigada
homem: "Se o senhor quer se casar com a senhora, devo ao solo, imutável, idêntica a ela mesma",procuremos no "lar
preveni-lo de que ela, como todas as demais mulheres, tem o ser estávelque nenhum acontecimento pode abalar"," Rosa
um dia ou mais de nervos por mês. Ao unir seus destinos à Maria Barbosa de Araújo acredita que no caso do Rio de
dona de seus mais caros sonhos, o senhor 'deverá comprome- Janeiro prevaleciauma dupla moral, responsávelpelas ruptu-
ter-se a suportá-Ia com paciência nesses dias". ras do equilíbrio e pelas explosões de conflitos dentro do lar,
Antes mesmo da anuência do noivo, ele acautela a mu- muito presentes no período. Alguns fatores precisam ser con-
lher: "Se a senhora está decididamente resolvida a casar-se, siderados, sublinha a autora: primeiro, a discrepância entre a
advirto-a, para sua segurança futura, de que o senhor, como expectativa de uma divisão rigorosa das esferas de atuação
todos os homens, poderá ter acessos de loucura transitória. entre os cônjuges e a prática cotidiana; segundo, um sistema
Ou, digamos, de pronunciado mau humor. Tal estado costu- rígido de valores que exigia coerência de comportamentos,
ma durar pouco. Quase nunca excede a um dia, e é muito tanto na esfera doméstica quanto fora dela, algo bastante di-
raro que se repita por mais de três a quatro vezes por semana. fícil num período de urbanização e industrialização crescen-
Fica a noiva avisada de que, para contrabalançar seu dia de tes, as quais convocavamos indivíduos e a família para novas
nervos, terá que suportar o dobro em peso e medida, por formas de associaçãoe lazer,ao mesmo tempo que ofereciam
parte de seu marido, que é o rei da criação e o chefe da outras oportunidades, ainda que desiguais, de trabalho."
família". As inovaçõestrazidas pela tal "vida moderna" povoavam
A cena imaginária, que no final do século xx pode soar as páginas dos mais diferentes tipos de literatura, o que por si
como uma caricatura anedótica das relações entre marido e só indicava um forte movimento em prol da defesade deter-
mulher, está expressamente sugerida em um artigo da Revista minadas instituições basilares da sociedade, mesmo que para
Feminina, na edição de abril de 1916.Ainda que com a suti- isso fosse necessário acatar mudanças e introduzir outras.
leza permitida pelos valores de então, a autora da situação Nada, entretanto, que pudesse ferir a legitimidade das regras
acima inquieta-se pela injustiça. Se é difícil agüentar os pró- do sistema familiar e social.Carregava-se no tom para justifi-
prios nervos, escreve ela, "é mais cruel ter que suportar os car a reação "contra certas teorias dissolventes"que dia a dia
dos outros, principalmente quando o contrato é indissolúvel, alimentam "a onda de imoralidade e da perversão dos costu-
com todos os agravos e todas as restrições para nós mulheres mes que tenta levar de vencida tudo o que a humanidade
- e todas as vantagens e toda a liberdade para nossos mari- possui de melhor'."
dos, que em tudo nos levam cento por cento". Não é sem desconfiança que lemos sobre a intensidade e
Longe de indicar o colapso do casamento, as reclama- velocidade das mudanças na vida das mulheres brasileiras.
ções e acusações mútuas de maridos e esposas apontavam a Algumas décadas não foram suficientes para influenciar tão
necessidade de remodelar o casamento para reforçá-lo como fortemente a mulher, transformá-la em "pobre mariposa" e
instituição social. Argumentos foram elaborados para apazi- arrastá-la para "viver com o mundo e para ele",como queria
guar e tornar legítimas diferenças injustas, pois urgia conver- uma leitora da seção "Jardim fechado';" Ao contrário, tais
palavras mais revigoravam uma velha moral e menos revela- ao edifício social e à pureza do casamento, eram motivo de
vam "a dissolução dos costumes",como denunciava o dr. Vi- discursos que não poupavam os homens tampouco as mu-
veiros de Castro, presidente da Comissão Executiva da Liga lheres. "É um erro funesto crer que a virgindade conserve o
de Defesa Nacional." brilho da tez e os atrativos da juventude. A maior parte das
Qual é a missão da mulher? E qual é a do homem?" mulheres que ficam virgens depois de ter atingido o desen-
Essas eram indagações com as quais homens e mulheres, volvimento completo são assaltadas por LImamultidão de
maridos e esposas se debatiam na tentativa de delinear para indisposições mortais", inimigas da beleza e da saúde. Na
si mesmos e para a sociedade em mudança seus respectivos medida em que "tardam a cumprir os deveresde amante e de
papéis sociais e familiares. Sem poder dizer com exatidão mãe", sua pele tende a tornar-se "terrosa e baça".Com mais
quais seriam os futuros encargos de ambos, intelectuais das freqüência que os "indivíduos normais", os castos "estão su-
mais variadas correntes de pensamento empenharam-se em jeitos a tornar-se escravos de paixões sexuais tirânicas. A na-
estabelecer "com precisão" os limites entre os caracteres dos tureza nunca perde os seus direitos e a sua desforra é às vezes
dois sexos. penosa'."
Diferentes biologicamente, diversas psicologicamente, Foram, porém, as camadas mais baixas da população -
desiguais socialmente, as psiques do homem e da mulher operários, imigrantes, mulheres pobres, mulheres sós, negros
eram vistas como "meros reflexos de suas posições físicas no e mulatos - que tiveram o comportamento mais fiscaliza- 20. No Brasil do começo do SéCIIlo,
19. O significado do verbete Mãe,
amor: um procura, domina, penetra, possui; a outra atrai, do e submetido a medidas prescritivas.As múltiplas e impro- condcrlava-se qualquer alimento
segundo o Grand Dictionnaire abre-se, capitula, recelie. O trabalho, pura sublimação dos visadas formas de união amorosa nesses segmentos recebe- que não o leite materno - tanto
Larousse do final do século XIX, impulsos naturais, sempre será alocado pelosexo, em harmo- ram especial atenção das camadas médias e altas, bem como pelos nutrientes como porque por
é revelador do entendimento que meio do aleitamento a mãe
nia com estas disposições'l" Os mais variados discursos sobre dos intelectuais conservadores e dos clérigos. Decididas a
a sociedade tinha da maternidade: transmitia sua herança moral
a família e o casal - literários, religiosos,médicos e jurídicos institucionalizar o amor com vistas a sustentar uma determi- e o amor matemo. Condenavam-se
"Ela recebeu da natureza a tripla
c sublime missão de conceber, de pôr - decretavam, a partir de meados do século passado, que.era nada ordem social, as elites transformaram em ameaça os tlS amas-de-leite: vistas como agentes

no mundo e criar o gênero humano. no lar, no seio da família, que se estabeleciam as relações relacionamentos ajustados por padrões mais flexíveise simé- de contaminação, elas poderiam 'Ião
Convém pois esquecer as lacunas sexuais desejadas e legítimas, classificadas como decentes e tricos, classificando de imorais as uniões cujo epílogo não só trazer doença para dentro de caSII,
do seu caráter, as perfídias das suas higiênicas. como causar danos morais e físicos
coincidia com o casamento."
seduçoes, as imperfeições da sua ao bebê. Como garantia foi criado
natureza, e não lembrar senão esse
Ao sentenciar que "o amor ao próximo, à família, à pá- Traçadas as linhas da "conduta decente",os promotores um serviço de inspeção da boa saúde
fato que é como que a razão do seu tria, à humanidade são metamorfoses ou sublimações do da moral e da ordem classificaramcomo ilícita toda e qual- das amas. Muitas foram recusadas
ser': (Sem título, 1920) amor inicialmente sexual",isto é, a domesticação das paixões quer relação entre homens e mulheres que se firmasse fora pelos médicos pois eram portadoras
e dos desejos pecaminosos," os "higienistas da alma",a exem- do contrato matrimonial. Em nome de uma ligação de amor de doenças como corrimento vaginal,
infecção urinária, tuberculose, má
plo do psiquiatra progressista Antônio Austregésilo Lima, que fundisse existências, e não somente sexos, o amor na
qualidade do leite, anemia, infecção
reafirmaram o juízo já de larga tradição cristã: "Fora do casal mancebia foi transformado em objeto de intervenção. Amor na pele, sífilis, entre outras.
não existe salvação possível'." Paralelamente a tais incursões, degenerado, espectro de amor, imitação de amor: esses eram (R. Lindemann, Ama - Bahia,
sentiram-se à vontade para esquadrinhar, fiscalizar e con- os termos do discurso que pretendia regular as uniões c. 1905)
frontar padrões de comportamento. E, em nome da salva- consensuais. Na obra anónima O problema sexual, escrita em
guarda da família, condenar os desvios da norma. 1913 (assinada apenas por "Leitura Reservada",e prefaciada
Se o casamento representava uma etapa superior das re- por Ruy Barbosa e pelo escritor Coelho Neto), o leitor en-
lações amorosas, se foi proclamado "garantidor da saúde da contrará certezas como a que afirma que "no concubinato
humanidade", o melhor remédio para o corpo e para a alma, dissipam-se sensaçõesde que temos necessidade para o casa-
e se constituía uma das maiores fontes de "estabilidade so- mento, para as grandes ações da nossa existência, para
cial",era preciso, então, divulgá-lo e transformá-lo numa ne- reacender a chama da vida",em razão do que todas as "forças
cessidade para todos." Os celibatários, vistos como ameaça das nossas faculdades amatoriais" devem ser reservadas para
l'
"aquele amor'; pois é muito longa a vida "para ser suportável
com UIll amor valetudinãrio"." .
