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Marx e as comunidades originárias: a

concepção de natureza

Sábio é quem muito sabe por natureza.


Os que precisam de aprender são como selvagens corvos
que, com língua charlatã, grasnam em vão
contra a ave sagrada de Zeus.

Píndaro, Olímpica II, v. 85-88

Todas reflexões de Marx sobre as comunidades humanas originárias realizaram-


se sempre na abstração de sua diferença específica com a sociedade capitalista.
Daí a ilusão, para o leitor desatento, de que ele está a descrever um sistema
das suas formas sociais de organização. Tal sistema, contudo, além de não se
fazer presente em seus escritos, é, a rigor, impossível. É intraduzível em termos
universais, exceto se o considerarmos naquela abstração acima referida.
Aqui, nas formas comunais originárias, o lógos não se destaca da physis,
discurso e realidade não aparecem em oposição um em relação ao outro. Estamos
no reino da imediatez, da acidentalidade, das singularidades então irredutíveis a
qualquer conceito. Por trás da superficialidade aparente dos fenômenos não há
nada de oculto a se encontrar ou, mesmo, buscar. A filosofia, nessas comunidades,
não teria qualquer lugar. Não há nada que ela possa responder, nem faz sentido
algum as perguntas que, em tempos vindoros, admiração e espanto em muitos
produziram.
2 Marx e as comunidades originárias: a concepção de natureza

Uma leitura superficial das análises de Marx a respeito de tais comunidades


primordiais pode passar a impressão de que nelas temos o domínio pleno
e absoluto da universalidade. Afinal, Marx insiste no fato de que em tais
comunidades os homens encontravam-se diante de uma dupla unidade: homem-
natureza e homem-comunidade. Tal unidade, porém, não é, como pode parecer
a primeira vista, um conceito efetivo, não é um universal que brota ou se
sobrepõem as atividades singulares dos homens, mas denota tão somente o
vínculo direto, não mediado dos homens com as condições objetivas de sua
existência, de um lado, e enquanto membro de uma comunidade, de outro. Esta
dupla unidade imediata, portanto, não é resultado da atividade dos indivíduos,
não é produto de certos tipos de relações sociais que eles estabelecem entre si.
Apresenta-se, ao contrário, como pressuposto, como algo dado, cuja reprodução
social apenas reafirma. Marx dirá, assim, de uma “existência originada natural
e espontaneamente”1 . Vejamos em que sentido tais comunidades podem ser
consideradas “naturais e espontâneas” e, sobretudo, em que sentido podemos
falar de uma unidade.
A atividade dos homens, por diversas que sejam, nesse momento histórico,
apenas repõem seus pressupostos, as pré-condições (naturais) de sua existência.
Por isso temos a “apropriação da condição natural do trabalho, da terra [...] não
pelo trabalho, mas como pressuposto do trabalho”2 . Eis uma afirmação curiosa.
Em que medida a apropriação das condições naturais é um pressuposto e não um
resultado do trabalho? A dificuldade subjacente a essa afirmação comumente está
associada a tese, profundamente equivocada, de que o trabalho, em si mesmo,
nega a natureza.
O trabalho enquanto atividade concreta dos homens, enquanto metabolismo
entre homem e natureza, é a afirmação das capacidades humanas, bem como
das propriedades naturais do que é trabalhado. Quando, por meio do trabalho,
se faz vestes e calçados das peles animais, pão dos grãos de trigo, ou automóveis
do minério de ferro, os materiais fornecidos pela natureza não são negados, mas
modificados em conformidade com suas propriedades internas de modo a servir
ao uso humano. Definitivamente, o trabalho não nega a natureza, mas reafirma
tanto as capacidades internas e imanentes aos homens, quanto as propriedades
internas da matéria trabalhada. A unidade homem-natureza, nesse caso, expressa
unicamente o fato de os indivíduos se relacionarem diretamente com a natureza
por eles trabalhada, sem qualquer mediação social, sem que seja necessário um
contrato de trabalho, um título jurídico de propriedade ou dinheiro. Não se trata

