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REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE

VOLUME 39, NÚMERO ESPECIAL


RIO DE JANEIRO, DEZ 2015

Políticas,
planejamento
e gestão
em saúde
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES) SAÚDE EM DEBATE
A revista Saúde em Debate é uma publicação
do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2015–2017)
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Lucia Regina Fiorentino Souto CONSELHO EDITORIAL | PUBLISHING COUNCIL
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Carlos Leonardo Figueiredo Cunha Recife (PE), Brasil
Claudimar Amaro de Andrade Rodrigues Carlos Botazzo – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
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Luisa Regina Pessôa Cornelis Johannes van Stralen – Universidade Federal de Minas Gerais,
Maria Gabriela Monteiro Belo Horizonte (MG), Brasil
Nilton Pereira Júnior Diana Mauri – Universidade de Milão, Milão, Itália
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Grazielle Custódio David Hugo Spinelli – Universidad Nacional de Lanús, Lanús, Argentina
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José Carvalho de Noronha José da Rocha Carvalheiro – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
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Nelson Rodrigues dos Santos Maria Salete Bessa Jorge – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza (CE), Brasil
Paulo Duarte de Carvalho Amarante Paulo Marchiori Buss – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Paulo Henrique de Almeida Rodrigues Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – Universidade Federal do Pará, Belém (PA), Brasil
Roberto Passos Nogueira Rubens de Camargo Ferreira Adorno – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
Sarah Maria Escorel de Moraes Sonia Maria Fleury Teixeira – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Sonia Maria Fleury Teixeira Sulamis Dain – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Walter Ferreira de Oliveira – Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis (SC), Brasil
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REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 39, NÚMERO ESPECIAL
RIO DE JANEIRO, DEZ 2015

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 39, NÚMERO ESPECIAL
RIO DE JANEIRO, DEZ 2015

5 EDITORIAL | EDITORIAL 64 O modelo de ambiguidade-conflito


como ferramenta de análise dos
7 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION desafios da Assistência Farmacêutica
em João Pessoa (PB)
ARTIGO ORIGINAL | The ambiguity-conflict model as tool for
ORIGINAL ARTICLE the analysis of Pharmaceutical Services
challenges in João Pessoa, Paraíba, Brazil
11 Descentralização e regionalização Suelma de Fátima Bruns, Egléubia Andrade
em saúde na Espanha: trajetórias, de Oliveira, Maria Auxiliadora Oliveira,
características e condicionantes Vera Lucia Luiza
Decentralization and regionalization in
health in Spain: trajectories, characteristics 76 O Pacto pela Saúde e o processo de
and conditions regionalização no estado de Mato Grosso
Adelyne Maria Mendes Pereira, Luciana Dias The pact for health and the regionalization
de Lima, Cristiani Vieira Machado, process in the state Mato Grosso
José Manuel Freire Nereide Lúcia Martinelli, Ana Luiza d’Ávila Viana,
João Henrique Gurtler Scatena
28 Perspectivas de região e redes na
política de saúde brasileira 91 A Política Nacional de Promoção da
Prospects for the region and networks in Saúde: texto e contexto de uma política
Brazilian health policy A National Health Promotion Policy: text
Mariana Vercesi de Albuquerque, Ana Luiza and context of a policy
d’Ávila Viana Patrícia Ferrás Araújo da Silva, Tatiana Wargas
de Faria Baptista
39 O mix público-privado e os arranjos de
financiamento hospitalar no Brasil 105 Núcleo de Apoio à Saúde da Família:
The public-private mix and the hospital proposta nacional e implementação em
financing arrangements in Brazil municípios do Rio de Janeiro
Juliana Pires Machado, Mônica Martins, The Family Health Support Centre: national
Iuri da Costa Leite proposal and implementation in towns of
Rio de Janeiro
51 O público e o privado no processo de Shirley Soares da Silva Marins do Patrocínio,
regionalização da saúde no Espírito Santo Cristiani Vieira Machado, Márcia Cristina
The public and the private in the health Rodrigues Fausto
regionalization in Espírito Santo
Ana Paula Santana Coelho Almeida, 120 A saúde do adolescente privado de
Luciana Dias de Lima liberdade: um olhar sobre políticas,
legislações, normatizações e seus
efeitos na atuação institucional
The health of the adolescent deprived of
freedom: a look at policies, laws, norms and
its effects on institutional performance
Fernando Manuel Bessa Fernandes, José
Mendes Ribeiro, Marcelo Rasga Moreira

SUMÁRIO | CONTENTS

132 Participação das instâncias de controle


social na Política de Saúde Mental da 184 De frente com os médicos: uma
Bahia, 2001-2013 estratégia comunicativa de gestão
Participation of institutions of social control para qualificar a regulação do acesso
in Mental Health Policy of Bahia, 2001-2013 ambulatorial
Tarcio de Almeida Oliveira, Carmen Fontes Facing medical doctors: a communicative
Teixeira management strategy to qualify ambulatory
access regulation
145 Organizações Sociais e Fundações Flavius Augusto Olivetti Albieri, Luiz Carlos de
Estatais de Direito Privado no Sistema Oliveira Cecilio
Único de Saúde: relação entre o público e
o privado e mecanismos de controle social 196 Implementação da Atenção
Social Organizations and State Foundations Especializada em Saúde Bucal em dois
of Private Law at the Unified Health System: municípios na Bahia/Brasil
relation between the public and the private Secondary dental care implementation in two
and social control mechanisms municipalities in the state of Bahia/Brazil
Vanice Maria da Silva, Sheyla Maria Lemos Thaís Regis Aranha Rossi, Sônia Cristina Lima
Lima, Marcia Teixeira Chaves

160 Avaliação da Rede de Atenção à Saúde 207 A contratualização como ferramenta


de pequenos municípios na ótica das da gestão na Atenção Primária à
equipes gestoras Saúde na percepção dos profissionais
Evaluation of the Health Care Network da Secretaria Municipal de Saúde de
in small towns from the perspective of Curitiba, Brasil
management teams Contracting as a management tool of
Cássia Regina Gotler Medeiros, Tatiana Engel Primary Health Care in the perception
Gerhardt of professionals of the Municipal Health
Department of Curitiba, Brazil
Rafael Gomes Ditterich, Thabata Cristy Zermiani,
171 Gestão da Assistência Farmacêutica Simone Tetu Moysés, Samuel Jorge Moysés
e demandas judiciais em pequenos
municípios brasileiros: um estudo em 221 Núcleo de Apoio à Saúde da Família:
Mato Grosso do Sul potencialidades como dispositivo de
Pharmaceutical Services and litigation in mudança na Atenção Básica em saúde
small Brazilian municipalities: a study in Family Health Support Nucleus: potentials
Mato Grosso do Sul as change device in Primary Health Care
Cláudia Du Bocage Santos Pinto, Claudia Garcia Paula Roberta Rozada Volponi, Mara Lúcia
Serpa Osorio-de-Castro Garanhani, Brigida Gimenez Carvalho

232 Atenção Primária à Saúde nos


municípios brasileiros: eficiência e
disparidades
Primary Health Care in Brazilian
municipalities: efficiency and disparities
Grazielle Custódio David, Helena Eri Shimizu,
Everton Nunes da Silva
4 | CONTENTS
SUMÁRIOEDITORIAL | EDITORIAL

246 Práticas de cuidado e população em 298 A insustentável leveza do trabalho em


situação de rua: o caso do Consultório saúde: excessos e invisibilidade no
na Rua trabalho da enfermagem em oncologia
Care practices and homeless population: the The unbearable lightness of health work:
street clinic case overdemand and invisibility on nursing work
Carolina Cruz da Silva, Marly Marques da Cruz, in oncology
Eliane Portes Vargas Maria Liana Gesteira Fonseca, Marilene de
Castilho Sá
257 Atuação do cirurgião-dentista na
identificação de maus-tratos contra
crianças e adolescentes na atenção REVISÃO | REVIEW
primária
Dental surgeons’ work in the identification 307 Desempenho de intervenções de saúde
of child and adolescent abuse in primary em países da América Latina: uma
health care revisão sistemática
Gracyelle Alves Remigio Moreira, Ana Carine Performance evaluation of health
Arruda Rolim, Maria Vieira de Lima Saintrain, interventions in Latin America: a systematic
Luiza Jane Eyre de Souza Vieira review
Juliana Martins Barbosa da Silva Costa,
268 Rede de Atenção à Saúde ao portador Vanessa de Lima Silva, Isabella Chagas Samico,
de Diabetes Mellitus: uma análise da Eduarda Ângela Pessoa Cesse
implantação no SUS em Recife (PE)
Health Care Network to people with 320 O paciente com transtorno mental
Diabetes Mellitus: an analysis of grave no hospital geral: uma revisão
implementation in the SUS in Recife (PE) bibliográfica
Rebecca Soares de Andrade Fonseca dos The patient with severe mental disorders in
Santos, Luciana Caroline Albuquerque Bezerra, general hospital: a literature review
Eduardo Freese de Carvalho, Annick Fontbonne, Marina Fernandes do Prado, Marilene de
Eduarda Ângela Pessoa Cesse Castilho Sá, Lilian Miranda

ENSAIO | ESSAY ENTREVISTA | INTERVIEW

283 Implementação de políticas públicas: 338 Entrevista com o Professor Gastão


metodologia de análise sob o enfoque Wagner de Sousa Campos
da política institucional Gastão Wagner de Sousa Campos, Luciana
Implementation of public policies: Dias de Lima, Maria Lucia Frizon Rizzotto,
analysis methodology under the focus of Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato, Vera
institutional policy Lucia Luiza, Ruben Araújo de Mattos
Eduardo Tonole Dalfior, Rita de Cássia Duarte
Lima, Maria Angélica Carvalho Andrade RESENHA | CRITICAL REVIEW

340 Uma rica avaliação da construção da


gestão democrática da saúde no nível
local
Paulo Henrique de Almeida Rodrigues
EDITORIAL | EDITORIAL 5

Editorial

O direito à saúde consagrado na Constituição Federal de 1988 vem, desde o início de sua im-
plantação, confrontando-se com interesses políticos de grupos da sociedade contrários às
políticas universalistas e à presença do Estado nas políticas sociais. O resultado da presença
e força desses grupos se expressa no fato de que, ao final dos anos 1990, o sistema de saúde
brasileiro criado para ser único e regido pelo interesse público encontrava-se francamente
fragmentado e com um setor privado fortalecido e ampliado.
Ao longo dos últimos anos, o cenário não se modificou, e, desde o início de 2015, é possível
perceber alterações nos rumos das políticas públicas consolidadas no Brasil nas duas últimas
décadas. A crise instalada no País possui diferentes dimensões entre as quais sobressai uma
crise política que coloca em cheque a coalização que sustentou os governos nos últimos 12
anos. Ainda que sob os efeitos contraditórios dos dois projetos em curso – a convivência de
formas neoliberais e intervencionistas de atuação do Estado –, essa coalizão permitiu, por
meio de políticas redistributivas e aumento do salário mínimo, a redução da pobreza e das
desigualdades de renda da população.
O convívio entre esses grupos políticos e suas respectivas ideologias parece ter atingido a con-
dição de tensão extrema, e as exigências se explicitam nas mudanças que vêm sendo realizadas no
conjunto dos direitos sociais consagrados na Constituição Federal, entre os quais a saúde se destaca.
A politica econômica que prevaleceu resultante desse tenso cenário é a que favorece o
mercado financeiro com elevadas taxas de juros, ajustes fiscais e, consequentemente, encolhi-
mento dos investimentos públicos. O desemprego e o acirramento das desigualdades são refle-
xos e repercussões imediatas dessa política, que na saúde se traduzem em piora nos padrões
de mortalidade e de morbidade.
No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que já vem sofrendo um crônico subfinancia-
mento, a tendência é de agravamento ainda maior, e isso significa que há riscos de retrocesso
nos avanços conquistados. O melhor cenário é aquele que dificilmente incluirá os avanços
necessários à sua consolidação como sistema universal e de qualidade.
Mas qual o papel da investigação e da produção de conhecimentos da área de Políticas,
Planejamento e Gestão em Saúde (PPG) no momento atual? A trajetória da área de PPG con-
funde-se com a construção do próprio campo da saúde coletiva, descrito na literatura como
um híbrido de saberes e práticas. Essa área se diferencia pelo engajamento ético-político dos
estudos conduzidos, tendo em vista a proposição de alternativas para melhoria dos sistemas e
serviços e para a consolidação da saúde como um direito de todos os cidadãos.
Nesse momento, renovam-se as expectativas das contribuições de pesquisas desenvolvidas
em políticas, planejamento e gestão, em diferentes contextos (internacional, nacional, regio-
nal e local), para a compreensão e o enfrentamento dos problemas vividos no SUS. E é com
este espírito, de convocação ao debate, à reflexão crítica e à proposição de alternativas, que a
revista ‘Saúde em Debate’ reúne nesse suplemento importantes trabalhos da pós-graduação
acadêmica em saúde coletiva no Brasil.
Boa leitura!

Ana Maria Costa


Diretora Nacional do Cebes
5

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005002 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 5-6, DEZ 2015
6 EDITORIAL | EDITORIAL

Editorial
The right to health enshrined in the Federal Constitution of 1988 has, since the beginning of its
implementation, been clashing with political interests of social groups opposed to universal
policies and to the State’s presence in social policies. The result of the presence and strength
of these groups is expressed in the fact that, by the late 1990s, the Brazilian health system
created to be unified and governed by the public interest was frankly fragmented, and with a
private sector strengthened and expanded.
The scenario has not changed over the past few years and, since the beginning of 2015, we could
see changes in the direction of the public policies consolidated in Brazil over the last two decades.
The crisis installed in the country has different dimensions, among which it stands out a political
crisis that puts into question the coalition that supported the governments in the last 12 years. Albeit
under the contradictory effects of the two ongoing projects – the coexistence of neoliberal and inter-
ventionist forms of State action –, that coalition allowed, through redistributive policies and raise of
the minimum wage, the reduction of poverty and income inequalities of the population.
The conviviality among those political parties and their respective ideologies seems to have
reached the condition of extreme tension, and the demands are made explicit in the changes
that have been made in the set of social rights enshrined in the Federal Constitution, among
which health stands out.
The economic policy that prevailed as a result of that tense scenario is one that favors the financial
markets with high interest rates, fiscal adjustments and, consequently, the shrinking of public invest-
ments. Unemployment and the intensification of inequalities are reflexes and immediate repercus-
sions of that policy, which in health translates into the worsening of mortality and morbidity patterns.
In the scope of the Unified Health System (SUS), which has already been suffering a chronic
underfunding, the tendency is that there is an even further aggravation, and that means there
is the risk of a throwback in the advances achieved. The best scenario is one which will hardly
include the advances necessary for its consolidation as a universal and quality system.
But what is the role of research and the production of knowledge of the area of Policies,
Planning and Health Management (PPG) at the moment? The trajectory of PPG area overlaps
with the construction of the very field of public health, described in the literature as a hybrid
of knowledges and practices. This area is distinguished by the ethical and political engage-
ment of the studies conducted, in view of proposing alternatives to improve the systems and
services for the consolidation of health as a right of all citizens.
At this point, there are new expectations of contributions of research undertaken in policy, plan-
ning and management, in different contexts (international, national, regional, and local) for the un-
derstanding and confronting of the problems experienced in the SUS. And it is with that spirit of call
for debate, critical reflection, and proposal of alternatives that the journal ‘Saúde em Debate’ brings in
this supplement important works of the academic post-graduation in public health in Brazil.
Enjoy your reading!

Ana Maria Costa


National Director of Cebes

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 5-6, DEZ 2015


APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 7

Apresentação

A ideia deste suplemento foi gestada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Saúde


Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz
(Ensp/Fiocruz). Nasceu em conversas despretensiosas, regadas a cafezinhos, durante
as quais se ponderava sobre a importância da produção científica da área de Políticas,
Planejamento e Gestão no campo da saúde coletiva, assim como da necessidade de dar
visibilidade à produção de pesquisadores neófitos, na tentativa de arejar saberes, ideias
e discursos.
A opção de fazê-lo na revista ‘Saúde em Debate’, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
(Cebes), colocou-se de forma tanto natural quanto oportuna, uma vez que, desde sua criação
em 1976, o principal objetivo da revista tem sido fomentar o pensamento crítico no campo da
saúde, por meio da difusão de produções teóricas articuladas ao direito universal à saúde e
seus correlatos. Entendemos, portanto, que a missão histórica da revista se confunde com a
consolidação da saúde coletiva e, particularmente, da área de políticas, planejamento e gestão
enquanto campo de saberes e práticas, voltado para os sistemas e serviços de saúde, compro-
metido com a transformação social e com a formulação de alternativas para a melhoria das
condições de vida e saúde da população.
Já nos momentos iniciais, tornou-se claro que era imprescindível produzir uma chamada
aberta, que possibilitasse o envio de trabalhos de diversas instituições de ensino e pesquisa em
saúde coletiva no Brasil.
Assim, este número contém artigos originais, ensaios e revisões resultantes de dissertações
e teses produzidas em 12 diferentes programas de pós-graduação acadêmicos no País. Envolve
64 autores afiliados a 32 instituições situadas em diferentes níveis de gestão e regiões do Brasil
e a 2 estrangeiras. Ressalta-se que alguns autores possuem distintos vínculos e que muitos que
eram alunos na época do estudo encontram-se inseridos no mercado de trabalho, confron-
tando-se com o desafio de traduzir a reflexão acadêmica em melhores práticas na gestão e na
produção do cuidado em saúde.
Os trabalhos aqui publicados foram concluídos no período de janeiro de 2011 a março
de 2015, e muitos deles expressam os dilemas e conquistas do SUS no contexto político
e econômico vigente à época. Por um lado, os aspectos analisados nesses estudos vêm a
público revertidos e adicionados de novos acontecimentos, como é o caso da introdução
do zika vírus e de alterações no ambiente político-institucional que colocam em cheque
a universalização do direito à saúde no Brasil. Por outro, essa publicação coincide com
a realização da XV Conferência Nacional de Saúde que possibilitou renovar reflexões
e ampliar a base político-social de apoio à implantação do SUS em uma conjuntura
adversa.
Foram recebidos 149 artigos de todo o Brasil, que, por meio do trabalho desenvolvido
pela equipe de editores convidados, foram submetidos à avaliação (peer review), revistos
pelos autores e, após aprovação, cuidadosamente selecionados para integrar este suplemen-
to especial da revista. Os temas tratados, examinados sob diferentes abordagens e lentes
metodológicas, abrangem desde o cenário internacional até o nacional, envolvendo tanto as-
pectos da macro quanto da microgestão. A riqueza e a diversidade do campo são ilustradas

7 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005001 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 7-10, DEZ 2015
8 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

em análises que englobam as relações entre Estado, sociedade, políticas e sistemas de saúde,
e as formas de organização e prestação da atenção à saúde.

Esperamos que desfrutem da leitura.

Vera Lucia Luiza


Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
(Ensp) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Luciana Dias de Lima


Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
(Ensp) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Maria Lucia Frizon Rizzotto


Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) – Cascavel (PR), Brasil. Centro
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – Brasil.

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato


Universidade Federal Fluminense (UFF), Escola de Serviço Social, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Política Social – Niterói (RJ), Brasil. Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde (Cebes) – Brasil.

Ruben Araújo de Mattos


Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Instituto de Medicina Social (IMS) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 7-10, DEZ 2015


APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 9

Presentation
The idea of this supplement was gestated within the Post-Graduation Program in Public
Health at the Sergio Arouca National School of Public Health of the Oswaldo Cruz Foundation
(Ensp/Fiocruz). It was born from unpretentious conversations, between sips of coffee, during
which we reflected about the importance of the scientific production in the areas of Policies,
Planning, and Management in the field of public health, as well as the need to give visibility to
the production of neophytes researchers, in an attempt to freshen up knowledges, ideas, and
speeches.
The option to do it in the journal ‘Saúde em Debate’ (Health in Debate), from the Centro
Brasileiro de Estudos em Saúde – Cebes (Brazilian Center for Health Studies), came up as
both natural and well-timed, once, since its creation in 1976, the journal´s main goal has
been to foment critical thinking in health, through the dissemination of theoretical pro-
ductions articulated with the universal right to health and its correlates. We understand,
therefore, that the historic mission of the journal is intertwined with the consolidation of
public health and particularly the areas of policies, planning, and management as fields
of knowledges and practices, focusing on the health systems and services, committed to
social transformation and to the formulation of alternatives to improve the living and
health conditions of the population.
Since the earliest stages, it became clear that it was essential to perform an open call for
articles, which would allow the submission of papers from various educational and research
institutions in public health in Brazil.
Thus, this issue contains original articles, essays, and reviews derived from dissertations
and theses produced in 12 different academic post-graduate programs in the country. It in-
volves 64 authors affiliated with 32 institutions located in different management levels and
regions of Brazil and with 2 foreign ones. It is noteworthy that some authors have different
links and that many of those who were still students at the time of the study are now included
in the job market, clashing with the challenge of translating the academic reflection into best
practices in the management and production of care in health.
The papers that are here published were completed from January 2011 to March 2015, and
many of them express the dilemmas and achievements of the SUS (Unified Health System)
in the political and economic context prevailing at the time. On the one hand, the aspects
analyzed in these studies come up reversed and added of new events, such as the introduc-
tion of the zika virus and the changes in the political-institutional environment that put into
question the universal right to health in Brazil. On the other hand, this publication coincides
with the happening of the XV National Health Conference that allowed to renew reflections
and expand the political and social bases of support for the implementation of the SUS in an
adverse environment.
One hundred and forty-nine articles were received from all over Brazil, which, through
the work developed by the team of invited editors, underwent assessment (peer review),
revised by the authors and, after approval, carefully selected to integrate this special su-
pplement of the journal. The topics discussed, examined from different approaches and
methodological lenses, have a coverage that goes from the international to the national
scenario, involving aspects of both the macro and the micromanagement. The richness
and diversity of the field are illustrated in analyzes that embrace the relations between

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 7-10, DEZ 2015


10 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

the State, society, health policies and systems, and the forms of organization and delivery
of health care.

We hope you enjoy reading.

Vera Lucia Luiza


Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz), Sergio Arouca National School of Public Health
(Ensp) – Rio de Janeiro (RJ), Brazil.

Luciana Dias de Lima


Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz), Sergio Arouca National School of Public Health
(Ensp) – Rio de Janeiro (RJ), Brazil.

Maria Lucia Frizon Rizzotto


State University of Western Paraná (Unioeste) – Cascavel (PR), Brazil. Brazilian Center for
Health Studies (Cebes) – Brazil.

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato


Fluminense Federal University (UFF), School of Social Work, Program of Postgraduate
Studies in Social Policy – Niterói (RJ), Brazil. Brazilian Center for Health Studies (Cebes)
– Brazil.

Ruben Araújo de Mattos


State University of Rio de Janeiro (Uerj), Institute of Social Medicine (IMS) – Rio de
Janeiro (RJ), Brazil.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 7-10, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 11

Descentralização e regionalização em saúde


na Espanha: trajetórias, características e
condicionantes
Decentralization and regionalization in health in Spain: trajectories,
characteristics and conditions

Adelyne Maria Mendes Pereira1, Luciana Dias de Lima2, Cristiani Vieira Machado3, José Manuel Freire4

RESUMO O artigo aborda a descentralização e a regionalização do sistema de saúde espanhol


no período de 1980 a 2012. Sob o enfoque do institucionalismo histórico, o estudo privile-
giou a análise da trajetória, características e condicionantes desses processos, no contexto
mais geral de redemocratização e reforma do Estado. Os resultados sugerem diferentes graus
de poder entre os governos subnacionais e central nas dimensões política, administrativa e
fiscal/financeira. Conclui-se que a redemocratização, as pressões regionalistas, a descentra-
lização político-territorial e os antecedentes do sistema sanitário foram os principais fatores
que influenciaram a configuração do sistema de saúde na Espanha.

PALAVRAS-CHAVE Descentralização; Regionalização; Sistemas de saúde.

ABSTRACT The article discusses the decentralization and regionalization of the Spanish health
system from 1980 to 2012. Considering the historical institutionalism approach, the study analy-
zed the trajectory, characteristics and conditions of these processes, in broader the context of
democratization and reform of the State. The results suggest different degrees of power between
the central and subnational governments in the political, administrative and fiscal/financial
dimension. It is concluded that the return to democracy, the regionalist pressures, the political-
1 Fundação Oswaldo territorial decentralization and the antecedent of the health system were the main factors that
Cruz (Fiocruz), Escola influenced the configuration of the health system in Spain.
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV)
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil. KEYWORDS Decentralization; Regional health planning; Health systems.
adelyne@fiocruz.br

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
luciana@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
cristiani@ensp.fiocruz.br

4 Instituto
de Salud Carlos III,
Escuela Nacional de Sanidad
– Madrid, Espanha.
jmfreire@isciii.es

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005410 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 11-27, DEZ 2015
11
12 PEREIRA, A. M. M.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V.; FREIRE, J. M.

Introdução Estados unitários ou federados –, salvo suas


especificidades, descentralização e regiona-
A partir da década de 1970, a descentraliza- lização têm sido encontradas como diretri-
ção destacou-se como uma das principais zes comuns para a organização do sistema de
características dos processos de reforma saúde. Sobretudo nos sistemas universais, a
dos Estados nacionais na Europa e América implementação articulada dessas diretrizes
Latina. As reformas descentralizadoras as- está relacionada com a garantia do acesso
sumiram sentidos e significados variados, integral e equitativo a todos os cidadãos.
desde a expressão de tendências democra- No tocante à regionalização da saúde,
tizantes e participativas até a moderniza- pode-se afirmar que, desde 1920 (DAWSON,
ção gerencial da gestão pública com ênfase 1964) até os anos 2000 (KUSCHNIR; CHORNY, 2010;
na eficiência e qualidade (FIORI, 1995; MELO, 1996; VIANA; LIMA, 2011), tal conceito encontra-se re-
ARRETCHE, 1997; ABRUCIO, 2006). metido à organização do sistema de serviços
As reformas de cunho descentralizador, em uma base territorial, considerando-se
implementadas por governos socialistas na acesso, financiamento, infraestrutura e lo-
Itália, França e Espanha, trouxeram impactos gística, a partir de um processo de planeja-
para a organização político-territorial desses mento que articula níveis regionais e níveis
Estados nos anos 1970 e 1980 (MELO, 1996). de atenção à saúde.
Salvo as diferenças, em geral, houve mudan- Contudo, para além da dimensão organi-
ças nas estruturas centralizadas de governo zativa, o conceito de regionalização envolve
a partir da descentralização de poder para questões políticas e de distribuição de poder
estruturas regionais. No caso da Espanha, a no território. Assim, configura-se como um
descentralização resultou na conformação de processo político dependente das relações
um novo nível de governo (as Comunidades intergovernamentais (VIANA ET AL., 2008) e entre
Autônomas – CCAA) que, em um contexto de Estado e sociedade civil (FLEURY; OUVERNEY, 2007).
transição democrática, buscou responder à Diante disso, e tendo em vista o marco
força e às pressões das identidades regionais institucionalista histórico, a análise empreen-
(ARRETCHE, 1997; GARCIA; SOTELO, 1999). dida está fundamentada em três argumentos
Além das influências sobre a organização principais:
político-territorial dos Estados, as reformas
descentralizadoras condicionaram processos 1) Descentralização e regionalização configu-
de mudança nas políticas públicas e, entre ram-se como processos políticos no quadro
elas, na saúde. Diversos países na Europa e mais geral de reformas dos sistemas de saúde,
América Latina implementaram reformas em que envolvem a articulação entre esferas de
seus sistemas sanitários, tendo a descentra- governo e assumem sentidos variados de
lização como uma diretriz importante, com acordo com o contexto institucional no qual
início nos anos 1970 (ALMEIDA, 2008). Assim, a são formuladas e implementadas. A descen-
relação entre descentralização e regionaliza- tralização se caracteriza pela transferência
ção no âmbito das reformas dos sistemas de de poder e responsabilidades nas dimensões
saúde tem sido destacada nas experiências política, administrativa e fiscal/financeira. A
internacionais (SALTMAN; BANKAUSKAITE; VRANGBÆK, regionalização está associada à organização
2007; MAINO ET AL., 2007) e na literatura nacional do sistema de serviços de saúde em uma base
(LIMA ET AL., 2010; VIANA; LIMA, 2011), vinculadas à va- territorial, por meio de um processo no qual
lorização do papel dos níveis regionais no pla- níveis regionais são relacionados a níveis
nejamento e gestão desses sistemas. de atenção. Não obstante, a regionalização
Nos sistemas públicos – sejam universais também pode estar referida à (re)organiza-
ou baseados no emprego, constituídos em ção do poder sobre o território.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 11-27, DEZ 2015


Descentralização e regionalização em saúde na Espanha: trajetórias, características e condicionantes 13

2) Existem visões e interesses diferen- e horizontes sobre o caso brasileiro, favo-


tes entre os diversos atores envolvidos recendo o entendimento do fenômeno e
na arena de decisão da política sanitária, as discussões dessa natureza no campo da
com repercussões sobre os processos de saúde coletiva no Brasil.
descentralização e regionalização dos
sistemas de saúde. Como o conceito de
descentralização é bastante amplo, o Metodologia
recorte do estudo irá privilegiar os atores
governamentais. A partir da abordagem do institucionalismo
histórico (THELEN; STEINMO, 1992; IMMERGUT, 1998;
3) Os processos de descentralização e HALL; TAYLOR, 2003), sobretudo em suas contri-
regionalização dos sistemas de saúde, buições para o estudo de políticas públicas,
bem como a temporalidade e sequência três eixos de análise foram definidos: 1) traje-
entre as dimensões que os caracterizam, tória da descentralização e da regionalização
podem estar condicionados pelas mu- da política de saúde; 2) institucionalidade
danças no equilíbrio territorial do poder da descentralização e da regionalização da
do Estado derivados dos processos de saúde; e 3) condicionantes da descentraliza-
descentralização. Do mesmo modo, pode ção e da regionalização da saúde.
haver especificidades do setor saúde que A análise realizada articulou o estudo da
influenciam tais processos. descentralização e da regionalização da po-
Partindo desses argumentos, algumas lítica de saúde com o contexto mais geral
questões foram construídas: Que fatores de descentralização do Estado. Para tanto,
(históricos, políticos e institucionais) fa- foram identificados os marcos institucionais
voreceram os processos de descentraliza- e as principais características da descentra-
ção e regionalização no sistema de saúde lização do Estado e da saúde em cada uma
espanhol? Como tais fatores influenciaram das seguintes dimensões: política, adminis-
a configuração recente desse sistema de trativa e fiscal/financeira. Assim, foi possível
saúde? Visando responder a tais questões, estabelecer a sequência na qual se desen-
este estudo analisou os processos de des- volveram tais dimensões (no contexto do
centralização e regionalização do sistema Estado e no âmbito da saúde) e compreender
de saúde espanhol, no contexto de redemo- suas interfaces temporais (FALETTI, 2010).
cratização e reforma desse Estado. Em cada uma das dimensões citadas,
As justificativas do estudo repousam na foram definidas variáveis, apresentadas
relevância da compreensão dos condicio- no quadro 1. Visando facilitar a compara-
nantes históricos, políticos e institucionais ção entre tais dimensões em cada plano
que se fazem presentes na trajetória da da investigação, tais variáveis foram valo-
descentralização e da regionalização da po- radas segundo o grau de poder dos gover-
lítica de saúde, bem como sua repercussão nos central e subnacionais. Na escala de
sobre a organização dos sistemas sanitários. valoração, foi atribuído (0) para ausência
Em que pesem as limitações inerentes ao de poder, (1) para poder restrito e (2) para
desenvolvimento de estudos de caso (YIN, amplo poder, sendo o escore final de cada
2005), acredita-se que a análise do caso espa- dimensão o resultado da média simples dos
nhol pode contribuir para ampliar olhares escores das variáveis.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 11-27, DEZ 2015


14 PEREIRA, A. M. M.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V.; FREIRE, J. M.

Quadro 1. Dimensões da descentralização no contexto do Estado e da política de saúde: definições e variáveis

Dimensões da Contexto do Estado Contexto da Política de Saúde


Descentralização Definições Variáveis Definições Variáveis
Compreende a - Grau de poder dos governos Compreende a - Grau de poder de formulação,
distribuição de poder subnacionais para tomar decisões transferência da planejamento e regulação da
entre as esferas acerca das políticas públicas autoridade sanitária, política sanitária pelos governos
subnacionais no que (competência na formulação e que envolve o poder subnacionais.
tange à tomada de regulação de políticas regionais); para a tomada de Obs.: Valoração das variáveis:
decisão, formulação e - Competência para formular leis em decisão quanto 0 = sem poder
regulação de políticas matérias regionais/locais; à formulação, 1 = poder restrito
em seus territórios. - Eleição por voto direto; planejamento e 2 = amplo poder
Política
Inclui a eleição dos seus - Competência para tratar questões regulação da política de
governos. que envolvem o compartilhamento de saúde.
atribuições (representação regional dos
órgãos do judiciário).
Obs.: Valoração das variáveis:
0 = sem poder
1 = poder restrito
2 = amplo poder
Compreende a - Grau de poder dos governos Compreende a - Grau de poder dos governos
transferência de poder e subnacionais para gerir os setores das transferência de poder subnacionais para exercer
responsabilidades para políticas públicas (competência para e responsabilidades a gestão das unidades,
a gestão das políticas executar a política e realizar a gestão do para a gestão equipamentos e força de
públicas pelos governos trabalho e dos serviços). e prestação de trabalho, bem como para realizar
Administrativa subnacionais. Obs.: Valoração das variáveis: serviços de saúde a coordenação da rede de
0 = sem poder pelos governos serviços.
1 = poder restrito subnacionais. Inclui a Obs.: Valoração das variáveis:
2 = amplo poder gestão das unidades, 0 = sem poder
equipamentos e 1 = poder restrito
trabalhadores. 2 = amplo poder
Compreende a - Grau de poder dos governos Compreende a - Grau de poder fiscal e de
transferência de poder e subnacionais para instituir e arrecadar transferência de poder gasto (gestão do orçamento)
autoridade para instituir tributos da sua competência, bem como e autoridade para dos governos subnacionais no
e arrecadar tributos para manejar seu orçamento. manejar o orçamento e âmbito da saúde.
Fiscal/Financeira
da sua competência, Obs.: Valoração das variáveis: decidir sobre gastos em Obs.: Valoração das variáveis:
bem como para gestão 0 = sem poder saúde pelos governos 0 = sem poder
orçamentária pelos 1 = poder restrito subnacionais. 1 = poder restrito
governos subnacionais. 2 = amplo poder 2 = amplo poder
Fonte: Elaboração própria.

O período de estudo compreendeu os A pesquisa envolveu levantamento e análise


anos de 1980 a 2012. Tal recorte temporal de material empírico acerca da trajetória da
buscou abranger o período de reformas com descentralização no contexto geral do Estado
ênfase na descentralização e regionalização, espanhol, bem como no contexto específico
marcado inicialmente pela redemocratiza- da saúde. Foram utilizadas fontes primárias
ção e reforma do Estado (com início no final (leis, atos normativos e documentos oficiais),
dos anos 1970) e que se estende até os dias secundárias (dados disponíveis publicamente
atuais. A extensão do período de estudo foi em sites oficiais e publicações bibliográficas)
importante para que se pudesse analisar a e consultas a especialistas. Essa etapa foi de-
trajetória das diretrizes de descentralização senvolvida durante estágio de doutorado no
e regionalização ao longo processo de imple- exterior, incluindo visitas técnicas a três co-
mentação do sistema nacional de saúde. munidades autônomas (Andalucía, Cataluña

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 11-27, DEZ 2015


Descentralização e regionalização em saúde na Espanha: trajetórias, características e condicionantes 15

e País Vasco), que facilitaram a compreensão fortes restrições às especificidades étnicas


das especificidades regionais que envolvem e linguísticas regionais, a Constituição de
os processos em estudo. O projeto foi apro- 1978 selou a redemocratização com um
vado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o modelo de organização político-territorial
Parecer n.º 14/2012. que faz da Espanha um dos países mais des-
centralizados da Europa. Sendo chamada de
Estado das Autonomias (REQUEJO, 2006; GARCÍA;
Resultados e discussão SOTELO, 1999), funciona de maneira semelhante
a uma federação, apesar de ser, legalmente,
Descentralização do Estado um país unitário cujo regime político é uma
espanhol: o caso das autonomias Monarquia Parlamentarista.
Ao criar as CCAA, a Constituição (1978)
A Espanha é o segundo maior país da União definiu uma divisão político-administrativa
Europeia em extensão territorial (505.987 em quatro níveis de governo: Governo central;
Km2, depois da França) e o quinto maior em 17 governos autônomos (CCAA); 50 governos
população (aproximadamente 46 milhões provinciais e cerca de 8 mil governos locais.
de habitantes, estando depois da Alemanha, Além das 17 CCAA, a Constituição (1978) insti-
França, Reino Unido e Itália) (INE, 2010). Após tuiu duas cidades autônomas (Ceuta e Mellila).
cerca de 40 anos de ditadura, marcada por O quadro 2 resume essas características.

Quadro 2. Divisão política e administrativa da Espanha: 17 Comunidades Autônomas (CCAA) e 50 províncias

CCAA População* Capital Número de províncias


Andalucía 8.371.270 Sevilla 8
Cataluña 7.519.843 Barcelona 4
Madrid 6.421.874 Madrid 1
Comunidade Valenciana 5.009.931 Valencia 3
Galicia 2.772.928 Santiago de Compostela 4
Castilla-León 2.540.188 Valladolid 9
País Vasco 2.185.393 *1 3
Ilhas Canarias 2.082.655 *2 2
Castillla La Mancha 2.106.331 Toledo 5
Região de Murcia 1.462.128 Murcia 1
Aragón 1.344.509 Zaragoza 3
Extremadura 1.104.499 Mérida 2
Asturias 1.075.183 Oviedo 1
Ilhas Baleares (*3) 1.100.503 Palma de Mallorca 1
Navarra 640.129 Pamplona 1
Cantabria 592.542 Santander 1
La Rioja 321.173 Logroño 1
Total 46.815.916 Total 50
Fonte: Elaboração própria. Dados extraídos de La Moncloa (2012); INE (2013).
Notas: * População segundo Censo de 2011.
*1 País Vasco: Vitoria é a sede das instituições comuns da CCAA, mas a capital não está oficializada por lei.
*2 Ilhas Canárias: constituem um arquipélago formado por sete ilhas no Atlântico, quatro situadas na província de Santa Cruz de Tenerife e
três na província Las Palmas de Gran Canaria. Em 1927, o Decreto Real de 21 de setembro definiu que, a cada legislatura, a sede do governo
se alternaria entre as capitais das duas províncias.
*3 Ilhas Baleares: arquipélago formado por cinco ilhas (Menorca, Mallorca, Ibiza, Formentera e Cabrera) situadas no Mediterrâneo
constituindo uma única província.

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16 PEREIRA, A. M. M.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V.; FREIRE, J. M.

Embora a Constituição (1978, art. 137) à história de conformação desses territórios.


tenha definido que municípios, províncias Tais limites guardam relação com, ao menos,
e CCAA têm autonomia para a gestão de dois caminhos: a presença de uma identida-
seus respectivos interesses, o que se nota de regional e características históricas que
é que a distribuição efetiva do poder se dá justifiquem a configuração de uma determi-
entre governo central e CCAA, restando nada CCAA; ou a vontade das províncias em
às províncias e aos municípios um papel se unirem ou não, enquanto uma CCAA. A
marginal e de responsabilidades restritas análise do processo não sugere a relevância
(GARCÍA; SOTELO, 1999; AGRANOFF; RAMOS, 1998; ROCHA, de critérios de eficiência administrativa.
2013).O grau de poder e autonomia das pro- A descentralização política criou condi-
víncias e municípios é variável entre as ções para uma descentralização administra-
CCAA, pois depende do que foi estabele- tiva efetiva. O chefe do executivo regional
cido nos Estatutos de Autonomia de cada tem ampla autonomia para tomar decisões
uma delas. Assim, nota-se, por exemplo, quanto às políticas públicas, incluindo a
que os governos provinciais têm mais formulação e regulação dessas políticas, tais
poder no País Vasco e menos, na Cataluña. como saúde e educação. Desde a constitui-
A disputa com relação à divisão de poderes ção das CCAA, os governos regionais têm
e atribuições torna tenso o campo das relações buscado legitimar e dar visibilidade a essa
intergovernamentais na Espanha. De maneira nova organização política por meio da coor-
geral, a polarização entre governos central e denação e execução de políticas regionais.
regionais se manteve ao longo das décadas, Embora o processo de transferência de
com variações de intensidade. Tal disputa competências em algumas matérias tenha
também assume os contornos da luta política se estendido até os anos 2000, é possível
e ideológica entre os partidos de esquerda e destacar o período de 1980 a 1994 como um
de direita que ocupam o executivo e legisla- momento fundamental para a descentraliza-
tivo nacional e regionais, manifestando-se ção administrativa do Estado espanhol. Isto
nos fóruns de negociação compartilhada com porque se caracterizou pelo intenso debate
prejuízos para seu funcionamento. O pêndulo entre os diversos atores acerca da divisão de
dessa balança se mostrou mais favorável às tarefas e responsabilidades entre os níveis
CCAA, que ampliaram progressivamente de governo, bem como pela transferência
suas competências ao longo dos anos 1980 e da maior parte das competências na presta-
1990, concretizando a descentralização políti- ção de serviços às CCAA (JORDANA, 2006). Ao
ca e administrativa, como se verá a seguir. assumirem a responsabilidade pela gestão
A análise do processo de descentralização das políticas públicas, nota-se que as CCAA
do Estado espanhol revelou um sequencia- promoveram um aumento do gasto público,
mento, ainda que não linear, das dimensões incluindo o aumento do gasto com pessoal e
política, administrativa e fiscal. Quanto à des- a ampliação do gasto social (CARRILLO, 1998).
centralização política, pode-se definir como A descentralização fiscal se estendeu e
período-chave aquele compreendido entre sofreu mudanças ao longo dos anos 1990 a
os anos 1979 e 1984, marcado institucional- 2000. Sobretudo nos anos 2000, quando se
mente pela definição do mapa político-ter- reduziram as tensões no que se refere à re-
ritorial do Estado, seguido das eleições para partição de responsabilidades e competên-
as assembleias regionais e conformação dos cias, ganharam força as discussões acerca do
governos autônomos. O desenho das CCAA financiamento das CCAA, bem como sobre
evidencia diferenças importantes em exten- a criação de símbolos e identidades territo-
são territorial, porte populacional, aspectos riais. O modelo espanhol se caracteriza por
culturais e variações linguísticas, associadas uma centralização fiscal importante, na qual

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 11-27, DEZ 2015


Descentralização e regionalização em saúde na Espanha: trajetórias, características e condicionantes 17

o governo central é responsável pela arreca- de crise econômica. Em geral, o modelo es-
dação praticamente total dos tributos e sua panhol permitiu que as CCAA ampliassem
redistribuição, sendo exceções os casos do seus gastos e suas dívidas e transferissem ao
País Vasco e Navarra (que arrecadam todos nível central o ônus político pela não execu-
os tributos e transferem ao nível central a ção de algum serviço social. Na ausência de
parcela correspondente a serviços nacionais um sistema de controle mútuo, tem-se como
prestados em seus territórios). consequência um desequilíbrio financeiro
As transferências financeiras realizadas para todo o Estado. Tal modelo também per-
pelo governo central se baseiam em critérios mitiu que o nível central se desresponsabi-
demográficos, geográficos e administrativos, lizasse pelas políticas sociais, transferindo
bem como na renda per capita e no esforço ônus (e bônus) às CCAA.
fiscal de cada CCAA. Há que se reconhecer Se por um lado o modelo de financia-
que o sistema fiscal espanhol logra um alto mento global favorece o poder e a autono-
grau de cooperação e redistribuição, carac- mia das CCAA, permitindo que efetivem a
terísticas viabilizadas pelo papel que ocupa descentralização política e administrativa;
o nível central nesse processo. Apesar da por outro, restringe a atuação do governo
concentração central na arrecadação dos central, que na ausência de incentivos finan-
tributos, as CCAA possuem ampla autono- ceiros vê ainda mais reduzida sua capacida-
mia para manejar seu orçamento e definir de de coordenar territorialmente as políticas
suas prioridades de gasto. As transferências públicas. Atualmente, a discussão em torno
se dividem em condicionadas e não condi- do financiamento autonômico se dá no
cionadas, e grande parte das condicionadas âmbito do Ministério da Fazenda, tendo
podem ser geridas livremente. como instrumento o Conselho de Política
Há outra questão interessante que con- Fiscal e Financeira, no qual não tem assento
forma uma espécie de paradoxo entre au- o Ministério da Saúde ou outro vinculado a
tonomia e responsabilidade fiscal no jogo políticas sociais. Tal Conselho possui poten-
de poder entre governos central e regionais cial como espaço de gestão compartilhada,
(BAÑON I MARTINEZ; TAMAYO, 1998). Da parte das mas até o momento se configura como um
CCAA, ao mesmo tempo em que há a reivin- fórum no qual se concretizam relações la-
dicação pela autonomia na arrecadação de terais entre cada CCAA e o Ministério da
seus tributos visando à ampliação de seus Fazenda, em um processo de negociação
recursos, há a rejeição dos custos políticos segmentada e assimétrica.
inerentes à responsabilidade pela pressão O quadro 3 apresenta algumas caracterís-
fiscal. Da parte do nível central, seria inte- ticas da descentralização do Estado espa-
ressante repassar a competência de arreca- nhol, em cada uma das dimensões estudadas.
dação para as CCAA, porque assim poderia A partir das variáveis selecionadas (quadro
responsabilizá-las por seus gastos; por outro 1), buscou-se valorar o grau de poder dos
lado, ao tomar essa medida, veria reduzido governos regionais no que diz respeito às
seu poder sobre a política econômica, o que dimensões política, administrativa e fiscal. A
não deseja. É notável um desajuste entre res- escala de valoração foi de (0) a (2), sendo: (0)
ponsabilidade fiscal e de gasto que parece para ausência de poder; (1) para poder restri-
carecer de solução, sobretudo em tempos to e (2) para amplo poder.

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18 PEREIRA, A. M. M.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V.; FREIRE, J. M.

Quadro 3. Descentralização política, administrativa e fiscal no contexto geral do Estado espanhol

Dimensões da Grau de poder dos governos regionais Escore Fontes


descentralização

- Amplo poder do executivo para tomar decisões (ampla competência 2 Constituição,


na formulação e regulação de políticas regionais) Estatutos de Autonomia,
- Amplo poder para formular leis em matérias regionais, embora Documentos oficiais emitidos
assimétrica entre as CCAA 2 por órgãos de cada poder,
- Poder parcial para eleger seus governantes (eleição por voto direto Literatura secundária
em sistema de lista fechada para o legislativo; e indireta para o 1
Dimensão política executivo)
- Poder parcial do judiciário para tratar dos temas de compartilhamento
de atribuições (competência centralizada, contudo, há representação 1
regional dos órgãos do judiciário com competência para atuar sobre
temas regionais)
Escore final 1,5

- Amplo poder para realizar a gestão de recursos humanos no âmbito 2 Constituição,


das políticas públicas Leis Orgânicas,
- Amplo poder para realizar a gestão de equipamentos/serviços no 2 Literatura secundária
Dimensão administrativa âmbito das políticas públicas

Escore final 2

- Ausência de poder para instituir e arrecadar tributos da sua 0 Constituição,


competência* Lei 21/2001,
- Amplo poder para manejar seu orçamento 2 Lei 22/2009,
Dimensão fiscal LOFCA (Ley Orgánica
Escore final 1 de Financiación de las
Comunidades Autónomas),
Literatura secundária

Fonte: Elaboração própria.


Notas: *Exceção para as CCAA de País Vasco e Navarra.
Valoração das variáveis: 0 = sem poder; 1 = poder restrito; 2 = amplo poder. O escore final em cada dimensão é o resultado da soma dos escores de cada variável divido pelo
número de variáveis. O escore máximo em cada dimensão é 2.

A análise desse quadro sugere dife- Descentralização e regionalização da


renças entre as dimensões, evidenciando saúde na Espanha: análise histórica,
maior poder dos governos regionais na institucional e política
dimensão administrativa, seguida pela
política e, por último, a fiscal. A descen- TRAJETÓRIA DA DESCENTRALIZAÇÃO E DA
tralização política, primeira dimensão a REGIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE
se desenvolver na trajetória espanhola, ESPANHOLA
condiciona o grau de autonomia alcança-
do pelos governos regionais no que tange A trajetória da descentralização e da regiona-
à dimensão administrativa – o mais alto lização da saúde na Espanha está diretamente
entre o grupo de dimensões. A descen- relacionada com o contexto político vivido pelo
tralização fiscal, última a se desenvolver, Estado no final dos anos 1970 e início dos 1980.
parece carecer de uma possível reformu- A redemocratização do país trouxe consigo a
lação entre as competências e responsabi- reorganização territorial, na qual a descentrali-
lidades dos governos central e regionais. zação política foi um marco fundamental, uma

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 11-27, DEZ 2015


Descentralização e regionalização em saúde na Espanha: trajetórias, características e condicionantes 19

vez que respondia aos anseios nacionalistas pelo governo central, de modo que o balanço
(fortemente reprimidos ao longo da ditadu- entre os poderes (central e regional) indica
ra) e mantinha a unidade nacional. Pode-se uma limitação da atuação central para induzir
afirmar que a descentralização política do políticas nacionais ou conduzir o fórum de ne-
Estado espanhol viabilizou a descentralização gociação interterritorial.
da política de saúde, que, por sua vez, colabo- A dimensão administrativa se mistura com a
rou para a visibilidade da nova organização política em função do processo assimétrico de
político-territorial ante a população. constituição das CCAA espanholas. Tem início
A Constituição Espanhola (1978) pode ser com a transferência da gestão de centros e redes
considerada o principal marco institucional específicas (quantitativamente pouco significa-
dos processos de descentralização do Estado tivos) em 1980 e se encerra com a finalização
e da saúde. Por um lado, definiu a descentra- da descentralização dos serviços vinculados ao
lização política, administrativa e fiscal mais Seguro Social (por meio do Instituto Nacional
geral do Estado, instituindo as CCAA; por de la Salud – Insalud) em 2002. Caracteriza-se
outro, assegurou a proteção à saúde como pela transferência de amplo poder às CCAA
direito fundamental dos cidadãos espanhóis, para realizar a gestão dos equipamentos, tra-
listou a ‘saúde e higiene’ entre as competên- balhadores e rede de serviços, em um pro-
cias que poderiam ser transferidas às CCAA cesso que destitui o nível central de qualquer
e definiu critérios para a regionalização. competência nesse sentido (salvo nas cidades
Ao lado da Constituição (1978), a Lei Geral autônomas de Ceuta e Melilla, embora haja
da Saúde (ESPAÑA, 1986) também é um marco da uma discussão que essa atribuição deveria ser
primeira grande reforma da saúde espanho- repassada à CCAA de Andalucía em função da
la, pois lançou os pilares para a estruturação proximidade territorial). Cada CCAA organi-
do Sistema Nacional de Saúde (SNS), a pro- zou (e reorganizou ao longo dos anos) o serviço
gressão da universalização e o financiamento de saúde a sua maneira, havendo diferentes
por impostos. Tal fato, somado ao Decreto de formas de gestão implementadas (algumas
Universalização da Atenção Sanitária (1989), pautadas pela Administração Direta, outras
promoveu uma ‘universalização de fato’ (quase por Organizações Públicas de Direito Privado e
de 100% ao início dos anos 1990), ainda que outras por convênios com o setor privado).
não ‘de direito’, como argumenta Freire (2005). A dimensão fiscal/financeira da descentra-
A análise da dimensão política põe em evi- lização sanitária se confunde temporalmente
dência o período de 1979 a 1994, sendo possível com a segunda reforma do SNS, tendo como
destacar ao menos dois momentos: o primeiro marco o ano de 2002. Em 1995, quando a com-
(1979 a 1985), marcado pela transferência das petência sanitária já havia sido transferida para
competências em saúde pública e autoridade sete CCAA, o gasto da Seguridade Social em
sanitária do nível central para as CCAA, após Saúde correspondia a cerca de 24% do gasto
aprovação dos seus Estatutos de Autonomia; e público em saúde; a partir de 2002, quando tal
o segundo (1981 a 1994), no qual se deu a or- transferência se concluiu, esse percentual se
ganização dos Serviços de Saúde Regionais em manteve em cerca de 7% (WHO, 2014). Em 2002,
sete CCAA. Cabe destacar que a descentrali- ocorreram as mudanças nas regras do finan-
zação política se caracteriza pela transferên- ciamento da saúde, que passou de um ‘finan-
cia do poder de decisão quanto à formulação, ciamento finalista’ para compor o orçamento
planejamento e regulação da política de saúde, geral das CCAA. Esse fato foi decisivo para a
bem como dos serviços, do nível central para conclusão do processo de descentralização
os níveis regionais (CCAA). Tal processo não administrativa. Além disso, foi promulgada
foi acompanhado pelo desenvolvimento de a Lei de Coesão e Qualidade do SNS (2003),
condições ideais de coordenação geral do SNS que trouxe, entre seus dispositivos mais

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20 PEREIRA, A. M. M.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V.; FREIRE, J. M.

importantes, o Fundo de Coesão, com o obje- Em um balanço da descentralização da


tivo de financiar os serviços de alto custo pres- saúde na Espanha, pode-se afirmar que as
tados a cidadãos fora das CCAA de domicílio. CCAA possuem amplo poder para formular,
A terceira reforma do SNS se deu em 2012. planejar e regular a política sanitária em seus
Foi marcada pela publicação do Real Decreto territórios, bem como para gerir a rede de ser-
16/2012, que visou promover a redução da viços, equipamentos e trabalhadores. Ainda
‘universalização’ (com a exclusão da cobertura que não tenham amplo poder fiscal, as CCAA
sanitária aos imigrantes ilegais e a jovens de possuem amplo poder para gerir os recursos
mais de 25 anos que nunca contribuíram para da saúde. Além disso, o nível central possui
a Seguridade Social). Tal Decreto buscou desti- baixa capacidade de induzir ou coordenar a
tuir o SNS espanhol do marco beveridgiano, em política de saúde, pois as características da
um regresso a um modelo no qual o acesso é descentralização política, administrativa e
dado pela vinculação à Previdência Social. Foi fiscal mais geral do Estado atuam como con-
gestado em um contexto político-institucional dicionantes e contingenciam sua atuação.
de crise econômica e de um governo nacional O quadro 4 busca sintetizar a discussão reali-
de direita (Partido Popular – PP), tendo como zada, apresentando o grau de poder dos governos
principal objetivo a redução dos gastos em central e regionais em cada uma das dimensões
saúde (inclusive pela incorporação de copa- da descentralização da saúde. As variáveis sele-
gamentos mais extensivos na área de medi- cionadas foram valoradas de (0) a (2), sendo: (0)
camentos). Tal momento veio acompanhado para ausência de poder, (1) para poder restrito
por processos (ou tentativas) de privatização e (2) para amplo poder; sendo o escore final de
em diferentes CCAA, com destaque para os cada dimensão o resultado da média simples
casos de Madrid e da Comunidade Valenciana. dos escores das variáveis. A análise sugere que
Algumas CCAA reagiram a essa proposta, en- a descentralização sanitária significou a amplia-
trando com ações na justiça para derrubá-la. ção do poder regional em todas as dimensões
estudadas. O grau de poder do governo central

Quadro 4. Descentralização política, administrativa e fiscal no contexto do sistema de saúde espanhol

Dimensões da Grau de poder do Governo central Escore Grau de poder dos Governos regionais Escore
Descentralização
- Poder restrito na coordenação geral da 1 - Amplo poder para tomar decisões quanto 2
política de saúde. à formulação, planejamento e regulação da
Dimensão política - Poder restrito na condução do fórum de 1 política de saúde.
negociação interterritorial.
Escore final 1 Escore final 2
- Ausência de competência quanto à 0 - Amplo poder sobre a gestão e prestação 2
prestação ou gestão direta de serviços. de serviços (estrutura, equipamentos e
Dimensão administrativa Salvo nos casos de Ceuta e Mellila. trabalhadores).
Escore final 0 Escore final 2
- Poder amplo no que tange à redistribuição 2 - Amplo poder para manejar o orçamento e 2
territorial dos recursos para saúde. decidir sobre gastos em saúde (ausência de
- Ausência de poder para promover a 0 recursos vinculados).
Dimensão fiscal/financeira indução da política por meio de incentivos
financeiros.
Escore final 1 Escore final 2
Fonte: Elaboração própria.
Notas: Valoração das variáveis: 0 = sem poder; 1 = poder restrito; 2 = amplo poder. O escore final em cada dimensão é o resultado da soma dos escores de cada variável
divido pelo número de variáveis. O escore máximo em cada dimensão é 2.

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Descentralização e regionalização em saúde na Espanha: trajetórias, características e condicionantes 21

parece reduzido nesse contexto, em função da Sobre os objetivos ou desenho formal da


baixa capacidade de exercer a coordenação e/ou descentralização e regionalização da saúde,
indução da política de saúde. é possível afirmar que envolvem a integrali-
Quanto à regionalização da saúde, há evidên- dade da atenção, a coordenação assistencial,
cias de que ela foi influenciada pelo processo de a gestão descentralizada e participativa, bem
expansão da cobertura populacional e territo- como a ideia de que os serviços estejam mais
rial na vigência do modelo de seguro social, bem próximos dos usuários. Entre as instituições
como pela reforma da atenção primária, que se presentes no processo de formulação e imple-
deu em 1984, antes da maior parte da descen- mentação da política sanitária, estão os gover-
tralização sanitária. Tais aspectos contribuíram nos central e autonômicos, partidos políticos
para que o sistema espanhol recebesse um (destaque para o Partido Socialista Espanhol
legado de menores desigualdades em termos da – PSOE e Partido Popular – PP) e o Tribunal
distribuição territorial dos serviços de saúde. Constitucional, responsável por mediar con-
flitos entre os níveis de governo.
CARACTERÍSTICAS FORMAIS DA Como resultado do processo mais geral de
DESCENTRALIZAÇÃO E DA REGIONALIZAÇÃO DA descentralização do Estado Espanhol, e do
SAÚDE processo específico de descentralização e re-
gionalização da saúde, as CCAA se constituíram
O arcabouço legal no qual se ancoram os princí- como nível intermediário de governo dotado de
pios e diretrizes organizativos do SNS espanhol amplo poder e responsabilidade sobre a gestão e
está conformado pela Constituição Espanhola prestação dos serviços. Do ponto de vista orga-
(1978), Lei Geral da Saúde (ESPAÑA, 1986) e Lei de nizativo, o Serviço Sanitário Regional, em cada
Coesão e Qualidade do Sistema Nacional de CCAA, reuniu todos os centros de saúde, servi-
Saúde (2003). A ideia/sentido formal da des- ços e estabelecimentos da própria CCAA, das
centralização está relacionada com a devolução províncias e municipalidades. Esse pode ser um
da competência sanitária às CCAA, ou seja, à aspecto diferencial do caso espanhol, uma vez
transferência de poder decisório nas dimensões que a constituição do Serviço Sanitário Regional
política, administrativa e financeira. Trata-se de representou a concentração e integração da
uma característica intrínseca e condicionada gestão dos serviços no nível político e admi-
pelo processo mais geral de descentralização do nistrativo das CCAA, desprovendo províncias
Estado espanhol, que se efetivou com a aprova- e municipalidades dessa responsabilidade, nos
ção dos Estatutos de Autonomia das CCAA. termos da Lei Geral da Saúde (ESPAÑA, 1986).
Quanto à regionalização, a ideia/sentido O governo central é responsável por ga-
formal diz respeito à organização territorial rantir níveis de equidade entre os Serviços
dos serviços de saúde, a partir do desenho de Regionais de Saúde, cabendo a ele definir a
áreas e zonas. As áreas de saúde foram defini- Carteira de Serviços Básicos comuns a todas
das legalmente como estruturas fundamentais as CCAA. Essa carteira, que se refere ao
do sistema sanitário, estabelecidas para ga- conjunto de técnicas, tecnologias ou proce-
rantir a integralidade da atenção (ESPAÑA, 1986). dimentos mediante os quais se torna efetiva
Foi proposto que elas abrangessem entre 200 à assistência à saúde, é atualizada periodica-
e 250 mil habitantes, salvo as exceções que se mente, sendo a última publicada pelo Real
fizessem necessárias, e que desenvolvessem Decreto 1.030/2006. Sendo assim, a atual
atividades de atenção primária e especializa- carteira inclui serviços de saúde pública;
da. As zonas de saúde foram instituídas como saúde mental; atenção primária; atenção es-
o marco territorial da atenção primária, onde pecializada; urgência; atenção à dependência
se desenvolveriam atividades sanitárias vincu- química; cuidados paliativos; atenção odon-
ladas aos centros de saúde. tológica (extrações e urgências); assistência

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farmacêutica; órtese e prótese; nutrição (es- saúde. Ainda cabe ao governo central respon-
pecial, enteral); transporte sanitário; infor- sabilizar-se pela saúde exterior e pela política
mação e documentação sanitária. de medicamentos, enquanto as províncias e
Foram previstos, legalmente, órgãos par- municípios têm um papel marginal nos rumos
ticipativos nas áreas de saúde tanto para in- do sistema de saúde. Identificam-se as seguin-
teração com a sociedade civil (Conselhos de tes estratégias de atuação das instituições e dos
Participação) quanto para integração entre atores: o governo central busca manter algum
os gestores (Conselhos de Direção e Gestão). poder no seu nível, os governos regionais
Segundo Aguilar (2001), os Conselhos de buscam ampliar suas autonomias e o Tribunal
Participação funcionam razoavelmente (com Constitucional atua como moderador.
regularidade moderada e assimétrica entre Em suma, entre os fatores político-institu-
as CCAA), mas os Conselhos de Direção e cionais que atuaram/atuam como condicio-
Gestão não funcionam, estando o poder de nantes da descentralização e da regionalização
decisão concentrado na CCAA. O Conselho da saúde na Espanha, situam-se o contexto de
Interterritorial tem dificuldades para se efeti- redemocratização e o ideal de manutenção da
var como fórum de negociação e gestão com- unidade, decisivos para a descentralização po-
partilhada, dado que é frequentemente palco lítica do Estado; os regionalismos e tendências
de disputas políticas e da expressão da lógica separatistas, que atuam como maximizadores
de maximização das autonomias (FREIRE, 2008). das autonomias regionais; a descentralização
do Estado espanhol e constituição das CCAA,
CONDICIONANTES DA DESCENTRALIZAÇÃO E fato inicial para a descentralização no âmbito da
DA REGIONALIZAÇÃO DA SAÚDE saúde; o ingresso da Espanha na União Europeia
e o aporte financeiro que trouxe para as CCAA
A democracia espanhola está marcada investirem na área social; a expansão do sistema
pela sucessão de partidos de esquerda e de de proteção social antes da criação do SNS, que
direita no executivo nacional, comumente condicionou a organização territorial interna às
relacionada com momentos de crise insti- CCAA; e, por último, o modelo de financiamen-
tucional, política ou financeira. As posturas to da saúde, antes e depois de 2002.
político-ideológicas desses partidos trazem Os fatores econômicos não são menos
consequências para a organização e fun- importantes, podendo-se perceber as influ-
cionamento do sistema de saúde espanhol, ências das crises dos anos 1980 (com início
atuando como condicionantes da descentra- no final da década de 1970) e de 2009 sobre
lização e da regionalização. Nuances varia- a gestão e o financiamento do SNS. A di-
das podem ser notadas entre as CCAA, uma ferença é que, na crise de 1980, estando o
vez que elas possuem ampla autonomia na governo socialista no executivo nacional,
formulação, gestão, prestação e regulação as medidas estiveram centradas na redução
da política de saúde, bem como grande au- de investimentos, com repercussão sobre a
tonomia para decidir sobre seu orçamento fila de espera. No âmbito da crise de 2009,
e os gastos em saúde. Esse fato faz com que e sobretudo a partir de 2012 com um execu-
a presença de governos de direita ou de es- tivo nacional de direita, as medidas têm sido
querda nos governos regionais seja também de abertura do sistema público ao capital
um condicionante para o sistema de saúde. privado por meio de medidas privatizado-
Cabe ao nível central exercer a coordenação ras e de restrição do acesso (imposição de
nacional e atuar no sentido de reduzir essas di- limites ao caráter universal do sistema e ins-
ferenças, papel que tem dificuldade de execu- tituição de copagamentos).
tar diante das características e condicionantes A partir da matriz de análise proposta para
do processo de descentralização do Estado e da este estudo, o quadro 5 apresenta a trajetória,

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Descentralização e regionalização em saúde na Espanha: trajetórias, características e condicionantes 23

Quadro 5. Análise histórica, institucional e política da descentralização e da regionalização da saúde na Espanha


Eixos de Análise Descentralização e Regionalização da Política de Saúde Espanhola
- Marcos institucionais: Constituição Espanhola (1978); Lei Geral da Saúde (ESPAÑA, 1986); Lei de Coesão e Qualidade (2003).
- Características: Processo de descentralização sanitário paulatino, assimétrico entre as regiões, na sequência: política, administrativa
e fiscal. Resulta na conformação de 17 Serviços Regionais de Saúde (um em cada Comunidade Autônoma - CCAA). As CCAA
possuem amplo poder para formular, planejar e regular a política de saúde em seus territórios, bem como para gerir a rede de serviços,
Trajetória da equipamentos e trabalhadores. Ainda que não tenham amplo poder fiscal, as CCAA possuem amplo poder para gerir os recursos da
descentralização saúde (os recursos não são condicionados). O nível central possui baixo poder e capacidade para induzir ou coordenar a política de
e da saúde, pois as características da descentralização política, administrativa e fiscal mais geral do Estado atuam como condicionantes e
regionalização da contingenciam sua atuação.
política de saúde - Ruptura de um modelo centralizado (Insalud) para um descentralizado (SNS). A redemocratização, as pressões regionalistas e a
descentralização político-territorial atuam como questões contingenciais do processo de descentralização da saúde.
- Traços de continuidade na organização territorial dos serviços de saúde (regionalização). A extensão do modelo de proteção social
logrou uma ampla cobertura sanitária (populacional e territorial) antes da implementação do SNS, condicionando a sequência da
descentralização e regionalização da saúde.
- Ideia/sentido (formal): Descentralização como devolução da competência sanitária às CCAA (transferência de poder decisório nas
dimensões política, administrativa e financeira). Característica intrínseca e condicionada pelo processo mais geral de descentralização do
Estado espanhol, que se efetivaria com a aprovação dos Estatutos de Autonomia das CCAA.
- Ideia/sentido (formal): Regionalização como organização territorial dos serviços de saúde, a partir do desenho de áreas e zonas.
a) Áreas de saúde: estruturas fundamentais do sistema sanitário, estabelecidas para garantir a integralidade da atenção (primária
e especializada) (ESPAÑA, 1986). Deveria reunir entre 200 e 250 mil habitantes, salvo as exceções que se fizessem necessárias, e
desenvolver as seguintes atividades: a) na atenção primária, mediante trabalho em equipe, seriam atendidos o indivíduo, a família e a
comunidade, por meio de ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação, seja por seus meios básicos ou pelas equipes de apoio; e
b) na atenção especializada, a realizar-se nos hospitais e centros de especialidades dependentes funcionalmente deles, seria prestada
atenção de maior complexidade aos problemas de saúde e desenvolvidas as demais funções próprias dos hospitais (ESPAÑA, 1986).
b) Zonas de saúde: marco territorial da atenção primária, onde se desenvolveriam atividades sanitárias vinculadas aos centros de saúde
Institucionalidade (ESPAÑA, 1986). Segundo o artigo 62 da mesma lei, a delimitação das zonas de saúde deveria considerar: a) As distâncias máximas dos
da agrupamentos de população mais distantes dos serviços e o tempo gasto para acesso através de meios de transporte comuns; b) O grau
descentralização de concentração ou dispersão da população; c) As características epidemiológicas da zona; e d) As instalações e recursos sanitários
e da presentes na zona.
regionalização - Objetivos/desenho (formal): integralidade da atenção, coordenação assistencial, serviços mais próximos dos usuários, gestão
da saúde descentralizada e participativa.
- Instituições envolvidas no processo de formulação e implementação: Governo central e governos autonômicos; partidos políticos
(destaque para PSOE e PP); e Tribunal Constitucional.
- Fragilidade dos arranjos institucionais definidos formalmente:
a) Conselho Interterritorial: tem dificuldades para se efetivar como fórum de negociação e gestão compartilhada, dado que é
frequentemente palco de disputas políticas entre governo e oposição (presente no governo das CCAA). Além disso, também expressa a
tensão nas relações intergovernamentais na Espanha, em função da lógica de maximização das autonomias e baixa capacidade do nível
central em coordenar a política territorialmente. Funcionamento de quatro reuniões anuais.
b) Órgãos participativos de área: em geral, os Conselhos de Participação funcionam razoavelmente; mas os Conselhos de Direção e
Gestão, não (a gestão tende a estar centralizada no nível da CCAA; cabendo às províncias alguma atividade por desconcentração desse
nível – sem poder de decisão; e às municipalidades alguma função marginal, restrita à assistência social). Destaque para o fato de que
províncias e municipalidades não têm assento no Conselho Interterritorial.
- Períodos de governo de centro: 1976-1981 (UCD – Adolfo Suarez)
- Períodos de governo de esquerda: 1982-96 (PSOE – Gonzalez); 2004-2011 (PSOE – Zapatero)
- Períodos de governo de direita: 1996-2003 (PP – Aznar); 2012-presente (PP – Rajoy).
- Papel das instituições e dos atores: os governos regionais (CCAA) possuem amplas competências na formulação, gestão,
prestação e regulação da política de saúde, bem como amplo poder para decidir sobre seu orçamento e os gastos em saúde.
Condicionantes
Ao nível central cabe exercer a coordenação nacional (papel difícil de executar diante das características e condicionantes
da
do processo de descentralização do Estado e da saúde), bem como responsabilizar-se pela saúde exterior e política de
descentralização
medicamentos. Províncias e municípios têm um papel restrito.
e da
- Estratégias de atuação das instituições e dos atores: governo central busca manter algum poder no nível central; governos
regionalização
regionais buscam ampliar seu poder e autonomia; e Tribunal Constitucional atua como moderador.
da saúde
- Fatores político-institucionais: redemocratização; regionalismos e tendências separatistas; descentralização do Estado
espanhol (constituição das CCAA); ingresso na União Europeia, em 1986; expansão do sistema de proteção social antes da
criação do SNS; e modelo de financiamento da saúde, antes e depois de 2002.
- Fatores econômicos: crise de 1980, com repercussões para o financiamento da saúde; crise de 2009, com impactos sobre a
universalidade do sistema e tendência a privatizações.
Fonte: Elaboração própria.

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a institucionalidade (características formais) SNS; a atuação do PSOE nos primeiro anos


e os condicionantes da descentralização e re- da reforma sanitária e o ingresso da Espanha
gionalização da saúde na Espanha. na União Europeia; e a estrutura do financia-
mento do setor, na qual predomina o gasto
público. A associação desses fatores favo-
Considerações finais receu a descentralização e a regionalização
da saúde no caso espanhol, com influências
Esta seção tem como objetivo apresentar sobre o desenho recente do sistema sanitário.
algumas considerações sobre os processos de Contudo, percebe-se que o arranjo inter-
descentralização e regionalização da política governamental de poder na Espanha não
de saúde espanhola. Para tanto, cabe retomar favoreceu o estabelecimento de relações
as questões iniciais: Que fatores históricos, articuladas entre as esferas de governo, com
políticos e institucionais favoreceram tais prejuízos para o papel do governo central
processos? Como tais fatores influenciam a em sua função de coordenar nacionalmente
configuração recente do sistema de saúde? a política e o Conselho Interterritorial. Tal
Os argumentos que respondem a tais ques- fato segue como um desafio do SNS, tendo
tões foram apresentados ao longo do artigo em vista as preocupações com a unidade
e servirão como base para reflexões sobre do sistema e a equidade entre as CCAA.
algumas tendências e possibilidades. O caso espanhol é um exemplo de que a
Na Espanha, a reforma descentralizante maximização da autonomia dos governos
do Estado e as características que assumiu subnacionais repercute sobre as relações
em termos da redistribuição do poder políti- intergovernamentais, em uma lógica onde
co-territorial constituem-se como variáveis maior autonomia subnacional correspon-
estruturantes da trajetória da descentrali- de a menor coordenação e cooperação
zação da saúde. A descentralização sanitária intergovernamental.
está marcada temporalmente pela constitui- Na atualidade, o contexto democrático
ção das CCAA, como novo nível de governo espanhol está marcado por manifestações
dotado de significativa autonomia e conside- sociais que expressam o descontentamento
rável poder de decisão sobre a formulação, de parcela da população com a condução dos
regulação e execução de políticas públicas. governantes sobre diversos temas. Destaca-
Tal configuração repercutiu diretamente se o movimento que congregou profissionais
sobre a definição da CCAA como a esfera de da saúde, usuários do sistema sanitário e
governo que detém o poder de autoridade sa- partidos políticos de esquerda a fim de com-
nitária e concentra a maior responsabilidade bater a proposta de privatização de hospitais
pela coordenação da política e do sistema de públicos de Madri. Trata-se de um momento
saúde no seu território. histórico relevante, no qual a articulação e
A análise da trajetória da descentraliza- organização da sociedade têm assumido es-
ção e da regionalização da saúde mostra que pecial importância.
as CCAA possuem amplo poder político, A análise realizada também permitiu
administrativo e fiscal/financeiro na polí- identificar algumas tendências na gestão
tica sanitária, características que guardam do sistema de saúde espanhol. Por um lado,
relação com o amplo poder de decisão que percebem-se movimentos de privatização,
lhes foi transferido no contexto da descen- que assumem variadas formas e põem em
tralização do Estado. Ressaltam-se como risco princípios do sistema. Por outro, é
condicionantes desses processos: a expansão possível verificar uma tendência à gestão do
da infraestrutura pública de serviços e da co- território, ou seja, à unificação da gestão da
bertura populacional antes da instituição do rede de atenção primária e da especializada/

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Descentralização e regionalização em saúde na Espanha: trajetórias, características e condicionantes 25

hospitalar, presentes em uma dada região inter-relacionam no tempo importa para o


de saúde, em uma direção única. O objetivo resultado da sua atuação.
desta direção única é promover a integra- A influência desse conjunto de fatores
ção entre os níveis assistenciais com vistas sobre a formulação e implementação da des-
à melhoria da eficiência na gestão e pres- centralização e da regionalização da política
tação de serviços. Tal experiência está em de saúde, na Espanha, repercutiu sobre a
curso em algumas CCAA e deverá ser alvo configuração atual do sistema de saúde, de-
de avaliações posteriores. Pode-se afirmar terminando aspectos relativos à organização
que as possibilidades de avanço do sistema territorial dos serviços; ao balanço de poder
de saúde espanhol estão relacionadas com entre as esferas governamentais na gestão
os rumos que tomará em cada um desses do sistema; ao ator que detém maior res-
dois aspectos. ponsabilidade na coordenação da política;
O estudo do caso espanhol sugere que os e à repartição de responsabilidades sobre o
processos de descentralização e regionali- financiamento do setor.
zação da saúde foram condicionados por Por fim, cabe ressaltar as limitações
uma série de fatores, entre eles: a divisão desta pesquisa. Em função do seu foco, ela
político-territoral e as características da dedicou-se a observar a descentralização e a
descentralização do Estado; os processos regionalização em saúde a partir do Estado,
de democratização e reforma do Estado; restringindo-se à análise dos atores e ins-
as conjunturas econômicas e políticas das tituições governamentais. Todavia, a com-
décadas analisadas; os antecedentes do preensão da política de saúde possui outras
sistema de saúde (infraestrutura pública e facetas relevantes, que dependem de inves-
cobertura populacional prévias à reforma tigações acerca do mercado e da sociedade.
sanitária); as características da trajetória Como agenda de pesquisa, ressalta-se a im-
da descentralização e da regionalização portância de que outros estudos voltem sua
da saúde; as condições e o modelo de fi- atenção para tais questões, assim como para
nanciamento da política de saúde; o papel debates referentes à organização da rede de
e as estratégias das instituições e atores. saúde e sua articulação a partir da atenção
Tais fatores podem favorecer ou desfavo- primária, à relação público-privada no
recer a descentralização e regionalização âmbito das regiões de saúde e à gestão local/
da saúde, apontando que o modo como se regional e o estímulo à participação social. s

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Recebido para publicação em maio de 2015
Versão final em outubro de 2015
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Suporte financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 11-27, DEZ 2015


28 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Perspectivas de região e redes na política de


saúde brasileira
Prospects for the region and networks in Brazilian health policy

Mariana Vercesi de Albuquerque1, Ana Luiza d’Ávila Viana2

RESUMO Regiões e Redes de Atenção à Saúde são estratégias recentes da política de saúde
brasileira. Questiona-se: quais concepções de região e redes de saúde informam a política,
como se combinam, em que momentos e com quais objetivos? Analisaram-se as perspectivas
de região e redes adotadas na política de saúde, no período de 2001 a 2011. Utilizou-se o refe-
rencial da geografia humana (geografia crítica) e da análise de políticas públicas (institucio-
nalismo histórico), pesquisa bibliográfica, documental e dados secundários. Identificaram-se
três fases de indução descompassada dessas estratégias, orientadas por distintas concepções
teóricas e políticas e interesses nacionais e internacionais.