II
Não há felicidade senão no casamento, profetizava o
médico eugenista Renato Kehl. É nesse "estatuto que a mu-
lher se transforma em Esposa e o homem em Esposo, e que a
Esposa e o Esposo se transfiguram em Mãe e Pai':·13Seme-
lhantes lições e argumentos foram propagados por todo o
país com o intuito de "civilizar o amor"," Alguns propósitos
profiláticos deveriam ser disseminados com a finalidade de
instruir moças e rapazes a protestar contra a paixão infecun-
da, indicativa de desordem, em favor do sereno e saudável
amor conjugal. A ordem era combater com ânimo a invasão
impetuosa dos desejos para se atingir a serenidade da exis-
tência, pois a saúde da alma dependia de uma atenção vigi-
lante pelo amor intenso. Ao mesmo tempo que atacavam a
21. Em quase todos os números
exaltação da paixão romanesca, tais conselhos reforçavam a
da Revista Feminina podia-se ler instituição matrimonial. Mais do que estabelecer uma rela-
o eterno refrão: toda mulher deve ção conjugal, o casamento visava, ainda, instituir uma união
tornar-se mãe. Havia quem, cuja finalidade era não apenas generativa mas a produção de
entretanto, remasse contra essa maré: uma prole legítima."
em 1893 o médico Abel Parente
Na obra Matrimônio perfeito, que, por se tratar de um
enfremaria forte oposição por hoje é o mesmo do bacteriologista, isto é, descobrir e isolar o 22. ''.4. esposa, a boa dmUl de casa
ler desenvolvido um método trabalho de "ciência sexual", era recomendada por seu sabe perfeitamente (luai, os gostos
micróbio. O resto está escrito, é aplicar as regras","
destinado a esterilizar mulheres. prefaciador para "figurar na 'corbeille' de todas as noivas", do marido, seus pratos p"cJúidos
Argumentava-se que o Brasil era O campo semântico do amor conjugal passou ~ ,~gitar-~e e a maneira pelo qual os quer
T. H. Van de Velde assinalou que a instituição matrimonial é
um país novo e despovoado e que em torno da idéia da "alegria serena" para fazer face a escravi- arranjados. Ela sabe ludo: o lugar
para os crentes um sacramento, é para o Estado e para a socie-
seu desenvolvimento dependia dão das paixões cegas",cujo corolário er~m as "torturas d~cor- que o marido gosta mais de estar,
do aumento populacional. dade um consórcio indispensável, mas é para a progenitura a cadeira escolhida, o descanso para
rentes do ciúme"." Não por acaso a Imprensa do penado
Eugenistas; no entanto, saíram que se constitui, de fato, em uma instituição de absoluta neces- pôr os pés I...J Qual1do o marido lê
carregou nas tintas ao criar o espetáculo daquilo que a juris-
em defesa do médico, mas sidade. Tal certeza levou o autor a indagar: se os filhos "são o não o interrompe, nem deixa
preconizando um processo selctivo prudência denominava de "crim,~~,da paixão". Títl~~osesc~~~a~ perturbá-lo sem motivo. Mas se ele
laço de união espiritual mais poderoso no matrimônio nor-
de esterilização, que ficaria restrita losos ("Liquidação de mulheres, Mulheres assassl~:d,~s , . ,D~ llle fala do que a leitura sugere,
mal", o que mais poderá unir um casal que os cuidados com
aos casais pobres, às mulheres 12 em 12 horas assassina-se uma mulher no Brasil, O jun, a esposa mostra-se interessada -
que corressem risco de vida sua progénie!"
esperança dos assassinos ..:', "A apoteose ao as~assi~ato") r~ve- ou procura interessar-se pelo assunto
em decorrência da gravidez Recorrendo a uma argumentação que invocava os supos- lavam menos uma preocupação com a banalização do cn~e - porque em tudo qller ser
e aos casais com doenças que, tos rigores metodológicos e explicativos do saber científico, o agradável ao marido, e isso agrada-
acreditava-se, provocavam a passional que a reiteração de que aqueles .eram te~p~s muito lhe sem dúvida. Tudo isso são
amor ideal tornou-se uma questão de ciência e foi transforma- maus "hora das liberdades de toda espécie, da falência de to- pequeninos nadas. Pois esses
degenerescência da raça, como
a tuberculose e a sífilis. (Sem título, do em objeto de técnica, de "argúcia, análise e ação paciente", das as virtudes';" Criava-se uma atmosfera que já vinha sendo, pequeninos nadas é qlle têm maior
1917) como sublinhou um autor na revista Para Todos, 110 ano de pouco a pouco, construída de maus presságios: Diante de tan- importância na vida." (O menu
1918. O "amor de sofrimentos" passou de tal forma a fazer to perigo e das incertezas geradas pe!o ambiente urbano, o do meu marido, 1920)
parte do repertório das patologias que amor, saúde e felicidade amanho do lar e da família foi convertido em ancoradouro da
passaram a coincidir nos discursos sobre a família." Certa- moral sagrada. .'
mente foi essa convicção que conduziu o mesmo "epicurista" a A construção de uma referência normativa de afeti-
escrever em seu artigo que "o trabalho do homme ti femme de vidade conjugal era o que se alinhavava, de fato, no avesso do

1
390 . I W;[C;'IA DA -/ID,\ Pl'lvADA NO B~ASll 3

lema "Poupai o coraçao - e suas marcas mais relevantes 23. Pretendia-se ensinar uulo
às mulheres. Para evitar equtvoa»,
foram o ascetismo e a disciplina. E mais: ao mesmo tempo a Revista Feminina re(lmlnui~lj!tl,
que procurava instituir um espaço e um âmbito exclusivo do rIOartigo «Deveres de uma st'lIhora ":
casal, separava para os sexos as esferas tanto de atuação "Quando receber um CIIvalhei,.o
quanto simbólicas." A esposa virtuosa foi aclamada e cercada da.<suas relações,se não prcfcrir
por comandos morais. Prescreveu-se para ela complacência e apresentar qualquer pretexto para
o lião receber,[a-lo-à muito
bondade, para prever e satisfazer os desejos do marido sequer naturalmmte, mas empregando sem
expressos; dedicação, para compartilhar abnegadamente com aietação todos os meios para lião se
o cônjuge os deveres que o casamento encerra; paciência, comprometer, como deixando aberta
para aceitar as fraquezas de caráter do cônjuge. E, enlaçando a porta da sala e indicaIlda parti e/e
sentar-se em um lugar em frente
tamanhas disposições, a virtude maior da amizade indulgen-
de/a, afastado e mmca ao seu lado':
te.? O perfil traçado para a esposa conveniente contava ainda (lO Protocolobeija-mãos!, 1920)
com indefiníveis qualidades, tais como simplicidade, justiça,
modéstia e humor. Seu antípoda ameaçador era a moça dos veniências econômicas e os interesses de classe moveram a
tempos modernos, "esbagachada", cheia de liberdades, "de linha da parentela para relacionamentos mais horizontais,
saia curta e colante, de braços e aos beijos com os homens, uma vez que a "riqueza tornou-se um critério de status mui-
com os decotes a baixarem de nível e as saias a subirem de to mais importante'." Os vínculos matrimoniais eram garantia
audácia';" exposta à análise dos sentidos masculinos, "perfu- de controle sobre o poder, da mesma forma que funciona-
madas com exagero, pintadas como palhetas, estucadas a ges- vam como proteção contra as freqüentes ameaças de desas-
so e postas na vida como a figura disparate de uma paisagem tres económicos. Assim, longe de ter esgotado sua capacidade
cubista"> de interferência, os pais não negligenciavam a vigilância so-
No bojo da urbanização que punha em convívio tradi- bre os filhos solteiros, agora rodeados pelos desvelos pedagó-
ções e costumes tão díspares e mesclados, a imprensa, princi- gicos das "mães educadoras". Instrumento das estratégias fa-
palmente a feminina, realçava a importância e o sentido da miliares e cercados por toda sorte de "estímulos", os jovens 24, 25, 26, 27. A mulher recebeu
educação: "Sem instrução e com essa espécie de educação, deveriam se comprometer com pessoas do mesmo círculo do século XIX uma duvidosa
que pode ser da menina modernai";" Acolhiam-se, assim, os social. O amor não atuava sozinho, sublinhou Jeffrey D. herança: a cintura de vespa.
propósitos positivistas e impunha-se uma missão, a de mol- Needell," o que em certa medida relativizava a questão da Para obter tal predicado, no entanto,
a mulher teve que submeter-se
dar o pensamento, o comportamento e, em última análise, o livre escolha dos cônjuges. Se alguns eram estimulados, ou-
ao espartilho. Mal dissimulado
caráter das gentes. Em tom freqüentemente professoral, tros eram coagidos pelos pais, como atestam inúmeros pedi- i'Jstrumento de tortura - rígido,
invectivava-se a formação dada às moças daquele tempo. Do dos de anulação de casamento, cuja principal alegação é "ví- feito de pano forte, mantido ereto
que a brasileira mais precisava para fazer valer o seu "direito cio da coação'i'" por varetasfeitas de barbatana
de ente pessoal e civilizado", escreveu a articulista Chrysan- Novas estratégias de educação amorosa eram elaboradas de baleia -, ele atrofiava as últimas
costelase sacrificava também o baço,
theme, "não é de elegâncias nem de danças, mas sim de ins- com o objetivo de preservar o tradicional modelo matrimo-
o fígado e os rins. A partir de 1918
trução e de educação'l" Admoestados com conselhos, fórmu- nial. Se o propósito era expandir e legitimar a instituição varetasflexíveis de aço vieram
las e regras, homens e mulheres aprendiam a conservar o conjugal, a causa final consistia em normalizar a sociedade e diminuir um pouco tal sofrimento.
matrimônio, "fatalidade social necessária'." regrar os comportamentos sexuais. A imposição era obstina- As gordas com pretensões à elegância,
nO entanto, continuavam padecendo:
Muito embora as estratégias matrimoniais no interior da e vinha sempre secundada por considerações de caráter
li transpiração produzida por seus
das elites tenham iniciado, no transcorrer do século XIX, um científico: "[ ... J não desprezais os vossos órgãos de amor, mas corposprovocava ferrugem
movimento de superação das relações mais verticalizadas, ou regrai-os!"," O processo civilizador das relações interpes- e destruía não só os espartilhos;
endogâmicas, os interesses familiares continuaram represen- soais, moldado conforme o padrão das elites, deveria "conta- mas toda a roupa que os cobrisse.
tando um papel fundamental nos arranjos conjugais. As con- minar" todos e de todas as classes. No âmago do sistema ([ Espartilhos e concepção I, 1982)
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ordenado de acordo com aquelas regras, a família - consti-
tuída por um único "princípio de regulação e reprodução: o
r século xx é um debate cauteloso sobre a conveniênciaou não
de os educadores iniciarem a mocidade nos assuntos da vida
...., \ I,' 01 SI 1\ '·/) -, .,1 II, 1 ,'IA
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casamento":" nas franjas dessa ordem, as camadas mais bai- sexual. "Os adeptos da velha escola do silêncio pretendem \
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xas da população, gente a ser educada, pois era vista como cin- que isso não se possa fazer sem ofensa ao pudor [...1 Os ino- i ; i '
turão de desordem e terror. vadores sustentam, pelo contrário, que os perigos morais da II ,
Engrenagem fundamental dessa lógica, as mulheres, en-
tre outras obrigações, arcaram com a tarefa de apaziguar a
vida moderna são tão freqüentes,tão reais e terríveis em suas li ~:~
conseqüências que [...1 é preciso não fazer caso disso.?" l _
sensualidade do casal. Aceito e desejável, o culto à beleza, "A sorte de um matrimônio depende da noite de núp-
sublinhou Marcia Padilha Lotito, deveria estar identificado cias",escreveuVan de Velde." O primeiro contato tanto pode
com os princípios médicos e higiênicos, nunca à sedução. conduzir o casamento para um "estado amável" quanto
Com isso, "o discurso higienista procurava assegurar os limi- transformar-se numa "violação legal".Não serão poucos os
I" , tes entre a vaidade das mulheres 'honradas' e a libertinagem médicos, assim como será abundante a literatura médico-
I Rs.21$000 ;
de mulheres de 'conduta duvidosa' que desfilavam pelos tea- sexual, que estigmatizarão a conduta por vezes brutal dos

i~t:I~l;~~:
::~:~:f:~~:::'~~i:):,::::::;~TI
tros e cafés da cidade'l=
Conter os excessos masculinos e "equilibrar a contabili-
dade de afetos para a preservação do lar", faziam parte do
conjunto dos deveres da mulher." Assim,a própria galanteria
conjugal passou a ser entendida como a arte moral de encan-
maridos no primeiro contato sexual.Ao mesmo tempo pro-
porão para as jovens uma iniciação sexual de cunho livresco,
pois a inocência, ou, melhor dizendo,"a ignorância em maté-
ria sexual, esse estado beatífico em que muita gente aspirou
29. As mulheres experimentariam
vitórias pontuais no [ma!
da Primeira Guerra: para
as dotadas das chamadas
"exuberâncias adiposas'; a boa
!."""'.' ",iti,., 1"""""""1
';.,; .~~I"t"'·HS. conservar as próprias filhas'?" significa, de fato, aparelhá-las notícia foi o advento da cinta
Il',c,.,-~ ;\ ucsueo
!