1
(MARX, 2011, p. 397)
2
(MARX, 2011, p. 397)
3

de uma unidade de coisas diversas, trata-se, antes, de coisas diversas em relação


de continuidade uma em relação a outra.
Assim concebida, as atividades laborativas dos homens são em absoluto
particulares, em absoluto irredutíveis uma na outra e diretamente determinadas
pelas propriedades naturais do objeto trabalhado, pelas capacidades intelectivas e
físicas daquele que trabalha e pela finalidade almejada. Não temos trabalhadores
no geral, mas este indivíduo que está a fazer vazos, este indivíduo que está a
caçar, pescar, plantar, cozer. O trabalho é o que ele é em suas manifestações
específicas e concretas. É somente na abstração com a sociedade capitalista
futura que podemos contrapor os trabalhadores assalariados aos produtores no
geral, as mercadorias ao produto do trabalho no geral. Tomando essas formas
comunais originárias em si e por si mesmas, tais conceitos – trabalhadores ou
produto – não fazem qualquer sentido, não servem para nada.
Esta apropriação da terra pelos indivíduos que trabalham, contudo, “é ime-
diatamente mediada pela existência originada natural e espontaneamente do
indivíduo como membro de uma comunidade”3 . Eis uma expressão de todo estra-
nha: imediatamente mediada (sofort vermittelt). Se desconsiderarmos as lendas
modernas do indivíduo isolado não há nada de enigmático no fato da existência
dos indivíduos ser sempre mediada pela comunidade a que pertence. Afinal,
os indivíduos apenas existem enquanto membro desta. Daí que a comunidade
não é, segundo Marx, o produto de um acordo entre as partes, o resultado de
escolhas e ações comunicativas individuais. O homem só existe como e enquanto
membro de uma entidade comunitária. É por natureza social. A entidade social
não é um resultado possível das ações humanas indivíduais, mas um pressuposto
necessário de sua existência. O que é específico das comunidades originárias
não é o fato de as ações individuais serem mediadas pela comunidade, mas são,
também, imediatamente mediadas.
A comunidade não se apresenta aqui como algo externo ao indivíduo, como
um outro que o perpassa e o contrapõem. A comunidade é “substância em que
o indivíduo aparece como acidente”4 . Como todo acidente, os indivíduos que
integram o corpo comunal são em absoluto diferenciados. Suas determinações
internas – físicas, intelectivas, estéticas, psicológicas – se expressam e se desenvol-
vem sem que diferenças e uniformidades sociais a elas se sobreponham: cidadão,
escravo, brasileiro, trabalhador ou nobre. A expulsão do corpo comunitário signi-
fica uma setença de morte. Diferenças de todo tipo podem emergir nas relações
entre os indivíduos, mas jamais diferenças entre indivíduos e a comunidade, pelo

3
(MARX, 2011, p. 397)
4
(MARX, 2011, p. 396)
4 Marx e as comunidades originárias: a concepção de natureza

simples fato da comunidade não existir como algo separado e distinto da ação
mútua e coletiva de seus membros. O “indivíduo isolado desvencilhou-se tão
pouco do cordão umbilical da tribo ou da comunidade quanto uma abelha da
colmeia”5 .
Somente assim Marx pode afirmar que o indivíduo “reproduz-se diretamente
com base na natureza”. O que quer dizer unicamente que ”sua atividade produtiva
e sua participação na produção são dependentes de uma determinada forma
do trabalho e do produto, e sua relação com os outros é determinada da
mesma forma”6 . Antes de seguir seus passos em conformidade com leis naturais,
regularidades abstratas que lhe são impostas desde fora, o que determina as
atividades dos indivíduos no interior do corpo comunal são as formas particulares
oriundas da natureza exterior e dos demais membros da comunidade. Os atributos
específicos oriundos de cada um dos polos da relação, quer sejam dos indivíduos
entre si, quer sejam dos indivíduos com a natureza, determinam-o de forma
absolutamente diversa em cada caso, em cada contexto, em cada cenário, em
cada momento.
Nada de efetivamente universal se expressa, portanto, na dupla unidade
imediata que caracteriza a condição originária dos homens. As relações sociais –
sempre diretas, cristalistas e transparentes – não produzem algo de substancial-
mente distinto de seus pressupostos, apenas os repõem e os reafirmam tal como
são em sua diversidade e mutabilidade naturais. Daí que, se por um lado, os
indivíduos se apresentam, nesse contexto, como mais completos, como indivíduos
plenos e não cindidos socialmente pela diferença, por outro lado, permanecem
como “acessório de um conglomerado humano determinado e limitado”’7 . Isto
“porque não elaborou ainda a plenitude de suas relações e não as pôs diante de
si como poderes e relações sociais independentes dele”8 . A natureza é apropriada
pelos indivíduos apenas superficialmente, tomada unicamente em suas manifes-
tações imediatas e perceptíveis. Por isso, as comunidades humanas seguem seu
curso em continuidade direta com a natureza.
Quando dizemos que tais conceitos: valor de uso, trabalho concreto, unidade
homem-natureza e homem-comunidade dentre outras perspectivas possíveis,
apresentam-se nestas formulações conceituais como significando algo apenas
para nós, em comparação com a sociedade capitalista, isto não significa que
sejam mera construção subjetiva. Tratam-se, de fato, de determinações objetivas.
Alguém objetará que os valores de uso, produto do trabalho concreto dos
5
(MARX, 2013, p. 409)
6
(MARX, 2011, p. 105)
7
(MARX, 2011, p. 39)
8
(MARX, 2011, p. 110)
5