PALAVRAS-CHAVE Regionalização; Política de saúde; Sistema Único de Saúde; Planejamento


em saúde; Assistência à saúde.

ABSTRACT Regions and health care networks are strategies recently adopted in the Brazilian
health policy. Leading questions: what conceptions of region and health networks inform the
policy, how are they combined, at what times and with what objectives? The aim of this study is to
analyze the prospects for the region and networks adopted in health policy in the period of 2001-
2011. We used the reference of human geography (critical geography) and public policies analysis
(historical institutionalism), bibliographic research, documentary research and secondary data.
Were defined three induction phases apart from these strategies, guided by different theoretical
and political views and national and international interests.

KEYWORDS Regional health planning; Health policy; Unified Health System; Health planning;
Delivery of health care.

1 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca
(Ensp), Departamento
de Administração e
Planejamento em Saúde
(Daps) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
mariana.albuquerque@ensp.
fiocruz.br

2 Universidade de São
Paulo (USP), Faculdade de
Medicina, Departamento
de Medicina Preventiva –
São Paulo (SP), Brasil.
analuizaviana@usp.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005390
28
Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira 29

Introdução determinado setor da administração pública


ou da economia; (III) a relação de planos
A adoção de práticas de planejamento regio- nacionais com blocos regionais (ex: União
nal (em uma perspectiva geral), através da Europeia); (IV) o combate às desigualdades
institucionalização de regiões e/ou elaboração socioespaciais, valorização das potencialida-
de projetos vinculados às regiões geográficas des econômicas ligadas ao mercado interno
específicas, caracterizou um papel estratégico e externo e melhoria de acesso e qualidade
assumido pelo Estado na condução do desen- de serviços públicos; (V) a percepção das
volvimento econômico e social em diversos várias escalas (local, regional, nacional e in-
países, na primeira metade do século XX. ternacional) de atuação técnica e política dos
O planejamento regional perdeu força diversos agentes e instituições, para a estru-
a partir da década de 1970, no contexto da turação e negociação de planos regionais e a
emergência da agenda neoliberal, com pro- regulação das redes financeiras, de serviços,
posta de reformas do Estado, e no processo produção, informação e logística; (VI) a ideia
de globalização econômica, com novos para- de sustentabilidade associada aos padrões
digmas tecnológicos e expansão da atuação de crescimento econômico, utilização dos
de instituições e empresas em escala pla- recursos físicos e tecnológicos e promoção
netária. O planejamento regional tornou-se do bem-estar social1 (SANTOS; SILVEIRA, 2001).
limitado principalmente por forças e inte- No Brasil, nos anos 2000, a retomada do
resses de grupos privados, com autonomia papel do Estado na condução do planeja-
de mobilização de recursos diversos, cuja mento territorial se pautou pelo debate con-
estratégia de atuação é constituir redes em temporâneo e se traduziu na elaboração de
diferentes escalas regionais, nacionais e in- políticas regionais implícitas e explícitas2,
ternacionais e influenciar políticas nos dis- além do incentivo de processos de regionali-
tintos lugares e regiões onde se estabelecem. zação, inclusive na política de saúde.
As perspectivas da descentralização polí- Nesse contexto, a conformação de regiões e
tico-administrativa e do planejamento local redes de saúde se tornaram estratégias da po-
(pautado pela relação local-global), associa- lítica nacional para lidar com a dimensão ter-
das às tendências de privatização de serviços ritorial da universalização da saúde e induzir
públicos, tiveram destaque nas agendas inter- mudanças na política, no planejamento e
nacionais e governamentais. A conformação gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), a fim
de redes globais de produção, serviços, in- de assegurar uma ação mais eficaz do Estado
formação e logística para viabilizar a atuação na garantia desse direito (ALBUQUERQUE, 2013).
das instituições de mercado passou orientar o Questiona-se: quais concepções de região e
planejamento territorial, com investimentos redes foram estabelecidas no âmbito da polí-
nas regiões mais competitivas e conectadas tica nacional de saúde, como se combinaram,
por meio dessas redes (CASTILLO, 2008). em que momentos e com quais objetivos?
Nos anos 2000, limites e conflitos decor- O objetivo do trabalho foi analisar as pers-
rentes do aumento das desigualdades e da pectivas de região e redes adotadas na política
competitividade entre regiões e países reco- de saúde brasileira, no período de 2001 a 2011.
locou na agenda internacional o debate sobre
1 Palestra proferida no
o papel do Estado na condução do planeja- Instituto de Economia da
mento territorial. Entre as principais ques- Metodologia Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) em
tões que orientaram esse debate, estão: (I) a 30/05/2012, por Tania
participação de representantes do mercado Utilizou-se o referencial teórico da geografia Bacelar de Araújo. Título:
Desenvolvimento Regional
e da sociedade; (II) a visão integrada dos humana (geografia crítica) e da análise de po- no Brasil.
usos do território e das redes, não restrito a líticas públicas (institucionalismo histórico), 2 Idem

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


30 ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. d’Á.

pesquisa bibliográfica, análise documental lógica produtiva, configurando uma solida-


e de dados secundários. Realizou-se revisão riedade regional (SANTOS; SILVEIRA, 2001). As redes
bibliográfica sobre região geográfica, plane- criam e recriam arranjos técnicos e institucio-
jamento regional e redes, para compreensão nais, combinando diferentes escalas de ação e
de seus significados para além do setor saúde. poder econômico e político que escapam aos
Identificaram-se as principais experiências e limites regionais, tornando mais complexas as
definições teóricas que influenciaram a polí- interações regionais. Nesse sentido, a região
tica de saúde brasileira. Definiram-se fases da geográfica é um recorte dinâmico que exprime
indução da regionalização e da conformação bases de ação técnica e política que não neces-
de redes segundo as normas e concepções uti- sariamente coincidem com o desenho regional
lizadas na política nacional, entre 2001 e 2011. do planejamento (SILVEIRA, 2010).
As regiões de planejamento do SUS sempre
Principais concepções de região e foram pensadas em combinação a conforma-
redes que influenciaram a política de ção de redes. Portanto, as perspectivas de
saúde brasileira, pós-1988 regionalização são condicionadas pelo enten-
dimento sobre rede de saúde. Duas principais
A organização de regiões de saúde e redes perspectivas de rede influenciaram as diretri-
assistenciais estão previstas na Constituição zes de regionalização do SUS: (I) redes regio-
Federal (1988) e na Lei Orgânica da Saúde nalizadas e hierarquizadas, de origem inglesa;
(8.080/1990). Seguindo as regras constitu- e (II) Redes de Atenção à Saúde (RAS), ins-
cionais e o modelo federativo do País, uma pirada no conceito de sistemas integrados de
região de planejamento é um recorte institu- saúde, de origem norte-americana.
ído pelo Estado (esferas federal e estadual), Anteriormente às propostas de regionali-
em um dado momento, subordinado a uma zação, mas também influente nessa perspec-
política específica, com critérios, objetivos e tiva, o modelo norte-americano de Centros
recursos predefinidos. de Saúde (CS), difundido pela Fundação
Esse tipo de planejamento não cria um novo Rockfeller, no início do século XX, deixou
ente político com orçamento próprio, depende marcas na organização do SUS até recente-
da capacidade, autonomia e solidariedade das mente, através da ideia de integração das ações
três esferas de governo para: elaborar uma assistenciais, sendo contraposto atualmente
visão estratégia sobre os usos do território, pelos novos componentes gerenciais das RAS
suas redes e especificidades regionais; propor (MELLO ET AL., 2011). Destaca-se ainda que as noções
um plano regional de médio e longo prazo, de territorialidade (comunidade e desigualda-
com objetivos e metas claros; planejar, finan- des locais/intraurbanas) e de territorialização
ciar, mapear e regular redes de produção, (estruturação de sistemas e redes municipais
serviços, logística e informação; negociar e co- de saúde) foram muito valorizadas durante a
ordenar ações com diferentes setores, agentes, descentralização, envolvendo distritos sanitá-
instituições e esferas de governos com atuação rios e atenção primária em diferentes situações
na região de planejamento e em outras escalas sociais e de saúde, sendo posteriormente, e em
– local, regional, nacional e internacional. parte, atualizadas e ampliadas para o contexto
Tanto as regiões geográficas como aquelas regional de planejamento do SUS.
instituídas para fins de planejamento se estru- No processo de indução da regionaliza-
turam por meio de redes técnicas e políticas. ção, a política brasileira foi primeiramente
Não existem regiões sem redes. Estas integram muito influenciada pela proposta das redes
e coordenam fixos e fluxos (produção, infor- assistenciais regionalizadas e hierarquizadas
mação, circulação e consumo) entre diferentes para sistemas universais de saúde, inspirada
lugares, inserindo-os dentro de uma mesma no Relatório Dawson, de 1920. Os serviços

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira 31

médicos eram ordenados em redes, com sob forte comando do setor privado, a des-
centros de saúde primários, secundários e peito do processo de regionalização (IBAÑEZ
hospitais de ensino e a abrangência regional ET AL., 2009; SCATENA ET AL., 2014).
de acesso a eles. Para garantia de acesso ao A noção de redes hierarquizadas e regiona-
cuidado integral, a regionalização deveria lizadas foi perdendo espaço para outra pers-
ser baseada em territórios de grande porte pectiva, das RAS. A noção de redes de atenção
populacional, com autossuficiência em recur- que passou a informar a política de saúde
sos de saúde em todos os níveis de atenção, brasileira tem origem no conceito de siste-
subdivididos em distritos, sub-regiões ou mas integrados de saúde, desenvolvido para o
microrregiões. Tratava-se de uma divisão mercado privado americano e adaptado para
técnica, gerencial e territorial do trabalho no as políticas públicas e sistemas universais de
setor saúde, que relacionava hierarquia dos saúde (MENDES, 2010; KUSCHNIR; CHORNY, 2010).
serviços (especialidade do tratamento; varie- Na década de 1990, houve um esforço
dade de equipamentos e profissionais), com por parte da Organização Mundial da Saúde
hierarquia urbana (porte populacional; equi- (OMS) para a formulação de um conceito so-
pamentos e serviços; função rural ou urbana) fisticado de rede de saúde, baseado em siste-
e redes de transporte e comunicação, criando mas integrados, capaz de embasar e alinhar o
uma organização regional de um sistema de planejamento de sistemas universais de saúde
saúde, conforme a complexidade e a comple- em tempos de globalização, relacionado à
mentaridade dos serviços oferecidos. A rede difusão dos ideais da nova gestão pública, de
regionalizada e hierarquizada estaria sob o boa governança e da reforma desses sistemas
comando da autoridade única de saúde regio- (MENDES, 2014), também à proposição de um
nal, de cunho administrativo. ‘novo universalismo’ (WHO, 2000).
Alguns dos conceitos foram incorporados Os modelos de gestão de sistemas integra-
na política brasileira, tais como: critérios de dos de saúde foram introduzidos em países da
delimitação regional baseado na oferta, fluxo Europa e no Canadá, no contexto das refor-
e hierarquia assistencial e nas necessidades mas dos sistemas de saúde, nos anos 90. Na
de saúde de uma comunidade; a eficiência mesma época, esses modelos começaram a
de escala; a coordenação das referências de ser adaptados na América Latina e, nos anos
acesso entre os níveis e/ou regiões. Contudo, 2000, difundiram-se em alguns países, entre
a criação da autoridade de saúde única na eles o Brasil (WHO, 2000; OPAS, 2010). Experiências
região, instrumento fundamental da propos- latino-americanas tomam como principal
ta, não se aplicou ao caso brasileiro, dado o exemplo o sistema integrado de saúde da
modelo federativo de corte municipalista, Catalunha, Espanha (OPAS, 2010). Desde então, a
cujo processo de descentralização dificulta a OMS tem conseguido criar um consenso in-
constituição desse tipo de autoridade. ternacional em torno da necessidade de con-
Essa questão representou uma impor- formação das redes e sistemas integrados de
tante limitação para a indução e institucio- saúde nos sistemas nacionais.
nalização da regionalização do SUS. Outras No Brasil, o conceito adaptado por Mendes
três questões também precisavam ser mais (2010, P. 2300) tem forte influência na política na-
bem compreendidas e definidas dentro do cional. Segundo o autor, as RAS são “organiza-
planejamento regional do SUS: (I) o con- ções poliárquicas de conjuntos de serviços de
ceito de rede de saúde (MENDES, 2010); (II) a saúde [...] coordenadas pela atenção primária
consideração das desigualdades socioes- à saúde”. Os elementos constituintes das redes
paciais; (III) e as relações estabelecidas são: a população pela qual a rede se responsa-
entre Estado e mercado na configuração de biliza; a estrutura operacional e o modelo de
redes assistenciais com lógicas próprias, atenção. As redes se integram por linhas de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


32 ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. d’Á.

cuidado, que servem como diretrizes para a a ideia de região de saúde é atualizada pelo
estratégia de articulação e gerenciamento das viés sanitário assistencial, mas, dissociado
unidades e dos atendimentos na rede. da perspectiva estritamente estatal e pública
A noção de integralidade aparece relacio- de prestação de serviços e de planejamento
nada às redes, sugerindo dupla leitura: redes político-administrativo. Admite-se a partici-
como estrutura organizacional de produção de pação e o protagonismo de outros agentes e
serviços e redes como dinâmica de atores e or- instituições do mercado e da sociedade na ne-
ganizações em permanente negociação (HARTZ; gociação e conformação das redes de saúde.
CONTANDRIOPOULOS, 2004). Do ponto de vista da co- Nesse sentido, as redes podem reconfigurar
ordenação política, as RAS seriam uma expres- os desenhos regionais com maior frequência,
são de interesses negociados por diversos atores pois resultam da interdependência entre fixos
e instituições, que se organizam como rede com e fluxos materiais e imateriais hierarquizados
objetivos claros (FLEURY; OUVERNEY, 2007). Para outros e comandados por organizações e agentes es-
autores, essas redes dependem da gestão inter- tatais e não estatais que podem operar serviços
governamental nas diversas escalas do exercício localizados dentro e fora da região, do estado
do poder (territoriais e regionais) e espaços co- e do País. O mesmo vale para a participação
legiados do SUS, conformando redes assisten- da sociedade e dos profissionais de saúde,
ciais interfederativas (SANTOS; ANDRADE, 2011). considerando que fluxos assistenciais e fluxos
Entre as principais diferenças da propos- no mercado de trabalho nem sempre cabem
ta de redes forjada no sistema americano e dentro do recorte regional instituído.
aquelas para países com sistemas universais Quando se analisam as diretrizes nacio-
de saúde está a regionalização, que implica nais de regionalização e redes de atenção
universalidade e diminuição das desigual- no SUS, identificam-se descompassos na
dades (KUSCHNIR; CHORNY, 2010). Nos Estados adoção destas estratégias, muito em função
Unidos, as redes buscam regular um sistema das distintas perspectivas adotadas.
competitivo, fragmentado e custoso, em que a
regionalização pelas redes visa compartilhar Três fases da indução da
riscos financeiros e criar mecanismos rígidos regionalização e das redes de saúde
de controle do acesso aos serviços (SILVA, 2011). na política brasileira
No Brasil, regiões e redes de saúde são orga-
nizadas pelo Estado e pelo mercado. Enquanto No âmbito da política nacional de saúde, os pro-
as redes enfatizam o caráter gerencial e logís- cessos de descentralização, regionalização e or-
tico dos sistemas de saúde (modelos de gestão, ganização de redes assistenciais não estiveram
integração econômica vertical e horizontal, associados desde o início da implantação do
regulação, continuidade do cuidado, economia SUS. Apenas nos anos 2000, a indução da regio-
de escala e escopo, coordenação técnica e go- nalização e da conformação de redes de saúde
vernança clínica), a região tem uma perspectiva entrou na agenda, podendo ser caracterizada
mais ampla do planejamento, sendo um espaço em três fases: fase I (2001-2005): região norma-
de negociação, coordenação e regulação técnica tiva com redes regionalizadas e hierarquizadas
e política da saúde. A região abriga diversida- de serviços de saúde; fase II (2006-2010): região
des e desigualdades socioespaciais e envolve a negociada com redes regionalizadas e integra-
negociação entre agentes e instituições, com das de atenção à saúde; fase III (2011-atual):
interesses e demandas distintos e conflituosos. região negociada e contratualizada com as RAS.
Nesse sentido, o planejamento regional serve Essas fases se distinguem pelas concepções
para enfatizar o caráter público e universal do de região e redes que influenciaram a política
direito à saúde, reforçando o papel do Estado. de saúde brasileira e segundo as normas que
Através do conceito de redes de atenção, definem os conceitos de regionalização e redes,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira 33

os critérios, objetivos, desenhos, instrumentos responsáveis pela condução da organização


de planejamento, financiamento e gestão e os territorial do sistema de saúde (quadro 1).

Quadro 1. Região e rede na política de saúde brasileira: diferentes fases da indução pelas normas (2001-2011)

FASE I (2001-2005) FASE II (2006-2010) FASE III (2011-atual)


Região normativa com redes Região negociada com redes integradas e Região negociada e contratualizada com redes de
regionalizadas e hierarquizadas regionalizadas atenção à saúde
Norma Operacional de Assistência à Portaria 4.279/10
Normas Pacto pela Saúde (Portaria 399/2006)
Saúde – Noas (2001/02) Decreto 7.508/11
REGIÃO REGIÃO REGIÃO
Base territorial de planejamento da Recortes territoriais inseridos em Espaço geográfico contínuo constituído por
atenção à saúde, não necessariamente espaços geográficos contínuos, não agrupamentos de municípios limítrofes.
coincidente com a divisão necessariamente coincidentes com a Elementos: limite geográfico dos territórios
administrativa do estado. divisão administrativa do estado. municipais envolvidos, população usuária, fluxos
Elementos: limite geográfico dos Elementos: limite geográfico dos territórios assistenciais, RAS com rol mínimo de ações
territórios municipais envolvidos, municipais envolvidos, população usuária, e serviços (Atenção Primária à Saúde - APS,
população usuária, fluxos fluxos assistenciais, ações e serviços Urgência e Emergência - UE, atenção psicossocial;
assistenciais, ações e serviços de Atenção Básica (AB), Média e Alta ambulatorialespecializada e hospitalar e Vigilância
de Média Complexidade (MC) e Complexidade e Vigilância Sanitária (VS), Sanitária), Comissão Intergestores Regional (CIR).
Definições responsabilidades (habilitação da Colegiados de Gestão Regional.
gestão) dos entes federativos.
REDES REDES
REDES Diversas nomenclaturas: rede regionalizada As RAS são definidas como arranjos organizativos
Hierarquizadas e regionalizadas, sem e hierarquizada de ações e serviços; RAS; de ações e serviços de saúde, de diferentes
definição de um conceito específico redes regionalizadas de atenção à saúde; densidades tecnológicas, que integradas por meio
e com publicação de portarias com redes regionais hierarquizadas estaduais; de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão,
diretrizes organizativas. redes funcionais; rede de cooperação entre buscam garantir a integralidade do cuidado.
os três entes federados, sem definição de
um conceito específico e com publicação
de portarias com diretrizes organizativas.
REGIÃO REGIÃO REGIÃO
Ampliar o acesso às ações e serviços Atender às demandas das populações dos Compatibilizar e integrar o processo de
de saúde em todos os níveis de municípios a elas vinculados, garantindo planejamento dos entes federativos.
atenção, por meio da conformação o acesso, a equidade e a integralidade Garantir segurança jurídica para as relações
de sistemas funcionais de saúde e do cuidado com a saúde local. Diminuir intergovernamentais na região de saúde (Contrato
definindo-se um conjunto mínimo de as desigualdades socioespaciais de Organizativo da Ação Pública de Saúde – Coap).
procedimentos de MC como primeiro universalização da saúde, superar os Integrar a organização, o planejamento e a
nível de referência intermunicipal a toda limites do modelo de descentralização execução de ações e serviços de saúde, por meio
a população no âmbito microrregional, municipalista da saúde e fortalecer o da conformação das RAS. Associar planejamento
ofertados em um ou mais módulos papel dos estados no planejamento e orçamento: região como referência para
assistenciais. Descentralizar as ações e na coordenação / cooperação transferência de recursos entre os entes federados.
e serviços em saúde. Fortalecer o intergovernamental. Diminuir as desigualdades socioespaciais de
papel dos estados no planejamento. universalização da saúde, superar os limites do
Objetivos
Equidade. modelo de descentralização municipalista da saúde
e fortalecer o papel dos estados no planejamento e
na coordenação / cooperação intergovernamental.
Governançadas redes. Metas e resultados.

REDES
REDES O objetivo das RAS é promover a integração
REDES Regulação dos fluxos assistenciais sistêmica, de ações e serviços de saúde com
Regulação dos fluxos assistenciais intermunicipais e integração das ações e provisão de atenção contínua, integral, de qualidade,
intermunicipais serviços no espaço regional. responsável e humanizada, bem como incrementar
o desempenho do Sistema, em termos de acesso,
equidade, eficácia clínica e sanitária; e eficiência
econômica.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


34 ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. d’Á.

Quadro 1. (cont.)
REGIÃO REGIÃO REGIÃO
Características demográficas, Identidades culturais, econômicas e Identidades culturais, econômicas e sociais,
socioeconômicas, geográficas, sociais, características epidemiológicas, características epidemiológicas, e redes de
sanitárias, epidemiológicas, ofertade existência de redes nas áreas de comunicação e transportes compartilhadas.
serviços, relaçõesentre municípios, comunicação, infraestrutura, transportes Deve conter, no mínimo, ações e serviços de:
entre outras. O conjunto mínimo de e saúde. Deve estar garantido o APS; UE; atenção psicossocial; atenção ambulatorial
serviços de média complexidade desenvolvimento da AB da assistência e especializada e hospitalar; e Vigilância em Saúde
compreende as atividades parte da MC, assim como as ações básicas (VS). Critérios de acessibilidade e escala.
ambulatoriais de apoio diagnóstico e de Vigilância em Saúde (VS). Considera
Critérios para terapêutico e de internação hospitalar. as demandas da população. Cooperação
conformação intergovernamental.
REDES
REDES Amplo conhecimento das necessidades,
REDES Fluxos assistenciais intermunicipais e preferências e grau de risco de uma dada população,
Fluxos assistenciais intermunicipais, interestaduais, hierarquizados segundo identificação da área geográfica e a população sob-
hierarquizados segundo complexidade complexidade dos serviços, regulados responsabilidade das redes e rol de ações e serviços
dos serviços, regulados dentro das dentro das regiões de saúde. O modelo de ofertados (pontos de e níveis de atenção primária,
regiões de saúde. atenção básica à saúde deve ser o centro secundária e terciária, sistemas de apoio e logístico),
ordenador das redes. acessibilidade e escala para a conformação dos
serviços. Linhas de cuidado.
REGIÃO REGIÃO REGIÃO
Macrorregiões; regiões e/ou As regiões de saúde podem assumir As regiões de saúde podem assumir diferentes
microrregiões de saúde; módulos diferentesdesenhos, intraestaduais e desenhos, intraestaduais e interestaduais, desde que
assistenciais. interestaduais. ‘Regionalização viva’. garantam a oferta do rol mínimo de ações e serviços
de saúde (critérios de regionalização; referência:
Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde
- Renases e Relação Nacional de Medicamentos
Desenhos
Essenciais - Rename). Não mais existindo diferentes
regionais
escalas (macro e micro) de regionalização.

REDES
REDES REDES Abrangência da base populacional sob-
Redes estaduais regionalizadas Redes estaduais regionalizadas. responsabilidade das RAS, acessibilidade e escala.
segundo macrorregiões. RAS podem abranger uma ou mais regiões de
saúde.
REGIÃO REGIÃO REGIÃO
Habilitações Termos de compromisso de gestão Coap
Programação Pactuada e Integrada PPI, PDR, PDI Planos de saúde contendo metas de saúde
(PPI) Indicadores de monitoramento (planejamento integrado dos entes)
Plano Diretor de regionalização (PDR) Complexos reguladores Mapa de Saúde (federal, estadual e regional)
Plano Diretor de Investimentos (PDI) Financiamento por blocos (Atenção Básica, Renases
Centrais de regulação Atenção de Média e Alta Complexidade, Rename
Financiamento por elenco de Vigilância em Saúde, Assistência RAS
procedimentos (níveis de atenção, tipo Farmacêutica e Gestão do SUS) Índice de Desempenho do SUS (IDSUS)
de serviços, programas e funções) e Normas internacionais (regiões de Sistema logístico das redes (transporte sanitário e
transferências per capita fronteira) regulação)
Instrumentos
Financiamento por blocos e por componentes das
de
RAS
planejamento
Normas internacionais (regiões de fronteira)

REDES REDES
REDES PPI, centrais de regulação e contratos de Portarias das redes temáticas de atenção à
PPI e centrais de regulação gestão saúde, diretrizes clínicas, linhas de cuidado,
modelo de atenção, auditoria clínica, lista de
espera, contratos de gestão, sistema logístico de
informação, complexos reguladores, financiamento
tripartite e transporte sanitário, critérios/índice
de necessidades de saúde envolvendo variáveis
demográficas, epidemiológicas e sanitárias

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira 35

Quadro 1. (cont.)
REGIÃO REGIÃO REGIÃO
Secretarias Estaduais de Saúde Secretarias Estaduais de Saúde Secretarias Estaduais de Saúde
Comissão Intergestores Bipartite (CIB) Secretarias Municipais de Saúde Secretarias Municipais de Saúde
Colegiados de Gestão Regional CIT (no caso de regiões nas áreas de fronteira
CIB internacional; na discussão das diretrizes de
Comissão Intergestores Tripartite (CIT) regionalização)
(no caso de regiões nas áreas de fronteira CIB
Responsáveis internacional) Comissão Intergestores Regional (CIR)

REDES REDES REDES


Secretarias Estaduais de Saúde Secretarias Estaduais de Saúde Governança das redes: Secretarias Estaduais de
Secretarias Municipais de Saúde Secretarias Municipais de Saúde Saúde, Secretarias Municipais de Saúde, Comissões
CIB Colegiados de Gestão Regional Intergestores Regionais e Bipartite, reguladores,
CIB financiadores e prestadores públicos e privados,
Comitê Gestor das Redes.
Fonte: Elaboração própria com base nas normas nacionais de regionalização e RAS da política nacional de saúde brasileira.

A primeira fase, que teve início com a Noas pautada por diretrizes organizativas, desta-
(2001/02), dialoga com a proposta de Dawson cando as referentes aos Serviços de Urgência
das redes assistenciais regionalizadas e hie- e Emergência. Contudo, a questão mais im-
rarquizadas, dentro da lógica de um sistema portante é o uso do termo rede de cooperação
de saúde funcional e resolutivo. O grande ob- entre os três entes federados ante a necessida-
jetivo da regionalização era ampliar o acesso de de maior coordenação e cooperação inter-
ao SUS, retomando sua coerência sistêmica, governamental na gestão do SUS. São criados
organizando fluxos intermunicipais pouco os Colegiados de Gestão Regionais (CGR),
regulados, integrados e negociados, promo- posteriormente denominados Comissões
vendo o papel dos estados no planejamento Intergestores Regionais (CIR), e flexibilizados
e coordenação das redes intermunicipais. os critérios para a conformação das regiões
Contudo, não foi elaborado um conceito espe- de saúde, dando oportunidade para recortes
cífico para as redes assistenciais que pudesse mais variados e adequados às realidades locais.
subsidiar o planejamento e as negociações, Tratou-se de um processo de regionalização
apenas portarias com diretrizes organizativas baseado na negociação, envolvendo todos os
para redes estaduais. As regras da regionali- gestores, em um contexto territorial complexo
zação, quando confrontadas com a realidade (divisão tripartite do poder e diversidade de
diversa e desigual do território brasileiro, situações sanitárias existentes). Contudo, os
foram consideradas rígidas e pouco efetivas, instrumentos de planejamento continuaram
caracterizando regiões normativas (BRASIL, os mesmos da fase anterior, limitando a nego-
2004). A exemplo da dificuldade de implanta- ciação e a coordenação política.
ção das Programações Pactuadas Integradas. Nessa fase, as regionalizações se diferen-
A segunda fase, que se iniciou com o Pacto ciaram muito quanto à institucionalidade, go-
pela Saúde (2006), representa uma transição vernança e objetivos propostos no âmbito dos
das concepções de região e redes na política de estados e associaram-se, em grande medida,
saúde nacional. O uso de diversas nomencla- aos objetivos de redução das desigualdades
turas para redes, com menção às RAS, aponta regionais, amparados pela expansão dos in-
a influência da proposta da OMS de sistemas vestimentos públicos federal e estadual (VIANA;
integrados de saúde na política brasileira. As LIMA, 2011). Os consórcios intermunicipais e
redes são compreendidas como integradas a regionalização negociada se combinaram
e regionalizadas, sem um conceito definido, de maneira a respeitar o desenho de alguns

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


36 ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. d’Á.

consórcios e, também, redefinir as respon- duas estratégias caminharam paralelamen-


sabilidades dos governos (SCATENA ET AL., 2014). te e não se coadunam. Entre 2011 e 2013,
Entretanto, esse processo instituiu regiões as portarias e projetos para implementa-
muito desiguais do ponto de vista da oferta de ção das redes temáticas de atenção à saúde
serviços, da população atendida e da capaci- trouxeram pouca ou nenhuma relação
dade técnica, financeira e decisória de organi- com os novos instrumentos da regionali-
zação de redes assistenciais, muitas vezes sem zação (ALBUQUERQUE, 2013). Mesmo o Projeto
ganhos de escala e escopo. QualiSUS-Rede selecionou regiões me-
Na fase III, a publicação da Portaria tropolitanas e outros recortes priorizados
4.279/2010 e do Decreto 7.508/2011 conso- na Política Nacional de Desenvolvimento
lidou a nova perspectiva das RAS na política Regional, sem relação com regiões de saúde.
nacional. Contribuíram para isso: a criação Apenas dois estados assinaram os Coaps nas
da Diretoria de Articulação de Redes de suas regiões de saúde (MT, CE).
Atenção à Saúde (Daras/SAS/MS), em 2007, A proposta das RAS redefine a região como
o Programa dos Territórios Integrados de ‘sanitária’, baseada em sua população-alvo e
Atenção à Saúde (Teias) e a elaboração de abrangência espacial que extrapola o recorte
um documento base sobre RAS para o País. das regiões de saúde. Levando em conta que
Experiências estaduais (CE, ES, MG) e mu- o repasse de recurso novo está vinculado às
nicipais (Curitiba, Rio de Janeiro) de confor- redes temáticas, sua implantação tende a re-
mação de redes de atenção, ocorridas desde o configurar as regiões estabelecidas (MENDES,
final da década de 1990, também subsidiaram 2014). Ao mesmo tempo, sugere uma redistri-
a política nacional. O Banco Mundial propôs buição do poder entre instituições públicas
e financiou a implantação de redes integradas e privadas e entre as três esferas de governo,
no País, a exemplo do Projeto QualiSUS-Rede. com tendências de centralização de certas
Trata-se de um movimento de demanda por funções nos estados e no nível federal (VARGAS
mais recursos financeiros para o setor saúde ET AL., 2014). É possível que novos desenhos
alinhados às redes de atenção. sejam estabelecidos, regiões mais dinâmicas
Do ponto de vista do planejamento regio- e flexíveis, diferentemente daqueles formal-
nal do SUS, destaca-se o papel da Secretaria mente instituídos como região de saúde.
de Gestão Estratégica e Participativa
(Segep/MS) e a atuação do Consórcio da
Catalunha na equipe ministerial sob a forte Conclusão
influência da experiência Catalã, adaptada
ao Brasil no estado do Sergipe. O Decreto A indução da regionalização e a conforma-
7.508/11 trouxe mudanças significativas na ção de redes de saúde ocorreram de maneira
concepção, nos objetivos e instrumentos do descompassada, orientadas por diferentes
planejamento regional. Por um lado, buscou concepções teóricas e políticas e interesses
garantir flexibilidade e ganhos de escala e nacionais e internacionais. A perspectiva das
escopo no desenho regional e, por outro, RAS é a face mais recente do alinhamento da
buscou responsabilizar de forma clara e ob- política brasileira com diretrizes internacio-
jetiva as três esferas de governo pelo plane- nais de reforma dos sistemas universais.
jamento, gestão e investimentos nas regiões A proposta das redes de atenção vem se
de saúde. Trata-se de conformar regiões ne- tornando consenso na política nacional, que
gociadas e contratualizadas. também se explica porque a rede supre a ne-
Apesar do Decreto 7.508/11 trazer novas cessidade de um novo modelo de organização
perspectivas de região e de redes de atenção, territorial do SUS, provocando a revisão da
a elaboração e institucionalização dessas perspectiva regional do planejamento da saúde.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira 37

É limitada a concepção de região de saúde seja forma da ação coletiva, permeada por atores
como resultante de dinâmicas constituídas públicos e privados organizados em redes
apenas em sua escala espacial, seja como ferra- de atenção. Potencializar a negociação, a
menta exclusiva à ação dos atores estatais. regulação e a coordenação de um sistema
Modelos de organização territorial do de saúde implica redefinir os papéis dos
sistema de saúde e suas combinações, em agentes operadores do sistema e da política,
constante disputa no âmbito da federação, em um ambiente de autonomia e participa-
são condicionados por dinâmicas espaciais ção, por meio de novas tecnologias de coo-
e relações entre Estado, mercado e socieda- peração que atravessam técnicas de gestão
de na condução da política e das redes de e organizativas dos fatores de produção em
saúde. Há mudanças tanto no modo como saúde, capazes de melhorar a eficiência dos
se realiza a política (multinível) quanto na investimentos e a eficácia dos serviços. s

Referências

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Conflito de interesses: inexistente
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 28-38, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 39

O mix público-privado e os arranjos de


financiamento hospitalar no Brasil
The public-private mix and the hospital financing arrangements in
Brazil

Juliana Pires Machado1, Mônica Martins2, Iuri da Costa Leite3

RESUMO Com o objetivo de caracterizar a rede hospitalar brasileira quanto ao grau de compar-
tilhamento SUS e planos de saúde, o artigo aborda a diversificação de fontes de financiamento,
discutindo o tema no contexto do sistema de saúde caracterizado pelo mix público-privado
desde a prestação de serviços até o pagamento e a gestão. Observou-se que a maioria dos hos-
pitais era privado e atendia SUS e planos, com menor disponibilidade de leitos de alta com-
plexidade no SUS. Não se identificou proporcionalidade entre oferta de leitos e cobertura da
população por planos nem complementariedade SUS e planos. Os achados ajudam a delinear
a oferta e os riscos à equidade no acesso, uso e qualidade do cuidado.

PALAVRAS-CHAVE Cobertura de serviços de saúde; Sistemas de saúde; Administração hospi-


talar; Equidade em saúde; Internação hospitalar.

ABSTRACT This paper seeks to characterize the Brazilian hospital network and its degree of
sharing between the National Health System (SUS) and private health insurance. It explores
the funding sources diversification and the overlapping of services, payments and management
1 Agência Nacional de related to the public-private mix. Most hospitals were private and took both SUS and private
Saúde Suplementar insurance. The availability of SUS beds was lower than that of private beds. The supply of private
(ANS), Diretoria de
Desenvolvimento Setorial – beds was not proportional to the population covered by private insurance, and it was not com-
Rio de Janeiro (RJ), Brasil. plementary to the SUS beds. The findings highlight the risk to equity of access, completeness and
juliana.pm@gmail.com
quality of the care provided.
2 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde KEYWORDS Health services coverage; Health systems; Hospital administration; Equity in
Pública Sergio Arouca Health; Hospitalization.
(Ensp), Departamento
de Administração e
Planejamento em Saúde
(Daps) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
martins@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca
(Ensp), Departamento de
Epidemiologia e Métodos
Quantitativos em Saúde
(DEMQS) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
iuri@fiocruz.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005245 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015
39
40 MACHADO, J. P.; MARTINS, M.; LEITE, I. C.

Introdução sido adotada por instituições hospitalares no


Brasil com o intuito de amenizar o risco de
A relação entre arranjos organizacionais, endividamento decorrente de eventual insu-
envolvendo aspectos gerenciais, financeiros ficiência em uma das fontes de pagamento
e estruturais, e sua influência sobre o fun- (CARVALHO, 2007). Essas estratégias de sobre-
cionamento e desempenho das instituições vivência e expansão do espaço no mercado
de saúde tem sido amplamente discutida. também influenciam o modelo de gestão.
Desse debate, emergem tipologias para a Sobressaem, assim, as tentativas de parce-
classificação dos estabelecimentos e análi- rias e alianças ‘público-privadas’, buscando
ses comparativas. A diversidade de arranjos relações entendidas como ‘ganha-ganha’
organizacionais, especialmente em termos (MEDICI, 2011; MORICI; BARBOSA, 2013). Dessa forma,
financeiros e gerenciais, é maior entre as a iniciativa privada vem expandindo suas
instituições hospitalares (HARDING; PREKER, atividades. Nesse contexto, além de pres-
2003; JAKAB ET AL., 2002; LA FORGIA; COUTTOLENE, 2009). tadores de serviços de saúde e gestores de
Na rede de atenção à saúde brasileira, tal planos de saúde, passaram a atuar também
diversidade é visível, contudo há particu- na gestão de unidades públicas – por meio de
laridades, sobretudo no que diz respeito às Organizações Sociais ou com a terceirização
fontes de pagamento constituintes dos ar- de serviços profissionais (MACHADO, 2001).
ranjos de financiamento dos serviços. Não No cenário atual, os planos privados de
é exceção pacientes utilizarem simultane- saúde exercem forte influência e pressão sobre
amente serviços financiados pelo Sistema os hospitais de sua rede credenciada, uma
Único de Saúde (SUS) e por planos privados vez que são importantes financiadores e re-
de saúde; muitos profissionais de saúde têm guladores do padrão de utilização com vistas
mais de um emprego remunerados por essas à contenção de custos (VECINA-NETO; MALIK, 2007).
duas fontes (VICTORA ET AL., 2011). Além disso, há Pressão semelhante é exercida pela adminis-
instituições públicas e privadas prestando tração pública sobre os hospitais públicos e
cuidado a pacientes financiados pelas duas privados sem fins lucrativos, por exemplo, re-
fontes de pagamento. Embora ainda sejam centemente passando a condicionar o repasse
raros os estudos, estão presentes na agenda de recursos financeiros à melhoraria do de-
sanitária preocupações com a variação no sempenho, por meio das contratualizações
padrão de cuidado prestado aos dois grupos, (LIMA; RIVERA, 2012). Em paralelo, sistematicamen-
com destaque aos problemas de acesso, efe- te prestadores privados, majoritariamente sem
tividade e equidade decorrentes da fonte e fins lucrativos, e suas entidades de representa-
valor do reembolso (VICTORA ET AL., 2011). ção queixam-se dos baixos valores de reembol-
À complexidade do sistema de saúde, so predefinidos na tabela SUS, mas sobrevivem
soma-se aquela concernente à gestão dos economicamente do aporte financeiro de re-
hospitais, pois nestes estão concentrados cursos públicos, já que aproximadamente dois
grande parte dos recursos financeiros, mate- terços de sua clientela são de pacientes do SUS
riais, tecnológicos e humanos. Apesar disso, (MEDICI, 2011; VICTORA ET AL., 2011).
diferentemente de outros setores da econo- Com vistas a contribuir para a reflexão e
mia regidos pela relação custo-volume-lucro, a subsidiar o debate a respeito da oferta de
em geral a gestão prevalente nos hospitais é rede compartilhada por pacientes finan-
a do regime de caixa (VECINA-NETO; MALIK, 2007). ciados pelo SUS ou por planos de saúde, o
Embora esta não comprometa a busca por objetivo deste estudo é caracterizar a rede
lucratividade, aponta a complexidade da hospitalar instalada no Brasil quanto aos ar-
gestão financeira dessas instituições. A di- ranjos de financiamento adotados e ao grau
versificação das fontes de financiamento tem de compartilhamento.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


O mix público-privado e os arranjos de financiamento hospitalar no Brasil 41

Metodologia volume de internação por hospital no SIH


e CIH foi utilizada para detectar as inter-
A principal fonte de informações foi o nações por fontes de pagamento não re-
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de gistradas nos cadastros do CNES e RPS. O
Saúde (CNES) do Ministério da Saúde. Para número de registro do hospital no CNES foi
estimar os limites na cobertura deste cadas- a variável-chave para criação dessa classifi-
tro, foram utilizadas como referência as infor- cação. Assim, três categorias de arranjos de
mações sobre hospitais e leitos obtidos pela financiamento foram formadas: ‘Somente
Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária do SUS’, ‘Planos e particular’ e misto –‘SUS,
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística planos e particular’. Arranjo ‘Somente SUS’
(AMS/IBGE). Complementarmente, foram incluiu os hospitais sem convênio com
utilizadas as bases de dados do Registro de planos no CNES e sem internações priva-
Planos de Saúde (RPS) da Agência Nacional das registradas na CIH. Arranjo ‘Planos e
de Saúde Suplementar (ANS), do Sistema de particular’ incluiu hospitais conveniados a
Informações Hospitalares (SIH) do SUS e planos, sem convênio com SUS no CNES e
da Comunicação de Informação Hospitalar sem internações SUS informadas no SIH.
(CIH) do Ministério da Saúde. Apesar do Arranjo ‘SUS, planos e particular’ (cliente-
conhecido problema de baixa cobertu- la mista) incluiu os hospitais conveniados a
ra das informações sobre internações não planos e ao SUS no CNES, e/ou com inter-
SUS na base do CIH, este problema não foi nações reembolsadas por ambas as fontes
considerado relevante para as análises aqui registradas no SIH e CIH.
realizadas, pois a informação sobre produ- Para a análise dos dados, comparou-se a
ção hospitalar, extraída do SIH e CIH, foi distribuição dos hospitais por fontes de pa-
somente aplicada para validar os dados ca- gamento e arranjos de financiamento com a
dastrais sobre tipo de convênio obtidos no cobertura da população por planos de saúde.
CNES e RPS (MACHADO ET AL., 2013). A informação sobre a população coberta por
Para a seleção dos estabelecimentos de planos de saúde é oriunda do Sistema de
saúde, filtraram-se aqueles que realiza- Informações de Beneficiários (SIB) da ANS.
vam internação e que possuíam leitos para O cálculo da oferta de leitos destinados à
internação no CNES. Foram incluídos os população beneficiária de planos de saúde
estabelecimentos ativos nesse sistema de in- foi realizado utilizando no numerador o
formação, considerando sua atuação em pelo número de leitos não SUS e no denominador
menos um ano no período entre 2008 e 2010. o número de beneficiários. A disponibilidade
Neste estudo, tais estabelecimentos foram de leitos para a população usuária exclusiva
denominados ‘hospitais’ independentemen- do SUS foi calculada utilizando no numera-
te da nomenclatura utilizada no CNES. dor o número de leitos SUS e no denomina-
O tipo de convênio informado pelos dor a diferença entre a população total e os
hospitais como fonte de pagamento (SUS, beneficiários de planos de saúde.
planos de saúde, desembolso direto ou A complexidade da estrutura dos hospitais
outras fontes) foi empregado para criar a nos estados e regiões brasileiras foi explora-
tipologia denominada ‘arranjos de finan- da com base na existência e proporção de
ciamento’. Para classificar os hospitais leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI)
segundo os arranjos de financiamento, dos tipos II ou III. A classificação dos tipos
utilizou-se a informação de convênio do de UTI é descrita na Portaria do Ministério
CNES e sua vinculação a alguma opera- da Saúde GM nº 3.432/1998 (BRASIL, 1998). A
dora de plano de saúde no RPS da ANS. informação sobre os leitos de UTI do tipo I
Sequencialmente, a informação sobre foi excluída, pois essa categoria não refere

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


42 MACHADO, J. P.; MARTINS, M.; LEITE, I. C.

os requisitos mínimos de disponibilidade Resultados


de equipe, serviços, exames, equipamentos
e materiais exigidos na mesma portaria mi- A análise preliminar para estimar os limites
nisterial. Na ausência de um parâmetro mais na cobertura dos dados indicou um número
preciso, para o cálculo dos valores mínimo e de hospitais cadastrados no CNES em 2009
máximo de leitos de UTI considerados ne- próximo daquele registrado pela AMS, em
cessários, aplicou-se o percentual definido todas as regiões do País (compatibilidade
pelo Ministério da Saúde na Portaria GM nº de cerca de 100,0%), incluindo a distribui-
1.101/2002 (BRASIL, 2006), que estabelece os pa- ção segundo natureza pública ou privada e
râmetros assistenciais para o SUS com base vínculo com o SUS. Quanto aos leitos exis-
em dados de produção. tentes, estes eram aproximadamente 12%
Todas as informações aqui utilizadas são maior no CNES quando comparado à AMS.
de domínio público e acesso livre. Contudo, Dos 7.161 hospitais cadastrados no CNES,
este trabalho faz parte do estudo ‘O arranjo 40,6% (2.905) eram públicos, 34,7% (2.483)
público-privado e a qualidade da assistência privados com fins lucrativos e 24,7% (1.773)
hospitalar no Brasil’, aprovado pelo Comitê privados sem fins lucrativos. Cerca de 46,6%
de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública dos hospitais (3.336) atendiam a clientela
(CAAE número 02234312.3.0000.5240) em mista, com arranjo de financiamento ‘SUS,
21 de agosto de 2012. planos e particular’ (tabela 1).

Tabela 1. Hospitais, leitos e internações segundo arranjos de financiamento – Brasil, 2008 a 2010

Natureza Jurídica / Planos e Particular Somente SUS SUS, Planos e Particular Total
Fonte de Pagamento (n) (%) (n) (%) (n) (%) (n) (%)
Hospitais 1.383 19,3 2.442 34,1 3.336 46,6 7.161 100,0
Público 39 1,3 2.217 76,3 649 22,3 2.905 100,0
Privado Sem Fins Lucrativos 72 4,1 144 8,1 1.557 87,8 1.773 100,0
Privado Com Fins Lucrativos 1.272 51,2 81 3,3 1.130 45,5 2.483 100,0
Leitos Existentes 70.277 14,1 112.947 22,6 315.970 63,3 499.194 100,0
Público 2.639 1,5 99.988 55,3 78.339 43,3 180.966 100,0
Privado Sem Fins Lucrativos 7.739 4,5 7.102 4,1 156.601 91,3 171.442 100,0
Privado Com Fins Lucrativos 59.899 40,8 5.857 4,0 81.030 55,2 146.786 100,0
Leitos SUS 92 0,0 110.519 31,1 244.618 68,9 355.229 100,0
Público 10 0,0 98.436 56,8 74.861 43,2 173.307 100,0
Privado Sem Fins Lucrativos 82 0,1 6.752 5,5 116.774 94,5 123.608 100,0
Privado Com Fins Lucrativos 0 0,0 5.331 9,1 52.983 90,9 58.314 100,0
Leitos Não SUS 70.185 48,8 2.428 1,7 71.352 49,6 143.965 100,0
Público 2.629 34,3 1.552 20,3 3.478 45,4 7.659 100,0
Privado Sem Fins Lucrativos 7.657 16,0 350 0,7 39.827 83,3 47.834 100,0
Privado Com Fins Lucrativos 59.899 67,7 526 0,6 28.047 31,7 88.472 100,0
Internações 2008-2010 2.844.519 7,3 8.599.358 22,1 27.463.940 70,6 38.907.817 100,0
SUS 0 0,0 8.599.358 26,3 24.120.116 73,7 32.719.474 100,0
Não SUS 2.844.519 46,0 0 0,0 3.343.824 54,0 6.188.343 100,0
Fonte: Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), Registro de Planos de Saúde (RPS), Sistema de Informações Hospitalares do SUS
(SIH) e Comunicação de Internação Hospitalar (CIH).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


O mix público-privado e os arranjos de financiamento hospitalar no Brasil 43

Os hospitais públicos majoritariamente responsáveis pela maior parte das interna-


atendiam exclusivamente ao SUS, mas 649 ções informadas do País (70,6%), tanto as
(22,3%) também informaram possuir convê- pagas pelo SUS (73,7%) como as pagas por
nio com planos de saúde e receber pagamento plano de saúde ou particular (54,0%). Os
particular. Os privados sem fins lucrativos eram hospitais ‘Somente SUS’ realizaram 22,1%
majoritariamente mistos, contabilizando 1.557 de todas as internações e 26,3% das inter-
hospitais (87,8%) com arranjo ‘SUS, planos e nações pelo SUS. Já os hospitais de arranjo
particular’. Já os privados com fins lucrati- ‘Planos e particular’ realizaram 7,3% das
vos dividiam-se em 1.272 (51,2%) com arranjo internações do País e 46,0% das interna-
‘Planos e particular’ e 1.130 (45,5%) com arranjo ções não SUS (tabela 1).
misto: ‘SUS, planos e particular’ (tabela 1). Quanto ao porte, 5.313 hospitais possu-
Dos 499.194 leitos existentes no País no íam até 79 leitos (74,2%), 393 deles possu-
período de análise, 315.970 (63,3%) estavam íam entre 80 e 99 leitos (5,5%), 959 entre
em hospitais de arranjo misto (SUS, planos 100 e 199 leitos (13,4%) e 496 tinham 200
e particular) e 112.947 (22,6%) em hospitais ou mais leitos (6,9%). O arranjo ‘Somente
de arranjo ‘Somente SUS’, resultando em SUS’ apresentou a maior proporção de
355.229 leitos disponíveis para o SUS (71,2% hospitais de menor porte, 86,9% destes
do total). Já os leitos não SUS disponíveis hospitais possuíam menos de 80 leitos. Os
nos hospitais de arranjo ‘Planos e particular’ hospitais de arranjo misto (SUS, planos e
somavam 70.277 (14,1% do total) (tabela 1). particular) apresentaram a maior propor-
No período de 2008 a 2010, os esta- ção (10,9%) de unidades de maior porte –
belecimentos de arranjo misto foram maior a 199 leitos (gráfico 1).

Gráfico 1. Hospitais segundo o número de leitos por arranjos de financiamento – Brasil, 2008 a 2010.

3.2   3.6  
100%  
10.9   6.9  
10.5   7.0  
90%   2.5   13.4  
6.1  
80%   19.3   5.5  
70%  
7.4  
60%  
50%  
40%  
30%  
20%  
10%  
0%  
Planos  e  par7cular   Somente  SUS   SUS,  planos  e   Total  
par7cular  

Até  79   80  a  99   100  a  199   200  ou  mais  

Fonte: Elaboração própria.


Nota: Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), Registro de Planos de Saúde (RPS).

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44 MACHADO, J. P.; MARTINS, M.; LEITE, I. C.

A maioria dos estabelecimentos com SUS’ estavam em maior número na Bahia,


arranjo ‘Planos e particular’ encontrava-se Pernambuco, Maranhão e São Paulo. Os
em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais hospitais com arranjo misto (SUS, planos e
e Goiás. Já aqueles com arranjo ‘Somente particular) localizavam-se majoritariamente

Tabela 2. Hospitais por arranjo de financiamento e disponibilidade de leitos SUS e não SUS segundo região e UF – Brasil, 2008 a 2010

Regiões e Estados Estabelecimentos por Arranjos Leitos Leitos por mil hab.
Total Planos e Somente SUS, Planos e Total SUS Não SUS (1) Total SUS (2) Não SUS (3)
Particular SUS Particular
Brasil 7.161 1.383 2.442 3.336 499.194 355.229 143.965 2,6 2,4 3,4
Região Norte 634 118 328 188 34.333 26.228 8.105 2,2 1,9 5,7
Rondônia 104 36 54 14 4.319 3.232 1.087 2,9 2,4 8,5
Acre 31 3 16 12 1.549 1.403 146 2,2 2,2 3,4
Amazonas 117 18 69 30 7.064 5.775 1.289 2,1 1,9 3,2
Roraima 17 2 6 9 846 795 51 2,0 2,0 2,0
Pará 279 43 131 105 16.658 11.675 4.983 2,2 1,7 7,3
Amapá 24 7 11 6 1.264 1.056 208 2,0 1,9 3,3
Tocantins 62 9 41 12 2.633 2.292 341 2,0 1,9 5,0
Região Nordeste 2.299 255 1.299 745 126.480 104.421 22.059 2,4 2,2 4,1
Maranhão 267 26 188 53 14.609 12.893 1.716 2,3 2,1 5,7
Piauí 210 15 113 82 8.427 7.321 1.106 2,7 2,5 5,5
Ceará 324 46 141 137 19.960 15.475 4.485 2,3 2,0 4,8
Rio Grande do Norte 200 9 136 55 8.030 6.745 1.285 2,6 2,5 2,8
Paraíba 203 17 111 75 10.773 9.060 1.713 2,9 2,6 5,3
Pernambuco 351 50 195 106 23.719 18.824 4.895 2,7 2,5 3,9
Alagoas 98 8 53 37 6.565 5.571 994 2,1 1,9 3,4
Sergipe 60 7 34 19 4.015 3.143 872 2,0 1,8 3,8
Bahia 586 77 328 181 30.382 25.389 4.993 2,1 1,9 3,6
Região Sudeste 2.319 687 443 1.189 217.390 139.733 77.657 2,7 2,6 2,8
Minas Gerais 666 102 102 462 47.116 34.463 12.653 2,4 2,2 2,9
Espírito Santo 122 32 23 67 8.710 6.202 2.508 2,5 2,5 2,4
Rio de Janeiro 567 250 142 175 54.047 32.605 21.442 3,4 3,1 4,0
São Paulo 964 303 176 485 107.517 66.463 41.054 2,6 2,7 2,5
Região Sul 1.110 130 124 856 80.896 57.686 23.210 2,9 2,7 3,9
Paraná 515 67 102 346 30.822 22.288 8.534 2,9 2,6 3,8
Santa Catarina 227 33 7 187 16.160 11.942 4.218 2,6 2,5 3,0
Rio Grande do Sul 368 30 15 323 33.914 23.456 10.458 3,1 2,7 4,5
Região Centro Oeste 799 193 248 358 40.095 27.161 12.934 2,9 2,3 6,3
Mato Grosso do Sul 128 30 30 68 6.220 4.199 2.021 2,6 2,1 5,5
Mato Grosso 170 38 45 87 7.744 5.445 2.299 2,6 2,0 7,0
Goiás 432 91 164 177 18.584 12.504 6.080 3,1 2,4 8,4
Distrito Federal 69 34 9 26 7.547 5.013 2.534 2,9 2,6 3,9
Fonte: Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), Sistema de Informações de Beneficiários de Planos de Saúde (SIB) e Datasus.
Notas: (1) Calculado a partir da diferença entre total de leitos existentes e leitos SUS;
(2) Calculado utilizando-se a diferença entre a população e o número de beneficiários de planos privados de saúde;
(3) Calculado utilizando-se o número de beneficiários de planos privados de saúde.

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O mix público-privado e os arranjos de financiamento hospitalar no Brasil 45

em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio variabilidade regional na oferta dos leitos
Grande do Sul. Nos estados das regiões Sul para pacientes do SUS em relação aos benefi-
e Sudeste, observou-se uma forte concen- ciários de planos de saúde: enquanto a razão
tração de hospitais conveniados a planos de de leitos entre usuários do SUS variou de 1,7
saúde (arranjos ‘Planos e particular’ e ‘SUS, (no Pará) a 3,1 (no Rio de Janeiro), entre bene-
planos e particular’) (tabela 2). ficiários de planos de saúde esta razão variou
A razão entre número de leitos e população de 2,0 (em Roraima) a 8,5 (em Rondônia). As
mostrou que havia 2,6 leitos para cada mil ha- maiores diferenças na oferta de leitos SUS e
bitantes no Brasil. O estado do Rio de Janeiro não SUS foram observadas nos estados de
apresentou a maior razão de leitos (3,4 por mil Mato Grosso, Pará, Goiás e Rondônia, onde os
habitantes), seguido por Goiás, Rio Grande leitos por beneficiários de planos superavam
do Sul, Distrito Federal, Rondônia, Paraná e em mais de três vezes os leitos por usuários
Paraíba, cujas razões foram maiores do que a do SUS. Vale ressaltar que, apenas nos estados
razão nacional. Por outro lado, os estados de de São Paulo e Espírito Santo, a disponibilida-
Tocantins, Amapá, Roraima e Sergipe apre- de de leitos SUS foi maior do que a de leitos
sentaram as menores razões de leitos, 2,0 por não SUS (tabela 2).
mil habitantes (tabela 2). A relação entre cobertura por planos pri-
A oferta de leitos foi maior para a popula- vados de saúde e oferta de leitos não SUS não
ção beneficiaria de planos de saúde (3,4 leitos apresentou proporcionalidade. Os estados
por mil beneficiários de planos privados da região Sudeste, além do Distrito Federal
de saúde) quando comparada à população e Santa Catarina, destacaram-se pela maior
usuária exclusivamente do SUS (2,4 leitos cobertura da população por planos, sem
por mil usuários). No entanto, houve menor maior disponibilidade de leitos (gráfico 2).

Gráfico 2. Leitos não SUS por mil beneficiários de planos de saúde e cobertura da população por planos de saúde - estados do Brasil, 2008 a 2010

Leitos não SUS/1.000 beneficiários Cobertura por planos (%)

45.0
40.0
35.0
30.0
25.0
20.0
15.0
10.0
5.0
0.0
Maranhão
Tocantins
Roraima
Acre

Rondônia
Paraíba
Alagoas

Bahia

Ceará
Mato Grosso
Sergipe
Amazonas
Goiás
Pernambuco
Rio Grande do Norte

Paraná

Minas Gerais
Santa Catarina

Espírito Santo
Rio de Janeiro
São Paulo
Mato Grosso do Sul
Pará

Amapá

Rio Grande do Sul


Piauí

Distrito Federal

Fonte: Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), Registro de Planos de Saúde (RPS) e Sistema de Informações de Beneficiários de
Planos de Saúde (SIB).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


46 MACHADO, J. P.; MARTINS, M.; LEITE, I. C.

Os 24.475 leitos de UTI existentes encon- UTI para a população usuária exclusiva do
travam-se localizados em apenas 1.205 hospi- SUS superava aquela para a população não
tais do País, dos quais a maioria (72,9%) tinha usuária exclusiva SUS. O gráfico 3 consolida
arranjo ‘SUS, planos e particular’. Dos hos- as informações sobre leitos de UTI por região
pitais com UTI, 46% (559 hospitais) encon- e arranjo de financiamento. A região Sudeste
travam-se na região Sudeste, principalmente apresentou as menores discrepâncias entre
no estado de São Paulo. Em todos os estados leitos de UTI disponíveis para as duas popu-
brasileiros, a disponibilidade de leitos de UTI lações. O Brasil alcançou, na média, o mínimo
foi maior para a população usuária de planos de leitos de UTI estimados pelo Ministério da
de saúde do que para aquela usuária exclu- Saúde (4% do total de leitos existentes). No
siva do SUS. A única exceção foi o estado de entanto, as regiões Norte e Nordeste não atin-
São Paulo, onde a disponibilidade de leitos de giram este patamar mínimo (gráfico 3).

Gráfico 3. Faixas mínima e máxima de leitos de UTI recomendada* e leitos de UTI existentes por 10 mil habitantes, segundo arranjos de financiamento
dos estabelecimentos - regiões do Brasil, 2008 a 2010

Mínimo (4% dos leitos) Máximo (10% dos leitos) Somente SUS

3.5

2.5

1.5

0.5

0
Brasil Região Norte Região Região Região Sul Região
Nordeste Sudeste Centro Oeste

Fonte: Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH), Comunicação de Informação
Hospitalar (CIH), Sistema de Informações de Beneficiários de Planos de Saúde (SIB), Registro de Planos de Saúde (RPS).
Nota: * Parâmetro recomendado pela Portaria ministerial nº. 1.101/2002.

Discussão da natureza jurídica, contribui para que


as fronteiras entre o público e o privado
A diversificação das fontes de financiamento no sistema de saúde brasileiro se tornem
adotadas por hospitais, independentemente cada vez menos demarcadas, com uma rede

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


O mix público-privado e os arranjos de financiamento hospitalar no Brasil 47

majoritariamente mista e partilhada. A su- SUS, assim como a proporção de hospitais


perposição de clientelas não é exclusiva ao de menor porte e menor complexidade no
sistema de saúde brasileiro, mas reforça a âmbito do SUS, indicam heterogeneidade
necessidade de articulação entre os segmen- ainda mais importante para casos de mais
tos público e privado (BASU ET AL., 2012; FERRI-DE- alta complexidade.
BARROS; GIBSON; HOWARD, 2012; SLOAN ET AL., 2001). A importância do setor privado na atenção
Mesmo com uma rede majoritariamente hospitalar e sua desarticulação com a dis-
mista, tem-se no Brasil uma segmentação tribuição do setor público observada neste
interna ao grupo de beneficiários de planos estudo corroboram a discussão colocada por
de saúde, em que parte deles acessa hospi- Baptista (2010) e Scheffer e Bahia (2013). Estes
tais exclusivamente privados, mas a maioria autores associam alguns desses problemas à
conta com os serviços de hospitais priva- não explicitação das prioridades estatais para
dos conveniados ao SUS, compartilhando a conformação do sistema de saúde no Brasil.
a mesma rede que atende os pacientes do Mais especificamente discutindo o papel do
SUS. Esse cenário configura três distintos setor suplementar de saúde, Ferri-de-Barros
perfis de acesso e utilização de serviços et al. (2012) apontam a falta de orientação polí-
hospitalares, ilustrados nos dados analisa- tica formal nesta área e desarticulação desta
dos: aqueles que usam exclusivamente os com aquelas definidas no âmbito do SUS, em
serviços do SUS, os que usam planos com sintonia com os achados que apontaram a
cobertura pelos mesmos serviços do SUS e instalação desordenada de leitos, não respei-
os que usam planos com redes de serviços tando a cobertura por planos de saúde ou a
exclusivamente privadas. instalação de leitos SUS.
Apesar da sobreposição das redes pública Nesse contexto, a natureza jurídica
e privada, configurada pela alta ocorrência dos estabelecimentos é insuficiente para
de hospitais com arranjo de financiamento indicar distinções de clientela SUS ou não
misto, observou-se diferença na disponi- SUS. Regionalmente, foi possível confir-
bilidade de leitos, especialmente daqueles mar a importância de hospitais de natu-
de UTI para beneficiários de planos priva- reza pública exclusivos para pacientes do
dos de saúde e usuários exclusivos do SUS, SUS, nas regiões Norte e Nordeste, e dos
com vantagem para a população não SUS. hospitais de natureza privada exclusivos
Esse achado exemplifica as iniquidades para pacientes não SUS, no Sudeste. Esses
que Santos (2011) apontou como derivadas achados coadunam-se às preocupações de
da duplicação de cobertura observada no Dain (2007) e de Santos e Gerschman (2004) a
Brasil, em que há beneficiários de planos respeito da determinação econômica e po-
que também utilizam o SUS. Além disso, lítica da organização de serviços entre pro-
observou-se simultaneamente menor varia- vedores públicos e privados. Nesse sentido,
bilidade na oferta de leitos disponíveis para a menor dependência do SUS da oferta de
o SUS em todo o País. Contudo, há impor- serviços hospitalares privados é menor no
tantes variações regionais na oferta de leitos Norte e Nordeste, onde ao menos metade
disponíveis à população não SUS, indicando dos leitos disponíveis estavam em hospi-
a falta de articulação com a cobertura por tais públicos. Tal fato indica que os inves-
planos, bem como a não complementarie- timentos governamentais em termos de
dade entre os segmentos público e privado, oferta hospitalar privilegiaram áreas geo-
o que seria o desejado em um sistema que gráficas com menor penetração de empre-
propõe alcançar cobertura universal (OECD, sas privadas de saúde, hospitais e também
2004). A disponibilidade e a distribuição dos planos de saúde, quadro esse que pode sus-
leitos de UTI para as populações SUS e não citar interpretações positivas ou negativas,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


48 MACHADO, J. P.; MARTINS, M.; LEITE, I. C.

mas sobretudo debates importantes entre desigualdades na oferta de leitos não SUS
diferentes atores. e a não complementariedade com a oferta
Nesse âmbito, é necessária a reflexão sobre de leitos SUS indicam que esta rede não se
questões centrais relacionadas com a regula- distribui com a missão principal de atender
ção do sistema de saúde, tais como: os meca- à demanda e que, além disso, não parece
nismos de pagamento; as melhores opções de haver coordenação entre os segmentos
parceria público-privada; os dispositivos e di- público e privado. Ainda que a maior con-
retrizes da regulação do Estado sobre o setor centração de leitos para internação esteja
e a capacidade de sustentação do modelo nas regiões mais ricas, onde também se
de prestação de serviços existente (LA FORGIA; encontra a maior parte dos beneficiários de
COUTTOLENE, 2009; VECINA-NETO; MALIK, 2007). planos de saúde, certamente a desigualda-
Destacam-se como principais limites de de distribuição dos serviços e a não com-
deste estudo a qualidade e completitude plementariedade dos segmentos público e
de informações das bases de dados. Isto privado afetam a oferta, que por sua vez
impede o conhecimento pleno do volume afeta o acesso aos serviços de saúde.
de internações realizadas no País, influen- Esforços devem ser feitos no sentido
ciando a construção de cenários úteis para de tornar o acesso à rede hospitalar mais
a gestão em saúde, bem como a problemati- equânime no País, independentemente da
zação relacionada com a atuação de alguns fonte de pagamento usada pelos pacientes.
hospitais nas duas frentes (SUS e não SUS) No âmbito do SUS, o aumento do número
e com a dualidade do sistema público-pri- de leitos e de leitos de UTI por habitantes
vado instalado no País. parece essencial para aumentar o acesso
Ainda assim, os achados deste estudo ao cuidado de maior complexidade. No
podem contribuir especialmente no âmbito privado, a regulação da implantação
âmbito da organização da rede prestadora de novos serviços e do acesso aos serviços
de serviços hospitalares brasileira. Além existentes via planos privados de saúde
da oferta dos recursos, também devem ser deve ser colocada em prática, a exemplo de
considerados os riscos ao acesso, a adequa- outros países. Diante da rede sobreposta e
ção e a efetividade dos cuidados prestados, heterogênea existente, esta regulação é fun-
bem como sua equidade. Dessa forma, é damental para evitar ‘leilões’ dos serviços
importante que a tomada de decisão seja existentes entre os beneficiários de planos
consciente do seu papel no delineamen- privados, com a venda de promessas de
to do sistema de saúde do País, podendo acesso ao cuidado de melhor qualidade que
contribuir para a legitimação do sistema possivelmente não se concretizarão.
universal proposto em nossa Constituição Além do alinhamento de esforços públicos
Federal, ou para afastar-se dele. e privados com as necessidades de serviços
hospitalares da população, o monitoramen-
to regular da qualidade destes serviços deve
Considerações finais fazer parte do arcabouço de informações
usadas no direcionamento de políticas e re-
A tendência contemporânea de busca por gulamentações na área da atenção hospitalar
novas formas de financiamento, com a no Brasil, como elementos vitais para apro-
adoção de múltiplas fontes de pagamen- ximar o planejamento e o cuidado em saúde
to, mostrou-se real para a rede hospitalar das discussões teóricas e científicas sobre a
brasileira, conformando um cenário ca- organização do sistema e sobre a qualidade
racterizado pela dupla porta de entrada: da assistência, em prol de ganhos para a so-
via SUS ou planos de saúde. Além disso, as ciedade e para o País. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


O mix público-privado e os arranjos de financiamento hospitalar no Brasil 49

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Recebido para publicação em abril de 2015
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Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
VICTORA, C. G. et al. Condições de saúde e inovações e Tecnológico (CNPq) - Processo nº 302936/2013-0
nas políticas de saúde no Brasil: o caminho a percorrer.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL , P. 39-50, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 51

O público e o privado no processo de


regionalização da saúde no Espírito Santo
The public and the private in the health regionalization in
Espírito Santo

Ana Paula Santana Coelho Almeida1, Luciana Dias de Lima2

RESUMO Objetivou-se analisar as relações público-privadas no processo de regionalização


do sistema de saúde no Espírito Santo. Trata-se de estudo comparado de duas regiões de
saúde com base em dados secundários e entrevistas semiestruturadas. Identificaram-se dois
padrões predominantes de relações público-privadas – interdependente e sem conflitos; e
múltiplos arranjos com conflitos – que influenciaram diferentes dimensões da regionalização.
Destacam-se como condicionantes dos padrões observados: a trajetória de conformação do
sistema, a estrutura de oferta de serviços, as formas de atuação da corporação médica, e das
organizações filantrópicas e o modo de condução da regionalização pelo Estado.

PALAVRAS-CHAVE Regionalização; Sistemas de saúde; Políticas, planejamento e administra-


ção em Saúde.

ABSTRACT This is intended to analyze the public-private relations in regionalization of the health
system in Espírito Santo. This is a comparative study of two health regions based on secondary
data and semi-structured interviews. Two standards of public-private relations were identified
– interdependent without conflicts; and multiple arrangements with conflicts – which influenced
different dimensions of regionalization. In stands out as conditioning of the patterns observed:
system forming trajectory, the service offering structure, medical corporation and philanthropic
organizations operation, and the way regionalization is conducted by the State.

KEYWORDS Regional health planning; Health systems; Health policy, planning and management.

1 Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes),
Departamento de Ciências
da Saúde – São Mateus
(ES), Brasil.
apscoelho@gmail.com

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
luciana@ensp.fiocruz.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005187 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015
51
52 ALMEIDA, A. P. S. C.; LIMA, L. D.

Introdução anos 2000, conformando-se, na maioria dos


estados, após sucessivos ciclos de descentra-
Estudos sobre as relações público-privadas lização induzidos e coordenados pela esfera
têm se tornado cada vez mais frequentes nas federal, sem a revisão adequada do papel dos
análises sobre a política de saúde no Brasil. governos estaduais (VIANA ET AL., 2008). Destaca-
Os trabalhos evidenciam a importância da se, ainda, a complexidade desse processo
atuação do Estado na trajetória da assistên- na federação brasileira, tendo em vista as
cia à saúde pública e privada no País (BAHIA, desigualdades e diversidades regionais sub-
2005; ACIOLE, 2006; MENICUCCI, 2007; PEREIRA, 2004); jacentes, a abrangência de atribuições e o
a crescente participação e influência do compartilhamento de funções governamen-
setor privado na gestão e prestação de ser- tais e a multiplicidade de agentes públicos e
viços no âmbito do Sistema Único de Saúde privados envolvidos na gestão e prestação da
(SUS) (SANTOS; UGÁ; PORTO, 2008; BAHIA, 2008) e as atenção à saúde (CAMPOS, 2006; FLEURY; OUVERNEY,
relações de dependência entre o segmento 2007; SANTOS; ANDRADE, 2011; LIMA ET AL., 2012)
público e a saúde suplementar (LIMA ET AL., O segundo argumento diz respeito à
2004; SANTOS; UGÁ; PORTO, 2008). escolha do Espírito Santo para o estudo do
Entretanto, ainda são escassas as pesqui- tema. O estado possui um território diversi-
sas direcionadas para a compreensão dessas ficado, apresentando regiões com distintas
relações em políticas de saúde específicas. configurações do sistema de saúde, possibili-
Dessa forma, o artigo pretende contribuir tando a comparação e a compreensão de di-
com esse debate, por meio da análise das ferentes aspectos que permeiam as relações
relações público-privadas no processo de re- público-privadas na regionalização.
gionalização do sistema de saúde no estado A pesquisa apresentada neste artigo foi
do Espírito Santo. orientada pelas seguintes questões: como se
A justificativa para o estudo se funda- dá a divisão de funções entre o público e o
menta em dois argumentos principais. O privado no sistema regional de saúde? Quais
primeiro está relacionado à concepção de os condicionantes das relações público-pri-
regionalização adotada na pesquisa, sua vadas e como estas se expressam na regiona-
importância e especificidade no caso bra- lização do SUS?
sileiro. Historicamente, a regionalização é O artigo apresenta a análise das relações
uma função atribuída ao Estado e envolve a público-privadas em diferentes dimensões
definição de recortes espaciais para fins de da regionalização no SUS – composição
planejamento e gestão territorial de políticas da oferta e produção de serviços de saúde;
públicas (RIBEIRO, 2004). Esse processo se ex- desenho regional e planejamento da rede
pressa na trajetória de conformação de siste- de serviços; coordenação e regulação do
mas universais de saúde em diversos países sistema regional de saúde – e identifica os
– tais como na Espanha, na Itália e no Canadá padrões de relacionamento observados no
– com o objetivo de ampliar o acesso e garan- território regional.
tir a integralidade da atenção (KUSCHNIR; CHORNY,
2010). Nesses casos, as regiões se apresentam
como base para o planejamento, organiza- Metodologia
ção e prestação de ações e serviços e como
espaços vinculados a autoridades sanitárias Trata-se de um estudo multicaso com foco
regionais responsáveis por sua condução po- em duas regiões denominadas como ‘mi-
lítico-administrativa no território. No Brasil, crorregiões de saúde’ no Plano Diretor de
a regionalização ganhou destaque na políti- Regionalização do estado do Espírito Santo
ca nacional de saúde somente na virada dos (ESPÍRITO SANTO, 2003): Cachoeiro de Itapemirim

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O público e o privado no processo de regionalização da saúde no Espírito Santo 53

e Vitória. A escolha dessas duas regiões se período se justifica, entre outros, pelo destaque
justifica por seu maior dinamismo econô- da regionalização nos documentos nacionais
mico, sua relevância e influência no sistema que norteiam a implementação do SUS, bem
estadual de saúde. Também apresentam situ- como pela condução da política estadual de
ações de maior preponderância na oferta de saúde, tais como: os Termos de Compromisso
serviços do SUS, embora com características de Gestão, Plano Diretor de Regionalização,
distintas de seus sistemas de saúde. Plano Estadual de Saúde.
Neste trabalho, adota-se o conceito de Para descrever a participação do público
regionalização como um processo técnico- e do privado no sistema regional de saúde,
-político, não restrito aos espaços regio- foram consolidadas informações obtidas
nais de negociação federativa na saúde (as por meio dos bancos de dados nacionais
Comissões Intergestores), que envolve di- – Sistema de Informação de Internação
ferentes atores sociais, públicos e privados, Hospitalar (SIH), Sistema de Informação
em relações de disputa, conflito, negociação Ambulatorial (SIA) e Cadastro Nacional
e cooperação. de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Os
Dois tipos de padrões de relacionamento dados de oferta e produção são relativos ao
público-privado nas regiões foram construídos ano de 2008. Os dados sobre os estabeleci-
a partir da análise conjunta de duas dimensões mentos de saúde compreendem o ano de
inter-relacionadas que se associam à configu- 2010. Consideraram-se como prestadores
ração das regiões de saúde: (1) técnico-política, públicos aqueles de natureza municipal, esta-
na qual a região se constitui como base para o dual ou federal e como prestadores privados
planejamento de uma rede de atenção à saúde, os filantrópicos e os privados com fins lucra-
incorporando uma série de critérios e atribu- tivos (não filantrópicos). Foram confeccio-
tos para delimitação, organização e adequação nados roteiros semiestruturados e realizadas
territorial do sistema de saúde; (2) político-ad- 5 entrevistas com atores-chave na condução
ministrativa, em que o espaço regional alberga da regionalização no estado – Secretário de
os atores públicos e privados e os processos de Estado de Saúde, Presidente do Conselho
condução, articulação e coordenação regional Estadual de Secretários Municipais de
do sistema de saúde. Saúde (Cosems), 2 responsáveis pela regio-
Na primeira dimensão, priorizou-se a nalização na Secretaria de Estado de Saúde
identificação da composição público-priva- (Sesa) e Secretário Executivo da Comissão
da da oferta e produção de serviços de saúde Intergestores Bipartite – e 13 entrevistas no
e os processos relacionados ao planejamento âmbito das regiões, que incluíram: gestores
e desenho regional da rede de serviços. Na municipais e representantes da Sesa; repre-
segunda, os principais atores (organizações, sentantes dos prestadores (públicos e pri-
grupos de pessoas) e mecanismos envolvi- vados) e da corporação médica. Esta fase foi
dos na coordenação e regulação regional do complementada, ainda, pela análise de docu-
sistema de saúde. mentos relativos à regionalização.
Utilizou-se o método comparado, tendo em Os resultados e a discussão apresentados
vista a identificação de particularidades e ele- neste artigo privilegiaram a interpretação
mentos comuns no que tange ao contexto e aos dos principais achados da pesquisa a partir
aspectos histórico-estruturais e político-ins- do cotejamento dessas diferentes fontes.
titucionais envolvidos na determinação dos O projeto de pesquisa foi aprovado pelo
padrões de relacionamento público-privado Comitê de Ética em Pesquisa, sob o proces-
nas realidades estudadas. O recorte temporal so CAAE: 0007.0.031.000-10, respeitando-se
da pesquisa abrangeu o contexto de implan- os Termos da Resolução CNS nº 196/96 do
tação do Pacto pela Saúde (2007 a 2010). Esse Conselho Nacional de Saúde.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


54 ALMEIDA, A. P. S. C.; LIMA, L. D.

Resultados e discussão equilibrada participação dos prestadores


filantrópicos e privados no segmento não
Composição público-privada na ofer- público (tabela 1). Na região de Cachoeiro
ta e produção de serviços de saúde de Itapemirim, os atendimentos hospitala-
res são ofertados predominantemente por
Na região de Cachoeiro de Itapemirim, três estabelecimentos filantrópicos que
93,3% dos leitos do SUS são ofertados por também são referência para o segmento
prestadores não públicos, e na região de suplementar do sistema, ao contrário da
Vitória, 35,7%. Os prestadores privados região de Vitória, onde existe uma diver-
não filantrópicos são os mais preponde- sidade maior de prestadores de serviços de
rantes na região de Cachoeiro, enquan- saúde, configurando maior complexidade
to na região de Vitória verifica-se uma na composição do sistema.