,ln 1I>.~OtJl)
(Pf.{jli' O tdlat~g~Illustrad~) I tar, de agradar, tanto no campo social quanto na intimidade, mal para o desempenho conjugal desejado. O conflito da elástica. Mas não foi sJ isso:
I ". i sem se comprometer." Mais próxima do ideal de amizade noite de núpcias tem sido para "essasdesgraçadasingênuas a no lugar do cano das botinas, já
:' I amorosa, pretendia-se purgar os exageros e os percalços das beira do abismo [...] a fobia sexual,a desinteligênciado lar, o se podia ver um palmo de perna

.----=/
- embora as saias insistissem em
relações conjugais de modo a torná-las mais fortalecidas e inferno dentro do céu doméstico'." De nada valem as pala- continuar próximas do tornozelo.
afastar cada vez mais a ameaça do divórcio. Na busca da vras rápidas da véspera, proferidas pelas mães. Antes abrem, Segundo Barros Ferreira, até
"união para toda a vida': o casamento encontra sua razão de de chofre, um mundo inteiramente estranho, e perigoso, ad- mesmo essas fímbrias de liberdade
28, A medicina viria em socorro ser na "mútua estima e amizade dos esposos",e "seja qual for verte Porto-Carrero. Não raro a noite nupcial se transforma iriam encontrar a resistência
da mulher, qualificando o espartilho a maneira por que se manifeste': é sempre na forma de sim- para a moça, entre ingênua e ignorante, numa noite de sacri- de um "coro composto por muitas
como "uma fraude, um logro [... ) patia, "independente dos arroubos sentimentais", que se des- pessoas, que reclamava: - O
fício, em que ela se submete à sagacidade do noivo, "ávido
uma escravidão e uma crueldade': mundo está perdido! Para onde
vanecem com o tempo. "Não se enganem as jovens espo- para mostrar a energia potencial';"
Em seu livro - Cuidados caminhamos com tão generalizada
higiênicos da mulher grávida, sasl?" O que se vê, de fato, é a construção de uma relação Clotilde do Carmo Dias lembra que na sua noite de falta de pudor?': (Cinta "de bom
o médico Antônio dos Santos conjugal mais marcada pelo respeito que pelo princípio do núpcias ficou durante bom tempo no quarto, sem coragem elástico Malhou", 1924)
Coragem trata do problema sem prazer. de se deitar, enquanto seu marido a esperava ansioso.Aquela
rodeios: "O trabalho às vezes Apesar da ênfase na amizade entre os cônjuges era pa-
extenuante de apertá-lo, o suplício
era a primeira noite que eles estavam a sós: "[...] agora tinha
daquele aperto, os vincos que deixa
tente, sobretudo entre os médicos, a progressiva conscienti- até medo do meu próprio marido. Onde não existeamor não
na carne macia, () aUvia que sentem zação sobre a necessidade de educação sexual dos jovens. há confiança, e eu não estava enganada. Meu marido nesta
quando se despem [... ) Ela acaricia Convertidos em guias científicosda família,os doutores mos- noite deu largas a seus instintos bestiais, cheios de luxúrias
com as mãos crispadas as carnes travam-se cada vez mais preocupados com a inocência,a igno- indecentes e insaciáveis, que em vez de gerar em mim o
machucadas pelas barbatanas, pelos rância e, principalmente, a brutalidade que cercavam as prá-
atilhos, pela tela rude. Depois,
amor, faziam-me sentir repugnância por ele. Eu desejavaum
mira-se 110 espelho e verifica com
ticas sexuais, desastrosas para a estabilidade do casamento. "A carinho todo especial, delicado, respeitoso e moderado. Eu
tristeza que aquela carcaça deixou nossa educação está errada. Todo o domínio sexual anda en- lutava em pro I d e um amor sublinne e et erno"73
.
sobre o corpo delicado pisaduras volvido em um mistério que não é natural, entre véus de Os maridos recém-casados foram persuadidos a "prati-
violáceas': (Le Corset "Hann" 1914) excessivo pudor."? O que se vê nas primeiras décadas do

1
car o defloramento, com especial cuidado", a se comportar
394 • HI') lOR1A DI' V:LJ/\ í'RIV,AOA ~'JO BRASil J

como "cavalheirose artistas em matéria de amor': pois a bru-


J 1, De repente as vitrines ~ í'HIfÚ/(/;)S
talidade, a agressão e a violência "redundam em mal-estar passavam f1 exibir produtos co",
profundo que se implanta na psique da mulher':74Vários nv1I'les enigmdticos: U 'lI/e :,er;UI1I
conselhos foram prodigalizados pelos médicos, que se empe- Kotex, Kcz, Modcss? Nas páginas
nhavam ainda em definir as normas e as condições indispen- de revistas t! nos grandes rnagazines
começava a derrubada de 11mtabu
sáveis para o bom êxito do matrimônio. Para satisfazer tal -- ti menstruação. () mistcrio com
necessidade o casal precisava "aprender a ser feliz"." A 71 - Pannos hn}ú>niço5 em que a sociedade cercava I) assunto
bom tecido felpudo. rematados por
Ultrapassado o obstáculo da noite do casamento _ ou ~~::/.;r!~e.l~~z~~l't()n' Cí)!l113$5 pode ser medido por 11m episódio
como difícil provação para a mulher despreparada ou como A 72 ~-- Cinto em ceochc t paru
vivido na infância por d. Risoleta:
"Disse pra minha irmã: '~. Titia
um exercício de habilidade ou violência para o homem _, ~~r"i~~~~o;:~:;gO;~~~r:'\:;ci~
7$fi
está doente, está com a doença
restava ainda outra aprendizagem: a da vida conjugal, A 73 - Talco "Míretlc' cxccl.
de dona Zenaide'. Minha mãe
construída graças às contorções exigidas e impostas às atitu- ~cnt~ril~d~d~~:~lta'~;~~T:~~
8$5
escutou. Aí deu lima surra de couro
A 71 _ Toajbns nygknic:a;; CII\

des e aos comportamentos dos homens e das mulheres, vistos fc~:{do~{'~o'~.Jw~:~~~~6$


~~~~~~.
que até hoje quando me lembro dói.
sempre através das lentes do corpo conjugal. Para a mulher Sabe a doença o que é?
A 75 - Protector em l:orradlH I'
E a menstruação. A patroa é que
casada, sujeito a ser educado com determinação, elaboraram- ~~~:~~II~.~~~k,
de !'<l'í(,~:~Çc~~
12$5
tinha essa doença [...] a gente via ela
se decálogos, como o publicado na Revista reminina:76 A 76 - Paunos hyqicmcos un MJ-

lavando aquela roupinha meio


r,,~gntr~ SI em lodllJ IS boIS ,~.rlllaclls
nUA DA. QUITANUÁ. 12, aala 7
e druglrlas
f~lifIt~~i:i~fel~u~o- Pac~. 12$
~J[ell!"JOSIJ\'O DO~U'JII'.l Decálogo da esposa A 77 ~ Calça santtarta t>1I\ borra-
escondido, sabe criança como é?
cha e merquíserte. rematada por A gente já estava grandinha, mas
Ama teu esposo acima de tudo na terra e ama o ~:~~~Il~edK~~~~~~l<1-
F<lbri:,13$:i nunca ninguém explicou, ensinou".
30. Sob um irônico busto de Baco, teu próximo da melhor forma que puderes; mas (Artigos sanitários, 1936)
a mulher busca o remédio para lembra-te de que a tua casa é de teu esposo e não
O «histerismo" e para o "nervoso'~ do teu próximo;
O desejo, a insatisfação e o mail
II Trata teu esposo como um precioso amigo;
humor eram considerados o lado
sombrio da natureza feminina, feita como a um hóspede de grande consideração e
de abnegação, renúncia e perdão. nunca como uma amiga a quem te contam as
A ela deveria caber a tarefa pequenas contrariedades da vida; A 79 - Servlets hvqtcnlcos
de equilibrar os afetos dentro de casa A ÓO~- Servrets bvqlcnicos
III Espera teu esposo com teu lar sempre em ordem "Modcss" esterflisadcs, fa-
"Kotev". acondtctonamento
e de ser a exewtora da política
e o semblante risonho; mas não te aflijasexcessi-
mosa prodncção de John- b~~~od~:
~~i~~ .. 13$5
higienista que estabelecia os limites ~ncotef, IJohd~:~~ 9$5
A 82 - Servíets saunartcs
entre a vaidade das mulheres vamente se alguma vez ele não reparar nisso; A 81 -- Calca hyglcnlca
compressos da acreditada
marca ingleza "Southall's"
"honradas" e a libertinagem IV Não lhe peças o supérfluo para o teu lar; pede- em marquisctte e borracha,
ornada de rendas delica-
caixas de lima dllzia. sub-
das mulheres de "conduta duvidosa': lhe sim, caso possas, uma casa alegre e um pouco das. cinto de C"lastico18$5 l~t~d~d;1:1m~mun~~!~.~
17$5 32. Sobre os ombros da mulher
(A cura do desejo, 1912)
de espaço tranqüilo para as crianças; remía II responsabilidade pela
Pag. Ii "poetização" da vida conjugal. Para
v Que teus filhos sejam sempre bem-arranjados e
que o marido pudesse sintetizar
limpos; que ele ao vê-los assim possa sorrir satis- lJa esposa esse ideal poético,
feito e que essa satisfação o faça sorrir quando se entretanto, ela deveria ter como
VII - Se teu esposo possuir a ventura de ter sua mãe
lembre dos seus, em estando ausente; permanente preocupação o cuidado
viva,seja boa para com ela pensando em todas as com o que era chamado de "as suas
VI. - Lembra-te sempre que te casaste para partilhar
noites de aflição que terá passado para protegê- graças '!aturais': () eventllal desleixo
com teu esposo as alegrias e as tristezas da exis-
lo na infância, formando o coração que um dia da mlllher com a própria aparência
tência. Quando todos o abandonarem fica tu a havia de ser teu; retirava-lhe I) direito de aspirar
seu lado e diz-lhe: Aqui me tens! Sou sempre a VIII - Não peças à vida o que ela nunca deu para nin-
à graça do marido, comprometClldo
mesma; a harmonia do lar. (Roupa branca
guém. Pensaantesque se foresútil poderásser feliz; para senhoras, 1925)

1
jY6 • i:~_)i'nl!::'"
1'1'1; . 397
<11'.