homens, satisfazem necessidades humanas de um tipo qualquer? Que tais


produtos, universalmente, podem ser denominados valores de uso? A questão
é que tais “conceitos”, nestas formas originárias de sociedade, ao se aplicarem
indistintamente a tudo, nada determinam, nada esclarecem, desprovido estão de
todo e qualquer poder explicativo.
É somente quando os produtos do trabalho se duplicam em valor de uso
e valor de troca, que a presença deste último traz consigo a necessidade de
se determinar o primeiro. Quando em 1776 Adam Smith, pela primeira vez na
história do pensamento humano, esclareceu, sem ambiguidades, a diferença entre
valor de uso e valor de troca não era o segredo daquelas comunidades originárias
que ele começava a desvendar. A respeito dessas o conhecimento humano não
avançou um só passo com tal diferenciação conceitual. O novo horizonte que se
abria dizia respeito tão somente a sociedade capitalista, que destronara o valor
de uso de seu reinado milenar.
Transparece, pois que Marx, nesse texto fundamental que é as Formen,
não está a tratar da história das comunidade primitivas. Ele busca determinar,
esclarecer, desvendar o modo de produção capitalista, produto de um longo
processo histórico de dissolução daquelas comunidades. Mas se tal busca se
faz necessária é porque em nossa sociedade atual as coisas não se apresentam
da forma direta, clara e transparente como outrora. Entre os indivíduos e as
coisas se elevou uma dimensão intermediária: dimensão das mediações socias.
Daí a necessidade de expressá-las, subjetivamente, em representações simbólicas,
discursivas, conceituais. Representações quase sempre enigmáticas e obscuras, ao
não traduzirem, imediatamente, a abrangência de suas relações e significados.
Mas, por ora, existe algo mais a dizer sobre essas comunidades originárias.
Tais comunidades são naturais porque os pressupostos que ela reproduz são
postos pela própria natureza. Aqui, a comunidade ainda não se transformou em
forma de sociedade, capaz de repor pressupostos que se configuram como tipos
específicos de relações sociais desenvolvidos historicamente no interior da própria
forma de sociedade. Nas palavras do próprio Marx, “as condições originárias da
produção aparecem como pressupostos naturais, condições naturais de existência
do produtor, exatamente como o seu corpo vivo aparece como pressuposto de si
mesmo, uma vez que, por mais que ele o reproduza e desenvolva, não é posto
por ele mesmo” e enquanto tal é “um pressuposto natural que ele não pôs” 9 .
Assim compreendido, o sentido da palavra natureza tal como empregado por
Marx se liga aquele sentido originário da palavra grega physis.