Tabela 1. Participação público-privado na oferta de leitos e produção de serviços nas regiões de Cachoeiro de Itapemirim e
Vitória. Espírito Santo, Brasil, 2008

Indicadores (%) Região de Região de


Cachoeiro de Vitória
Itapemirim
Leitos SUS ofertados por prestadores não públicos 93,3 35,7
Leitos SUS ofertados por prestadores filantrópicos 39,9 17,2
Leitos SUS ofertados por prestadores privados 53,5 18,6
Cobertura de planos privados 15,8 43,4
Participação de prestadores privados nas internações totais 94,5 56,0
Participação de prestadores privados nas internações de alta complexidade 99,9 46,1
Participação de prestadores privados nas internações de média complexidade 94,2 57,1
Participação de prestadores privados na produção ambulatorial total 6,3 10,8
Participação de prestadores privados na produção ambulatorial de média e alta 10,5 16,4
complexidade
Participação de prestadores privados na produção ambulatorial de alta complexidade 3,0 4,0
Participação de prestadores privados no SADT de média complexidade 67,6 37,2
Participação de prestadores privados no SADT de alta complexidade 82,2 56,7
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde; Sistema de Informação Hospitalar (SIH-SUS), 2008.

Em relação ao sistema suplementar, na região Diagnóstico e Terapêutico (SADT), nas duas


de Cachoeiro de Itapemirim, 15,8% da popula- regiões verifica-se predomínio do prestador
ção é beneficiária de planos privados de saúde, não público na alta complexidade, com maior
sendo a maior parte da população dependente participação do público na média complexida-
exclusivamente dos serviços ofertados pelo de, quando comparada a alta (tabela 1).
SUS, enquanto na região de Vitória evidencia-se
maior cobertura de planos, 43,4% (tabela 1). Desenho regional e planejamento da
Na produção ambulatorial, em ambas as rede de serviços de saúde
regiões o público é predominante. Quando
analisada por complexidade, mesmo na média A definição de regiões de saúde do estado, for-
e alta complexidade, o público apresenta par- malizada no Plano Diretor de Regionalização
ticipação mais expressiva, 89,5% na região de (PDR) (ESPÍRITO SANTO, 2003), baseou-se em cri-
Cachoeiro de Itapemirim e 83,6% na região térios, como: condições de acesso aos servi-
de Vitória. Na produção de Serviços de Apoio ços de saúde – distância entre as unidades e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


O público e o privado no processo de regionalização da saúde no Espírito Santo 55

existência de rodovias –, fluxos de saúde (utili- que envolve o credenciamento dos prestado-
zando o Sistema de Informações Hospitalares res aos municípios para posterior aprovação
e o Sistema de Autorização de Procedimentos da Sesa; regular o acesso às consultas espe-
de Alta Complexidade e Custo), oferta e com- cializadas ofertadas pelo Centro Regional de
plexidade de serviços de saúde, porte popu- Especialidades (CRE), sob sua gestão, além de
lacional, economia de escala e escopo com a desenvolver ações de Vigilância em Saúde em
identificação de polos assistenciais. âmbito regional. As atribuições relacionadas
Na região de Cachoeiro de Itapemirim, o ao planejamento regional, gestão de serviços
desenho regional da saúde está consolidado de saúde na rede própria (hospitais estaduais)
com suas referências legitimadas, não havendo e complementar e regulação de leitos ainda
conflito em relação ao perfil de atendimentos são desempenhadas pelo nível central da
entre os três principais prestadores privados e Sesa. Dessa forma, a SRS se constitui um im-
os serviços próprios do estado. Os fluxos assis- portante ator na organização e coordenação
tenciais se coadunam com o estabelecido histo- do sistema regional, ainda que com deficiên-
ricamente, sendo o município de Cachoeiro de cias no desempenho de suas funções.
Itapemirim referência na prestação de serviços. No processo de coordenação regional, é im-
Na região de Vitória, os fluxos assistenciais portante a identificação dos atores que partici-
não se restringem aos limites da região. A pam do processo de planejamento, organização,
região metropolitana, que concentra a maior e regulação do sistema de saúde em âmbito
parte dos serviços de saúde, é dividida em regional, que conformam o complexo regional
três regiões de saúde, existindo o fluxo entre da saúde (IBAÑEZ; VIANA; ELIAS, 2009) (quadro 1). Na
regiões, não previsto na Programação Pactuada região de Cachoeiro de Itapemirim, além da
e Integrada (PPI). SRS, são destacadas as organizações filantrópi-
Identificou-se preponderância da secretaria cas representadas pelos três principais hospi-
de estado da saúde no planejamento regional tais prestadores de serviços que são referências
e pouca participação das Superintendências em internações de alta complexidade tanto
Regionais de Saúde (SRS). para o SUS quanto para o segmento suplemen-
O planejamento do SUS nas regiões é in- tar do sistema de saúde. Os consórcios inter-
fluenciado pelo perfil dos prestadores existen- municipais de saúde também desempenham
tes no território. O credenciamento de novos importante função na região, abrangendo a
serviços é realizado de maneira pontual e desar- maioria dos municípios. Sua principal função é
ticulado de um processo de planejamento que a compra e prestação de serviços de saúde.
indique as necessidades da região. O processo Destaca-se também, por sua atuação regio-
se dá a partir da iniciativa dos prestadores, que nal no âmbito da saúde, a Unimed, principal
passa pela avaliação do Colegiado Intergestores operadora de planos da região, que possui
Bipartite Microrregional (CIB microrregional) como cooperados grande parte dos profis-
e SRS e aprovação do nível central da Sesa. sionais médicos da região. Sua atuação não
apenas se encontra na prestação de serviços
Coordenação e regulação do sistema médicos para seus clientes como também
regional possui interface com o SUS, o qual, quando ne-
cessário, compra serviços, como internação em
A coordenação do sistema regional da saúde Unidades de Tratamento Intensivo e Unidade
no Espírito Santo é executada pelas SRS, de Atendimento Móvel, da instituição privada.
cujas principais funções estão relacionadas à A operadora de planos ainda oferece facilida-
regulação do acesso, controle e avaliação dos des para os servidores de instituições públicas,
serviços ofertados pelos prestadores do SUS. como prefeituras, oferecendo descontos na
A SRS é responsável por realizar a negociação aquisição de planos de saúde.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


56 ALMEIDA, A. P. S. C.; LIMA, L. D.

Quadro 1. Complexo regional da saúde: principais organizações que participam do processo de planejamento, organização e regulação do sistema de
saúde nas regiões de Cachoeiro de Itapemirim e Vitória. Espírito Santo, Brasil, 2010

Região de
Organizações Caracterização Forma de atuação
Saúde

Hospital geral, de direito privado e Atua oferecendo serviços médico-hospitalares na região.


Hospital Evangélico caráter filantrópico em funcionamento Oferta 352 leitos, sendo 33 de UTI. Possui convênio com o
de Cachoeiro de desde 1986, quando já era credenciado SUS, planos privados e atendimento particular. É referência
Itapemirim ao Instituto Nacional de Previdência para a região sul do estado em oncologia, cardiologia,
Privada (INPS). maternidade de alto risco, nefrologia e transplante renal.

Hospital Geral, prestador filantrópico, Atua oferecendo serviços médico-hospitalares na região.


Santa Casa de
fundado em 1900, oferecendo Possui 129 leitos, sendo referência em urgência e emergência
Misericórdia de
inicialmente serviços médico- para trauma, ortopedia, neurocirurgia e cirurgia geral, para a
Cachoeiro de
hospitalares, como caridade, e região sul do estado. Conveniado ao SUS, planos privados,
Itapemirim
posteriormente credenciado ao SUS. atendimento particular e possui plano próprio.

Atua oferecendo serviços médico-hospitalares na região


Hospital pediátrico, de direito privado e
sendo referência em pediatria para a região sul. Possui
Hospital Infantil caráter filantrópico, em funcionamento
convênio com os principais planos privados. Em torno de
há 39 anos.
80% das internações são do SUS.

Superintendência Sua principal atuação no sistema regional é na regulação


Divisão administrativa regional da Sesa,
Regional de Saúde de leitos, consultas e exames e na interlocução entre Sesa e
constituída por gestores e técnicos
da Cachoeiro de prestadores; com função de planejamento incipiente, papel
estaduais.
Itapemirim fundamentalmente operacional.
Cachoeiro de
Itapemirim
Empresa de assistência médica Principal operadora de plano da região. Atende 31 municípios
Unimed sul capixaba constituída na forma de Cooperativa de do sul do estado, possuindo um hospital próprio de
Trabalho Médico, criada em 1989. referência regional.

Secretaria de Estado da Autoridade sanitária no âmbito Possui forte influência na região, tanto no planejamento
Saúde (Sesa) estadual. quanto na prestação de serviços.

Colegiado Intergestores Espaço de pactuação entre gestores Importante na região na aprovação na contratualização
Bipartite (CIB da região e Sesa para organização das de prestadores, porém ainda sem grande influência na
microrregional) ações e da rede de atenção à saúde. mediação direta entre o público e o privado.

Entes federativos que se articulam para Sua principal função na rede regional é a compra e
Consórcio
solucionar demandas específicas que prestação de serviços. 10 dos 13 municípios da região são
Intermunicipal de Saúde
não podem ser resolvidos isoladamente consorciados, possuindo correspondência com o desenho
Polo Sul Capixaba
por cada município. regional da saúde.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


O público e o privado no processo de regionalização da saúde no Espírito Santo 57

Quadro 1. (cont.)

Região de
Organizações Caracterização Forma de atuação
Saúde

Secretaria de Estado da Autoridade sanitária no âmbito Possui forte influência na região, tanto no planejamento
Saúde (Sesa) estadual. quanto na prestação de serviços.

Sua principal atuação é na regulação de consultas e


Superintendência Divisão administrativa regional da Sesa,
exames de média complexidade na região; com função
Regional de Saúde de constituída por gestores e técnicos
de planejamento incipiente, papel fundamentalmente
Vitória estaduais.
operacional.

Atuam oferecendo serviços médico-hospitalares.


Caracterizam-se como importantes
Responsáveis por 17% dos leitos ofertados ao SUS na região.
Hospitais filantrópicos prestadores de serviços ao SUS, assim
Possuem convênio com o SUS, planos privados, atendimento
como à saúde suplementar.
particular e plano próprio (no caso da Santa Casa).

Existem três escolas médicas (sendo Atuam na formação de profissionais de saúde -


duas privadas) e dois hospitais-escola, principalmente médicos e enfermeiros - na assistência
Escolas médicas e
um da Universidade Federal de Espírito médico-hospitalar e pesquisa na área de ciências da
hospitais de ensino
Santo (Hospital Universitário) e outro saúde, sendo referências em atendimento de média e
filantrópico (Santa Casa). principalmente de alta complexidade para o estado.

Instituições que prestam serviços ao Atuam principalmente na oferta de serviços de apoio


Estabelecimentos
Vitória SUS nos atendimentos de média e alta diagnóstico e terapêutico no SUS. Responsável por 18% dos
privados
complexidade. leitos SUS da região.

Empresa de assistência médica Principal operadora de plano da região, possuindo cerca de


Unimed Vitória constituída na forma de Cooperativa de 220 mil beneficiários (28,77% da população com plano nos
Trabalho Médico, fundada em 1979. municípios de abrangência). Possuindo um hospital próprio.

Instituição civil de direto privado,


constituída por membros de Atuam de maneira ampla e exercem forte influência na
Cooperativas
determinado grupo social que região, cerceando o poder de decisão das autoridades
profissionais médicas
objetivem atividades em benefício sanitárias no que se refere à contratação do trabalho médico.
comum.

A capital exerce influência por meio da sua atuação política,


Secretaria Municipal de Autoridade sanitária no município de
sendo representada pelo secretário de saúde, presidente do
Saúde de Vitória Vitória.
Cosems.

Colegiado Intergestores Espaço de pactuação entre gestores Importante na região na aprovação na contratualização
Bipartite (CIB da região e Sesa para organização das de prestadores, porém ainda sem grande influência na
microrregional) ações e da rede de atenção à saúde. mediação direta entre o público e o privado.

Fonte: Elaboração da pesquisa com base em fontes documentais e entrevistas. Adaptado de Viana et al. (2008).
Nota: As organizações foram listadas por ordem de importância no complexo regional da saúde nas regiões de saúde investigadas.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


58 ALMEIDA, A. P. S. C.; LIMA, L. D.

Na região de Vitória, as principais organi- médicos são cooperados, conferindo poder a


zações são: a Sesa, a SRS, os hospitais filan- essa classe no mercado, que exige remune-
trópicos, o Hospital Universitário, a Unimed, ração elevada, tecendo escolhas em relação
as cooperativas médicas e a Secretaria à atuação em hospitais e serviços, de acordo
Municipal de Saúde de Vitória. A Sesa se com seus interesses.
destaca pela grande influência no financia- Em ambas as regiões, existe o Colegiado
mento, planejamento regional, gestão e regu- Bipartite Microrregional, instituído como
lação de leitos, além da prestação de serviços instância privilegiada de negociação e pac-
por meio de dois importantes prestadores. tuação quanto aos aspectos operacionais
Já a SRS desempenha papel notável na re- do SUS em seu âmbito de atuação. Todavia,
gulação de consultas e exames de média e esse espaço ainda possui pouca atuação em
alta complexidade, desenvolvendo algumas relação ao planejamento regional e à media-
ações de planejamento, ainda de modo inci- ção entre as organizações governamentais e
piente. A Secretaria Municipal de Saúde de os atores privados do sistema de saúde.
Vitória, embora não possua a gestão da tota- No âmbito do SUS, os instrumentos nor-
lidade do sistema de saúde de seu território, malizados que intermedeiam a relação entre
possui influência no sistema regional rela- o Estado e os prestadores, incluindo os
cionada à sua atuação política. públicos e os privados, inserem-se em um
Os hospitais filantrópicos se destacam conjunto de ações denominadas controle,
pela importante participação na prestação regulação e avaliação assistencial. Por meio
de serviços para o SUS, e a Unimed por ser desses mecanismos, principalmente, é que
a principal operadora de planos na região, a se dá o relacionamento institucional entre
qual possui a maior cobertura entre as demais os prestadores privados vinculados ao SUS
regiões do estado. O Hospital Universitário e ao Estado – e por meio dos quais se pode
Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), vin- evidenciar a porosidade da fronteira entre o
culado à Universidade Federal do Espírito público e o privado, bem como os conflitos
Santo, além da sua atuação na formação de advindos dessa relação.
recursos humanos na área da saúde, também O principal instrumento de controle da
se apresenta como um importante presta- assistência nas regiões é o modo de paga-
dor de serviços na região. Entretanto, desde mento aos prestadores. Esse é feito mediante
a constituição do SUS, a instituição tem a comprovação do cumprimento da meta
encontrado dificuldade em se articular ao estipulada no processo de contratualização.
sistema de saúde na região. Entretanto, existem alguns fatores que di-
Os médicos são atores importantes no fun- ficultam esse processo, como o repasse de
cionamento do sistema de saúde por atuarem recursos federais diretamente ao prestador,
de maneira ampla, participando em diver- independentemente do alcance da meta, o
sas instâncias e, muitas vezes, trabalhando que prejudica o controle por parte do Estado.
simultaneamente para o setor público e o Esse mecanismo é mais frequente nos hos-
privado. Nesse contexto, merecem destaque pitais próprios, filantrópicos e no Hospital
as cooperativas de especialidades médicas. Universitário, correspondendo a cerca de
Essas são bem organizadas politicamente, 40% do valor total repassado. Assim, existe
atuam no estado há 15 anos e exercem influ- maior facilidade em regular e controlar a
ência na organização do sistema de saúde, assistência prestada pelos prestadores priva-
principalmente na região de Vitória. Sua dos do SUS.
atuação se dá por meio da terceirização de O controle e a avaliação são realizados
trabalho médico. Devido à escassez de pro- pelo nível central da Sesa, que, trimestral-
fissionais no estado, a grande maioria dos mente, faz o monitoramento das metas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


O público e o privado no processo de regionalização da saúde no Espírito Santo 59

pactuadas na contratualização. Contudo, os mecanismos de controle e de garantia


esse acompanhamento é baseado nas in- de acesso sofrem interferências de relações
formações apresentadas pelos prestadores, personalistas, sejam pelos gestores, técnicos
conferindo limitações ao processo. ou profissionais de saúde. Nas duas regiões,
Algumas fragilidades são destacadas, observa-se a grande influência dos profissio-
como o fato de que nem todos os leitos são nais médicos no processo de regulação. Essa
informados para a Central de Regulação. Por influência se dá na medida em que o proces-
vezes, a Central informa não haver vagas, mas so regulatório é dependente da informação
os hospitais se articulam paralelamente e voluntária por parte desses profissionais.
acabam por garantir a internação. As estraté- Dessa maneira, evidenciam-se diversas
gias de regulação e controle são dificultadas interseções entre o público e o privado no
pelo imbricamento entre agentes públicos SUS, que podem ocorrer por mecanismos
e privados e pela dupla porta de entrada formais entre os prestadores de serviços,
nos serviços privados do SUS, ou seja, a um os profissionais de saúde e o Estado, ou
mesmo prestador é possível se ter acesso via por vias não formais operadas principal-
SUS ou via planos privados de saúde. Esse mente por meio dos médicos. Em todas as
quadro dificulta o controle dos prestadores e situações, esses mecanismos encontram-se
a garantia de acesso aos usuários do sistema institucionalizados nas organizações e ser-
público. A dupla porta de entrada possibilita viços de saúde.
que o prestador do SUS informe uma produ-
ção superfaturada, muitas vezes extrapolan- Padrões de relacionamento público-
do o teto financeiro, o que, juntamente com privado nas regiões de saúde
a fragilidade do processo de monitoramento,
dificulta a garantia da aplicação do recurso Na análise dos casos estudados, o proces-
público adequada à oferta disponibilizada so de regionalização e o padrão de rela-
aos usuários do SUS. cionamento público-privado podem ser
Na região de Cachoeiro de Itapemirim, explicados pelas características histórico-
por existir poucos prestadores de saúde, -estruturais, pelo contexto socioeconômico
os serviços de referência são os mesmos e também pela interação existente entre os
para o SUS e para o segmento suplementar, atores públicos e privados constituintes do
principalmente em relação aos serviços de sistema regional (quadro 2). As caracterís-
internação, o que torna ainda mais porosa a ticas do sistema de saúde são consequên-
fronteira entre o público e privado. Devido cia da correlação de forças entre os atores
à dupla inserção dos profissionais nos seg- políticos envolvidos no processo de regio-
mentos públicos e privados do sistema de nalização: Estado, prestadores públicos e
saúde e às falhas do processo de regulação, privados, e a corporação médica.

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60 ALMEIDA, A. P. S. C.; LIMA, L. D.

Quadro 2. Relações público-privadas na regionalização da saúde nas regiões de Cachoeiro de Itapemirim e Vitória. Espírito Santo, Brasil, 2010

Dimensão Sub-dimensões Região de Cachoeiro de Itapemirim Região de Vitória


Desenho regional pouco legitimado, com necessidade
Desenho regional da saúde legitimado,
de alterações.
Planejamento e determinado pela rede de serviços de saúde.
Fluxo assistencial não implantado, havendo demandas
desenho regional Fluxos assistenciais adotados correspondem
espontâneas e encaminhamentos de acordo com a
e da rede de às relações culturais entre os municípios.
disponibilidade de vagas.
serviços Planejamento regional incipiente, baseado na
Planejamento regional incipiente, programação da
produção precedente.
oferta baseada na produção precedente.
Técnico-política Rede de serviços de saúde do SUS Rede assistencial com importante papel do Estado
predominantemente privada, com na prestação direta de serviços de saúde e atuação
Composição
dominância dos prestadores filantrópicos. importante do privado, especialmente o filantrópico, na
público-privada
Divisão público-privada relacionada complementação dos serviços. Divisão público-privada
da oferta e
à complexidade dos serviços, com relacionada ao tipo de procedimento e especialidade
produção de
predominância do privado nos serviços de prestada, com relevante participação do privado nas
serviços de saúde
internação e SADT, e do público na atenção internações de média e alta complexidade e SADT,
ambulatorial. principalmente de alta complexidade.
Baixo controle do Estado, relacionado à
precariedade das estruturas da SRS.
Intenso imbricamento entre segmento
público e privado, conferindo um mesmo
Maior controle do Estado e grande controle também
sistema para ambos e uma dependência
Coordenação por parte dos profissionais médicos.
mútua entre os setores.
Político-administrativa regional do Forte influência das cooperativas médicas.
Dupla atuação dos atores nos segmentos
sistema de saúde Dupla atuação dos atores nos segmentos públicos e
públicos e privados (complementar e
privados (complementar e suplementar).
suplementar).
Relação simbiótica entre o público e o
privado, com ausência de conflitos e
acomodação de interesses.
Instrumentos regulatórios ineficazes.
Central de regulação não informatizada, dependente da
Instrumentos regulatórios ineficazes.
notificação voluntária dos profissionais.
Central de regulação não informatizada,
Regulação do Forte influência dos médicos no processo de regulação
dependente da notificação voluntária dos
sistema regional dos leitos e consultas.
profissionais.
de saúde Relações mais complexas entre os atores públicos e
Influência moderada dos médicos no
privados, envolvendo conflitos de interesses e também
processo de regulação dos leitos e consultas.
iniciativas de cooperação na execução da política de
saúde.
Padrão
Relações
preponderante na Interdependente e sem conflitos Múltiplos arranjos com conflitos
público-privadas
região
Fonte: Elaboração da pesquisa com base em fontes documentais e entrevistas.

Na região de Cachoeiro de Itapemirim, Itapemirim e grande dependência dos mu-


os fatores histórico-estruturais, relacio- nicípios circunvizinhos.
nados ao desenvolvimento demográfico Embora se destaque no plano estadual,
e econômico da região, influenciam de a região apresenta baixo dinamismo eco-
maneira importante a constituição do nômico fruto de uma herança histórica,
sistema de saúde e o seu desenho regional, o que lhe confere escassez de serviços de
caracterizados pela concentração da oferta saúde, de profissionais e um fraco mercado
de serviços no município de Cachoeiro de de planos privados de saúde. O forte peso
do setor privado na oferta e prestação de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


O público e o privado no processo de regionalização da saúde no Espírito Santo 61

serviços ao SUS e o pequeno número de Santo, constituindo-se na região de saúde


prestadores públicos, somado à baixa co- que concentra os serviços de saúde de
bertura de planos privados, atribui uma maior complexidade do sistema estadual.
dependência mútua entre o público e o Devido ao importante dinamismo econô-
privado no sistema de saúde. Os presta- mico da capital, existe um grande número
dores privados necessitam do SUS para de estabelecimentos de saúde e um forte
aumentar a escala, enquanto o sistema mercado de planos privados de saúde que
público depende do privado para garantir é atraído pela diversidade de indústrias
a integralidade da atenção aos cidadãos. e empresas existentes em seu território,
Em que pese exista segmentação público- constituindo-se na região de maior cober-
-privada relativa à função de cada setor no tura de saúde suplementar do estado.
sistema de saúde regional, a atuação dos Na composição do sistema de saúde no
atores nos setores público e no privado, si- SUS, verifica-se o papel importante do
multaneamente, confere um forte imbrica- Estado na prestação direta de serviços de
mento entre os segmentos. saúde e também uma atuação importante
No que tange à coordenação regional do do privado, especialmente o filantrópico, na
sistema, verificam-se fragilidades relacio- complementação dos serviços. No tocante à
nadas à atuação da SRS, com instrumentos coordenação do sistema regional, verificou-
de planejamento e regulação pouco efica- -se uma atuação mais sistematizada da SRS,
zes. As deficiências no processo de plane- em que pese às limitações impostas pela
jamento regional e ausência de um plano indefinição de papéis em relação ao nível
de investimento efetivo favorecem a manu- central da Sesa e sucateamento de suas
tenção do perfil e a hegemonia dos presta- estruturas.
dores privados. As estratégias de regulação Em relação ao planejamento regional,
adotadas ainda são precárias, dificultando como limitações, ressaltam-se: o conflito
o controle do Estado e a garantia de acesso existente entre SRS e Sesa, que limitam a
aos usuários do SUS. autonomia da estrutura regional no proces-
Essas fragilidades, entretanto, não con- so decisório, e a atuação das cooperativas
ferem uma relação conflituosa entre os médicas que cerceiam as decisões do Estado
segmentos públicos e privados. Há uma na condução do sistema. O desenho regional
compreensão de que a participação do setor é pouco legitimado, ocasionando o direcio-
privado no SUS é positiva, oferecendo ser- namento aos serviços de saúde de acordo
viços de melhor qualidade e mecanismos com a disponibilidade de vagas e ainda por
de gestão mais eficientes. Assim, pode-se meio de uma demanda espontânea sem re-
inferir que essa conformação corresponde a gulação por parte da Sesa.
uma relação simbiótica. Esse quadro confere Os instrumentos adotados na regulação
à região de Cachoeiro de Itapemirim um são os mesmos identificados na região de
padrão de relacionamento público-privado Cachoeiro de Itapemirim, favorecendo o
do tipo ‘interdependente e sem conflitos’, encaminhamento espontâneo dos usuários
caracterizado pela complementação entre os aos serviços de saúde e ainda um contro-
setores, acomodação de interesses e relações le privado das vagas pelos profissionais de
pacíficas entre os atores. saúde, em especial os médicos. O principal
Na região de Vitória, as características incentivo que possibilita moldar o compor-
da regionalização e o padrão de relaciona- tamento dos prestadores é a aprovação do
mento público-privado guardam corres- pagamento mediante o alcance das metas,
pondência com o histórico de conformação que apresenta limitações relacionadas ao
e desenvolvimento do estado do Espírito repasse do recurso federal.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


62 ALMEIDA, A. P. S. C.; LIMA, L. D.

A CIB microrregional se constitui de gestão do sistema e exigindo ferramentas


maneira mais organizada, dirigida por gesto- mais eficazes de controle; e por meio dos
res da capital Vitória, entretanto, com baixa processos de credenciamento e compra de
capacidade de planejamento e poder decisó- serviços, que se desenvolvem orientados
rio, possuindo pouca atuação na mediação principalmente pelo interesse do privado em
entre o público e o privado no sistema regio- ofertar serviços para o SUS, com poucas ini-
nal de saúde. ciativas do Estado na execução de compras
No que tange à relação entre os atores concatenado ao processo de planejamento
públicos e privados, é um tipo de relaciona- regional. Verificaram-se, ainda, poucas es-
mento mais complexo, que envolve conflitos tratégias e incentivos financeiros à modifica-
de interesses embora existam iniciativas de ção do perfil dos prestadores de acordo com
cooperação na execução da política de saúde. a necessidade do coletivo. No processo de
Esse quadro atribui à região de saúde regulação, a influência do privado foi obser-
de Vitória um padrão de relacionamento vada principalmente no acesso às consultas
público-privado do tipo ‘múltiplos arranjos e internações que sofrem interferência dos
com conflitos’, caracterizado por múltiplas profissionais médicos.
relações entre os setores públicos e priva- Conforme o exposto, nas regiões estuda-
dos, conflito de interesses e maior comple- das não existe espaços formais de decisão
xidade nas relações-público privadas no que façam a mediação entre o Estado e os
sistema regional. prestadores privados de saúde e tampouco
um espaço de discussão/pactuação entre o
Estado e os demais atores envolvidos na po-
Conclusão lítica de saúde dessas regiões. Não se pode
deixar de considerar a existência das forças
Por meio do estudo das duas regiões, foi pos- e dos interesses envolvidos no complexo re-
sível verificar a importância do setor privado gional da saúde. É importante atentar para o
no SUS, as formas de relacionamento entre fato de que cada vez mais se presencia uma
os segmentos público e privado do sistema, regulação híbrida do território, condicionada
bem como sua influência em diferentes di- por uma variedade de agentes. Desse modo,
mensões da regionalização da saúde. as políticas de saúde devem levar em conta
Na dimensão técnico-política, observou- a distinta natureza dos agentes do complexo
-se a influência do setor privado na deter- regional da saúde e suas lógicas de atuação
minação do desenho regional da saúde na no território (VIANA ET AL., 2008).
medida em que os principais critérios adota- Nesse sentido, é preciso repensar a repre-
dos foram a capacidade instalada e a produ- sentatividade do mix público-privado nas
ção precedente, e que grande parte do parque instâncias de caráter público. Tendo em vista
hospitalar do SUS no estado é de proprieda- a importante participação dos prestadores
de privada. No processo de planejamento e na rede e a dupla atuação dos profissionais
programação, identificou-se que a atuação nos segmentos público e privado, a influên-
dos gestores é fortemente condicionada por cia dessas relações no sistema regional pode
tal característica da oferta, que, somada aos se dar por vias informais. Há necessidade
precários mecanismos de regulação, acaba de se instituir mecanismos mais eficazes de
por dificultar o controle do Estado. regulação do privado, incluindo a discussão
Na dimensão político-administrativa, e formalização dos acordos estabelecidos em
identificou-se que a atuação do privado se dá instâncias de pactuação federativa e gestão
por meio da ampla participação dos presta- colegiada no SUS. s
dores no SUS, conferindo complexidade na

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


O público e o privado no processo de regionalização da saúde no Espírito Santo 63

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Versão final em agosto de 2015
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dinâmica e condicionantes da implantação do Pacto Científico e Tecnológico (CNPq)

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 51-63, DEZ 2015


64 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

O modelo de ambiguidade-conflito como


ferramenta de análise dos desafios da
Assistência Farmacêutica em João Pessoa (PB)
The ambiguity-conflict model as tool for the analysis of
Pharmaceutical Services challenges in João Pessoa, Paraíba, Brazil

Suelma de Fátima Bruns1, Egléubia Andrade de Oliveira2, Maria Auxiliadora Oliveira3, Vera Lucia Luiza4

RESUMO O objetivo deste artigo é o de analisar os níveis de ambiguidade e conflito em relação


aos objetivos e recursos (meios) necessários à implementação da Assistência Farmacêutica
no município de João Pessoa (PB). Os dados foram coletados por meio de entrevistas semies-
truturadas e sistematizados por meio de análise de conteúdo. Para análise dos resultados,
utilizou-se como ferramenta o modelo de ambiguidade-conflito de Richard Matland. Os re-
sultados indicam baixos níveis de ambiguidade sobre os objetivos da política, porém conside-
rável nível de conflito em relação aos meios. Os achados permitiram detectar características
de ‘Implementação Administrativa’, com atributos da tipologia ‘Política’.

1 UniversidadeFederal da PALAVRAS-CHAVE Assistência Farmacêutica; Políticas públicas; Avaliação em saúde.


Paraíba (UFPB), Centro
de Ciências da Saúde,
Departamento de Ciências ABSTRACT This paper aims to analyze the levels of ambiguity and conflict related to objecti-
Farmacêuticas – João ves and resources (means) required for the implementation of Pharmaceutical Services in the
Pessoa (PB), Brasil.
suelmadefatima@yahoo. city of João Pessoa-PB, Brazil. Data were collected by means of semi-structured interviews and
com.br systematized as for content analysis. Data analysis followed the ambiguity-conflict model of
2 Universidade Federal Richard Matland. A low ambiguity level was found regarding pharmaceutical policy objectives,
do Rio de Janeiro (UFRJ), but showing a considerable level of conflict in relation to the means. The findings contained some
Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva (Iesc) – Rio characteristics of ‘administrative implementation’ and attributes of ‘Politics’ type.
de Janeiro (RJ), Brasil
 biaensp@gmail.com
KEYWORDS Pharmaceutical Services; Public policies; Health evaluation.
3 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Política
de Medicamentos e
Assistência Farmacêutica
(NAF) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
dora@ensp.fiocruz.br

4 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Política
de Medicamentos e
Assistência Farmacêutica
(NAF) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
vera@ensp.fiocruz.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 64-75, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005311
64
O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em 65
João Pessoa (PB)

Introdução No Brasil, dados do Sistema Nacional


de Informações Tóxico-Farmacológicas
A Assistência Farmacêutica (AF) é um tema (Sintox), apontam que os medicamentos
recorrente na agenda de governo no Brasil e ocupam o primeiro lugar entre os agentes
no mundo, tendo se tornado cada vez mais causadores de intoxicações em seres
relevante nas discussões da área da saúde. humanos e o segundo lugar nos registros de
Sua importância encontra-se ancorada na mortes por intoxicação (BRASIL, 2005).
essencialidade do medicamento para me- Estudo de avaliação da AF no Brasil de-
lhoria da saúde e qualidade de vida da po- monstra problemas na gestão, dificuldades
pulação, na promoção do acesso e do uso de acesso e irracionalidade do uso dos me-
racional de medicamentos e na composição dicamentos, o que se reflete em prejuízo à
dos gastos com saúde, que oneram sobrema- saúde do cidadão, ao seu bolso e ao erário
neira os orçamentos familiares e governa- público (OPAS, 2005).
mentais. Assim, trata-se de uma política de O município de João Pessoa é a capital
forte impacto para a sociedade e que impõe da Paraíba, um dos estados da região
grandes desafios ao governo. Nordeste. Segundo dados do IBGE (2010),
Importantes alcances recentes podem essa Região apresentou os salários mais
ser exemplificados pelo aumento tanto baixos do Brasil, 2,2 salários mínimos,
dos recursos financeiros transferidos pela correspondentes a 71,6% do salário médio
União para aquisição de medicamentos mensal nacional, e o estado da Paraíba,
para Estados, Distrito Federal e Municípios, com 1,9 salários mínimos, posicionado
como dos recursos próprios destes entes entre os três salários mais baixos do nor-
federados alocados no financiamento de deste. Portanto, grande parte da popula-
medicamentos. Vieira e Zucchi (2013), uti- ção tem reduzido poder aquisitivo, com
lizando os dados do Sistema Integrado de consequente reflexo na baixa capacidade
Gestão de Aquisições (Siga) Brasil, encon- de aquisição de medicamentos fora do
traram aumento de 5,5 para 8,9 bilhões de sistema público de saúde.
reais no período 2005 a 2009 dos recursos Diante desse panorama, identificar as
liquidados pelas três esferas de governo, barreiras que se interpõem entre a dispo-
enquanto Aurea et al. (2011), a partir de dados nibilização dos meios – recursos humanos,
do Sistema Integrado de Administração financeiros e estruturais –, alcançar os ob-
de Serviços Gerais (Siasg), mostraram um jetivos para cumprimento da missão social
crescimento de 6,4 para 7,3 bilhões de reais torna-se condição fundamental para superar
entre 2005 e 2008. os desafios na institucionalização da AF.
Em que pese o aumento dos gastos pú- Nesse sentido, este artigo tem como ob-
blicos com medicamento, estes ainda re- jetivo analisar os níveis de ambiguidade e
presentam carga financeira importante nas conflito em relação aos objetivos e recursos
despesas familiares em saúde. Os resulta- (meios) necessários à obtenção dos efeitos
dos da conta-satélite de saúde indicam que esperados com a implementação das ações
as famílias financiaram 90% do consumo da AF no município de João Pessoa-PB.
final de medicamentos, enquanto o sistema
público participou com cerca de 10% em
2007 (IBGE, 2009). Referencial teórico e
Segundo a Organização Mundial da metodológico
Saúde (OMS), 50% de todos os medicamen-
tos prescritos, dispensados ou vendidos O processo de implementação de uma po-
são usados inadequadamente (WHO, 2002). lítica é caracterizado por disputas entre

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 64-75, DEZ 2015


66 BRUNS, S. F.; OLIVEIRA, E. A.; OLIVEIRA, M. A.; LUIZA, V. L.

diferentes pontos de vista e permeado pelo implementação. Carvalho (2006), tomando


alto grau de incerteza que envolve a tomada por base o modelo de Matland (1995), desen-
de decisão, para além da execução de ativi- volveu quadro explicativo relacionando os
dades planejadas no âmbito dos programas, conceitos e o tipo de implementação.
políticas ou intervenções. Dessa maneira, os Numa apresentação abreviada, os quatro
interesses envolvidos e os efeitos resultan- tipos de implementação estão dispostos no
tes da intervenção dos atores responsáveis quadro 1, quais sejam: (1) Implementação
pela execução das rotinas – nem sempre ali- Administrativa – política com baixos níveis
nhados às proposições iniciais – redundam de ambiguidade e de conflito, que se carac-
em situações de conflito que irão requerer teriza por centrar o foco nos recursos; tem
estratégias de persuasão e a construção de conhecimento dos objetivos e meios; baixo
consensos, mesmo que provisórios (SABATIER; uso de coerção; ações em ambiente estável;
JENKINS-SMITH, 1993; CARVALHO, 2006). pouca ou nenhuma influência externa; fluxo
O modelo de ambiguidade-conflito de orientação ordenado hierarquicamente;
(ambiguity-conflict model) proposto por falhas vistas como problemas técnicos, inade-
Matland (1995) para a análise de imple- quação dos recursos, má compreensão, escas-
mentação tem a intenção de superar con- sez de tempo, coordenação inadequada; (2)
tradições entre os modelos de análise Implementação Política – política com baixo
top-down (focalizam a implementação nível de ambiguidade e alto nível de conflito,
como decorrência do processo de decisão) que se caracteriza pela ideia de que ‘os resul-
e botton up (privilegiam a multiplicidade tados da implementação são decididos pelo
de atores e sua interação no processo de poder’; disputas sobre os meios de implemen-
implementação). Assim, incorpora em sua tação; forte influência do contexto político;
análise a visão dos formuladores localiza- uso de coerção; boicote e recusa em participar
dos nas esferas centrais de decisão, bem – pode ocorrer no nível local; implementador
como o papel dos principais interessados nem sempre mantém contato direto com
(stakeholders) na política ou programa e a hierarquia superior; (3) Implementação
seus implementadores. Ainda, permite o Experimental – política com alto nível de am-
cotejamento dessas abordagens voltadas biguidade e baixo nível de conflito; foco nos
ora à apreensão de aspectos das esferas recursos contextuais; objetivos e meios não
macro-institucionais que influenciam o são claros ou objetivos claros e meios não;
desenvolvimento de políticas e programas aprendizagem como meta, mas não obrigato-
ora sinalizando a importância de fatores riamente; resultado depende dos atores e de
micro-institucionais em seu desenho e im- recursos do ambiente da micro implementa-
plementação (CARVALHO, 2006). ção; mais aberta a influências locais; há casos
Para Matland (1995), o conceito de am- em que as preferências são problemáticas e
biguidade – situação que ocorre quando a tecnologia é incerta; e (4) Implementação
existem muitas alternativas ou possibilida- Simbólica – política com alto nível de ambi-
des para pensar as mesmas circunstâncias guidade e alto nível de conflito; foco na força
ou fenômenos – materializa-se através de da coalizão; superação do conflito (coerção
duas dimensões: a ‘ambiguidade nos objeti- ou barganha); ambiguidade dificulta estru-
vos’ (ambiguity of goals), que pode contribuir turação e monitoramento local; ambiguidade
para o grau de incertezas, e a ‘ambiguidade pode levar a resultados diferentes, em locais
nos meios’ (ambiguity of means), relacionada diferentes; conflito provoca decisão local de
aos recursos necessários (humanos, finan- natureza política; conflito pode ser positivo,
ceiros e estruturais), concebidos de forma para busca de solução; em geral, pouco efeito,
ampla, a serem utilizados nos processos de mas muita exposição.

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O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em 67
João Pessoa (PB)

Quadro 1. Conceitos e tipos de implementação do modelo ambiguidade-conflito

Conceitos Dimensões Tipos de Implementação


Administrativa Política Experimental Simbólica

De objetivos
Ambiguidade Baixa Baixa Alta Alta
De meios

Interdependência entre atores


Conflito Baixo Alto Baixo Alto
Incompatibilidade de objetivos / meios

Fonte: Modelo de Matland (1995) adaptado de Carvalho (2006).

Materiais e método ciclo dessa política; à percepção dos atores


quanto ao tipo de AF prestada à população; e
Os dados utilizados neste estudo são prove- desafios e dificuldades percebidas.
nientes de pesquisa mais ampla (BRUNS, 2013), na Aplicou-se o método de análise de con-
qual a abordagem aqui apresentada foi triangu- teúdo (BARDIN, 2011), que abrangeu as etapas
lada com indicadores obtidos em uma amostra de pré-análise, exploração das transcrições,
de 32 Unidades de Saúde da Família (USF). tratamento e interpretação dos resultados.
Neste artigo, analisam-se os dados corres- Utilizou-se a modalidade temática, por meio
pondentes às 22 entrevistas, realizadas entre de categorização, que
fevereiro e maio de 2012 por meio da aplicação
de roteiros semiestruturados. Entrevistaram- consiste em descobrir os ‘núcleos de sentido’
se quatro gestores da secretaria de saúde do que compõem a comunicação e cuja presença
Município, oito farmacêuticos, cinco médicos e frequência de aparição podem significar al-
e cinco entregadores de medicamentos, sele- guma coisa para o objeto analítico escolhido.
cionados de forma intencional e não probabi- (BARDIN, 2011, P. 35).
lística. Esse processo de seleção objetivou que
a amostra fosse constituída por profissionais Definiram-se as seguintes categorias: 1.
de diferentes níveis de atuação diretamente Sobre a clareza dos objetivos da AF; 2. Meios
envolvidos com a AF básica do Município, de para consecução da implementação da AF
modo a captar diversas perspectivas, tanto municipal (recursos humanos, financeiros
de atores localizados nas esferas centrais de e estruturais); 3. Interdependência entre os
decisão como nas de implementação. Dado atores; 4. (In)compatibilidade de objetivos e
que a dispensação de medicamentos é consi- meios. As variáveis centrais – ambiguidade
derada uma atividade privativa do farmacêu- e conflito, previstas no modelo, nortearam a
tico, no Brasil, os demais profissionais que a análise das categorias temáticas, tendo como
realizam são designados como ‘entregadores foco os desafios e as dificuldades relatadas
de medicamentos’. De maneira a localizar o pelos entrevistados para implementação
tipo de fala, porém preservando o compro- da AF no município de João Pessoa (PB),
misso de sigilo, as falas estão identificadas por como podem ser observadas no (quadro 2).
códigos, da seguinte forma: gestor (G1 ao G4); A identificação das dimensões e compo-
farmacêutico atuando no cuidado (F1 a F8); nentes utilizados na análise dos níveis de
médicos (M1 a M5); e entregadores de medi- ambiguidade-conflito presentes na imple-
camentos (E1 a E5). mentação foi adaptada de Carvalho (2006). A
O roteiro da entrevista continha questões organização do texto buscou atender ao pro-
referentes ao grau/nível de implementação tocolo COREQ de pesquisa qualitativa (TONG;
da política de AF; à lógica e à logística do SAINSBURY; CRAIG, 2007).

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68 BRUNS, S. F.; OLIVEIRA, E. A.; OLIVEIRA, M. A.; LUIZA, V. L.

Quadro 2. Dimensões, componentes e atividades propostas para a análise dos desafios para implementação da
Assistência Farmacêutica no município de João Pessoa (PB)

Conceitos Dimensões Componentes


Ambiguidade Metas Clareza quanto aos objetivos da AF pelos atores
Meios Influência de fatores locais (percepção de importância da AF, percepção
de suficiência de recursos humanos, estruturais e financeiros)
Conflito Relação entre os atores Existência de conflitos e mecanismos de superação
Incompatibilidade de objetivos Não concordância quanto aos objetivos/meios
Fonte: Elaboração própria.

Todos os entrevistados assinaram Termo medicamento certo, na hora certa, na dose certa
de Consentimento Livre e Esclarecido e que ele faça o uso correto, completo, que ele
(TCLE), autorizando a gravação dos de- comece e termine o tratamento, isso pra gente é
poimentos concedidos. Os entrevistados muito importante (G1).
são referidos por códigos de letras. O
projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética “Ações para desenvolver o uso racional de
em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde medicamentos [...] material de orientação e
Pública Sergio Arouca sob Protocolo de educação continuada direcionada aos usuá-
Pesquisa CEP/Ensp – Nº 265/11 e CAAE: rios ou profissionais, não tem” (F4).
0282.0.031.000-11. Outros profissionais entrevistados, embora
compreendessem os objetivos finalísticos da
AF relacionados ao acesso a medicamentos,
Resultados não demonstraram clareza quanto ao uso ra-
cional. “Ações para desenvolver o uso racional
A partir dos depoimentos concedidos, obser- do medicamento? A gente prefere a quantidade
varam-se temas comuns no corpus do texto, do medicamento não é, [...] eu nunca coloco a
o que permitiu elencar as quatro categorias mais [...] eu dou o tratamento” (M1). “Eu vejo
emergentes e possibilitou o reagrupamento o papel da AF como política de saúde muito
das falas em torno dessas categorias, identi- importante para toda a comunidade, [...] prin-
ficando os desafios da AF municipal na com- cipalmente na questão do acesso” (E1).
preensão dos entrevistados.
Meios para consecução da
Sobre a clareza dos objetivos da implementação da Assistência
Assistência Farmacêutica Farmacêutica municipal (recursos
humanos, financeiros e estruturais)
Nessa categoria, observou-se se os entrevis-
tados tinham clareza quanto aos objetivos Para que uma política pública seja imple-
primordiais da AF, com destaque à garantia mentada com êxito, é fundamental um ade-
do acesso aos medicamentos pela população quado planejamento dos recursos (humanos,
e ao seu uso racional. financeiros e estruturais) necessários. Os
Os gestores e os farmacêuticos mostraram entrevistados enfatizaram a necessidade
confluência de opinião. premente do farmacêutico nas farmácias das
USF, bem como problemas relacionados a
[...] a gente quer abastecer a todos e raciona- aspectos quantitativos e qualitativos dos re-
lizar o uso para que os pacientes tenham um cursos humanos da AF.

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O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em 69
João Pessoa (PB)

É fundamental a presença do farmacêutico na infiltração, mal estruturada, a farmácia dividindo


questão do controle na farmácia, na dispensação espaço com outras coisas. (F8).
e na orientação, como também ele estar inserido
na equipe para solucionar determinados casos e Onde está o grande nó é nos serviços de farmá-
melhorar os serviços prestados a população. (F8). cia, [...] que não têm uma estrutura adequada;
é totalmente precária [...] e isso desestimula,
“[...] vejo como obstáculo não ter um farma- porque não tem um local ideal, influencia no
cêutico, [...] a gente precisa do farmacêutico junto, processo de trabalho [...]. Agora nas unidades
a gente precisa de orientação, o médico não é o integradas são outra história, já melhora mui-
dono da verdade” (M2). “[...] a gente tem confli- to. (F7).
tos pela falta de conhecimento dos profissionais
do que venha a ser uma Política de AF, a maioria
não conhece como a política acontece [...]” (G2). Interdependência entre os atores
Os entrevistados relataram que há disponi-
bilidade de recursos financeiros para a aqui- Na opinião dos entrevistados, as principais
sição dos medicamentos padronizados pelo barreiras ao desenvolvimento da AF envol-
Município. Entretanto, demonstraram preo- vem o estabelecimento de consenso entre
cupação com o orçamento previsto e destina- gestores e implementadores acerca das prio-
do a essas aquisições, em virtude da crescente ridades a serem adotadas para a melhoria
demanda judicial a ser atendida. Foi consenso dos serviços, bem como a integração dos
entre eles a necessidade de investimentos na atores e ações envolvidas para implementa-
infraestrutura e contratação de farmacêuticos ção de tal política.
para as USF. “O Financeiro para medicamentos
eu acho satisfatório” (M4). O conflito é a gente chegar num consenso de
prioridade, [...] conseguirmos falar a mesma
[...] muitas vezes nós temos que fazer comple- linguagem, interagir um pouco mais, principal-
mentação com os recursos próprios para a aqui- mente com os prescritores, [...] e o povo pre-
sição de insumos e de materiais relativos à AF, cisa dessa interação entre os profissionais de
inclusive para adquirirmos medicamentos não pa- saúde para que haja resolutividade na atenção
dronizados e para atender às ações judiciais, que, prestada. (G1).
por vezes, desestruturam completamente o nosso
planejamento orçamentário, teto financeiro. (G2). [...] precisa sensibilizar os atores, não adianta
ficarem só os farmacêuticos discutindo, pre-
“[...] são necessários mais investimentos cisa da integração do médico, do enfermeiro,
para contratação de farmacêuticos e estrutu- do funcionário, da gestão, do usuário, para
ração dos serviços [...]” (F3). estarmos juntos, entendendo um pouco mais
Quanto aos recursos estruturais, os entrevis- da Política. (G3).
tados relataram inadequações na grande maioria
das farmácias das USF e referem como princi- O nosso conflito é fazer o usuário entender a
pais problemas o espaço físico insuficiente e ina- prescrição: muitas vezes passamos uma medi-
dequado; a falta de refrigeração; e infiltrações, cação para sete dias e no 4º dia o cidadão para
que influenciam na conservação e qualidade dos de tomar. A superação disso ai só vai acontecer
medicamentos. Contudo, elogiaram as novas com a mão de obra especializada (farmacêuti-
USF integradas, recém-construídas. co), com todos trabalhando juntos. (M3).

[...] têm unidades que ainda funcionam em pré- Os entrevistados problematizaram a ideia
dios alugados numa situação horrível, com muita de que uma abordagem interdisciplinar

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70 BRUNS, S. F.; OLIVEIRA, E. A.; OLIVEIRA, M. A.; LUIZA, V. L.

potencializa novas propostas de ação e inter- consegue fazer um planejamento, uma progra-
venção, bem como amplia o poder de articu- mação, não se consegue fazer nada disso e aí as
lação com as esferas decisórias, concorrendo faltas acontecem. (G1).
para a melhoria dos programas.
“[...] muitos agentes administrativos têm difi-
Dificuldades para articular as ações, nós temos culdade de construir um mapa de medicamentos;
desde o processo de trabalho da equipe de saúde eu não sei ao certo o consumo daquela unidade,
da família, [...] há muitos profissionais que não se sempre fica faltando ou fica sobrando” (F8).
comprometem e acabam fazendo de acordo com Quanto à aquisição de medicamentos, os en-
seu próprio interesse e isso é muito frágil para o trevistados foram unânimes em afirmar que a
processo político. Isso seria a micro política, e é burocracia envolvida nos processos licitatórios
nisso que nós temos que investir. (G2). traz muitas dificuldades, principalmente pela
morosidade dos processos, problemas com a
Em virtude da complexidade que envolve eleição de prioridades e com o cumprimen-
a AF, é fundamental que o planejamento e a to dos prazos. O atendimento a demandas de
execução de todas as etapas que compõem medicamentos não padronizados e o grande
o ciclo da AF (Seleção, Programação, volume de mandados judiciais, o que mobiliza
Aquisição, Armazenamento, Distribuição, tempo dos profissionais num contingente já
Controle de Estoque, Dispensação e extremamente reduzido, foi ressaltado como
Orientação Farmacêutica) sejam realizadas um foco de desgaste permanente.
de forma sistemática e integrada. Sobre esses
aspectos do ciclo da AF, os entrevistados re- [...] os processos licitatórios são extremamente
forçam importantes desafios. lentos [...] um pregão para poder acontecer tem
que ser fechado em três meses [...] mas não, nós
A AF é uma área ainda muito fragmentada; a não temos prazos, não temos limites, passa um
gente precisa ter o farmacêutico presente em to- ano ou mais [...], e ai foge completamente de
das as unidades de saúde e em todas as etapas nossa governabilidade. (G1).
do ciclo da AF, o que hoje em dia ainda não acon-
tece [...]. (F3). O entrave maior são as licitações, porque, às
vezes, o recurso tem, mas por alguma ordem
[...] até hoje, nós não temos uma Remume jurídica, administrativa ou burocrática acaba
[Relação Municipal de Medicamentos] e nem emperrando e o medicamento não chega ao
uma CFT [Comissão de Farmácia e Terapêuti- usuário. (F7).
ca] instituída no município; isso ainda é um gar-
galo muito grande. (G2). Outro ponto ressaltado pelos entrevistados
foram os problemas quanto à dispensação e
“[...] uma CFT para realmente discutir essa orientação farmacêutica. Eles se mostraram
seleção de medicamentos [...]” (G3). preocupados tanto com a entrega dos medica-
Relataram-se dificuldades para a realiza- mentos feita por pessoas não habilitadas como
ção de uma programação de medicamentos com a falta de orientação farmacêutica aos pa-
confiável para o Município em virtude da cientes. Não ocorre dispensação; o que ocorre
falta de uma série histórica do controle de é a entrega de medicamentos sem orientação.
estoque e do desabastecimento da rede. “Os farmacêuticos que deviam estar presentes
ainda não estão [...]” (F8). “[...] um farmacêutico
Eu acho importante a questão do controle do es- dando orientação em relação à posologia e às in-
toque, mas hoje ainda é uma coisa muito defici- terações medicamentosas, isso necessita, porque
tária, [...] sem controle de estoque a gente não não acontece aqui na nossa realidade” (E4).

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O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em 71
João Pessoa (PB)

(In)compatibilidade de objetivos e gente se depara com isso, porque também não


meios tem o olhar da importância que é a parte da far-
mácia, só serve para estocar mesmo! Eu fico hor-
Uma das incompatibilidades entre objeti- rorizada quando vejo isso. (F1).
vos e meios, reveladas pelos entrevistados,
diz respeito à ampliação do acesso, visto Os entrevistados também fizeram referên-
que a maior reclamação dos usuários da cia à limitação do conhecimento por parte de
saúde é a falta de medicamentos, mesmo alguns profissionais da saúde e da população
que temporária, e a centralização dos medi- sobre o papel e a importância dessa política
camentos de controle especial nos Centros para a melhoria da qualidade de vida da popu-
de Atenção Integral à Saúde (Cais). Um dos lação. Igualmente, a existência de profissio-
dilemas está relacionado com a presença do nais não capacitados desenvolvendo funções
profissional farmacêutico nas USF, manda- importantes na AF é um problema adicional.
tória quando há medicamentos controlados.
“O que a população mais reclama é a falta de [...] é uma área ainda muito fragmentada
medicamentos, [...]” (G3). [...], então, a gente não pode exigir dos profis-
sionais (vigia, servente, auxiliar administrativo)
A reclamação é a falta de alguns medicamentos que não são da nossa área e que não foram ca-
e dos medicamentos controlados, porque os ido- pacitados para isso. (F3).
sos precisam pegar em lugares muito longe e a
maioria não têm condições físicas para talou [...] eles não conhecem (medicamento) pelo
dinheiro para pagar a passagem. (F6). nome genérico, não sabem fazer uma troca, não
sabem dar uma informação ao usuário, que,
“[...] ampliar o acesso, trazer a parte de muitas vezes, sai sem o medicamento, tendo o
mais emergência (medicamentos injetáveis e medicamento lá, [...] isso complica, fora outros
controlados) para as USF, então, tem que ter agravantes que podem acontecer. (F4).
um farmacêutico” (M3).
Alguns relatos afirmam que a política de [...] a população não sabe o que é AF, acha que é
AF atualmente implementada se encontra só pegar e entregar, se tem recebe e vai embora
em fase de construção. Isto requer, portan- e se não tem reclama, [...] muitos funcionários
to, maior estruturação e fortalecimento para daqui não sabem, imagine a população que não
garantir o cumprimento de seus objetivos, é esclarecida. (F1).
necessitando que sejam disponibilizados os
meios para que a implementação aconteça
de forma satisfatória. Discussão
[...] necessidade de se ter um farmacêutico para A AF é definida como um conjunto de ações
orientar o paciente no ato da dispensação de voltadas à promoção, proteção e recupera-
medicamentos, porque onde tem medicamento ção da saúde, tanto no nível individual como
tem que ter farmacêutico, isso é fato, é legisla- coletivo, tendo o medicamento como insumo
ção. Quem está fazendo essa orientação? Não é essencial e visando ao acesso e a seu uso ra-
o farmacêutico. (G1). cional (BRASIL, 2004). Nesse contexto, convergi-
mos a discussão em dois eixos estratégicos:
Na questão de recursos estruturais das farmácias os objetivos basilares dessa política (acesso e
das USF, infelizmente não temos estruturas ade- o uso racional de medicamentos) e os meios
quadas; a farmácia fica meio esquecida lá no fun- (recursos humanos, financeiros e estrutu-
do perto do banheiro, da cozinha; infelizmente a rais) necessários para sua implementação.

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72 BRUNS, S. F.; OLIVEIRA, E. A.; OLIVEIRA, M. A.; LUIZA, V. L.

Verificou-se baixo nível de ambiguidade combinações perigosas entre as substâncias


com relação aos objetivos da política de AF, farmacológicas (NASCIMENTO, 2003). Portanto, a
visto que os entrevistados demonstraram falta de informação segura para prescrito-
compreender o papel e importância da AF na res, entregadores e usuários; a propaganda
qualidade da assistência prestada aos usuá- distorcida de medicamentos; a ausência da
rios. Entretanto, reconhecem que, apesar dos orientação farmacêutica; e a cultura da po-
avanços em termos do acesso da população a lifarmácia e da automedicação concorrem
medicamentos, o desabastecimento ainda é para ampliar os níveis de ambiguidade en-
uma realidade constante no Município e gera volvendo o uso racional de medicamentos.
insatisfação. A baixa disponibilidade relatada Desse modo, tanto para a equipe multi-
pelos entrevistados foi também detectada por profissional de saúde como para a comuni-
Bruns (2013) em 32 farmácias das USF ava- dade, é de grande relevância a disseminação
liadas em João Pessoa, cuja disponibilidade e apreensão desse conceito para minimizar
média de medicamentos-chave variou de os danos advindos da irracionalidade do uso
41,1% a 94,1% de fevereiro a abril de 2012. de medicamentos, realidade considerada um
Outro objetivo essencial da AF é a pro- problema de saúde pública em todo o mundo
moção do Uso Racional de Medicamentos (LE GRAND; HOGERZEIL; HAAIJER-RUSKAMP, 1999).
(URM), que compreende uma prescrição Para Marin et al. (2003) a visão sistêmica do
adequada, disponibilidade oportuna, dispen- ciclo de AF surge como estratégia para superar
sação orientada e em condições apropriadas, a fragmentação da AF no Brasil – concentra-
consumo nas doses certas, pelo período in- da apenas nas ações de aquisição e distribui-
dicado e nos intervalos definidos de medi- ção -, estabelecendo fluxos na construção de
camentos eficazes, seguros e de qualidade um conjunto integrado, que influencia e é
(SANTOS; NITRINI, 2004). Segundo os entrevista- influenciado por todas as suas etapas, sendo
dos, até o momento da pesquisa, nenhuma estas permeadas por mecanismos de gestão e
ação nesse sentido havia sido desenvolvida adotadas como princípio norteador da AF no
no Município e, embora gestores e farma- Sistema Único de Saúde (SUS).
cêuticos tivessem ciência do seu significado, Os entrevistados relataram entraves que
os prescritores pareciam desconhecê-lo, o dificultam a operacionalização satisfatória do
que pode dificultar a implementação dessas ciclo da AF, gerando conflitos entre gestores
ações e a cooperação desses atores na sua e farmacêuticos. Tais conflitos se expressam
institucionalização. nas fragilidades verificadas na programação
No que concerne à prescrição adequa- consolidada, controle de estoque, condições
da, a posição dos profissionais envolvidos inadequadas de conservação dos medica-
nesse ato permite inferir uma baixa inte- mentos e na logística que envolve os pro-
gração entre os atores com responsabilida- cessos licitatórios. Além desses aspectos, a
de na cadeia de implementação da política. dispensação de medicamentos vem sendo
Prescritores e farmacêuticos, falando de realizada por profissionais não capacitados
locais distintos, expressaram as dificulda- e existem barreiras de acesso impostas pela
des de interação entre profissionais cuja concentração da dispensação de alguns me-
atuação hierarquizada dificulta a coope- dicamentos, como os de controle especial,
ração entre os saberes específicos que po- ofertados apenas nos três Cais. Todas essas
deriam confluir para a qualidade da AF situações se apresentaram como foco de
prestada. Uma proporção importante de tensão permanente entre os profissionais
prescritores desconhece os possíveis efeitos diretamente envolvidos, revelando a disputa
nocivos do que prescreve ou mesmo não com relação aos meios a serem mobilizados
sabe identificar nem prevenir corretamente para a implementação da AF.

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O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em 73
João Pessoa (PB)

Tais sinalizações, embora vindas de atores pouca percepção do seu papel no desenvol-
distintos, merecem destaque nos processos vimento das ações. O compromisso dos im-
de revisão e realinhamento das ações, uma plementadores com os objetivos da política
vez que repercutem negativamente nas e sua habilidade em utilizar os recursos dis-
etapas do ciclo da AF como um todo, com poníveis são fatores críticos no processo de
impactos tanto à gestão como nas ações de implementação. Urge, na opinião dos entre-
saúde prestadas à população. Para que a AF vistados, o desenvolvimento de um progra-
seja efetivamente implementada, faz-se pre- ma de educação continuada para ampliar
mente a disponibilização dos meios neces- o aprendizado organizacional e individual
sários para sua institucionalização e alcance sobre políticas e programas sociais, além
dos objetivos. Portanto, a disponibilidade de das questões específicas da AF.
forma planejada, continuada e adequada dos Com relação aos recursos financeiros, os
recursos humanos, financeiros e estruturais entrevistados defenderam a necessidade de
são elementos indispensáveis de sucesso, mais investimento em infraestrutura e con-
uma vez que, sendo uma decisão política, tratação de farmacêuticos e acreditam que a
precisa ser encampada pelo gestor da orga- falta de medicamentos não ocorre por proble-
nização, que deve convergir com seu plano e mas financeiros e sim burocráticos. Contudo,
sua capacidade de governo (MARIN ET AL., 2003). de acordo com o Conass (2011), um problema
Os farmacêuticos, considerados o comum aos gestores do SUS é o subfinancia-
principal ativo das organizações da AF, mento da saúde, com repercussões na área
encontram-se alocados em funções técnico- da AF, pois, somente com financiamento
-administrativas e gerenciais, em detrimen- assegurado é possível disponibilizar os me-
to das funções assistenciais. Essa condição dicamentos e viabilizar o desenvolvimento e
colide com a compreensão dos objetivos da continuidade das ações nesta área.
AF expressa nos depoimentos, uma vez que Ademais, os gestores demonstraram
a dispensação e orientação farmacêutica não grande preocupação com o número cres-
podem prescindir da presença do profissio- cente de demandas judiciais, que consome
nal habilitado para desempenhar essa ativi- parcela expressiva do orçamento previsto
dade. Nesses termos, as informações sobre para a aquisição de medicamentos na rede
os objetivos da política, embora produzam estudada. De fato, a judicialização da AF tem
menos incerteza, não reduzem o nível de se mostrado um dos motivos que desorga-
ambiguidade de uma decisão. A situação niza e desequilibra os recursos financeiros
foi demonstrada por Bruns (2013), em outro do sistema de saúde, podendo inviabilizar o
estudo no mesmo Município, onde o farma- planejamento das ações de saúde e compro-
cêutico foi encontrado desenvolvendo suas meter o orçamento para aquisição de medi-
atividades de forma permanente em apenas camentos (BRUNS; LUIZA; OLIVEIRA, 2013).
duas de 32 unidades de saúde visitadas. Quanto aos recursos estruturais, a grande
Os entregadores de medicamentos foram maioria das farmácias das USF foi considera-
ouvidos com a intenção de captar a percep- da inadequada, embora as USF recém-cons-
ção desse profissional sobre a política em truídas tenham sido elogiadas. As instalações
questão, uma vez que o envolvimento nas não apresentam condições para o armaze-
decisões varia conforme as relações esta- namento e dispensação de medicamentos,
belecidas entre o indivíduo e a organização pois são adaptadas em casas alugadas, com
onde se encontra. A maioria desses profis- espaço físico e refrigeração insuficientes. As
sionais não apresenta formação específica duas realidades diametralmente opostas vi-
em saúde nem foi preparada para o desem- venciadas pelos usuários – USF novas e ade-
penho de suas atividades, além de mostrar quadas vis-à-vis antigas e desestruturadas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 64-75, DEZ 2015


74 BRUNS, S. F.; OLIVEIRA, E. A.; OLIVEIRA, M. A.; LUIZA, V. L.

– são um foco de insatisfação e desestímulo instabilidades, podem-se registrar atribu-


para os profissionais de saúde. tos de uma tipologia ‘Política’, onde os re-
Como uma das limitações da pesquisa, sultados da implementação são decididos
sabe-se que a explicação a partir da opinião pela esfera central do Município, sofrendo
e percepção de pessoas poderá variar com a influências do contexto político e condicio-
mudança de atores e que os mesmos respon- nados por um elevado nível de conflito em
dentes podem mudar de posição ao longo do relação aos recursos, tecnologias e meios
tempo. A primeira autora residia no Município para o cumprimento das diretrizes defini-
estudado e já desempenhou cargo público das. Nesse caso, além de disputas internas
na Prefeitura, ainda que não na Secretaria de envolvendo opositores da política, os im-
Saúde, o que pode ter influenciado as falas. plementadores nem sempre estabelecem
contato direto com a hierarquia superior.
Os resultados e efeitos obtidos nesse caso
Conclusão dependem tanto de recursos quanto de
atores que atuam na esfera da micro imple-
A ambiguidade e o conflito têm papel prepon- mentação em seus diferentes contextos.
derante, influenciando o processo decisório Buscando apreender as diversas nuances
das organizações. Sob essa perspectiva, in- que perpassam a implementação de uma po-
corporando na análise tanto o ponto de vista lítica tão complexa como a da AF, acredita-se
dos decisores centrais como a percepção dos que o estudo tenha proporcionado um olhar
implementadores e, ainda, considerando o diferenciado da implementação, cotejando
conhecimento sobre os objetivos e meios, as contribuições do campo da análise de po-
podem-se detectar características do tipo líticas, particularmente à luz das reflexões
‘Implementação Administrativa’, que apresen- de Matland (1995).
tam baixos níveis de ambiguidade e conflito no Portanto, ficou evidenciado que, apesar
que concerne aos objetivos, metas e fluxos da dos avanços observados quanto à implemen-
política, as falhas vistas como problemas técni- tação dessa política, ainda se faz necessário
cos, cujos resultados estão diretamente vincu- um importante esforço de governantes, ges-
lados à disponibilidade de recursos. tores e técnicos para o alcance dos objetivos
Adicionalmente, considerando o papel primordiais relacionados ao acesso e uso ra-
da influência externa na cadeia de imple- cional de medicamentos, garantindo melhor
mentação e, ainda, o ambiente sujeito a qualidade de vida à população. s

Referências

AUREA, A. P. et al. Programas de Assistência ______. Ministério da Saúde. Resolução no 338, de


Farmacêutica do governo federal: estrutura atual, evolu- 6 de maio de 2004. Aprova a Política Nacional
ção dos gastos com medicamentos e primeiras evidên- de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial [da]
cias de sua eficiência, 2005-2008. Brasília, DF: IPE, 2011. União. Brasília, DF, 2004. Disponível em: <http://
bvsms.saude.gov.br/ bvs/saudelegis/cns/2004/
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011. res0338_06_05_2004.html>. Acesso: 19 out. 2015.

BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de BRUNS, S. F. Política de assistência farmacêutica no


Vigilância Sanitária. Anvisa faz parceria para dimi- município de João Pessoa-PB: contexto, desafios e
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cias/2005/181105.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015. de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2013.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 64-75, DEZ 2015


O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em 75
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Suporte financeiro: não houve
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à saúde? Vantagens e perigos do uso de produtos da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 64-75, DEZ 2015


76 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

O Pacto pela Saúde e o processo de


regionalização no estado de Mato
Grosso
The pact for health and the regionalization process in the
state Mato Grosso

Nereide Lúcia Martinelli1, Ana Luiza d’Ávila Viana2, João Henrique Gurtler Scatena3

RESUMO A regionalização da saúde no estado de Mato Grosso iniciou-se nos anos


1990. Neste trabalho, analisou-se a atuação da Secretaria de Estado de Saúde, no
período de 2006 a 2011, mediante as dimensões: institucionalidade, governan-
ça e impactos da regionalização, buscando identificar se as bases instituídas na
vigência do Pacto facilitaram-na ou dificultaram-na. Foram utilizados dados se-
cundários, documentos e também entrevistas com gestores estaduais, regionais e
municipais. As normativas instituídas facilitaram, mas as estruturas regionaliza-
das tiveram suas funções modificadas; o processo de regionalização foi parcial-
mente implementado e impõe desafios aos entes federativos para avançar na sua
consolidação.