IX Quando as mágoas chegarem não te acovardes:


luta' Luta e espera na certeza de que os dias de
sol voltarão; 34. Us COI/se/I""sobre e/egrillr;d
contidos lUIS "Notas de I lennettc,
x Se teu esposo se afastar de li, espera-o. Se tarda eA.TALOGO DE
da Revista Feminina, SilO rn/f/ddor('s
em voltar, espera-o; ainda mesmo que te aban-
done, espera-o! Porque tu não és somente a sua
I<OUE~S /JN_/Vvr/AS E de como os padrões rigurosos
do forneço do século cntrav.im
11a5casas das mulheres: "Cumo ('lI{Ú,)
esposa; és ainda a honra do seu nome. E quando
um dia ele voltar, há de abençoar-te.
~/~tN~7U:) há algumas leitoras que andem
. ...__.. em casa sem meias? llá talva (1(}q{;
Encarnação de virtudes contraditórias, a mulher deveria de senhoras casada$que pelo I1U'lUb
até Il hora do almoço, ficam [0111
fazer inúmeros ajustes e concessões para, ao mesmo tempo,
(Ichinelo com que se levantUnl,
preservar o tradicional ideal de pureza e de submissão, com- o cabelo amarrado com uma [iunhu
binar com as novas expectativas burguesas de gerência efi- e um roupão 'saco' à vOHtade
ciente do lar e ainda representar em sociedade o papel de do corpo! I...) Devemos lembm/'l1os
que nós, mulheres, fomos criadas
companheira adequada. A nova sociedade urbano-industrial
para a fantasia. Todas a, vezes qlle
tramava continuamente difíceis papéis a ser representados nos mostramos muito materiais
pela mulher-esposa. Não foram outras as razões que levaram perdemos o encanto que riOS acltalll
33. Por volta de 1915 as mulheres a dra. Emrna Drake a escrever, preocupada: "Nada há no ca- os homens. É por isso que sempre
levantavam o busto com a ajuda samento que deva alarmar uma mulher";" palavras que em achei uma coisa espantosa que uHln
do espartilho. Alguns ano.' depois,
1927 mulher elegante [...] se arrisque
muito e em nada contrastavam com as de Floriano Lemos: a comer lima feijoada de
entre 1918 e 1919, 05 seios ficaram
mais livres e achatados com "Se é difícil ser mãe, muito mais ser esposa", porque "a segun- feijão-preto ...': (Catálogo de roupas
a introdução do "corpinho': Jorge da é criação da mulher, quem a faz é a inteligência";" brancas e coletes Rejane, 1927)
Americano se lembra que essa linha Ilustrativos desse contorcionismo imposto às mulheres
feminina durou "até CJuevieram ficam ente piano ou violino, as que têm gosto e talento para o
foram os inúmeros concursos promovidos pelas revistas de
os sOlltien-gorgepara realçar cada
variedades" ao longo das três primeiras décadas do século, canto, as que dançam com perfeição, as que falam com prec~-
seio. Os primeiros faziam dois pomos
redondos, os segundos, seios cujos temas foram, entre outros: Qual a mais bonita? E a são línguas estrangeiras, as que se exprimem .em portugu~s
agressivos, e os últimos, munidos mais culta? Qual delas fala melhor em público? E qual delas com correção e elegância e as que possuem vanados conheci-
de bicos como de limão doce': melhor cultiva a difícil arte de conversar? Tais disputas não mentos de ciência';"
(Roupas brancas de preço módico,
apenas punham na ordem do dia o papel do consumo e a Os homens também foram colocados na berlinda dos
década de 20)
questão dos novos sinais urbanos de distinção e prestígio concursos e das opiniões femininas. Em 1915, a revista Cigar-
sociais, como evidenciavam o quanto tinha sido aberto o le- ra lançou uma disputa - O melhor partido para casamento
que de exigências feitas às mulheres. O lançamento de um - e submeteu alguns nomes da cidade à apreciação de suas
"certâmen" - Qual a moça que possui mais prendas de salão leitoras. O eleito foi o do engenheiro Guilherme Dumont
e, ao mesmo tempo, mais preparo intelectual? - em outubro Villares. Uma das leitoras anônimas o considerou um ótimo
de 1922 é exemplar: as candidatas "são aquelas que formosas partido porque, além de "feio, não tem elegância e não é
ou não, se tornaram sedutoras por qualidade de caráter inte- namorador. É trabalhador e rico. O ideal para uma moça
lectual, adquirida pelo estudo, pela meditação, pelo esforço, deve ser um marido feio e rico'."
pela cultura, enfim". São as moças que "têm o espírito apetre- De modo paralelo e bem menos explícito ia sendo igual-
chado de conhecimentos gerais e sólidas noções de arte e mente construída a figura do homem casado:"
literatura [...] as que sabem fazer pintura a aquarela ou a Não te esqueças de que (J trabalho da mulher no lar é
óleo, as que recitam primorosamente, as que tocam magni- triste e monótono e de que ela tem o direito de desejar
3S. Fim dos víllculos rrwtrimcnzlai.',
uma palestra divertida com seu marido, quando este se (1m da obrigllloriedadc de g"mr
encontra em casa; não deixes de fazer a corte a tua espo- filhos, foram "atalhas travadas
sa depois de casada. O matrimónio não obriga tua mu- por Ercilia Nogueira Calml,
lher a desprender-se da ânsia amorosa, mesmo quando llue denunciava em alto e lJ011J som
a dupla moral que estigmatIzava
já sejam muitos os filhos; não tenhas como certo que tua
as mulheres lJue ousavam viver
esposa sabe que continuas a amá-la e que a julgas a me- a sexualidade fora do CClsamellto.
lhor dona de casa do mundo; não te esqueças de que és o Para a escritoru, "os homens '10 afã
único espectador para quem tua esposa trabalha e de de conseguirem 11m meio prático de
que ela gosta de ser elogiada; não pense que o fato de dominar as mulheres, colocaram-lhe
a honra entre as pernas, perto
estar casada contigo seja diversão suficiente para uma do ânus, num lugar que, bem lavado,
mulher. Não é. Tua esposa tem o direito a uma tarde de lião digo que lião seja limpo e até
passeio, pelo menos uma vez por semana." delicioso para certos misteres, mas
que nUllcajamais poderá ser sede
A crítica a esse discurso não precisou esperar os anos 60 de uma consciéncia. NUII,"a'!Seria
e o ressurgimento do feminismo. Enquanto muitas mulheres absurdo! Seria ridículo, se lião fosse
se limitavam a denunciar os conflitos e a pedir maior com- perverso. A mulher não pensa com
a vagina riem com o IÍtero".(Ercilia
preensão e tolerância dos maridos, sem nem mesmo reivindi-
Nogueira Cobra no Rio de Janeiro,
car o divórcio, outras, mais radicais, pregavam o amor e o 1929)
sexo fora do casamento e prescindiam da presença masculina
no sustento da família e na educação dos filhos. Algumas
delas deixaram documentado seu inconformismo não apenas
sob a forma de palavras, mas também na prática, como
Ercilia Nogueira Cobra e Maria Lacerda de Moura."
Sem usar pseudônimo, Ercilia Nogueira Cobra publicou
em 1924 um pequeno ensaio, intitulado Virgindadeanti-hi-
giênica, no qual defende, entre outros direitos, a liberdade
sexual para as mulheres. Em 1927 ela publicaria o romance
Virgindade inútil, em que relata a trajetória de Cláudia, órfã
de um fazendeiro empobrecido, que, devido à falta de forma-
ção profissional, o que era comum entre as moças na época, e
sem fortuna para arranjar um casamento no seu meio e de Ercilia pertencia a uma família decadente de fazendeiros.
sua escolha, acaba fugindo de casa e se tornando uma "corte- Ao ficar órfã, recebe uma educação "para o lar", foge de casa,
sã", prostituta de alto luxo. Um dia Cláudia fica grávida, mas é internada no Asilo Bom Pastor de São Paulo, destinado à
não tem certeza a respeito de quem é o pai do bebê. Resolve recuperação de "moças perdidas", torna-se professora e na
ter a criança sozinha, "uma autêntica filha só da mãe" a quem década de 30, sob o pseudónimo de Suzy, transforma-se em
chama de Liberdade, e a quem pretende dar uma educação dona de uma casa de mulheres em Caxias do Sul, no Rio
livre de preconceitos e uma formação para o trabalho produ- Grande do Sul. Em uma carta à mãe, datada de 27 de setem-
tivo fora do lar. Inquirida sobre a aparência da filha, a mãe bro de 1934, escreveu: "Relativamente fui uma pessoa feliz.
responde que a menina não se parecia com o pai, mas com Fiz o que quis na vida e continuo fazendo o que quero! Os
uma outra moça, com quem mantivera relações sexuais du- preconceitos estúpidos desta sociedade em decadência à qual
rante a gravidez ...ss a senhora pertence nunca me incornodaram'l'"
400 • ~!SI"tlh U.A.VluA I RIVA[)A NO BRASil J

o DECÁLOGO DA BOA DONA DE CASA

Embora o discurso dominante pregasse às mulheres uma


norma elaborada pelas elites sobre o papel da esposa e dona
de casa, e para os homens o papel de chefe de família - regras
de vida que deveriam valer para toda a população -, pode-se
dizer que foram sobretudo as mulheres das camadas abastadas
das maiores cidades que se ligaram aos seus maridos pelos
"indissolúveis laços do matrimónio" civil e religioso." E acaba-
ram afastadas das atividades produtivas realizadas dentro de derrubada das matas, a construção civil," além de outras mais
casa, usufruindo dos novos bens de consumo, e dedicando-se conhecidas, como a confecção de produtos manufaturados, o
exclusivamente à administração da casa e aos cuidados dos pequeno comércio e o artesanato doméstico.