9
(MARX, 2011, p. 401)
6 Marx e as comunidades originárias: a concepção de natureza

O termo natureza é normalmente empregado no sentido de uma realidade es-


tável, manifesta em expressões como ordem natural, natureza humana, natureza
divina, por natureza dentre outras. Tais significações estáticas se consolidaram,
todavia, somente após um longo intinerário de desenvolvimento metafísico da
palavra physis e é no contexto desse desenvolvimento que foi traduzida por
natura pelos romanos. É uma ironia nada acidental que o termo physis tenha
integrado o cânone supremo daqueles considerados por excêlência meta-físicos,
isto é, justamente os termos que designariam aquelas significações privilegiadas
como expressão de um domínio situado para além da physis. Compreender a
noção originária de physis, contuto, é tarefa das mais árduas. Tanto que em
toda e qualquer tradução proposta seu sentido é expresso apenas parcial e
unilateralmente. Isto porque, originariamente, physis é tudo, menos algo estável e
abstrato. Vejamos!
Etmologicamente, tanto sua raiz quanto seu sufixo conferem-lhe um caráter
intrissecamente dinâmico. Phy- significa brotar, crescer e se origina, por sua
vez, da raiz verbal indo-européia bhêu- e bhu- com sentido de crescer, florescer,
se desenvolver. A terminção -sis corresponde, em português, ao sufixo -ção e
denota um processo concebido como uma realização objetiva, algo que brota.
Mais precisamente, esse sufixo expressa a realização do ato verbal em oposição
ao mero resultado do ato verbal – em grego -ma, em português -mento10 . O
termo corresponde a própria imagem de um processo, um processo que irrompe
e desenvolve-se a partir de si mesmo. Daí Physis ser considerada a “constituição
real de uma coisa, conforme ela é realizada do início ao fim, com todas as suas
propriedades”11 . Physis é, a um só tempo, origem, processo e resultado.
Prova disso é que, até Heráclito, não chegou até nós um único uso da palavra
physis no singular genérico: a Natureza. Tratava-se, sempre, da natureza disto
ou daquilo, da natureza de cada coisa e jamais da natureza no geral12 . Em sua
primeira aparição, na Odisséia de Homero, Hermes apresenta a Odisseo a physis
de uma planta rasteira, desconhecida de nosso protagonista. Ao arrancar a planta,
Hermes literalmente “mostra sua physis” (kai moi physin autou edeixe). Além
de descrevê-la: “a raiz é negra e a flor da cor de leite”, Hermes prossegue: “os
deuses a chamam ‘moly’ e, ao homem, é difícil arrancá-la, mas tudo podem os
deuses eternos” (Od. X, 302-5). A physis, como se vê, é physis de algo, e traduz
não apenas seus aspectos imediatamente visíveis, mas também seu nome e as

10
(MURACHCO, 1996, p. 34). Um exemplo elucidativo dessa diferenciação são os termos noema e
noésis. O último designa o ato de pensar, enquanto o segundo remete a realização ou conteúdo
deste ato: o pensamento.
11
(NADDAF, 2005, p. 15)
12
(CORDERO, 2011, p. 9-10)
7

características internas, “difícil de arrancar”, tornadas explícicas em sua interação


direta com o outro.
Exceto neste caso, não encontraremos nenhuma menção do termo nos épicos
de Homero. Não há, também, nenhum registro em Hesíodo, tampouco nos poetas
líricos, com exceção daqueles tardios como Píndaro. Mas há um registro que
merece maior atenção: Hérodoto. Contemporâreo dos sofistas, mas ainda alheio a
suas especulações, Heródoto expressa, como poucos, uma tradição intermediária
ainda ligada ao cenário anterior à filosofia.
Pois bem, em Heródoto, temos dois registros do termo physis. Em ambos os
casos para designar animais que conheceu em suas viagens ao Egito, estranhos
aos gregos. “A physis dos crocodilos”, diz Heródoto, “é a seguinte”. Segue-se
uma longa descrição que não se resume aos aspectos físicos de um animal
adulto, ao contrário, descreve seus hábitos, os ambientes em que vive e seu
comportamento em cada um deles, como nasce e se desenvolve, suas interações
com outros animais. Heródoto não demonstra nenhuma estranheza pelo fato de
um mesmo animal, uma mesma physis, ser tomado de formas diversas pelas
muitas comunidades humanas no Egito. Para algumas, diz Heródoto, é um animal
sagrado, os adornam e, após a morte, são embalsamados. Para outras, é um
inimigo, são adestrados ou caçados. Os métodos de caça são exemplificados. A
seguir, em termos mais sucintos, Heródoto fala da physis do hipopótamo.13
Destes primeiros usos da palavra physis, mas também de sua ausência,
decorrem duas conclusões fundamentais. Physis refere-se, sempre, aos seres
vivos, do mundo vegetal ao animal. Para os gregos não há sentido em falar da
natureza do que é estável, do que permanece sempre o mesmo, do que não é
dotado de vida. Tanto em Homero quanto em Heródoto, as physis descritas se
referem a seres vivos desconhecidos de seus interlocutores. Em Homero, uma
planta desconhecida por Odisseo, em Heródoto, animais estranhos ao povo grego
que escuta suas histórias. A physis não é algo que se encontra para além das
aparências, para além da experiência sensível. Apenas a total ausência de contato
com algo justifica a explicitação verbal de sua physis.
Isto significa que a physis de algo não se oculta. A natureza de algo se
revela diretamente a todos que participam de seu processo de nascimento e
desenvolvimento. Se a physis de cada coisa possui traços específicos que nos
permite distinguí-la das demais e, assim, conferir-lhe um nome, esses traços não
consistem em um lógos oculto, ao contrário, trata-se da descrição do processo
por meio da qual a physis se revela direta e imediatamente a quem quer que
seja. Ocultar a natureza de algo significa ocultar este próprio algo.