PALAVRAS-CHAVE Regionalização; Política de saúde; Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT The regionalization of health in the state of Mato Grosso started in the
1990s. In this work, it was analyzed the performance of the State Secretary of Health,
in the period 2006-2011, by the dimensions: institutional, governance and impacts of
regionalization, in order to identify whether the bases established in the presence of
the Pact facilitated it or hindered it. Secondary data were used, documents and also
interviews with state, region and municipal managers. The rules instituted facili-
tated, but the regionalized structures had their functions modified; the regionaliza-
1 Universidade Federal de Mato
tion process was partially implemented and poses challenges to federal entities to
Grosso (UFMT), Instituto de Saúde
Coletiva, Departamento de Saúde advance in its consolidation.
Coletiva – Cuiabá (MT), Brasil.
nereidemartinelli@gmail.com
KEYWORDS Regional health planning; Health policy; Unified Health System.
2 Universidade de São Paulo
(USP), Faculdade de Medicina,
Departamento de Medicina
Preventiva – São Paulo (SP), Brasil.
analuizaviana@usp.br

3 UniversidadeFederal de Mato
Grosso (UFMT), Instituto de
Saúde Coletiva, Departamento
de Saúde Coletiva – Cuiabá
(MT), Brasil.
jscatena@ufmt.brr

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 76-90, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005239
76
O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso 77

Introdução descentralização, sem a coordenação do


estado há dificuldades para os entes federa-
A regionalização da saúde, contemplada na tivos desenvolverem suas competências no
Constituição de 1988, é uma das estratégias SUS (VARGAS ET AL., 2014).
da descentralização, cujo êxito depende do O território regionalizado é um espaço
compartilhamento de responsabilidades, de de intervenção que agrega municípios
atos jurídico-administrativos e autonomia com diversidade em estrutura e serviços.
entre os entes federativos para provisão de A singularidade do modelo federativo está
serviços norteados pelo princípio da inte- na maior horizontalidade das relações,
gralidade do Sistema Único de Saúde (SUS) que requerem ações coordenadas. Caso
(SANTOS; ANDRADE, 2011). contrário, podem resultar em conflitos
Na agenda de implementação do SUS, intergovernamentais, competição, inte-
a regionalização ganha destaque nos anos resses divergentes e até mesmo em com-
2000. Inicialmente, a descentralização portamentos predatórios entre os entes
valorizou a municipalização e redundou envolvidos (ABRUCIO, 2002).
na ampliação de serviços, no incremento Este estudo analisa o processo de regiona-
de resultados positivos e na maior parti- lização no estado de Mato Grosso (MT), na
cipação popular, mas apresentou limites vigência do Pacto pela Saúde (2006-2011),
e dificuldades para a legitimação do verificando se as práticas instituídas e a go-
direito integral à saúde (VIANA ET AL., 2010, vernança impactaram nesse processo.
FLEURY; OUVERNEY, 2012A).
No Pacto pela Saúde, o território regional
é pensado na lógica de sistema (VIANA ET AL., Método
2008), requer uma nova dinâmica de relações
intergovernamentais para avançar na des- O estado de Mato Grosso tem área de
centralização, superar a fragmentação de- 903.366,192 km2 e uma população de
cisória e integrar os sistemas municipais de 3.033.991 habitantes (IBGE, 2010), predomi-
saúde sob a coordenação do gestor estadual nantemente urbana (81,9%). Localizado na
(BRASIL, 2006). Com a sua implementação, espe- região Centro-Oeste, é constituído por 141
rava-se articulação, consenso, financiamento municípios, 80,1% deles com menos de 20 mil
e compartilhamento entre entes federativos habitantes. Com Índice de Desenvolvimento
para, de forma planejada e corresponsável, Humano de 0,725, posiciona-se em 11º lugar
formar redes entre as instituições e asse- entre os estados brasileiros.
gurar a regulação e a gestão do sistema de Entre as 16 regiões de saúde instituídas
saúde na provisão de serviços regionalizados no estado, a da Baixada Cuiabana detém
(VARGAS ET AL., 2014). 30% da população e a maior densidade de-
Segundo Abrucio (2002), pacto é uma mográfica, por incluir a capital, e o segundo
parceria que se estabelece entre unidades município mais populoso – Várzea Grande.
territoriais para a gestão compartilhada, No outro extremo, seis regiões têm baixa
preservando os direitos dos pactuantes. densidade demográfica e juntas concen-
A autonomia dos entes pode assegurar a tram pouco mais de 15% da população do
institucionalidade e a unicidade do SUS; estado (SCATENA ET AL., 2014A).
estabelecer relações de equilíbrio e inter- Desde a década de 1980, o agronegó-
dependência, o exercício da governança e cio e a agropecuária vêm colocando MT
a cooperação, minimizando as heterogenei- entre as unidades da federação com as
dades do território. Dada a complexidade maiores taxas de expansão econômica.
das responsabilidades assumidas com a Em 2010, seu Produto Interno Bruto (PIB)

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 76-90, DEZ 2015


78 MARTINELLI, N. L.; VIANA, A. L. d’Á.; SCATENA, J. H. G.

per capita foi R$ 19.636,77 (14ª posição de integração e gestão regional, papel do
nacional). Já entre as regiões do estado, o Colegiado de Gestão Regional (CGR) na
PIB variou de R$ 8.659,00 a R$ 31.064,00 regionalização e nas relações intergover-
(SCATENA ET AL., 2014A). namentais. Os impactos da regionalização
Excetuando-se a Atenção Básica, os es- foram analisados considerando as mudan-
tabelecimentos da rede de serviços do SUS ças institucionais observadas com a implan-
na vigência do Pacto pela Saúde estavam tação do Pacto pela Saúde.
concentrados no setor privado e, em sua Foram utilizadas informações quantitati-
maioria, na capital: unidades especializa- vas do banco de dados das pesquisas ‘Análise
das, Serviços de Apoio Diagnóstico (SADT) do processo de Regionalização da Saúde no
e serviços hospitalares. A cobertura do Estado de Mato Grosso’ e ‘A regionaliza-
Programa Saúde da Família (PSF) no estado, ção da saúde no Estado de Mato Grosso: o
em dezembro de 2005, era de 56,7%; em de- processo de implementação e a relação pú-
zembro de 2010, 65,1%. blico-privada na região de saúde do Médio
A diversidade das 16 regiões de saúde é Norte Mato-grossense’, além de dados pro-
dada pelas características e pelos indicado- vidos pelo Departamento de Informática
res socioeconômicos dos municípios que do Sistema Único de Saúde (Datasus) e
as integram; há desigualdade na capacida- pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
de instalada e nos investimentos públicos Estatística (IBGE). Foram levantados do-
e privados, sobretudo naqueles de baixo cumentos da Secretaria de Estado de Saúde
dinamismo econômico. Entre as regiões (SES), da Comissão Intergestores Bipartite
de saúde, apenas quatro têm hospitais re- (CIB) e do governo do estado, além de
gionais públicos (Cáceres, Rondonópolis, outras normativas que delinearam a política
Sorriso e Colíder); nas demais, foram cre- de saúde no período.
denciados ou estabelecidos contratos com As informações qualitativas foram
serviços privados por meio dos Consórcios obtidas mediante entrevistas com atores-
Intermunicipais de Saúde (CIS). -chave da SES e de regiões de saúde, entre
Neste trabalho, a coleta de dados quan- eles: secretário de estado da saúde; secre-
titativos, as entrevistas e a análise docu- tária executiva da CIB estadual; diretor de
mental basearam-se em três dimensões: um Escritório Regional de Saúde (ERS); se-
institucionalidade, governança e impactos cretário de um CIS; secretária de um CGR;
da regionalização. e secretárias de saúde de dois municípios,
A institucionalidade é entendida como sendo uma delas vice-presidente regional
todas as estratégias políticas e institucio- do Conselho de Secretarias Municipais de
nais adotadas no período; e a governança, Saúde (Cosems-MT). Para a exploração
como o conjunto de regras governamentais dessas informações utilizou-se a técnica
voltadas para a ação coletiva, que requer de análise de conteúdo, que permitiu com-
a divisão de poderes e o estabelecimento preender e responder aos questionamen-
de relações entre atores públicos e priva- tos sobre o processo de regionalização.
dos, com interesses diversificados, cujas As pesquisas acima citadas foram sub-
negociações podem resultar em objetivos metidas ao comitê de ética, parecer nº
comuns (FLEURY; OUVERNEY, 2012B). 681/09 do Comitê de Ética em Pesquisa
A institucionalidade foi analisada ve- do Hospital Universitário Júlio Müller
rificando: histórico, desenho, finalidades, (CEP-HUJM) e parecer nº 91.726/2012 do
estratégias políticas, planejamento, regu- Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade
lação e financiamento da regionalização. de Medicina da Universidade de São Paulo
Na governança analisaram-se: estruturas (CEP-FMUSP).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 76-90, DEZ 2015


O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso 79

A institucionalidade da indução do governo estadual, foi criado


regionalização da saúde nas regiões para suprir deficiências e faci-
litar o acesso à assistência especializada de
na vigência do Pacto pela média complexidade ambulatorial, hospi-
Saúde talar e ao apoio diagnóstico. O CIS é fisca-
lizado pelo Tribunal de Contas do Estado
O início da institucionalização da regiona- e regido pelas regras de funcionamento e
lização da saúde em MT deu-se em meados financiamento do estado (MATO GROSSO, 2004).
da década de 1990, quando a SES a definiu A participação financeira do estado ocorre
como prioridade na política institucional da mediante convênio estabelecido entre a
gestão estadual, no período de 1995 a 2002 SES e os municípios consorciados. Já a par-
(MATO GROSSO, 2000). ticipação do município é regulamentada
Tal prioridade foi expressa no documento por lei municipal.
‘Política de Saúde em Mato Grosso: diretri- O sistema estadual de regulação, criado
zes, estratégias e projetos prioritários’ (MATO em 1998, definiu as bases institucionais
GROSSO, 1995), que detalha a descentralização de organização do fluxo de pacientes na
com cooperação intergovernamental, forta- rede de atenção SUS. Foi criado o cargo de
lecimento da municipalização e do espaço re- médico regulador do SUS, com as atribui-
gional. Como parte dessa política criaram-se ções, entre outras, de regular a oferta de
instâncias de ação pública nos espaços regio- serviços de saúde e propiciar a articulação
nais, entre elas as Comissões Intergestores entre os diversos níveis assistenciais do
Bipartites Regionais (CIBR), os CIS e as sistema estadual e regional de saúde (MATO
Câmaras de Compensação de Autorizações GROSSO, 2003B). Foram estabelecidos convê-
de Internação Hospitalar (MÜLLER NETO; LOTUFO, nios com hospitais municipais para se tor-
2002). Os ERS tornaram-se um dos alicerces narem referência regional, credenciados
para a condução e o estabelecimento de serviços de média e alta complexidade; e
pactos federativos regionalizados. instalados leitos de Unidade de Terapia
A SES instituiu o planejamento nos mu- Intensiva (UTI) nas sedes de regiões, me-
nicípios e nas regiões, e, como produto diante convênios com unidades hospitala-
dessa ação, levantou as necessidades e a res próprias, municipais ou privadas.
capacidade de oferta por região, inserida A SES instituiu incentivos financeiros
no Plano Diretor de Regionalização (PDR) para municípios, acessados mediante o cum-
e no Plano Diretor de Investimentos (PDI) primento de critérios estabelecidos nas suas
(MATO GROSSO, 2001). Na Atenção Básica foram portarias. Em 2003, passou a transferir re-
viabilizados pactos instituídos pela SES e cursos da receita própria, do Fundo Estadual
pelo Ministério da Saúde (MS), bem como de Saúde para os Fundos Municipais de
as referências secundárias na Programação Saúde (MATO GROSSO, 2003A).
Pactuada e Integrada (PPI). Quando o Pacto pela Saúde foi institu-
O fortalecimento da gestão regionalizada ído pelo governo federal em 2006, a SES
do SUS foi contemplado no Plano Plurianual elaborou o Projeto de Fortalecimento e
(PPA) e na Lei de Diretrizes Orçamentárias Qualificação da Gestão Regionalizada e
(LDO) dos períodos 2004-2007 (MATO GROSSO, Solidária do SUS em Mato Grosso (FERNANDES,
2003C) e 2008-2011 (MATO GROSSO, 2010B), e, 2014), que contemplou a regionalização como
embasada neles, a SES elaborou o Plano eixo central de condução, governança e com-
Estadual de Saúde (PES). promisso compartilhado entre os gestores,
Estrategicamente, a partir de 1995, o cabendo à SES a macrofunção de coordenar,
Consórcio Intermunicipal de Saúde, por articular e regular o sistema de saúde.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 76-90, DEZ 2015


80 MARTINELLI, N. L.; VIANA, A. L. d’Á.; SCATENA, J. H. G.

Como parte desse projeto, criou-se fortalecimento da gestão municipal de saúde


um grupo técnico, que, em parceria com (MATO GROSSO, 2010A).
o Conselho de Secretarias Municipais de A missão do ERS era “viabilizar o proces-
Saúde (Cosems), realizou encontros ma- so de descentralização da saúde, em conso-
crorregionais nas regiões de saúde, com o nância com as diretrizes do Sistema Único
objetivo de ampliar e qualificar o debate da de Saúde” (MATO GROSSO, 2009, P. 22). Competia à
regionalização, e discutir as diretrizes e as essa instância: efetivar a gestão regionaliza-
novas responsabilidades (MATO GROSSO, 2006). O da da Política Estadual de Saúde; assessorar
Cosems criou o projeto Rede SUS em Mato e monitorar os municípios no planejamen-
Grosso, realizou oficinas de planejamento e to e na execução das ações; promover as
orçamento, e subsidiou os gestores na elabo- pactuações regionalizadas; e coordenar os
ração do Termo de Compromisso de Gestão CGR. A partir de 2008, passou a contar com
(TCG) (RIBEIRO ET AL., 2009). três gerências em sua estrutura administra-
O projeto de implantação do Pacto em MT tiva: a de Atenção à Saúde, a de Vigilância
representava a possibilidade de impulsionar em Saúde e a de Gestão Macrorregional
a regionalização, fortalecer as relações in- (MATO GROSSO, 2008B).
tergovernamentais e ampliar a capacidade A missão dessas gerências era: da Atenção
de gestão das regiões e dos municípios para à Saúde, “promover, no âmbito regional, a
oferecer, com equidade, serviços de atenção atenção integral à saúde [...]”; da Vigilância
integral. Frente às particularidades dos mu- em Saúde, “conduzir as ações de vigilância
nicípios e das regiões, implicou na redefi- em saúde [...] em cooperação técnica com os
nição de tarefas e no compartilhamento de municípios [...]”; da Gestão Macrorregional,
responsabilidades expressos no TCG. O pro- “gerenciar as ações relativas ao complexo
cesso de pactuação entre entes federativos regulador regional [...]” (MATO GROSSO, 2010, P.
“envolve jogos de cooperação e competição, 36-37). Essas gerências facilitaram a organi-
acordos, vetos e decisões conjuntas entre zação interna para a cooperação técnica nos
governos que possuem interesses e projetos municípios. No entanto, os ERS, por falta de
frequentemente divergentes na disputa polí- apoio institucional e autonomia financeira,
tica” (VIANA; LIMA, 2011, P. 15). foram deixando de realizar as atividades de
A estruturação da rede de atenção à saúde cooperação e seu poder de ação ficou limita-
de forma regionalizada, a articulação da SES do frente às responsabilidades definidas na
com as macrorregiões e com os hospitais condução da política de saúde regionalizada.
regionais, e o fortalecimento do papel dos Para o gestor, o ERS “continua sempre meio
consórcios foram objetivos contemplados que... esperando alguém dar uma ordem, não
no PES 2008-2011. Esse plano contemplou tem iniciativa... ele não está muito ativo nesta
o fortalecimento da regionalização solidária questão da regionalização” (GM).
e cooperativa, do CGR e a definição do PDR Em 2013, essas gerências foram ex-
como instrumento de planejamento regional cluídas, mantendo-se apenas uma
(MATO GROSSO, 2010C). Gerência Técnica por ERS (MATO GROSSO,
A SES, na sua macrofunção coordenadora 2013). Ao extinguir a gerência de Gestão
e reguladora do sistema estadual de saúde, Macrorregional, alterou-se o funciona-
readequou várias vezes sua estrutura orga- mento do Complexo Regulador Regional e
nizacional (MATO GROSSO, 2008, 2011A, 2011B, 2011C, das Centrais Municipais de Regulação. Em
2013). Na estrutura vigente, coube à Gerência algumas regiões, a regulação da urgência e
de Regionalização da Saúde conduzir a im- emergência foi recentralizada, ficando sob
plementação dos instrumentos de gestão a responsabilidade da Coordenadoria de
estratégicos da regionalização e apoiar o Regulação, ligada à Superintendência de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 76-90, DEZ 2015


O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso 81

Regulação, Controle e Avaliação da SES, per capita. Tais recursos eram acessados
em nível central. mediante a elaboração de plano de ação, de-
O Plano Diretor de Regionalização (PDR) talhando metas e prazos para execução e a
vigente para o período de 2006 a 2011 foi aplicação exclusiva na melhoria da Atenção
atualizado e homologado em 2005 (SES, 2005), Primária à Saúde, com aprovação do CGR.
com base no de 2001. O Plano Diretor de Dos incentivos criados pela SES, assegu-
Investimentos (PDI) também foi atualiza- raram-se recursos nos planos de saúde de
do em 2005, mas não foram encontrados 2004-2007 e 2008-2011 para: o Programa
registros da sua homologação na CIB/MT. de Apoio e Implementação dos Consórcios
Um gestor refere: “nós ainda trabalhamos (Pacis); a Microrregionalização – ativi-
com projetos e propostas de 12 anos atrás dades do Centro de Atenção Psicossocial
e o PDI não existe mais, não houve plane- (Caps), da Hemorrede e da Reabilitação);
jamento” (GM). O compartilhamento das o Programa de Apoio à Saúde Familiar
responsabilidades entre entes federativos é e Comunitária (Pasf ); o Programa
facilitado quando há planejamento intergo- Saúde Bucal na Saúde da Família; o
vernamental, quando as ações são coorde- Programa Diabetes Mellitus – Insumos
nadas e reguladas para organizar os fluxos Complementares; o Programa de con-
assistenciais (SILVA, 2013). trole da malária; o Programa de Apoio
Os recursos financeiros liberados pelo à Saúde Comunitária de Assentados
MS para as regiões têm por base o PDR e o Rurais (Pascar); o Programa de Incentivo
PDI vigentes. Desatualizados, tais instru- ao Alcance de Metas da Atenção Básica
mentos não serviram para organizar a rede (Piamab); e o Programa de Apoio à
de atenção da região e equilibrar a relação Organização Estadual de Urgência e
entre oferta e demanda. Além disso, não Emergência. Os critérios de acesso de-
contribuíram para que os entes federa- finidos pela SES eram: cobertura de
tivos inserissem no seu PPA, e em suas PSF; cobertura de saúde bucal; unida-
respectivas leis – LDO e Lei Orçamentária des cadastradas no Cadastro Nacional de
Anual (LOA) –, as necessidades de investi- Estabelecimento de Saúde (CNES); exis-
mentos na região. tência de Caps.
A PPI, coordenada pelo ERS e discutida Tais incentivos financeiros deveriam
no CGR, foi o instrumento de pactuação das ser transferidos aos municípios mensal-
referências e adequação do teto financeiro mente, mas ocorreram com atrasos de até
pré-estabelecido, que facilitou a implemen- dez meses. Esta irregularidade fragilizou a
tação dos complexos regulatórios do sistema gestão municipal, influenciou o processo de
e o acesso às ações de saúde nas regiões e regionalização, dificultou a integração entre
no estado. Na vigência do Pacto, o governo os entes federativos e resultou em ações iso-
federal criou novos incentivos financeiros ladas, através das quais cada município pro-
para municípios e regiões, entre os quais: curou resolver o seu problema, apesar de sua
compensação das especificidades regionais, baixa capacidade de receita própria. Entre
colegiados de gestão regional e qualificação 2007 e 2010, o Sistema de Informações sobre
dos profissionais de saúde (formação técnica Orçamentos Públicos em Saúde (Siops)
e educação permanente). A SES criou cri- mostrou que os municípios aplicaram per-
térios de acesso a tais incentivos com base centual acima do mínimo estabelecido pela
em indicadores, ressaltando-se: Índice de Emenda Constitucional nº 29 (EC29), próxi-
Desenvolvimento Humano (IDH), per- mos a 20%. A fragilidade na estrutura finan-
centual de população rural, coeficiente de ceira de um município leva à dependência
mortalidade infantil, índice de Gini e renda das transferências da União e do Estado para

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 76-90, DEZ 2015


82 MARTINELLI, N. L.; VIANA, A. L. d’Á.; SCATENA, J. H. G.

implementação de sua política municipal A governança regionalizada


(ARRETCHE, 2004). na vigência do Pacto pela
Em MT, em sua maioria, os municí-
pios são de pequeno porte e dependem
Saúde
da transferência de recursos financeiros,
tanto do governo estadual como do federal. Dentro do formato descentralizado do SUS,
Para o conjunto dos municípios mato- a importância atribuída ao papel do Estado
-grossenses, em 2008, as transferências do pode ser compreendida na representação do
SUS representaram praticamente a metade seu arcabouço político-institucional (GADELHA;
dos recursos aplicados no setor (49%); MALDONADO; COSTA, 2012). O novo desenho con-
para o estado, elas representaram 32%. formou um sistema de saúde complexo, cuja
Se contabilizadas as transferências inter- gestão implica em distribuição de poder e
federativas, o padrão de gasto em saúde responsabilidade compartilhada entre entes
por habitante, pelo governo estadual, foi federativos.
considerado médio ou baixo (R$ 254,00); O Pacto pela Saúde contemplou um novo
já o gasto do conjunto dos municípios foi ciclo da descentralização em MT. A gover-
considerado elevado (R$ 364,00) (VIANA ET nança, institucionalmente, ganhou espaço na
AL., 2010; LEVI; SCATENA, 2011). região, evidenciando a necessidade de forta-
Na série histórica de 2002 a 2010, o estado lecer as relações verticais e horizontais que
cumpriu o percentual mínimo apenas no conformam o complexo regional, com diver-
ano de 2010, atingindo 12,3% (MENDONÇA, sos contextos institucionais e atores com ob-
2012). Sem a contrapartida financeira e a co- jetivos distintos, inseridos em um território
operação do estado, os gestores municipais de uso comum. No entanto, na sua vigência,
não conseguem cumprir os compromissos ocorreram trocas sucessivas na gestão esta-
compartilhados no TCG, em especial, a as- dual, refletindo na maneira de gerir e condu-
sistência de média e alta complexidade. zir a política neste ente.
Em 2011, a SES realizou o chamamen- A CIB, coordenada pelo secretário de
to público de instituições sem fins lucra- estado da saúde, teve um papel importante na
tivos para a celebração de contratos de descentralização, um espaço de negociação
gestão, para estruturas públicas estaduais que tem direcionado suas pactuações para
(MATO GROSSO, 2011E, 2011F). Vários convênios fortalecer a regionalização (VIANA ET AL., 2010). As
de gestão foram estabelecidos com as or- atas e resoluções das suas reuniões são divul-
ganizações sociais para gerir: o Hospital gadas no site da SES. As reuniões pré-CIB e
Metropolitano do estado, com sede em pré-CGR são bastante valorizadas pelo gestor
Várzea Grande; os Hospitais Regionais de municipal, têm o objetivo de debater temas da
Cáceres, Rondonópolis, Colíder e Sorriso; pauta e instrumentalizá-los para as delibera-
e a Farmácia Cidadã, com sede em Cuiabá. ções na CIB. Conduzidas pelo Cosems, con-
Esta parceria repercutiu de forma negati- ferem importância a este conselho: “quem nos
va no sistema público de saúde do estado, mantém informado é o Cosems” (GM).
gerou conflitos, questionamentos e limina- Estudo realizado refere que no
res do Ministério Público Federal/MT. Tais
liminares foram motivadas por denúncias e biênio 2007-2008 as pautas da CIB foram
solicitações de ação civil pública, entre elas influenciadas principalmente por: 1) políticas
do Conselho Regional de Medicina de Mato e demandas do MS; 2) políticas específicas e
Grosso (MATO GROSSO, 2011F). Esses contratos de demandas da SES; 3) políticas específicas e
gestão também repercutiram negativamen- demandas de instâncias regionais do estado.
te no processo de regionalização. (VIANA ET AL., 2010, P. 13).

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O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso 83

Os principais temas de pauta estiveram transferidos pelo governo federal, parte


relacionados à programação e à distri- tem sido executada pela Escola de Saúde
buição de recursos financeiros (100% das de Mato Grosso para a formação técnica
reuniões); a políticas e estratégias de regio- de profissionais. Outra parte é transferida
nalização (80%); à adesão ao Pacto (80%); à para o Fundo de Saúde de um município
educação permanente (80%); a solicitações da região, atendendo o Plano Regional de
de credenciamento, serviços de alta e média Educação Pemanente (Pareps). Os crité-
complexidade, leitos hospitalares, cirurgias rios de alocação dos recursos para as Cies
e outros (60%). regionais foram sendo alterados conforme a
Com o Pacto, as CIB regionais foram reformulação anual dos planos.
renomeadas a CGR, que consistem em um Nestes espaços ocorrem conflitos, e os
espaço institucional deliberativo e têm problemas afluem, sobretudo, pela troca
debatido a política de saúde, mas também constante de seus membros e pela dificul-
influenciam as demandas dos governos dade de dispor de profissional capacitado
federal e estadual. Nesse espaço, as nego- pela Escola de Saúde Pública para realizar
ciações e decisões intergovernamentais os cursos na região. Também por isto, muitas
fortaleceram parcialmente as relações ho- Cies regionais não têm executado todo o
rizontais e mostraram a importância de se recurso financeiro contemplado no seu
construir objetivos comuns para a gestão Pareps e nem todas Cies regionais estão
cooperativa na região. atuando regularmente (VIANA ET AL., 2010).
Coordenados pelo diretor do ERS, os CGR Os Consórcios Intermunicipais de Saúde
são conduzidos por regras contidas no regi- (CIS), importantes instâncias da governan-
mento e mantidos com recursos financeiros ça regionalizada, na vigência do Pacto, con-
provenientes do MS. Para os gestores, o CGR formavam 15 unidades em funcionamento
é um espaço que gera aprendizado, mas é re- no estado, englobando 125 municípios e
ferido da seguinte forma: “a gente não conse- cobrindo 62,5% da população (BOTTI ET AL.,
gue ter temas transversais dentro da reunião 2013). Em MT, à semelhança de outros casos
de colegiado... é informe... muitas resoluções, no Brasil, os CIS estabeleceram parcerias
proposições e portarias” (GM). Tais forma- entre entes federativos nas regiões e entre
lidades dificultam a governança e impedem prestadores privados, e têm se consolidado
que a discussão flua para os problemas como viabilizadores da oferta de serviços.
reais vividos pelos gestores. Além disto, Ampliaram a capacidade de governo mu-
interferem na condução da política e não nicipal, sobretudo para os municípios de
contribuem para a governabilidade sobre a pequeno porte, que, sozinhos, não conse-
macropolítica da região. guiriam prover os serviços necessários para
Estudos mostram que, nos locais onde as suas demandas (NEVES; RIBEIRO, 2006).
“a implantação dos CGR foi conduzida de Em 2008, a SES mudou a sua relação com
forma burocrática e cartorial, sem que tenha essas instâncias. Com a justificativa de que
havido a necessária disposição para o debate o Pacto pela Saúde redefinia as responsabili-
por parte dos gestores”, houve baixa ou dades de cada gestor e que os municípios ne-
nenhuma repercussão nas práticas institu- cessitavam de apoio financeiro, cooperação
cionais vigentes (LIMA ET AL., 2012, P. 1911). técnica e operaciona1, o governo estadual
A Comissão Integração Ensino Serviço editou e instituiu o Sistema de Transferência
(Cies) estadual, instância de deliberação Voluntária de Recursos Financeiros do
e decisão da política de educação perma- Fundo Estadual de Saúde aos Fundos
nente, foi criada em 2009, e as Cies regio- Municipais de Saúde, e os municípios pas-
nais (14), a partir de 2008. Dos recursos saram a receber o incentivo do Pacis, fundo

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84 MARTINELLI, N. L.; VIANA, A. L. d’Á.; SCATENA, J. H. G.

a fundo, e não por meio de convênio da SES gerou conflitos nas relações intergestores e
com o CIS (MATO GROSSO, 2008A). questionamentos quanto ao papel da SES na
Com essa mudança na condução, a gerên- coordenação do sistema.
cia dos consórcios foi retirada da estrutura
organizacional básica e setorial da SES (MATO
GROSSO, 2008B). Tais instâncias passaram a Impactos da regionalização
ser uma unidade não coordenada pela SES, na vigência do Pacto pela
gerando mudanças nas suas relações e com
as estruturas regionalizadas (ERS, CGR). A
Saúde
relação da SES com o CIS é indireta, ocorre
por meio da transferência da sua contraparti- As evidências levantadas mostram que,
da financeira para o município consorciado, institucionalmente, a política de saúde
que a transfere para o CIS. Essa relação era adotada pela SES no período anterior ao
mais próxima quando a gestão dos hospitais Pacto foi favorável à regionalização. Sua
regionais era do estado (VIANA ET AL., 2010). Em implementação foi facilitada por vários
algumas regiões, as equipes diretivas do CIS fatores: o processo histórico estrutural da
deixaram de participar das reuniões do CGR regionalização, a partir da década de 1990;
e das reuniões de condução e planejamento o PES, que contempla a política de saúde re-
da SES (SCATENA ET AL., 2014B). gionalizada; a existência das CIB regionais
A constituição dos consórcios teve impor- desde 1995; a criação de novos incentivos;
tância na regionalização de saúde em MT, a concepção dos CIS; a manutenção e a ins-
fomentou a adequação da oferta à demanda, tituição de novos convênios estabelecidos
a resolubilidade e a racionalidade no uso dos com serviços públicos e privados para ser-
serviços (VIANA ET AL., 2010), além de uma maior viços de média complexidade, serviço hos-
participação do gestor municipal na política pitalar e de UTI nas regiões; a participação
regional. Mas a SES deixou de coordená- do Cosems; a criação das CIES estadual e
-lo, e suas estratégias de condução não mais regional; e a indução da política financeira
focaram a regionalização. O CIS deixou de do MS, que exigiu organização regional e
ser o ator estratégico de fortalecimento da municipal. Apesar dessa institucionalidade,
regionalização e, aos poucos, assumiu um para os gestores, a atuação da SES “ficou
papel de intermediador da compra e venda muito a desejar” (GM).
de serviços para o gestor, contribuindo para O papel do ERS na coordenação e na con-
a fragmentação e a ineficiência do sistema dução da política regionalizada foi amplia-
público nas regiões e no estado. do, mas, ao longo do processo, suas funções
No processo de regionalização, as respon- foram enfraquecidas em relação ao planeja-
sabilidades foram compartilhadas por meio mento, à cooperação técnica e à regulação do
do TCG, mas não foram pautadas pelo pla- sistema e da assistência à saúde na região.
nejamento integrado e pelas necessidades Suas relações com os gestores municipais
da população. A baixa capacidade instalada distanciaram-se e alguns problemas munici-
da rede de atenção nas regiões e a trans- pais começaram a ser tratados diretamente
ferência irregular de recursos financeiros com a SES e o MS.
estaduais aos Fundos Municipais de Saúde Nas regiões, a baixa capacidade instalada,
contribuíram para tensionar a governan- a compra dos serviços do setor privado com
ça. O Estado não cumpriu com a sua parte valores acima da tabela SUS e o atraso nas
na cooperação técnica; a falta de financia- transferências financeiras do estado para os
mento dificultou a regulação, influenciou municípios repercutiram na governança re-
a condução da política estadual de saúde, gionalizada, geraram conflitos entre entes

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O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso 85

federativos municipais e fragilizaram a base e estaduais nas regiões de saúde para: am-
financeira municipal. pliação e construção de hospitais regionais;
Em algumas regiões, a regulação da ur- centros cirúrgicos, leitos de estabilização e
gência e emergência foi recentralizada, e as outros equipamentos hospitalares, aquisição
centrais regionais perderam parte de suas de carros e ambulâncias; investimentos em
funções. As relações entre médicos regu- infraestrutura de unidades não hospitalares
ladores – municipais e regional – ficaram e outros (VIANA ET AL., 2010). Uma ampliação
distantes, o contato passou a ser diretamen- muito mais ligada à rede de atenção muni-
te com a central estadual. Somam-se a isso cipal que à regional e as iniciativas para as
as dificuldades para regular as demandas regiões foram muito restritas frente às ne-
frente à falta de capacidade instalada no cessidades das redes regional e estadual.
estado e nas regiões. Ainda que instituí- Esses fatores associados às trocas suces-
das, as bases do sistema de regulação e os sivas dos gestores da SES e da equipe de
instrumentos regulatórios não foram sufi- condução, bem como às mudanças na sua
cientes para inserir mudanças na gestão. À estrutura organizacional influenciaram a
semelhança de outros estados, a regulação coordenação e o apoio aos CIS e aos ERS.
da assistência também é frágil em MT (LIMA O não cumprimento do percentual mínimo
ET AL., 2012). recomendado pela EC29, a não atualização
Quanto à atenção primária, os incentivos do PDR e do PDI, além da falta de investi-
financeiros instituídos pelo estado contri- mentos na rede pública de atenção à saúde
buíram para implementá-la, como também nas regiões e no estado repercutiram na re-
a parte da média e da alta complexidade, gionalização da saúde.
suprindo algumas demandas. Na assistência Os CIS ampliaram a oferta de serviços
hospitalar, os convênios estabelecidos com nas regiões e desenvolveram um impor-
o setor privado ampliaram a oferta de ser- tante papel na regionalização da saúde, em
viços e favoreceram o acesso, em especial, especial, na desconcentração dos serviços
em regiões desprovidas de capacidade ins- que estavam centrados na capital (VIANA ET
talada pública. No entanto, essas atividades AL., 2010). No entanto, as mudanças institu-
não foram suficientemente monitoradas e ídas geraram rupturas nas relações e no
reguladas por parte do setor público e houve seu modo de funcionamento. Os CIS não
dificuldades para assegurar o acesso aos ser- foram implementados e não conseguiram
viços complementares ao SUS. mobilizar e integrar suas atividades ao
As parcerias estabelecidas entre a SES e processo de regionalização. Em algumas
a Organização Social de Saúde (OSS) para regiões, eles já não constituem equipa-
gerir estabelecimentos públicos repercu- mento da regionalização.
tiram de forma negativa. Os gestores mu- A regionalização da saúde em MT foi
nicipais não tiveram acesso a essa gestão e influenciada positivamente pela sua insti-
atribuem a ela o motivo de atraso nas trans- tucionalidade pregressa ao Pacto, mas os
ferências financeiras do estado. problemas citados influenciaram a gover-
A rede estadual de atenção à saúde não foi nança, contribuíram para comportamentos
ampliada para responder às necessidades das individualizados no interior dos espaços
regiões. As resoluções da CIB/MT mostram de deliberação colegiada e para relações de
que foram aprovados projetos para construir desconfiança e descrédito entre entes fede-
ou reformar unidades municipais de atenção rativos, sobretudo o estadual. Observaram-
primária de saúde, com recursos prove- se, nos registros das reuniões da CIB/MT,
nientes do MS e contrapartida municipal. relações de conflitos geradas por atraso
Também foram alocados recursos federais nas transferências das contrapartidas

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86 MARTINELLI, N. L.; VIANA, A. L. d’Á.; SCATENA, J. H. G.

financeiras, pela falta de hospitais regionais pelo governo federal para a regionalização
públicos, pela falta de acesso aos serviços ainda são insuficientes frente às desigualda-
na região e nas referências no estado e pela des políticas, econômicas, demográficas e fi-
falta de planejamento. nanceiras das regiões. Em MT, essa situação
A participação e a coordenação do estado agravou-se, pois o estado não cumpriu com
na condução da política deveriam ser con- as transferências mensais pactuadas com
tínuas, posto que são determinantes para os municípios, não cumpriu na aplicação do
reduzir as desigualdades territoriais e sociais, mínimo recomendado pela EC29 e não coor-
facilitar o acesso, garantir a integralidade na denou a condução do sistema.
atenção e potencializar a descentralização A política de saúde regionalizada instituída
(BRASIL, 2006). No entanto, em MT, a SES, por pela SES, à semelhança do apontado por outros
não cumprir com as suas responsabilidades estudos, deparou-se com fatores que mais difi-
compartilhadas no TCG, contribuiu para cultaram do que facilitaram sua condução. As
gerar desgastes nas relações horizontais, evidências mostram que há desafios para: im-
interferiu no processo de regionalização e plementar a regionalização da saúde; fortale-
não fortaleceu as competências da gestão cer o processo de planejamento e regulação no
municipal. Sua participação não foi capaz de estado, nas regiões e nos municípios; fortalecer
induzir a redução das desigualdades. a referência regional; e investir na capacidade
instalada da rede de atenção regionalizada e na
educação permanente, para gestores e equipe.
Considerações finais Por parte da SES, é preciso determinação
política para cumprir o instituído, exercer a
Esta pesquisa pretendeu discutir o processo coordenação do processo, priorizar os inte-
de regionalização da saúde no estado de Mato resses coletivos, tornar as regiões autônomas
Grosso, na vigência do Pacto pela Saúde. e conduzi-las de forma mais participativa. O
Ainda que a regionalização seja a estratégia projeto de regionalização em MT precisa ser
indicada para reorganizar a rede de atenção e reconstruído, considerando as demandas e
superar a fragmentação da descentralização, as especificidades dos territórios, a relação
a governança na região mostra a dificuldade e a interação dos atores, a infraestrutura, a
em estabelecer acordos entre entes federati- participação e as influências existentes no
vos em um sistema de saúde descentralizado, espaço usado das regiões, para que se avance
para o nível municipal. Os incentivos criados na sua consolidação. s

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Recebido para publicação em abril de 2015
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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 91

A Política Nacional de Promoção da Saúde:


texto e contexto de uma política
A National Health Promotion Policy: text and context of a policy

Patrícia Ferrás Araújo da Silva1, Tatiana Wargas de Faria Baptista2

RESUMO O artigo discute os argumentos presentes nos diferentes textos da Política Nacional
de Promoção da Saúde no Brasil, analisando os documentos de 2002, 2006 e 2014 e reunindo
elementos para compreender como a promoção da saúde ganhou institucionalidade e entrou
na agenda governamental. Conclui-se que os três documentos da Política representam mo-
mentos distintos, revelando tensões em sua definição, o que pode tanto reforçar uma tendên-
cia prescritiva da saúde como produzir o debate acerca dos determinantes sociais em uma
concepção ampliada de saúde. Politizar tal debate é o primeiro passo, para não se correr o
risco de se afirmar uma política que, principalmente, culpabiliza e responsabiliza o indivíduo.

PALAVRAS-CHAVE Promoção da saúde; Política de saúde; Formulação de políticas.

ABSTRACT The article discusses the arguments present in the various texts concerning the
National Policy of Health Promotion in Brazil and analyzes the documents released in the years
2002, 2006 and 2014, bringing together elements so to understand how health promotion achie-
ved a legal knowledge, becoming part of the government agenda. It concluded that the three
Policy’ texts embodied distinct moments and revealed tensions in the Policy definition, which can
either strengthen a prescriptive trend of health as produce the debate about social determinants
in an expanded conception of health. Politicizing such debate is the first step, at the risk of stating
a policy that, mainly, blames and responsible individual.

KEYWORDS Health promotion; Health policy; Policy making.

1 Ministério da Saúde,
Secretaria Executiva –
Brasília (DF), Brasil.
patricia.ferras@saude.gov.br

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
twargas@ensp.fiocruz.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005327 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 91-104, DEZ 2015
91
92 SILVA, P. F. A.; BAPTISTA, T. W. F.

Introdução constitui na ação antecipada com o objeti-


vo de interceptar ou anular a ação de uma
‘Promoção da saúde’ é uma terminologia doença e deve ocorrer nos períodos de pré-
antiga e presente no campo da saúde pública -patogênese e patogênese, em três níveis de
desde seus primórdios. Entre os séculos prevenção: primária, secundária e terciária.
XVIII e XIX, médicos como Virchow, A promoção da saúde estaria inserida na pre-
Neumann, Rumsay e outros empregavam o venção primária, na pré-patogênese, pressu-
termo para propor ações com o objetivo de pondo medidas em relação à moradia, escolas,
evitar a propagação de doenças, estabelecen- áreas de lazer, alimentação adequada, edu-
do relações entre processos de adoecimento cação (ROUQUAYROL; ALMEIDA FILHO, 1999). Assim,
e morte e as condições econômicas e sociais a promoção da saúde ganha contornos mais
de determinados grupos (ROSEN, 1980). específicos, com estratégias e ações junto
Com a descoberta do micróbio, e a con- aos grupos sociais e com o foco na doença.
tribuição de bacteriologistas como Koch e E o modelo passa a sustentar no âmbito da
Pasteur no final do século XIX, consolidou- prática médica a medicina preventiva.
-se o modelo unicausal, com o entendimen- A medicina preventiva reforçava o enten-
to de que para cada doença específica havia dimento da doença nas relações mais diretas
um agente específico. O desenvolvimento do de causalidade e, apesar de considerar as
modelo representou uma profunda transfor- variáveis sociais, não as tratava como deter-
mação no campo e contribuiu para a hegemo- minantes ou condicionantes relacionados
nia do paradigma bacteriológico (BUSS; PELLEGRINI ao modelo de Estado (BARATA, 2005). A inflexão
FILHO, 2007), favorecendo a abordagem individu- para uma discussão sobre a determinação
al e mantendo a dimensão social em segundo social da doença associada à visão de con-
plano (ALMEIDA FILHO, 1986). Neste contexto, o dições estruturais que afetam a vida de uma
argumento em torno da promoção perdeu coletividade ocorrerá nos anos 1970, quando a
espaço e instaurou-se o dilema ainda atual: o desigualdade se acentua em muitos países e o
objeto de intervenção da saúde pública devem modelo de proteção do Estado adotado pelos
ser as doenças específicas ou ter uma atuação países avançados colocava-se em questão.
mais ampla em torno das condições de vida e A década de 1970 foi fundamental para
modos de viver? (BARATA, 2005). disparar o debate sobre a promoção da saúde,
Em 1936, John Ryle retoma a discussão de concebida como estratégia para o enfrenta-
Virchow sobre a promoção da saúde, indi- mento das questões da saúde para além da
cando a insuficiência das reformas sanitárias assistência médica, seja para diminuição de
nos países enquanto persistisse a situação gastos ou para minorar questões mais amplas.
de pobreza. Nesse ano, lança um livro com O fato é que, nesse momento, a promoção é
a sistematização do paradigma da História proposta para agir sobre os modos de vida
Natural da Doença (HND), correlacionando da população, associando a ocorrência de
a dimensão ambiental com as teorias micro- enfermidades aos comportamentos de risco,
bianas (TERRIS; CARVALHO, 2005). cuja base é a discussão do Informe Lalonde,
Anos depois, em 1958, Leavell & Clark re- publicado no Canadá em 1974, e o relató-
visitam a discussão da HND e desenvolvem rio ‘Healthy people’, publicado nos Estados
uma tese com enfoque no indivíduo e con- Unidos em 1979 (FERREIRA; CASTIEL; CARDOSO, 2011).
texto, onde descrevem a evolução das enfer- A década de 1980 foi decisiva para afirma-
midades e defendem apontando diferentes ção do movimento internacional em torno
métodos de prevenção e controle a partir do da promoção da saúde. O principal evento
conhecimento do curso de desenvolvimento da década e marco para a mudança do para-
de uma doença. No modelo, a prevenção se digma do movimento de promoção da saúde

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A Política Nacional de Promoção da Saúde: texto e contexto de uma política 93

foi a I Conferência Internacional sobre No Brasil, o debate em torno da promoção


Promoção da Saúde, em Ottawa, Canadá, em da saúde inicia-se numa crítica ao modelo
novembro de 1986. O relatório final divul- da medicina preventiva e da HND na década
gou a proposta de uma ‘Nova Promoção da de 1970. Arouca (1975), na tese ‘O dilema pre-
Saúde’, trazendo um ‘novo olhar’ baseado na ventivista’, apresenta os limites do modelo,
ótica dos determinantes e condicionantes da concluindo que a medicina preventiva re-
saúde. Tal olhar se constituiu num avanço no presentava uma simplificação do real e um
debate na medida em que passava a entender afastamento das determinações, pois des-
que para promover saúde era necessário ir considerava as condições inerentes ao pro-
além de propor a alteração do estilo de vida, cesso saúde-doença, atendo-se apenas a uma
já que este se reportava exclusivamente à dimensão no cuidado à saúde em detrimento
esfera individual, devendo-se trabalhar na da discussão da causa das causas.
perspectiva do conceito ampliado de saúde. A crítica de Arouca e de tantos outros
O documento produzido na conferência pensadores da América Latina nessa década
ficou conhecido como ‘Carta de Ottawa’ e (como Breilh, Donnangelo, Tambellini,
tornou-se o principal documento de referên- Possas, Laurell) mobilizava uma leitura
cia para a promoção da saúde elaborado em abrangente sobre os determinantes sociais,
consonância com os princípios apresentados remetendo ao debate sobre a política de
pela Organização Mundial da Saúde (OMS). proteção adotada pelos Estados, os direitos
Assiste-se, portanto, nos anos 1980, uma sociais e a tensa relação entre política econô-
série de transformações no debate da pro- mica e política social.
moção da saúde, que passou a ser dissemi- Durante os anos 1980, o debate brasileiro
nada por todo o mundo, trazendo em seu manteve-se distante da discussão da promo-
bojo diferentes perspectivas e configurando ção da saúde como movimento internacional,
um campo de tensão entre autores com dife- pois havia o interesse claro em aprofundar a
rentes visões acerca do seu uso. A mudança discussão da causa das causas e a determi-
de paradigma em torno do que se entendia nação social da doença, não havendo espaço
por promoção da saúde inaugurou o dilema para o foco específico na discussão da pro-
que se pode resumir na tensão entre dois moção da saúde (SILVA; BAPTISTA, 2014).
grandes blocos nesse campo: um que mais se Nos anos 1990, a promoção da saúde
aproxima da concepção de Lalonde, focada começou a ocupar espaço no debate políti-
na abordagem comportamental, no estilo de co-institucional brasileiro, mas somente no
vida individual, e outro que amplia seu foco final da década inicia-se um movimento con-
além do estilo de vida, vinculando-se à dis- creto de institucionalização da promoção da
cussão dos determinantes sociais da saúde e saúde como política nacional, com a forma-
tendo como marco Ottawa (SILVA; BAPTISTA, 2014). lização da cooperação com o Programa das
Na década de 1990, há uma maior divul- Nações Unidas para o Desenvolvimento
gação e oferta do movimento como estra- (PNUD) (BUSS; CARVALHO, 2009). O debate em
tégia de política pública para que os países torno da definição da Política Nacional de
redesenhassem seus modelos de assistência Promoção da Saúde (PNPS) transcorreu
à saúde, com diversas conferências que durante os anos 2000, sendo um primeiro
reafirmavam os conceitos e produziam documento de discussão apresentado em
documentos norteadores. Esse período é 2002, sua institucionalização aprovada em
também marcado pela presença das rela- 2006 e sua redefinição, em 2014.
ções internacionais, com maior força da Este artigo discute os argumentos presen-
globalização e aparente diluição das fron- tes nos diferentes textos da PNPS apresenta-
teiras mais rígidas entre países. dos no contexto brasileiro a partir dos anos

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94 SILVA, P. F. A.; BAPTISTA, T. W. F.

2000 com o objetivo de reunir elementos oficinas de trabalho da Associação Brasileira


para a compreensão de como a promoção de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
da saúde ganhou institucionalidade e entrou (Abrasco), bem como as sínteses das confe-
na agenda governamental, despertando a rências nacionais e internacionais de promo-
atenção e o interesse dos formuladores de ção da saúde.
políticas e colocando em discussão a pers- Já a revisão de documentos, foi a estraté-
pectiva de promoção da saúde adotada na gia central do estudo. Identificaram-se três
política nacional. documentos de base para análise da política:
O texto está estruturado em quatro partes. o documento para discussão de 2002, com a
Na primeira, abordam-se os caminhos da primeira formulação de uma PNPS no Brasil,
pesquisa. Em seguida, apresenta-se o con- e os documentos oficiais da PNPS de 2006 e
texto dos anos 2000 e as interfaces com a dis- 2014, editados pelo Ministério da Saúde (MS)
cussão da PNPS no Brasil. Na terceira parte e amplamente divulgados. A análise dos dife-
discute-se os argumentos que fundamen- rentes textos da política (2002, 2006 e 2014)
taram os diferentes documentos da PNPS possibilitou o reconhecimento das estrutu-
apresentados nos anos 2000. Na última parte ras, convergências e divergências entre os
sintetizam-se os principais achados e desdo- documentos, bem como os principais argu-
bramentos dessa política para o sistema de mentos presentes em cada contexto.
saúde brasileiro com questões pertinentes ao Todo o material de pesquisa foi analisado
debate da promoção da saúde na atualidade. a partir de categorias temáticas identificadas
no processo de leitura dos documentos. As
referências bibliográficas foram fundamen-
Caminhos da pesquisa tais no contraponto aos argumentos e visões
expressos nas diferentes fontes.
O estudo assume a política como um proces-
so dinâmico que se constitui a partir da me- O contexto para construção da PNPS
diação de conflitos, disputas e interesses dos
atores e grupos envolvidos no debate. Assim, A promoção da saúde ganhou espaço no
parte-se do entendimento que o documento debate nacional no final dos anos 1990 e foi
de uma política é, em geral, a expressão de editada como política pela primeira vez no
um processo de negociação e consenso em ano de 2006.
torno de uma questão, refletindo o contexto O legado dos anos 2000 está na compre-
em que se insere (BAPTISTA; MATTOS, 2011). ensão do que foi a década de 1990, perme-
Para a análise de como a Política Nacional ada de contradições, avanços e rupturas
de Promoção da Saúde ganhou institucio- com a condução política da década ante-
nalidade e entrou na agenda governamen- rior, refletindo os embates decorrentes da
tal no Brasil, duas estratégias de pesquisa crise do Estado e a captura por interesses
foram importantes: a revisão bibliográfica e privados e pela globalização. Fagnani (2005)
a revisão e análise documental. destaca que, durante a década de 1990,
A revisão bibliográfica foi fundamental o gasto social brasileiro passou a ser o
para o reconhecimento das ‘construções ‘grande vilão’ da economia, da estabilida-
históricas’ e sentidos de promoção da saúde de da moeda e das contas públicas. Uma
enunciados nos textos oficiais e possibilitou solução indicada para combater a desi-
a identificação da rede de atores e institui- gualdade estava em deslocar os recursos de
ções que participaram do debate no Brasil. programas universais para programas cen-
Nesta revisão, foi importante considerar os trados na transferência de renda. Assim,
textos e materiais gerados em seminários, para o autor, a partir de 1990, assistiu-se a

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A Política Nacional de Promoção da Saúde: texto e contexto de uma política 95

uma contínua tentativa para fazer regredir proposta concreta de formulação para a po-
a cidadania conquistada, negando direi- lítica nacional, aprofundando as bases con-
tos constitucionais e reduzindo a questão ceituais da promoção da saúde a partir do
social aos ‘mais pobres dentre os pobres’. resgate histórico da reforma sanitária, seus
Ao final da década, é possível perceber princípios e valores.
uma mudança de rota. O controle da inflação Em 2003, teve início uma nova gestão
já não era mais a única política a ser mantida; ministerial com o início do governo Lula.
pode-se falar de investimento e novas políti- Mudanças são implementadas na estrutura
cas. É nesta oportunidade que surgem ou que do MS. A SPS foi extinta e a área da promo-
se fortalecem muitas políticas específicas ção da saúde, antes inserida no contexto da
na saúde – saúde mental, Programa Saúde SPS, passou a estar vinculada à Secretaria
da Família (PSF), saúde bucal, transplantes, Executiva (SE) do MS, com a orientação
saúde do adolescente, renais e tantas outras. de Gastão Wagner de Souza Campos, então
A promoção da saúde encontra nesse cenário secretário executivo. A vinculação à SE
um terreno fértil, favorável para sua disse- significava a aposta de tornar a política de
minação como estratégia, numa combinação promoção da saúde transversal às ações
de diretrizes com mudanças no modelo de das demais secretarias, entendendo que a
atenção. SE deveria operar como um dispositivo in-
No ano de 1997, o MS sofreu uma rees- tegrador da agenda de vários segmentos sa-
truturação, sendo criadas novas secretarias nitários. O conceito ampliado de saúde era
e áreas, dentre elas a Secretaria de Políticas o ponto de comunicação entre a promoção
de Saúde (SPS). O interesse era constituir, da saúde e o Sistema Único de Saúde (SUS),
na saúde, um espaço privilegiado de atuação tratando-se de um compromisso ético com
política, uma ‘vitrine da política de governo’ a integralidade e a gestão participativa que
cuja principal estratégia era a municipaliza- poderia operar na indissociabilidade entre
ção, com prioridade para ações de promoção a clínica e a promoção da saúde e entre ne-
da saúde e prevenção de doenças, enfati- cessidades sociais e ações do Estado (CAMPOS;
zadas pela constituição do Piso da Atenção BARROS; CASTRO, 2004).
Básica (PAB) e estímulos ao Programa No fim de 2004, novas mudanças
Saúde da Família e Programa de Agentes ocorrem no MS, em razão das quais a área
Comunitários (PSF/Pacs) (BAPTISTA, 2003). No de promoção da saúde e o debate da polí-
âmbito da SPS, a promoção da saúde tornou- tica foram deslocados para a Secretaria de
-se um dos três eixos fundamentais para a Vigilância em Saúde (SVS), subordinada à
formulação de políticas. Coordenação-Geral de Doenças e Agravos
Em 1998, o MS, em cooperação com o Não-Transmissíveis (CGDANT). Com a
PNUD, desenvolveu o Projeto Promoção da mudança, perdeu-se a ênfase na proposta de
Saúde em um Novo Modelo de Atenção, cujo uma política transversal tal como pensada
objetivo era implementar e consolidar a pro- no âmbito da SE.
moção da saúde no Brasil a partir da opera- Neste contexto, importante movimento na
cionalização dos cinco campos da Carta de direção da construção da PNPS foi a institui-
Ottawa, além de institucionalizar uma polí- ção do Comitê Gestor da PNPS (CGPNPS) em
tica nacional (BRASIL, 2002B). 2005, com o objetivo de consolidar a proposta
No ano de 2002, o MS apresentou um do- de uma PNPS e articular e integrar a promoção
cumento para discussão intitulado ‘Política da saúde no SUS. Inicialmente, a composição
Nacional de Promoção da Saúde’ (BRASIL, do Comitê pressupôs apenas adotar repre-
2002A). O documento não foi encaminha- sentantes do setor saúde, da esfera federal.
do como política, mas já apresentava uma Somente em 2007 foram incorporados

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96 SILVA, P. F. A.; BAPTISTA, T. W. F.

representantes do Conselho Nacional de houve a continuidade em sua redação. Na


Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho análise dos documentos de 2002, 2006 e
Nacional de Secretarias Municipais de Saúde 2014, é possível perceber pontos de con-
(Conasems) no Comitê Gestor. vergência, divergência e contradições em
Outra instituição importante no debate torno do que se pretende por em prática
para o desenvolvimento da política nesse como política de promoção da saúde. Não
momento foi a Abrasco, que iniciou as dis- se trata de eleger o melhor documento
cussões relativas ao tema no ano de 2002. O nem mesmo de estabelecer julgamentos; o
Grupo Temático (GT) da promoção da saúde objetivo da análise volta-se para o entendi-
foi formalmente instituído no ano de 2005. mento dos textos como processos políticos,
Formou-se, também nesse período, uma rede atravessados pelos contextos e possibilida-
de atores, entre técnicos e consultores rela- des reais de cada tempo, sofrendo interfe-
cionados ao MS, professores e pesquisadores rências dos atores políticos e das arenas
que atuavam nas universidades e instituições em que se conformaram, aproveitando as
de pesquisa e que pressionavam para a for- oportunidades para a entrada na agenda de
mulação da política. governo e para institucionalização como
A discussão da política avançou e a promo- política nacional.
ção da saúde apareceu em documentos e po- O documento para discussão da PNPS
líticas editadas a partir de então. Ressalte-se apresentado em 2002 não foi encaminhado
que o período compreendido entre meados de como política de governo, mas sua estrutura
2005 e final de 2006 foi marcado por um longo e os argumentos que apresenta justificam sua
período de transitoriedade no MS. Houve, por análise como documento de política, além
um lado, continuidade e a institucionalização de expressar o debate nesse período. O texto
de diversas políticas, editadas por secretarias inicia com uma citação de Paulo Freire e es-
diferentes, mas também ocorreu a falta de tabelece as interseções entre o movimento
integração e contradições entre as diretrizes internacional da promoção da saúde e a re-
das políticas, o que refletiu especificamente alidade brasileira, destacando o processo de
no entendimento do conceito de promoção da redemocratização e a constituição das bases
saúde empregado. Um bom exemplo dessas operacionais para implementação das legisla-
contradições e dificuldades para interação das ções existentes. Com isso, abandona o tom de
áreas e secretarias do MS se expressam nos recomendação internacional para reforçar o
documentos do Pacto pela Saúde e na Política reconhecimento das necessidades locais com
Nacional de Atenção Básica (PNAB). No Pacto, proposições acerca do fazer saúde.
a promoção da saúde apresentou-se focada em O documento recupera o compromisso
ações restritivas, na perspectiva de ‘internali- que os países assumiram de abordar os de-
zar a responsabilidade individual’ na prática terminantes básicos e os pré-requisitos para
de atividade física, combate ao tabagismo e a saúde e destaca que a promoção da saúde
alimentação saudável (BRASIL, 2006), na PNAB, a deveria desencadear um processo amplo,
promoção da saúde é entendida como área es- com parcerias, atuações intersetoriais e par-
tratégica para a operacionalização da política. ticipação popular, numa reflexão sobre o
objeto saúde, como um conceito em constru-
Os diferentes documentos da política ção, que coloca em discussão os problemas
e os sentidos de promoção da saúde impostos pela realidade sanitária, exigindo
um olhar além da doença.
Apesar da ordem cronológica dos aconte- O conceito de autonomia utilizado no do-
cimentos em torno da construção de um cumento também está referido a Paulo Freire,
texto para a conformação da PNPS, não destacando a afetividade, a amorosidade, a

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A Política Nacional de Promoção da Saúde: texto e contexto de uma política 97

capacidade criadora e a busca da felicidade a política ainda define-se como uma proposta
como igualmente relevantes e indissociáveis de caráter transversal e intersetorial, numa
das demais dimensões humanas. Dessa forma, discussão próxima à que se realizava desde
a promoção da saúde é indicada como viven- 2003 no âmbito da SE.
cial e colada ao sentido de viver e aos saberes Na PNPS de 2006, há um esforço em con-
acumulados, tanto pela ciência como pelas ceituar a promoção da saúde a partir dos
tradições culturais locais e universais. Ou seja, marcos legais das cartas da promoção inter-
reforça o reconhecimento de que as ações de nacionais. Assim, por meio de um panorama
promoção da saúde apresentam um ‘compo- geral, a PNPS localiza o debate como estratégia
nente regulatório’, mas faz a aposta de que de articulação transversal, com estreita relação
tais ações podem ser mais indutoras e estar a com a vigilância em saúde, privilegiando o
serviço do desenvolvimento humano e do pro- bem de todos e a construção de uma sociedade
cesso de emancipação da nação, com mobili- solidária, cujo objetivo geral se concentra em
zação comunitária e intimamente vinculada à torno da redução de vulnerabilidade e riscos
concepção de território vivo, de Milton Santos. à saúde e da qualidade de vida. Nesse ponto, a
O documento afirma que a promoção da discussão se aproxima da vigilância em saúde
saúde não deveria ser mais um nível de atenção e, portanto, do conceito de prevenção.
e nem deveria corresponder a ações anteriores A estrutura do documento reforça uma
à prevenção, colocando-se o desafio de reo- preocupação com a definição de estratégias
rientar os serviços de saúde para superar a de ação que sejam passíveis de acompanha-
fragmentação do assistir à doença, em direção mento, com proposições e compromissos de
à atenção integral. Com isso, a aposta refere-se gestão que reforçam a promoção da saúde
às estratégias intersetoriais para definição de de caráter regulatório, focada na mudança
problemas prioritários, buscando a integração dos estilos de vida e na redução de fatores de
e implementação pelos municípios. risco, ainda que acompanhada da perspecti-
O documento para discussão de 2002 va do conceito ampliado de saúde.
não apresenta autoria. Trata-se de um texto A ênfase discursiva do documento define
que discute em profundidade a temática da estratégias prioritárias que reforçam uma
promoção, numa interface com as ciências dada perspectiva de promoção da saúde,
humanas e sociais. O uso de um vocabulário que visa ao controle e prevenção de doenças
diferenciado e crítico chama a atenção. E, com ações que pautam hábitos e estilos de
apesar de enunciar-se como um documento vida, como: alimentação saudável, prática
propositivo da Política, não apresenta estra- corporal, atividade física, controle do ta-
tégias ou ações para operacionalização de bagismo, redução da morbimortalidade
uma política. em decorrência do uso abusivo de álcool e
O documento aprovado em 2006 segue outras drogas, redução da morbimortalida-
outro caminho discursivo em relação ao de de por acidentes de trânsito, prevenção da
2002. Foi assinado pelo Ministro José Agenor, violência e cultura da paz e promoção do
que apresenta um panorama geral da promo- desenvolvimento sustentável.
ção da saúde no campo da saúde, recuperando O documento de 2006 recorreu exclusiva-
a Agenda de Compromisso pela Saúde defi- mente a textos nacionais oficiais, sem qual-
nida pelo MS em 2005 e o Pacto pela Saúde quer menção ao documento produzido em
de 2006. O Ministro identifica como grande 2002. É um documento que adota o discurso
desafio para a PNPS o estabelecimento de um oficial, com objetivos e ações que não condi-
diálogo entre as diversas áreas do setor saúde, zem com a dimensão complexa ora apresenta-
incluindo o setor privado, não governamental da no debate da política, mantendo-se restrito
e outros setores do governo. Com tal ênfase, ao debate das estratégias para combate dos

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98 SILVA, P. F. A.; BAPTISTA, T. W. F.

determinantes sociais da saúde. Evidencia-se política, quais sejam: solidariedade, felici-


nos documentos e bibliografia que a política dade, ética, respeito à diversidade, huma-
mediou diferentes interesses e grupos do MS nização, corresponsabilidade, justiça social
e acabou conformando um texto com diferen- e inclusão social. É interessante destacar o
tes enfoques, num consenso possível. argumento da ‘felicidade’, que, no conjunto
Em 2014, o documento da PNPS de 2006 de argumentos de 2002, já era tratada como
passou por um processo de redefinição, relevante e indissociável das demais dimen-
que, para Rocha et al. (2014), foi resultado de sões humanas, mas não fez parte do texto de
‘múltiplos movimentos simultâneos’ envol- 2006, sendo retomada em 2014.
vendo o GT promoção da saúde da Abrasco, O objetivo geral da PNPS continua em
MS, Organização Pan-Americana da Saúde torno da redução de vulnerabilidade e
(Opas) e o Comitê Gestor da PNPS. Ampliou- riscos à saúde e da qualidade de vida, no
se o processo de participação em relação a sentido da promoção da equidade e da
2002 e 2006, envolvendo e mobilizando dife- melhoria das condições e modos de viver.
rentes atores em torno da revisão da política. Dentre os temas prioritários, foram man-
A redefinição da PNPS de 2014 (BRASIL, tidos aqueles tratados como ações es-
2014), assinada pelo então ministro da saúde tratégicas na PNPS de 2006, tais como:
Arthur Chioro, justificou-se no próprio texto alimentação, atividades físicas, tabagis-
pela necessidade de incrementar as ações de mo, uso abusivo de álcool e outras drogas;
promoção da saúde no território, garantindo cultura da paz e desenvolvimento susten-
sua consonância com os princípios e diretri- tável. A novidade decorreu do conceito
zes do SUS. O texto apresenta esse esforço de ampliado de promoção da mobilidade
aproximação com os diferentes movimentos segura e da formação e educação perma-
da promoção fazendo menção nas consi- nente, embora ambos, em alguma medida,
derações iniciais a portarias e decretos da também já estivessem presentes em 2006.
saúde publicados de 2007 a 2012. O documento finaliza com a divisão de com-
Toda essa fundamentação legal imprime petências gerais e privativas de cada esfera de
ao documento um tom de articulação e íntima governo e com a definição sobre o financia-
relação com os pressupostos das demais polí- mento, indicando que este deve ser objeto de
ticas de saúde que se destacam nos anos 2000, pactuação prévia na Comissão Intergestores
as quais precisam se debruçar sobre a lógica Tripartite (CIT). Diferentemente dos docu-
de organização do SUS com um olhar voltado mentos de 2002 e 2006, o texto de 2014 apre-
para o território e a partir dele, considerando senta-se num formato mais rígido de lei, não
a regionalização e um conjunto claro de dis- fazendo menção a referências bibliográficas
positivos de financiamento e cogestão. ou autoria.
O enunciado da política fundamenta-se Para melhor compreensão dos diferentes
no conceito ampliado de saúde e nos re- enfoques nos documentos, elaborou-se um
ferenciais teóricos da promoção da saúde, quadro comparativo dos documentos de 2002,
buscando a produção da saúde nos âmbitos 2006 e 2014, onde estabeleceram-se eixos de
individual e coletivo, enfatizando a neces- análise para aprofundar o debate, sem a pre-
sidade de articulação intra e intersetorial e tensão de esgotá-los (quadro 1). Trata-se de
da Rede de Atenção à Saúde (RAS) com as visualizar as transformações ocorridas ao
demais redes de proteção, privilegiando a longo da produção do texto da política, não
participação e o controle social. somente do ponto de vista de sua redação,
Dentre as mudanças, o documento esta- mas dos sentidos em disputa que definiram as
belece um conjunto de valores considera- escolhas conceituais da perspectiva que pre-
dos fundantes no processo de efetivação da valeceu na PNPS em 2014.

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A Política Nacional de Promoção da Saúde: texto e contexto de uma política 99

Quadro 1. Documentos da Política Nacional de Promoção da Saúde (trechos dos documentos - página) – 2002, 2006, 2014

Argumentos 2002 2006 2014


- Tornar as condições políticas, - Geral: Promover a qualidade de vida e - Geral: Promover a equidade e a melhoria
econômicas, sociais, culturais, reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde das condições e modos de viver, ampliando
ambientais e de conduta favoráveis relacionados aos seus determinantes a potencialidade da saúde individual e da
à saúde dos indivíduos e de suas e condicionantes – modos de viver, saúde coletiva, reduzindo vulnerabilidades
comunidades no pressuposto ético de condições de trabalho, habitação, e riscos à saúde decorrentes dos
defesa da vida e do desenvolvimento ambiente, educação, lazer, cultura, acesso determinantes sociais, econômicos,
humano; a bens e serviços essenciais. políticos, culturais e ambientais.
- Reduzir as desigualdades quanto - 12 objetivos específicos. - 13 objetivos específicos.
ao acesso às oportunidades para o
Objetivos desenvolvimento máximo do potencial
de saúde;
- Qualificar o Sistema Único de
Saúde na perspectiva da promoção
da saúde como enfoque que
permeie suas políticas e ações
e favoreça sua sustentabilidade,
por meioda melhor efetividade na
abordagem dos problemas de saúde e
redirecionamento de recursos.
- O Brasil vem construindo a - (8ª CNS, 1986) Era um momento chave - A PNPS traz em sua base o conceito
partir de sua reforma sanitária um do movimento da Reforma Sanitária ampliado de saúde e o referencial teórico
extraordinário processo de reforma do brasileira (10) da promoção da saúde (2)
Reforma Sanitária Estado no setor (5) - Na perspectiva ampliada de saúde,
e Conceito - Políticas de promoção da como definida no âmbito do movimento
Ampliado de saúde devem contribuir para o da Reforma Sanitária Brasileira (10)
Saúde aprofundamento das promessas da - Na base do processo de criação do SUS
reforma sanitária brasileira (10) encontram-se: o conceito ampliado de
- Recolocar o conceito amplo e positivo saúde [...] (10)
de saúde, como valor de vida (27)
- Trabalha com o princípio da - Ampliar a autonomia e a - Autonomia, que se refere à identificação
autonomia dos indivíduos e das corresponsabilidade de sujeitos e de potencialidades e ao desenvolvimento
comunidades (9) coletividades, inclusive o poder publico de capacidades (3)
- Novas agendas como o estímulo à (17) - Estimulo à pesquisa, à produção e à
autonomia dos indivíduos (10) - Redução de danos pelo consumo de difusão de experiências, conhecimentos
Autonomia - Promover saúde é educar para a álcool e outras drogas que envolvam a e evidências que apoiem a tomada de
autonomia como construído por Paulo corresponsabilização e autonomia da decisão, a autonomia (4)
Freire (13) população (37) - Autonomia de sujeitos e coletividades (5)
- Reorientação do cuidado na - Corresponsabilização e autonomia da
perspectiva do respeito à autonomia população (8)
(36)
- Embora tenha um componente - Não utiliza o termo - Educação e formação como incentivos
regulatório, devem ser mais indutoras à atitude permanente de aprendizagem
e estar a serviço do desenvolvimento sustentada em processos pedagógicos
humano e do processo de problematizadores, dialógicos, libertadores,
emancipação da nação (14) emancipatórios e críticos (7)
Emancipação - Os países periféricos e semi-
periféricos como o Brasil, devem
se debruçar em discutir e construir
alternativas ao desenvolvimento,
sustentadas numa lógica ecológica e
emancipatória (16)

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100 SILVA, P. F. A.; BAPTISTA, T. W. F.

Quadro 1. (cont.)

Argumentos 2002 2006 2014


- Promover saúde também é aceitar - Fortaleçam o protagonismo dos - Articular suas ações com as demais redes
o imenso desafio de desencadear um cidadãos em sua elaboração e de proteção social, com ampla participação
processo amplo que inclui a articulação implementação, ratificando os preceitos e controle social (2)
de parcerias, atuações intersetoriais e constitucionais de participação social (11) - Incentivar à gestão democrática,
participação popular (12) - A criação de mecanismos de participativa e transparente para
- A participação da população não mobilização e participação como os fortalecimento da participação (4)
somente nas instâncias formais, mas vários movimentos e grupos sociais (11) - Contribuir para a adoção de práticas
em outros espaços constituídos por - A saúde, como produção social de sociais e de saúde centradas na equidade,
atividades sistemáticas e permanentes determinação múltipla e complexa, exige na participação e no controle social (4)
(19) a participação ativa de todos os sujeitos - Fortalecer a participação e o controle
Participação
- Ampliar a participação social e envolvidos em sua produção (12) social e as instâncias de gestão
comunitária nas decisões de gestão, - Mecanismos que reduzam as democrática e participativa (9)
no acompanhamento e controle das situações de vulnerabilidade, defendam - Identificar e promover canais de
políticas (28) radicalmente a equidade e incorporem participação no processo decisório (12)
- Incentivar a participação comunitária a participação e o controle sociais na - Promover a participação e o controle
nas decisões da gestão, reforçando o gestão das políticas públicas (12) social e reforçar as ações comunitárias de
papel do controle social (38) - Respeito às diversas identidades promoção da saúde nos territórios (12)
- As evidências mostram que a culturais nos canais efetivos de
participação em grupos exerce um participação no processo decisório (27)
fator protetor para a saúde (38)
- Não utiliza o termo - Fortalecer a participação social como - Empoderamento, que se refere ao
fator fundamental na consecução de processo de intervenção que estimula os
resultados de promoção da saúde, em sujeitos e coletivos a adquirirem o controle
especial a equidade e o empoderamento das decisões e das escolhas de modos de
individual e comunitário (19) vida adequados às suas condições sócio-
Empoderamento - Estimular ações de empoderamento do econômico-culturais (3)
consumidor para o entendimento e uso - Empoderamento coletivo e construção
prático da rotulagem geral e nutricional compartilhada de ações de promoção da
dos alimentos (31) saúde (4)
- Promover o empoderamento e a
capacidade para tomada de decisão (5)
- Promover saúde também é aceitar - O compromisso do setor saúde na - Caracterizando-se pela articulação e
o imenso desafio de desencadear um articulação intersetorial é tornar cada cooperação intra e
processo amplo que inclui a articulação vez mais visível que o processo saúde- intersetorial (2)
de parcerias, atuações intersetoriais e adoecimento é efeito de múltiplos - Intersetorialidade, que se refere ao
participação popular (12) aspectos (14) processo de articulação de saberes,
- Outras medidas consideradas - Mobilização intersetorial para a potencialidades e experiências de sujeitos,
de promoção de saúde, além de proposição e elaboração de medidas grupos e setores (3)
caracterizar políticas intersetoriais, regulatórias que visem a promover a - Estímulo à cooperação e à articulação
representam tomada de posição da alimentação saudável e reduzir o risco intra e intersetorial (4)
Nação (22) de Doenças Crônicas Não Transmissíveis - Organização dos processos de gestão e
- Superar a fragmentação do Estado (DCNT) (30) planejamento
moderno, admitindo a construção de - Incentivar articulações intersetoriais das variadas ações intersetoriais (4)
Intersetorialidade
políticas e ações intersetoriais (27) para a melhoria das condições dos - Articulação e cooperação intra
- Gestão intersetorial dos recursos espaços públicos para a realização de e intersetorial, entendidas como
na abordagem dos problemas e práticas corporais e atividades físicas compartilhamento de planos, metas,
potencialidades em saúde (29) (34) recursos e objetivos comuns (7)
- Aprofundamento do debate dos - Promoção de discussões intersetoriais - Orientar ações integradas e intersetoriais
problemas relacionados com a saúde que incorporem ações educativas à grade nos territórios (8)
de forma intersetorial (41) curricular de todos os níveis de formação - Promover a articulação intra e
(37) intersetorial para apoio à
- Estímulo à articulação intersetorial implantação e implementação da PNPS (11)
que envolva a redução e o controle de
situações de abuso, exploração e turismo
sexual (38)

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A Política Nacional de Promoção da Saúde: texto e contexto de uma política 101

Quadro 1. (cont.)

Argumentos 2002 2006 2014


- Não utiliza o termo - Visando a romper com a excessiva - Reduzir a vulnerabilidade e os riscos
fragmentação na abordagem do à saúde vinculados aos determinantes
processo saúde-adoecimento e reduzir a sociais (4)
vulnerabilidade, os riscos e os danos que - Reduzindo vulnerabilidades e riscos à
nele se produzem (15) saúde decorrentes dos determinantes
- Promover a qualidade de vida e sociais, econômicos, políticos, culturais e
reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde ambientais (4)
relacionados aos seus determinantes e - Fomentar discussões sobre modos de
Vulnerabilidade
condicionantes (17) consumo e produção que [...] aumentem
- Ofertar práticas corporais e atividade vulnerabilidades e riscos à saúde (5)
físicas voltadas tanto para a comunidade - Construir mecanismos de identificação
como um todo como para grupos das potencialidades e das vulnerabilidades
vulneráveis (33) (9)
- Apoio à restrição de acesso a bebidas
alcoólicas de acordo com o perfil
epidemiológico de dado território,
protegendo segmentos vulneráveis (37)
- Evidências mostram que a saúde - (Ao se retomarem as estratégias de - Estimulo à pesquisa, à produção e à
está muito mais relacionada ao modo ação propostas pela Carta de Ottawa) difusão de experiências, conhecimentos
de viver das pessoas do que à ideia até o momento, o desenvolvimento de e evidências que apoiem a tomada de
hegemônica da sua determinação estudos e evidências aconteceu, em decisão (4)
genética e biológica (8) grande parte, vinculado às iniciativas
- Podemos trabalhar com evidências na ligadas ao comportamento e aos hábitos
promoção da saúde se ela se configura dos sujeitos (14)
como um campo de ações transversais - Nessa linha de intervenção
e multissetoriais, que mistura enfoques (comportamental) já é possível encontrar
Evidências
e abordagens variadas (15) um acúmulo de evidências convincentes,
- Um problema crônico em promoção que são aquelas baseadas em estudos
da saúde é a falta de evidências claras epidemiológicos demonstrativos (14)
de sua efetividade (25) - Desenvolver estudos e formular
- As evidências mostram que a metodologias capazes de produzir
participação em grupos exerce evidências e comprovar a efetividade
um fator protetor para a saúde, de estratégias de práticas corporais e
principalmente para os transtornos atividades físicas (35)
mentais (38)
Fonte: BRASIL, 2002, 2006, 2014.

Conclusão evidencia a urgência e a importância da defla-


gração da temática na saúde coletiva no Brasil.
Identificamos nos três documentos da PNPS Sob pena de ser classificado como movi-
três momentos distintos, que, de alguma mento capturado pela agenda internacio-
forma, se complementaram no decorrer da nal – até então bastante evidente e com um
construção da política, denotando a busca apelo claro para formalização como política
pelo amadurecimento do debate. pelos países –, o documento fez o esforço de
O primeiro momento foi marcado pelo do- teorização com base em autores, experiên-
cumento para discussão para uma PNPS de cias e referências brasileiras, no sentido de
2002 contendo a apresentação de conteúdo demonstrar que tudo aquilo, embora presente
que defende o esforço de teorização do campo, na pauta internacional, encontrava-se inti-
trazendo para a agenda política a necessida- mamente vinculado aos preceitos da reforma
de do desenvolvimento de ações, ainda que sanitária, merecendo a atenção de sua institu-
de maneira pouco clara até então, mas que cionalização como política.

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102 SILVA, P. F. A.; BAPTISTA, T. W. F.