filhos, sob a retaguarda de um marido provedor. A fragmentação do tempo, a casa como local de produ-
Apesar do desejo de muitos intelectuais e profissionais ção e as condições de trabalho da dona de casa pobre eram
das camadas dominantes de espelhar homens e mulheres percebidas no período e foram registradas de forma bastante
brasileiros pelas imagens da burguesia das duas maiores cida- eloqüente num artigo da Revista Feminina. Ao elogiar o tra-
des do período - as capitais do progresso, Rio de Janeiro e balho das rendeiras nacionais, a autora assim se refere às
São Paulo -, essa não era a realidade vivida pela grande condições de trabalho:
maioria dos brasileiros. Os padrões de comportamento bur-
Não podemos imaginar como uma mulher ignorante,
gueses, a modernidade e o consumo foram absorvidos de sem a mínima cultura, possa executar obras tão lindas e
forma desigual pelas diferentes regiões e cidades e pelas dife- preciosas. Elas trabalham, na sua maioria, sem ordem,
36. 37. 38. 39, O estimulo rentes camadas da população. Grande parte do país perma- sem conforto, sem o menor tempo necessário, tendo mil
ao consumo ocupavatodos neceu fiel à agricultura, seja sob a autoridade dos ricos fazen-
os espaços, Os magazines seduziam coisas que fazer na mesma hora, sentadas na areia, ro-
deiros, proprietários de grandes plantações, onde em geral deadas pelos filhos que as chamam de quando em vez,
o público com maravilhas
domésticas:vassourasde sucção. era cultivado um único produto para a exportação; seja das filhas às quais procuram ensinar a arte desde crian-
máquinas de lavarroupas.ferros como morador das pequenas propriedades, cujo número vi- ças, cercadas quase sempre de galinhas e animais que
elétricos. "Urnasenhora que nha crescendo desde o século anterior," Nem todas as cida- criam, deixando por vezes a tarefa que se empenham
se apetreche em sua casa de todos des puderam realizar a modernização desejada, em razão da
esses utensiliosI...J economiza largas para atiçar o fogo, temperar a panela, lavar a roupa da
falta ou do mau uso de capitais. A industrialização, por seu casa, que sei eu?... para atender os mil labores de uma
horas de árduo trabalho.gasto
de energia. impertinências lado, embora tenha deslocado progressivamente a produção dona de casa pobre que tem que fazer todos os serviços.
da lavadeira';festejava a Revista para fora do domicílio, não destruiu de uma só vez as formas E estas rendas saem perfeitas e limpas como se a artista
Feminina em 1920.Não eram tradicionais de produção e sobrevivência." que as tivesse executado tivesse todo o conforto e uma
exatamente estas.no entanto. A maioria das mulheres vivia relações conjugais consen-
as lembrançasde urna empregada sala de trabalho convenientemente preparada."
doméstica da mesma época, colhidas
suais, sem uma presença masculina efetiva no lar,?" ou convivia
por Ecléa Bosi:"Para limpar com companheiros que não tinham um trabalho nem efetivo É certo que, com o desenvolvimento industrial e urbano,
o assoalho eu espalhava areia nem regular," Juntamente com os serviços domésticos realiza- o acesso a uma melhor escolaridade," a divulgação pela im-
nas tábuas e esfregavade joelhos. dos da maneira mais dura e tradicional, cuidavam dos filhos e prensa de uma participação maior das mulheres no espaço
com um tijolo.Depois varria, jogava exerciam várias atividades ao mesmo tempo, para prover a público depois da Primeira Guerra, sobretudo na Europa e
água e puxava com um pano torcido. nos Estados Unidos, o avanço do feminismo e as freqüentes
rodo não existia.Imagina como própria subsistência e a da família. Muitas dessas atividades
ficava o rim de quem esfregava eram extremamente pesadas, em nada correspondendo à frágil reivindicações das mulheres por maiores oportunidades aca-
o tijolo!': (Sem título, /920) natureza feminina ensinada pelos médicos e juristas, como a baram por abrir algumas novas profissões para as brasileiras
fora do lar." Esse progresso feminino, no entanto, precisa ser maioria do nosso povo faz da mulher que ultrapassa as limi-
tomado com cautela, uma vez que havia certos limites para a tadas raias de ação concedidas ao seu sexo, no vasto campo
aspiração feminina: eram inúmeros os empecilhos ao acesso da atividade intelectual! Ser HOA DONA DE CASA, no entanto,
a determinadas profissões." As ofertas disponíveis, em geral, deve ser uma qualidade intrínseca da 'alma feminina', não
estavam próximas daquilo que se considerava uma extensão importando se de uma doutora ou de uma engomadeira
das atribuições das mulheres: professora," enfermeira, da- [... ]".94
tilógrafa," taquígrafa, secretária, telefonista, operária das Mas o que era ser uma boa dona de casaj"?" Os anúncios
indústrias têxtil, de confecções e alimentícia. As mulheres ca- das principais revistas brasileiras mostram que algumas casas
sadas, de acordo com o Código Civil, precisavam da autori- das primeiras décadas do século já estavam bem aparelhadas.
zação do marido para exercer qualquer profissão fora do lar Com a eletricidade, já se podia substituir o ferro de passar
- atividade que só era considerada legítima quando neces- aquecido com brasas e obter gelo para conservar os alimen-
sária para o sustento da família, raramente para realização tos. De acordo com a condição de riqueza, a dona de casa
pessoal. poderia escolher o tipo de fogão, a lenha, a carvão, a gás,
Ainda assim, esperava-se que as mulheres, antes de se elétrico ou a querosene; a indústria começava a beneficiar e a
dedicar ao trabalho remunerado, fossem boas donas de casa: produzir muitos dos alimentos que antes eram elaborados
4U, 41, 42, 43. A diversidade "A mulher que estuda parece abdicar dos deveres domésticos em casa. Apesar da aparente facilidade, traduzida por uma
de trabalhos realizados pelas
mulheres pode ser constatada
[... ] toma uma posição falsa de desconfiança para a socieda- gama variada de aparelhos elétricos oferecidos ao público e
nos diferentes tipos de imagens de, que geralmente a julga inapta para exercer o elevado sa- por anúncios, nos quais as mulheres executavam os mais di-
veiculados no período. A caricatllra cerdócio do lar. É este, pelo menos, o conceito que a grande fíceis e sujos serviços domésticos sempre sorrindo, ainda era
[reqúentemente associou a urigem
muito restrito o acesso a novos utensílios e a serviços como
étnico-racial das trabalhadoras
a determinado tipo de atividade.
eletricidade e água encanada. Os novos bens de consumo
O que não correspondia à prática beneficiaram apenas uma parcela da população, composta
cotidiana. Assim como havia daqueles que podiam pagar e aqueles que se decidiram pela
lavadeiras, amas-de-leite, vendedoras novidade, já que a relação dos consumidores com o novo não
ambulantes, cozinheiras e ",esmo
foi automática'?' e nem sem conflitos.
médicas e professoras negras, havia
igualmente brancas e de diferentes
nacionalidades. (40. Escritório da
Frank & Coo Ltda. - Bahia, 1924;
41. Marc Ferrez, Vendedora de
miudezas, C. 1895; 42. Cia. de
Cordoaria e Celulose, Rua dos
Ourives 61, Rio de Janeiro, 1924;
43. O Elixir de Nogueira, 1917)

404 • I W>í')~'!A DA VI,,·, PRIVADA NO BRA.SII :l kF' ()!\lOlfO:':' 00 MUNDO H:f'/\ir'j!I"~',-) • 405

A dificuldade em substituir hábitos tradicionais pelos


modernos pode ser verificada até mesmo em alguns costu-
mes que hoje podem parecer elementares, como o uso da
água encanada e de sanitários. Na cidade de São Paulo, por
exemplo, em 1893, para forçar os moradores de certos bair-
ros a incorporar em suas casas essas contribuições do pro-
gresso, o serviço de águas da Cantareira mandou demolir os
chafarizes dos largos do Carmo e do Rosário, que tradicio-
nalmente forneciam água à população.'?' Gregório Bezerra
(1900-83), líder comunista pernambucano, referindo-se ao
período em que trabalhou numa casa de família fazendo ser-
viços domésticos, quando tinha cerca de dez anos, lembra-se
45, 46. A fachada do palacete lião
que seu patrão, um senhor de engenho que vivia em Recife, deixava entrever o que se escondia
no quintal. Ao mesmo tempo
que frente e fundos se estranhavam,
eram inteiramente solidários.
A metrópole paulista que crescia
em ritmo acelerado no início
do século justapunha tempos diversos
comprou uma casa com muitos cômodos: "O velho mandou na mesma arquitetura: a casa
saneá-la, forrá-la, entijolá-la, pintá-la por dentro e por fora, e urbana guardaria ainda por muito
fazer um galinheiro [...] Minha raiva era grande, porque eu tempo claros sinais de
auto-suficiência. A edícula catitava,
lavava com sabão toda a louça do banheiro, o piso, areava e
por exemplo, com área e "prado"
44. ue» se sabe bem por que razão lavava a bacia da privada duas vezes por dia e apesar disso, a reservadospara patos, perus
a mulher monopolizou tão família latifundiária [...] só cagava e mijava nos penicas de e galinhas, sala para os ninhos e
completamente o telefone, uma
das maiores "invenções do homem';
porcelana". 103 incubadora. Acomodava um hortelão
Como constata Gregório Bezerra, a utilização dos recur- para os cuidados com a horta
inquietava-se o editorialista
e o pomar que, ao lado do jardineiro,
da revista A Cigarra, em fevereiro sos mais modernos nem sempre significou um ganho de
formava o direito e o avesso
de 1918. Por ter uma "natureza tempo no que se refere ao serviço doméstico, já que outras da mansão. (45. Residência ). Malta,
tagarela e bisbilhoteira? Talvez essa
tarefas foram incorporadas ao cotidiano.!" como também projeto do escritório Samuel
qualidade ou esse defeito
novas medidas de higiene preconizadas pelos médicos e uma das Neves, s. d.; 46. Projeto da nova
a indicassem naturalmente para
crescente exigência do cuidado materno com os filhos, tanto casa do Exmo. Sr. ). Malta
o interessante mister de ensinar
na avenida Higienópolis esquina
os outros a falar a distância ...'; físico e moral quanto educacional. Em seu artigo "Educação da Rua Itacolomy, São Paulo, s. d.)