13
(HERÓDOTO, 1992, p. 358-61)
8 Marx e as comunidades originárias: a concepção de natureza

O conceito, a razão, o lógos não se desgarraram, ainda, da physis. Fenômeno e


conceito, imagem e razão, aparência e essência coincidem. Daí que, para nós, os
primeiros usos do termo soem âmbiguos. É assim que Bernard Tocana afirma que
a ideia de physis “encerra a imagem de um movimento, de um processo interno
e espontâneo de desenvolvimento, intimamente associado à geração de seres
vivos”. Mas não somente isso. Encerra, também, “à imagem de uma estabilidade
e um produto acabado e consistente”14 (HEIDEL, 1910, p. 98-9).
Mas esta dimensão concreta e abstrata da physis, esta ambiguidade cons-
titutiva, não existia para os gregos arcaicos. Regularidades abstratas, relações
lógicas e matemáticas não eram arrancadas do interior da physis de algo. As
leis que conformam a physis de algo, se assim as quisermos chamar, permane-
ciam impregnadas na sua dimensão concreta, fenomênica e factual. Como parte
indissolúvel dela. Nenhuma razão, princípio ou força externa a dirige. Trata-se
de um “desenvolvimento ou crescimento a partir de dentro”. Na inexistência
do singular genêrico A Natureza, uma tradução, talvez, mais adequada de ‘a
physis de’ seja ‘o que é imanente a’. Esta imanencia, contudo, coincide com as
formas de manifestação imediatas e aparentes das coisas: tanto no que se refere
a suas propriedades como no que se refere ao processo de tornar-se - nascer,
desenvolver, morrer. Não há nada por trás das aparências.
Esta digreção nos ajuda a avançar no sentido preciso do termo comunidades
naturais e espontâneas, abundantemente empregado por Marx. Nosso autor,
inimigo primeiro das leis universais e eternas da natureza ou do homem,
aquele que dedicou toda sua obra a dissolver as leis universais da economia
política e tudo submeter a historicidade, que se recusou a escrever sistemas
do que quer que seja; seria o último a procurar indicar as leis naturais que
presidiriam, originariamente, a existência humana e, a partir daí, fazer nascer
uma historicidade ex machina e artificiosa. A questão toda se resume no seguinte:
nessa condição originária todas as relações que os indivíduos estabelecem entre
si enquanto membros de uma comunidade e, por meio desta, com a natureza
são imediatas, diretas. Estamos em um universo em que inexiste, efetivamente, a
figura da mediação, dos universais. Cada polo das relações então estabelecidas se
revelam naquilo que são em sua imanência, em sua naturalidade. Aqui, a physis
de cada coisa não se oculta e a physis no geral não faz qualquer sentido.
Também em O Capital o termo natureza volta a emergir em inúmeras
passagens. No entanto, ali, a exposição das categorias está distante de se reduzir
a descrição da physis de algo. Ao contrário, o que a coisa é por natureza, em
sua imanência, é uma dimensão sempre negada e mistificada pelas mediações

14
(TOCANE, 1978, p. 9)
9

sociais típicas da sociedade capitalista que a elas se sobrepõem e subvertem.