O segundo momento, com a edição da PNPS Uma das grandes apostas do documento
de 2006, não parece guardar referência direta de 2014 está no destaque que se dá à intras-
com o primeiro momento quanto à continui- setorialidade, reconhecendo a complexidade
dade, já que se estabelecem sobre novas bases, do setor saúde e as disputas inerentes ao
com um forte componente de vigilância, não só campo, alertando para o grande desafio de
em função de seu novo lugar na estrutura do construção de consensos em seu interior,
MS (SVS), como também fundamentado em tanto quanto para fora dele, o que torna ne-
evidências que demonstravam a urgência no cessário assumir e empreender o debate da
desenvolvimento de uma política que se mos- promoção da saúde com a saúde, no SUS.
trasse potente no enfrentamento dos agravos Nesse sentido, a revisão do documento da
não transmissíveis. A agenda da promoção política em 2014 trouxe de volta ao debate
da saúde se organizou, portanto, em torno de a discussão de valores, para a criação de
um conjunto de questões estratégicas com um fazer que articule diferentes dimensões
um forte componente regulatório, focando humanas, partindo de um reconhecimento
na mudança dos estilos de vida e redução dos ampliado de saúde, que já não se contenta com
riscos, estando mais alinhada à orientação da ações fragmentadas, isoladas e desconectadas
SVS e devendo responder às situações identifi- entre si. A construção do documento envol-
cadas pelos indicadores de saúde. veu diferentes atores, dos diferentes territó-
Assim, em 2006, há uma inflexão impor- rios, das diferentes regiões do Brasil, com o
tante da política com maior operacionaliza- objetivo de desenvolver um debate articulado
ção e definição de estratégias para execução e consciente das novas necessidades do SUS,
da política. Enquanto o documento de 2002 das demais políticas e formas de organização.
apresentava uma reflexão conceitual, sem Trata-se de complementaridade, e não
proposições claras e implementáveis, o do- necessariamente de continuidade, o que
cumento de 2006 trazia proposições e perdia reconhecemos na trajetória de tal política.
na profundidade do debate, com o intuito de Questões aparentemente superadas em 2002,
responder a uma demanda clara de opera- ganham fôlego em 2006 e são retomadas em
cionalização da política. 2014, a exemplo da discussão de risco que foi
O terceiro momento, identificado com retomada em seu sentido mais amplo e não
o documento de 2014, parece unir algumas mais com ênfase nos agravos, como em 2006.
pontas, retomando e aprofundando os con- Ainda assim, é preciso reconhecer que o
ceitos de promoção da saúde e, ao mesmo debate da promoção da saúde apresenta uma
tempo, preservando os elementos já pre- trajetória discursiva que permite o uso polis-
sentes e identificados como necessários sêmico e vinculado aos interesses e preten-
na política de 2006, tais como alimentação sões de quem o empreende. É interessante
saudável, tabagismo, atividade física, por observar que os dilemas desse campo, presen-
exemplo. Avança na interlocução com os tes desde o século XVIII, ainda são bastante
demais dispositivos das políticas no âmbito atuais, em especial na tensão entre ações indi-
do SUS, procurando não perder de vista a viduais e coletivas, exigindo reflexão constan-
necessidade real de por em prática ações te sobre o sentido de promoção da saúde que
concretas. se quer alcançar (FERREIRA; CASTIEL, 2009).
O que está em questão em 2014 já não é O debate brasileiro recente revela essas
mais a importância ou não da promoção da tensões, e a definição de uma Política de
saúde e sim de que forma ela pode ou não promoção da saúde parece tanto reforçar
contribuir de maneira articulada com os uma tendência prescritiva e normalizado-
demais componentes e políticas de saúde. ra da saúde como produzir o debate acerca
dos determinantes sociais e a adoção de

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A Política Nacional de Promoção da Saúde: texto e contexto de uma política 103

uma concepção ampliada de saúde. Nesse ampliado de saúde, mas, de outro, é preciso
sentido, politizar o debate é o primeiro passo reforçar a responsabilidade do Estado na
na construção de uma política de promoção produção de condições de vida condizentes
da saúde no Brasil. De um lado, reconhecer com as necessidades da população, para não
o protagonismo dos sujeitos na construção se correr o risco de se afirmar uma política
da saúde tem se mostrado uma importante que, principalmente, culpabiliza e responsa-
ferramenta na divulgação de um conceito biliza o indivíduo pela sua não saúde. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 91-104, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 105

Núcleo de Apoio à Saúde da Família:


proposta nacional e implementação em
municípios do Rio de Janeiro
The Family Health Support Centre: national proposal and
implementation in towns of Rio de Janeiro

Shirley Soares da Silva Marins do Patrocínio1, Cristiani Vieira Machado2, Márcia Cristina
Rodrigues Fausto3

RESUMO O artigo analisa a implantação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf ) como
uma estratégia da política de Atenção Básica brasileira, com base nas diretrizes nacionais e a
implementação local. O estudo compreendeu dois eixos: caracterização e implantação nacio-
nal do Nasf; e realização de dois estudos de caso municipais no estado do Rio de Janeiro. Os
resultados mostraram que a expansão nacional do Nasf foi expressiva, porém desigual no País
e no estado do Rio. O processo de implementação local variou conforme o contexto, as con-
dições de gestão, as características da Atenção Básica e com as decisões políticas dos atores
municipais, com implicações para o funcionamento dos núcleos.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Políticas públicas


de saúde; Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT This article analyzes the deployment of the Family Health Support Centre as a stra-
tegy under the Brazilian primary health care policy, regards the national guidelines and local
implementation. The study focuses on two objectives: the description of the Nasf and its natio-
nal implementation; and the development of two local case studies in Rio de Janeiro State. The
results showed that Nasf growth has been expressive, yet unequal, both nationwide and in Rio de
Janeiro. The local implementation process varied according to the context, the management con-
1 Fundação
ditions, the primary health care characteristics and to political decisions made by local actors.
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio KEYWORDS Primary Health Care; Family Health Strategy; Public health Policy; Unified Health
Arouca (Ensp) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. System.
sssmarins@yahoo.com.br

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
cristiani@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
marciafausto@ensp.fiocruz.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005373 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015
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Introdução envolvidos na saúde da família, além da


equipe mínima, mediante normas e incenti-
Nas últimas décadas, o tema da Atenção vos financeiros, por meio da conformação de
Primária à Saúde (APS) ganhou destaque nas equipes de saúde bucal a partir de 2001 e pela
agendas políticas e na produção acadêmica, proposição dos Núcleos de Apoio à Saúde da
existindo diferentes concepções sobre o seu Família (Nasf ) em 2008 (BRASIL, 2008).
papel nos sistemas de saúde. O Nasf representa uma proposta federal de
A APS pode ser interpretada de quatro inserção de outros profissionais na saúde da
formas distintas, não excludentes: um con- família com o objetivo de apoiar as equipes
junto de atividades; um nível de atenção; mínimas já existentes, expandir o escopo e
uma estratégia para a organização do sistema melhorar a resolutividade das ações. Dessa
e uma filosofia que deve permear todo o forma, constituiu-se uma importante inovação
sistema de saúde, relacionada ao reconheci- da política nacional nos anos 2000 ao propiciar
mento do direito à saúde (VUORI, 1986). a expansão e diversificação de profissionais
Starfield (2004) afirma que a APS deve se na Atenção Básica (AB) e enfatizar a lógica
basear em tecnologia e métodos práticos, de apoio matricial nesse âmbito, reiterando a
representando o primeiro nível de contato saúde da família como estratégia central para a
dos indivíduos, famílias e comunidade com organização da ABS (CASTRO; MACHADO, 2012).
o sistema de saúde e elemento fundamen- A proposta do Nasf se fundamenta nas
tal para assegurar o processo de atenção concepções de equipe de referência e de
continuada à saúde. A autora propôs quatro apoio matricial que, para Campos e Domitti
atributos para balizar a organização da APS: (2007) são, ao mesmo tempo, arranjos orga-
o primeiro contato, a longitudinalidade, a in- nizacionais e metodologias para a gestão
tegralidade e a coordenação. do trabalho em saúde. Nessa perspectiva, a
Quanto à organização do trabalho na Equipe de Saúde da Família (EqSF) seria a
atenção primária, Gérvas (2004) identifica referência do cuidado para o sujeito e o Nasf
certa escassez de estudos comparativos configuraria a estratégia de apoio matricial a
sobre as formas de organização, modalida- essa equipe (BRASIL, 2009).
des de pagamento e composição das equipes Este artigo apresenta os resultados de
profissionais. O autor reconhece o esforço uma pesquisa que se propôs a analisar a
em alguns países europeus (Espanha, implantação do Nasf como uma estratégia
Finlândia, Grécia, Portugal e Suécia) de co- da política de AB no Brasil, com base nas
operação interdisciplinar na APS, com pre- diretrizes nacionais e os processos de imple-
sença de diversos profissionais nas equipes, mentação local. O estudo realizado partiu da
tais como: médicos, enfermeiros, dentistas, hipótese que a adoção da proposta do Nasf
assistentes sociais. implica a reconfiguração da organização do
No Brasil, a partir dos anos 1990, houve trabalho das equipes locais de AB, podendo
uma expansão dos serviços de Atenção Básica vir a assumir diferentes formatos, a depen-
em Saúde (ABS). Isso aconteceu por meio der das opções políticas e das características
da indução federal do Programa Saúde da dos serviços nos distintos municípios.
Família, que preconizou a formação de equipe
mínima de profissionais para a Atenção
Primária, composta por médico generalista, Metodologia
enfermeiro, auxiliar ou técnico de enferma-
gem e agentes comunitários de saúde. O estudo compreendeu dois eixos: (1) descri-
Nos anos 2000, a política nacional passou ção do contexto nacional, por meio da caracte-
a incentivar a ampliação dos profissionais rização da proposta e da implantação nacional

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Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro 107

do Nasf; e (2) análise da implantação do Nasf à Gestão Estratégica do Ministério da Saúde


no estado do Rio de Janeiro, considerando o para o cálculo do indicador ‘razão entre EqSF
panorama estadual e o processo de implemen- e os Nasf’ (número de EqSF/número de Nasf )
tação em dois municípios-caso selecionados. nos âmbitos nacional, regional e estadual.
O recorte temporal do estudo correspon- A proposição desse indicador se baseou no
de ao período inicial de implantação do Nasf, parâmetro nacional de recomendação de um
de 2008 (ano de publicação da regulamenta- Nasf para cada 8 a 15 EqSF. Os dados de com-
ção do Nasf e início de sua implantação no posição profissional dos Nasf para o Brasil
País) a 2011 (ano de realização da pesquisa foram extraídos do Cadastro Nacional dos
de campo nos municípios). Estabelecimentos de Saúde (CNES).
Partiu-se da proposição de Walt (1994) O segundo eixo do estudo enfocou a
que o estudo das políticas de saúde requer a adesão e implantação do Nasf no estado do
compreensão do processo político e do con- Rio de Janeiro, considerando o panorama
teúdo das políticas. Definiram-se as seguin- estadual e dois estudos de casos municipais.
tes dimensões de análise: desenho do Nasf Inicialmente, analisaram-se os 33 projetos en-
(diretrizes, estratégias, inserção na política viados pelos municípios para cadastramento
de AB); composição profissional dos Nasf dos Nasf, de onde se obtiveram os dados de
(nacional, estadual, municipal); panorama composição profissional dos Nasf no Estado.
da implantação do Nasf (no plano nacional Realizou-se ainda uma entrevista semiestru-
e estadual, considerando a razão de equipes turada com um dirigente estadual envolvido
de Estratégia Saúde da Família – ESF/Nasf ); no processo de implantação dos Nasf.
processo de implementação e caracterís- De maneira análoga ao diagnóstico nacio-
ticas do Nasf nos municípios selecionados nal, o panorama estadual de implantação do
(estratégias para a implementação, lógica de Nasf foi mapeado considerando-se o indica-
funcionamento, relação com as EqSF e com a dor ‘razão entre EqSF e os Nasf’ no conjunto
rede de atenção). do Estado, em suas regiões e municípios. A
O primeiro eixo do estudo – contexto fonte utilizada para aferir o número de Nasf
nacional – compreendeu inicialmente a ca- foram os projetos municipais.
racterização da análise da proposta do Nasf A seleção dos municípios do estado do
com base em revisão bibliográfica e em Rio de Janeiro para estudo de casos consi-
análise documental, considerando os enun- derou os critérios: credenciamento do Nasf
ciados quanto a seus propósitos, desenho e pelo Ministério da Saúde há mais de um ano,
estratégias de operacionalização no âmbito porte populacional, diversidade de inserção
da política de AB. A revisão bibliográfica regional e indícios da adoção de modelos de
foi realizada nas bases: Biblioteca Virtual funcionamento distintos (segundo os pro-
em Saúde, Scientific Eletronic Library jetos analisados e informações do dirigente
Online (Scielo) e Portal de Periódicos da estadual entrevistado). Selecionaram-se dois
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal municípios de diferentes regiões do Estado,
de Nível Superior (Capes). A análise docu- sendo um de pequeno porte (até 50 mil ha-
mental compreendeu documentos e porta- bitantes) e outro de médio porte (entre 50 e
rias do Ministério da Saúde relativos à AB e 100 mil habitantes).
ao Nasf identificados na página institucional Os estudos de caso foram realizados nos
e no sistema Saúde Legis. dois municípios (identificados como A e B),
O panorama nacional de implantação dos considerando o contexto e o processo como
Nasf de 2008 a 2011 foi mapeado a partir de foram implementados os Nasf no nível local,
dados secundários da evolução quantitativa estratégias adotadas, composição profissio-
de EqSF e dos Nasf obtidos da Sala de Apoio nal e funcionamento dos Nasf. Os métodos

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envolveram análise de documentos mu- abrangência e escopo e de maior articulação


nicipais, visitas aos Nasf e a realização de com a rede de serviços. A proposta reforçou
entrevistas semiestruturadas, sendo duas a ideia de que as EqSF deveriam permane-
entrevistas no município A (com um diri- cer como porta de entrada do sistema, ao
gente de AB e um profissional do Nasf ) e enfatizar a importância da atuação do Nasf
três entrevistas no município B (com um di- na lógica do apoio matricial, e não do aten-
rigente de AB, um coordenador do Nasf e um dimento ambulatorial especializado (CASTRO;
profissional de um Nasf ). MACHADO, 2012).
O projeto foi aprovado por Comitê de O Nasf é constituído por uma equipe de
Ética em Pesquisa da instituição responsável apoio formada por profissionais de diferen-
por meio do Parecer Nº 224/10. tes áreas de conhecimento que atuam nos
territórios de responsabilidade das EqSF.
Entre os seus propósitos e diretrizes, desta-
Resultados e discussão cam-se a busca da integralidade da atenção
e de organização de linha de cuidado conti-
nuado em conjunto com a EqSF e em arti-
O Nasf: a proposta e o contexto ini- culação com outros serviços. A presença de
cial de implantação nacional outros profissionais de saúde e especialida-
des médicas visa a aprimorar o cuidado ao
A proposta do Nasf foi formulada pelo ampliar o arcabouço de conhecimentos na
Ministério da Saúde, em debates com outros AB a partir da dimensão técnico-pedagógica
atores nacionais, com o objetivo de ampliar o do apoio matricial. A partir do trabalho da
escopo da AB e sua resolutividade, reforçan- equipe do Nasf, a porta de entrada pode tor-
do a ESF. O cerne da proposta é a constitui- nar-se mais resolutiva e promover o acesso
ção de equipes compostas por profissionais mais organizado da população aos outros
de saúde relevantes para o cuidado na ABS, níveis do sistema de saúde. Nesse sentido,
mas que não constituíam as equipes mínimas o Nasf pode ser um dispositivo que favore-
de saúde da família, visando a oferecer apoio ça uma ABS coordenadora do cuidado e a
a essas equipes e fortalecer algumas linhas articulação entre AB e os outros níveis do
de cuidado em saúde (BRASIL, 2009). sistema (BRASIL, 2009).
Os debates sobre a incorporação e expan- A proposta do Nasf foi lançada em 2008,
são de outras categorias profissionais na AB posteriormente à publicação da Política
que culminaram na proposta do Nasf tiveram Nacional de Atenção Básica (PNAB) em
início em 2003 no âmbito do Ministério 2006 (BRASIL, 2006), compreendendo duas mo-
da Saúde, se expressando nas reuniões da dalidades: o Nasf 1 composto por, no mínimo,
Comissão Intergestores Tripartite e no cinco ocupações profissionais de saúde não
Conselho Nacional de Saúde até 2008, quando coincidentes e o Nasf 2, composto, por no
a proposta foi lançada oficialmente. Os atores mínino, três (BRASIL, 2008). Em 2010, criou-se a
que se destacaram nesse debate foram o modalidade Nasf 3, voltada a prioridades em
Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de saúde mental – atenção a usuários de crack,
Secretários de Saúde (Conass), o Conselho álcool e outras drogas – em municípios
Nacional de Secretários Municipais de Saúde com população infe­rior a 20.000 habitantes
(Conasems), o Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2010).
(CNS) e representantes de entidades profis- Propôs-se ainda o Nasf intermunicipal para
sionais em saúde (CASTRO; MACHADO, 2012). viabilizar a implantação de núcleos por meio
O argumento central foi a qualificação de consórcios entre municípios que não atin-
da AB, na perspectiva de ampliação de sua gissem escala para implantá-los isoladamente

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Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro 109

(BRASIL, 2008).
No País, foram credenciados 136 equipes ribeirinhas e fluviais – e à Academia
Nasf intermunicipais entre 2008 e 2011, ano da Saúde; 2) flexibilização da carga horária
em que essa modalidade foi extinta. com o objetivo de fixação dos profissionais;
A PNAB divulgada em 2011 incluiu novas 3) extinção do Nasf intermunicipal, mantido
diretrizes para o Nasf, como o aumento, de o financiamento apenas aos já habilitados; 4)
13 para 19, das categorias profissionais ad- supressão do Nasf 3, que tornou-se automa-
mitidas para compor o núcleo e o reforço do ticamente Nasf 2 (BRASIL, 2012).
papel simultaneamente matriciador e assis- Em dezembro de 2011, existiam no territó-
tencial das equipes de apoio. Outras inova- rio nacional 1.589 núcleos, sendo 1.415 Nasf 1
ções foram: 1) vinculação às equipes de AB de e 174 Nasf 2, cuja composição profissional é
populações específicas – consultório de rua, apresentada na gráfico 1.
 Gráfico  1.  Número  de  profissionais  de  Nasf  credenciados,  por  
Gráfico 1. Número de profissionais de Nasfocupação  
credenciados, por p rofissional  
ocupação profissional - –  Brasil,  
Brasil, 2011 2011  
Fisioterapeuta  
Psicólogo  
Nutricionista  
Assistente  Social  
Profissional  de  Educação  Física  
Fonoaudiólogo  
Farmacêu@co  
Terapeuta  Ocupacional  
Médico  Pediatra  
Médico  Ginecologista  
Médico  Psiquiatra  
Médico  Homeopata  
Médico  Acupunturista  
Outros  

0   500   1000   1500   2000   2500  

Nº de Profissionais

Em relação à composição dos profissio- para inserção na ESF (CASTRO; MACHADO, 2012).
nais nos Nasf, observa-se que a categoria Entretanto, destacam-se dentre os médicos,
profissional mais frequente nacionalmente pediatras, ginecologistas e obstetras, o que
é o fisioterapeuta, seguida por psicólogo, pode representar a legitimação desses pro-
nutricionista e assistente social. A pequena fissionais, que atuam historicamente no
quantidade das especialidades médicas em âmbito da ABS.
relação às outras categorias profissionais A adesão ao Nasf foi variada no território
da saúde corrobora o resultado de estudo nacional, como pode ser visto na tabela 1, que
anterior sobre os condicionantes da formu- expõe indicadores selecionados de implanta-
lação da proposta, que registrou forte influ- ção da ESF e do Nasf por Unidades Federadas
ência da reivindicação de outras categorias (UF), regiões e total do Brasil em 2011.

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110 PATROCÍNIO, S. S. S. M.; MACHADO, C. V.; FAUSTO, M. C. R.

Tabela 1. Indicadores selecionados de implantação da ESF e do Nasf – UF, regiões, Brasil – 2011

Abrangência
Nº de
Estimada Razão Equipe
População Equipes Nº Nasf
Região UF ESF Nº Nasf 1 Nº Nasf 2 de Saúde da
Estimada de Saúde Total
% Família/ Nasf
da Família

AC 746.386 138 60,0 7 2 9 15,3


AM 3.538.387 515 48,1 30 1 31 16,6
AP 684.309 128 63,0 15 2 17 7,5
Norte PA 7.688.593 952 41,9 52 5 57 16,7
RO 1.576.455 277 58,0 8 0 8 34,6
RR 460.165 79 54,6 4 2 6 13,1
TO 1.400.892 408 86,9 15 4 19 21,4
Total 15.864.454 2.497 50,9 131 16 147 16,9
AL 3.143.384 755 72,3 40 9 49 15,4
BA 14.097.534 2.748 61,9 103 45 148 18,5
CE 8.530.155 1.834 69,3 140 10 150 12,2
MA 6.645.761 1.783 77,9 80 11 91 19,5
Nordeste PB 3.791.315 1.242 92,9 97 11 108 11,5
PE 8.864.906 1.870 68,2 125 11 136 13,7
PI 3.140.328 1.108 96,6 53 27 80 13,8
RN 3.198.657 863 75,4 53 27 80 10,7
SE 2.089.819 529 81,4 9 0 9 58,7
Total 53.081.950 12.732 72,5 700 151 851 18,1
DF 2.609.998 110 14,7 4 0 4 27,5

Centro- GO 6.080.716 1.159 61,7 38 14 52 22,2


Oeste MS 2.477.542 450 60,0 16 18 34 13,2
MT 3.075.936 589 63,2 8 12 20 29,4
Total 14.058.094 2.308 53,2 66 44 110 20,9
ES 3.547.055 567 51,6 4 3 7 81,0
MG 19.728.701 4.333 69,8 227 30 257 16,8
Sudeste
RJ 16.112.678 1.880 39,4 97 1 98 19,1
SP 41.587.182 3.524 28,7 125 0 125 28,1
Total 80.364.410 10.304 41,8 453 34 487 21,1
PR 10.512.349 1.822 56,0 62 6 68 26,7
Sul RS 10.733.030 1.232 36,5 16 7 23 53,5
SC 6.317.054 1.400 70,4 42 0 42 33,3
Total 27.386.891 4.454 51,7 120 13 133 33,4
BRASIL 190.755.799 32.295 53,4 1415 174 1.589 20,3

Nota: Dados populacionais – IBGE (Acesso em: 20 maio 2012). Demais dados – Sala de Apoio à Gestão Estratégica do Ministério da
Saúde (Acesso em: 20 maio 2012).

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Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro 111

Observa-se que, no Brasil, a razão EqSF/ O Nasf no Rio de Janeiro: panorama


Nasf está acima da faixa recomendada pelo estadual e implementação local
Ministério da Saúde. No País, essa razão é
20,3 quando deveria estar entre 8 e 15, devido O estado do Rio de Janeiro passou por um
à quantidade de EqSF que devem ser vincula- intenso processo de descentralização em
das a cada Nasf. Portanto, os Nasf têm a pos- saúde nos anos 1990, quando os municípios
sibilidade de se expandir no País, com vistas assumiram muita responsabilidade na gestão
a um adequado atendimento quantitativo às do sistema (VIANNA; LIMA, 2013), principalmente na
equipes já existentes. Visto que a abrangência AB, afirmando a agenda mais geral da política
populacional da ESF também tem possibili- de saúde no País. As características da AB em
dade de expansão nacional, é possível que o saúde no Estado são influenciadas pelas pe-
número de Nasf aumente à medida que novas culiaridades dos municípios, que apresentam
EqSF vierem a ser implantadas. diferentes perfis e capacidades de gestão do
Em relação às regiões do Brasil, a que apre- Sistema Único de Saúde (SUS), o que permite
senta menor razão EqSF/Nasf é a região Norte variações na sua organização local.
(16,9), e a que tem o maior razão é a região Sul A adesão dos municípios fluminenses à
(33,4). Dessa forma, é possível sugerir que, na proposta dos Nasf ocorreu desde o ano de
primeira, os municípios em média aderiram publicação da primeira regulamentação
mais ao Nasf para apoio às EqSF já existentes, federal. Entre 2008 e 2011, dos 92 municípios
enquanto na segunda ainda há elevada possibi- do Estado, 34 enviaram projetos de implan-
lidade de aumento do número de Nasf. A maior tação de Nasf para aprovação da Comissão
adesão de credenciamentos no Norte pode Intergestores Bipartite (CIB)/RJ. Destes, 33
estar relacionada às dificuldades anteriores de projetos foram aprovados, sendo trinta Nasf
inserção de outros profissionais de saúde e es- 1, um Nasf 2 e dois Nasf 3. Os municípios que
pecialidades médicas básicas, atenuadas pela aderiram à proposta localizam-se, predomi-
introdução do incentivo financeiro do Nasf. No nantemente, nas regiões do centro ao sul do
entanto, na região Sul, outras formas de organi- estado do Rio de Janeiro, com menor adesão
zar a ABS, com a inserção de outros profissionais, nas regiões serrana e norte fluminense.
já poderiam estar bem desenvolvidas nos muni- A atuação da esfera estadual na imple-
cípios, o que pode explicar em parte a menor mentação dos Nasf foi relativamente restrita,
adesão à proposta no período estudado. Cabe voltada para esclarecimentos e apoio aos mu-
considerar ainda que nenhuma região do País nicípios para elaboração dos projetos, recebi-
está, em média, dentro da faixa de razão EqSF/ mento e análise das propostas e organização do
Nasf recomendada pelo Ministério da Saúde. credenciamento junto à CIB. No entanto, des-
Quanto às Unidades da Federação, des- tacou-se a proeminência da equipe estadual de
tacam-se o Amapá, por apresentar a menor saúde mental, que se articulou com os municí-
razão entre número de EqSF e Nasf do País pios para incentivar a inserção de profissionais
(7,5), e o Espírito Santo, por ter a razão mais dessa área nos Nasf, o que de fato se refletiu na
elevada de, em média, 81 EqSF para cada Nasf. composição profissional dos núcleos.
Somente sete UF estão de acordo com a faixa A gráfico 2 mostra a distribuição dos pro-
recomendada para a relação EqSF/Nasf: um fissionais que compunham os Nasf no estado
estado da região Norte (RR); cinco estados do Rio de Janeiro por ocupação profissional,
da região Nordeste (CE, PB, PE, PI, RN) e um mapeada a partir dos projetos de Nasf envia-
estado da região Centro-Oeste (MS). dos à Secretaria de Estado de Saúde (SES)/RJ.

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112 PATROCÍNIO, S. S. S. M.; MACHADO, C. V.; FAUSTO, M. C. R.

Gráfico  2.  Número  de  profissionais  do  Nasf,  por  ocupação  –  


Gráfico 2. Número de profissionais do Nasf,estado  
pro ocupação -d o  Rdoio  
estado Rio d dee  Janeiro  
Janeiro - 2011 –  2011  
Psicólogo  
Assistente  Social  
Fisioterapeuta  
Nutricionista  
Médico  Ginecologista  
Médico  Pediatra  
Educador  Físico  
Médico  Psiquiatra  
Fonoaudiólogo  
Farmacêu8co  
Terapeuta  Ocupacional  
Outros  

0   5   10   15   20   25   30   35  

Observou-se que as categorias pro- invertendo-se a ordem de predominância, já


fissionais mais frequentemente esco- que no conjunto Brasil a categoria mais pre-
lhidas no Estado para os Nasf foram: sente no Nasf foi a de fisioterapeuta, seguida
psicólogo, assistente social, fisioterapeuta de psicólogo, nutricionista e assistente social.
e nutricionista. Logo em seguida, estavam Talvez o peso da atuação da equipe de saúde
as especialidades médicas básicas, repre- mental no processo de implantação dos Nasf
sentadas pelos médicos ginecologista e no Estado tenha influenciado a maior frequ-
pediatra. Comparando-se com o perfil na- ência de psicólogos no Rio de Janeiro.
cional de composição profissional, chama A tabela 2 expõe alguns indicadores sele-
a atenção que as quatro profissões mais cionados de implantação da ESF e do Nasf
frequentes tenham sido as mesmas, apenas nos municípios do estado do Rio de Janeiro.

Tabela 2. Indicadores selecionados de implantação da ESF e do Nasf nos municípios do estado do Rio de Janeiro com Nasf implantados – 2011

Abrangência Razão
N° de
Estimada Equipe de
População Equipes de N° N° N° Nasf
Região de Saúde Município ESF Saúde da
Estimada Saúde da Nasf 1 Nasf 2 Total
% Família/
Família
Nasf
Angra dos Reis 173.370 37 75,3 4 0 4 9,2
Baía de Ilha Grande
Mangaratiba 37.343 11 100,0 1 0 1 11,0
Armação dos Búzios 28.279 8 100,0 1 0 1 8,0
Baixada Casimiro de Abreu 36.360 10 97,6 1 0 1 10,0
Litorânea São Pedro da Aldeia 89.739 12 47,1 1 0 1 12,0
Saquarema 75.906 11 51,1 1 0 1 11,0
Capital Rio de Janeiro 6.355.949 506 27, 6 47 0 47 10,7
Areal 11.540 5 100,0 1 0 1 5,0
Eng. Paulo de Frontin 13.324 6 100,0 1 0 1 6,0
Centro Sul-
Mendes 17.981 7 100,0 1 0 1 7,0
Fluminense
Paraíba do Sul 41.367 17 100,0 2 0 2 8,5
Três Rios 77.851 22 94,8 2 0 2 11,0

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015


Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro 113

Tabela 2. (cont.)
Barra Mansa 178.355 31 60,1 3 0 3 10,3
Pinheiral 22.968 8 100,0 1 0 1 8,0
Piraí 26.637 10 100,0 1 0 1 10,0
Médio Paraíba
Rio Claro 17.517 8 100,0 1 0 1 8,0
Rio das Flores 8.633 4 100,0 0 1 1 4,0
Volta Redonda 259.012 60 80,2 8 0 8 7,5
Metropolitana Belford Roxo 472.008 32 23,5 3 0 3 10,6
I
Mesquita 168.966 14 28,6 1 0 1 14,0
Seropédica 79.179 16 70,6 1 0 1 16,0
Metropolitana
Maricá 131.355 14 37,8 1 0 1 14,0
II
São Gonçalo 1.008.065 166 57,2 15 0 15 11,0
Silva Jardim 21.356 8 100,0 1 0 1 8,0
Norte Macaé 212.433 25 41,7 3 0 3 8,3
Fluminense Quissamã 20.747 8 100,0 1 0 1 8,0
Bom Jesus do 35.546 10 97,4 1 0 1 10,0
Itabapoana
Noroeste
Itaperuna 96.542 18 64,7 2 0 2 9,0
Fluminense
Santo Antonio de 40.735 10 85,0 1 0 1 10,0
Pádua
Bom Jardim 25.539 8 100,0 1 0 1 8,0
Serrana
Cachoeiras de Macacu 54.713 9 57,2 1 0 1 9,0
Nota: Dados populacionais – IBGE. Dados de abrangência populacional estimada das ESF – Sala de Apoio à Gestão Estratégica do Ministério da Saúde (Acesso em: 19 jul. 2012).
Dados dos Nasf – Projetos Municipais dos Nasf/SES/RJ.

Observa-se que todos os municípios do Para análise da implantação local do Nasf, re-
estado do Rio de Janeiro que aderiram ao alizaram-se dois estudos de caso em municípios
Nasf e que possuem 100% de abrangência fluminenses com características bem diferen-
populacional da ESF encontram-se dentro ciadas. O município A é de pequeno porte, ati-
da faixa recomendada pelo governo federal vidade econômica baseada na pesca e turismo,
de um Nasf para cada 8 a 15 EqSF. Assim, emancipação política e organização do sistema
a possibilidade de expansão adicional dos de saúde municipal posterior à Constituição de
núcleos nesses municípios é limitada. 1988. Já o município B, apresenta médio porte
Entretanto, os municípios com pequena populacional, atividade econômica centrada
e média abrangência da ESF têm a possi- no comércio e indústria, é mais antigo, possui
bilidade de ampliá-la, o que também pode sistema de saúde historicamente marcado por
significar um aumento das equipes de Nasf. características do modelo médico-assistencial
Destaca-se o município de Seropédica, como anterior à constituição do SUS e presença mais
a maior possibilidade de expansão da pro- expressiva do setor privado.
posta Nasf, visto que apresenta relação entre O quadro 1 resume as principais caracte-
o número de EqSF e Nasf superior ao parâ- rísticas e os resultados da análise de imple-
metro nacional, e possibilidade de aumentar mentação dos Nasf nos dois municípios do
a abrangência da ESF. estudo de casos.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015


114 PATROCÍNIO, S. S. S. M.; MACHADO, C. V.; FAUSTO, M. C. R.

Quadro 1. Caracterização da implementação do Nasf nos Municípios do estudo de casos – 2011

Município A Município B
Localização Baixada Litorânea Centro-Sul Fluminense
Faixa populacional Menos de 50.000 De 50.000 a 99.999
(Hab)
Cobertura saúde da 100% 94,8%
família
N° de Nasf 01 02
Início da implementação 2009 2009
- assistente social, educador físico, fisioterapeuta, médico - assistente social, educador físico,
Composição Profissional psiquiatra, médico pediatra, nutricionista, psicólogo, terapeuta fisioterapeuta, médico ginecologista, médico
ocupacional. pediatra, nutricionista, psicólogo.
Estrutura física e - adequados e satisfatórios. - apontados como precários.
equipamentos
- mais relacionado ao gerenciamento e matriciamento; - mais relacionado ao atendimento individual
- deslocamento diário dos profissionais às Unidades de Saúde especializado;
Funcionamento
da Família (USF). - deslocamento diário dos profissionais às
USF.
- conhecimento prévio de demandas das equipes de Saúde da - reunião da coordenação Nasf com os
Família; profissionais para elaboração de proposta
- elaboração de cronograma mensal de atividades em de ação para cada área de conhecimento de
conjunto com as EqSF ; forma isolada e sem conhecimento prévio das
Organização - visitas sistematizadas às USF; demandas das EqSF;
- reunião semanal da equipe Nasf. - planejamento das atividades realizadas pelos
profissionais;
- reunião mensal para apresentação de
resultados e metas.
- integração entre apoio matricial e assistência individual; - dicotomia entre apoio matricial e assistência
- atividades: consultas clínicas individuais, discussão de individual;
casos clínicos, ações clínicas compartilhadas, atividades de - atividades: atendimentos individuais, sala
educação permanente para profissionais da ESF, discussões de espera, atividades em escolas, visitas
Modelo de atenção
sobre o processo de trabalho da ESF e do Nasf, elaboração de domiciliares nem sempre conjuntas;
intervenções no território em conjunto com as equipes, visitas - o trabalho em equipe não foi destacado.
domiciliares conjuntas.
- trabalho em equipe em desenvolvimento.
- necessidades demandadas pelas EqSF para o Nasf; - bons profissionais do Nasf;
Fatores que favoreceram
- aceitação e adesão dos profissionais da ESF à proposta; - empenho da nova coordenação para
a implementação
- apoio político do gestor da saúde. aperfeiçoamento da proposta.
- desconhecimento da população sobre o Nasf. - precário espaço físico das USF e do Nasf;
- desconhecimento da proposta por parte das
Fatores que dificultaram
EqSF, da população e da rede de saúde;
a implementação
- salários precários e inferiores aos da ESF;
- forma de contratação dos profissionais.

Nota: IBGE (dados populacionais), Sala de Apoio à Gestão Estratégica do Ministério da Saúde (Cobertura estimada da Estratégia Saúde da Família) e pesquisa de
campo (análise de documentos municipais e entrevistas).

A implementação do Nasf nos muni- reformulação da proposta devido às mu-


cípios estudados ocorreu em período de danças de atores locais, de forma diferen-
mudança de governo, devido às eleições ciada em cada um dos municípios.
municipais em 2008. Houve processos de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015


Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro 115

No município A, o processo de imple- prévia da AB e a configuração mais geral do


mentação do Nasf envolveu diálogo prévio sistema de saúde em cada um. No município
e esclarecimentos junto às EqSF, o que favo- A, observou-se a natureza do Nasf vinculada
receu a articulação posterior. Na formulação tanto ao apoio matricial quanto aos atendi-
da proposta e determinação da composição mentos específicos, desde que coordenados
profissional do Nasf, a equipe de gestão da pelas EqSF. Já no município B, verificou-se
AB contou com a parceria da equipe de saúde a implementação do Nasf mais direcionada
mental, que detinha maior conhecimento da ao atendimento ambulatorial especializa-
lógica de apoio matricial por formação ou do, nos moldes tradicionais. No entanto, no
experiência profissional. Esses profissionais momento da pesquisa, observou-se que a
se capacitaram previamente sobre o conteú- nova equipe gestora se esforçava para forta-
do e os objetivos do Nasf, anterior ao início lecer a ESF e a inserção do Nasf na estratégia.
das atividades nos territórios. Em relação à integração do Nasf com
Já no município B, no momento de imple- outros serviços da rede, os entrevista-
mentação da proposta, houve dúvidas sobre dos dos dois Municípios destacaram seu
o caráter de atuação dos núcleos, fundadas caráter ainda incipiente e frágil, sugerindo
numa visão dicotômica sobre as lógicas de esse aspecto como crítico para o aprimo-
apoio matricial versus atendimento direto ramento da atuação das equipes de AB na
dos profissionais à população. No momento coordenação do cuidado.
da pesquisa, o Nasf passava por processo Em ambos os municípios, a atuação do
de reformulação ainda incipiente, devido à Nasf em uma perspectiva intersetorial ainda
mudança recente na coordenação, ajustes é incipiente, sem sistematização ou contatos
na organização e iniciativas de capacitação formais; porém, as áreas da educação e da
dos profissionais com vistas ao fortaleci- assistência social foram identificadas como
mento da perspectiva de apoio matricial. parceiras potenciais.
Apesar de não haver participação da equipe Como avanços relacionados à implanta-
de saúde mental tão destacada quanto no ção do Nasf, foram citados o aprimoramento
outro Município A, a articulação do Nasf dos conhecimentos das equipes; a ampliação
com essa área tem sido mais fácil do que com do escopo da ABS e maior resolutividade da
as demais, por sua maior compreensão das ESF em face das demandas da população.
atividades do núcleo. Em relação às dificuldades de efetiva-
A experiência local de implementação no ção das regras nacionais do Nasf no âmbito
Município A foi reconhecida como positiva local, identificaram-se: pouca clareza
para as EqSF pela expectativa de aumento sobre o conteúdo da proposta, a não parti-
na sua resolutividade. Também favoreceu cipação dos atores locais na formulação da
o compartilhamento de responsabilidades proposta local, limitações no cumprimento
e aprimoramento de estratégias de apoio às de carga horária e na educação permanen-
equipes. No Município B, a fragilidade de te com os profissionais.
planejamento para a implementação inicial Como desafios para a consolidação do Nasf,
resultou em limitada articulação entre os destacaram-se maior adesão da população,
profissionais dos Nasf e as EqSF. contratação de profissionais por vínculo esta-
Portanto, as características do modelo tutário e com melhores salários, resolubilidade
de atenção do Nasf foram diferentes nos das demandas das EqSF e maior articulação
Municípios do estudo de casos, expressan- dos núcleos com outros serviços de saúde.
do influências dos atores locais, a trajetória

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015


116 PATROCÍNIO, S. S. S. M.; MACHADO, C. V.; FAUSTO, M. C. R.

Considerações finais sentido, o Nasf possibilitou uma ampliação


do mercado de trabalho na AB para várias
O objetivo da pesquisa foi o de contribuir categorias profissionais atuantes na área da
para a reflexão sobre os significados, possibi- saúde. A inserção dos médicos foi maior nas
lidades e limites dos Nasf no que concerne ao especialidades tradicionalmente atuantes na
aprimoramento da AB em Saúde no Brasil. AB – como pediatras, ginecologistas e obs-
Na esfera federal, a proposta do Nasf reafir- tetras – e pouco expressiva no que se refere
mou a saúde da família como porta de entrada aos psiquiatras e às especialidades de home-
e favoreceu o atendimento a demandas presen- opatia e acupuntura, talvez por seu menor
tes no debate nacional de qualificação da AB: número no País e pelo caráter mais recente
ampliação dos profissionais atuantes na saúde da Política Nacional de Práticas Integrativas
da família, melhoria do cuidado no sentido da e Complementares no SUS.
integralidade e da capacidade de resolução dos No que se refere à implantação do Nasf no
problemas (CASTRO; MACHADO, 2012). estado do Rio de Janeiro, sua condição está
Os dados mostraram que a expansão do relacionada à organização da AB em saúde no
Nasf foi expressiva no País, embora desigual Estado, que, por sua vez, apresenta as caracte-
no território nacional. O problema de desi- rísticas da descentralização da política de ABS
gualdade na distribuição dos profissionais no País, as especificidades do Estado e as difi-
de saúde no território nacional é estrutural culdades apresentadas pelo gestor estadual na
e amplamente reconhecido (CAMPOS; MACHADO; coordenação do sistema. Assim, a implemen-
GIRARDI, 2009; DAL POZ, 2013; SCHEFFER, 2013), com tação do Nasf nos municípios tem sido diver-
repercussões sobre a organização da AB. A sificada, de acordo com as distintas condições
existência de programas e incentivos fede- de gestão dos sistemas locais e as decisões
rais tem sido importante, embora insuficien- políticas dos atores municipais. De qualquer
te, para atenuar esse quadro. forma, no estado do Rio de Janeiro – diferen-
O ritmo de expansão e o perfil dos Nasf temente dos dados referentes ao conjunto do
foram influenciados pela abrangência po- País, regiões e UF – a maioria dos municípios
pulacional prévia das EqSF nas unidades da está na faixa de 8 a 15 EqSF para cada Nasf re-
federação, tanto pelo ritmo de adesão dos mu- comendada pelo Ministério da Saúde.
nicípios ao Nasf como pelas opções dos gesto- No Estado, o envolvimento da equipe de
res locais relativas à composição profissional saúde mental da SES/RJ na análise dos proje-
desses núcleos e até mesmo pelas diferenças tos municipais e implementação do Nasf, em
na disponibilidade dos profissionais das dis- articulação com a equipe da Superintendência
tintas categorias. de Atenção Básica, pode ter influenciado a
Assinale-se que o Nasf é uma proposta presença mais frequente do profissional psicó-
recente na AB e tem potencial de expansão logo na composição dos Nasf. A influência da
adicional nas localidades em que ainda não equipe técnica de saúde mental, registrada na
se atingiu a quantidade de Nasf recomenda- formulação nacional da proposta e na esfera
da pela regulamentação federal para apoiar estadual, também se mostrou com maior des-
as EqSF existentes ou para ser acoplada à taque em um dos municípios pesquisados.
implementação de novas EqSF. Quanto à implementação local do Nasf,
O perfil de composição profissional estudos de caso realizados em outras lo-
dos Nasf em nível nacional, marcado pelo calidades do País podem contribuir para
predomínio de profissionais não médicos, a reflexão neste trabalho. Uma primeira
reforça a importância da influência da rei- questão refere-se às lacunas na regulamen-
vindicação de outras categorias profissio- tação da proposta pelo Ministério da Saúde.
nais de saúde para a inserção na ESF. Nesse Sampaio et al. (2012) abordam em estudo de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015


Núcleo de Apoio à Saúde da Família: proposta nacional e implementação em municípios do Rio de Janeiro 117

implantação do Nasf em Campina Grande/ é marcante na proposta nacional do Nasf,


PB que, no momento inicial, os documentos talvez pela preocupação de seus formulado-
federais deixaram margem a uma diversida- res em afirmar os núcleos como integrantes
de de interpretações sobre seu papel, uma da ESF com vistas à mudança do modelo de
vez que o conceito de apoio matricial foi in- atenção e não somente à ampliação da oferta
dicado apenas em 2009 (BRASIL, 2009), um ano de atendimentos especializados.
após o lançamento da proposta. Assim, cada Para Lacman et al. (2013), em estudo de
Nasf local compôs seu trabalho de acordo caso sobre o trabalho do Nasf em São Paulo,
com sua própria compreensão de matricia- as ferramentas tecnológicas utilizadas pela
mento. Nascimento (2014) afirma que essa proposta, tais como o apoio matricial e o
dificuldade de direcionamento inicial da projeto terapêutico singular, são recentes
proposta permitiu que os Nasf do Recife (PE) na AB e precisam ser consolidadas. Porém,
se tornassem flexíveis para atender às de- é necessário que os profissionais inseridos
mandas locais devido aos diversos modelos tenham disponibilidade para realizar um
de atenção em disputa. trabalho mais compartilhado.
Nesse sentido, uma segunda questão Nos estudos de caso dos municípios flu-
inter-relacionada à primeira diz respeito minenses, verificou-se que a implementação
à variedade de características que os Nasf no Rio de Janeiro caminha pari passu aos
apresentam a depender da região em que estudos apresentados em outras localidades
estão inseridos, das equipes que os compõem do País, com modelos de atenção configura-
e do perfil das EqSF. Segundo Sampaio et dos conforme as influências de atores locais,
al. (2012) as disputas no contexto local sobre trajetória prévia da AB e do sistema de saúde
como operacionalizar o Nasf em Campina de uma forma geral. Porém, cabe destacar
Grande (PB) permitiram a conformação de que o papel de parceria da equipe da saúde
diferentes modelos segundo as escolhas das mental no processo de implementação do
gestões locais de saúde. Município A facilitou a lógica do apoio ma-
Em Recife (PE), a variabilidade de contex- tricial na intervenção do Nasf desde o início
tos locais permitiu que cada gestão munici- de sua implementação. Já no Município B,
pal direcionasse a forma de organização da em que tal parceria não aconteceu de forma
atenção à saúde pelo Nasf e seu processo de tão próxima, o momento inicial do Nasf local
trabalho, configurando-os por uma influên- caracterizou-se pela dicotomia entre apoio
cia de fatores. A indefinição quanto ao objeto, matricial e atenção especializada, com limi-
atenção especializada ou apoio matricial, tada articulação dos dois tipos de práticas.
bem como precariedades nas condições de A integração com a rede de saúde foi apre-
trabalho, teria dificultado a organização do sentada como incipiente e frágil nos muni-
processo de trabalho na implementação dos cípios fluminenses pesquisados, o que indica
Nasf nessa localidade (NASCIMENTO, 2014). um longo caminho a ser percorrido no que
No entanto, a tensão entre apoio matricial concerne a um dos principais propósitos do
e atendimento individual, também registra- Nasf: favorecer a AB resolutiva, coordena-
da na pesquisa de campo do Rio de Janeiro, dora do cuidado e articulada com os outros
pode ser considerada um falso dilema, uma níveis de atenção.
vez que, na proposta do Nasf, a assistência Quanto aos limites da pesquisa, vale as-
individual não é incompatível com o apoio sinalar o caráter ainda recente da implanta-
matricial. Os profissionais dos núcleos ção dos núcleos, a realização do trabalho de
podem realizar os dois tipos de ações, desde campo em momento de troca de dirigentes,
que a coordenação do cuidado seja das EqSF. as dificuldades de obtenção de dados sis-
A ênfase no apoio matricial, no entanto, tematizados sobre a atuação dos Nasf nos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015


118 PATROCÍNIO, S. S. S. M.; MACHADO, C. V.; FAUSTO, M. C. R.

municípios e a realização de um número no âmbito da AB e fragilidades da gestão


de entrevistas relativamente restrito. Os pública em saúde que extrapolam esse
estudos de caso tiveram caráter exploratório nível de atenção e são concernentes às
e levantaram questões que requerem investi- relações entre esferas de governo, às con-
gações específicas, tais como: o processo de dições de inserção e de trabalho dos pro-
trabalho desses núcleos, suas relações com fissionais, à integração com o restante da
as EqSF, as implicações da incorporação de rede de serviços e com outras áreas da
outros profissionais para a atenção em áreas política pública, entre outras. O enfrenta-
específicas do cuidado, os resultados da mento dessas questões é fundamental para
atuação dos Nasf em termos da ampliação o fortalecimento efetivo da AB como eixo
do acesso, da integralidade e da qualidade da estruturante do sistema de saúde brasi-
atenção, entre outras. leiro, conforme formalmente anunciado
Em termos gerais, o estudo revelou que nas diretrizes nacionais do SUS, mas nem
o processo de implementação do Nasf des- sempre garantido nas condições reais de
venda questões ainda mal equacionadas implementação das políticas. s

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Recebido para publicação em maio de 2015


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e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
SCHEFFER, M. (Org.). Demografia Médica no Brasil. (CNPq), Processo: 306137/2013-5  
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 105-119, DEZ 2015


120 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

A saúde do adolescente privado de liberdade:


um olhar sobre políticas, legislações,
normatizações e seus efeitos na atuação
institucional
The health of the adolescent deprived of freedom: a look at policies,
laws, norms and its effects on institutional performance

Fernando Manuel Bessa Fernandes¹, José Mendes Ribeiro², Marcelo Rasga Moreira³

RESUMO O objetivo do artigo é subsidiar o debate sobre os efeitos que o conjunto de peças
jurídico-administrativas e político-legislativas tem na atuação institucional e na práxis dos
gestores e profissionais dos sistemas socioeducativo e de saúde. Levantaram-se e analisaram-
-se as leis, portarias, resoluções, normas, textos acadêmicos e institucionais que embasam e
constituem a política de saúde voltada aos adolescentes infratores no Brasil. Há assimetria
entre as legislações e normatizações e a realidade das unidades socioeducativas, o que torna
urgente superar as barreiras de preconceito e estigmatização via investimento em recursos
humanos e parcerias governamentais interinstitucionais.

PALAVRAS-CHAVE Saúde pública; Políticas públicas de saúde; Saúde do adolescente;


Adolescente institucionalizado; Saúde do adolescente institucionalizado.

ABSTRACT The paper aims to support the debate on the effects that the set of legal, administrati-
ve and political pieces of legislation have on institutional performance and practice of managers
and professionals from the socio-educational and health systems. Laws, ordinances, resolutions,
regulations, academic and institutional texts were raised and analyzed that support and provide
the health policy dedicated to offenders adolescents in Brazil. There is asymmetry between the
laws and norms and the reality of Socio-Educational Units, which makes it urgent to overcome
1 Fundação Oswaldo Cruz the barriers of prejudice and stigmatization through investment in human resources and inter-
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio governmental partnerships.
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
fernando.bessa@ensp. KEYWORDS Public health; Public health policies; Adolescent health; Adolescent, institutionali-
fiocruz.br zed; Health of institutionalized adolescents.
2 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
ribeiro@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
rasga@ensp.fiocruz.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 120-131, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005119
120
A saúde do adolescente privado de liberdade: um olhar sobre políticas, legislações, normatizações e seus efeitos 121
na atuação institucional

Introdução por um juiz da Vara da Infância e da


Juventude. Na internação, que é a medida
A atenção integral à saúde de adolescentes no mais severa, o prazo máximo para cumprir
Brasil é um tema que envolve aspectos polêmi- a medida é de três anos. Depois disso, o
cos e representa um desafio bastante conside- adolescente sairá compulsoriamente, não
rável para estudiosos e, principalmente, para tendo nenhum resquício em seus regis-
os gestores públicos. A simples observação do tros sociais. Caso infracione mais vezes, o
cotidiano e a apreciação da literatura acadêmi- prazo de cumprimento da medida poderá
ca revelam que questões político-ideológicas, ser revisto e se estender, no máximo, até
valores morais e preconceitos comportamen- que ele atinja 21 anos de idade.
tais sobre a adolescência são notáveis. Povoam Durante o tempo de cumprimento de
de forma intensa e arraigada os corações e medida de privação de liberdade, o adoles-
mentes de gestores e profissionais das áreas da cente está sob tutela e responsabilidade do
saúde, da educação e do direito, com potencial Estado. E o Estado, aqui, por força da confor-
de consistirem em entraves e, até mesmo, em mação burocrático-administrativa do sistema
alguns casos, na inviabilização de iniciativas socioeducativo, institui-se nos estados-
governamentais voltadas para a melhoria das -membros da federação. O direito de ir e vir
condições de vida, do bem-estar e da saúde dos adolescentes nessa situação foi suspenso,
daquele grupo populacional. mas seu direito à saúde, não. É, pois, dever do
A situação se agudiza exponencialmen- poder público garantir esse direito, aliado ao
te no que diz respeito ao asseguramento do dever de oferecer serviços de atendimento à
direito à saúde de adolescentes que comete- saúde para todo e qualquer cidadão, seja em
ram algum ato infracional grave o suficiente qual situação jurídico-legal ele estiver.
para ingressar no sistema socioeducativo Estudos e levantamentos têm verificado
e demandar o cumprimento de medida so- a ocorrência de uma assimetria entre o que
cioeducativa de internação e/ou internação é considerado desejável, cristalizado nas le-
provisória, conforme a legislação específica gislações e normatizações concernentes, e o
para o infrator adolescente: o Estatuto da que é detectado na realidade cotidiana das
Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990). unidades socioeducativas de internação e in-
Segundo essa legislação, o adolescente em ternação provisória no que tange à violação
conflito com a lei é todo o jovem, entre 12 e 18 de direitos (OLIVEIRA; ASSIS, 1999; RAPOSO, 2013; VILLAS
anos, que cometeu algum ato infracional. Já BOAS; CUNHA; CARVALHO, 2010; UNICEF, 2012).
o chamado sistema socioeducativo é a esfera Quando se pensa em termos de atendi-
governamental que aplica as medidas de so- mento à saúde, percebe-se que os adoles-
cioeducação ou socioeducativas, a fim de res- centes privados de liberdade, por estarem
ponsabilizar o jovem que infracionou alguma cumprindo medida de internação e inter-
lei. As medidas socioeducativas se dividem nação provisória, consistem em clientela do
em medidas privativas de liberdade e não pri- Sistema Único de Saúde (SUS), assim como
vativas, e, nomeadamente, têm como maior qualquer outra pessoa, criança, adolescente
preocupação a responsabilização do ato e a re- ou adulta, sem distinções de qualquer tipo.
flexão. As medidas privativas de liberdade são Isso, a priori, seria um direito constitucional
a internação e a semiliberdade, ao passo que as pétreo que não admitiria discussão ou flexi-
não privativas de liberdade são a advertência, bilização. Porém, a realidade nem sempre se
a obrigação de reparar o dano, a prestação de coaduna com a legislação e a normatização.
serviço à comunidade e a liberdade assistida. E, o que é pior, nem com os princípios mais
O tempo de cumprimento dessas elementares de civilidade e humanidade. É
medidas socioeducativas é determinado nesse panorama de complexidade relacional

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122 FERNANDES, F. M. B.; RIBEIRO, J. M.; MOREIRA, M. R.

que as instâncias responsáveis pela saúde Métodos


dos adolescentes, nos três níveis governa-
mentais, devem trabalhar. O presente artigo se baseia na experiência
Impõe-se, portanto, um desafio aos gesto- do autor, que integra uma equipe de pesqui-
res públicos responsáveis pela formulação, sa que tem desenvolvido reflexões e estudos
implementação, execução e avaliação de polí- avaliativos de caráter crítico-propositivo
ticas de saúde para esse contingente específi- para a CGSAJ/Dapes/SAS/MS.
co, tanto em níveis subnacionais locais quanto Levantaram-se as leis, portarias, resolu-
na esfera federal: desenvolver capacidade ins- ções e normas, aqui chamadas de peças jurí-
titucional de atuação competente e hábil para dico-administrativas e político-legislativas,
lidar com vicissitudes, dificuldades, arranjos, que embasam e constituem as políticas da
resistências, institucionais ou individuais, no CGSAJ/Dapes/SAS/MS mais diretamente
âmbito das relações entre a saúde e o sistema relacionadas à consolidação da PNAISARI.
socioeducativo, levando em conta e observan- Igualmente, levantaram-se textos acadêmi-
do o conjunto de documentos que constituem cos e institucionais correlacionados e con-
os aparatos jurídico-administrativo e políti- siderados pertinentes. A seguir, procedeu-se
co-legislativo concernentes. a uma análise reflexiva a partir do material
Na esfera federal, a instância responsável documental levantado.
pela formulação e implementação de ações,
estratégias e políticas de saúde para a po-
pulação adolescente (e jovem, compreen- Resultados e discussão
dido como o indivíduo com idade de até 24
anos), atualmente, é a Coordenação-Geral de A PNAISARI foi instituída pela Portaria
Atenção à Saúde do Adolescente e do Jovem, Interministerial nº 1.426, de 14/07/04, (BRASIL,
do Departamento de Ações Programáticas 2004A), de autoria conjunta do Ministério da
e Estratégicas da Secretaria de Atenção à Saúde, da Secretaria Especial de Direitos
Saúde do Ministério da Saúde – doravante Humanos da Presidência da República
denominada CGSAJ/Dapes/SAS/MS. (SEDH/PR) e da Secretaria Especial de
Especialmente para a população adoles- Políticas para as Mulheres da Presidência
cente privada de liberdade, a CGSAJ/Dapes/ da República (SEPM/PR). Essa política,
SAS/MS formulou e tem implementado, portanto, foi inspirada e concebida a partir
junto às instâncias parceiras das três esferas, a da necessidade de aprofundar a discussão,
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde a articulação e a responsabilização entre os
de Adolescentes e Jovens em Conflito com a setores e atores que já têm desenvolvido e que
Lei em Regime de Internação e Internação dispõem de recursos e condições de desenvol-
Provisória – daqui por diante, neste texto, de- ver ações de saúde dirigidas aos adolescentes
nominada PNAISARI (BRASIL, 2012A). em conflito com a lei e privados de liberdade.
Isto posto, este artigo tem por objetivo Essa política está inserida no grande por-
oferecer subsídios para o debate sobre os tfólio de atuação institucional da CGSAJ/
efeitos que o conjunto de peças jurídico- Dapes/SAS/MS, consubstanciado nas
-administrativas e político-legislativas re- Diretrizes Nacionais para a Atenção à Saúde
lativas à saúde do adolescente cumprindo de Adolescentes e Jovens na Promoção,
medida socioeducativa privado de liberdade Proteção e Recuperação da Saúde, que
tem na atuação institucional das instâncias também são conhecidas como Política
responsáveis pela saúde dessa população Nacional de Atenção Integral à Saúde de
e na práxis dos gestores e profissionais do Adolescentes e Jovens (PNAISAJ) (BRASIL,
sistema socioeducativo e do SUS. 2014; RAPOSO, 2009; VILLAS BOAS ET AL., 2010).

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A saúde do adolescente privado de liberdade: um olhar sobre políticas, legislações, normatizações e seus efeitos 123
na atuação institucional

Do conjunto de legislações e normati- a tarefa diuturna de reforço do modelo de


zações da saúde de adolescentes no Brasil, atenção, tarefa essa que não se dissocia da con-
destaca-se a publicação ‘Marco legal: saúde, solidação da garantia do direito constitucional
um direito de adolescentes’, elaborada pela à saúde aos adolescentes privados de liberda-
CGSAJ/Dapes/SAS/MS, em 2005, que rela- de, posto que estão entre a parcela de cidadãos
ciona instrumentos legais de proteção aos di- mais fragilizados e em situação de vulnerabili-
reitos dessa população, notadamente aqueles dade e cujas demandas têm sido menos aten-
de garantia do pleno exercício de seu direito didas ou atendidas com maior precariedade,
fundamental à saúde, em âmbito nacional e in- dentre o universo de adolescentes brasileiros.
ternacional. Esse é um importante documen- Isso ocorre tanto por conta da estigmati-
to para subsidiar os profissionais e gestores zação que sofrem de parte de profissionais
que atuam na área da saúde de adolescentes, da rede de atendimento do SUS, por estarem
fornecendo elementos para a tomada de deci- em situação de conflito com a lei e privados
sões, para a elaboração de políticas públicas, de liberdade, quanto por conta das dificul-
para o atendimento nos serviços de saúde, dades e iniquidades a que estão passíveis de
com o intuito de divulgar e discutir os direitos serem submetidos por estarem inseridos no
dos adolescentes (BRASIL, 2005). sistema socioeducativo, no próprio interior
Já a PNAISARI foi inicialmente para- deste, nas unidades socioeducativas.
metrizada em seus critérios e fluxos pela Não pode ser ignorado o hiato existente
Portaria SAS nº 340, também de 14/07/04 entre a legislação, a normatização e as po-
(BRASIL, 2004B), posteriormente substituída líticas e a realidade nas unidades socioedu-
pela Portaria SAS nº 647, de 11/11/08 (BRASIL, cativas, conforme se tem observado no País
2008), e apresentava como principal carac- (FERNANDES ET AL., 2008; HORTA; SENA, 2010; OLIVEIRA;
terística a promoção da integração do SUS ASSIS, 1999; UNICEF, 2012; SILVA; GUERESE, 2003).
com o sistema socioeducativo, na medida Destarte, surge uma indagação: como
em que busca trazer a garantia do direito à pode ser efetiva uma política de saúde de
saúde dos adolescentes para as Unidades abrangência nacional voltada para essa po-
Socioeducativas de Internação e Internação pulação específica, levando-se em conta os
Provisória (USE). efeitos dos documentos oficiais de caráter
Pretendia-se que isso se desdobrasse num jurídico-administrativo e político-legislativo
modelo de atenção integral à saúde moderno, na atuação institucional da instância federal
humano, dotado de organicidade e marcado responsável, a CGSAJ/Dapes/SAS/MS e,
por: a) Combate à violência em suas variadas também, dos gestores e profissionais do SUS
formas ao reduzir problemas e agravos pela e do sistema socioeducativo?
prevenção, promoção e assistência à saúde; A seguir, para auxílio na busca de res-
b) Cumprimento do princípio da incomple- postas para esse e outros questionamentos,
tude institucional, afirmando os preceitos apresenta-se um quadro com o conjunto de
da Reforma Psiquiátrica pela supressão peças jurídico-administrativas e político-
das famigeradas ‘instituições totais’; c) -legislativas (Leis, Portarias, Resoluções e
Interdisciplinaridade dos atores envolvidos Normas) que embasam a política de saúde
– entendidos como pessoas, secretarias, de- de adolescentes e jovens no País, e que estão
partamentos, coordenações e áreas técnicas mais diretamente relacionadas à consolida-
federais, estaduais e municipais, assim como ção da PNAISARI. O quadro 1 está divido em
outras entidades, governamentais ou não; e colunas indicadoras de peça e seus respec-
d) Defesa do binômio educação e saúde. tivos ano e disposição, a fim de identificar
Para a gestão federal concentrada na e qualificar cada proposição em correlação
CGSAJ/Dapes/SAS/MS, a PNAISARI significa com a política:

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124 FERNANDES, F. M. B.; RIBEIRO, J. M.; MOREIRA, M. R.

Quadro 1. Peças jurídico-administrativas e político-legislativas diretamente relacionadas à consolidação da Política de Saúde dos Adolescentes Privados
de Liberdade no Brasil

PEÇA ANO DISPOSIÇÃO


Constituição da República 05/10/1988 Carta Magna, Lei Máxima do País. Afirmação das noções de saúde como direito, de crianças e
Federativa do Brasil adolescentes enquanto sujeitos de direitos e de proteção social
Lei nº 8.069 13/07/1990 Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dá outras providências
Lei nº 8.742 07/12/1993 Dispõe sobre a organização da assistência social e dá outras providências
Lei nº 12.594 18/01/2012 Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das
medidas socioeducativas e dá outras providências
Portaria MS/SAS nº l.101 12/06/2001 Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do SUS
Portaria Interministerial MS/ 14/07/2004 Aprova as diretrizes para a implementação da atenção à saúde dos adolescentes em conflito com a lei,
SDH/SPM nº 1426 em regime de internação e internação provisória, e dá outras providências
Portaria MS/SAS nº 340 14/07/2004 Aprova as Normas para a Implantação e Implementação da Atenção à Saúde dos Adolescentes
em Conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória, em unidades masculinas
e femininas, a Padronização Física do Estabelecimento de Saúde nas Unidades de Internação e
Internação Provisória, o Plano Operativo Estadual de Atenção Integral à Saúde dos Adolescentes em
conflito com a lei, em Regime de Internação e Internação Provisória e o Termo de Adesão
Portaria MS/SAS nº 204 29/01/2007 Regulamenta o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de
saúde, na forma de blocos de financiamento, com o respectivo monitoramento e controle
Portaria MS/GM nº 2.817 08/11/2006 Habilita o Distrito Federal a receber o Incentivo para Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em
Conflito com a Lei
Portaria MS/SAS nº 647 11/11/2008 Aprova as Normas para a Implantação e Implementação da Política de Atenção Integral à Saúde dos
Adolescentes em Conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória (PNAISARI),
em unidades masculinas e femininas, os parâmetros para construção, ampliação ou reforma de
estabelecimento de saúde nas Unidades de Internação e Internação Provisória e o Plano Operativo
Estadual de Atenção Integral à Saúde dos Adolescentes em conflito com a lei, em Regime de
Internação e Internação Provisória
Portaria MS/GM nº 1.992 19/08/2011 Altera o Anexo da Portaria nº 2.817/GM/MS, de 8 de novembro de 2006, ao incluir Unidades
Socioeducativas aptas ao recebimento de Incentivos Financeiros para Atenção Integral à Saúde de
Adolescentes Privados de Liberdade
Portaria MS/GM nº 1.082 23/05/2014 Redefine as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei
(PNAISARI), incluindo-se o cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto e fechado; e estabelece
novos critérios e fluxos para adesão e operacionalização da atenção integral à saúde de adolescentes
Portaria GM/MS nº 1.083 23/05/2014 Institui o incentivo financeiro de custeio para o ente federativo responsável pela gestão das ações de
atenção integral a saúde dos adolescentes em situação de privação de liberdade, de que trata o art. 24
e parágrafo único da Portaria nº 1.082/GM/MS, de 23 de maio de 2014
Portaria MS/SAS nº 973 29/09/2014 Estabelece normas para o cadastramento no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde (SCNES) das equipes e serviços que farão parte da Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI)
Resolução Conanda nº 46 29/10/1996 Regulamenta a execução da medida socioeducativa de internação prevista no ECA
Resolução Conanda nº 119 11/112006 Dispõe sobre o Sinase e dá outras providências
Resolução Conanda nº 160 18/11/2013 Institui o Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo
Marco Legal: Saúde, um 2005 Apresenta instrumentos legais de proteção aos direitos dessa população, notadamente aqueles de
direito de Adolescentes garantia do pleno exercício de seu direito fundamental à saúde, em âmbito nacional e internacional.
Caminhos para uma Política de 2005 Apresenta considerações técnicas fundamentais para a discussão e implementação da política de
Saúde Mental Infanto-Juvenil saúde mental voltada para a população infanto-juvenil no âmbito do SUS
Linha de cuidado para a 2010 Fornece orientação para gestores e profissionais de saúde para contribuir na identificação de sinais e
Atenção Integral à Saúde de sintomas de violências e estabelece uma linha de cuidado para a atenção integral à saúde de criança,
Crianças, Adolescentes e adolescente e suas famílias em situação de violências, articulada com a rede de cuidado e de proteção
suas Famílias em Situação de social existente nos territórios
Violências
Diretrizes Nacionais para 2010 Apresenta orientação baseada na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e
a Atenção à Saúde de Jovens (PNAISAJ) para ações integradas à outras políticas sanitárias, ações e programas já existentes
Adolescentes e Jovens no SUS
na Promoção, Proteção e
Recuperação da Saúde
Fonte: Elaboração própria.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 120-131, DEZ 2015


A saúde do adolescente privado de liberdade: um olhar sobre políticas, legislações, normatizações e seus efeitos 125
na atuação institucional

Para além da própria dificuldade em ela- 12.594/2012 (BRASIL, 2012B), também regido
borar e converter uma proposição governa- pelos artigos referentes à socioeducação do
mental em política (LOPEZ; MOREIRA, 2013), talvez ECA, pela Resolução 119/2006, do Conselho
um dos grandes desafios enfrentados na Nacional dos Direitos da Criança e do
implementação e execução da PNAISARI Adolescente (Conanda) (BRASIL, 2006), e pela
esteja na discrepância e no conflito de lógicas Resolução 160/2013, também do Conanda,
entre os documentos e as práticas cotidianas que institui o Plano Nacional de Atendimento
de atendimento do adolescente em conflito Socioeducativo (BRASIL, 2013).
com a lei e privado de liberdade. A coordenação do Sinase, inserida na es-
A lógica do SUS se choca com as caracte- trutura da Secretaria de Direitos Humanos
rísticas de instituição total que as unidades da Presidência da República (SDH/PR), é
socioeducativas de internação e internação o locus do governo federal responsável pela
provisória ainda apresentam, pelos discursos aplicação das medidas socioeducativas, em
e práticas usuais dos profissionais e gestores consonância com os diferentes ministérios
nelas observadas. Por seu turno, a lógica e outras instâncias nacionais, e também com
das legislações e normatizações encontra as instâncias subnacionais correlatas, ao es-
consideráveis dificuldades de ressonância tabelecer diretrizes nacionais de atuação e
e concretização no cotidiano das unidades parâmetros no âmbito da arquitetura, segu-
socioeducativas. rança, gestão e socioeducação para as unida-
Tais fatores obstaculizam a plena exe- des socioeducativas.
cução de ações sistematizadas, articuladas Ao evidenciarem-se as dificuldades de en-
e integradas visando ao atendimento das tendimento das especificidades do relacio-
necessidades dos adolescentes, em suas namento entre as diversas áreas envolvidas,
diversificadas dimensões de realidade, em em particular, a saúde, foi, tem sido e será es-
cumprimento dos princípios, valores e dire- pecialmente fundamental para a PNAISARI
trizes estabelecidas na Constituição Federal que a CGSAJ/Dapes/SAS/MS mantenha um
de 1988 e nos dispositivos legais, assim como bom relacionamento com a coordenação do
nas normatizações. Sinase, a fim de que se fortaleça a viabilidade
Considerando-se saúde como bem-estar das articulações e ações preconizadas, tanto
em todos os sentidos e possibilidades de no sentido dos direitos humanos quanto
desenvolvimento da pessoa, com direitos no dos direitos sociais, e, nestes, o direito
humanos e sociais consagrados na legislação, à saúde. Em outras palavras, põe-se para a
a estruturação de um sistema de garantia de CGSAJ/Dapes/SAS/MS a demanda de pro-
direitos da criança e do adolescente infere-se moção constante do entrelaçamento e da
a partir do ECA e passa pela ideia de articu- potencialização mútua de interesses conver-
lação e integração em rede das instâncias pú- gentes de atores e instituições envolvidos.
blicas governamentais e da sociedade civil, Porém, tendem à escassez articulações
na aplicação de instrumentos normativos e mais estreitas e efetivas com outros órgãos
no funcionamento dos mecanismos de pro- estratégicos, tais como a Secretaria Nacional
moção, defesa e controle para a efetivação de Juventude da Presidência da República
dos direitos da criança e do adolescente, nos (SNJ/PR), as Varas de Infância e Juventude e
níveis federal, estadual, distrital e municipal o Ministério Público, o que incide na própria
(BRASIL, 2012C). situação dos adolescentes em privação de
Sob a égide desse sistema de garantia de di- liberdade, seja em função da ausência de
reitos, instituiu-se, em 18 de janeiro de 2012, propostas de modificação e incremento da
o Sistema Nacional de Acompanhamento cultura organizacional e das ações de aten-
Socioeducativo (Sinase), pela Lei Federal dimento nas unidades socioeducativas, seja

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 120-131, DEZ 2015


126 FERNANDES, F. M. B.; RIBEIRO, J. M.; MOREIRA, M. R.

por conta de um desencontrado monitora- aqueles indivíduos que não atingiram a


mento e da aplicação de sanções aos gestores maioridade penal. Maioridade penal que,
que protagonizam ou permitem violações não surpreendentemente, tem estado sob
dos direitos dos adolescentes. a constante mira de setores conservadores
No que tange às sanções direcionadas aos da sociedade e de seus representantes no
adolescentes, a quantidade de aplicações de Poder Legislativo.
medidas de internação no Brasil tem cresci- Por conseguinte, o caminho a ser percor-
do em decorrência de um aumento detectado rido ainda é longo, e obstáculos são visíveis e
na incidência de atos infracionais e também consideráveis, ainda mais quando se obser-
da tendência de setores mais conservadores vam as condições nas quais o direito consti-
do Judiciário de pronunciarem medidas pu- tucional à saúde dessa população tem sido
nitivas mais severas (BRASIL, 2012B). tratado: ordem, disciplina, punição, penitên-
Tal fato alerta para a importância e para cia, purgação. Esses signos povoam a cultura
a urgência de políticas públicas eficazes e organizacional no cotidiano das unidades
efetivas, assim como para a relevância de socioeducativas, deformando o sentido da
se imaginar e construir estratégias de ino- própria socioeducação ao alimentarem-se
vação e estabelecimento de iniciativas que das diretivas expostas nas legislações e nor-
atuem de forma preventiva na realidade matizações para retroalimentarem posicio-
dos adolescentes. Esse alerta deve conside- namentos conservadores e moralistas.
rar, ainda, que a relação entre a população O cerne do conflito de lógicas entre as legis-
de adolescentes em geral e a população de lações e normatizações e os discursos e práti-
adolescentes infratores tem acompanhado cas nas unidades socioeducativas, no que diz
o crescimento da população brasileira como respeito à saúde dos adolescentes privados de
um todo (BRASIL, 2010B; BRASIL, 2012B; UNICEF, 2012). liberdade, parece estar, pois, no princípio que
Contudo, independentemente da idade e rege as ações cotidianas dos envolvidos.
da quantidade de habitantes e de infratores, Gestores e profissionais do sistema so-
o Estado brasileiro tem o dever constitucio- cioeducativo, quando apresentam compor-
nal de prover e garantir todas as condições tamento descolado do espírito que emana
materiais e não materiais de existência a das legislações e normatizações e que está
eles, enquanto estiverem sob sua responsa- calcado em preconceitos e valores morais,
bilidade, e de garantir seus direitos. A des- reforçam uma estrutura punitivista, aten-
peito de um de seus direitos estar suspenso tatória à dignidade da pessoa humana. E
– o direito de ir e vir –, teoricamente, os mesmo os profissionais do setor saúde (os
outros não deveriam estar sendo negados ou quais, a princípio, por força da disseminação
obstaculizados, posto que se trata de cida- dos princípios humanistas do SUS, apresen-
dãos que habitam o território nacional e têm tariam comportamento mais afeito à defesa
direito à saúde, ainda que estejam privados dos direitos sociais) também estão sujeitos a
de liberdade. apresentar comportamento conflituoso com
Todavia, sabe-se que isso não é a práxis o que seria de se esperar, no sentido da for-
hegemônica ou predominante nas unidades mação cidadã e da socioeducação.
socioeducativas, infelizmente. A história do O aprofundamento dessa questão espe-
sistema socioeducativo perpetua legados de cífica da formação e dos constantes aper-
sua condição punitiva calcada em valores feiçoamentos, atualização e capacitação
morais e autoritários, e, de modo a agir profissional significaria um desvio do foco do
para transformar essa realidade, o Sinase se presente texto, mas aqui fica apontada a sua
propõe a modernizar e oxigenar o modelo inegável importância. O investimento na for-
estadualizado tradicional de justiça para mação de recursos humanos e o refinamento

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 120-131, DEZ 2015


A saúde do adolescente privado de liberdade: um olhar sobre políticas, legislações, normatizações e seus efeitos 127
na atuação institucional

constante de práticas cotidianas são ações saúde, é o ponto focal para o qual convergem
que não podem ser relegadas a segundo questões contraditórias, de natureza bastan-
plano, sob pena de se configurar retrocesso te delicada e dificultosa. A figura 1 congrega
nas formas de lidar com a situação do ado- o conjunto de reflexões expostas neste artigo
lescente que cumpre medida socioeducativa. na forma de mapa conceitual, construindo
Por certo, o adolescente em conflito com um panorama da relação entre a saúde e a
a lei, privado de liberdade e do seu direito à socioeducação no Brasil:

Figura 1. Panorama da relação entre a saúde e a socioeducação no Brasil

Sob Tutela/Responsabilidade Estigmatização


e Preconceitos Gestores e Profissionais Valores morais
do Estado Brasileiro do Sistema Socioeducativo, da socioedade
Adolescentes no cotidiano das USE
cumprindo Privados de Liberdade
estão porém, Violação de
Medidas com suspensão do por parte sujeitos a
sofrem Direitos
Direito de Ir e Vir de
Socioeducativas
Sob a cobertura de Peças Condições
Jurídico-Administrativo e Violências preçarias
Políticos-Legislativas Gestores e Profissionais do de trabalho
SUS, quando os adolescentes
expressas em caracterizada acessam a rede de serviços
por ou no cotidiano das USE
Leis Normas

Portarias Resoluções Realidade das USE

SUS
que buscam
instituem
ECA transformar
marcos

PNAISARI

SINASE

Fonte: Elaboração própria.

Na esteira de todo o conjunto de peças jurí- O que se pretende é indicar e ressaltar a


dico-administrativas e político-legislativas em- importância do debate e trazer à luz a per-
basadoras da política de saúde de adolescentes cepção de que se coloca um grande desafio
e jovens no País, e que estão mais diretamente para a coordenação do Sinase e, principal-
relacionadas à consolidação da PNAISARI, mente, para a CGSAJ/Dapes/SAS/MS: a su-
a proposição de um sistema como o Sinase, peração das barreiras de forte preconceito e
compreendendo uma coordenação federal da estigmatização enfrentadas pela população
socioeducação, surge como uma esperanço- de indivíduos cumprindo medidas socioedu-
sa medida para influenciar positivamente o cativas de internação e internação provisória.
conceito de socioeducação e o ethos vigentes Se adolescentes em geral, costumeiramente,
entre os gestores e profissionais das unidades já sofrem uma condição de parcial invisibi-
socioeducativas de internação e internação lidade do olhar dos profissionais de saúde
provisória e do SUS. Mas quais seriam as reais nos serviços públicos, adolescentes em con-
possibilidades de fundamentação e sucesso de flito com a lei e privados de liberdade são
tal proposta? Essa é uma questão que não se ainda mais invisíveis. Ou, por outro lado, a
pretende responder cabalmente aqui. eles é conferida uma visibilidade pontual,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 120-131, DEZ 2015


128 FERNANDES, F. M. B.; RIBEIRO, J. M.; MOREIRA, M. R.

extremamente negativa – regida pelo pre- instâncias do Poder Judiciário consubstan-


conceito e pela discriminação, pelo fato de ciadas nas Varas de Infância e Juventude,
serem infratores –, que só emerge quando da viabilizam-se possibilidades de transfor-
sua eventual necessidade de um atendimen- mações de valores, consciências, culturas
to em saúde, nos serviços da rede SUS. e práticas. A desconstrução de uma lógica
No processo de implementação da carcerária e medieval de tortura, punição e
PNAISARI, isso fica muito evidente, no negação de direitos deve vir casada com um
sentido da dificuldade dos gestores e pro- investimento maciço na formação de recur-
fissionais de saúde subnacionais de compre- sos humanos voltados, especialmente, para
enderem que é deles a responsabilidade do o trabalho com a socioeducação. O investi-
atendimento, significando garantia de direi- mento deve ocorrer, também, na melhoria
tos, e também dos gestores e profissionais das condições de trabalho nas unidades so-
do próprio sistema socioeducativo, no que cioeducativas, dado que influenciam sobre-
tange aos aspectos operacionais e culturais maneira a cultura organizacional.
componentes do modus operandi do trabalho Tão importante quanto isso é a urgência
nas unidades socioeducativas de internação de construção e consolidação de condições
e internação provisória. de vida dignas para a população adolescente,
o que significa dizer que a tarefa demanda
trabalho em rede, conectando aspirações
Considerações finais e promovendo conscientização e apren-
dizado constantes. Se existe a consciência
Se a responsabilidade de gerir as políticas pú- de que esse esforço não é nada pequeno,
blicas concernentes à população adolescente também existe a perspectiva de que as linhas
em articulação com as instâncias congêneres que se vislumbram no horizonte podem se
situadas nos entes federativos subnacionais concretizar.
(coordenações estaduais e municipais do Do mesmo modo, a partir da interação e
sistema socioeducativo) não pode prescindir integração inteligentes de todos os envolvi-
da interlocução e da interação com as instân- dos, podem ser viabilizadas alternativas re-
cias responsáveis pela saúde nas três esferas publicanas e democráticas de incremento e
da administração pública (a CGSAJ/Dapes/ mesmo de superação incremental de legis-
SAS/MS e as secretarias e coordenações lações, normatizações e políticas vigentes,
estaduais e municipais), ambas não podem na defesa, na proteção e na salvaguarda dos
abrir mão de outras parcerias e da atuação direitos humanos, civis e sociais da popula-
em campos que extrapolam os da gestão da ção adolescente em privação de liberdade,
saúde e da socioeducação. com destaque para o direito à saúde, em
Da interlocução e da interação entre conformidade com os mais altos princípios
os atores envolvidos, principalmente com civilizatórios. s

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A saúde do adolescente privado de liberdade: um olhar sobre políticas, legislações, normatizações e seus efeitos 129
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Recebido para publicação em março de 2015


Versão final em agosto de 2015
Confllito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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132 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Participação das instâncias de controle social


na Política de Saúde Mental da Bahia, 2001-
2013
Participation of institutions of social control in Mental Health Policy
of Bahia, 2001-2013

Tarcio de Almeida Oliveira1, Carmen Fontes Teixeira2

RESUMO Com objetivo de analisar a participação das instâncias de controle social do SUS-
Bahia na Política Estadual de Saúde Mental foi elaborado um modelo de análise fundamen-
tado na Teoria do Ciclo de Políticas Públicas de John Kingdon. As análises das propostas das
conferências de saúde mental, das atas do Conselho Estadual de Saúde, de documentos da
Secretaria de Saúde do Estado e do conteúdo das entrevistas com sete informantes-chaves
permitiram inferir que as conferências apresentaram propostas consonantes com a Reforma
Psiquiátrica; o Conselho, entretanto, não consolidou essas propostas e nem foi propositivo
para a formulação e implementação dessa política no âmbito estadual.

PALAVRAS-CHAVES Participação social; Conselhos de saúde; Conferências de saúde, Saúde


mental; Políticas públicas.

ABSTRACT In order to analyze the participation of social control instances of SUS-Bahia State
Mental Health Policy was elaborated a model of analysis based on the theory of public policy cycle
of John Kingdon. The analysis of the proposals of the Mental Health Conference, the protocols of
the State Board of health, the Department of Health documents of the State and the content of the
interviews with seven key informants allowed to infer that the conferences presented proposals
in line with the psychiatric reform, however, the Council hasn’t consolidated these proposals and
it wasn’t intentional for the formulation and implementation of such a policy at the State level.

KEYWORDS Social participation; Health councils; Health conferences; Mental health; Public
policies.