concluia o artigo. Apesar do tom materna", publicado em 1915, a dra. Emma Drake ensinava:
anedótico, o que se verifica nas
"Muitas mães porém não compreendem que elas concreti-
primeiras décadas do século
é o domínio efetivo do sexo feminino zam a idéia abstrata do lar e supõem a sua tarefa terminada
da profissão de telefonista. Menos quando os seus filhos estão nutridos, vestidos e preservados
que por causa da tagarelice, será que contra uns tantos perigos. A sua principal missão porém é
a profissão não acabou se tornando preparar os seus filhos que serão os homens e mulheres de
adequada às mulheres pelo fato
de trabalharem em local fechado,
amanhã'l!" Nesse sentido, esperava-se que as mulheres do-
sem se expor aos olhares do público? minassem um pouco de diferentes assuntos: "[ ... ] as ciências
(Sem título, 1921) naturais, a higiene, a física, a química, a astronomia, a mate-
406 • HIS iORIA L'A ViD.A PklVMM 1'10 BRASil J PfCONDIIOS DU M'JNl>,.l 'lI/dNI~,'~ • 407

47, 48. A força da modernidade não


mática, a geografia, as artes, as indústrias, tudo, representa camas; preparar as roupas; limpar "os trastes"; fazer o almo-
conseguiudestruir muitos dos costumes
uma necessidade real! A mestra deve ser a Mãe, e é preciso ço, que, embora frugal, deveria sempre apresentar aspecto tradicionais. A moda dos apetrechos
que a mulher tenha uma soma grande de conhecimentos, agradável; fazer a limpeza da casa; cuidar do vestuário das de higiene - banheiros ladrilhados
para não perder uma interrogação do filho",'?' crianças; almoçar com "os petizes"e os fazer ir para a escola; e cobertos de capachos, prendedores
abrir as janelas; ajeitar as camas; arrumar os quartos; varrer, de papel higiênico, estoios de toalete
Havia, portanto, muito trabalho ainda para ser feito. Daí
- ainda teria que conviverpor muito
a necessidade de ter método, organizar bem as atividades a se enfim, pôr tudo em ordem. Isso terminado, a boa dona de
tempo com o Brasil da maioria:
realizar no dia-a-dia, aproveitar o tempo e, mais do que isso, casa deveria fazer a sua toalete e, com aspecto sempre jovial, o dos penicas, das escarradeiras
fazer uma "administração científica" das tarefas a se desem- dar início ao jantar, de modo que ficasse tudo pronto para e da velhafossa negra. (47. Utensílios
penhar, para que as coisas não fossem feitas de atropelo, evi- receber "o chefe" e as crianças; lavada a louça e reposta em domésticos, 1925; 48. f'OSSa tipo "Mauro
seu lugar, a maior parte da tarde seria preenchida com a Alvaro Gonzaga", São Pau/o, 1923)
tando-se, assim, o tão temido mau humor, imagem freqüen-
temente associada ao "anjo do lar": lavagem da roupa branca que, em seguida, seria consertada
(nem um rasgão se deixaria para o dia seguinte) e passada a
A mulher, ainda a das melhores qualidades, mas cuja ferro. Feita a refeição da tarde era hora de as crianças irem
casa não seja bem dirigida, que não saiba distribuir o para a cama. Esta era considerada como sendo a melhor hora
trabalho pelos outros, que ignore a ciência da divisão das para a dona de casa cuidadosa "verificaro estado da roupa de
horas, essa mulher de coração excelente há de ter movi- todos, para assentar as despesas do dia, para verificar o que
mentos de impaciência que em seguida lamentará amar- havia de sobras no guarda-comidas e pensar no cardápio do
gamente, mas que nem por isso deixará de trazer a per-
dia seguinte'l!"
turbação e o incómodo ao interior da família! Para ser Ao lado dessas atividades,o cotidiano incluía ainda uma
agradável aos seus e para ser bem servida pelos criados é série de outros afazeres difíceis e demorados, distribuídos
preciso que a dona de casa seja dotada de uma inalterá- pelos dias da semana: na segunda-feira,separar a roupa para
vel uniformidade de gênio. Mas é fácil de compreender ser lavada e preparar a barrela; na terça, lavar; na quarta,
que tal serenidade de espírito não se obtém senão numa dobrar e separar aquela que deveria ser consertada; na quin-
casa. bem disposta e bem-ordenada, onde tudo esteja ta, fazer os consertos; na sexta, passar; no sábado, fazer uma
previsto e regulado de antemão, e isso, seja qual for a limpeza geral que incluía tirar os tapetes e sová-los no quin-
situação social: humilde ou elevada.107 tal com um batedor especial'?" (porque os aspiradores de pó
Segundo o manual O lar feliz, o emprego do tempo da praticamente só eram vistos nas páginas das revistas), limpar
dona de casa deveria ser assim dividido: pela manhã, arejar as o assoalho - lavando com água, esfregando com areia e tijo-
"O!lUJOP J Opep!A re um UlJ 'OJU!Z JIqOS no surpad JIqOS .leJ 'SJlãlI{nlU sep euoreur âpUEl~ U'xx 0InJys op 0PIU! 0N
-JS e siodop e-opUJpUJ1SJ 'O~JU!lS!P UlJS 'J1UJIJ e BpOl Jp ed f1dsepe'lIow opuanb sopnb E1UJ1JSlESJd U weAe~JlIJ
-nor e urarrusnu Sel!JpeAIlI se en~y eUlSJUl Il J oçqes OUlSJUl 'EIOJ EICd eAEAEIep anb J leJl ou SEppJl '!lI WOJ opepsaur
° UlOJ 'HIl" srod 'Jpepp IIp sopearode sreiumb sop no SOJ!110J o!1po~Ie Jp Sel!J) 'selIJIOJ sy "e!IJweJ ;;lp ourure '0!11UJ'elJ
dp seun seu d sanbuei UlJ sepeAeI sednor se BJUeyUOJSâp anb 'J!1Ulens âp 0lIIEqEll Jp OSSJJXJ° uroo 01JJ op OUpSJp
UlOJ elA crome y ;,;;lUlnJl;;ldJ OJ!A 'lOJSJIJ" lJl urossapnd ° eUOpeIJl snso] ;;lp EpeW EU!{OlE:)-ououmeu O!1Wl!11;)S
sep!pUJ1SJ ssdnor se ;;lPUO'seAl;;lJ JwepunqB J1UJIIOJ en~y oa JS-OPUP;)P'H "eplIle adnor opueAeI OS1I1J;)1Uln~IE lJlqo
JssâAnolI ;;lPUO'sopelos! sâPleqelle ura 'elO) WJSSIlIOUlanb ared JssoJ 'emUleJ ep ednor e leAeI EICd JSSOj';)nbUel oudçrd
Sel!âpBAeIared osn ;;lpsednor sens lep wepâAâp sesojndod ° lJlIJUJ ered eJ!q eUln~e uro JUâSOlJnb Jp SElEIUlJ en~y
S!BWsJpepp sep s;;llopelOw so ânb IlU!SU;;l 'SVrt!OU svp O.M!} leJSnq Jnb elIu!1 epo!ew y 'eUllOU e elJ O!lUeSSJ'SEl!JpEAeI
nâS OU 'ep!JWIV ;;lpS;;ldol Il!{!)f 'seSO!~elUOJSuJU;;l0P;;lp seI Jp OJ!AIJS ° UlOJ leluOJ lUE!pod SâlJlIlnUl sEwn~IE JS
-opel10d seossJd Jp osn ;;lpseJâd wm 0lelUOJ op OJSp 0IJd 's!odJp sepeJ)lp S!tlnsn wep
SâQZBlsellno JllU;;l 'eseJ ;;lp RIO] ednOl e leABI Ul;;lssepuew -eulol JS ânb 'SOJ!l?lU!Ssop so Jnb op SJIO!elUOl!nUl UlelJ
o~u Jnb e!IJUle] Jp SJ!1WS~ UleABpUJWOJJlSOJ!NUl sO O!JSnUEUlJp SJpCPInJy!p J OSJd 0fm 'UlPOUl ° J o!1po~Ie °
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sou SJQJ!Jpl se OpuelU;;lnbsJ ';)lA!1IU oe ep1mJOfe UleABssed -lOJS;)lUn opUelUãSJJdJI 'OljIEqEll Jp selOq e!lUnsuOJ EdnOl
'lOSopd upeUl!Jnb ;;lIJd'SepefJle; S0!1Ul'snu SOJelS "SOJ!110J °
ep UlJ~eAelep Itlnl!l 'SOPEz!1l'.plSnpu!eZJdw!I Jp sOlnpold
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• 411

49, N05 minú5culos espaço5


dos cortifo8. lavadeiras esfregavam
e batiam a roupa da freguesia,
servílldo-5e de água transporttldtl
na cabeça em velhas latas
DONAS DE CASA
annotem esta novidade!
de querosene. A roupa l<IVadaera
posta para branquejar em "pilhas
e trouxas, sobre as pranchas
pousadas em cavaletes ou espalhadas
pelo chiw'; Torcida e pendurada
em cordas ou em arames esticados,
que ia m de Ctlsa a casa, cada peça
de roupa levava ti marca do seu
proprietário. Se não era no cortiço,
eru na várzea 'll'c se podia encontrar
a "roupa batida, roupa cantada';
porque, como dizia o ditado,
era "destino das lavadeiras lavar 50, 51. Além das advertêtlcias
cantando'; (Augusto Malta, Velhas higiénicas, recomendava-sc à [utura
edificações (morro do Castelo), dona de ca5a que, na preparação
À noite recolhem e guardam a roupa no mesmo quarto em do enxoval, marcasse cada roupa
Rio de Janeiro, 1920)
que dormem com a filharada, entre os amontoados dos tras- com o mesmo 5ímbolo. Evitaria
tes e dos trapos, As lavadeiras do campo têm geralmente mais o extravio das peças e facilitaria
largueza, vivem em casas maiores, ninguém ignora que as o trabalho das lavadeiras, já que
a grande maioria era analfabeta ...
