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20/05/2019 Programas de boteco - 16/05/2019 - Contardo Calligaris - Folha

Contardo Calligaris (/colunas/contardocalligaris/)


ccalligari@uol.com.br (mailto:ccalligari@uol.com.br)

Programas de boteco
O piadista fala coisas que o público pensa, mas não ousa dizer

16.mai.2019 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2019/05/16/)

Recomendo uma comédia dramática italiana, que estreou em 2018: “Estou de


Volta” (Sono Tornato), de Luca Miniero.

No filme, Benito Mussolini, o ditador fascista, reaparece na Itália, 72 anos


depois de sua morte. Ele observa o que lhe parece ser a decadência italiana e,
sobretudo, encontra um repórter que não acredita que ele seja o verdadeiro
Mussolini, mas constata que, por seus gestos, atitudes e falas, ele (ditador
ressuscitado) merece uma carreira de grande sucesso na televisão, como
cômico.

O longa é baseado em romance e filme alemães, “Er ist Wieder Da”


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/04/1261437-satira-sobre-hitler-vira-fenomeno-de-vendas-na-

alemanha.shtml),
em que Hitler reaparece em 2011. O romance, escrito por Timur
Vermes, ótimo, foi traduzido no Brasil pela editora Intrínseca: “Ele Está de
Volta”.

Voltando ao filme italiano, há um momento em que uma senhora idosa


entende que o tal ator é mesmo o ditador e ela se lembra: “Na época também

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a gente ria, acreditava que fosse apenas um cômico”.

Luciano Salles

Na minha primeira infância, era frequente encontrar, nos escombros da


Itália, palavras de ordem fascistas (as quais tinham sido cobertas com tinta
branca em abril e maio de 1945, mas teimavam em reaparecer, em muros e
construções).

Um dia, passeando com meus pais, encontrei uma escrita clássica dos
últimos meses da guerra: “Venceremos”, assinado “M.”. Meus pais me
contaram que, sobretudo no fim da guerra, no inverno de 1944-45, com a
Itália já em parte liberada pelos aliados, todo mundo lia essas palavras de
Mussolini como se fossem uma piada. 

Um dos jeitos consistia em interpretar o “M.” da assinatura como abreviação


de Macario (Emílio Macario era um cômico muito conhecido da época) e
comentar: “Esse Macario, ele inventa cada coisa”.
Pensei nessa lembrança e no filme de Miniero porque, à primeira vista, uma
parte relevante de nossa vida política cotidiana, hoje, no Brasil, é
irresistivelmente cômica.

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Os ministros do núcleo ideológico, presentes e passados, são engraçados —


às vezes hilários.
Ricardo Vélez Rodríguez, Damares Alves, Abraham Weintraub, Ernesto
Araújo poderiam ter sido inventados pelo canal Porta dos Fundos.

Quanto ao presidente, ele tem um estilo cômico próprio, que talvez seja um
dos segredos de seu sucesso eleitoral. É um estilo de piada de boteco, em que
o piadista provoca o bom humor e uma espécie de aprovação cúmplice de
todos os presentes. 

O público ri porque se sente libertado: o piadista fala coisas que o público


pensa, mas não ousa dizer —nos melhores momentos, coisas que ninguém
nem sequer ousa admitir que pensa.

João levou uma multa porque foi pescar em um viveiro preservado. Ou então
foi multado por excesso de velocidade. Todos, no boteco, gostariam de viver
em um mundo sem limites, em que pescariam no nascedouro dos filhotes de
peixe ou em que sentiriam o “prazer de dirigir” a 180 km/h na marginal. 

Mas todos, no boteco, impedem tanto esses pensamentos quanto a expressão


desses pensamentos. Em algum canto de suas mentes, vislumbram os mortos
na estrada, concebem a necessidade de preservar o ecossistema. Todos
gostariam de ter uma arma (ou duas), mas também se perguntam se isso vai
aumentar a segurança ou, ao contrário, disseminar a violência —não sabem,
mas se perguntam. 

Todos brincam, no fundo, bem escondido, com a ideia de que estuprar


mulher é um presente que as mulheres feias não merecem, mas todos se
envergonham desse pensamento, até porque eles sabem, também lá no
fundo, bem escondido, que eles não são presente algum para ninguém. 

Em suma, todos, no boteco, adoram o piadista porque ele os autoriza a


escutar e a aprovar algo que eles não se permitem pensar e dizer.

Um excelente piadista, aliás, faz mais: ele permite pensar que tudo o que a
gente não se autoriza a dizer é reprimido por agências escuras e escusas (o
politicamente correto ou algo que o valha).

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Quase ninguém, na turma do boteco, se chegasse a governar, agiria segundo


aqueles pensamentos que o piadista encarna. Na hora H, todos (ou quase)
pensariam na ecologia, nas mulheres vítimas de estupro, em lençóis
cobrindo cadáveres  nas estradas etc. 

Isso não vale para o piadista: para que sua piada seja eficiente e dê a todos a
sensação de que ele os liberta, é preciso que o piadista se leve a sério. Ele não
pode rir. Imperturbável como Buster Keaton, para produzir seu efeito
cômico, ele deve convencer o auditório de que, estando no poder, ele fará
mesmo tudo o que ele disse.

Talvez estivesse na hora de a gente parar de rir.

Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).
witter.com/ccalligaris)

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