1 Secretaria Estadual da

Saúde do Estado da Bahia –


Salvador (BA), Brasil
tarciodealmeida@outlook.com

2 Universidade Federal da
Bahia (UFBA), Instituto
de Saúde Coletiva (ISC) e
Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências Professor
Milton Santos (IHAC) –
Salvador (BA), Brasil.
carment@ufba.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 132-144, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005467
132
Participação das instâncias de controle social na Política de Saúde Mental da Bahia, 2001-2013 133

Introdução concorrência de competências com os po-


deres constituídos e eleitos, falta de recursos
A participação social na gestão das políticas para o cumprimento das atribuições, forte
públicas, após intensa mobilização da so- corporativismo e falta de compromisso polí-
ciedade brasileira na luta pela redemocra- tico com os interesses coletivos.
tização no País, foi consagrada na chamada
‘Constituição Cidadã’, aprovada em 1988 Côrtes (2010) foi mais além ao constatar que
(PAIM ET AL., 2011). A partir de então, a sociedade os conselhos não são deliberativos, e as deci-
e o Estado se mobilizaram para dar início a sões tomadas nas conferências não são trans-
um processo político que legalizasse esta formadas em ações pelos gestores.
participação em diversos espaços decisórios, Esses problemas também foram identi-
de modo que não só na saúde, mas também ficados no Conselho Estadual de Saúde da
em outras áreas, foram institucionalizados Bahia (CES-BA). Bispo Júnior (2013) analisou
os conselhos e as conferências, conhecidos recentemente esse conselho, entre o período
como ‘instâncias de controle social’ (BRASIL, de 2003 e 2011, identificando forte influên-
1990; AVRITZER, 2010). cia político-partidária, corporativismo de
Essas instâncias, que na saúde foram regu- algumas representações de entidades profis-
lamentadas por lei federal, mais especifica- sionais e de usuários, bem como a subordina-
mente os conselhos, passaram a fazer parte ção do papel desse conselho aos gestores do
da gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), SUS, em função da centralização decisória
primeiramente, como condição essencial ainda prevalente no sistema. Entretanto, não
para o repasse de recursos, e posteriormen- foram localizados estudos sobre a participa-
te, como espaços de decisão política do SUS ção social das instâncias de controle social
(BRASIL, 1990; LABRA, 2010). Os conselhos, de com- do SUS no processo de formulação, imple-
posição paritária, são de caráter permanente mentação e avaliação da Política de Saúde
e deliberativo e foram criados nas três esferas Mental na Bahia.
(Federal, Estadual e Municipal), com função Pelo exposto, percebe-se que a maioria
de controle, fiscalização e acompanhamento dos estudos sobre conselhos e conferên-
da formulação, implementação e na avaliação cias concentra-se em aspectos relacionados
das políticas de saúde (BRASIL, 1990). Já as confe- com a organização e funcionamento destas
rências, criadas desde 1941, são programadas instâncias, analisando os limites e possibi-
para acontecer a cada quatro anos e ocorrem lidades da participação social nas decisões
nas três esferas, desempenhando a função de políticas no âmbito do sistema público de
elaborar as diretrizes dos programas, das po- saúde. Com isso, duas perguntas de investi-
líticas e das ações prioritárias a serem apre- gação emergiram dessa problemática, quais
ciadas e aprovadas pelo conselho de saúde sejam: a) como se conformou a participação
correspondente (ESPIRIDIÃO, 2014; BRASIL, 1990). das instâncias de controle social (conselhos
A produção científica recente sobre a e conferências) na tomada de decisão com
atuação dos conselhos e conferências de relação ao processo de formulação, imple-
saúde evidencia uma série de problemas, que mentação e avaliação da Política de Saúde
podem estar associados à falta de tradição e de Mental no período 2001 a 2013 na Bahia?
cultura cívica e a dificuldades organizacionais b) as propostas das conferências de saúde
e estruturais dos conselhos (LABRA; FIGUEREDO, e as deliberações emanadas pelo Conselho
2002). Lobato (2010, P. 10) chama a atenção para a Estadual de Saúde foram incorporadas aos
documentos institucionais (planos estaduais
baixa representatividade e renovação dos de saúde, programações anuais de saúde e
conselheiros, amplitude de competências, relatórios anuais de gestão)?

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 132-144, DEZ 2015


134 OLIVEIRA, T. A.; TEIXEIRA, C. F.

Desse modo, este estudo objetivou anali- 2011),o autor defende que para um problema
sar a participação das instâncias de controle ascender à agenda governamental precisa
social (conselho e conferências) no processo incomodar o governo ou os atores ligados a
de formulação, implementação e avaliação ele. Quando isso acontece, surgem inúmeras
da Política de Saúde Mental na Bahia, no alternativas de soluções para o problema,
período 2001 – 2013; e descrever as ações, e diversos atores (governamentais ou não)
os programas e serviços de saúde mental influenciam no processo de formulação e
implantados e implementados (ou não) pela implementação da política (KINGDON, 2011).
Secretaria Estadual da Saúde do Estado da Adotando essa perspectiva, esse estudo
Bahia (Sesab) nos períodos 2001 – 2006 e analisa o fluxo de problemas, alternativas e
2007 – 2013. soluções que compõem a participação das
instâncias de controle social, entendidas
como atores e arenas, no processo de formu-
Modelo de análise lação, implementação e avaliação da Política
Estadual de Saúde Mental na Bahia.
A análise da participação do CES-BA, das A seguir apresenta-se o modelo teórico
Conferências Estaduais de Saúde Mental (figura 1) elaborado para contribuir na de-
(Cesm) e da Sesab no ciclo da Política de finição das categorias de análise e para a
Saúde Mental no Estado, foi realizada a fundamentação da discussão dos resultados,
partir da proposta de John W. Kingdon com intuito de alcançar os objetivos propos-
(2011). Esta proposta contempla a articu- tos e responder às perguntas de investigação.
lação de um conjunto de três fluxos que Como se pode observar no modelo, conside-
incidem sobre o processo de construção de ramos o CES-BA e as conferências estaduais
uma agenda, sendo que o primeiro fluxo de saúde, simultaneamente, como espaços
implica na transformação de uma questão onde se verifica a atuação ou não de sujeitos
num problema, o segundo inclui a seleção individuais e coletivos em função de deter-
de soluções e alternativas aplicadas a minadas concepções acerca da organização
esse problema, e o terceiro diz respeito às e gestão do sistema de saúde e dos interes-
forças e influências políticas envolvidas na ses políticos que pretendem representar.
inserção do problema na agenda política O estudo do processo decisório no âmbito
governamental. No desenvolvimento das das conferências e do conselho contempla,
relações entre os fluxos, há envolvimento conforme o modelo proposto, a análise dos
de diversos atores postos diante de várias fluxos de problemas, propostas e soluções
oportunidades em diferentes cenários, os apresentadas, discutidas, aprovadas e even-
quais atuam influenciando o processo de- tualmente implementadas a partir da dinâ-
cisório de formulação e implementação mica política estabelecida nas conferências,
das políticas públicas (KINGDON, 2011). conselho de saúde e no espaço institucional
Considerando que nem todas as questões da Secretaria Estadual de Saúde, particu-
emergentes no ambiente social são consi- larmente na Coordenação Estadual da Área
deradas problemas para o governo (KINGDON, Técnica de Saúde Mental.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 132-144, DEZ 2015


Participação das instâncias de controle social na Política de Saúde Mental da Bahia, 2001-2013 135

Figura 1. Modelo de análise da participação do CES-BA, das Conferências de Saúde Mental e da Sesab na Política Estadual de Saúde Mental

Fonte: Adaptado de Pinto e Teixeira (2011).

programações anuais; e 13 relatórios anuais de


Método gestão. Após organizar os dados no programa
Excel for Windows, procedeu-se a análise me-
Trata-se de um estudo de caso do tipo descri- diante agrupamento das unidades de registro
tivo, exploratório e retrospectivo (2001 A 2013), extraídas dos temas e deliberações das atas e
desenho considerado útil para investiga- resoluções do CES-BA; dos documentos (re-
ções de fenômenos contemporâneos dentro gimento interno e relatório final) das confe-
do seu contexto como é o caso da análise rências; e dos documentos da Sesab (planos,
da participação das instâncias de controle programações e relatórios de gestão) nas res-
social (conselho e conferências) no ciclo da pectivas subcategorias: a) dinâmica do con-
Política Estadual de Saúde Mental na Bahia. selho em dois períodos (2001 – 2006 e 2007
Os dados foram produzidos mediante a – 2013); b) propostas da III e IV Conferências
análise do conteúdo dos documentos corres- Estaduais de Saúde Mental; e c) atividades
pondentes a essas instâncias, aos instrumentos previstas e realizadas pela Sesab nos dois pe-
de gestão da Sesab, e às transcrições das entre- ríodos. A análise final foi desenvolvida em
vistas com informantes-chaves. Na pré-análise dois momentos, referentes a dois períodos de
foram lidos exaustivamente 540 documentos, governo, ideologicamente distintos, o primeiro
dos quais apenas 71 tinham relação com a correspondente à gestão estadual exercida pelo
saúde mental: 32 atas de reunião e cinco reso- Partido da Frente Liberal (atual Democratas)
luções do conselho; seis documentos das con- no período 2001-2006 e o segundo pelo Partido
ferências; quatro planos estaduais de saúde; 11 dos Trabalhadores no período 2007 – 2013.

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136 OLIVEIRA, T. A.; TEIXEIRA, C. F.

O projeto foi avaliado e aprovado pelo (segmento do governo), que não aceitou par-
Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de ticipar da pesquisa, dando lugar ao segundo
Saúde Coletiva da Universidade Federal da colocado, representante do sindicato dos
Bahia, sob parecer n.º 965.788/2014. Foram profissionais de saúde do estado (segmento
entrevistados três conselheiros (um médico, dos trabalhadores da saúde) e por fim, no
uma enfermeira e uma socióloga), que de- terceiro grupo, o representante do Sindicato
clararam estar envolvidos com a Política de dos Trabalhadores Federais da Saúde (seg-
Saúde Mental na Bahia, e quatro profissio- mento de trabalhadores da saúde) foi quem
nais da Área Técnica de Saúde Mental da mais argumentou durante as reuniões, e
Sesab (três médicos psiquiatras e uma psi- aceitou participar da pesquisa.
cóloga), sendo que todos assinaram o Termo Os critérios de inclusão dos informantes-
de Consentimento Livre e Esclarecido. -chaves da Área Técnica de Saúde Mental da
Para a realização das entrevistas, utilizou- Sesab foram: ter trabalhado ou trabalhar na
-se como instrumento de coleta de dados Área Técnica de Saúde Mental por no mínimo
um roteiro específico para conselheiros e um ano no período do estudo; não ter sido ou
outro para coordenadores ou profissionais ser conselheiro no CES-BA; ser profissional
da Área Técnica de Saúde Mental da Sesab. de saúde; e ter participado de uma das con-
Todas as entrevistas foram gravadas, trans- ferências estaduais de saúde mental. Desse
critas e lidas, sendo selecionadas posterior- modo, intencionalmente, quatro informantes-
mente as unidades de registro (trechos dos -chaves foram selecionados para contemplar
discursos) e, por fim, agrupadas nas subca- todos os anos do período do estudo, sendo
tegorias descritas conforme equivalência um informante-chave para cada tempo de
semântica entre as unidades de registro e as atuação na área técnica (2001 – 2003; 2003 –
subcategorias. 2009; 2009 – 2012; e 2009 – 2013).
Vale ressaltar que os critérios para
escolha dos participantes foram diferen-
tes por se tratar de sujeitos que atuam em Resultados
locais distintos. Para selecionar os três con-
selheiros, seguiu-se à lógica de maior par- A apresentação dos resultados segue a
ticipação com uso da fala nos momentos de lógica do modelo proposto para a análise
discussão sobre saúde mental nas 32 atas da Política Estadual de Saúde Mental em
analisadas no período do estudo. Como o cada um dos dois momentos. No primei-
período de participação dos conselheiros é ro momento (2001 – 2006) são apresen-
de dois anos, prorrogados por mais dois, as tadas inicialmente as propostas da III
atas foram agrupadas em três períodos de Conferência Estadual de Saúde Mental,
anos de estudo, formados por quatro anos os seguidas da descrição da dinâmica política
dois primeiros grupos (2001 – 2004 e 2005 no âmbito do CES-BA e, por fim, da análise
– 2008) e cinco anos o último (2009 – 2013). das ações programadas e implementadas
No primeiro grupo, o representante da (ou não) pela Sesab. No segundo momento
Central Única dos Trabalhadores (segmento (2007 – 2013), optou-se por iniciar com a
de usuários) foi quem mais usou a fala nas descrição da dinâmica do CES-BA, seguida
reuniões, mas ele não foi localizado, dando das propostas da IV Cesm intersetorial e
lugar ao segundo colocado que representa- por fim as ações realizadas pela Sesab. Ao
va o sindicato dos profissionais de saúde do final de cada um dos momentos, apresen-
estado (segmento de trabalhadores da saúde); ta-se uma síntese das relações identifica-
no segundo grupo, o primeiro classificado foi das entre as propostas das conferências, o
o representante de uma universidade pública debate no CES-BA e o que foi efetivamente

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Participação das instâncias de controle social na Política de Saúde Mental da Bahia, 2001-2013 137

absorvida na programação e execução das da saúde mental, nem mesmo o conselho


ações na área de saúde mental pela Sesab. obedecia à paridade estabelecida em lei. Com
relação à ‘vocalização’, terminologia utilizada
Primeiro momento da Política de por Avritzer (2010) em seus estudos, notou-se
Saúde Mental na Bahia (2001-2006) que os usuários foram os que mais falaram nas
reuniões analisadas, entretanto, o segmento
Convocada por meio da Portaria da Sesab n° do governo foi o que menos utilizou desse
1.819 de 06/09/2001, a III Cesm adotou como recurso. Quanto às Atas, apenas 14 delas tra-
tema ‘Cuidar sim, excluir não: efetivando a taram de assuntos relativos à saúde mental,
Reforma Psiquiátrica com acesso, qualidade, sendo 10 com pontos de pauta para discussão
humanização e participação social’, definin- em plenária e as outras quatro apareceram em
do como eixo temático a ‘Reorientação do momentos de informes e no que ocorresse.
Modelo Assistencial’ (BAHIA, 2001). O relató- Assim, a agenda de decisões do conselho foi
rio final da III Cesm apresenta de maneira formada por essas 10 reuniões que debateram
sucinta como a conferência foi organizada os seguintes temas: situação da saúde mental
e as 93 propostas aprovadas. Essas propos- na Bahia; organização da III Cesm; prestação
tas foram distribuídas em quatro subtemas: de contas da Sesab; e a implantação do Centro
acessibilidade, direito e cidadania, com de Referência de Saúde Mental. Chama
maior número de propostas, 42; (2) recursos atenção que nessas reuniões houve debate em
humanos, 20; (3) controle social, 12; e (4) todas, entretanto, as deliberações aprovadas
financiamento, 19 (BAHIA, 2001). Além disso, limitaram-se a referendar o que havia sido
consta nesse relatório que diversos segmen- apresentado na plenária, sem acréscimo de
tos da sociedade, quais sejam os usuários, proposições, sugestões ou recomendações.
os representantes de entidades privadas e Os instrumentos de gestão da Sesab, por sua
vários profissionais de saúde (médicos clí- vez, explicitaram problemas e alternativas de
nicos, médicos psiquiatra, enfermeiros, psi- solução. Dentre os primeiros, os dois planos
cólogos, assistentes sociais, dentre outros) estaduais de saúde mental (2000 – 2003 e
participaram da conferência. 2004 – 2007) apontaram para a predominân-
Em síntese, as propostas aprovadas nessa cia do modelo de atenção centrado na psiquia-
conferência ratificaram os direitos dos usu- tria; a existência de pessoas sem transtornos
ários, já aprovados na Lei 10.216/2001, e re- mentais internadas em leitos dos hospitais
afirmaram a necessidade de reorganização psiquiátricos do estado; e a insuficiência de
do modelo de atenção à saúde mental, dando serviços substitutivos ao modelo asilar. Como
ênfase a implantação de serviços substituti- alternativas para estes problemas, a Secretaria
vos ao modelo de cuidado asilar das pessoas programou o fechamento desses leitos, a im-
com transtornos mentais (BAHIA; BRASIL, 2001). plantação de serviços substitutivos e de leitos
Além disso, outros destaques foram para re- de saúde mental em hospitais gerais, e a rea-
afirmação de se realizar as conferências de lização de cursos de qualificação em pratica-
saúde mental a cada quatro anos; formação mente todas as programações anuais de saúde.
de uma política de recursos humanos na No entanto, o programado não foi totalmente
área; e propostas para o fortalecimento do cumprido, de 106 centros de atenção à saúde
controle social, e de se constituir garantias mental que a Sesab apoiaria e promoveria
de financiamento adequado para manu- junto com as prefeituras a implantação, foram
tenção dos serviços substitutivos de saúde inaugurados apenas 58; dos 250 leitos que
mental (BAHIA, 2001). seriam disponibilizados nos hospitais gerais,
No tocante ao debate no CES-BA, nesse não há registro de implantação destes servi-
período, não havia representante de entidade ços nos relatórios anuais de gestão analisados.

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Entretanto, cumprindo o programado, em na quantidade e na distribuição destes pelo


quase todos os anos, há explicitado nos rela- estado.
tórios de gestão a realização de cursos de qua- Pelo exposto percebe-se que houve certa
lificação para trabalhadores e profissionais de conexão entre as ideias e propostas debatidas
saúde atuantes na saúde mental e em outras na Conferência Estadual de Saúde Mental
áreas do setor saúde. de 2001 e as propostas incorporadas aos
documentos técnicos da Sesab; não se veri-
Conexão entre conferência, CES-BA e fica, porém, uma participação sistemática do
Sesab no período (2001 - 2006) CES-BA nesse processo. De fato, evidenciou-
-se que os temas relativos à saúde mental
Retomando a análise de cada um dos aspec- apareceram esporadicamente nas pautas das
tos descritos neste período, é importante reuniões, e, mesmo quando discutidos não
destacar, em primeiro lugar, o teor das pro- conduziram às deliberações que tratassem
postas discutidas na III Cesm, que foram de questões substantivas. Parece, portanto,
voltados para os direitos dos usuários, com que o CES-BA foi o ‘elo fraco’ nessa cadeia,
proposições para uma política de Estado que restando então um espaço a ser preenchido
garanta o pleno exercício da cidadania das por esta instância deliberativa.
pessoas com transtornos mentais, sem que
eles fossem excluídos do ambiente social Segundo momento da Política de Saú-
convivido por todos. No que se refere à assis- de Mental na Bahia (2007 – 2013)
tência à saúde, as propostas foram voltadas,
conforme preconiza os princípios da luta O CES-BA, após ter reorganizado sua estrutu-
anti-manicomial e da Reforma Psiquiátrica, ra por meio de lei estadual específica, tornou-
para novas formas de cuidado no âmbito -se paritário e incluiu, pela primeira vez, uma
institucional centradas no território, sendo entidade da área de saúde mental no segmento
condenado o modelo asilar predominante. de usuários (BAHIA, 2011). Entretanto, verificou-se
Quando verificadas as conexões entre que este representante não atuou efetivamen-
as propostas da III Cesm com o debate no te durante os debates sobre assuntos da área,
CES-BA, ficou evidente que muitas das pro- mesmo sendo os representantes do segmen-
postas não alcançaram a agenda do conselho, to de usuários um dos que mais usaram do
ou seja, não foram pautados e nem propos- recurso da fala nas reuniões. Cabe destacar
tos nas reuniões temas que discutissem o também que os representantes dos prestado-
direito dos usuários e das famílias; o acesso res de serviço foram os que menos utilizaram
aos serviços de saúde da rede SUS; a quanti- deste recurso nas reuniões analisadas.
dade, alocação, distribuição e qualidade dos A agenda do CES-BA relativa à saúde
serviços a serem implantados; as questões mental nesse período foi composta por
relativas aos trabalhadores na área de saúde temas abordados em nove reuniões como
mental; dentre outros. ‘pontos de pauta’, em três reuniões como
Comparando, entretanto, os problemas e ‘informes’ e em seis no ‘que ocorrer’. A
propostas que emanaram da conferência com leitura das atas das reuniões, que tratam da
os problemas e propostas apresentadas nos saúde mental, revela que foram discutidas
planos e programas da Sesab, encontrou-se a prestação de contas da Sesab, a organiza-
certa coerência, ou seja, a crítica ao modelo ção da IV Conferência Estadual de Saúde
tradicional, ênfase na implantação de ser- Mental Interestadual (Cesmi), a situação da
viços substitutivos e a necessidade de se ga- saúde mental na Bahia, e a criação de uma
rantir a expansão desses serviços, ainda que Comissão de Saúde Mental do CES-BA. Em
não tenham sido superadas as limitações verdade, as questões e problemas da área se

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Participação das instâncias de controle social na Política de Saúde Mental da Bahia, 2001-2013 139

repetem ao longo dos anos, a exemplo das a extinção dos manicômios em todo o estado
condições precárias dos hospitais psiquiá- e que se estruturasse e ampliasse os serviços
tricos e a ausência e deficiências de serviços de caráter substitutivo.
substitutivos ao modelo asilar em todo o As 314 propostas incluídas no relatório
estado. As deliberações aprovadas em plená- final da IV Conferência foram distribuídas em
ria não conduziram ao efetivo acompanha- três grandes eixos: ‘Saúde mental e políticas
mento da formulação e da implementação da de Estado: pactuar caminhos intersetoriais’,
Política Estadual de Saúde Mental. 153; no eixo 2 – ‘Consolidar a rede de atenção
Os limites do conselho, relativos à saúde psicossocial e fortalecer os movimentos’, 78;
mental, não são restritos ao baixo teor pro- e no eixo 3 – ‘Direitos humanos e cidadania
positivo da plenária, expressando-se até como desafio ético e Intersetorial’, 83 (BAHIA,
mesmo na forma como os membros se orga- 2010). Nesses sub-eixos é surpreendente a
nizam para formar uma comissão específica ênfase dada à intersetorialidade, uma diretriz
para a saúde mental. A Comissão de Saúde do SUS que ocupou os espaços de debate e se
Mental, que substituiu a Comissão Técnica de constituiu como estratégia para a área.
Reforma Psiquiátrica, chegou a atuar no con- Para concluir a análise desse momento,
selho, no entanto, foi extinta gradativamente verificou-se nos planos estaduais de saúde
pelos conselheiros, sendo comentado pelos (2008 – 2011 e 2012 – 2015) a persistência
entrevistados os limites e problemas para a dos problemas da área de saúde mental no
manutenção desta Comissão: estado, principalmente relacionados ao alto
número de leitos em hospitais psiquiátricos
[...] ainda estamos mesmo nesse processo de onde se internam pessoas com transtornos
conseguir construir a comissão, mas ainda não mentais ou moradores de rua; a quantida-
tivemos a oportunidade da mudança, que está de insuficiente de serviços substitutivos; e
sendo elaborada para que o ‘Pleno’, que é a ins- a precarização dos vínculos de trabalho na
tância máxima do conselho, ele se posicione no área. Como alternativas para esses proble-
sentido de que essa comissão venha a ser criada mas, a Sesab programou implantar 35 leitos
de forma mais institucionalizada (conselhei- em hospitais gerais, sendo de fato registra-
ro); [...] a nossa ideia é transformar esse grupo da nos relatórios de gestão a implantação
de trabalho de saúde mental em uma comissão de apenas seis leitos em um único hospital.
realmente, porque ainda não é uma comissão Entretanto, outros programas chegaram a
institucionalizada do conselho, e a gente quer ser cumpridos como a realização de cursos
transformar exatamente para que não sofra es- de qualificação para profissionais de saúde e
sas interrupções [...]. (conselheiro). a preparação dos profissionais dos Centros
de Atenção Psicossocial (Caps) com cursos
No que diz respeito às propostas da IV introdutórios sobre saúde mental.
Conferência Estadual de Saúde Mental
Intersetorial, convocada pela Portaria Sesab Conexão entre conferência, CES-BA e
n° 452 de 03 de março de 2010, com o tema Sesab no período 2007 – 2013
‘Saúde mental, direitos e compromisso de
todos: consolidar avanços e enfrentar desa- No momento da IV Cesmi estava em ex-
fios’ (BAHIA, 2010), observou-se que foram rati- pansão e diversificação a rede de serviços
ficados os princípios e direitos das pessoas comunitários no estado da Bahia, porém
com transtornos mentais, a necessidade de a necessidade de implantação de serviços
realizar cursos de qualificação para os pro- substitutivos ainda se manteve e fez parte
fissionais da saúde mental e para as demais das propostas apresentadas nesta conferên-
áreas transversais, bem como se preconizou cia (RABELO; COUTINHO, 2008). A constituição da

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rede de atenção psicossocial foi apontada 2001 – 2006 e 2007 – 2013, buscando-se iden-
como uma das prioridades na conferência, tificar a correlação entre as propostas ema-
enfatizando-se a necessidade de implanta- nadas das duas conferências de saúde mental
ção de um modelo de atenção integral, com – o debate no CES-BA – e a implementação ou
serviços territorializados de saúde mental e não de programas e projetos para a Política de
interligados a outras áreas (não só da saúde) Saúde Mental pela Sesab.
sob a forma de redes. No entanto, observou- Nas duas Cesm realizadas na Bahia dis-
-se que, mesmo após nove anos de aprovação cutiu-se amplamente a situação existente
da Lei 10.216/2001, a expansão dos serviços nessa área, e foram formuladas propostas
substitutivos foi lenta e não se extinguiu os que evidenciam a luta pela conquista de di-
manicômios no estado (BRASIL, 2001). reitos das pessoas com transtornos mentais,
O tema da extinção dos manicômios entre os quais o acesso e a qualidade dos
ocupou a agenda da IV Cesmi, mas não foi in- serviços assistenciais. Na III Cesm o foco
cluído na agenda do CES-BA, que se restrin- esteve voltado para a efetivação dos princí-
giu ao debate e aprovação de instrumentos pios da luta antimanicomial e da reforma na
de gestão e ao debate em torno de assuntos assistência psiquiátrica, já na IV Cesmi me-
pontuais, não incidindo sobre a condução da diante a forte influência desses princípios
Política de Saúde Mental no estado. Esta limi- e da reestruturação da saúde mental com
tação do conselho foi relata por um dos entre- aprovação da Lei 10.216/2001, se discutiu os
vistados, afirmando que avanços e os limites dessa política e a po-
tencialidade da ação intersetorial da saúde
[...] o conselho era uma instância que cumpria mental com outras áreas.
com a formalidade burocrática da exigência do A quantidade de propostas foi muito dife-
Ministério da Saúde, não era uma instância efe- rente entre as duas conferências, aprovado
tiva de democratização da construção da política na IV Cesm mais que o dobro das aprovadas
de saúde, não era. (conselheiro). na III Cesm, sendo a maioria delas voltada
para implantação de serviços substitutivos
Com relação à Sesab, muito do que foi pro- ao modelo asilar, direitos dos usuários ao
gramado não foi implementado, mas os ser- atendimento digno, ampliação das formas
viços implantados estavam em consonância de participação social nos serviços de saúde
com as propostas da IV Conferência. Chama mental, e realização de cursos para trabalha-
atenção nesse período a inclusão das propos- dores da saúde e áreas afins.
tas relativas à saúde mental nos planos esta- Apesar dessa movimentação, pelo menos
duais de saúde (não mais específicos para a durante as conferências, observou-se que
saúde mental), a repetição do que foi pro- o CES-BA teve uma atuação bastante limi-
posto nas programações anuais (entre 2009 tada no que diz respeito ao debate sobre
– 2010 e 2012 – 2013) e o fato dos relatórios a situação de saúde mental no estado e à
de gestão não explicitarem a quantidade de incorporação das propostas aprovadas nas
serviços residenciais terapêuticos e os tipos conferências. Nas reuniões em que o tema
de Caps implantados no estado. saúde mental foi incluído, na pauta pre-
dominou a apresentação de prestação de
Análise comparativa dos dois mo- contas da Área Técnica de Saúde Mental
mentos: balanço da participação das da Sesab ou predominou a simples apro-
conferências, do CES-BA e da Sesab vação de alguns instrumentos de gestão do
SUS (planos e relatórios), elaborados pela
Esta análise comparativa se limita a descrever Sesab. Enfim, ficou evidente que o conselho
as semelhanças e diferenças nos dois períodos até incluiu em sua agenda temas relativos

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Participação das instâncias de controle social na Política de Saúde Mental da Bahia, 2001-2013 141

à saúde mental, porém, não deliberou de seguem os seguintes trechos: "Toda decisão
forma a estabelecer estratégias importantes que envolvia implantação de serviço de saúde
para o encaminhamento da implementação mental ocorria na Comissão Intergestora
da Política Estadual de Saúde Mental. Bipartite”; “A aprovação dos Caps para os mu-
Já a Sesab identificou diversos proble- nicípios passava pela CIB [...]" (coordenador
mas da saúde mental, alguns apontados nos da Área Técnica de Saúde Mental).
quatros planos analisados, como é o caso da Enfim, a comparação entre os dois períodos
falta de leitos de saúde mental para inter- evidencia que as propostas das conferências
nações necessárias e a pouca quantidade não ascenderam à agenda do CES-BA a ponto
de Caps no estado, tendo formulado pro- de ocuparem as pautas do Pleno como deve-
postas para o enfrentamento destes pro- riam, restando ao conselho aprovar em caráter
blemas; não logrou alcançar, porém, alguns puramente normativo os planos e relatórios de
dos objetivos e metas definidos, principal- gestão e realizar apresentações sobre a situa-
mente aqueles relacionados à implantação ção da Política de Saúde Mental no estado.
dos leitos, sendo implantada uma quanti-
dade muito inferior. Em relação aos Caps,
todavia, foi implantado em todo o estado Considerações finais
até 2013 um total de 200 Caps (BAHIA, 2014),
um crescimento enfatizado por um dos Os resultados apresentados nesse trabalho
coordenadores da saúde mental quando permitem que se formulem algumas consi-
entrevistado: “[...] até 2002 só havia 15 Caps derações acerca da participação das Cesm,
instalados no estado da Bahia, em outubro do CES-BA e da Área Técnica de Saúde
esse número passou a ser de 106 Caps e em Mental da Sesab na Política de Saúde Mental
maio de 2012 era de 182” (coordenador da no âmbito do SUS-Bahia.
Área Técnica de Saúde Mental). A análise dessas conferências evidenciou
O mais importante a constatar da compa- o quanto estes espaços de debate propicia-
ração entre os dois períodos é que eles não ram a formulação de propostas relacionadas
se diferenciaram tanto, ou seja, as propostas à Política de Saúde Mental e consonantes
das duas conferências convergiram com os com as propostas da Reforma Psiquiátrica
ideais da reforma da assistência psiquiátri- Brasileira e os princípios da luta antimani-
ca brasileira. A Sesab deu maior ênfase para comial. Os participantes destas conferências
realização de cursos de qualificação profis- debateram a política estudada com propó-
sional, e as deliberações do conselho não se sitos coerentes aos princípios de direito à
constituíram em estratégias para a formula- vida e à cidadania, com acesso aos serviços
ção da Política de Saúde Mental, principal- sem distinções, sendo que o ‘Relatório da IV
mente quanto à implantação de serviços de Conferência’ expressa a ênfase na necessi-
saúde mental substitutivos ao modelo asilar. dade de inserção das pessoas em sofrimento
Em se tratando de implantação de serviços mental na sociedade, recomendando a arti-
para a saúde mental no estado, parece que culação das ações de saúde com as ações pro-
o conselho exerceu um papel secundário à duzidas por outros setores sociais.
medida que não deliberou sobre a implanta- Entretanto, a análise da relação, entre o
ção de serviços, nem definiu prioridades para que foi proposto nestas conferências e o que
a área. Dois entrevistados da Área Técnica foi debatido no âmbito do CES-BA, revelou
de Saúde Mental da Sesab afirmaram que que a realização das conferências atendeu
a decisão para implantação dos serviços mais ao propósito democratizante, sem
de saúde mental no estado era dada pela exercer influência nas decisões políticas no
Comissão Intergestora Bipartite (CIB), como âmbito do CES-BA. De fato, os debates sobre

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saúde mental no conselho foram restritos às número permanece insuficiente diante das
discussões de problemas pontuais relacio- necessidades da população.
nados à situação da saúde mental no estado Em síntese, este estudo evidenciou os
e, de modo geral, para aprovação formal dos limites das instâncias de controle social
instrumentos de gestão, como planos, pro- (conselho e conferências de saúde) na gestão
gramações e relatórios. do SUS na Bahia com relação à saúde mental
A participação do conselho na Política e apresenta alguns desafios para os gestores
Estadual de Saúde Mental, portanto, foi in- desta política, quais sejam a incorporação das
cipiente, ou seja, não houve deliberações ou propostas das Cesm ao processo decisório,
proposições que guiassem as decisões e nor- inclusive no âmbito do conselho, qualifican-
teassem o processo de implementação dessa do-o para que possa debater os problemas e
política no âmbito do sistema estadual de formular proposições para a adequação da
saúde. Nesse sentido, esse estudo aponta que Política de Saúde Mental à situação enfren-
a problemática de saúde mental parece não tada no estado. Desse modo, os participantes
ter interessado aos participantes dessa ins- dessas instâncias estariam exercendo de fato
tância, apesar da realização das Cesm, evento a “participação cidadã – participação con-
que aparentemente só foi organizado por cebida como intervenção social periódica
indução do Ministério da Saúde, no contexto e planejada ao longo de todo o circuito de
em que esse tema ganhou certa prioridade na formulação e implementação de uma políti-
agenda nacional da política de saúde. ca pública” (GOHN, 2013, P. 59) e subsidiando os
Para além do que aconteceu nas confe- gestores e executores da política.
rências e no CES-BA, vimos que a Sesab, Finalmente, compreendem-se como prin-
enquanto instância responsável pela im- cipais limites desta pesquisa o fato de que
plementação da Política de Saúde Mental, seus resultados se restringem a uma política
implantou serviços substitutivos ao específica (saúde mental) num único Ces,
modelo asilar de cuidado às pessoas com não permitindo que sejam extrapolados para
sofrimento mental, no entanto, enfrentou demais políticas que o CES-BA tenha deba-
limitações, quais sejam: não extinguiu os tido e para outros conselhos do País. A baixa
manicômios e não conseguiu cumprir com efetividade do CES-BA parece não ser es-
vários dos programas propostos durante o pecífica deste conselho, tendo em vista que
período estudado, a exemplo da implanta- outros conselhos de saúde também têm tido
ção de leitos de saúde mental em hospitais uma participação incipiente no que tange a
gerais, limitando-se a executar ações vol- deliberações políticas, como evidenciado nos
tadas para a qualificação dos profissionais estudos de Côrtes (2010), Labra (2010) e Avritzer
da área de saúde mental. Isso reforça o (2010). Assim, seria interessante investigar se
que Labra (2010, P. 180) considera como uma em outros estados do País os conselhos estão
“brecha entre formulação e implementa- cumprindo com seu papel de acompanhar a
ção”, na medida em que a Política de Saúde formulação e a implementação da Política de
Mental foi formulada no nível central e Saúde Mental. De um modo geral, seria im-
incorporada nos planos e programações portante aprofundar a análise da prática dos
elaborados na Sesab, ainda que sem a conselhos, para que se compreenda melhor
participação efetiva do CES-BA. Entre as quais os interesses envolvidos e o que de fato
propostas e a prática, porém, verificou-se pretendem os sujeitos participantes desses
uma lacuna significativa, principalmen- espaços decisórios. s
te no que diz respeito à implantação dos
Caps e demais serviços substitutivos, cujo

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Participação das instâncias de controle social na Política de Saúde Mental da Bahia, 2001-2013 143

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ras de transtornos mentais e redireciona o modelo PINTO, I. C. M.; TEIXEIRA, C. F. Formulação da
assistencial em saúde mental. 2001. Disponível em: Política de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde:
<http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/legislacao/ar- o caso da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia,
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Janeiro, v. 27, n. 9, p. 1777-1788, 2011.
______. Presidência da República. Casa Civil. Lei
Federal n.º 10.708, de 31 de julho de 2003.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 132-144, DEZ 2015


144 OLIVEIRA, T. A.; TEIXEIRA, C. F.

RABELO, A. R.; COUTINHO, D. M. Análise da saúde


mental na Bahia – 2008. Gazeta Médica da Bahia,
Salvador, v. 78, n. 2, p. 104-119, 2008.

Recebido para publicação em março de 2015


Versão final em agosto de 2015
Confllito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 132-144, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 145

Organizações Sociais e Fundações Estatais


de Direito Privado no Sistema Único de
Saúde: relação entre o público e o privado e
mecanismos de controle social
Social Organizations and State Foundations of Private Law at the
Unified Health System: relation between the public and the private
and social control mechanisms

Vanice Maria da Silva1, Sheyla Maria Lemos Lima2, Marcia Teixeira3

RESUMO Objetivou-se caracterizar, no âmbito nacional, os modelos de governança das


Organizações Socais e das Fundações Estatais de Direito Privado, pressupondo-se que as
regras interferem no funcionamento das instituições e na atuação dos atores, com base no re-
ferencial analítico do neoinstitucionalismo histórico. Foram caracterizadas especificamente à
relação entre o público e o privado e aos mecanismos de controle social, a partir dos marcos
legais existentes. A análise evidencia diferenças importantes entre os modelos, especialmente
quanto ao alinhamento aos princípios do Sistema Único de Saúde. De diferentes formas, os
dois modelos são permeáveis ao setor privado e pouco abertos à participação social.

PALAVRAS-CHAVE Modernização do setor público; Políticas públicas de saúde; Participação


social; Fundações; Organizações sem fins lucrativos.

ABSTRACT This article aimed to characterize, at national level, the governance models of Social
Organizations and State Foundations of Private Law, assuming that the rules interfere with the
functioning of institutions and the performance of the actors, based on the analytical framework
1 Fundação Oswaldo of historical neo-institutionalism, specifically regarding the relation between the public and the
Cruz (Fiocruz), Instituto private and the mechanisms of social control, from the existing legal frameworks. The analysis
Nacional de Saúde da
Mulher, da Criança e do shows important differences between models, especially regarding the alignment to the princi-
Adolescente Fernandes ples of the Unified Health System. However, in different ways, both models are penetrable to the
Figueira (IFF) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. private sector and less open to social participation.
vanice.silva@iff.fiocruz.br

2 Fundação Oswaldo Cruz KEYWORDS Modernization of the public sector; Public health policy; Social participation;
(Fiocruz), Escola Nacional Foundations; Non-profit Organizations.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
slemos@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
txmarcia@hotmail.com

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005396 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015
145
146 SILVA, V. M.; LIMA, S. M. L.; TEIXEIRA, M.

Introdução orientada pela eficiência, competitivida-


de interna e externa, foco nos resultados,
Ao final da década de 1970, em um cenário flexibilidade, desempenho crescente e
global de crises econômicas e de questio- pagamento por desempenho/produtivi-
namento do modelo de intervenção estatal, dade, terceirização e regimes temporários
foram propagadas propostas de reformas de emprego, entre outras características
destinadas a redefinir o papel do Estado e (MARTINS, 2003; DE PAULA, 2005).
suas margens de atuação. Essas propostas de No Brasil, esse modelo se destacou durante
cunho mais amplo incidiram sobre a admi- o governo de Fernando Henrique Cardoso
nistração pública, promovendo questiona- (FHC), do Partido da Social Democracia
mentos quanto ao modelo burocrático, em Brasileira (PSDB), na década de 1990, que
moldes weberiano, apontado como moroso, institui o Ministério da Administração e
autorreferenciado e deslocado das necessi- Reforma do Estado (Mare), em 1995, mesmo
dades dos cidadãos (PAES DE PAULA, 2005). ano em que publicou o ‘Plano Diretor de
Nos governos de Margareth Thatcher, Reforma do Aparelho de Estado’, docu-
Inglaterra, e Ronald Reagan, EUA, foram mento que estabelece diretrizes e desenhos
identificados os marcos iniciais dessa con- institucionais para o desenvolvimento de
juntura internacional de reforma de Estado atividades ligadas ao Estado, com base no
e do desenvolvimento, no campo da gestão paradigma da Nova Gestão Pública. Esse
pública, do modelo gerencialista. Este documento expressava uma redefinição do
modelo incorpora conceitos, discursos e prá- papel do Estado, o qual não teria mais a res-
ticas oriundas do setor privado para organi- ponsabilidade direta no desenvolvimento
zações da esfera pública em diferentes áreas social e econômico, por meio da produção de
do governo (SECCHI, 2009). bens e serviços, restringindo sua atuação ao
Santos (1999) aponta que os governos de financiamento e à regulação das atividades.
concepção neoliberal diante do cenário de Além do processo de privatização, preco-
crise econômica optaram por um processo nizava a ‘publicização’, caracterizada pela
de privatização dos serviços sociais, in- transferência da execução de atividades, an-
cluindo áreas como a saúde e a educação, o teriormente consideradas de caráter estatal,
que caracterizou um momento de inflexão para entes privados sem fins lucrativos, a
do Estado de Bem-Estar Social. O setor partir da concessão de equipamentos esta-
privado passou a ser considerado o mais tais, recursos humanos e financeiros. Dessa
eficiente na gestão dos recursos, em uma forma, a execução de serviços na área da
relação de oposição ao funcionamento bu- saúde, educação, cultura e pesquisa científi-
rocrático do Estado. ca, considerados como “serviços competiti-
O Brasil, mesmo sem possuir um apare- vos ou não-exclusivos”, seriam transferidos
lho de Estado com uma burocracia estrutu- para entidades do setor público não estatal,
rada, foi atravessado por críticas ao modelo qualificadas como Organizações Sociais (OS)
de administração pública semelhantes ao (BRASIL, 1995, P. 13).
de países centrais, com burocracias fortes e Contudo, a reforma pretendida não
efetiva participação do Estado na provisão ocorreu de forma plena. Segundo Abrucio
de serviços sociais. e Sano (2008), a implantação do modelo ge-
O gerencialismo, traduzido no Brasil rencialista no Brasil foi marcado por diver-
como Administração Pública Gerencial gências no Congresso Nacional. Martins
ou Nova Gestão Pública (BRESSER-PEREIRA, (2003) aponta para falta de uma estratégia
1998; ABRUCIO; SANO, 2008; PAES DE PAULA, 2005) , de desenvolvimento que sustentasse as
busca criar uma cultura organizacional mudanças pretendidas.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


Organizações Sociais e Fundações Estatais de Direito Privado no Sistema Único de Saúde: relação entre o público 147
e o privado e mecanismos de controle social

É nessa conjuntura que vários modelos administração pública indireta, são propos-
jurídico-institucionais foram utilizados tas pelo MPOG como alternativa para res-
como alternativas à administração direta. ponder aos impasses identificados.
No campo da saúde, alguns se destacam, Em que pesem o repúdio do Conselho
em especial as próprias OS, as Fundações Nacional de Saúde, instância de controle
Privadas de Apoio, as Organizações da social do Sistema Único de Saúde (SUS), no
Sociedade Civil de Interesse Público que se refere às OS, e todos os questiona-
(Oscips) e as Cooperativas. mentos sofridos, em especial na forma de
Nos governos seguintes, presididos pelo ações de inconstitucionalidade, com relação
Partido dos Trabalhadores (PT), a introdu- às OS e às FEDP, essas duas propostas se des-
ção de novos mecanismos institucionais foi tacaram no cenário nacional como modelos
delegada ao Ministério do Planejamento, jurídico-institucionais preconizados nos
Orçamento e Gestão (MPOG) (BRASIL, 2003), documentos oficiais e adotados por estados
que publicou, em 2003, o documento ‘Gestão e municípios, que justificam sua implemen-
pública para um Brasil de todos: um plano de tação pelas dificuldades encontradas na área
gestão para o Governo Lula’. Diferentemente de gestão de serviços de saúde.
do plano do governo anterior, que defendia Objetivou-se caracterizar as regras de
um Estado regulador e financiador, o Plano funcionamento das OS e das FEDP, especi-
de governo de Lula apresentou como pro- ficamente no que concerne à relação entre
posta um “Estado atuante, promotor de o público e o privado e aos mecanismos de
crescimento e da justiça social e fiscalmente controle social no SUS, a partir dos marcos
sustentável, a partir das reformas que a so- legais existentes sobre seus modelos jurí-
ciedade apoiar”, tendo como foco a qualida- dico-institucionais, pressupondo-se que as
de do Estado (BRASIL, 2003, P. 8). regras interferem no funcionamento das
A incapacidade do Estado em assegurar os organizações e na atuação dos atores sociais
direitos civis e sociais básicos é tratada, nesse (institucionais e da sociedade).
documento, em termos de déficit institucional, A discussão sobre qual deva ser a modalida-
consequência de uma trajetória histórica que de adequada para a gestão desses serviços ainda
produziu um Estado sem uma estrutura coesa, é um debate inconcluso, conflituoso e candente
possibilitando a atuação de entes não estatais. no cenário nacional, reconhecendo os proble-
A superação desse cenário demandaria, entre mas enfrentados e a relevância social da gestão
outros aspectos, o fortalecimento nas institui- dos serviços de saúde. Trazer à tona modelos
ções públicas de características atreladas ao de governança propostos, especificamente no
modelo burocrático, como a impessoalidade e tocante à relação entre o público e o privado e
o universalismo de procedimento, tendo em aos mecanismos de controle, a partir da análise
vista o reconhecimento na cultura nacional de dos marcos legais destas duas modalidades ju-
um caráter patrimonialista (BRASIL, 2003). rídico-institucionais, OS e FEDP, considerando
O debate acerca de novos mecanismos as diretrizes do SUS, pode oferecer elementos
institucionais se destaca com a crise dos hos- importantes para o referido debate.
pitais federais do Rio de Janeiro em 2004. A governança está sendo compreendida,
A adoção pelos hospitais de Fundações de em sua acepção ampla, como a capacidade
Apoio para flexibilizar e agilizar a gestão do Estado e do governo em implementar
gerou questionamentos quanto à legalidade políticas públicas e os aspectos institucio-
desse arranjo, incitando ainda mais a discus- nais referentes aos mecanismos para lidar
são sobre esses mecanismos. É nesse contexto com a dimensão participativa e com a
que as Fundações Estatais de Direito Privado administração dos conflitos (DINIZ, 1996).
(FEDP), modelo jurídico-institucional da Esse conceito consegue abarcar aspectos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


148 SILVA, V. M.; LIMA, S. M. L.; TEIXEIRA, M.

importantes, como a relação entre o público Outra questão importante é a relevância


e o privado e o controle social, o que pos- atribuída à distribuição do poder, em espe-
sibilita sua utilização como instrumento cial em como as instituições o repartem de
de análise dos arranjos institucionais dos forma não igualitária entre os diferentes
Estados, governos e entidades que buscam grupos sociais. O modelo de governança
operacionalizar as políticas públicas, tais das OS e das FEDP, delimitado por suas
como as OS e as FEDP, a partir de um con- leis e decretos, informam, em certo grau, a
junto de regras legais editadas pelo Poder distribuição de poder a partir da análise da
Público. Essas regras que normatizam as- configuração dos seus órgãos de delibera-
pectos que podem caracterizar o modelo ção e controle.
de governança das entidades também pos- Este estudo, de caráter exploratório,
sibilitam verificar o alinhamento desses implicou no levantamento e análise docu-
modelos às normatizações do SUS. mental dos marcos legais, leis e decretos,
identificados no âmbito federal, estadual
e municipal; sobre a qualificação das OS e
Métodos constituição das FEDP na área da saúde. Não
foram consideradas outras normatizações,
Foram analisados leis e decretos para a com- como, por exemplo, os Contratos de Gestão.
preensão do modelo de governança, como A maior parte das normatizações sobre OS
acima explicitado, desses dois arranjos jurí- foi obtida por meio de um levantamento rea-
dico-institucionais, OS e FEDP, adotados na lizado pela Secretaria de Gestão do MPOG, o
área da saúde em âmbito nacional, utilizan- qual foi cedido para o referido estudo; parte
do-se como referencial analítico o neoins- complementar foi selecionada do acervo ju-
titucionalismo histórico, que compreende rídico do site JusBrasil, acessado no período
que as normas podem funcionar como um de setembro de 2011 a outubro de 2013.
constrangimento que influencia as atuações Para o mapeamento dos marcos legais que
e decisões dos atores sociais. autorizam a instituição de FEDP, foram con-
O neoinstitucionalismo histórico tem sultados sítios eletrônicos das secretarias de
como foco o papel das instituições, que são saúde estaduais e municipais, bem como o
consideradas como estruturas intermediárias acervo jurídico do site JusBrasil, durante o
que realizam a mediação da relação Estado- período já mencionado.
Sociedade. Parte de uma racionalidade polí- Foi construída uma matriz de análise
tica, na qual se reconhece nas instituições a com 4 grandes categorias: Aspectos Gerais,
capacidade de influenciar as preferências, ob- Aspectos da Relação entre o Público e o
jetivos e comportamentos dos atores sociais. Privado, Controle Interno e Externo, conten-
Destaca a necessidade da análise histórica do do 29 variáveis ao todo (quadro 1), consideran-
contexto institucional, no qual certas concep- do-se os aspectos de governança referentes
ções e ações são priorizadas em detrimento de à relação entre o público e o privado e aos
outras (LUSTOSA, 2010; LIMA; MACHADO; GERASSI, 2011), mecanismos de controle internos e externos.
e enfatiza a dimensão temporal, no sentido Estas variáveis foram delimitadas com base
de que “a trajetória histórica, o momento e a nos temas recorrentes nas normatizações das
sequência dos eventos importam para a defi- OS e das FEDP e no Levantamento Nacional
nição das políticas” (LIMA, MACHADO; GERASSI, 2011, P. de modelos de parceria entre Poder Público
129). Nesse sentido, compreende-se que o con- e entes de cooperação e colaboração, que
texto político-institucional em que surgem integra a publicação ‘Relações de parceria
as OS e as FEDP exerce influência sobre suas entre Poder Público e entes de cooperação e
‘trajetórias’ no campo da saúde. colaboração no Brasil’ (BRASIL, 2010).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


Organizações Sociais e Fundações Estatais de Direito Privado no Sistema Único de Saúde: relação entre o público 149
e o privado e mecanismos de controle social

Quadro 1. Modelo analítico de governança das OS e FEDP

Categorias Variáveis
Tipo de lei
Aspectos Gerais Disposição da lei
Objeto de prestação de serviços
Natureza jurídica
Alinhamento às leis e normatizações do SUS
Proibição de distribuição de bens ou parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese
Obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades
Atuação não remunerada dos conselheiros
Aspectos da Relação entre Incorporação integral do patrimônio, doações e excedentes financeiros no caso de extinção ou desqualificação ao
o Público e o Privado patrimônio do estado
Atendimento exclusivo aos usuários do SUS
Possibilidade de recebimento de recursos advindos não SUS
Obrigatoriedade de publicação anual, em Diário Oficial, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato
de gestão
Repasse de recurso associado ao desempenho
Órgãos de Deliberação e Direção
Conselho de Administração
Composição do Conselho de Deliberação
Periodicidade de reunião do Conselho de Deliberação
Vedação de ser conselheiro e da diretoria
Controle Interno
Atribuições privativas do Conselho de Administração para qualificação das entidades
Comissão de Acompanhamento dos Contratos (CAC)
Composição da Comissão de Acompanhamento dos Contratos (CAC)
Atribuições da Comissão de Acompanhamento dos Contratos (CAC)
Elaboração de relatórios
Prestação de contas ao órgão ou à entidade supervisora da área de atuação correspondente
Prestação de contas ao Conselho de Saúde
Prestação de contas à sociedade civil
Controle Externo
Prestação de contas ao órgão Legislativo
Prestação de contas ao Judiciário e/ou Ministério Público
Prestação de contas a outra secretaria de estado
Fonte: Elaboração própria a partir da publicação ‘Relações de parceria entre poder público e entes de cooperação e colaboração no Brasil’ (BRASIL, 2010).

referentes a 5 estados – São Paulo, Rio de


Resultados Janeiro, Bahia, Sergipe e Pernambuco – e a 2
municípios – Petrolina/PE e Foz do Iguaçu/
Como resultado do levantamento nas fontes PR. Os estados de São Paulo, Sergipe e Rio de
utilizadas, foram identificadas 91 peças legais Janeiro possuem leis complementares e espe-
que regulam as OS em várias áreas de atuação; cíficas, sendo as primeiras leis que definem a
destas, foram selecionadas 72 que possuíam área de atuação e as últimas leis que dispõem
como objeto a prestação de serviços de saúde, sobre a criação de Fundações (quadros 2 e 3).
correspondendo a 16 estados e 39 municípios. O número de peças legais para OS e FEDP
Só no estado de São Paulo, foram identificados é maior que o número de estados e municí-
15 municípios com legislação sobre OS, corres- pios, pois, em alguns entes federativos, foram
pondendo a 38,5% dos municípios considera- aprovadas mais de uma lei ou decreto. Além
dos no estudo (quadros 2 e 3). disso, há um número maior de legislações que
No que diz respeito aos marcos legais dispõem sobre a qualificação de OS do que
sobre FEDP, foram consultadas 11 legislações sobre a criação de FEDP.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


150 SILVA, V. M.; LIMA, S. M. L.; TEIXEIRA, M.

Quadro 2. Legislação estadual consultada sobre OS e FEDP na área de saúde por estado

Legislação sobre FEDP


Estado Legislação sobre OS
Leis complementares Leis específicas
Lei Complementar N.º 118, de 29 de Lei N.º 5.164, de 17 de
São Paulo Lei Complementar N.º 846, de 4 de junho de 1998
novembro de 2007 dezembro de 2007
Distrito Federal Lei N.º 4.081, de 04 de janeiro de 2008 - -
Mato Grosso Lei Complementar N.º 150, de 08 de janeiro de 2004 - -
Lei Complementar N.º 158, de 01 de julho de 1999;
Espírito Santo Lei Complementar N.º 416, de2007; - -
Decreto N.º 1.645-R, de 27 de março de 2006
Lei N.º 5.980, de 19 de julho de 1996, Decreto N.º
Pará 3.876, de 21 de janeiro de 2000; Lei N.º6.773, de 23 - -
de agosto de 2005
Lei complementar N.º 126, de 29 de
Pernambuco Lei N.º 11.743, de 20 de janeiro de 2000 -
agosto de 2008
Lei N.º 5.217, de 15 de dezembro de 2003; Lei N.º 5.285, Lei N.º 6.347, de 02 de janeiro
Lei N.º 6.343, de 02 de janeiro de
Sergipe de 16 de março de 2004; de 2007; Lei N.º 6.348, de 02
2008
Lei N.º 5.467, de 17 de novembro de 2004 de janeiro de 2008
Piauí Lei Ordinária N.º 5.519, de 13 de dezembro de 2005 - -
Lei N.º 12.929, de 04 de fevereiro de 2004; Lei N.º
Santa Catarina - -
13.343, de 10 de março de 2005
Ceará Lei N.º 12.781, de 30 de dezembro de 1997 - -
Maranhão Lei N.º 7.066, de 03 de fevereiro de 1998 - -
Goiás Lei N.º 15.503, de 28 de dezembro de 2005 - -
Amapá Lei N.º 0599, de 25 de abril de 2001 - -
Lei N.º 7.027, de 29 de janeiro de 1997;
Lei Complementar N.º 29, de 21 de
Bahia* Lei N.º 8.647, de 29 de julho de 2003; Decreto N.º -
dezembro de 2007
7.007, de 14 de novembro de 1997
Lei Complementar N.º 118, de 29 de Lei N.º 5.164, de 17 de
Rio de Janeiro Lei N.º 6043, de 19 de setembro de 2011
novembro de 2007 dezembro de 2007
Rondônia Lei N.º 2387, de 7 de janeiro de 2011 - -
Fonte: Elaboração própria.
Nota: *No caso da Fundação Estatal Saúde da Família (Fesf-SUS) do estado da Bahia, que consiste em um modelo de gestão interfederativa direcionada à Estratégia Saúde
da Família, não foi possível a identificação das leis referentes aos 69 municípios da Bahia que constituíam essa entidade até o ano de 2012. Para essa caracterização, seria
necessário um estudo específico sobre a Fesf-SUS devido ao número de municípios inseridos nesta FEDP. Contudo, foi considerada a Lei Complementar n.º 29, de 21 de
dezembro de 2007, que autoriza a instituição de FEDP no território da Bahia.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


Organizações Sociais e Fundações Estatais de Direito Privado no Sistema Único de Saúde: relação entre o público 151
e o privado e mecanismos de controle social

Quadro 3. Legislação municipal consultada sobre OS e FEDP na área da saúde por município no Brasil

Legislação sobre FEDP


Estados Municípios Legislação sobre OS
(Leis específicas)
Lei N.º 1.360, de 30 de abril de 2003;
Barueri -
Lei N.º 1.675, de 10 setembro de 2007
Campo Limpo
Lei N.º 1.905, de 25 de março de 2008 -
Paulista
Lei Complementar N.º 457, de 11 de janeiro de 2005;
Atibaia -
Decreto N.º 4. 954, de 10 de maio de 2006
Lei N.º 1.186, de 11 de novembro de 2005;
Cajamar -
Lei N.º 1.199, de 01 de março de 2006
Morro Agudo Lei N.º 2.381, de 24 de janeiro de 2005 -
Nova Odessa Lei N.º 2.137, de 13 de abril de 2006 -
São Paulo Lei Municipal N.º 14.132, de 24 de janeiro de 2006 -
SP
Castilho Lei N.º 1.608, de 24 de dezembro de 2003 -
Santo André Lei N.º 8.294, de 14 de dezembro de 2001 -
Lins Lei N.º 5.063, de 20 de março de 2008 -
Lei N.º 2.764, de 25 de julho de 2002;
Cubatão -
Decreto N.º 8.374, de 26 de dezembro de 2002
Lei N.º 1.395, de 31 de maio de 2004;
Hortolândia -
Lei N.º 1.519, de 29 de abril de 2005
Jundiaí Lei N.º 7.116, de 06 de agosto de 2008 -
São José dos Lei Municipal N.º 6.469, de 16 de dezembro de 2003 – Pub. BM N.º 1.591, de 19
-
Campos de dezembro de 2003
São Sebastião Lei N.º 1.872, de 04 de julho de 2007 -
Campo Verde Lei N.º 1.198, de 16 de agosto de 2006 -
Lei N.º 10.330, de 06 de novembro de 2002
MG Juiz de Fora -

Passos Lei N.º 2.345/2003, de 27 de junho de 2003 -


Itaboraí Lei N.º 1.690, de 03 de setembro de 2001 -
Lei N.º 1.114, de 08 de março de 2007;
RJ Casimiro de Abreu -
Lei N.º 1.175, de 31 de outubro de 2007
Rio de janeiro Lei N.º 5.026, de 19 de maio de 2009 -
Castro Lei N.º 1.041, de 12 de dezembro de 2000 -
Lei N.º 42 de 10 de agosto de 2001
Fazenda rio Grande -
PR
Lei N.º 3.592, de 24 de
Foz do Iguaçu -
setembro de 2009
Curitiba Lei N.º 9.226, de 23 de dezembro de 1997 -
Carazinho Lei Municipal N.º 5.708, de 25 de julho de 2002 -
Lei N.º 1.842, de 31 de dezembro de 2001;
Serafina Corrêa -
Decreto N.º 2.302, de 15 de agosto de 2006
RS
Vila Maria Lei N.º 1.364, de 25 de junho de 2002 -
Antônio prado Lei Municipal N.º 2.386, de 14 de dezembro de 2005 -
Guaporé Lei N.º 2.623, de 06 de setembro de 2005 -
Nova Mutum Lei N.º 675, de 13 de junho de 2002 -
Campo Novo do
Lei N.º 852, de 28 de dezembro de 2001 -
MT Parecis
Lucas do rio Lei N.º 2.381, de 24 de janeiro de 2005;
-
verde Lei N.º 1.026, de 04 de fevereiro de 2004

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


152 SILVA, V. M.; LIMA, S. M. L.; TEIXEIRA, M.

Quadro 3. (cont.)
Sobral Lei N.º 261, de 18 de maio de 2000 -
CE
Fortaleza Lei N.º 8.704, de 13 maio de 2003 -

GO Goiânia Lei N.º 8.411, de 04 de janeiro de 2006 -


SC Joinville Lei N.º 3.876, de 17 de dezembro de 1998 -
PI Parnaíba Lei N.º 2.261, de 02 de agosto de 2006 -
Lei N.º 2.038, de 18 de
PE Petrolina Lei N.º 2.079/08, de 16 de maio de 2008
dezembro de 2007
ES Vitória Lei N.º 5.811, de 30 de dezembro de 2002 -
Fonte: Elaboração própria.

Relação entre o público e o leis dirigidas especificamente para a saúde e,


privado por consequência, com pouca proximidade à
normatização do SUS, no que se refere à in-
A Lei Federal n.º9.637, de 15 de maio de 1988, corporação dos parâmetros legais norteado-
que autoriza a instituição de OS, define sua res desse sistema. Apenas 25% dos estados
natureza como pessoa jurídica de direito e 41% dos municípios com legislação sobre
privado sem fins lucrativos. Toda a legislação OS observam em seu texto legal a exigência
estadual e municipal consultada estabelece a de alinhamentos às diretrizes e aos princí-
mesma natureza jurídica. Quanto às FEDP, o pios do SUS. Essa falta de alinhamento das
Projeto de Lei Complementar n.º92-A/2007, legislações às diretrizes do SUS não foi en-
do poder executivo, permite aos entes fede- contrada nas normatizações sobre FEDP, ao
rativos que a lei instituída defina a natureza contrário, estas estabelecem que as ativida-
jurídica da Fundação como de direito privado des desenvolvidas devam ser realizadas em
ou público (BRASIL, 2007A). Todas as leis consul- conformidade com o SUS.
tadas definem a natureza de suas Fundações Em relação ao atendimento exclusivo de
como de direito privado, com exceção da lei usuários do SUS, a lei federal sobre OS não
complementar da Bahia, que permite a ins- trata desse aspecto. Todavia as leis do estado
tituição de Fundação estatal com personali- de São Paulo e dos municípios do Rio de
dade jurídica de direito público ou privado. Janeiro, Curitiba e Espírito Santo delimitam
É importante ressaltar que, enquanto as nor- que o atendimento realizado seja exclusivo
matizações sobre OS permitem que o Poder aos usuários do SUS.
Público qualifique entidades já existentes, as No caso das FEDP, a normatização federal
legislações específicas sobre FEDP possibi- também não trata do tema, assim como a
litam a constituição de uma nova entidade legislação do estado de Pernambuco. Já nos
criada pelo Estado. estados de Sergipe e Bahia, as leis estabele-
As propostas das OS e das FEDP não foram cem a exigência de exclusividade. No Rio de
elaboradas exclusivamente para a saúde, e Janeiro, a lei específica proíbe a prestação de
sim para uma diversidade de áreas sociais, serviços de saúde à iniciativa privada, assim
como arranjos que realizariam a intermedia- como a lei de Foz do Iguaçu (RS), que ainda
ção entre Estado, na forma de suas políticas veta a realização de cobrança de qualquer
sociais, e sociedade. Esses modelos jurídico- forma aos usuários. A lei de Petrolina (PE)
-institucionais não específicos para a saúde dispõe que a prestação de serviços deve ser
tiveram efeitos nas legislações subnacionais de acesso universal e gratuito à população.
das OS, com uma reduzida formulação de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


Organizações Sociais e Fundações Estatais de Direito Privado no Sistema Único de Saúde: relação entre o público 153
e o privado e mecanismos de controle social

No que diz respeito ao financiamento, as legal que o repasse está vinculado ao cum-
legislações referentes às OS possibilitam em primento das metas. As demais legislações
18% dos estados (Sergipe, Ceará e Bahia) e fazem referência, em seu texto, à definição
13% dos municípios (Castro/PR, Curitiba/ de metas de desempenho no Contrato de
PR, Fortaleza/CE, Cubatão/SP e Sobral/CE) Gestão, mas não expressam, de forma ex-
o recebimento de recursos do setor privado, plícita, a vinculação do repasse financeiro
doações e contribuições de entes nacionais às referidas metas. Tal fato não exclui que
ou estrangeiros, além dos rendimentos de esse atrelamento seja estipulado nos con-
aplicações de seus ativos financeiros. tratos de gestão, contudo, como se trata de
Por sua vez, as legislações sobre FEDP, um aspecto definidor do modelo de gover-
mesmo estipulando exclusividade na atenção, nança pautado no gerencialismo, a ausência
apresentam em 80% dos estados (São Paulo, dessa prerrogativa na maioria das leis se
Sergipe, Bahia e Rio de Janeiro) e 100% dos destaca.
municípios (Foz do Iguaçu/RS e Petrolina/PE) As FEDP, que segundo documento do
pelo menos uma lei que possibilita financia- MPOG também devem estabelecer contra-
mento advindo da iniciativa privada a partir de tos de prestação de serviços com o Poder
diferentes mecanismos, sendo algumas dessas Público, estabelecem somente nas leis espe-
fontes não definidas claramente, denominadas cíficas do Rio de Janeiro e Foz do Iguaçu o
nas legislações como rendas eventuais. condicionamento do repasse de recursos ao
Essa abertura para recursos privados, alcance de metas (BRASIL, 2007B).
principalmente quando as fontes não são Na lei federal sobre OS, são estabeleci-
delimitadas claramente em lei, pode gerar dos critérios para qualificação de entida-
iniquidades semelhantes às dos serviços des como tal. Alguns desses critérios são
que não estabelecem exclusividade na fundamentais para a própria definição da
atenção a usuários do SUS. Além disso, ela OS como um ente, embora privado, sem
torna o controle dos recursos públicos mais fins lucrativos. Entre eles, destacam-se:
complexo, dada a dificuldade no âmbito a proibição de distribuição de bens ou
do SUS de se identificar, em entidades que parcela do patrimônio líquido em qual-
recebem recursos públicos e privados, como quer hipótese, encontrada em 14 estados
os recursos públicos estão sendo utilizados: e 37 municípios, e a obrigatoriedade de
se apenas no custeio de ações dirigidas aos investimento de seus excedentes finan-
usuários do SUS ou também no atendimen- ceiros no desenvolvimento das próprias
to de usuários advindos do setor privado atividades, identificada em 15 estados
(SANTOS; UGÁ; PORTO, 2008). e 38 municípios. Dado que a principal
O modelo gerencialista tem como um diferença entre as empresas privadas e
dos seus principais alicerces o controle os entes sem fins lucrativos é o fato dos
de resultados, que no caso das OS se faz a membros destes últimos não poderem se
partir da estipulação de metas de desempe- apropriar do excedente da organização, a
nho, que devem ter seus resultados avalia- instituição dessas prerrogativas em lei se
dos para que ocorra o repasse de recursos constitui como um elemento definidor do
financeiros. Mesmo tendo esse referencial, caráter dessas entidades e um mecanis-
o número de legislações sobre OS que es- mo de controle do recurso público. Nesse
tipulam explicitamente o atrelamento do sentido, a identificação de municípios e
repasse de recursos ao alcance de metas de estados que não estabelecem tais obriga-
desempenho é reduzido. Apenas as legisla- toriedades aponta, nessas unidades fe-
ções dos estados do Rio de Janeiro, Minas derativas, para uma distorção do modelo
Gerais e Rondônia definem em seu texto federal da OS.

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154 SILVA, V. M.; LIMA, S. M. L.; TEIXEIRA, M.

Mecanismos de controle secretarias. No entanto, a grande maioria


interno e externo das leis sobre OS – referentes a 15 estados e
a 36 municípios – não faz qualquer menção
Os órgãos de deliberação internos fazem à prestação de contas aos Conselhos de
parte dos mecanismos de controle adota- Saúde, tendo em consideração o acompa-
dos pelas OS e pelas FEDP e podem ex- nhamento e a fiscalização da execução dos
pressar em sua composição o quanto essas contratos de gestão. A grande maioria das
entidades são abertas à participação do leis sequer os citam em seu texto legal, o
controle social. que demonstra um afastamento dessas
Em relação às OS, em consonância com a normatizações aos mecanismos de gestão
legislação federal, que estipula como órgãos e participação do SUS.
de deliberação o Conselho de Administração As FEDP, por sua vez, estabelecem na
(CA), a maioria dos estados (15) e municí- maioria de suas leis específicas essa pres-
pios (37) apresenta em seu texto legal essa tação de contas ao Conselho de Saúde. As
estrutura, à exceção do estado de Mato leis do estado do Rio de Janeiro, as leis es-
Grosso e dos municípios de Fazenda Rio pecíficas de Sergipe e de Foz do Iguaçu (PR)
Grande (MT) e Itaboraí (RJ). estabelecem a participação do Conselho no
No caso das FEDP, a lei federal não prevê processo de acompanhamento e fiscalização.
a obrigatoriedade de existência de CA (ou Na legislação do município de Petrolina (PE),
Conselho Curador), contudo nas norma- há previsão de que o Conselho de Saúde es-
tizações específicas dos estados do Rio de tabeleça diretrizes dos Contratos de Gestão e
Janeiro e de Sergipe estas estruturas estão realize sua aprovação.
presentes, assim como nas legislações de Essa falta de alinhamento das normatiza-
Petrolina (PE) e Foz do Iguaçu (PR). ções das OS pode estar relacionada à previsão
Quanto ao controle social, a legislação de instalação de Conselhos de Administração
do SUS define como principal órgão cole- (CAs). Enquanto nas FEDP os CAs parecem
giado de caráter permanente e deliberati- se constituir como um mecanismo interno de
vo o Conselho de Saúde, que expressaria controle e deliberação, no caso das OS estes
a participação institucionalizada da so- Conselhos parecem atuar como o espaço
ciedade na gestão do sistema de saúde. colegiado privilegiado de deliberação, em
Esta definição foi normatizada principal- detrimento dos Conselhos de Saúde.
mente pela Lei n.º 8.142, de 1990, e pela A composição dos CAs também é um
Resolução n.º 333, de 2003, que dispõem aspecto importante, principalmente nos casos
sobre a participação dos Conselhos na das OS devido ao aparente privilegiamento
formulação e no controle das políticas de desses espaços. Esses colegiados são compos-
saúde, incluindo seus aspectos financeiros tos de diversas formas e, de acordo com as le-
e econômicos, além da aprovação ou não gislações tanto das OS quanto das FEDP, não
dos processos a serem encaminhados ao preconizam a participação majoritária da po-
Poder Legislativo e da realização de ava- pulação e dos trabalhadores. Diferentemente
liação e deliberação dos contratos estabe- do que ocorre com os Conselhos de Saúde,
lecidos por estados e município. nos quais se prevê para sua composição 50%
Os Conselhos de Saúde, de acordo com de representação dos usuários e 25% dos tra-
a legislação do SUS, deveriam não apenas balhadores. Segundo as normatizações con-
aprovar os contratos de gestão estabele- sultadas, o percentual de representação da
cidos entre as secretarias de saúde e OS população e dos trabalhadores é reduzido. No
e FEDP como também avaliar e controlar caso das OS, a participação de trabalhadores
os repasses financeiros realizados pelas sequer é prevista na maioria das leis (tabela 1).

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Organizações Sociais e Fundações Estatais de Direito Privado no Sistema Único de Saúde: relação entre o público 155
e o privado e mecanismos de controle social

Tabela 1. Composição dos participantes do Conselho Administrativo nas OS e FEDP segundo as leis estaduais e municipais

OS FEDP*
Leis estaduais Leis municipais Leis específicas Leis específicas
Composição do CA
(16) (39) estaduais (3) municipais (2)
N % N % N % N %
Participação da Sociedade Civil
12 75,0 26 66,6 1 33,3 2 100
(incluindo entidades da sociedade civil)
Participação do Poder Público 13 81,2 26 66,6 3 100 2 100
Representação do Poder Público e Sociedade Civil
8 50,0 23 58,9 3 100 2 100
superior a 50% do total de membros
Representação de Trabalhadores 6 37,5 9 23,0 1 33,3 2 100
Fonte: Elaboração própria.
Nota: *Foram consideradas apenas as leis específicas dos estados e municípios, por causa do entendimento, derivado da Emenda Constitucional 19/1998, de que enquanto
a lei complementar tem como objetivo dispor sobre a área de atuação, a lei específica é mais ampla, permitindo a caracterização das FEDP quanto à participação dos
diferentes atores em seus espaços de deliberação. Assim, não se espera que a lei complementar disponha sobre esses aspectos, como de fato não dispõem. Agrupar as leis
complementares e específicas daria uma falsa impressão de que esse modelo de governança é menos permeável à participação social.

O controle de resultados proposto para (30) possuem leis que apenas determinam
as OS é realizado a partir da análise das que as referidas Comissões devam ser inte-
metas atingidas na execução do contrato gradas por especialistas de notória capacida-
de gestão e da emissão de relatório con- de e adequada qualificação.
clusivo. O principal mecanismo externo de Quanto ao órgão que realiza a indicação
controle desses resultados são as Comissões dos membros, as secretarias de saúde são
de Acompanhamento de Contratos (CAC). apontadas como responsáveis por essa in-
Estas estruturas, preconizadas na lei federal dicação na maioria das leis. Contudo, em
de qualificação das OS, são adotadas nas le- 21% dos municípios e 15% dos estados, que
gislações da maioria dos estados (14) e dos preveem a existência dessa Comissão em seu
municípios (34), mas não em todas elas. A desenho institucional, não há qualquer de-
ausência dessas comissões em 2 estados e 5 finição de quem indicará os seus membros.
municípios deve servir de alerta para o uso Esses dados expressam uma falta de trans-
indevido da flexibilidade dispensada às OS, parência quanto à definição dos segmentos
que se desvinculam do controle por proce- responsáveis pelo controle dos resultados,
dimentos, mas também não aderem, nesses sendo esta forma de controle o que respalda
casos, aos mecanismos institucionais de con- a maior flexibilidade na gestão dos recursos
trole por resultados. dirigidos às OS.
A existência dessas Comissões, por outro As FEDP apresentam CAC apenas em duas
lado, não garante per si o controle dos re- leis específicas, do Rio de Janeiro e de Foz do
sultados atingidos, é necessária a definição Iguaçu, sem dispor de sua composição ou do
de seus membros de forma mais criteriosa órgão responsável pela indicação dos seus
possível e expressa claramente nas legisla- membros. As Fundações, em comparação com
ções, além do funcionamento regular das a administração direta, também usufruem de
referidas comissões. uma maior flexibilidade. No entanto, como
Em se tratando da composição das CAC, são entes da administração pública indireta,
as legislações são pouco específicas. A estão subordinadas necessariamente a meca-
maioria dos estados (12) e dos municípios nismos de controle das atividades, sendo os

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156 SILVA, V. M.; LIMA, S. M. L.; TEIXEIRA, M.