casas da cidade são mais caras, a vida mais cheia de exigên-
(50. Eu já adotei um emblema
cias e que portanto os pobres têm que acumular e restringir pessoal para meu uso, 1933; 51. Sem
enormemente'I'" Importante destacar que para a autora a título, 1933)
contaminação parece ser uma via de mão única, já que as
doenças que poderiam ser transmitidas pela roupa suja às la- têm o direito de ser assim, porque não há concorrência na
vadeiras não são sequer mencionadas, bem como não há re- praça. As mulheres do povo dificilmente condescendem em
ferência às queimaduras, doenças pulmonares, reumatis- exercer essa tarefa e muita razão têm elas, justificável na
mos e abortos a que estavam sujeitas, em razão do grande constante falta de água, nos longos dias sem sol e na falta, em
desgaste de energia muscular, da alternância do frio com o seus quintais, de espaço bastante amplo para quarar a rou-
calor, do contato com roupas contaminadas e de mudanças pa",117
freqüentes do tempo.!" Se o cuidado com a lavagem da roupa era algo eventual-
Numa reportagem publicada pela Revista Feminina nos mente remediável, fosse pela substituição por outra peça, fos-
idos dos anos 20, anunciando as "maravilhas elétricas'; em se pelos padrões de higiene de então - os banhos e a mu-
que são apresentados vários utensílios domésticos que facili- dança de roupa branca eram muito menos freqüentes que na
tam o trabalho da dona de casa, as vantagens da máquina de atualidade _,118 o preparo das refeições era um trabalho que
lavar roupa são reforçadas pelas dificuldades de se contratar dificilmente poderia ser deixado para mais tarde ou substi-
o serviço de lavadeiras. Estas continuavam garantindo a tuído. Permanecia como uma tarefa rude e pesada, mesmo
brancura das roupas, mas seu trabalho implicava extravio e nas casas que contavam com os benefícios da modernidade,
trocas de peças, e rasgões provocados por arame farpado; como água encanada. esgoto, gás e eletricidade, progressos,
sobretudo, elas representavam problemas, já que as lavadei- vale lembrar, a que bem poucos tinham acesso nas primeiras
ras nas capitais estavam se tornando "exigentíssimas [...] e décadas do século.'!" O duplo sentido da letra de uma mar-
~['f·II[JII0'. DO f1olnl[JU,+MINII'~() • 413

53. 54. "Não há incompatilnlidade


chinha de Carnaval de 1919, transcrita por Nelson Rodrigues,
entrt: ii elegância e os deveres
é revelador do problema: "Na minha casa não racha lenha, na domótiros'; garantia a imprensa
minha racha, na minha rachai Na minha casa não falta água, [emimna da década de 20. Era esta
na minha abunda"?" E Afonso Schmidt, na crônica "Secas c ii idílica representação da vida

inundações", conta que nos períodos de estiagem prolongada doméstica então difundida: para
enjrentar o forno e o fogiío lU' sua
as torneiras de muitas casas da cidade de São Paulo funciona-
cozh.ha "higienizada': a mulher
vam como cabides! 121 trajava vestidos lânguidos, sapatos
. Embora algumas donas de casa já tivessem fogão a gás, de salto alto e aventais adornados
sinal de bom gosto e prestígio da família, este permanecia com engomados laçarotes. (Sem
52. Ao se referir à luz elétrica, título, 1920)
encostado, enquanto no uso diário acendia-se o fogão a lenha
os médicos enumeravam, ao lado
das facilidades, os maleficios
ou a carvão, chamado de "econórnico'l!" para o preparo das
causados pelas formas tradicionais refeições mais elaboradas, e a espiriteira, para fazer comidas
de iluminação, como o gás, rápidas e para esquentar água. A cozinha higienizada, veicu-
o petróleo, a benzina, a vela lada pelas revistas desde as primeiras décadas do século, com
e o lampião. Causadores de lenta
ladrilhos, paneleiro repleto de panelas de alumínio reluzen-
intoxicação, esses combustíveis eram
considerados maléficos. A luz
tes, fogão elétrico ou a gás, mesa, pia com água encanada,
elétrica, ao contrário, além de ser boa iluminação comandada por uma cozinheira branca, com eram criados frangos, patos e perus. Antes de ser abatidas, as
um recurso fácil, não roubava avental impecável, elegante, bem vestida e de sapatos de salto aves eram examinadas para se diagnosticarem possíveis doen-
oxigénio, não envenenava o ambiente alto, elaborando pratos tão complicados e sofisticados como ças e passavam por uma quarentena de cerca de três dias,
com gases letais e não superaquecia tempo suficiente para que eliminassem das entranhas "qual-
o Foie Gras à Brasileira.!" ou a Sopa Teológica, 12~ acabou por
o ar. Para economizar, aconselhava-se
que a dona de casa tivesse uma apagar das nossas memórias suas antigas configurações e quer porcaria que houvesselrn] comido sabe-se lá onde" e se
lâmpada presa a um fio comprido funções. 125 livrassem de "canos e bicheiras"!" Para se transformar em
para se locomover nos diferentes Muitas cozinhas permaneceram até meados do século alimento tinham que ser mortas (em algumas receitas, como
cômodos da casa, carregando consigo como um apêndice da casa, um puxado coberto por telhas- o Frango ao Molho Pardo, era necessário colher-lhes o san-
a iluminação. (Lâmpadas Edison
vãs, voltado mais para o quintal do que propriamente para o gue fresco, em pleno abate), depenadas em água quente, cha-
Mazda A Última Palavra, 1924)
interior da residência. Era um lugar quente, enfumaçado, muscadas, abertas para a extração das vísceras, lavadas, pi-
cheio de picumã, engordurado pela carne-seca, lingüiça e cadas, temperadas, moqueadas e, finalmente, cozidas ou
toucinho pendurados no fumeiro, com os tijolos do chão assadas no próprio fogão ou em fornos a lenha.
desgastados pelas pancadas do machado na lenha, onde a Para a limpeza das panelas e frigideiras de ferro, pedra,
dona de casa permanecia de cócoras, debruçada sobre ga- barro, cobre e, modernamente, alumínio, consideradas mais
melas e peneiras, ou em pé, socando o pilão, o que deixava as econômicas e higiênicas."? utilizava-se sabão feito em casa
mais novas e inexperientes com as mãos vermelhas e cheias com uma mistura de cinzas e folha de pau de pita.!" As
de bolhas em razão do esforço repetido, sendo freqüente- panelas eram areadas com arda, cacos de telha reduzidos a
mente obrigadas a parar o serviço para matar baratas, espan- pó, e batatinha.!" para ficar brilhantes, deveriam ser postas
tar as moscas ou lutar contra o exército de formigas. para secar ao sol no jirau. Além de ser o local onde eram
Ali era realizado um trabalho cansativo, demorado e pilados diferentes produtos, preparados os alimentos e lavada
sujo, seja pela preparação dos pratos, seja pela limpeza das a louça, a cozinha era também onde se guardava a bacia para
panelas engorduradas e enegrecidas pela fuligem. Basta to- banhos e se fervia a água, banhavam-se as crianças, passava-
mar como exemplo o consumo de aves. Antes da populariza- se a roupa e onde, em muitas casas, as empregadas dormiam
ção da geladeira, mesmo nas cidades e nas casas mais ricas, sobre esteiras. Poucas casas conheciam a função, divisão e
sobrevivia o costume ancestral de manter galinheiros, onde restrição de espaço, modernidades preconizadas e prescritas
l'f~iVP..D,·'\ r',j() BRASil 3

fO(iÕ~S
f' CONOMICOS

~M[:I~IG'NOS
56. Entre os diferentes tipos defogáes
~. Lt::MH~ usados, o elétrico era ammc:iado
~'C~Rvi\o como o melhor e o mais asseado.
O fogão a gás era considerado
55. Levou tempo para que" uso ~'OI\Z
do gelo e da geladeira perigoso:causava incêndios,explosôes
se popularizasse no Brasil. e graves intoxicações.Já o fogtlO
Um comerciante do Serro, a lenha, além de ser desvantajoso,
no interior de Minas, ao receber era caro, sobretudo nas capitais, onde
Peçam Ilatalogos e mais
um medicamento conservado lnfornações, mencionando o
a lenha se tornava cada vez mais
em gelo,ficou tü" maravilhado nome desta Rllvista á
rara. Não bastasseisso,produzia
que pendurou a novidade na porta muita fumaça e deixava uma crosta
de sua loja, enquanto almoçava. r, H. I(RISCHI(~ escura nas panelas, de difícil
Ao retornar, no lugar da pedra e penosa limpeza. Mesmo assim
de gelo encontrou apenas uma poça
Rua da Boa Vista, 30 continuou a ser largamente utilizado
d'água no chão. Indignado, no pais até depois da década de 50.
Caixa postal, 900-S. Paulo
exclamou: "Moleques sem-vergonha! (Fogõesamericanos, 1916)
Furtaram o gelo e ainda urinaram
na porta!': (Verifique as dez
Verifique as dez vantagens
cotidianas'I'ê' OU, ainda, pelo seguinte trecho do livro A fa-
vantagens do novo G.F.. "De Luxe",
1933)
do novo G.E. "De Luxe" lência, de Júlia Lopes de Almeida: "Isto de se dizer que uma
mulher pode fazer todo o serviço doméstico sem se enxova-
não só por higienistas, engenheiros e construtores, como pe- lhar, é coisa de romance. A Emilia andava com as mangas do
las posturas municipais.!" avental sujas de carvão,tinha as unhas impregnadas do chei-
Assim como a lavagemda roupa, o preparo da alimenta- ro da cebola e do alho; e as mãos avermelhadas pelo uso do
ção e a limpeza da casa, passar e engomar a roupa eram ati- sabão da terra com que esfregavaa roupa, tinham perdido °
vidades igualmente exaustivas e demoradas, Um ferro aque- jeito para a carícia doce, macia, tão querida das crianças e dos
cido com brasas pesavaentre três e cinco quilos.':" Para que o doentes"!"
serviço fosse feito com rapidez e eficiência,era preciso que a Apesar da importância social do trabalho realizadopelas
dona de casa contasse com três ferros; um terno de linho mulheres dentro de casa, enquanto produtoras e reproduto-
exigia, para ser passado sem interrupção, pelo menos cinco ras da mão-de-obra, e não obstante ser gratuito o trabalho
ferros previamente aquecidos,132 prestado à família,outra imagem freqüentemente associadaà
O desgaste físicosofrido pelas "rainhas do lar" no exercí- rainha do lar é a de perdulária. O papel do marido de prove-
cio do trabalho doméstico pode ser avaliado por um texto dor da família, com o direito a autorizar ou não o trabalho
publicado na Revista Feminina de 1920,na qual a autora con- da mulher fora do lar, conforme determinavam as leis vigen-
voca as leitoras a desobedecer à moda que preconizava o fim tes no começo do século, levou a dependência económica da
do uso das luvas, "essa moda antidemocrática, criadora de esposa a ser não apenas estimulada, mas sobretudo bem-vis-
uma irritante desigualdade entre a mulher que trabalha, mu- ta. Esse"privilégio",porém, nem sempre significoualegria ou
tilando as suas pobres mãos, e, a ociosa, que as poupa e res- felicidade para muitas mulheres, Por trás de frases como "ela
guarda de todos os perigos, para afrontar com sua beleza é feliz, não lhe falta nada" ou "o que mais ela deseja, se o
criminosa, as santificadas no cumprimento das ocupações marido lhe dá tudo?", é possível enxergar um ambiente de

ontem?! -- sinto um calafrio subir-me dos calcanhares à


nuca [...] Não só () meu, mas todos eles falam da necessidade
de trabalhar e sustentar tantas bocas, pagar mais isto e aquilo,
para conforto e alegria da família [...] A gente até fica vexa-
da... ser carga é uma coisa bem triste!"!"
Economizar, economizar, economizar... Essa é a reco-
mendação feita às esposas em praticamente todos os núme-
ros da Revista Feminina, no decorrer de duas décadas. As
boas donas de casa deveriam, portanto, saber gerenciar o di-
nheiro das despesas,não pedi-lo com freqüência,ser comedi-
das em suas exigências,contentando-se com a renda de que
dispunham. Deveriam produzir em casa, com as próprias
Como se passam as mangas
mãos, tudo aquilo que fosse possível, evitando ao máximo
Modo de passar o bordado
de uma camisa
todo e qualquer peso excessivoao bolso do marido. Assim,os
da gola
trabalhos manuais em geral e a costura em particular consti-
tuíam uma importante atividade realizada no "recôndito do
57, 58, 59. A modernidade lar" e eram consideradas como sendo das mais importantes,
representada pelos recém-lançados
ferros elétricos de engomar ainda
úteis e agradáveisocupações femininas. Esperava-seque toda
era um privilégio de poucos. dona de casa aproveitasse o tempo executando esses traba-
A mesma revista que anunciava lhos. "Nada mais lastimável que o fato, quase geral, das se-
a novidade dava lições de "economia nhoras não saberem talhar e confeccionara roupa branca de
doméstica'; ensinando à dona
seu uso e de sua casa. Quantas economias gastas por essa
de casa o que ela sabia de cor: usar
o velho, pesado e antiquado ferro ignorância?Quantas horas de ócio esterilizadorpoderiam ser
de brasa. (Economia doméstica, empregadas agradavelmente, até moralmente, se a mulher
1918) quisesse se consagrar algumas horas do dia a confeccionar a
roupa necessária a seu lar, ou dirigir a pessoa encarregada

Como se passa a frente

extrema insatisfação e desconforto, que levava não só algu-


mas mulheres a tomar empréstimos sem autorização do ma-
rido, trabalhar escondido e até mesmo a "roubar" o próprio
cônjuge. 60. O discurso vagava indefinido
De maneira mais contida, uma personagem fictícia de entre a exaltação da mulher
Júlia Lopes de Almeida, retratada na coletânea de contos Eles que poupava as economias
da família cosendo as roupas
e elas, assim se refere à dependência econômica doméstica:
dos filhos e a denúncia
"Cada vez que peço dinheiro ao meu marido e que ele acom- da perdulária que moía ti bolsa
panha com gesto de o tirar da algibeira com estas palavri- do marido na compra de jóias.