Este é o caso dos valores de uso. A esse respeito diz Marx que as “mercadorias
vêm ao mundo na forma de valores de uso ... Essa é sua forma natural originária”15 .
Algumas páginas adiante complementa: “Em sua figura de valor, a mercadoria
se despoja de todo traço de seu valor de uso natural-espontâneo e do trabalho
útil particular ao qual ela deve sua origem”16 . No mesmo sentido, ainda no
Livro I de O Capital, Marx analisa o trabalho do servo medieval, submetido
à corveia, afirma: “A forma natural do trabalho, sua particularidade – e não,
como na base da produção de mercadorias, sua universalidade – é aqui sua
forma imediatamente social”17 . Marx confere, portanto, este mesmo predicado,
natural, ao trabalho concreto, particular e imediato contraposto a universalidade
do trabalho produtor de mercadorias: o trabalho abstrato.
No mundo encantado das mercadorias, o trabalho é substantivado. Temos
O trabalho no singular genérico, contraposto as atividades específicas de um
membro umbilicalmente ligado a sua comunidade em relação ao ambiente natural
em sua perpétua inquietude e multiplicidade. Caçar, cozer, cortar, coletar, plantar,
domar, modelar dentre inúmeras outras formas de atividades se submetem, agora,
ao universal trabalho. Este cenário, certamente, propicia, para a subjetividade
dos membros de cada comunidade, uma infinidade de possibilidades, talvez em
uma amplitude que jamais voltara a existir na história humana. No entanto, este
campo de possibilidades subjetivas está, ainda, aquém da universalidade, aquém
do conceito que a tudo absorve e estabiliza.
Vemos, portanto, que as formas de representação que se tornaram típicas
do saber ocidental: formas discursivas, conceituais, autonomizadas, em uma
palavra, meta-físicas, para além da -physis não são o produto puro e simples de
gênios inspirados do mundo antigo. Ao contrário, a obscuridade conceitual que
domina há milênios o saber ocidental é a contraparte da obscuridade mesma das
formas sociais de organização que, cada vez mais, obscurecem e resignificam o
significado imantente (ou natural) das coisas e pessoas que a integram. A crítica
as formas burguesas de expressão, se assim compreendemos, jamais poderá ser
levada a bom termo sem o solapamento da forma de sociedade que as possibilita.

15
(MARX, 2013, p. 172)
16
(MARX, 2013, p. 183)
17
(MARX, 2013, p. 183)
Referências

CORDERO, Néstor Luis. La noción de phýsis y la concepción dinámica de


la realidad. In: A, Bieda, E. y Mársico, C. (eds.) Actas de las II Jornadas de
pensamiento antiguo, “Expresar la phýsis. Conceptualizaciones antiguas sobre la
naturaleza”. Buenos Aires: Universidad de San Martín, 2011. p. 6–13. Citado na
página 6.
HEIDEL, William Arthur. Peri physeos: A study of the conception of nature
among the pre-socratics. Proceedings of the American Academy of Arts and
Sciences, v. 45,4, p. 79–133, 1910. Citado na página 8.
HERÓDOTO. Historia. Volumen I: Libros I-II. Trad. C. Schrader. Madrid: Editorial
Gredos, 1992. Citado na página 7.
MARX, Karl. Grundrisse. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2011. Citado nas
páginas 2, 3, 4 e 5.
. O Capital - Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013. Citado nas
páginas 4 e 9.
MURACHCO, Henrique Graciano. O conceito de physis em homero, heródoto e
nos pré-socráticos. Hypnos, v. 2, p. 11–22, 1996. Citado na página 6.
NADDAF, Gérard. The Greek concept of naturee. Albany: State University of New
York Press, 2005. Citado na página 6.
TOCANE, Bernard. L’idée de nature en France dans la seconde moitié du XVIIème
Siècle: contribution à l’histoire de la pensée classique. Paris: Klincksieck, 1978.
Citado na página 8.

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