órgãos de controle do Estado os responsáveis expressa as particularidades políticas e ins-


por esse acompanhamento. titucionais de cada governo subnacional e
As OS e as FEDP são entidades financia- seus contextos locais.
das pelo Poder Público a partir da assina- Os projetos reformistas dos quais as OS e
tura de contrato de gestão, mecanismo que as FEDP têm origem são aspectos importan-
localiza o Estado no lugar de financiador e tes na trajetória dessas propostas. O maior
regulador das metas pactuadas. Contudo, amadurecimento do projeto de reforma do
no caso das OS, é o Estado regulando um governo FHC parece ter potencializado a ca-
ente não estatal, qualificado por este como pacidade de difusão das OS. Já o documen-
OS e criado por grupos diferenciados, como to ‘Gestão pública para um Brasil de todos:
Organizações Não Governamentais (ONGs), um plano de gestão para o Governo Lula’
universidades, entre outros. No caso das (BRASIL, 2003), do governo Lula, mesmo estabe-
FEDP, o Estado regula o próprio Estado, pois lecendo diretrizes importantes – tais como
se trata de um ente criado por ele a partir de redução do déficit institucional, participação
lei específica e localizado na administração e transparência das ações do governo – não
pública indireta. foi capaz de dar corpo ao projeto inicial das
FEDP, o que pode ter influenciado na adesão
e, em última instância, na aceitação delas.
Discussão No plano da institucionalidade, as OS
possuem um arcabouço legal mais consoli-
Os modelos jurídico-institucionais – OS e dado do que as FEDP. A legislação federal
FEDP – traduzem, no âmbito da gestão de das OS, aprovada desde 1998, estabelece um
serviços sociais, as proposições dos governos desenho institucional que serve de modelo
FHC (PSDB) e Lula (PT) para a administra- para a formulação de leis estaduais e munici-
ção pública brasileira, sendo estas influen- pais. Já o Projeto de Lei 92/2007 das FEDP,
ciadas por reformas internacionais, que por se tratar de uma lei complementar que
preconizam novos desenhos na relação do busca definir as áreas de atuação da entida-
Estado com a sociedade, incluindo reestru- de, pouco delimita o modelo organizacional
turações do aparelho de Estado. das Fundações. Tal fato pode criar incerte-
Essas influências internacionais têm zas quanto a essa entidade e quanto ao seu
repercussões distintas sobre os governos modus operandi específico. Além disso, o re-
brasileiros, dados os contextos político- ferido projeto até o momento não foi aprova-
-institucionais específicos. Contudo, mesmo do no Congresso Nacional.
com suas particularidades, a onda reformis- As OS, mesmo surgindo como proposta
ta de cunho gerencialista inspirou o governo em um governo do PSDB – caracterizado
FHC, que buscou instituir um conjunto de por autores, como Paes de Paula (2005), como
regras formais que balizassem a implemen- um governo social-liberal, que preconizou
tação desse modelo de gestão. As legislações a transferência da execução de parte dos
que permitem a qualificação de entidades serviços sociais para um ente fora da admi-
como OS fazem parte dessas regras. nistração pública, acabam por se proliferar
A análise desses dois modelos jurídico- em um governo do PT, que no seu plano de
-institucionais, por meio de seus marcos governo propunha uma revitalização do
legais, evidencia diferenças entre as propos- papel do Estado.
tas de OS e FEDP federais e subnacionais. Essa aparente contradição tem sido iden-
Adicionalmente, também foram identifica- tificada em outros países, Paes de Paula (2005)
das diferenças nas legislações que dispõem menciona como exemplo a experiência da
sobre o mesmo tipo de entidade, o que Inglaterra, que mesmo com a instalação de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


Organizações Sociais e Fundações Estatais de Direito Privado no Sistema Único de Saúde: relação entre o público 157
e o privado e mecanismos de controle social

um governo do Partido Trabalhista investiu na CF, especialmente no tocante ao acesso uni-


na transferência da execução de serviços de versal e igualitário às ações desenvolvidas pelos
saúde para entes não estatais. No entanto, no serviços de saúde no SUS. Nesse ponto, as FEDP
caso brasileiro, tal fato pode ser mais bem parecem projetar um modelo de governança
explicado pelo percurso dessa proposta, mais próximo do SUS, ao estabelecerem essa
que ganhou espaço em estados e municí- exclusividade na maioria de suas leis.
pios com considerável autonomia legislativa A questão da exclusividade de atendimento
em relação ao governo federal e que busca- aos usuários do SUS em entidades contratadas
vam alternativas aos impasses existentes na é um tema discutido na saúde, principalmente
gestão de serviços de saúde. por conta das diferenças que se estabelecem
Essa maior adesão às OS, em comparação nos mecanismos de porta de entrada, tempo
com as FEDP, em parte pode ser explicada de espera e atendimento destes usuários, em
pelo fôlego de seu projeto inicial e por seu comparação com os usuários com planos de
arcabouço legal mais consolidado, entre- saúde ou que efetuam pagamento direto, sendo
tanto há aspectos conjunturais a serem con- estes últimos muitas vezes privilegiados.
siderados, tais como: os questionamentos No que diz respeito à relação entre o público
quanto à legalidade dos modelos de gestão e o privado, apesar da maior proximidade das
alternativos para a administração pública FEDP aos princípios do SUS, especificamente
direta por parte dos órgãos de controle do à exclusividade da atenção aos usuários do
Estado, como os Tribunais de Contas; a SUS, quando se considera seus mecanismos
maior responsabilização dos gestores pú- de financiamento são observadas diferentes
blicos pelas irregularidades ocorridas na formas de abertura a fontes de financiamento
administração pública; e a necessidade de privadas. Há, assim, uma aparente contradi-
contratar pessoal sem incidir sobre o limite ção interna nesse modelo, posto que estabe-
definido na Lei de Responsabilidade Fiscal. lece a exclusividade na atenção a usuários do
Nesse contexto, as OS se apresentam como SUS e, paralelamente, possibilita a abertura
um mecanismo aparentemente menos ar- de fontes de financiamento privadas.
riscado para os gestores estaduais e muni- De diferentes formas, as OS e as FEDP são
cipais, no que se refere a questionamentos permeáveis ao setor privado. As OS se abrem
legais, posto que já existem experiências mais ao mercado ao não estipularem textual-
de implementação consolidadas, principal- mente a exclusividade ao SUS. As FEDP, por sua
mente no estado de São Paulo. vez, em relação ao financiamento, se apresen-
Contudo, o modelo de governança das OS tam mais abertas a recursos oriundos de outras
apresenta bases diferentes das preconiza- fontes (não originárias do Poder Público). Essa
das pela Constituição Federal (CF) de 1988, permeabilidade das FEDP também contraria a
principalmente em relação à universalidade matriz político-conceitual da qual teve origem,
da atenção, à participação da população e de visto que foi criada pelo mesmo governo que
trabalhadores na gestão do SUS, à atuação propôs um projeto para revitalizar o Estado,
de forma complementar de instituições pri- apontando este não mais como problema, mas
vadas, incluindo as sem fins lucrativos, e à sim como parte importante da solução.
orientação de igualdade no acesso e atenção Nos dois modelos jurídico-institucionais, OS
aos cidadãos no sistema de saúde. e FEDP, tendo em consideração a relação entre
A ausência da prerrogativa de exclusivida- o Estado e a Sociedade, a participação social
de na maioria das leis das OS, aqui analisadas, não está institucionalizada de forma a privile-
expressa uma maior abertura nesses arranjos à giar o interesse da população, dada a falta de
iniciativa privada e à instituição de práticas que espaço para a vocalização desse segmento nos
podem distorcer a concepção de saúde contida respectivos Conselhos de Deliberação.

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158 SILVA, V. M.; LIMA, S. M. L.; TEIXEIRA, M.

A análise dos marcos legais evidencia que As propostas das OS e das FEDP enfati-
as OS apresentam maior proximidade com zam as dimensões institucionais e financei-
o setor privado, por se tratar de uma enti- ras, perpetuando a falta de investimento nas
dade fora da administração pública criada dimensões sociais e políticas, especialmente
por pessoa jurídica privada. As Fundações, na participação e controle social. É importan-
por sua vez, são entidades da administração te frisar que o objeto de análise neste estudo
pública indireta, criadas pelo Estado, que foram as legislações encontradas referentes às
em tese estabeleceriam mais nitidamente a OS e às FEDP. Como já exposto, essas regras não
separação entre o público e o privado, com retratam necessariamente a forma como essas
a minimização dos interesses particulares, entidades serão ou foram implementadas, mas
principalmente no que se refere à contra- induzem a atuação dos atores envolvidos nesse
tação de pessoal, realizada nas FEDP por processo, permitindo a identificação de dife-
meio de concurso público. rentes características, o que torna essas regras
um instrumento importante da análise social a
partir do referencial neoinstitucionalista.
Conclusão A caracterização das OS e das FEDP re-
alizada neste estudo pode ser um ponto de
O modelo burocrático em moldes webe- partida para outros trabalhos. A análise
riano, centrado em suas regras de fun- crítica quanto aos modelos propostos para
cionamento, com ênfase no controle por execução e gestão de serviços de saúde é
procedimentos, não foi capaz de respon- um aspecto importante na conjuntura atual.
der às necessidades da população. A falha Também é necessário formular estudos que
desse modelo sustentou a formulação da apontem alternativas para uma gestão mais
Administração Pública Gerencial, pautada democrática e próxima das diretrizes e prin-
na responsabilização por resultados, que, cípios do SUS, seja com o aprimoramento
em tese, teria uma maior abertura a canais dos mecanismos já existentes, seja com a for-
democráticos de interlocução com a so- mulação de outros desenhos institucionais.
ciedade. No entanto, a análise dos marcos Nesse sentido, propõe-se um avanço dos
legais das OS e das FEDP, modelos jurídico- estudos sobre os mecanismos jurídico-institu-
-institucionais atrelados ao modelo geren- cionais na área da saúde, em especial no tocante
cialista, demonstra que esses modelos não à análise dos contratos de gestão; à avaliação do
dão conta de assegurar, em seus desenho impacto dos modelos jurídico-institucionais na
jurídico-institucional, mecanismos demo- redução das desigualdades de acesso e atenção
cráticos que ampliem a participação social à saúde; às formas de controle e participação
e que, consequentemente, garantam o inte- social instituídas nesses arranjos e à avaliação
resse população na área da saúde. de experiências institucionais alternativas. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 145-159, DEZ 2015


160 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Avaliação da Rede de Atenção à Saúde de


pequenos municípios na ótica das equipes
gestoras
Evaluation of the Health Care Network in small towns from the
perspective of management teams

Cássia Regina Gotler Medeiros1, Tatiana Engel Gerhardt2 

RESUMO Estudo de caso com objetivo de analisar a Rede de Atenção à Saúde em dois muni-
cípios de pequeno porte, baseado nos elementos institucionais que configuram o padrão de
interdependência em rede e na análise de atributos que indicam o nível de integração da rede
de serviços de saúde. Foram realizados grupos focais com equipes gestoras dos municípios,
bem como entrevistas com informantes-chave da gestão regional e do serviço de referência
regional hospitalar, analisadas pelo método de interpretação de sentidos. A análise expôs uma
rede parcialmente integrada e relações de interdependência que apresentam interesses diver-
gentes e pouca confiança entre os atores, dificultando a governança.

PALAVRAS-CHAVE Políticas públicas de saúde; Sistemas locais de saúde; Avaliação em saúde.

ABSTRACT Case study aiming to analyze the Health Care Network in two small towns, based
on the institutional elements that configure the pattern of network interdependence and on the
analysis of attributes that indicate the level of integration of the health services network. Focus
groups were conducted with management teams of municipalities, as well as interviews with
regional management key informant and the regional hospital reference service, analyzed by me-
thod of interpretation of meanings. The analysis exposed a partially integrated network and in-
terdependence relations that have divergent interests and a low level of trust between the actors
– a condition that hinders governance.

KEYWORDS Public health policies; Local health systems; Health evaluation.

1 Centro Universitário

Univates – Lajeado (RS),


Brasil.
cgotlermedeiros@gmail.com

2 Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS)
– Porto Alegre (RS), Brasil.
tatianagerhardt@ufrgs.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 160-170, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005201
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Avaliação da Rede de Atenção à Saúde de pequenos municípios na ótica das equipes gestoras 161

Introdução visava à desburocratização dos processos e o


respeito às singularidades regionais; ainda,
O avanço da descentralização e a consoli- ao buscar critérios equitativos de repasse
dação da municipalização após a criação do de recursos, tentava corrigir as distorções
Sistema Único de Saúde (SUS) têm ocorrido neste repasse. No sentido de reforçar a ter-
gradualmente e com diferenças significati- ritorialização, institui Colegiados de Gestão
vas entre regiões e entre municípios. Regional (CGR) – incluindo todos os ges-
Uma das características do Brasil é o tores municipais e gestores estaduais –, e
grande número de pequenos municípios, reitera a importância com a qualificação da
61% destes apresentando menos de 15 mil participação e do controle social, propondo,
habitantes. O retrato no Rio Grande do Sul assim, uma gestão que se fundamenta na in-
(RS) não é diferente: 75,4% dos municí- terdependência das redes.
pios são pequenos. Na 16ª Coordenadoria A partir do decreto 7.508 do MS
Regional de Saúde (CRS), onde estão vin- (BRASIL, 2011), o CGR foi instituído como
culados os municípios deste estudo de caso, Comissão Intergestores Regional (CIR). Este
este percentual sobe para 85,7 – 36 entre 42 decreto avançou na proposta de um plane-
municípios (MEDEIROS, 2013). jamento ascendente e no fortalecimento das
A maioria dos municípios dessa região regiões de saúde, a partir do qual se realizou
encontra-se em situação de grande depen- um novo desenho na regionalização do RS,
dência externa em relação a referências de constituindo 30 regiões de saúde, sendo que
Média (MC) e Alta Complexidade (AC) – a 16ª CRS ficou constituída por 2 regiões. A
com algumas dificuldades de acesso a estes regionalização é uma das diretrizes propostas
serviços e diferentes formas de organiza- pelo SUS para organizar as RAS, garantindo
ção da Atenção Básica (AB) e na estrutura as referências e contrarreferências (BRASIL, 2011).
dos serviços –, configurando deficiência na Mesmo com a descentralização e a pro-
constituição de Redes de Atenção à Saúde posta de que os municípios cada vez mais se
(RAS). Pasche et al. (2006) consideram que o tornem responsáveis pela gestão da saúde,
processo de regionalização foi bastante he- a região, não diferentemente do restante do
terogêneo devido às diversidades regionais País, apresenta muita dificuldade em avançar
e desigualdades de capacidade técnica e de na tomada de algumas decisões e nas respon-
gestão entre as equipes locais, determinando sabilidades demandadas (MEDEIROS ET AL., 2010).
avanços significativos em algumas regiões e Na situação em que se encontra a imple-
redes fragmentadas em outras. mentação do SUS, são necessários estudos
Com a publicação da Portaria 399/GM que avaliem a organização e funcionamento
– que aprovou as diretrizes do Pacto pela das RAS nos pequenos municípios e a capa-
Saúde –, o Ministério da Saúde (MS) buscou cidade destes em garantir a integralidade e a
enfrentar os problemas estruturais, econô- equidade em saúde para seus cidadãos, pois
micos e de gestão apresentados pelo SUS, são estes municípios que apresentam a maior
destacando o papel central das regiões de dependência externa. Nesse contexto, a go-
saúde, enquanto espaços territoriais, onde vernança do sistema apresenta uma tensão
se deve organizar a rede de ações e de servi- permanente entre os diversos atores envol-
ços de saúde a fim de que sejam cumpridos vidos. Embora, na realidade brasileira, esta
os princípios constitucionais da universa- tensão esteja presente também em municí-
lidade do acesso, equidade e integralidade pios de porte médio e grande, esta se amplia
do cuidado (BRASIL, 2006). O texto da portaria no caso dos pequenos, devido à grande
parece responder às críticas que existiam dependência intermunicipal. A gestão dos
sobre as normas e portarias anteriores, pois fluxos na rede convive constantemente com

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a dialética cooperação/competição entre os municípios de pequeno porte populacional,


entes federados e entre estes e os prestado- visando à avaliação da rede de atenção às
res de serviço. Conforme Hufty, Báscolo e pessoas com DCV. A abordagem da avaliação
Bazzani (2006), a governança pode ser definida adotada no estudo considerou a inserção da
como processos de ação coletiva que organi- RAS dos municípios em seu contexto regio-
zam as dinâmicas de atores e normas sociais nal, estadual e até mesmo nacional. Embora
com os quais uma sociedade determina sua não haja sentido em imaginar que todos os
conduta. Esta se refere à maneira de tomar e serviços devam estar disponíveis em todas
executar decisões que envolvem o conjunto as localidades, é correto pensar que os ci-
social e os acordos dos atores entre si. dadãos de todos os municípios devam ter
Essa problemática sugere acesso a todas as ações e serviços de saúde
que necessitam. Esta questão traz a impor-
a necessidade de uma agenda de pesquisa tância da integração entre as três esferas de
que permita delimitar precisamente os pro- governo – embora não importe tanto saber
blemas e os obstáculos a serem removidos qual esfera é diretamente responsável pela
para o desenvolvimento das esperadas con- oferta do serviço, mas sim se a integralidade
dutas cooperativas e solidárias entre agentes da atenção e o acesso aos serviços estão ga-
governamentais. (MACHADO, 2009, P. 106). rantidos (SOUZA; VIEIRA-DA-SILVA; HARTZ, 2005).
Uma dupla leitura sobre a natureza do
Um dos grandes nós críticos do SUS são objeto ‘rede’ é indispensável: da estrutura
as questões relacionadas à referência e con- organizacional voltada para a produção de
trarreferência, incluídas na regionalização serviços e da dinâmica de atores em constan-
do sistema, no entanto, a maior parte das te renegociação de seus papéis. A incerteza
propostas tecnoassistenciais desenvolvidas é permanente em relação à integração dos
para o SUS centram-se na reorganização da serviços de saúde em rede, pois os diversos
AB. É fundamental, porém, que haja trans- atores e organizações envolvidos não têm os
formações em outros níveis do sistema de mesmos interesses, recursos ou competências
saúde para que se possa cumprir a promes- para se envolverem com um projeto nessa
sa de um sistema único e organizado para a mais exigente modalidade de cooperação.
integralidade, que funcione como “malha de Dessa forma, os avaliadores devem levar em
cuidado ininterrupto à saúde” e não como conta a percepção dos diversos atores impli-
um sistema burocrático e despersonalizado cados, além da documentação normativa e da
de encaminhamentos (BRASIL, 2005, P. 107). revisão da literatura, indagando sobre a ‘real’
O estudo apresentado neste artigo teve como existência da implantação da rede em relação
objetivo avaliar a RAS às pessoas com Doenças ao ‘modelo ideal’ (HARTZ; CONTANDRIOPOULOS, 2004).
Cardiovasculares (DCV) na região da 16ª CRS Optou-se por utilizar as DCV como con-
do estado do RS, considerando os elementos dição marcadora devido à relevância epide-
institucionais que configuram o padrão de in- miológica que estas patologias têm para a
terdependência e os atributos que indicam o saúde no Brasil e na região; assim como por
nível de integração da rede de serviços de saúde serem classificadas como condições crôni-
em dois pequenos municípios da região. cas, cuja atenção é de longo prazo e exige
uma rede múltipla e articulada de serviços
de saúde para garantir resolutividade.
Metodologia Os municípios selecionados para o
estudo eram similares em termos de porte
Desenvolveu-se um estudo de caso na região populacional (cerca de 4 mil habitantes),
da 16ª CRS, a partir da seleção de dois estrutura de serviços de saúde e condições

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Avaliação da Rede de Atenção à Saúde de pequenos municípios na ótica das equipes gestoras 163

socioeconômicas. Os dois possuíam 100% e analisado, sendo considerada o ponto


de cobertura da Estratégia Saúde da Família de partida (interpretações dos atores) e
(ESF) e pequeno hospital local. A escala de o ponto de chegada (interpretação das
análise da RAS exigiu considerar os serviços interpretações).
existentes em outros territórios político- As seguintes dimensões e categorias de
-administrativos. Acredita-se que as carac- análise foram utilizadas como parâmetros
terísticas destes municípios são similares para o processamento e interpretação das
a grande parte dos municípios brasileiros, informações: Atributos de integração da RAS
possibilitando inferir semelhanças nos re- (OPAS, 2011) e Padrões de interdependência em
sultados encontrados. rede (FLEURY; OUVERNEY, 2007). A Organização
Foram coletadas e comparadas informa- Pan-Americana da Saúde (Opas) (OPAS, 2011)
ções obtidas e sistematizadas por meio de lista 14 atributos essenciais, organizados em
várias fontes e métodos, incluindo grupos quatro âmbitos de abordagem, para que as
focais e entrevistas semiestruturadas, no RAS funcionem adequadamente, afirmando
período de março a agosto de 2012. Foram que, devido à grande variedade de contextos
realizados dois grupos focais com equipes externos e fatores internos, não é possível
gestoras de cada município, no total de dez prescrever um único modelo organizacional.
participantes, que foram pessoas identi- Fleury e Ouverney (2007) publicaram
ficadas pelo fato de exercerem atividades ampla análise sobre gestão de redes, enfo-
de gestão da rede nos municípios – uma cando especialmente as redes em adminis-
médica, cinco enfermeiras, dois agentes ad- tração pública, propondo uma tipologia para
ministrativos e dois secretários de saúde. identificação e análise da interdependência
As discussões tiveram como tema gerador em rede, identificando qual o seu padrão de
a organização e funcionamento da rede de governança. Para analisar o potencial de mo-
atenção às pessoas com DCV. bilização do trabalho coletivo e da promo-
As entrevistas semiestruturadas foram ção do intercâmbio de recursos, os autores
realizadas com um informante-chave ligado propõem uma tipologia que analisa e sinteti-
à gestão regional e dois informantes do za os principais elementos de um padrão de
serviço de referência regional em cardiolo- interdependência em rede, classificando-os
gia. Essas entrevistas tiveram por objetivo em baixa institucionalidade, interdependên-
analisar o posicionamento e entendimento cia ou elevada institucionalidade.
de atores externos ao município, mas fun- Na medida em que as características que
damentais na composição da rede regional compõem um padrão de interdependência
de atenção à saúde. Considerou-se como em rede estão presentes, é possível desen-
informante-chave da gestão regional o servi- volver um potencial de organização do tra-
dor que possuía experiência e inserção sig- balho coletivo sem que isso comprometa
nificativas na organização e funcionamento a sustentabilidade política, uma vez que a
das redes regionais, bem como nas diversas governança, nestes espaços interorganiza-
instâncias regionais de pactuação. cionais, constrói-se com pactuação e ajustes
Para a análise das entrevistas e grupos de percepções e interesses, em que não há
focais, utilizou-se uma proposta produzi- uma autoridade central. No entanto, quando
da pelo grupo de pesquisadores do Claves/ a formação possui características que se
Ensp/IFF/Fiocruz (GOMES ET AL., 2005) deno- aproximam de um dos outros dois tipos, seu
minada interpretação de sentidos. Nessa potencial de promoção e sustentação de in-
proposta, a interpretação busca os sentidos terdependência diminui (OUVERNEY, 2005). O
das falas e das ações para compreender ou quadro 1, a seguir, mostra as dimensões e ca-
explicar além dos limites do que é descrito tegorias de análise citadas.

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Quadro 1. Dimensões e categorias de análise

Elementos do padrão de interdependência em rede Atributos de integração das RAS


-Foco gerencial -Modelo Assistencial
-Atores envolvidos e amplitude de inserção -Governança e Estratégia
-Nível de formalização -Organização e Gestão
-Recursos envolvidos -Alocação de recursos financeiros e incentivos
-Foco de poder
-Foco de controle
-Objetivos enfatizados
-Instâncias estratégicas de coordenação interorganizacional
-Espaços internos de pactuação
-Canais externos de articulação
Fonte: Adaptado de OPAS (2011); Fleury e Ouverney (2007).

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética população, muito menos a determinação
em Pesquisa da Universidade Federal do Rio de uma oferta de serviços que as atendam,
Grande do Sul sob o número 21739. Os atribu- conforme recomenda o referido atributo. O
tos de avaliação encontram-se destacados em que se verificou é que a oferta é determinada
itálico na análise a seguir, que sintetiza a inter- principalmente pela análise de viabilidade
pretação dos grupos focais e entrevistas. econômica dos prestadores de serviço e, por
vezes, pela pressão que a população exerce
sobre a gestão municipal.
Resultados e discussão Há, na região, uma rede de estabeleci-
mentos de saúde que seria suficiente para
Atributos de integração da Rede de prestar um cuidado integral; verificou-se,
Atenção à Saúde porém, vários problemas que dificultam este
cuidado. Alguns estão relacionados à defi-
Os relatos das equipes gestoras revelaram ciência da AB oferecida à população, ainda
uma rede de atenção em construção. Esta muito centrada no atendimento médico e
rede parece estar em um processo incipiente pouco eficiente em ações de promoção à
de transição de modelo assistencial a partir saúde e prevenção às doenças (atributo 2).
de algumas tentativas de mudanças feitas Pouco se trabalha com classificação de risco
pelas equipes da AB. O restante da rede per- e protocolos clínicos, muito menos com pla-
manece na lógica fragmentada de um modelo nejamento. Embora se tenha verificado a
assistencial que atua por procedimentos, presença de ‘equipes multidisciplinares’, não
cuja finalidade é executá-los sem integração se constatou o trabalho interdisciplinar. A
com a AB ou comprometimento com a reso- AB nem sempre é a ‘porta de entrada’ para
lutividade da atenção oferecida. o sistema, não conseguindo exercer efetiva-
Conforme os atributos de análise de RAS mente o papel de coordenadora da atenção à
propostos pela Opas (2011), encontrou-se, saúde. Também não se observou nas equipes
no âmbito de abordagem modelo assisten- a consciência da responsabilidade por essa
cial, uma rede com população e territórios coordenação (atributo 3). Quando os usu-
definidos (atributo 1), pois há adstrição da ários são encaminhados para serviços re-
população aos serviços que compõem esta gionais, muitas vezes o vínculo com a AB é
rede, tanto no âmbito municipal quanto rompido ou se mantém apenas nas questões
no regional. No entanto, não se observou administrativas, como documentos e viabili-
amplo conhecimento das necessidades dessa zação do transporte.

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A prestação de serviços especializados, privados. A capacidade de negociação com


na maioria das vezes, é realizada em am- os hospitais locais é pequena, por ser in-
biente hospitalar ou em consultórios par- dividualizada em cada município. Assim,
ticulares. Este fato traz várias dificuldades este processo torna-se fragilizado, pois se
para a atenção longitudinal ao usuário, ocorresse no âmbito da CIR poderia obter
assim como ao estabelecimento de vínculo melhores resultados, considerando nego-
entre este e as equipes de saúde da família, ciação conjunta entre vários municípios
pois há pouca comunicação entre os pro- com o mesmo prestador de serviço (atribu-
fissionais dos diferentes níveis da rede. to 7). A governança também é limitada pela
A tentativa de coordenação assistencial é ‘pouca participação social’ nas decisões da
feita pelo setor de marcação de consultas da rede. Verificou-se a desarticulação do con-
Secretaria Municipal de Saúde, que apenas trole social nos municípios estudados, que
exerce papel de agendamento e mantém algumas vezes meramente ratificam deci-
poucos registros da trajetória dos usuários. sões da gestão municipal, conforme relatos
Dessa forma, a coordenação assistencial das equipes da AB. Estas também referi-
praticamente inexiste, pois os profissio- ram dificuldade em compor um número
nais que atendem o usuário não conseguem mínimo de conselheiros para realizarem
acompanhá-lo adequadamente a partir dos as reuniões dos conselhos municipais de
encaminhamentos (atributos 4 e 5). saúde (atributo 8).
Como os municípios analisados são muito A ação intersetorial ainda é incipiente, com
pequenos, verificou-se a proximidade dos atividades isoladas para com a educação, as-
profissionais com as particularidades cul- sistência social e alguns órgãos governamen-
turais da comunidade e a consideração em tais e não governamentais (atributo 9), mas
relação à diversidade da população, que não como uma diretriz das ações na RAS.
são conhecidos pelas equipes, embora nem Em relação ao âmbito de abordagem da
sempre resultem em atendimento diferencia- organização e gestão, observou-se que há
do, conforme esta diversidade recomenda- integração razoável nos sistemas adminis-
ria. Por conhecer a condição socioeconômica trativos e logísticos entre os serviços, apesar
da família em questão, porém, algumas vezes de ainda ocorrerem importante número de
este reconhecimento está relacionado à faltas aos agendamentos. O maior proble-
decisão por garantir o atendimento pelo ma está na integração do sistema de apoio
SUS ou recomendar que o serviço seja aces- clínico. Verificou-se deficiência na comu-
sado por conta própria. O tipo de cuidado é nicação entre os serviços pelo não preen-
muito mais direcionado ao indivíduo do que chimento dos documentos de referência e
à família (atributo 6), pois os relatos revela- contrarreferência, assim como pela ausência
ram que o contexto social e familiar ainda é de comunicação entre os profissionais de
pouco considerado na atenção aos usuários. saúde. Não se observou utilização de pro-
No âmbito de abordagem da governan- tocolos e fluxogramas clínicos em nenhum
ça e estratégia, observou-se a presença de ponto da rede (atributo 10).
um sistema de governança da rede ainda Entende-se que as questões acima possam
fragmentado, que tem a CIR por espaço de estar ligadas ao perfil e formação dos pro-
encontro e discussão. A participação, no fissionais que atuam na rede. Embora em
entanto, é limitada: ora pela concentração algumas áreas haja deficiência quantitativa,
de poder na Secretaria Estadual de Saúde o que mais se observou foi a inadequação
(SES), ora pela falta de qualificação da do perfil dos profissionais para o trabalho
gestão municipal, que não tem ferramen- em rede. Não se verificou visão sistêmi-
tas para negociação com os prestadores ca entre eles e nem o compromisso com o

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acompanhamento do usuário no contínuo da Padrões de interdependência em rede


rede, fatos demonstrados pela resistência em
utilizar documentos de comunicação entre Complementando a análise, avaliou-se o
os serviços ou até mesmo em realizar con- potencial para a organização e o desenvolvi-
tatos telefônicos na ocasião de transferência mento de um trabalho coletivo que promova
dos usuários (atributo 11). e sustente a interdependência em rede de
Encontraram-se múltiplos sistemas de acordo com as dimensões propostas por
informação que não se comunicam entre Fleury e Ouverney (2007).
si, e observou-se que as equipes pouco uti-
lizam os dados para conhecer e melhorar O exercício da governança por meio de redes
a assistência (atributo 12). Outra grande mostra a necessidade de construir relações de
deficiência verificada na rede foi a falta de interdependência e intercâmbio de recursos com
monitoramento e avaliação, inviabilizando a base numa visão de complementaridade de inte-
gestão por resultados. Os municípios pouco resses e confiança. (FLEURY; OUVERNEY, 2007, P. 65).
utilizam os indicadores de saúde na sua
prática, tomando decisões mais políticas do Verificou-se que o foco gerencial na rede
que técnicas. O hospital de referência utiliza de cuidados às pessoas com DCV concentra-
vários indicadores internos de qualidade na -se em um conjunto de atividades comple-
sua gestão, mas estes não são integrados com mentares que precisam ser coordenadas pela
a avaliação do restante da rede (atributo 13). rede: o estabelecimento e distribuição de
Não há definição de metas da rede para cotas de consultas, exames e procedimentos
orientar a alocação de recursos financeiros entre os municípios; os processos de comuni-
e incentivos. Constatou-se que esta aloca- cação e agendamento entre os municípios e o
ção segue critérios orientados pelo poder serviço regional de referência; o transporte
de negociação dos prestadores e interesses dos usuários para os serviços fora do mu-
políticos. A região não está suficientemen- nicípio; preenchimento da documentação
te articulada para a definição técnica de necessária para a referência e contrarrefe-
prioridades de investimento. Além disso, rência; a prestação de serviços pelo Hospital
verificou-se que, devido ao financiamento de referência; e o pagamento por serviços
insuficiente da MC, o foco das discussões prestados por parte da SES e dos municípios.
na CIR concentra-se sempre nessa área,
desviando o olhar da AB, que apresen- Cada organização mantém o foco e autono-
ta problemas de resolutividade – o que mia sobre suas próprias atividades, mas in-
também consome recursos de forma inade- corpora seletivamente à rede as atividades
quada, gerando aumento da demanda para consideradas essenciais à realização de me-
a MC (atributo 14). tas coletivas. (OUVERNEY, 2005, P. 91).
De acordo com a proposta da Opas
(2008), que classifica a rede em três níveis Como as atividades propostas pela rede são
(I – Sistema fragmentado; II – Sistema duradouras e planejadas coletivamente, ob-
parcialmente integrado e III – Sistema servou-se o envolvimento de atores de todos
integrado), verificou-se que esta rede se os níveis das organizações delas. Estão envol-
encontra no nível II; ou seja, é um sistema vidos os níveis de maior capacidade decisória,
parcialmente integrado. Dos 14 atributos como os secretários municipais de saúde,
considerados, 13 encontram-se nesse nível. coordenador regional de saúde, administra-
Considerou-se que apenas o atributo fi- dor e outros gestores hospitalares. Também
nanciamento (14) esteja no nível I, por ter há o envolvimento do nível tático, como os
sido avaliado como insuficiente. coordenadores de setores dos municípios, da

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CRS e dos hospitais. Por fim, vários profissio- precisam participar ativamente das decisões
nais administrativos e técnicos da saúde que da rede, pois constituem a instância mais
compõem o nível operacional estão envolvi- próxima e, portanto, com maior conheci-
dos na rede, caracterizando ampla inserção mento das necessidades da população.
de atores. No entanto, a participação dos pro- Monitorar o trabalho coletivo é essencial
fissionais médicos nas questões gerenciais é para garantir o alcance dos resultados e a
mínima, o que leva a problemas posteriores prestação de contas, embora o caráter autô-
de integração clínica, conforme se verificou. nomo dos componentes da rede se revele na
O nível de formalização da rede precisa dificuldade para estabelecer mecanismos de
manter um equilíbrio entre regras coletiva- controle e legitimidade de quem possui esta
mente construídas e a autonomia das partes, função. Nas redes, o controle assume uma
mantendo uma dinâmica flexível e resolutiva nova dimensão, ampliando a sua função de
(FLEURY; OUVERNEY, 2007). Verificou-se que algumas apoio às atividades desenvolvidas em de-
regras gerais foram construídas coletivamente, trimento de seu caráter fiscalizador (FLEURY;
mas muitas decisões foram tomadas pela SES OUVERNEY, 2007). O controle na rede em estudo é
sem a participação dos outros atores da rede, realizado pela comissão de acompanhamento
caracterizando alta formalidade. Observou-se, de contrato e pela CIR – e de forma muito in-
também, que algumas regras estabelecidas não cipiente: município e prestadores discutem os
são seguidas pelos componentes da rede, como padrões de relacionamento, intercâmbio de
o cumprimento dos contratos pelos hospitais recursos e resolução de problemas. Portanto,
locais e o processo de comunicação entre os observou-se um foco complementar de siste-
serviços. Conforme Fleury e Ouverney (2007), a mas articulados e um caráter estratégico de
instituição de regras é uma condição essencial suporte à dinâmica gerencial. No entanto, o
para a institucionalização da rede, possibilitan- processo de planejamento ao qual está ligada
do o seu desenvolvimento, capacidade de se a função do controle ainda está muito centra-
autorregular e transformar rapidamente. lizado no gestor estadual, que é quem define
Segundo os autores, os recursos envolvidos e parâmetros, cotas e referências, caracterizan-
o foco de poder devem ser analisados de forma do elevada institucionalidade.
conjunta: a distribuição de recursos influencia Quando há percepção de que os objetivos
o padrão de interdependência dos atores, e este compartilhados devem ser perseguidos com
orienta a distribuição de poder dentro da rede. o engajamento integrado das organizações, é
Nesse sentido, observou-se o domínio elevado possível aprofundar a interdependência em
de recursos pela SES e pelo serviço de referên- rede (FLEURY; OUVERNEY, 2007). Embora cada orga-
cia regional enquanto o município fica em uma nização que compõe a rede em estudo tenha
relação de dependência destes recursos. Esse seu foco principal voltado para suas metas,
domínio proporciona a centralização de poder, observou-se a construção de um compromis-
como se viu nos depoimentos dos participan- so em torno de objetivos compartilhados. O
tes do estudo. Essa situação leva a relações de estado e os municípios necessitam da presta-
subordinação, em que ção de serviços de saúde na região, e os pres-
tadores têm interesse em oferecê-los. Embora
[...] os atores com maior quantidade de recur- haja alegações sobre a insuficiência do finan-
sos estabelecem as diretrizes em detrimento ciamento, os hospitais locais não sobrevive-
dos demais, o que é incompatível com a dinâmi- riam sem a filantropia e apoio monetário dos
ca de estruturação da rede. (OUVERNEY, 2005, P. 98). municípios; o hospital regional, por sua vez,
também necessita do custeio para a AC e, para
Embora a SES tenha o papel de condução do isso, é tensionado a ofertar serviços que não
processo de regionalização, os municípios são considerados lucrativos por eles.

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168 MEDEIROS, C. R. G.; GERHARDT, T. E.

Conforme Fleury e Ouverney (2007), é ne- equipes da AB, devido à desarticulação do


cessária, para o desenvolvimento de uma controle social, que, na maioria das vezes,
estrutura de rede, a institucionalização das tem cumprido papel meramente burocrá-
relações de interdependência. Deve haver tico na aprovação das decisões que já vêm
bases organizacionais que deem suporte tomadas pela gestão municipal.
ao trabalho coletivo e a coalizões políticas
internas e externas na construção da gover-
nança. A coesão precisa ocorrer no interior Considerações finais
do conjunto de recursos para que haja con-
dições de governança. O autor considera A análise, baseada nos dois referenciais
como bases institucionais as instâncias es- teóricos escolhidos, expôs uma RAS par-
tratégicas nos espaços internos de pactua- cialmente integrada e relações de interde-
ção e nos canais externos de articulação. Na pendência que, embora complementares,
rede em estudo, as instâncias estratégicas apresentam interesses divergentes e pouca
estão estruturadas dentro e fora do conjunto confiança entre os atores – condição que
de recursos. Os parâmetros de atendimento dificulta o estabelecimento da governança
são definidos pelo MS e distribuídos pela em rede. Pode-se afirmar que existe uma
SES, assim como a decisão final sobre as re- estrutura de serviços de saúde, mas esta não
ferências oficiais de MC e AC. O principal está configurada como uma rede, conforme
espaço interno de pactuação na rede é a CIR, critérios de análise.
porém, viu-se pouca capacidade gerencial e Verificaram-se vários pontos positivos
de negociação por parte dos secretários mu- na análise da RAS, mas todos apresentando
nicipais de saúde. A CRS também fica em um alguma limitação: embora haja a definição do
papel fraco de articulação, pois não possui território e das referências regionais, os quan-
poder decisório – concentrado na direção da titativos de consultas, procedimentos e exames
SES, que muitas vezes negocia diretamente são insuficientes para a população; a CIR é um
com os prestadores de serviço. No entanto, potente espaço de pactuação e controle, mas os
verificou-se um movimento interno na CIR: gestores ainda não assumiram na plenitude seu
o espaço começa a ganhar legitimidade no papel; a principal porta de entrada para o aten-
compartilhamento do poder decisório e na dimento é a AB, no entanto, esta não exerce a
construção de consensos. Notaram-se pro- função de coordenação da rede.
cessos de aprendizagem que têm o poten- Como dificuldades, salienta-se: a pouca
cial de levar ao planejamento regional da integração clínica e dos sistemas de informa-
rede. Acredita-se que esse processo tende a ção entre os serviços da rede; a centralidade
avançar à medida que os municípios forem do MS e da SES no estabelecimento de regras
assumindo a regulação e a auditoria dos ser- e domínio de recursos, gerando relações de
viços do seu território. subordinação e não de cooperação entre os
A despeito das mudanças propostas pelo entes federados; pouco planejamento, moni-
Pacto e mais recentemente pelo Decreto toramento e avaliação da rede; baixa capaci-
7.508 (BRASIL, 2011), a esfera federal ainda inter- dade gerencial nos municípios e parâmetros
fere nos mecanismos da governança interna definidos pelo MS; a quase ausência da
das regiões de saúde, pois detém importante participação social na governança da rede;
parcela do financiamento que é condiciona- o modelo de atenção ainda pouco atuante
do aos parâmetros institucionais gerais do nas ações de promoção à saúde, prevenção
sistema estabelecidos pelo MS. às doenças e intersetorialidade. Observa-se
Não se verificou a participação social na que o estado, ao mesmo tempo que detém
governança da rede, conforme relatos das o poder de estabelecer regras, mostra-se

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 160-170, DEZ 2015


Avaliação da Rede de Atenção à Saúde de pequenos municípios na ótica das equipes gestoras 169

ausente nas questões de regulação e pouco Pode-se considerar que os mecanismos de


efetivo no apoio técnico aos municípios. cooperação identificados são motivados pela
As limitações observadas remetem a interdependência de recursos entre os atores e,
outras questões que precisam ser aprofun- como tais, são mantidos enquanto esta neces-
dadas, pois são importantes para entender sidade estiver presente. No entanto, os atores
a problemática dos pequenos municípios. não aprofundam a cooperação para além da
Como compreender as tensões que per- prestação pontual de serviços. Não se observa,
meiam o território e as relações de poder em todos os níveis de densidade tecnológica, o
que se estabelecem entre gestores, profis- acompanhamento do usuário ao longo da rede.
sionais e usuários na utilização dos servi- Pouco se verificou a responsabilização integral
ços? Quais as limitações que impedem os pelo usuário, pois cada ponto da rede limita a
gestores de assumirem seu papel no plane- atenção a sua parte da tarefa.
jamento, controle e avaliação do sistema de Este contexto de divergência com relação
saúde? Quais são os entraves para que a AB ao objetivo principal do trabalho em cada
assuma seu papel na coordenação da rede? ponto da rede dificulta a possibilidade de
O que as experiências em outros locais e compatibilizá-lo em busca da efetivação de
países na tentativa de coordenação da rede uma RAS que proporcione um cuidado com
pela AB têm indicado? integralidade e equidade. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 160-170, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 171

Gestão da Assistência Farmacêutica e


demandas judiciais em pequenos municípios
brasileiros: um estudo em Mato Grosso do
Sul
Pharmaceutical Services and litigation in small Brazilian
municipalities: a study in Mato Grosso do Sul

Cláudia Du Bocage Santos Pinto1, Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro2

RESUMO O objetivo do estudo foi caracterizar a gestão da Assistência Farmacêutica, frente


ao cenário da judicialização, em municípios de Mato Grosso do Sul. Foram visitadas as 27 co-
marcas de segunda entrância, e as informações referentes aos processos judiciais que deman-
davam medicamentos foram coletadas. Foram selecionados seis municípios para caracterizar
a gestão da Assistência Farmacêutica através de entrevistas em profundidade com gestores.
Foram identificadas deficiências graves nas atividades da Assistência Farmacêutica, possivel-
mente consolidando os problemas advindos dos pleitos judiciais, contrariando o que era es-
perado. Estima-se, assim, que a gestão incipiente da Assistência Farmacêutica nos municípios
seria o principal determinante para o incremento das demandas.

PALAVRAS-CHAVE Assistência Farmacêutica; Direito à saúde; Preparações farmacêuticas;


Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT This study aimed to characterize management of Pharmaceutical Services in the


scenario of judicial demands for medicines in municipalities of Mato Grosso do Sul. The twenty-
seven second-grade judicial districts in the State were visited and data pertaining to lawsuits
were collected. Six municipalities were selected for characterization of Pharmaceutical Services
through in-depth interviews with municipal managers. Serious problems in Pharmaceutical
Services were observed, possibly adding to difficulties linked to judicial demands. Contrary to
what was expected, basic failure in Pharmaceutical Services is the possible main determinant for
the increase in litigation in these municipalities.

1 Fundação
KEYWORDS Pharmaceutical Services; Right to health; Pharmaceutical preparations; Unified
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional Health System.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
clabocage@hotmail.com

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
claudia.osorio@ensp.
fiocruz.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005152 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015
171
172 SANTOS-PINTO, C. D. B.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S.

Introdução veem obrigados a remanejar o orçamento da


AF para o atendimento às demandas (CASTRO,
Os entes federativos possuem farto arcabou- 2011). Em alguns estados e municípios foi
ço regulador para a gestão da Assistência necessário montar uma estrutura capaz de
Farmacêutica (AF), e sua gestão descentrali- manejá-las tempestivamente (PEPE ET AL., 2010A).
zada está amplamente normatizada na legisla- O estado de Mato Grosso do Sul, situado
ção. Ao longo dos últimos anos, as deficiências na região Centro-Oeste do País, possui cerca
da gestão na provisão de serviços e insumos, de 2,5 milhões de habitantes, sendo ¾ destes
que culminam com a não disponibilização de inteiramente dependentes do SUS, já que
medicamentos necessários à população, vêm apenas ¼ da população possui cobertura de
contribuindo para o agravamento das condi- plano de saúde privado (IBGE, 2009). De seus 78
ções de saúde dos indivíduos. Além disso, dão municípios, a maioria é de pequeno porte –
espaço para demandas judiciais, que agravam apenas 4 deles possuem mais de 100 mil ha-
os problemas da gestão financeira de municí- bitantes. Entre os demais, 73 possuem menos
pios e estados, em um efeito cíclico (MACHADO de 50 mil habitantes (IBGE, 2009).
ET AL., 2011; ROMERO, 2008). O presente estudo focou a situação dos
Diversos estudos revisaram problemas e municípios de Mato Grosso do Sul com o
distorções da gestão relacionados às deman- objetivo de caracterizar a situação da gestão
das judiciais por medicamentos. Entre eles, da AF, frente às demandas judiciais de
pode-se destacar: má gestão da AF (PEPE ET medicamentos.
AL., 2010B; VIEIRA; ZUCCHI, 2007); acesso a medica-
mentos desprovidos de evidências de segu-
rança, eficácia ou efetividade (VIEIRA; ZUCCHI, Métodos
2007; MARQUES; DALLARI, 2007; PEREIRA ET AL., 2010);
utilização da via judicial como ferramenta Trata-se de um estudo descritivo, de
de acesso não igualitário (MACHADO ET AL., 2011); desenho transversal. Foi realizado em duas
pressão imposta pela indústria farmacêu- etapas, que, de modo a atender aos objetivos
tica para demanda de novos medicamentos do estudo, investigou, na primeira, o panora-
(CHIEFFI; BARATA, 2010); e problemas relaciona- ma das demandas judiciais, e na segunda, a
dos à prescrição médica e à necessidade de gestão da AF nos municípios.
revisão das listas e protocolos clínicos (PEPE ET Na primeira etapa, executada no ano de
AL., 2010B; VIEIRA; ZUCCHI, 2007). 2011, foram coletados dados sobre as deman-
Em que pese suas consequências, as de- das judiciais por medicamentos diretamente
mandas propiciaram que se tornasse mais nos processos judiciais relativos aos anos de
evidente o panorama da provisão pública de 2008 a 2011 depositados nas 27 comarcas de
medicamentos pelo Sistema Único de Saúde segunda entrância do estado de Mato Grosso
(SUS), e da gestão da AF, inclusive aquela do Sul. Estas foram eleitas por duas caracte-
exercida pelos entes municipais. rísticas: (i) por congregarem maior número
O crescente número de ações contribuiu de demandas judiciais do que as comarcas de
para uma maior desorganização dos serviços primeira entrância, (ii) por incluírem muni-
de saúde em estados e municípios, causan- cípios com estimada menor capacidade de
do grande impacto sobre a gestão e sobre o gestão e recursos disponíveis, em relação aos
orçamento dos entes públicos (ROMERO, 2008; municípios de comarca de entrância especial
DELVECHIO, 2010). Já existem relatos na litera- (maiores e mais populosos). Os dados foram
tura sobre altos gastos provocados pelas coletados utilizando como referência o manual
ações judiciais de medicamentos impetradas de indicadores para avaliação e monitoramen-
contra entes estaduais e municipais, que se to de demandas judiciais (PEPE, 2011).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


Gestão da Assistência Farmacêutica e demandas judiciais em pequenos municípios 173
brasileiros: um estudo em Mato Grosso do Sul

A segunda etapa, ocorrida no ano de AF – 9; Atividades da AF – 22) e Demandas


2012, foi iniciada pela seleção dos municí- Judiciais (6 critérios).
pios para investigação da gestão municipal Esses indicadores foram baseados no
de AF. Para tanto, foram analisados os dados modelo lógico da AF, já consolidado pela
dos municípios integrantes das comarcas de literatura (OPAS, 2005). Este permite verifi-
segunda entrância (43 municípios) no que car o encadeamento das ações, que devem
diz respeito ao número de processos e de conduzir a resultados esperados, tais como
habitantes. As comarcas foram divididas o adequado manejo de medicamentos, a
em três grupos, de acordo com o contin- segurança dos pacientes, e uma gestão efi-
gente populacional: pequeno (faixa 1 – mu- ciente, que redunde também nos resultados
nicípios com menos de 20 mil habitantes); esperados. Sua utilização permite verificar
médio (faixa 2 – municípios entre 20 mil e como se dá a gestão da AF e em que pontos
50 mil habitantes); e grande (faixa 3 – mu- ela é tensionada em função das demandas
nicípios acima de 50 mil habitantes). Em judiciais por medicamentos, que ocorrem
seguida, analisou-se o número de processos nos municípios investigados.
depositados em cada comarca no período Ao final, as respostas foram tabuladas
de 2008 a 2011 e calculou-se a média de de forma a responder objetivamente aos
processos por habitante (0,00075). As indicadores.
comarcas de contingente populacional A seguir, foi feito um consenso de espe-
‘médio’ foram o maior grupo, representan- cialistas, realizado com base no método
do cerca de 75% do total de comarcas de Delfos (Delphi) (WRIGHT; GIOVINAZZO, 2000).
segunda entrância, razão pela qual foram Foram convidados profissionais da gestão
priorizadas na seleção. Foram apontados e da judicialização na área de saúde, totali-
os municípios-sede das comarcas e, dentre zando três especialistas. Eles classificaram
eles, seis foram selecionados. As identida- os resultados dos indicadores sobre AF de
des dos municípios foram preservadas, me- cada um dos seis municípios, com o auxílio
diante substituição dos nomes por letras. de uma escala arbitrária de valor, de modo
Foram selecionados: (A), um município de a definir um diagnóstico para cada muni-
faixa 1 e que possuía a maior relação de- cípio. Foram atribuídas três graduações
mandas/habitante; (B), um município de a cada indicador: resposta apropriada no
faixa 3, com a menor relação demandas/ha- âmbito da gestão; parcialmente apropria-
bitante; quatro municípios de faixa 2, sendo da; ou inapropriada e com consequências
(C) o de maior relação demandas/habitante potencialmente danosas à gestão da AF.
e (D) o de menor relação demandas/habi- O melhor desempenho correspondeu ao
tante no estrato superior da faixa, e (E) o de maior número de critérios apropriados.
maior relação demandas/habitante e (F) o Após essa classificação, os resultados
de menor relação demandas/habitante no foram analisados de duas formas: (i) adequa-
estrato inferior da faixa. ção de todos os componentes, por município;
Nesta etapa foi realizada uma investi- e (ii) adequação de todos os municípios, por
gação mais aprofundada da gestão da AF. componente, e testados para significância
Foram feitas entrevistas com os gestores por estatística pelo χ2 de Pearson (Abramson JH,
meio de instrumento com questões semia- WinPepi versão 11.44, 2015).
bertas, baseado em 49 critérios objetivos Os dados de execução financeira informa-
enunciados como indicadores e organizados dos pelos gestores foram complementados
em dois componentes, referentes a: Gestão por pesquisa em bases de dados secundárias
da AF (Recursos Humanos – 6 critérios; da Secretaria Estadual de Saúde de Mato
Instrumentos de Gestão – 6; Coordenação da Grosso do Sul e do Ministério da Saúde.

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174 SANTOS-PINTO, C. D. B.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S.

A execução foi parcialmente subsidiada pleitos) e o sistema gastrointestinal (11%).


pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Para os municípios analisados nas ques-
Pessoal de Nível Superior (Capes), através tões referentes à gestão da AF, não houve
da Bolsa de Produtividade concedida a uma nenhum pedido de medicamento sem re-
das autoras. Não houve qualquer conflito de gistro na Agência Nacional de Vigilância
interesses na execução do trabalho. Sanitária (Anvisa). No entanto, foram ob-
O estudo foi aprovado pelo Comitê de servados pleitos por medicamentos com
Ética em Pesquisa da Escola Nacional de indicação de uso off-label no município A
Saúde Pública Sergio Arouca sob o número (17%), no município D (11%) e no municí-
de parecer 237/11 (CAAE: 0252.0031.00011). pio E (9%). Foi observado ainda que, com
Todos os gestores aceitaram participar por exceção do município D (com 49%), mais
meio de Termo de Consentimento Livre e da metade dos medicamentos demandados
Esclarecido (TCLE). via justiça não fazia parte de nenhum dos
componentes de financiamento da AF. Nos
municípios B e D, mais de 40% dos medica-
Resultados mentos demandados pertenciam ao com-
ponente da Atenção Básica (AB).
Demandas judiciais
Gestão da Assistência Farmacêutica
O levantamento de processos através das
certidões solicitadas às comarcas indicou O quadro 1 apresenta os principais resulta-
um total de 6.100 processos, nos quais dos do estudo nos municípios, destacando as
os municípios constavam como réus das possíveis relações entre as demandas judi-
ações. A análise posterior de cada um dos ciais e a AF neles praticada.
processos, através do site do Tribunal de Como resultados comuns, pode-se desta-
Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), car ainda que em nenhum dos municípios
trouxe a informação de que, desse total, houve demanda judicial por medicamentos
1.825 (30%) eram processos relativos às do Componente Estratégico; todos os muni-
demandas de saúde. Dentro desse segundo cípios, com exceção do município B, relata-
grupo, 771 (42%) eram processos de de- ram que a logística desses medicamentos era
mandas por medicamentos. Observou-se gerida fora da AF.
um aumento de 47% no número total de As Informações da Vigilância
processos entre 2008 e 2011. Epidemiológica (VE) não eram utilizadas
A maioria das ações (62%) foi repre- para embasar ações da AF em nenhum dos
sentada pela Defensoria Pública Estadual. municípios. Os médicos municipais não pos-
A maioria dos pedidos de antecipação de suíam capacitação para prescrição segundo
tutela (82%) foi julgada como favorável Uso Racional de Medicamentos (URM).
ao demandante. Em poucas ações foi so- Nenhum município possuía estrutura de
licitada a manifestação dos réus antes do transporte específica para medicamentos.
julgamento (18%). O estado figurou como Não havia uma rotina de verificação periódi-
réu solidário ao município na maioria das ca de estruturas e das atividades, pela gestão
ações (58%). da AF. Todos os municípios relataram que
No que diz respeito aos medicamentos a programação se baseava exclusivamen-
pleiteados, foi observado grande percen- te no consumo histórico, e que as compras
tual de pedidos de medicamentos para levavam em conta apenas o critério de preço,
tratamento de condições que envolvem o sem utilizar nenhuma ferramenta de gestão
sistema cardiovascular (25% do total de para auxílio da atividade.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


Gestão da Assistência Farmacêutica e demandas judiciais em pequenos municípios 175
brasileiros: um estudo em Mato Grosso do Sul

Quadro 1. Resultados dos indicadores investigados sobre a gestão da Assistência Farmacêutica e sobre as demandas judiciais por medicamentos nos
municípios. Mato Grosso do Sul, 2011
Componentes
Município Demandas judiciais e gestão Gestão da AF
A Medicamentos demandados presentes na Relação Nacional de Não há Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT) nem Relação
Medicamentos Essenciais (Rename): 29% Municipal de Medicamentos (Remume). Município adota os
Medicamentos demandados para uso off-label: 17% Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT).
Medicamentos demandados do componente da AB: 21% Há um único farmacêutico atuante na gestão e na Central de
Medicamentos demandados do componente especializado: 25% Abastecimento Farmacêutico (CAF).
Medicamentos demandados ausentes dos componentes de Não há farmacêuticos atuando na dispensação das unidades.
financiamento: 54% Existe Plano Municipal de Saúde, mas não contempla a AF.
Demandas judiciais são resolvidas em âmbito administrativo. Os A lista de medicamentos do município é baseada na lista pactuada
medicamentos demandados são manejados junto aos demais na Comissão Intergestores Bipartite (CIB). Há uma lista de
medicamentos comprados e fornecidos pelo município, geridos medicamentos não pactuados, composta por 97 itens. Dentre estes,
pelo mesmo farmacêutico e incluídos na programação e no muitos se encontram fora da Rename.
processo licitatório. O farmacêutico tem atuação limitada no processo de compras, que
se dá por licitação, à exceção das emergenciais.
Atividades logísticas e dispensação são deficientes e não seguem
normas técnicas.
B Medicamentos demandados presentes na Rename: 39% Não há CFT nem Remume. Município não adota os PCDT.
Medicamentos demandados para uso off-label: 0% Há apenas um farmacêutico no nível central, sem capacitação
Medicamentos demandados do componente da AB: 42% específica para gestão.
Medicamentos demandados do componente especializado: 6% Não há farmacêuticos na CAF nem nas unidades de dispensação.
Medicamentos demandados ausentes dos componentes de Existe Plano Municipal de Saúde, mas não contempla a AF.
financiamento: 52% Cerca de 90% dos medicamentos da lista do município dizem
Não há procedimento específico instituído para o manejo das respeito aos pactuados na CIB. A lista é revista uma vez por ano e
demandas judiciais. Estas são geridas totalmente em separado elaborada pelo farmacêutico.
dos demais medicamentos fornecidos pelo município. Não há O farmacêutico não participa do processo de compras, que é feito
análise técnica dos pedidos. Os medicamentos não são incluídos por licitação.
na programação, nem são comprados por licitação. Ficam Atividades logísticas e dispensação são deficientes e não seguem
armazenados no setor jurídico e são entregues por um advogado. normas técnicas.
C Medicamentos demandados presentes na Rename: 13% Não há CFT nem Remume. Município não adota os PCDT.
Medicamentos demandados para uso off-label: 0% Há um farmacêutico no nível central capacitado para gestão, que
Medicamentos demandados do componente da AB: 6% atua também na CAF.
Medicamentos demandados do componente especializado: 6% Não há farmacêutico em nenhuma das unidades de dispensação do
Medicamentos demandados ausentes dos componentes de município.
financiamento: 88% Existe Plano Municipal de Saúde, mas não contempla a AF.
Não há um procedimento formal instituído para o manejo dos Utiliza a lista pactuada pelo estado, mas inclui 83 itens além dos
medicamentos demandados, que são geridos à parte dos demais. pactuados. Destes, 70 não pertencem a Rename, e são incluídos para
Ficam sob a responsabilidade de um advogado, na Secretaria Municipal evitar demandas judiciais, uma vez que são continuamente prescritos
de Saúde (SMS). Não ocorre análise técnica do pedido. Alguns são pelos médicos do município.
incluídos na programação, mas a compra é feita em farmácias privadas. O farmacêutico realiza sozinho a seleção de medicamentos, e
participa do processo de licitação.
Atividades logísticas e dispensação são deficientes e não seguem
normas técnicas.
D Medicamentos demandados presentes na Rename: 46% Não há CFT nem Remume. Município não adota os PCDT.
Medicamentos demandados para uso off-label: 11% Há um farmacêutico na coordenação da AF, mas sem capacitação
Medicamentos demandados do componente da AB: 40% específica para gestão, sendo o mesmo profissional responsável
Medicamentos demandados do componente especializado: 11% pela CAF.
Medicamentos demandados ausentes dos componentes de Das sete unidades de saúde do município, em apenas uma há
financiamento: 49% farmacêutico.
As demandas judiciais são responsabilidade do Departamento O Plano Municipal de Saúde contempla a AF e a coordenação de
de Assistência Social. Para evitar novas demandas, o município AF está inserida no organograma da SMS.
instituiu uma ‘via assistencial’, por meio da qual são fornecidos A lista de medicamentos é elaborada pelo farmacêutico, baseando-
todos os medicamentos procurados pelos pacientes. se na lista pactuada, e acrescentando medicamentos, sendo que
Os medicamentos demandados, de uso contínuo, são incluídos alguns não integram a Rename.
na programação e passam a ser comprados por meio de licitação. O farmacêutico não participa do processo de compras.
Nos demais casos, as compras são realizadas diretamente nas Atividades logísticas e dispensação são deficientes e não seguem
farmácias privadas do município, para onde os pacientes se normas técnicas.
dirigem diretamente, a fim de retirar o medicamento.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


176 SANTOS-PINTO, C. D. B.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S.

Quadro 1. (cont.)
E Medicamentos demandados presentes na Rename: 27% Não há CFT nem Remume. Município não adota os PCDT.
Medicamentos demandados para uso off-label: 9% Não há farmacêutico atuando no nível central; há apenas um na
Medicamentos demandados do componente da AB: 27% CAF.
Medicamentos demandados do componente especializado: 13% Não há farmacêutico em nenhuma das unidades de dispensação.
Medicamentos demandados ausentes dos componentes de Não existe plano municipal de saúde, nem uma estrutura de
financiamento: 60% coordenação da AF.
Medicamentos das demandas judiciais são geridos à parte. A seleção de medicamentos é feita pelo farmacêutico da CAF,
Não existem procedimentos específicos para seu manejo. baseando-se na lista pactuada com o estado.
O responsável pelas demandas é um economista, e não há O farmacêutico não participa do processo de compras. Estas são
envolvimento de profissionais de saúde no processo. A entrega é realizadas por licitação, com exceção das emergenciais e as de
realizada por uma técnica de enfermagem. demandas judiciais.
No município, os pacientes procuram diretamente a Defensoria Atividades logísticas e dispensação são deficientes e não seguem
Pública antes de procurar o medicamento na unidade de saúde. normas técnicas.
As compras de medicamentos de demandas judiciais são
realizadas em farmácias privadas, que são escolhidas no início
de cada ano, para o fornecimento de todos os medicamentos
demandados.
F Medicamentos demandados presentes na Rename: 38% Não há CFT nem Remume. Município adota os PCDT.
Medicamentos demandados para uso off-label: 0% O mesmo farmacêutico que atua na gestão, atua também na CAF.
Medicamentos demandados do componente da AB: 38% Não há farmacêuticos nas unidades de dispensação.
Medicamentos demandados do componente especializado: 13% Existe Plano Municipal de Saúde, mas não contempla a AF.
Medicamentos demandados ausentes dos componentes de As estruturas de armazenamento, distribuição e dispensação
financiamento: 50% são adequadas e seguem normas técnicas. Recebem verificação
Medicamentos das demandas judiciais são geridos à parte. Não semanal.
há um profissional destacado para lidar com as demandas. A lista de medicamentos adotada se baseia no elenco pactuado,
As compras são feitas diretamente em farmácias privadas e os mas possui 180 itens excedentes, com o objetivo de evitar
medicamentos são entregues aos pacientes por um funcionário demandas judiciais.
administrativo da SMS. Atendem a todos os pedidos que O farmacêutico não participa do processo de compras.
chegam, para que não se tornem ações judiciais.
Fonte: Elaboração própria.

O consenso de especialistas observou os da gestão da AF (1. Recursos Humanos; 2.


resultados dos indicadores sob o olhar da Instrumentos de Gestão; 3. Coordenação da
gestão – em última análise, o tipo de conse- AF; 4. Atividades da AF) e das demandas judi-
quência provocada pela adequação, ou ina- ciais (5. Demandas Judiciais), em cada muni-
dequação, em cada critério dos componentes cípio (A, B, C, D, E e F), como se vê na tabela 1.

Tabela 1. Contagem de critérios da gestão da Assistência Farmacêutica, de acordo com classificação dos especialistas, por
município. Municípios selecionados, Mato Grosso do Sul, 2012

Número de critérios
Municípios Adequados Parcialmente adequados Inadequados
A 16 11 22
B 15 11 23
C 9 12 28
D 10 10 29
E 9 8 32
F 12 13 24
TOTAL 71 65 158
Fonte: Elaboração própria.

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Gestão da Assistência Farmacêutica e demandas judiciais em pequenos municípios 177
brasileiros: um estudo em Mato Grosso do Sul

Pôde ser observada a maior quantidade de inadequados. No entanto, a análise estatísti-


resultados inadequados em todos os municí- ca não determinou diferenças significativas
pios estudados. O município E, em números entre os municípios, com relação a melhores
absolutos, apresentou os piores resultados, ou a piores desempenhos.
com mais de 67% dos indicadores relacio- A seguir, foi realizada a análise por crité-
nados à gestão da AF classificados como rio, em todos os municípios (tabela 2).

Tabela 2. Contagem de critérios da gestão da Assistência Farmacêutica, de acordo com classificação dos especialistas, por
componente. Municípios selecionados, Mato Grosso do Sul, 2012

Número de critérios
Parcialmente
Componentes Adequados adequados Inadequados
Assistência Farmacêutica
Recursos Humanos 1 12 23
Instrumentos de Gestão 13 9 14
Coordenação da AF 27 7 20
Atividades da AF* 21 32 79
Demandas Judiciais 8 5 23
TOTAL 70 65 159
Fonte: Elaboração própria.
Nota: *P=0,007.

De modo geral, nos critérios Recursos A tabela 3 é referente às informações finan-


Humanos e Atividades da AF, houve muito ceiras obtidas nas entrevistas com os gestores
mais indicadores julgados inadequados do municipais. Os municípios A e E não informa-
que adequados. O critério que melhor se po- ram as despesas relativas aos medicamentos
sicionou foi o relacionado à coordenação da do Componente Básico da AF. Apenas no mu-
AF. O critério com pior desempenho entre nicípio C não foi fornecida a informação a res-
todos os municípios foi o 4, correspondente peito das despesas com demandas judiciais
às Atividades da AF. Nele, houve diferença de medicamentos. Nos municípios B e E não
significativa em relação ao pior e ao melhor foram fornecidas informações sobre despesas
desempenho nos municípios. com medicamentos não pactuados.

Tabela 3. Valores informados pelos municípios selecionados, referentes às despesas com medicamentos. Mato Grosso do Sul, 2011

Município
Despesas municipais com
medicamentos (em R$) A B C D E F
AF básica Não informado 161.612,64 334.000,00 38.342,91 Não informado 199.211,97
Demandas judiciais 10.200,00 9.212,86 Não informado 8.277,00 363.030,48 70.412,36
Não pactuados 90.000,00 Não informado 60.612,00 63.017,84 Não informado 84.000,00
TOTAL X X X 109.637,75 X 353.624,33
Fonte: Elaboração própria a partir de dados de entrevistas com gestores municipais.

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178 SANTOS-PINTO, C. D. B.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S.

Verificou-se que, em todos os muni- pactuados e 0,8% para medicamentos de de-


cípios, além do valor aportado para o mandas judiciais. Nos municípios A, B, C e E
Componente Básico da AF, os entes muni- faltam uma ou mais variáveis que permitiriam
cipais aportavam ainda montantes extras uma análise relacional dos gastos.
para medicamentos de demanda judicial e A tabela 4 faz uma comparação dos valores
medicamentos não pactuados. per capita gastos pelo município para cobertu-
O município F aportou 56% do gasto total de ra dos medicamentos do Componente Básico
medicamentos para a AF básica, 24% para medi- da AF, das demandas judiciais e dos medi-
camentos não pactuados e quase 20% para me- camentos não pactuados. A primeira coluna
dicamentos de demandas judiciais. O município fornece a informação sobre o valor per capita
D aportou 35% do gasto total de medicamentos mínimo, estipulado pela Portaria nº 4.217, de
para a AF básica, 57% para medicamentos não dezembro de 2010, vigente à época do estudo.

Tabela 4. Investimentos per capita para cobertura de medicamentos do Componente Básico da Assistência Farmacêutica,
de demandas judiciais e não pactuados. Municípios selecionados, Mato Grosso do Sul, 2011

Investimento per capita


Aportado para
Componente Básico Medicamentos não
Municípios Mínimo pactuado* da AF Demandas judiciais pactuados
A 1,86 - 0,76 6,72
B 1,86 1,58 0,09 -
C 1,86 15,68 - 2,84
D 1,86 1,96 0,42 3,20
E 1,86 - 11,42 -
F 1,86 4,82 1,70 2,03
Fonte: Elaboração própria através de dados de entrevistas com gestores municipais.
Nota: *De acordo com a Portaria nº 4.217, de dezembro de 2010.

Os aportes para o Componente Básico da cresceram entre 2008 e 2011. O estudo nos
AF variaram de R$ 1,58 per capita em B até R$ municípios selecionados mostrou muitas
15,68 per capita em C. No caso das demandas dificuldades da AF, por falta de estrutura ou
judiciais, a variação foi de R$ 0,09 per capita em inconformidades, e também que não houve
B, até R$ 11,42 per capita em E. No caso de me- diferenças significativas da gestão da AF
dicamentos não pactuados, A foi o município entre os municípios. Não foi surpreenden-
com maior valor per capita aportado, R$ 6,72. te, assim, constatar que o componente de
Entre aqueles que forneceram informa- gestão, que mostrou pior desempenho em
ções sobre o Componente Básico – responsa- todos os municípios, foi aquele referente às
bilidade municipal – três (C, D e F) gastavam atividades da AF.
mais per capita que o mínimo estipulado na O crescente número de demandas ao
legislação vigente. longo dos anos é coerente com o que vem
ocorrendo nos demais estados do País, como
demonstrado no estudo realizado em Santa
Discussão Catarina, onde o número de processos saltou
de 2, em 2000, para 444, em 2004 (PEREIRA ET
O estudo mostrou que as demandas em AL., 2010). E é igual à tendência de deferimen-
27 comarcas de segunda entrância no MS to dos pleitos, como demonstrado no estudo

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


Gestão da Assistência Farmacêutica e demandas judiciais em pequenos municípios 179
brasileiros: um estudo em Mato Grosso do Sul

realizado no Rio de Janeiro, em 2006, onde, o município não realizou seleção. Situação
dos 185 processos analisados apenas três semelhante, porém, mais aguda, ocorreu no
tiveram os pedidos negados (PEPE ET AL., 2010B). município F, que adotou como estratégia a
A investigação aprofundada em municí- inclusão de 180 medicamentos além daque-
pios selecionados, com diferentes relações les pactuados com o estado para evitar de-
entre número de processos e habitantes, mandas. Problemas de base, principalmente
possibilitou análise da gestão da AF em de deficiência e capacitação de recursos
distintos cenários frente às demandas ju- humanos, impediram que o diferencial pro-
diciais. O julgamento realizado pelos es- porcionado pela estrutura e pelas atividades
pecialistas ajudou a apontar os logros e as logísticas oferecessem ganho no enfrenta-
deficiências das gestões municipais, sendo mento da judicialização.
o componente de atividades da AF o perce- Em D prevaleceu o fornecimento de medica-
bido como mais problemático. mentos por via assistencial, na qual os pacien-
No município A, os medicamentos de de- tes, apenas munidos da prescrição, obtinham
mandas judiciais eram manejados junto aos os medicamentos de que necessitavam. Essa via
demais medicamentos fornecidos pelo mu- surgiu, provavelmente, com o intuito de evitar
nicípio. Observou-se alto percentual de me- a via judicial, mas expôs as falhas da AF muni-
dicamentos demandados não integrantes cipal e a falta de normas municipais mínimas
dos componentes de financiamento da AF; para o fornecimento de medicamentos.
houve também medicamentos demandados O cenário mais crítico da gestão da AF
prescritos para uso off-label. As estruturas frente às demandas foi encontrado no municí-
e os recursos humanos eram deficientes, pio E. A compra de medicamentos em farmá-
assim como as atividades da AF. A ausên- cia privada, escolhida para fornecê-los para o
cia de Comissão de Farmácia e Terapêutica município, sugere total falta de normas e pro-
(CFT), assim como a falta de profissionais cedimentos técnicos. Não é de se estranhar,
capacitados e atualizados com as normati- portanto, que os pacientes, possivelmente ha-
vas e protocolos pode ter influenciado este bituados ao desabastecimento de medicamen-
cenário. Em B havia diversas deficiências, tos, sequer procurassem as unidades de saúde,
que podem ter influenciado a ocorrência dirigindo-se diretamente à Defensoria Pública.
das demandas. No município houve um A falta de estrutura encontrada em muitas
percentual considerável de demandas por secretarias estaduais e municipais de saúde já
medicamentos da AB (42%) e de medica- foi apontada por diversos estudos como um
mentos integrantes da Relação Nacional de fator importante para o crescimento das de-
Medicamentos Essenciais (Rename) (39%). mandas judiciais (ROMERO, 2008; PEREIRA, 2010). As
A AF gerida de forma ineficiente pode ter baixas estruturas operacional, logística e de
levado à indisponibilidade de medicamen- atendimento já se impõem como entraves à
tos, seja por seleção inadequada, programa- execução das atividades regulares da gestão e
ção insuficiente ou logística precária. do ciclo da AF, quiçá para a assunção de novas
Em C, chamou a atenção o alto percentual responsabilidades impostas pelas demandas.
(88%) de demandas por medicamentos não A questão dos recursos humanos foi
pertencentes aos componentes de financia- crítica em todos os locais, e esse é um pro-
mento da AF, apesar de a lista de medica- blema corrente, já demonstrado em muitos
mentos do município possuir 83 itens além municípios (VIEIRA, 2008; DE BERNERDI, 2006). A
dos pactuados, justamente incluídos com falta de profissionais capacitados se mostra
o intuito de evitar as demandas. A pressão em desacordo com a Política Nacional de
das demandas distorceu o processo de in- Medicamentos, implica na má aplicação dos
clusão na lista, a partir do momento em que

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


180 SANTOS-PINTO, C. D. B.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S.

recursos públicos e no baixo retorno em efe- A falta de estrutura e de recursos humanos


tividade na utilização dos medicamentos. capacitados, além da ausência do farma-
Atividades da AF sem embasamento em cêutico no manejo das demandas pode ter
dados epidemiológicos podem implicar na impossibilitado a orientação aos pacientes
ocorrência de demandas judiciais (FIGUEIREDO; nas unidades de dispensação. Assim como
PEPE; OSORIO-DE-CASTRO, 2010). A inexistência de uma em outras realidades estudadas (ARAÚJO ET
CFT ou da Relação Municipal de Medicamentos AL., 2008), percebe-se que a dispensação em
(Remume) deixa uma lacuna importante nas unidades públicas do SUS fica limitada a
atividades da AF dos municípios (WHO, 2003), funcionar como um simples local de entrega
uma vez que a falta de critérios para a elabo- de medicamentos. A falta de informações
ração de uma lista municipal ou para a progra- sobre o desenvolvimento do tratamento
mação dos medicamentos repercute na forma pode colocar em risco a saúde do indivíduo
de um elenco incompleto e/ou no desabasteci- (FIGUEIREDO; PEPE; OSORIO-DE-CASTRO, 2010). A des-
mento. Em todos os municípios, algum tipo de peito disto, é incomum que pacientes que
seleção era realizado, já que havia uma lista de recebam medicamentos pela via judicial
medicamentos não pactuados, e, portanto, não sejam acompanhados pela gestão da AF.
relacionados à Rename. Pela falta dos instru- Em relação à execução financeira, obser-
mentos comuns à seleção, há que se considerar vou-se que nem todos os gestores sabiam, ou
que as escolhas podem não ter sido as melhores quiseram informar, dados de despesas com me-
ou mais seguras para a população. dicamentos. Se fossem considerados apenas os
A não adoção de Protocolo Clínico e municípios D e F, para os quais há informações
Diretrizes Terapêuticas (PCDT) também é completas de gastos, poder-se-ia admitir que a
um fator diretamente relacionado à ocorrên- estratégia de aumento das despesas com me-
cia das demandas. A falta de adesão aos proto- dicamentos não pactuados, operada propor-
colos propicia a prescrição de medicamentos cionalmente, em maior grau, pelo município
inadequados à indicação ou fora do rol dos D, talvez resultasse em menores gastos com
medicamentos previstos pelo SUS. A literatu- medicamentos de demandas judiciais.
ra mostra que, na maioria dos casos, a pres- Outros fatores, como aqueles relacionados
crição é prevalente sobre quaisquer outros à indicação e à prescrição, às características
argumentos da gestão (ROMERO, 2008; PEPE, 2010A). do uso off-label, às pressões de incorpora-
A incorporação dos medicamentos de de- ção, cuja abordagem foge ao escopo deste
mandas judiciais na programação dos mu- trabalho, podem influenciar a ocorrência de
nicípios é uma medida adotada com certa demandas. O que se tem observado no País é
frequência em outros contextos (PEPE, 2010A). Com o incremento do número de demandas e dos
relação às compras, a situação se mostrou mais gastos dos entes federativos a elas relacio-
problemática, uma vez que todos os municípios nados, a despeito de quaisquer medidas de
relataram compras diretas em farmácias priva- contenção (VIEIRA; ZUCCHI, 2007).
das, dando margem à falta de transparência e No entanto, não há como realizar uma
de economia para os cofres públicos (PEPE, 2010A). análise integrada relacionando gastos da
Apesar do relato da realização de compras re- AF com demandas judiciais no conjunto de
gulares por meio de licitação, não houve adoção municípios, pois não há dados completos
de ferramentas para auxílio nos processos, tais para todos. Não se sabe qual é o investimen-
como catálogo de especificações técnicas dos to per capita real dos municípios A, B, C e E.
medicamentos para os editais de aquisição, ou Observa-se que o gasto per capita em deman-
utilização do Banco de Preços em Saúde, retra- das judiciais do município E é alto em relação
tando um processo de compras deficiente e com aos demais; sabe-se que, neste município,
pouco ou nenhum respaldo técnico. 60% das demandas são para medicamentos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


Gestão da Assistência Farmacêutica e demandas judiciais em pequenos municípios 181
brasileiros: um estudo em Mato Grosso do Sul

ausentes dos componentes de financiamen- ser voltados para apoiar iniciativas de forta-
to da AF, o que poderia relacionar-se ao alto lecimento da gestão. A própria Portaria nº
gasto com demandas. Por outro lado, o muni- 4.217, de dezembro de 2010, deixava clara a
cípio C, que possui o maior gasto per capita possibilidade de utilização de 15% dos re-
com medicamentos da AB (R$ 15,68), tem, cursos provenientes de estados e municípios
consequentemente, apenas 6% das demandas para adequação de espaço físico das farmá-
relativas a este componente. Mas é também o cias municipais, aquisição de equipamentos
que possui a maior proporção de demandas e mobiliário, e para realização de atividades
com medicamentos ausentes das listas de fi- voltadas para educação continuada e qualifi-
nanciamento (88%). cação dos recursos humanos da AF.
No tocante aos municípios nos quais todos Na questão da gestão do trabalho, o Pacto
os dados estão relatados, as informações tem ainda como uma de suas diretrizes a
também não permitem identificar relações. política de recursos humanos. É eixo funda-
Os municípios D e F apresentam proporções mental para o funcionamento do SUS, sendo
muito semelhantes em relação ao tipo de medi- as secretarias municipais e estaduais de
camento demandado e ao tipo de medicamento saúde responsáveis por empreender esforços
demandado por componente de financiamen- para a criação ou fortalecimento de estrutu-
to. O primeiro gasta mais com medicamentos ras de recursos humanos em seus quadros.
não pactuados do que o segundo, o que poderia Entretanto, não foi observada a apropria-
explicar o também maior percentual de uso ção dessas possibilidades pelos municípios
off-label. Por outro lado, o município F gasta estudados. Muitos não possuíam plano
mais com AF básica do que o D. Este gasto, no municipal de saúde contemplando a AF, ou
entanto, parece não influenciar os gastos per coordenação formal de AF. Tampouco utili-
capita com demandas judiciais. zavam ferramentas para auxílio na gestão. A
A média do gasto per capita com medica- falta de investimentos em recursos humanos
mentos, de municípios com menor número de e estruturais redunda também na falta de
habitantes, tende a ser maior do que a de mu- capacidade para utilização de ferramentas e
nicípios mais populosos, segundo Vieira (2011). cumprimento de determinações do SUS.
Uma provável maior participação de planos Ainda que seja um considerável determi-
de saúde em municípios mais populosos di- nante sobre a situação da AF, a gestão da saúde,
recionaria parcela importante da população como um todo, nos municípios, não foi anali-
para a aquisição privada de medicamentos sada. Algumas informações relatadas pelos
em farmácias comerciais. E o menor poder de gestores, mormente relacionadas à logística
escala e de negociação dos pequenos municí- de medicamentos, não puderam sofrer com-
pios levaria à obtenção de preços mais altos provação integral; houve grande dificuldade,
nas compras de medicamentos (VIEIRA, 2011). em alguns municípios, de acesso aos dados
O aporte adicional de recursos para financeiros. As possíveis causas dessa situação
compra de medicamentos foi medida adotada seriam a falta de capacitação técnica dos recur-
pelos gestores como tentativa de resolução sos humanos municipais para a gestão ou a falta
de problemas, e não pareceu significar um de transparência praticada pela gestão munici-
entrave para a gestão, nos municípios estuda- pal. Mas, quaisquer que sejam os motivos, tais
dos. Além disso, todos os municípios relata- situações, por si só, podem também ser consi-
ram receber os aportes da esfera federal e da deradas como resultados que depõem contra a
esfera estadual, conforme o pactuado. gestão nesses municípios.
O Pacto pela Gestão do SUS passou a Por fim, o perfil diferenciado de alguns
prever financiamento específico para a municípios que apresentaram grande
gestão do sistema, em que os recursos devem número de demandas judiciais merece

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


182 SANTOS-PINTO, C. D. B.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S.

análise mais aprofundada, para que possam cofres municipais. Mas observou-se que, na
ser compreendidas as causas específicas maioria dos casos, o manejo das demandas
desta situação. Não foi possível, nos limites por medicamentos se dava de forma total-
desta pesquisa, identificar tais razões. mente destacada da AF. Não havia análise
O presente trabalho inova ao abordar a técnica dos pedidos, e muitas compras ocor-
gestão da AF frente às demandas em peque- riam de forma irregular. Não eram adotadas
nos municípios, uma vez que a maioria dos boas práticas para as atividades logísticas e
estudos realizados até hoje abordam estados a entrega dos medicamentos era feita sem
ou grandes municípios (DE BERNERDI; BIEBERBACH; orientação. Ficou clara a falta de estrutura
THOMÉ, 2006; MACHADO, 2011; MARQUES, 2007; PEPE 2010B; dos municípios para a gestão das demandas.
PEREIRA, 2010). Destaca-se que, em relação a Mato No entanto, o que se pôde perceber é que
Grosso do Sul, os municípios estudados não os problemas ligados à AF existiam a priori
eram os menores do estado. Mas, se compa- nesses municípios e foram, possivelmente,
rados à distribuição dos municípios no Brasil, determinantes da ocorrência de demandas
seriam considerados pequenos, uma vez que o judiciais. Falhas comuns da gestão da AF, de
IBGE entende como de pequeno porte muni- base, mostraram que as dificuldades advindas
cípios com até 50 mil habitantes (IBGE, 2009). As das demandas incidiram sobre municípios já
questões estruturais e de recursos humanos fragilizados. A existência de listas de medica-
encontradas assemelhavam-se àquelas presen- mentos não pactuados, muitas vezes maiores
tes em outros pequenos municípios brasileiros do que a pactuada, provocou aumento direto
(VIEIRA, 2008; DE BERNERDI; BIEBERBACH; THOMÉ, 2006). nas despesas. Em todos os municípios anali-
sados foram verificadas enormes deficiências
nas atividades da AF regular, falta de recursos
Conclusão humanos e falta de estrutura física para uma
adequada disponibilização de medicamentos
O presente trabalho partiu do pressuposto, à população. Observou-se, ainda, que não
já demonstrado em outros estudos, de que houve subfinanciamento da AF nos municí-
as demandas judiciais têm impacto sobre pios, mas indícios de gestão financeira por
a gestão da AF, provocando aumento de vezes pouco eficiente.
gastos e desestruturação dos serviços. Neste, Neste sentido, a judicialização se coloca
observou-se que a judicialização, em maior como um complicador da situação da gestão
ou menor grau, acabou por impor certas da AF em municípios brasileiros. Não se
mudanças aos municípios, seja pela criação pode concluir, entretanto, que este fenôme-
de setores, pela mobilização de pessoas no seja a causa de problemas, mas sim, em
para lidar com a questão, ou mesmo pelo alguns casos, uma consequência das defici-
maior aporte de recursos que demandou aos ências da própria gestão. s

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Recebido para publicação em março de 2015


______. Caracterização de demandas judiciais de for- Versão final em outubro de 2015
Conflito de interesses: inexistente
necimento de medicamentos “essenciais” no Estado
Suporte financeiro: não houve
do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de
Janeiro, v. 26, n. 3, p. 461-471, 2010b.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 171-183, DEZ 2015


184 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

De frente com os médicos: uma


estratégia comunicativa de gestão para
qualificar a regulação do acesso ambulatorial
Facing medical doctors: a communicative management strategy to
qualify ambulatory access regulation

Flavius Augusto Olivetti Albieri1, Luiz Carlos de Oliveira Cecilio2

RESUMO O presente artigo mostra como oficinas descentralizadas de regulação do acesso,


uma estratégia de gestão de base comunicativa adotada no município de Diadema/SP de 2008
a 2011, resultaram em transformações nos processos de trabalho local, apesar de guardarem
ritmos e iniciativas diferentes entre si. Após as oficinas, pode-se identificar a redução de 18%
de encaminhamentos para consultas especializadas, e de 9% em exames de apoio diagnós-
tico. O estudo aponta alguns dos desafios postos para viabilizar um maior protagonismo da
Atenção Básica nos processos regulatórios municipais, em particular nesse momento que a
política de saúde a define como coordenadora do cuidado da rede de serviços.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Acesso aos Serviços de Saúde; Instituições de


Assistência Ambulatorial; Políticas, Planejamento e Administração em Saúde; Regulação e
Fiscalização em Saúde.