nhas: - Oh, já acabaste com todo o dinheiro que te dei (Belmonte, sem titulo, 1926)
.------------------------------------------------------ ~h,<')I,IIJIIOS DO MUNDO f[MII'J!i"I(' • 419
418 • HIé,TORIA D,~ Vli'A I'Rlv,~U~, 1'10 BRASil :;

manuais nunca deveriam servir de pretexto para deixar de


desse serviço,"!" Além da economia que representavam os
lado os "verdadeiros" serviços domésticos, alerta O lar feliz.
trabalhos manuais, estes poderiam também se converter em
Também a Revista Feminina, no artigo "A fraca dona de casa",
fonte de receita, ainda mais legítima por ter sido gerada em
recriminava as mulheres que se abandonavam às suas "ten-
casa, sem expor a público as eventuais necessidades sofridas
dências egoístas", pois escolhendo entre "os vários trabalhos
pela família. só escolhem aqueles que lhes apraz e lhes é agradável, desa-
"Digna de lástima", portanto, "era a mulher que não sa-
tendendo outras coisas que exigiam que delas se ocupassem
bia costurar", enquanto a que sabia fazer roupa branca, ves-
sem demora [...] trabalhos sérios, bem dirigidos e de que
tuário e chapéu, era considerada "um verdadeiro tesouro do
toda família auferisse proveito e bem -estar" 139
61, A mulher que não sabia costurar lar,"!" A costura não só vestia a família. Através da cerzidura
Esse controle do tempo está relacionado com a crença de
era considerada "digna de lástima': e do remendo preservava-se toda a roupa, fosse a usada para
A máquina de costura era vista como que outras atividades, consideradas prioritárias, seriam dei-
vestir, fosse a do cotidiano doméstico, como os lençóis, toa-
a "amiga inseparável" da boa dona xadas de lado.!'" mas certamente também remetem ao uso
de casa, O principal atributo lhas, guardanapos. Através da conservação, da reforma da
que as donas de casa poderiam fazer das suas prendas. Ao
da máqui'la de costura, segundo roupa velha e da feitura de roupa nova, evitavam-se despesas
lado do uso legítimo, como fazer economia e obter algum
05 preceitos da época, era a economia com a compra de novas, produzidas pela indústria, conside-
que ela poderia representar para
dinheiro através da venda, esses trabalhos eram feitos para
radas de pior qualidade.
o orçamento doméstico, Como enfeitar a si próprias ou dados de presente a pessoas fora do
Algumas autoras têm chamado a atenção para os pode-
o trabalho da dona de casa não era núcleo familiar, inclusive a artistas de sucesso no período,
remunerado, as roupas que ela res, as compensações e as possibilidades de ação das donas de
quando das apresentações públicas.
produzisse para 05 filhus e para casa. Pode-se dizer que esses espaços de liberdade e ação fo-
O controle sobre o tempo e a necessidade de um traba-
a casa significavam um alívio ram identificados no que se refere à execução dos trabalhos
nas contas, no final do mês, lho bem dirigido talvez também possam explicar a regu-
manuais, sobretudo de agulha, como a costura, a tapeçaria, o
Das mãos femininas exigiam-se lamentação pelos médicos do uso da máquina de costura,
bordado, a renda, o crochê e o tricô.
prodlgios: tinham que ser fortes sobretudo pelas mulheres gravidas. Embora ela fosse consi-
e rudes para o trabalho pesado Além de esses trabalhos serem valorizados pela econo-
derada em O lar feliz como "companheira inseparável da
do lar, mas, ao mesmo tempo, mia que representavam para o orçamento e possível comer-
dona de casa',"! Antônio dos Santos Coragem, médico for-
deveriam ser finas e delicadas para cialização, por meio deles muitas mulheres deram vazão à
a produção de requintados trabalhos mado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em
criatividade e à imaginação. De maneira bastante sensível,
de agulha, (Máquina de Costura 1919, em sua tese de doutoramento, afirmava que o pedalar
um artigo sobre trabalhos manuais assim se refere à confec-
Original Lydia, 1911) produzia excitação vaginal, daí a necessidade de se evitar o
ção de rendas: "Algumas rendeiras costumam escrever nos
uso diário das referidas máquinas.'?
bilros a sua vida íntima; noutro o dia do batismo [...] em um
Vale lembrar, ainda, qUt! o papel do marido provedor,
terceiro o nome do noivo; num outro ainda a data do casa-
que legitimou a dependência econômica da mulher, acabou
mento. E assim por diante, de modo que estas almofadas se
também por tornar a esposa a única responsável pelos ser-
tornam ainda mais estimadas pelas rendeiras, principalmente
viços domésticos. Assim, para que as considerassem boas
as que relatam todas as passagens tristes e felizes da vida
donas de casa, além de manter permanente bom humor, de
íntima destas, num verdadeiro jornal sagrado"!"
realizar as tarefas sempre em benefício de toda a família, dei-
A dedicação e o prazer que muitas donas de casa pode-
xando para segundo plano tudo o que as afastasse da "admi-
riam sentir com a elaboração dos trabalhos de agulha -
nistração científica" do lar, de ser econômicas, as mulheres
quando não eram realizados simplesmente por necessidade,
jamais deveriam pedir a participação do marido no serviço
obrigação e dever - chegavam a proporcionar momentos de
doméstico.
evasão, convívio e troca afetiva com as vizinhas e amigas.
A documentação ilustra, utilizando vários exemplos, que
Possibilitavam fugir da massacrante e repetitiva realidade dos
o lar era considerado o lugar onde o marido, cansado do
outros serviços domésticos, daí serem freqüentes as recomen-
trabalho em prol da família, restabelecia as suas forças.
dações sobre o limite de tempo a eles dedicado. Os trabalhos

ção de papéis e valores é sempre uma atividade, consciente


o homem, com as preocupações da vida, com a luta pela ou não, um fazer que se entrelaça com a representação,e que
existência, qual um novo Hércules que deve fazer uso da
sua força, do seu vigor para destruir os obstáculos que mesmo assim pode alterar o já-feito, ou o já-dito, Assim,
lhes embargam o passo, precisa no entanto nos momen- quando o discurso visa consagrar a oposição homem/mulher,
tos de cansaço e de desalento dos encantos da voz suave tem como objetivo fazer coincidir os eventos e a sua signifi-
e carinhosa, das carícias das mãos brancas, do sorriso, cação. Há, porém, uma margem de liberdade nos fatos, por-
dos olhos claros e do refrigério dos lábios vermelhos.'E que é intrínseco ao relato a noção de mal-entendido. A reali-
ao chegar ao lar, depois de um dia de trabalhos, descan- dade, portanto, é aquilo que nunca coincide consigo mesma
sar no peito amigo da sua companheira que só por ele porque depende não só de como ela se apresenta mas tam-
vive. A mulher, a sua eterna aliada, vinda ao mundo só bém do olhar que recai sobre ela.!"
para fazer a sua existência mais suave, flor do jardim da Ao solidificar a concepção das esferas separadas, a mu-
vida e jardim perene no lar perfumando-o com a sua lher foi convocada a assumir a direção do lar em nome de
fragrância e bondade.!" uma determinada definição de família,e o homem o papel de
provedor e chefe dessa família. Isso acabou por encobrir
O marido não deveria, portanto, ser incomodado com grande parte da população masculina, que nas primeiras dé-
pedidos de ajuda. O dever da esposa era, ao contrário, aliviá- cadas do século vivia à margem de um trabalho regular;
lo de qualquer contrariedade ou esforço:"Pois não trabalhou como também da feminina, que mediante o trabalho remu-
ele o dia inteiro para ganhar o pão cotidiano da família!"!" nerado se constituía na única provedora do lar e responsável
As mulheres que não tornavam o lar agradável ao marido, pelos filhos,já que a presença do pai não é, como nunca foi,
pediam sua ajuda e comentavam os problemas cotidianos uma realidade absoluta em todas as famílias.
eram consideradas ineptas, egoístas e preguiçosas, e corriam Além disso,ocultou a importância sociale econômica do
o grande risco de se ver desprezadas pelo cônjuge. trabalho prestado pelas mulheres dentro de casa; tornou in-
visível não apenas o trabalho produtivo realizado pelas mu-
Para terminar, gostaríamos de ressaltar que o vigoroso lheres como também o das crianças; camuflou a dureza e a
receituário das primeiras décadas do século, que procurou dificuldade do serviço doméstico, o cansaço e o desgastefísi-
forjar os novos modelos de marido e esposa, criou inúmeras co; limitou as atividades consideradas legítimasexercidaspe-
dificuldades para a tarefa do conhecimento. las mulheres; levou o trabalho feminino a ser visto como
É sabido que ao se cristalizar complexos conjuntos de acessório, temporário; justificou o ganho diferenciado entre 62, 63, 64. ''A mesinha de trabalho
atividades e experiências de vida em papéis prescritos, homens e mulheres, e abafou o grito doloroso daquelas que é juntamente com o toucador,
ousaram denunciar as iniquidades que sofriam. um dos m6veis mais encantadores
atrofiam-se os valores morais e qualitativos das relações so- e mais úteis dos que usam
ciais. O dever ser impõe-se como uma exigência exterioriza- Perversamente, acabou também por circunscrever.a fa-
as senhoras cuidadosas, e que têm
da que compromete de maneira impiedosa a relação dos mília ao "lar feliz",onde a mulher é apresentada como rainha, hábitos de elegância. Essa mesinha
agentes sociais com suas atividades: o ato de fazer transfor- escamoteando-se, assim, o drama da história, os conflitos, as deve ser instalada no melhor lugar
ma-se em ato de consumir normas, regras, papéis, funções, diferenças e as relaçõesde poder que se dão no seu interior, e da casa, no boudoir perto da janela,
isto é, ideais convertidos em mercadorias prontas para ser atribuindo-se às mulheres, sobretudo às casadas,uma impor- e é nela que se devem colocar,
tância social como forma de indenização,já que as portas de não somente as tesouras. o dedal,
consumidas. 145 os retalhos de seda, as fitas.
O que torna possível a todo ser humano se apossar da acesso à igualdade de direitos com os homens foram cuida- mas todos os objetos que merecem
história é o fato de que ele, ao nascer numa dada ordem dosamente fechadas. da mulher a sua particular
consuetudinária, passa a orientar sua ação a partir de alguns preferência, inclusive a sua
correspondênciaíntima." (Revista
marcos estruturados, tanto pelo costume quanto pela norma. Feminina, Rio de Janeiro, 1920).
É importante salientar, no entanto, que a assimilação/nega-

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