ABSTRACT The present article shows how the decentralized access regulation workshops, a
communicative-based management strategy adopted in Diadema/SP from 2008 to 2011, resul-
ted in changes in the local work processes, although keeping different rhythms and initiatives
among them. After the proposed workshops, it could be identified a reduction of 18% of referrals
to specialist consultations, and 9% in support diagnostic tests. The study highlights some of the
challenges to enable a greater role of Primary Care in municipal regulatory processes, particular-
ly when health policy defines it as the coordinator of care within the service network.

KEYWORDS Primary Health Care; Health services accessibility; Ambulatory care facilities,
Health policy, planning and management; Health care coordination and monitoring.

1 Secretaria Municipal de
Saúde de Diadema – São
Paulo (SP), Brasil
flavius.albieri@gmail.com

2 Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp) – São
Paulo (SP), Brasil
luizcecilio60@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 184-195, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005231
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De frente com os médicos: uma estratégia comunicativa de gestão 185
para qualificar a regulação do acesso ambulatorial

Introdução sentidos principais: no primeiro, relativo


ao subsistema público, ela é entendida
O conceito de regulação ainda é pouco esta- tanto como o controle de acesso dos usu-
belecido e sua definição varia conforme os ários aos serviços de saúde como o ato de
autores e as diferentes áreas de uso. Até hoje, criar e implementar regras. No segundo,
é muito difícil propor uma definição unifica- com respeito ao subsistema privado, a re-
da dele. Apesar disso, é possível inferir que a gulação é concebida como a correção de
ideia de regulação esteja alinhada às noções falhas nas relações do mercado da saúde.
de sistema e de complexidade (PRÉVOST, 2000). A regulação está, portanto, vinculada a
O próprio termo sistema já indica que se distintas e variadas ações: regulamentação,
fala sobre vários mecanismos em relação de fiscalização, controle, auditoria e avaliação.
dependência, a fim de se alcançar um efeito No entanto, observa-se a ênfase normativa e
determinado (SCHNEEBERGER, 1994). burocrática para essa forma de conceituar a
No direito, a regulação é a atividade que regulação, expressa geralmente como o ato
consiste em assegurar o equilíbrio entre de cumprir regras.
direitos e deveres pretendido pela lei. Ao Santos e Merhy (2006) afirmam que o ato
mesmo tempo, a regulação traz consigo a de regular em saúde é um componente do
ideia de que o papel do Estado é comandar campo de prestação de serviços, sendo exer-
diretamente os atores sociais, estabelecer as cido pelos atores que proveem ou contratam
‘regras do jogo’ e garantir que sejam respei- serviços de saúde. Os autores apontam ainda
tadas (CHEVALLIER, 1995; GAZIER; CANNAC, 1984). a existência de diferentes conceitos, práticas
Já nas ciências sociais, a discussão da e finalidades da regulação em saúde, sendo
regulação está relacionada à existência de ainda objeto de debate, com diferentes com-
grupos sociais ou sociedades razoavelmente preensões sobre o tema.
duráveis, apesar da grande variedade de in- De acordo com o Informativo Anual de 2000
teresses de seus membros (LAWE, 1977), repre- da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2000), a
sentando, portanto, um modo de conciliação regulação é função de governança dos sistemas
de conflitos na organização de processos de- de saúde; ela está atrelada à função do Estado
cisórios (MIAILLE, 1995). de ordenar as relações de produção e distribui-
De acordo com Ferreira (2004), o concei- ções de recursos, bens e serviços de saúde.
to de regulação mais utilizado na literatura No Brasil, existe regulação em saúde
dedicada ao tema é o que define a regulação desde a época dos extintos Institutos de
como ‘uma influência deliberada do Estado’, Aposentadorias e Pensões (IAPs), estabele-
abarcando toda e qualquer ação concebida cendo regras para a utilização de serviços de
para influenciar, de algum modo, regula- saúde por seus beneficiários. Com a criação
rizar o comportamento da indústria ou da do Instituto Nacional de Previdência Social
sociedade (o que inclui não apenas a regu- (INPS), e a expansão de ampla rede de pres-
lamentação, mas os incentivos econômicos, tadores privados por todo o País, via paga-
a contratualização, divulgação de informa- mento por procedimentos, intensificou-se a
ção, entre outros aspectos). Nesse caso, a necessidade de um maior controle, por meio
regulação tanto pode ser entendida como da regulação em vários aspectos: comercial,
facilitadora e positivamente incentivadora administrativo, financeiro e assistencial. Vale
de comportamentos como restritiva e pre- ressaltar que, nesse período, ainda se obser-
ventiva em face de atividades ou ocorrências vava pequena influência das ações regula-
consideradas indesejadas pelo Estado. tórias no âmbito assistencial, ainda muito
O conceito de regulação tem sido em- centradas nos gastos, na imposição de regras
pregado nos sistemas de saúde em dois e fluxos normativos (SANTOS; MERHY, 2006).

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O conceito, as práticas e finalidades da O conceito de regulação assistencial está


regulação em saúde têm sido desenvolvidos atrelado a alguns pressupostos, como o pro-
progressivamente desde a criação do Sistema cesso de planejamento e programação, a
Único de Saúde (SUS). A Norma Operacional definição da estratégia de regionalização, o
de Assistência à Saúde (Noas) foi editada médico regulador como autoridade sanitária
com o objetivo de organizar a regionalização instituída pelo gestor e a interface da regula-
da assistência, visando promover maior equi- ção com os processos de planejamento, pro-
dade na destinação dos recursos às ações e gramação, controle e avaliação. Delimitando
serviços de saúde e garantir o acesso a todos claramente a regulação do acesso dos usuá-
os níveis de atenção, buscando enfrentar o rios aos serviços assistenciais, a Noas trouxe
que foi denominado de ‘atomização do SUS’ também a noção de complexos reguladores,
em sistemas municipais isolados, e remeten- definindo que a regulação
do aos estados a competência de organizar
o fluxo da assistência intermunicipal, por deverá ser efetivada por meio de complexos
meio do Plano Diretor de Regionalização reguladores que congreguem unidades de tra-
(BRASIL, 2002). A regionalização, como estraté- balho responsáveis pela regulação das urgên-
gia de conformar uma rede intermunicipal cias, consultas, leitos e outros que se fizerem
hierarquizada de referência especializada, necessários. (BRASIL, 2002).
apontou a necessidade de organização de
fluxos de referência e contrarreferência, A partir da publicação da Política Nacional
assim como a implantação de instrumentos e de Regulação (BRASIL, 2008), o Ministério da
estratégias que intermediassem o acesso dos Saúde busca um conceito mais ampliado de
usuários aos serviços, trazendo para a pauta regulação, definindo-a segundo a sua atuação
o conceito de ‘regulação assistencial’ como a nos sistemas de saúde (regulação sobre sis-
“disponibilização da alternativa assistencial temas), sobre a produção direta das ações e
mais adequada à necessidade do cidadão, de serviços de saúde (regulação da atenção) e
forma equânime, ordenada, oportuna e qua- sobre o acesso dos usuários aos serviços de
lificada” (BRASIL, 2002). saúde (regulação do acesso). Esses conceitos
Essa norma propõe que a Programação associam e articulam as ações de regulação
Pactuada Integrada (PPI) seja um dos ins- em saúde ao monitoramento, controle, ava-
trumentos de planejamento integrado, e a liação, auditoria e vigilância da atenção e da
define como assistência à saúde no âmbito do SUS.
Este artigo tem como objetivo principal
o processo instituído no âmbito do SUS avaliar e analisar as possíveis contribuições
para a alocação dos recursos da assistên- de uma estratégia de gestão governamental
cia à saúde nos estados e municípios brasi- de base comunicativa – os ciclos de oficina
leiros resultante da definição, negociação e de regulação do acesso à saúde –, para o apri-
formalização dos pactos entre os gestores, moramento do consumo de serviços de saúde
das prioridades, metas critérios, métodos e no sistema municipal de saúde da cidade de
instrumentos no sentido de definir de for- Diadema (SP). Para isso, foi imprescindível
ma transparente os fluxos assistenciais no reconstituir como os ciclos de oficinas foram
interior das redes regionalizadas e hierar- realizados e, a partir de grupos focais, carac-
quizadas de serviços, bem como os limites terizar a percepção dos médicos, gerentes e
financeiros destinados para cada município, reguladores (entendidos aqui como operado-
explicitando a parcela destinada à assistên- res da regulação governamental) em relação
cia da própria população e das referências às possíveis contribuições que as oficinas
recebidas de outros municípios. (BRASIL, 2002). trouxeram para seus processos de trabalho.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 184-195, DEZ 2015


De frente com os médicos: uma estratégia comunicativa de gestão 187
para qualificar a regulação do acesso ambulatorial

O contexto do estudo: a regulação provenientes das Unidades Básicas de Saúde


do acesso ambulatorial no município (UBS) e Ambulatórios de Especialidades
estudado municipais eram recebidas pela Central,
avaliadas por equipe técnica composta por
A Divisão de Regulação Ambulatorial, médicos e enfermeiros reguladores, que veri-
Auditoria, Avaliação e Controle (Draac), da ficava e ponderava as necessidades baseadas
Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de nas justificativas apresentadas e autorizava
Diadema, foi criada com o objetivo de aper- (ou não) os procedimentos, priorizando os
feiçoar a utilização dos recursos de saúde casos de acordo com os critérios estabeleci-
existentes no município, promovendo os dos nos Protocolos de Regulação do Acesso
princípios da equidade e da integralida- Baseados em Evidência vigentes até então.
de do cuidado, entendendo a regulação da Os casos que demandavam complementação
atenção à saúde como o conjunto de rela- das informações cadastrais ou clínicas eram
ções, saberes, tecnologias e ações utilizado devolvidos para as unidades solicitantes para
para ordenar, orientar, definir e intermediar, adequação das guias. Os casos classificados
avaliar e monitorar a demanda e o acesso dos pós-avaliação dessa equipe técnica prosse-
usuários aos serviços de saúde (DIADEMA, 2010). guiam para a equipe de agendamento, que
O Complexo Regulador do Acesso utilizava a oferta disponibilizada pelos ser-
da SMS, é composto pela Central de viços de saúde de média e alta complexidade
Regulação do Acesso Ambulatorial (incluí- municipais e estaduais. Depois de agendadas,
da na Draac), pela Central de Regulação do as guias retornavam às unidades solicitantes
Acesso a Urgências do tipo pré-hospitalar contendo as informações de agendamento e
móvel (ou ainda, o Serviço de Atendimento orientações para serem informadas aos pa-
Móvel de Urgência), pela Central de cientes. Esse processo logístico de entrada
Regulação de Urgência Inter-hospitalar, e saída de guias encontrava-se digitalizado
por uma Central de Regulação do acesso por meio de um software criado na própria
aos leitos e pela Central de Transporte Central, o Reguladia.
Sanitário Ambulatorial.
A Central de Regulação do Acesso
Ambulatorial (consultas médicas especia- Uma estratégia
lizadas e serviços de apoio diagnóstico e governamental de base
terapêutico) – foco deste estudo – busca,
de maneira articulada, adequar a oferta de
comunicativa: os ciclos de
serviços de saúde à demanda gerada pela oficinas
Atenção Básica (AB) à saúde e outros ser-
viços da rede municipal, além de produzir Apesar da notável ampliação da oferta de
a integração de todos os recursos disponí- serviços básicos em todo o País possibilitada
veis na rede de atenção à saúde, por meio pela Estratégia Saúde da Família (ESF), ainda
de fluxos capazes de garantir o acesso em se questiona a capacidade da AB à saúde de
tempo oportuno e seguro às tecnologias ne- atuar como “centro de comunicação” (CECÍLIO,
cessárias à sua assistência. 2012, P. 2900) e “coordenação do cuidado”
No período de 2008 a 2011, 100% do fluxo (MAGALHAES JUNIOR; PINTO, 2014, P. 16). Muitas e
de solicitações de consultas especializadas conhecidas razões poderiam ser apontadas
e exames de apoio diagnóstico foi realiza- para isso, entre elas, a incorporação de novas
do por intermédio da Central de Regulação tecnologias ao setor da saúde como induto-
Ambulatorial. Todas as guias de solicitação de ra de uma crescente demanda por serviços
procedimentos de média e alta complexidade e tratamentos cada vez mais complexos

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188 ALBIERI, F. A. O.; CECILIO, L. C. O.

(STARFIELD, 2002). Somada a isso, a formação um questionário estruturado, e com 98% de


dos profissionais de saúde, totalmente de- adesão dos participantes, a nota média geral
sarticulada com a realidade da rede no SUS, foi de 8,6. Mais de 95% dos profissionais con-
dificulta ainda mais o processo de mudança sideraram pertinente a realização de novas
do modelo assistencial (FORREST, 2002). Assim, oficinas, sendo que 61% julgaram a periodi-
pode-se contar com um cenário de possí- cidade ideal de três a seis meses.
vel baixa resolutividade na AB à saúde, que Já no 3o Ciclo, realizado entre março e
promove encaminhamentos em quantidades abril de 2010, foram realizadas 31 oficinas em
excessivas e de forma desqualificada aos ser- 26 equipamentos de saúde municipais am-
viços especializados, ocasionando filas de bulatoriais (aumento de 27% com a inclusão
espera e insatisfação dos usuários. dos Centros de Apoio Psicossocial e Centros
No município de Diadema, a premissa Especializados), resultando em um total de
básica do Plano Municipal de Saúde do qua- 77,5 horas de ação in loco (aumento de 35%
driênio 2009/2012 (DIADEMA, 2009) foi a rees- com relação ao segundo ciclo). Participaram
truturação do modelo de atenção à saúde, 268 profissionais entre gerentes, médicos,
com foco no fortalecimento da AB à saúde. enfermeiros e outros (aumento de 36% em
Sabendo que a regulação do acesso à rede relação ao segundo ciclo de oficinas). A nota
de atenção à saúde inicia-se nesse nível do média geral da avaliação foi de 8,8.
sistema, foram realizados Ciclos de Oficinas Em relação à dinâmica das oficinas, que
de Regulação do Acesso Ambulatorial pretendiam ser uma estratégia comunicativa
(DIADEMA, 2011), como uma estratégia governa- da gestão visando melhorar a comunicação
mental de base comunicativa (rodas de con- entre gestores e equipes locais, em particu-
versa), com o objetivo de estreitar os laços lar com os médicos, o que pode ser dito é
entre a gestão (regulação) e os profissionais que os reguladores envolvidos na condução
de saúde da AB à saúde, na perspectiva de direta dos encontros nos ciclos de oficina
ampliar a participação e responsabilização atuaram, nas primeiras rodadas, como meros
das equipes de AB no processo regulatório. ‘apresentadores’ das propostas da gestão,
O 1o Ciclo de Oficinas ocorreu entre os reproduzindo o modo mais tradicional de
meses de setembro e outubro de 2008 e foi fazer a gestão, segundo o qual espera-se uma
realizado em cada uma das 19 UBS da SMS postura de aceitação e passividade de suas
de Diadema, tendo como público-alvo os propostas, pelo menos nos espaços públicos
médicos e gerentes das UBS. O enfoque dos do que é posto pela gestão. Nos ciclos seguin-
encontros foi a problematização das ações tes, a condução dos encontros se deu cada
regulatórias da SMS de Diadema, tendo vez mais em rodas de conversa, e os mesmos
como partida a apresentação da estrutura re- apresentadores/‘condutores’ dos primeiros
gulatória formal do município, seus fluxos e encontros (representantes da gestão) aca-
protocolos para encaminhamentos. baram assumindo, pelos questionamentos,
No 2o Ciclo de Oficinas, ocorrido entre críticas e queixas dos médicos, uma nova
março e maio de 2009, foram realizadas 21 postura, atuando mais como moderadores
oficinas em 19 UBS, totalizando 52 horas das discussões, abrindo-se, desse modo,
de encontros presenciais em pouco mais para uma melhor escuta do que vinha das
de um mês de atividades. O processo en- unidades básicas. As queixas dos médicos,
volveu um total de 197 profissionais entre muitas vezes duras, e motivo de discussões
gerentes, médicos, enfermeiros e outros. acaloradas, referiam-se tanto às condições
Houve a participação de 65% dos médicos de trabalho consideradas inadequadas como
da AB no correr das duas oficinas. Na ava- às difíceis relações com os especialistas, que
liação realizada após a oficina, a partir de não reconhecem o trabalho médico na AB.

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De frente com os médicos: uma estratégia comunicativa de gestão 189
para qualificar a regulação do acesso ambulatorial

Por isso é possível afirmar que as oficinas família, mas que são selecionados por apre-
conseguiram um caráter progressivamente sentarem certas características em comum
comunicativo à medida que os ciclos iam associadas ao tópico que está sendo pesqui-
sendo realizados. sado. Barbour e Kitzinger (1999) recomen-
Analisar os principais desdobramentos dam que os participantes sejam indivíduos
dos ciclos de oficinas é o interesse maior do que convivam com o tema discutido e que
presente artigo. tenham profundo conhecimento dos fatores
que afetam os dados mais pertinentes.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê
Metodologia de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal de São Paulo sob CAAE nº
Tratou-se de pesquisa de caráter quantiqua- 00873812.6.0000.5505. Os participantes dos
litativo, que tinha como objetivo principal ciclos de oficina assinavam termo de con-
analisar as possíveis contribuições de uma sentimento livre e esclarecido. Os resultados
estratégia de gestão governamental de base do estudo foram utilizados para elabora-
comunicativa (oficinas técnicas sobre regu- ção de dissertação de mestrado defendida
lação do acesso), na tentativa de obter maior no Programa de Pós-graduação em Saúde
envolvimento e responsabilização da AB nos Coletiva da mesma Universidade.
processos (micro) regulatórios para o acesso
aos serviços de saúde ambulatoriais especia-
lizados do município de Diadema. Resultados e discussão
O estudo contemplou duas etapas. Na
primeira, de caráter quantitativo, foram Ao analisar as participações dos vários
feitos levantamento e análise de relatórios atores dos três grupos focais, pretendeu-se
gerenciais sobre regulação do acesso que produzir uma ‘triangulação’ que possibili-
possibilitassem caracterizar se os ciclos de tasse responder às seguintes questões em
oficinas técnicas sobre regulação do acesso, relação ao ciclo de oficinas: Proporcionaram
realizadas entre os anos de 2008 a 2011, im- uma melhor compreensão a respeito do
pactaram no número de solicitações de pro- papel/limites/possibilidades por parte dos
cedimentos especializados oriundos da rede atores envolvidos no processo regulatório?
de AB. Na segunda etapa, procurou-se fazer Promoveram mudanças nas relações entre
uma análise mais qualitativa dos ciclos de os atores da equipe de regulação com os
oficina, em particular dos seus prováveis im- médicos da AB à saúde? Aprimoraram as
pactos nos processos de trabalho das unida- relações de confiança dos médicos com os
des. Para tanto, foram realizados três grupos gestores do SUS local, aumentando sua res-
focais (um com médicos, um com gerentes ponsabilidade e protagonismo no processo
de UBS e um com profissionais reguladores). regulatório?
Como técnica de pesquisa qualitativa, o Nos grupos focais, as perguntas dispara-
grupo focal coleta dados de modo a promo- doras foram: ‘É possível identificar mudan-
ver a interação entre os participantes e o ças na regulação do acesso aos serviços após
pesquisador, a partir da discussão focada em os ciclos de oficina realizados entre 2008
tópicos específicos e diretivos. Pode ser uti- e 2011? Quais? Houve mudanças na comu-
lizado no entendimento das diferentes per- nicação entre os vários atores?’. No grupo
cepções e atitudes acerca de um fato, prática, focal com os médicos, também se perguntou:
produto ou serviço (IERVOLINO; PELICIONI, 2001). O ‘vocês identificam mudanças nos seus pro-
grupo focal é geralmente composto de seis a cessos de trabalho após o ciclo de oficinas de
dez participantes que não sejam da mesma 2008 a 2011? O que mudou? Quais aspectos

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da regulação poderiam ou deveriam ser alte- sintetizadas na forma de uma narrativa


rados para facilitar o seu trabalho e o cuidado corrida dos pesquisadores, destacando-se
com seus pacientes?’. os elementos mais importantes apreendidos
Os três grupos focais foram registrados quando da realização dos grupos focais.
em meio magnético, transcritos e depois A primeira etapa do estudo, de caráter
todo o conteúdo foi submetido à leitura quantitativo, buscou caracterizar o quanto
em profundidade e organizado inicialmen- os ciclos de oficinas resultaram, ou não, em
te nas seguintes categorias empíricas: 1. menor número de encaminhamentos para pro-
O médico como regulador e suas relações cedimentos e serviços médicos especializados,
com os especialistas: a regulação profissio- considerando a hipótese de que os encaminha-
nal; 2. As mudanças nos processos de tra- mentos realizados pelos médicos da rede de
balho após as oficinas: a heterogeneidade AB à saúde para procedimentos especializados
das experiências locais; 3. As relações dos seriam excessivos e desqualificados.
médicos com a gestão: entre a desconfian- Observou-se que, após os três ciclos de
ça e a cooperação; 4. O uso da informação oficinas de regulação do acesso, houve a
para a regulação na atenção primária: muito redução de 18% de encaminhamentos da
aquém do necessário; 5. Muita coisa cons- rede para consultas especializadas com
pira contra a centralidade esperada para a relação ao total existente no ano anterior, e
rede básica no sistema de saúde. de 9% em relação aos exames de apoio diag-
No presente artigo, por exiguidade de nóstico do ano anterior, como pode ser visto
espaço, as ‘categorias empíricas’ foram na tabela 1.

Tabela 1. Comparativo entre os totais de solicitações para procedimentos especializados realizadas pela rede de serviços de saúde municipal (períodos de
01 ano) e taxa de agendamento pré e pós ciclos de oficinas de regulação do acesso, 2008 a 2010, Diadema

Consultas médicas especializadas Quantidade solicitada Média mensal Demanda reprimida Taxa de agendamento
na Draac
Período 29/09/2008 a 29/08/2009 (pré oficinas) 57.088 4.757 12.446 78%
Período 20/09/2009 a 20/08/2010 (pós oficinas) 46.591 3.883 8.808 81%
Variação entre os períodos -10.497 -874 -3.638 4%
-18% -29%

Exames de apoio diagnóstico Quantidade solicitada Média mensal Demanda reprimida Taxa de agendamento
na Draac
Período 29/09/2008 a 29/08/2009 (pré oficinas) 76.894 6.408 25.225 67%
Período 20/09/2009 a 20/08/2010 (pós oficinas) 69.704 5.808 19.550 72%
Variação entre os períodos - 7.190 -599 -5.675 7%
-9% -22%
Fonte: DIADEMA, 2010.

Para Sobolev (2004), o acompanhamento Alguns fatores, como a formação do


do número de encaminhamentos constitui profissional da AB à saúde, a organização
uma importante ferramenta para a gestão da estrutura dos serviços, as diferenças de
dos sistemas de saúde, uma vez que fornece morbidade da população, as características
informações para o planejamento e avaliação específicas de cada paciente e as diferentes
dos serviços. práticas profissionais, influem na variação

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De frente com os médicos: uma estratégia comunicativa de gestão 191
para qualificar a regulação do acesso ambulatorial

das taxas de referência para atendimento es- com os usuários e com os médicos de outros
pecializado (FORREST ET AL., 2000). pontos do sistema de saúde – por exemplo,
Pode-se inferir que os ciclos de oficinas quando os pacientes retornam do aten-
proporcionaram uma reflexão a respeito da dimento de urgência e emergência com
utilização dos recursos especializados, na pedidos de exames para serem ‘trocados’ na
medida em que apresentaram aos profis- UBS, e cabe a eles a decisão sobre a necessi-
sionais o cenário de encaminhamentos, em dade e/ou adequação do pedido de encami-
grande parte excessivos e desqualificados, nhamento. Ou seja, é elemento importante
além de deixar mais claro o embasamento dos processos de microrregulação realizados
técnico e científico dos protocolos vigentes, pela AB à saúde, a ‘regulação’ do acesso para
o que pode ter sido um dos fatores que pro- média e alta complexidade realizado pelo
moveram a redução do número de encami- médico. A prática médica pode ainda ser
nhamentos a serviços especializados. vista como altamente autorregulada, isto é,
Além da caracterização quantitativa das realizada ainda com alto grau de autonomia,
possíveis contribuições do ciclo de oficina, comandada por seu raciocínio clínico, pela
era necessária uma abordagem mais qua- formulação de hipóteses, avaliação de gravi-
litativa que proporcionasse uma melhor dade ou riscos inerentes à situação, com as
caracterização do quanto elas haviam pro- consequentes condutas que o médico ainda
duzido (ou não) transformações nos pro- adota de forma bastante independente e
cessos de trabalho das UBS no que se refere autônoma em relação às regras institucio-
aos processos regulatórios. A realização de nais. É o exercício do ‘poder da caneta’ do
grupos focais com três grupos diferentes prescritor. Nessa medida, a autorregulação
de atores (gerentes locais, reguladores e própria do trabalho médico é componente
médicos) teve a intenção de caracterizar importante a ser considerado nos processos
possíveis transformações a partir de três microrregulatórios locais, e ela foi um foco
‘olhares’ ou três ‘lugares de observação’ importante de discussão, questionamento e
distintos, explorando-se a sua possível reflexão nos ciclos de oficinas. Os médicos da
complementaridade. Como se verá na se- AB à saúde percebem a Central de Regulação
quência, a ênfase na análise foi posta nas Ambulatorial Municipal como importante
transformações percebidas pelos médicos, observatório da rede de atenção à saúde, na
mas complementada com as observações de medida em que ela é capaz de produzir infor-
outros atores que participaram do estudo, mações para subsidiar a tomada de decisão
membros da equipe da regulação municipal na gestão, como a necessidade de novas
e os gerentes das unidades. contratações, os processos educacionais em
O encontro com os médicos propiciado saúde necessários para a capacitação/atua-
pelo grupo focal permitiu que se caracteri- lização da rede assistencial, as necessidades
zasse um pouco melhor como este profis- e agravos da saúde da população para aná-
sional, que ainda exerce papel central na lises epidemiológicas, ou ainda, como fonte
construção do sistema de saúde, vive seu de feedback para a avaliação do trabalho do
cotidiano nas equipes de saúde da família, próprio profissional e da UBS. Portanto, foi
produzindo sentidos para seu trabalho, si- possível perceber como os médicos reconhe-
tuando-o dentro de uma rede mais ampla de cem a Central de Regulação como um ‘lugar’
relações, fundamental para o exercício de sua da gestão que exerce, ou pode exercer, influ-
prática profissional, mas que muitas vezes ência importante no seu trabalho.
lhe parece incompreensível e ‘irracional’. Alguns médicos da AB à saúde possuem
O grupo focal mostrou que os médicos bastante clareza da sua responsabilidade,
se veem como ‘reguladores’ na sua relação mesmo que não exercida plenamente, na

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 184-195, DEZ 2015


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coordenação do cuidado, que deve ser de- determinada política municipal acaba sendo
sempenhada na UBS, apesar das limitações retraduzida ou apropriada de modos bastan-
que encontram no dia a dia do trabalho. As te diferentes entre as várias equipes, eviden-
contribuições promovidas pelos ciclos de ciando a dificuldade de obter uma efetiva
oficinas de regulação do acesso podem ser capilarização das diretrizes planejadas em
abordadas em vários sentidos: o primeiro é nível central para os profissionais da rede
que, sem dúvida, propiciou aos profissionais assistencial.
das UBS maior aproximação com o tema re- Teriam todos os médicos participado de
gulação e os atores envolvidos neste proces- todos os ciclos de oficinas? Seria mesmo ne-
so (reguladores, gerentes), abrindo um canal cessária a participação plena dessa categoria
sistemático de comunicação e provocando para que ocorresse a implantação do novo
uma série de novas ideias, críticas e refle- modelo de trabalho? Qual o papel do gerente
xões a respeito do assunto; o segundo, o fato dessa UBS? E se novos profissionais – in-
de conhecer os profissionais reguladores, a cluindo novos médicos – tivessem entrado
logística do trabalho na regulação e as filas na rede entre um ciclo e outro? Seriam ne-
de espera, permitiu, às UBS, avaliar as po- cessárias mais oficinas com os reguladores
tencialidades e limitações de uma Central de de maneira mais rotineira para suprir a di-
Regulação Ambulatorial Municipal e desmis- nâmica das diretrizes da regulação do acesso
tificar a questão da regulação como um pro- do município? Apesar da crescente expansão
cesso meramente burocrático, que se detém das diferentes tecnologias de comunicação
em pequenos detalhes e falhas nos encami- disponíveis, observa-se que os problemas
nhamentos dos profissionais para dificultar de comunicação são uma constante nas
o acesso dos usuários. As diretrizes para im- instituições, sendo ainda mais evidentes na
plementação de uma nova atribuição para as área da saúde, que depende muito da forte
UBS, em particular a realização da gestão da autonomia de seus profissionais para a im-
fila ‘na própria UBS’, a partir da regulação plementação das diretrizes políticas. Como
das vagas, incluindo o agendamento de con- foi apontado anteriormente, os ciclos de ofi-
sultas sob critérios de prioridade adotados cinas cumpriram seu papel enquanto dispa-
pelas equipes, reforçaram importante grau radores da reorganização dos processos de
de autonomia local. Como consequência, este regulação na UBS, mas isso não ocorreu de
processo ‘mais solto’, que estimulou a autono- maneira homogênea na rede.
mia dos arranjos locais, resultou em grande Apesar de tudo, há que se apontar a falta
heterogeneidade nos modos de operação das de responsabilização de muitos profissio-
várias unidades básicas, como pode ser clara- nais da AB à saúde, como problematizado no
mente caracterizado nos grupos focais. grupo focal dos reguladores, em particular
As mudanças percebidas pelos médicos, quando se observa o aumento e a desquali-
provocadas pelas oficinas, mas claramen- ficação dos encaminhamentos, ocasionados
te potencializadas pelas descentralizações pela facilidade de se obter as vagas para
de agendamentos, foram muito diferentes procedimentos especializados, tal como
a depender da unidade, variando desde pretendido na descentralização da gestão
‘nenhuma mudança’ percebida nos proces- das agendas. Tal fato observado em algumas
sos microrregulatórios, até a instituição de unidades poderia ser explicado em razão de
processos de microrregulação bastante qua- alguns médicos delegarem atribuições que
lificados na UBS, envolvendo a equipe para a lhes são próprias para profissionais sem a
priorização dos casos e uma melhor coorde- competência técnica exigida para avaliar e
nação do cuidado na rede de atenção (gestão definir o risco dos pacientes encaminhados,
de caso). Tudo isso mostrando o quanto uma no caso, os ‘administrativos’.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 184-195, DEZ 2015


De frente com os médicos: uma estratégia comunicativa de gestão 193
para qualificar a regulação do acesso ambulatorial

Conclusões com longas esperas ao acesso no SUS, e se


perpetua um modelo de ‘peneiramento’ pelo
Com relação ao agendamento realizado na caso mais grave e complexo, em prejuízo
UBS, havia uma expectativa da gestão de daqueles classificados como ‘rotina’ ou ‘pro-
permitir que o paciente realizasse o agenda- gramado’. A baixa qualidade dos encaminha-
mento do procedimento solicitado em tempo mentos e/ou solicitações, reconhecida pelos
real (ou seja, após a consulta na unidade participantes do grupo focal dos médicos, foi
básica), podendo opinar sobre os melho- um momento ‘comunicativo’ interessante ao
res dias e horários para o agendamento, o permitir que os médicos da rede que partici-
que diminuiria os índices de absenteísmo e pavam das oficinas conseguissem compreen-
perda primária em consultas e exames espe- der um pouco melhor os constrangimentos
cializados. Tal expectativa parece não ter se e limites de atuação da equipe central de
realizado plenamente. Entre as justificativas regulação. Outro ponto muito presente no
dadas para tais dificuldades, estão o número grupo focal dos médicos foi o quanto eles
insuficiente de pessoal administrativo, a se percebem como um profissional desva-
falta de equipamentos/instrumentais de tra- lorizado, sendo que a sua pouca valorização
balho, a falta de vagas em consultas médicas e a baixa autonomia de decisão clínica para
especializadas ou exames devido à ‘nova fila’ os ‘médicos do postinho’ seriam fatores li-
criada na UBS após a descentralização. Tudo mitantes para sua plena atuação enquanto
isso levando-se a questionar se a oportunida- gestores plenos do cuidado das pessoas sob
de de agendamento mais facilitado na ‘ponta’ seus cuidados.
(a descentralização) pode ter produzido o Diante do exposto, a avaliação final das
efeito de mais prescrição sem tantos crité- contribuições dos ciclos de oficinas de regu-
rios pelo médico (e sem regulação centrali- lação na rede pode ser considerada positiva,
zada ou mesmo local), o que acabou gerando potencializada, e muito, pela descentraliza-
uma nova demanda reprimida também nas ção dos agendamentos para as UBS, o dis-
unidades. Seria este um momento de tran- positivo mais inovador adotado pela gestão
sição que a unidades estariam vivenciando municipal, mas ele próprio disparador de
em busca do amadurecimento do processo novos resultados, tanto positivos (maior au-
da microrregulação? Até quando perduraria tonomia e agilidade para as equipes locais)
esta etapa para atingir o seu ponto de equilí- como negativos (excesso de encaminhamen-
brio? Existe um cenário ideal? tos sem critérios ou ‘abuso’ no uso das vagas
A falta de oferta para consultas, exames disponibilizadas). Tudo isso reafirmando
e procedimentos especializados em tempo como as diretrizes políticas de saúde emana-
oportuno foi apontada pelos médicos, como das pelo gestor sempre serão ‘retraduzidas’,
não poderia deixar de ser, como um grande desapropriadas pelas equipes locais.
empecilho para o desenvolvimento de um Se, nos próximos anos, este estudo vier
cuidado integral e efetivo no SUS. Do mesmo a ser replicado em formato semelhante,
modo, uma central de regulação só pode mantidas as diretrizes de uma política
exercer efetivamente o seu papel, pautado pública da regulação do acesso descen-
pela equidade, se houver oferta disponí- tralizado, deparar-se-ia com avanços e
vel para atender a todas as solicitações em outros novos desafios antes não pensados?
tempos clinicamente sustentáveis, mas tudo A partir dos achados desta pesquisa, a res-
fica mais difícil quando é necessário lidar posta pode ser sim. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 184-195, DEZ 2015


194 ALBIERI, F. A. O.; CECILIO, L. C. O.

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 184-195, DEZ 2015


196 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Implementação da Atenção Especializada em


Saúde Bucal em dois municípios na Bahia/
Brasil
Secondary dental care implementation in two municipalities in the
state of Bahia/Brazil

Thaís Regis Aranha Rossi1, Sônia Cristina Lima Chaves2

RESUMO O objetivo do estudo foi analisar a implementação dos Centros de Especialidades


Odontológicas em dois municípios com 100% de cobertura da Atenção Básica na Bahia.
Desenvolveu-se análise documental, observação participante e entrevistas semiestruturadas
com informantes-chave. Os dados foram analisados pela técnica da análise de conteúdo te-
mática, tendo sido pautada teoricamente pelo postulado de coerência e triângulo de governo
matusiano. A presente investigação apontou o protagonismo do governo local para o êxito da
implementação de políticas com formulação e indução do nível federal. O propósito/projeto
de governo e a capacidade de governo parecem ter sido as categorias mais relevantes.

PALAVRAS-CHAVE Avaliação de serviços de saúde; Política de saúde; Serviços de saúde bucal;


Planejamento em saúde.

ABSTRACT This study aimed to analyze the secondary dental care implementation in two mu-
nicipalities in the state of Bahia State. It involved two case studies in municipalities, which had
100% primary care coverage. Data collection methods involved semi-structured interviews with
informants, document analysis, and participant observation. Data were examined using thema-
tic content analysis and was theoretically guided by coherence postulate and Carlos Matus’ go-
vernment triangle concept. The present study confirms the local government has an important
role in a successful policy implementation with federal level formulation and induction. The go-
vernment purpose/project and its ability seem to be the most relevant categories.

KEYWORDS Health services evaluation; Health policy; Dental Health services; Health planning.

1 Universidadedo Estado
da Bahia (Uneb) – Salvador
(BA), Brasil.
thais.aranha@gmail.com

2 UniversidadeFederal da
Bahia (UFBA) – Salvador
(BA), Brasil.
schaves@ufba.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 196-206, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005186
196
Implementação da Atenção Especializada em Saúde Bucal em dois municípios na Bahia/Brasil 197

Introdução política e sociologia. Estes referenciais permi-


tem investigar aspectos importantes, como as
A entrada da Saúde Bucal (SB) na agenda características do governo local, para melhor
de prioridades do governo federal no Brasil compreender o processo de implementação de
ocorreu quase duas décadas após a reali- políticas de saúde (SOARES; PAIM, 2011). Ressalta-se a
zação da I Conferência Nacional de Saúde ausência de estudos que analisem a implemen-
Bucal e do I Levantamento Epidemiológico tação dos CEOs sob esta perspectiva, seja em
em Saúde Bucal (ambos de 1986), quando já âmbito nacional ou local.
se denunciava a precária situação de SB da Nesse sentido, esta investigação justifica-se
população e os limites da atenção pública pela importância e originalidade de estudos
nessa área (MACHADO; BAPTISTA; NOGUEIRA, 2011). que analisem as características de governo local
Em 2004, a publicação do documento e os resultados dos investimentos realizados na
‘Diretrizes da Política Nacional de Saúde implementação dos CEOs no nível municipal.
Bucal’ aponta certa importância concedida Devido ao exposto, o presente estudo
ao tema no governo Lula, tendo sido conside- visou analisar a implementação da AE em
rada enquanto prioridade (MACHADO; BAPTISTA; SB, no contexto local, em dois municípios no
NOGUEIRA, 2011; PAIM ET AL., 2011). Segundo seus for- estado da Bahia, Brasil.
muladores, a Política Nacional de Saúde Bucal
(PNSB) baseia-se em uma concepção amplia-
da de saúde e objetiva reorganizar os serviços Metodologia
odontológicos assegurando a integralidade
das ações (PUCCA JR ET AL., 2009; PUCCA JÚNIOR, 2006). Desenho de estudo
Essa Política preconiza a implementação
dos Centros de Especialidades Odontológicas Foram conduzidos dois estudos de caso na Bahia
(CEOs) como estratégia principal na oferta de no período entre 2010 e 2011. Inicialmente, foi
Atenção Especializada (AE) no serviço público. feito o levantamento dos municípios da Bahia,
Autores que analisaram como vem ocorrendo nos quais existiam CEO e 100% de cobertura
esse processo de implementação sugerem a populacional estimada da ESF. Além disso, a
ampliação do acesso e da oferta de ações e ser- Área Técnica de Saúde Bucal da Secretaria
viços especializados (ARAUJO; MENEZES; SOUZA, 2012; Estadual de Saúde (Sesab) indicou os muni-
FIGUEIREDO; GOES, 2009; PUCCA JÚNIOR, 2006). Algumas cípios considerados exemplares quanto ao
investigações apontaram que características, desempenho do serviço especializado em SB.
como a existência de serviços especializados Os critérios de avaliação utilizados foram de-
anteriores à PNSB com funcionamento supe- correntes das visitas técnicas realizadas pela
rior a um ano, porte populacional e Índice de referida Área Técnica da Sesab e da avaliação
Desenvolvimento Humano (IDH) municipal, anual realizada pela Coordenação Nacional
estão relacionadas a um melhor desempe- de Saúde Bucal/Ministério da Saúde (MS).
nho dos CEOs no nível local (CHAVES ET AL., 2010; Assim, foram definidos intencionalmente dois
FIGUEIREDO; GOES, 2009), além de maior cobertura da municípios, casos exemplares de porte popu-
Atenção Básica (AB) (FIGUEIREDO; GOES, 2009). Nesses lacional semelhante, ambos de médio porte.
estudos, os municípios investigados não tinham Os procedimentos para a produção de dados
100% de cobertura populacional estimada da foram: a análise documental, a realização de
Estratégia Saúde da Família (ESF), e as possíveis entrevistas semiestruturadas e a observação
lacunas encontradas muitas vezes estariam re- participante descritiva (MINAYO, 2010). A obser-
lacionadas a diversas barreiras na AB. Por outro vação participante descritiva foi realizada em
lado, essas investigações têm feito suas análises todas as visitas. A pesquisadora fazia os regis-
sem aproximação com referenciais da ciência tros em seu diário de campo.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 196-206, DEZ 2015


198 ROSSI, T. R. A.; CHAVES, S. C. L.

Constituíram-se fontes de análise docu- Testa (1992) afirma que os propósitos de


mental: o documento das diretrizes para a um governo podem ser definidos enquanto
Política Nacional de Saúde Bucal, que norteia a legitimação, crescimento ou transformação.
organização das ações e dos serviços no âmbito Articulando as duas teorias, entende-se o
estadual e municipal, e outras publicações do projeto de governo enquanto expressão do
Ministério da Saúde que versaram sobre o tema; propósito de governo (MATUS, 1996; TESTA, 1992).
Plano Plurianual (PPA); Planos Municipais de Todavia, não são apenas as circunstâncias e
Saúde (PMS) e Relatórios Anuais de Gestão interesse do ator que determinam o conte-
(RAG); protocolos assistenciais municipais e údo propositivo de suas ações, mas também
conteúdo das atas do Conselho Municipal de sua capacidade de governo. Esta refere-se
Saúde (CMS) sobre o tema em questão. à capacidade de condução, gerência ou ad-
Foram entrevistados 24 informantes-chave ministração e refere-se a técnicas, métodos,
de ambos os municípios, definidos a partir do destrezas, habilidades e experiências de um
seu papel na gestão local ou atuação na assis- ator e sua equipe de governo para conduzir o
tência, a saber: 1 prefeito (a), 2 secretários de processo social quanto aos seus propósitos.
saúde, 2 coordenadores de SB e/ou do CEO, 8 O terceiro vértice do triângulo de governo
cirurgiões-dentistas especialistas nos CEOs e 1 se refere à governabilidade de um sistema na
generalista da AB, 8 auxiliares de SB e 3 funcio- qual se expressa o poder que determinado ator
nários dos serviços. As entrevistas foram grava- tem para realizar seu projeto. É uma categoria
das, transcritas e analisadas segundo a técnica relativa a um determinado ator, às demandas
de análise de conteúdo temática (BARDIN, 2002). e exigências que o projeto de governo impõe a
O presente projeto foi aprovado pelo ele e à sua capacidade de governo (MATUS, 1996).
Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto de Os métodos de governo representam a
Saúde Coletiva da Universidade Federal da formalização de uma boa prática, baseada
Bahia, nº 045/2010, e obteve fomento do edital implícita ou explicitamente em uma teoria
DCIT/MS/Fapesb - PPSUS nº 6127/2010. eficaz. No que tange à organização, quanto à
relação de coerência, esta será determinada
Elementos teóricos pelo propósito de governo e pelo método.
Para Testa (1992), a organização constitui-se
Este estudo baseou-se na articulação entre con- ‘uma cristalização da história’. A análise de
ceitos oriundos de distintas teorias no campo organização em um dado momento retrata
da política, planejamento e gestão em saúde. indiretamente outras determinações advin-
A análise das características de gestão das do passado, juntamente com as atuais.
dos CEOs, em sua etapa de implementa- Esse conjunto de referenciais teóricos para
ção do ciclo da política pública (PINTO, 2008), análise da implementação da PNSB no nível
foi pautada teoricamente no ‘triângulo de local está representado no quadro 1 e na figura
governo’ matusiano e ‘postulado de coerên- 1. A figura expressa especialmente a etapa de
cia’ (MATUS, 1996; TESTA, 1992), utilizando-se con- implementação do ciclo da política de SB, bem
tribuição de Vilasboas e Paim (2008) . como quando uma necessidade de SB foi re-
O conceito de ‘triângulo de governo’ refere- conhecida e entrou na agenda no nível local.
-se a três variáveis que conformam os vértices Após entrar na agenda, a política foi formula-
de um triângulo: o projeto de governo, a capaci- da segundo regras institucionais. Nessa etapa
dade de governo e a governabilidade (MATUS, 1996). do ciclo, a análise dos recursos é fundamental
Matus (1996) aborda que o projeto de governo para uma implementação adequada. Na tercei-
seria um sistema propositivo ou conjunto de ra etapa, os atores locais exercem papel central,
propostas de ações realizadas pela equipe diri- sendo o governo municipal protagonista da
gente no intuito de alcançar sua meta. implementação (CECILIO ET AL., 2007).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 196-206, DEZ 2015


Implementação da Atenção Especializada em Saúde Bucal em dois municípios na Bahia/Brasil 199

Quadro 1. Matriz de análise das características de gestão dos CEOs em dois municípios das Bahia, 2011

Categorias de
Principais questões norteadoras Fontes de verificação
análise
Quais os antecedentes no município até a formulação do projeto para a implementação do CEO?
Havia recursos necessários para implementação satisfatória?
Os objetivos e diretrizes propostos são coerentes com a proposta de governo municipal e com as diretrizes
Projeto de Governo
nacionais?
e Propósitos Análise documental
A formulação do projeto para implementação no município apresenta objetivos, metas e direção claros?
de planos, programas,
Os objetivos explicitados em planos, documentos ou discurso da equipe dirigente expressam suficiência e
projetos, relatórios de
coerência com intenções de manutenção, crescimento ou mudança da situação de SB?
gestão da Secretaria
Qual a descrição do perfil profissional, tempo de serviço dos membros entrevistados?
Municipal de Saúde
Qual a visão da equipe sobre imagem-objetivo do CEO?
(SMS).
Como se deu o processo de implementação?
Entrevista com prefeito,
Como a equipe de SB organiza suas atividades individual e coletivamente?
Capacidade de secretário de saúde,
Quais as práticas de gestão utilizadas pela equipe dirigente de SB?
Governo e Método coordenador de SB/
Os recursos necessários para sua implementação foram considerados no momento da formulação/
CEO e profissionais da
implementação?
assistência (Cirurgiões
Como as decisões sobre a implementação dos CEOs foram tomadas? Quem decide? Com qual
Dentistas, Auxiliares
informação?
de Saúde Bucal e
Qual a autonomia da equipe de gestão da SB no município?
Governabili-dade funcionários).
Qual a relação dessa equipe de gestão de SB dentro da SMS?
Quantidade de profissionais, ações desenvolvidas, oferta/utilização e estrutura física do serviço.
Organização Quais mudanças organizacionais foram exigidas pela implementação do serviço de Atenção Especializada
em SB?

Figura 1. Marco teórico referencial do ciclo da política de saúde bucal no contexto local.

AVALIAÇÃO
AGENDA

NECESSIDADE(S) DE SAÚDE BUCAL


ATORES/ GESTORES/
PROJETO
RESPONSÁVEIS PELO
PRIORIZAÇÃO DESTA(S) PROPÓSITOS
PROCESSO DE
NECESSIDADE(S) DE SAÚDE
IMPLEMENTAÇÃO
BUCAL E ENTRADA NA AGENDA

IMPLEMENTAÇÃO
CAPACIDADE
TOMADA DE DECISÕES

DE GOVERNO
FORMULAÇÃO

REGRAS
MÉTODO
INSTITUCIONAIS

GOVERNABILIDADE

ORGANIZAÇÃO

RECURSOS PROFISSIONAIS USUÁRIOS


DE SAÚDE
ORGANIZAÇÃO DAS PRÁTICAS

Fonte: Adaptado de Vilasboas & Paim.


Notas: Referenciais teóricos: Ciclo da política pública; Triângulo de governo matusiano e Postulado de Coerência.

Resultados CEO – era composta por sanitaristas com ex-


periência prévia na gestão pública da saúde.
Município A: seta na direção do alvo A prefeita era pedagoga, com mestrado em
educação. O projeto do CEO entrou na agenda
Nesse município, a equipe gestora da SB – do governo municipal após conferência mu-
secretário de saúde e coordenador da SB/ nicipal de saúde e análise dos resultados do

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 196-206, DEZ 2015


200 ROSSI, T. R. A.; CHAVES, S. C. L.

inquérito epidemiológico em SB realizado secretário de saúde, que, por sua vez, levou o
pelo próprio município em escolares no ano projeto à prefeita.
2000. O projeto foi formulado pela coorde- Os gestores da SB afirmaram ter sido realiza-
nadora de SB, apresentado ao secretário e ao da uma análise dos recursos necessários à im-
gestor municipal antes de ser encaminhado à plementação do CEO, além de ter contado com
Comissão Intergestores Bipartite (CIB). Esse o recurso disponibilizado pelo Ministério da
projeto passou por discussões e aprovação no Saúde. O CEO foi implementado no ano de 2006.
CMS, assim como com profissionais da SB do Na análise do Propósito e Projeto de
município. Houve cálculo técnico-político Governo, os documentos oficiais mostra-
para construção de viabilidade de imple- ram coerência entre propostas e ações, ainda
mentação do projeto tendo em vista que, na que com alguma divergência entre o Plano
tomada de decisão para implementação do Municipal de Saúde (PMS) 2010-2013 e RAG
serviço, aliou-se estratégia de formalização 2010 (quadro 2). Nesse PMS, não se constata-
em relatório pelos profissionais da enorme ram metas para o CEO especificamente, apesar
demanda de usuários encaminhada a outros dos relatórios de gestão 2009 e 2010 aponta-
municípios devido à ausência de oferta pro- rem perspectivas de ampliação do serviço para
cedimentos especializados. Essas informa- CEO tipo II (quadro 2). Essa ampliação também
ções eram apresentadas periodicamente ao esteve presente na narrativa dos entrevistados.

Quadro 2. Propostas e ações constatadas na análise documental, município A, PPA e PMS, período 2006 a 2013, e RAG 2007 a 2010

Propostas/Estratégias pelos PMS e PPA Descrição/Ações realizadas pelos RAG


O CEO está descrito no capítulo da AB.
Aplicação do recurso de R$112.200,00 no CEO.
Incremento de 54,47% nas ações especializadas em odontologia.
2007
Após da implantação do CEO, foi promovido pela Coordenação de
Saúde Bucal um curso sobre diagnóstico de lesões bucais destinado aos
profissionais das equipes de SB e do CEO.
CEO descrito em um capítulo específico de SB.
Estratégia de ação para o problema de alta
A implantação do CEO foi apontada com principal realização do período
prevalência de cárie dental e outras patologias
de 2005 a 2008.
orais na população:
Durante o ano de 2008, foram realizados 20.392 procedimentos no
Implementação da cobertura de assistência 2008
CEO, e 5.421 pacientes foram atendidos nas especialidades endodontia,
2006-2009 odontológica básica e especializada.
cirurgia oral menor, periodontia e pacientes especiais.
PMS Estratégia de ação para o problema: dificuldade
Aplicação do recurso de R$60.000 no CEO, com exceção dos gastos
de acesso ao atendimento odontológico nas
com pessoal.
unidades de saúde do município.
CEO descrito em capítulo específico de SB.
Implantar o Centro de Especialidades
CEO implantado com aplicação de R$85.800, fora gastos com pessoal.
Odontológicas.
Em uma parceria com a Área Técnica de Saúde Bucal da Sesab, foi
realizada uma especialização em Periodontia Básica e Especializada, em
2009 que o município serviu de piloto neste tipo de curso.
Reforma na estrutura física do CEO.
Durante o ano de 2009, foram atendidos 4.310 pacientes.
Enquanto perspectiva para o futuro, foi apontado credenciamento de
CEO tipo II, com a inclusão de mais um consultório odontológico.
Doenças bucais não foram apontadas como
Durante o ano de 2010, foram atendidos 3.491 até o mês de setembro
2010-2013 problema do estado de saúde da população.
de 2010.
PMS Não houve menção às ações especializadas
Realização de Seminário do Curso de Periodontia.
especificamente em SB.
2010 Perspectiva de credenciamento de CEO tipo II e implementação de
Programa de manutenção do CEO com ações
laboratório de prótese dentária descrita no RAG;
2010-2013 para aumentar a oferta de atendimento
Aplicação do recurso de R$66.000,00 no CEO, com exceção dos
PPA odontológico especializado e garantir o acesso à
gastos com pessoal.
SB dos pacientes com necessidades especiais.

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Implementação da Atenção Especializada em Saúde Bucal em dois municípios na Bahia/Brasil 201

A prefeita relatou que a manutenção e am- e equipamentos odontológicos, acompanha-


pliação do CEO fizeram parte do seu projeto mento da licitação, supervisão do trabalho da
de governo na campanha para sua reeleição equipe assistencial, liderança no planejamen-
exitosa e estavam contidos nas diretrizes to das ações, monitoramento da oferta/utili-
do governo atual. Quanto aos propósitos de zação do serviço e avaliação.
governo, os atores destacaram em seus dis- Identificou-se distintas práticas de plane-
cursos o propósito de crescimento para a jamento com base nas narrativas dos entre-
atenção à SB. vistados, como o cálculo técnico político para
construção de viabilidade (VILASBOAS; PAIM, 2008)
Nossa ideia é que possamos ampliar para o do projeto de implementação do CEO, pla-
CEO II, ampliar a possibilidade de serviços, nejamento para ações de AB e especializada
prótese também, ampliando isso para que pos- e elaboração do plano municipal de saúde.
samos oportunizar a população esse acesso A gestora da SB possuía alta capacidade de
gratuito a um serviço que até então é um ser- governo não apenas pela sua capacidade de
viço caro, e [...] acaba cumprindo o papel do condução do projeto da SB, mas também pela
serviço público que é atender a população mais sua experiência na gestão, pela utilização de
carente. (Prefeita). protocolos assistenciais preconizados pelo
Ministério da Saúde (MS) e pelas habilidades
Destaca-se, assim, a ausência do propósito no controle do processo de trabalho, consta-
de transformação tendo em vista que a prin- tadas na observação participante, na análise
cipal gestora compreende o serviço público, dos documentos e pelas entrevistas com ges-
como o Sistema Único de Saúde (SUS), para tores e profissionais. Os profissionais de SB da
pobres (PAIM, 2009). Ainda assim, o investimen- assistência referiram participar da tomada de
to no CEO tornou-se fonte de legitimação decisão quanto ao seu trabalho.
política da administração municipal, o que O apoio político do governo municipal ao
tem garantido um propósito de crescimento. projeto do CEO foi fundamental para a im-
A formação sanitarista da coordenadora de plementação exitosa do serviço. Entretanto,
SB, enquanto componente da capacidade de observou-se baixa governabilidade da gestão
governo, foi um aspecto importante no êxito dos recursos humanos tendo em vista que
da organização do serviço. No estudo da sua a contratação de pessoal era fruto de in-
capacidade de governo e método, observou- dicações políticas. A estrutura predial era
-se insatisfação pela sobrecarga de trabalho. própria, tendo sido adquirida pela prefeitura
Isso se traduz na fala do ator pela autode- para implementação do serviço.
nominação de ‘EUquipe de Saúde Bucal’.
Verificou-se precarização do vínculo de tra- Município B: o serviço refém da crise
balho não só da coordenadora como também de gestão
dos profissionais da SB.
No município B, o coordenador SB/CEO
‘Euquipe’. É assim, nós ‘euquipe’ de Saúde Bucal tinha dupla inserção, um consultório parti-
[...] Eu resolvo as coisas aqui levo para secretário cular na cidade e exercia o cargo de gestor de
e para coordenadora de AB. [...] eu não tenho ne- SB há mais de dez anos. O secretário era ad-
nhuma pessoa, tudo sou eu: do material de lim- ministrador e, devido ao bom desempenho
peza, ao material odontológico, do CEO e da SB, como secretário na pasta de Planejamento e
tudo é comigo. (Coordenadora SB/CEO). Fazenda, foi direcionado para a SMS. A pre-
feita era pedagoga. O projeto do CEO entrou
Essa coordenação era responsável pela ma- na agenda do governo municipal por uma
nutenção e funcionamentos dos consultórios indução da então secretária de saúde, após

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202 ROSSI, T. R. A.; CHAVES, S. C. L.

ter participado de uma palestra do MS sobre A análise dos documentos cedidos, das
o CEO. Após o descrito, essa gestora solicitou entrevistas e dos dados oriundos da obser-
a formulação do projeto ao coordenador de vação participante mostra disparidade entre
SB e o levou à aprovação da prefeita, antes de propostas e ações executadas no município
encaminhá-lo à CIB. O projeto para o CEO estudado na variável Propósito e Projeto de
nesse município não foi fruto de uma cons- Governo. Não havia propostas para AE no
trução coletiva de um grupo de atores, tendo município B nos PMS, todavia no PPA 2010-
contado com recurso para implementação 2013 constava como ação o funcionamento
disponibilizado pelo nível federal e imple- do CEO (quadro 3). Os RAG analisados e as
mentado no ano de 2006. entrevistas revelam a implementação do
No município B, não houve análise prévia serviço com posterior ‘ascensão’. Essa ‘as-
de recursos nem planejamento sistemático censão’ foi caracterizada pelo aumento da
para implementação do serviço (MATUS, 1996). produção, ajuste da carga horária de profis-
O requisito de sistematicidade no planeja- sionais com vistas ao cumprimento de porta-
mento refere-se àquele que segue corpos ria ministerial, contratação de especialistas,
ideológicos, teóricos e metodológicos que ajustes da infraestrutura, contratação de
apóiam o “cálculo que precede e preside a gerente para o CEO, atividades de educação
ação” (MATUS, 1996, P. 17.). Apesar de o gestor em SB, aquisição de equipamentos e instru-
ter afirmado que não houve estratégia de mentais (quadro 3). Posteriormente a essa
implementação, ao se presumir a inevitabi- etapa de ascensão, foi relatado um declínio,
lidade do planejamento e por compreender levando o serviço do status de ‘referência na
estratégia enquanto maneira de se colocar região’ para ‘não exitoso’. As narrativas dos
em situação para se aproximar e alcançar entrevistados apontaram que o anúncio de
a meta, pode-se afirmar que esse ator é um cortes de gastos na saúde deveu-se à derrota
improvisador errático (MATUS, 1996), pois “atua em “disputa territorial envolvendo petróleo”
conforme as circunstâncias e segundo um com município vizinho. Todavia, muitos
cálculo imediatista que estabelece coerência afirmaram que o CEO foi o alvo dos cortes
entre ideologia, teoria e métodos que apóiam mais severos de recursos financeiros, com
seu cálculo” (MATUS, 1996, P. 55-56). diversas ameaças de fechar o serviço.

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Implementação da Atenção Especializada em Saúde Bucal em dois municípios na Bahia/Brasil 203

Quadro 3. Propostas e ações constatadas na análise documental, município B, PPA e PMS, período 2006 a 2013, e RAG 2007 a 2010

Propostas/Estratégias nos PMS e PPA Descrição/Ações realizadas nos RAG


Descrição das atividades do Centro de Especialidades Odontológicas,
Laboratórios Regionais de Prótese Dentária (LRPD) e serviço de
2007 radiologia no capítulo de média complexidade.
Apresentação do número de procedimentos realizados de janeiro a
dezembro de 2007
Descrição das atividades do CEO, LRPD e serviço de radiologia no
capítulo de média complexidade.
Ressaltou-se a importância das reabilitações protéticas no CEO.
Citaram-se necessidades de melhorias na infraestrutura; aquisição de
Mencionada aprovação da implantação do instrumentais e equipamentos odontológicos; contratação de 7 dentistas
CEO pela CIB e MS na descrição do serviço de para cumprimento da Portaria GM 51/2004; contratação de Auxiliares
odontologia do capítulo da AB. em Saúde Bucal e Técnicos em Prótese Dentária.
2006-2009
Apesar de a doença cárie ter sido apontada 2008 O CEO serviu de campo de estágio para um curso de Técnicos em
PMS
enquanto sexto maior problema de saúde da Saúde Bucal. Profissionais do CEO participaram do curso de controle de
população do município B, não foram traçadas infecções.
metas envolvendo a SB. Apontaram-se entraves na manutenção dos equipos odontológicos.
Descrição de procedimentos realizados no ano de 2008, em comparação
com aqueles realizados no ano de 2007. Citam-se aumentos que variam
de 3% a 235%, nas diversas especialidades, a exemplo de radiologia e
periodontia respectivamente.
No segundo semestre, ocorreu suspensão dos procedimentos de
prótese; demissão e diminuição da carga horária de profissionais. Citou-
2009 se que esses fatores acarretaram a diminuição da produtividade, contudo
ainda assim se considerou o número de procedimentos realizados
satisfatório.
A implementação do CEO, desde 2006,
representou a consolidação das ações de
odontologia, o que proporcionaria continuidade
da assistência e resolutividade à maioria dos
problemas de SB da comunidade, culminando,
também, na melhoria da autoestima e qualidade AE descrita juntamente com Atenção Básica no capítulo da AB.
2010-2013 de vida das pessoas. Oferta reduzida de profissionais no CEO, ausência do profissional
PMS Produtividade alcançada em 2009 considerada periodontista.
satisfatória com relação ao ano anterior. Doenças Queda no perfil da produtividade e distanciamento das metas propostas
bucais não foram apontadas como problema do por portaria do MS.
estado de saúde da população. 2010 Foi apontado que para cumprimento das metas seriam necessários:
Compromisso da gestão municipal em reorganizar aquisição regular de materiais de consumo, manutenção preventiva/
a rede assistencial de SB voltada para AB. Não corretiva dos equipamentos odontológicos, aquisição de equipamentos,
constam metas para Atenção Especializada. instrumentais e materiais para atividades educativas, contratação do
periodontista e aumento da carga horária dos outros profissionais,
Consta na diretriz estratégica de ‘fortalecimento programação de levantamento epidemiológico de SB no município.
da prestação de serviços públicos de saúde
2010-2013 através de uma gestão democrática e
PPA participativa’ a ação de funcionamento do CEO
com a finalidade de promover tratamentos
odontológicos de média e alta complexidade.

Ademais, percebeu-se uma visão do lhe restar outra opção e um Estado que ‘uni-
serviço público de saúde enquanto ‘SUS para lateralmente’ oferece condições mínimas
pobres’ (PAIM, 2009). No discurso do secretário para prestação do serviço e ameniza os
de saúde do município B, é citado um cidadão problemas de saúde para manter a reprodu-
que vai à procura do serviço público por não ção social. Permeou a fala dos odontólogos

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204 ROSSI, T. R. A.; CHAVES, S. C. L.

e Auxiliares de Saúde Bucal (ASBs) uma No município B, inicialmente, a área de SB


grande desmotivação pelo ‘descaso’ da ad- detinha boa governabilidade que não foi
ministração com o serviço. Muitos afirma- acumulada nos anos seguintes com a crise
ram que o serviço mantinha-se funcionando ‘financeira’ da gestão. A mesma gestão mu-
pelo apoio e esforço mútuo dos profissionais, nicipal responsável pela implementação do
que, a exemplo do endodontista, quando CEO foi reeleita e permanecia na adminis-
não existia lençol de borracha para efetuar tração municipal até o período do estudo.
os tratamentos endodônticos, utilizava uma Observou-se baixa governabilidade da
luva de procedimentos como seu substituto. coordenação SB/CEO quanto à administra-
Os profissionais referiram não participar das ção dos recursos financeiros, contratação
decisões relativas ao seu trabalho. de pessoal e compra de material. As evidên-
cias ratificam que a governabilidade de um
Às vezes dizem assim: ‘Não é Dr. X o coordena- sistema é menor se o ator tem baixa capa-
dor, a coordenadora é você, porque você resolve cidade de governo, sendo também muito
tudo! Você faz tudo’. Agora uma questão que in- influenciada pela fragilidade no projeto. O
comoda é a seguinte: ‘Você faz tudo, seu trabalho espaço apresentava sinais de deterioração,
é ótimo’, e não recebe salário suficiente por isso” sem perspectivas de reforma.
(Auxiliar de SB). “O problema maior é a falta
de condição de trabalho, porque estamos sem
nenhuma proteção, tomando a radiação toda. O Discussão
coordenador nunca nos procurou e nós não pro-
curamos o coordenador. É um cargo de fachada. O presente estudo revelou que, em ambos os
(CD Endodontista). municípios, o governo local desempenhou
papel fundamental na implementação de
Apesar de todos os governos buscarem uma política de saúde; achado semelhante
legitimação como propósito de permanên- ao de um estudo sobre a implementação da
cia no poder, a SB não se constituiu fonte PNSB em Salvador (BA) e estudos sobre a
de legitimação para a política local nesse gestão descentralizada no Brasil (SOARES; PAIM,
município, pois se constatou secundarização 2011; COELHO; PAIM, 2005).
desse segmento da saúde nos PMS e RAG, As primeiras etapas do ciclo da política
nas entrevistas e na observação participante. pública, ou seja, o processo de entrada na
Quanto à capacidade de governo e método, agenda e formulação (PINTO, 2008), mostraram
nenhum dos gestores da SB possuía formação relevância para o êxito ou não da implemen-
sanitarista nesse município. O coordenador tação. Assim, quando a entrada na agenda e
tinha um cargo de confiança comissionado formulação foi produto da ação política de
na gestão da saúde, e os profissionais de SB um grupo de atores, houve maior possibili-
eram concursados. dade de êxito na implementação.
As atividades do coordenador situavam-se Estudo aponta que a indução de políticas
principalmente no âmbito de resolução de e recursos federais, como a PNSB, é fator
problemas técnicos e funcionamento dos fundamental para que os governos locais
equipamentos odontológicos. O coordena- assumam o papel de provedores de serviços
dor SB/CEO interagia com mais frequência sociais universais no Brasil (SOUZA, 2004). No
com o secretário de saúde e com a ASB/ entanto, a autora questiona sua sustentabili-
recepcionista, que exercia efetivamente a dade e trajetória futura devido à capacidade
gerência do CEO, mas declarava não ser re- de governo desigual dos diferentes municí-
munerada pelas funções que exercia. Esse pios brasileiros.
gestor mostrou baixa capacidade de governo.

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Implementação da Atenção Especializada em Saúde Bucal em dois municípios na Bahia/Brasil 205

A capacidade de governo e método uti- para sua implementação constituíram-se


lizados pelo ator influenciaram a imple- aspectos favoráveis que podem ter influen-
mentação exitosa do CEO no município ciado no melhor desempenho de ações espe-
A. Constatou-se centralização de funções cíficas de SB (CHAVES; VIEIRA-DA-SILVA, 2007).
e sobrecarga de trabalho do coordenador A debilidade da organização no município
de SB/CEO, cargo exercido por apenas um B, a precariedade do método e um propó-
odontólogo em ambos os municípios. Estudo sito de governo de conservação, aliados às
que analisou a capacidade de governo em ausências de articulação das variáveis que
uma Secretaria Estadual de Saúde também compõem o triângulo de governo, parecem
abordou a sobrecarga da equipe e centra- ter influenciado o insucesso na implemen-
lização de funções como entraves à capa- tação. O método mantinha coerência com o
cidade de governo (SAMPAIO ET AL., 2011). Testa propósito de conservação, e a organização
(1992) aborda a necessidade de autocrítica do dos serviços de saúde mostrou-se um reflexo
método e que este deve seguir a teoria do da estrutura organizacional maior.
problema a ser resolvido. Nos municípios A governabilidade do sistema não é in-
estudados, a coordenadora do município A diferente à capacidade de governo nem às
utilizava instrumentos de gestão preconiza- profundidades das mudanças pretendidas
dos pelo MS, bem como existiam protocolos pelo projeto de governo (MATUS, 1996). Nesse
assistenciais que norteavam as práticas dos estudo, os dois atores apresentaram gover-
Cirurgiões Dentistas (CDs). No município B, nabilidade restrita mesmo com desfechos
o discurso contemplava, enquanto teoria, as distintos quanto à implementação do CEO.
diretrizes preconizadas pelo MS, entretanto Pode-se afirmar que a governabilidade foi
não se constatou a utilização de instrumen- ainda menor quando o ator possuía baixa
tos de operacionalização. capacidade de governo, sofrendo influên-
Esses achados corroboram um estudo que cias pela fragilidade no projeto de governo
analisou as características do gestor munici- que expressava ‘conservação’ ou legitimação
pal na implantação do SUS (CECILIO ET AL., 2007). (TESTA, 1992). Em uma outra perspectiva, em
O trabalho evidenciou uma baixa capacidade situações nas quais o propósito de governo
para formular, implementar e avaliar políti- visou crescimento, exigiu-se do ator maior
cas municipais de saúde. A grande rotativi- capacidade de governo onde a governabili-
dade de gestores municipais, composição dade esteve reduzida, como no município A.
limitada da equipe de governo, sobrecarga O propósito/projeto de governo e a capa-
de atividades e contexto político local com cidade de governo parecem ter sido as ca-
baixa governabilidade foram aspectos críti- tegorias mais relevantes que explicaram as
cos para a implementação de uma política de principais diferenças no momento da imple-
saúde (CECILIO ET AL., 2007). mentação da política nacional no nível local.
A construção do processo decisório, como Por fim, a presente investigação ratifica o
ocorrido no município A, esteve relacionada protagonismo do governo local para o êxito
ao êxito na implementação do serviço. No da implementação de políticas com formula-
município B, as decisões tomavam o caminho ção e indução do nível federal, como a PNSB.
clássico, no qual a hierarquia maior decidia e Aponta-se que, para o êxito das políticas
a hierarquia menor executava ou mandava públicas de saúde e o bom desempenho dos
executar (COELHO; PAIM, 2005). Outros autores serviços de saúde, a gestão exerce um papel
corroboram as evidências do presente estudo central. Nesse sentido, corrobora-se Paim et
ao apontarem que a existência de um projeto al. (2011) quando afirmam que o maior desafio
de reorganização das práticas de saúde, de para o Sistema Único de Saúde é político. s
capacidade de governo e governabilidade

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206 ROSSI, T. R. A.; CHAVES, S. C. L.

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 196-206, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 207

A contratualização como ferramenta da


gestão na Atenção Primária à Saúde na
percepção dos profissionais da Secretaria
Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil
Contracting as a management tool of Primary Health Care in the
perception of professionals of the Municipal Health Department of
Curitiba, Brazil

Rafael Gomes Ditterich1, Thabata Cristy Zermiani2, Simone Tetu Moysés3, Samuel Jorge Moysés4

RESUMO Objetivou-se analisar o uso da contratualização como ferramenta da gestão na


Atenção Primária à Saúde no município de Curitiba. A metodologia consistiu na análise dos
dados secundários, produzidos pelo Banco Mundial em pesquisa realizada em 2005, referen-
tes à gestão dos cuidados primários à saúde. A contratualização foi considerada importante na
organização do processo de trabalho, sendo útil para a identificação e solução de problemas,
para o estabelecimento de prioridades e de compromissos mútuos entre os profissionais, os
gestores e a população. No entanto, há ainda lacunas na efetivação da gestão pactuada e no
processo de negociação das metas.

PALAVRAS-CHAVE Contratos; Atenção Primária à Saúde; Gestão em saúde; Negociação.

ABTRACT This article aims to analyze the use of contracting as a tool for the management of
Primary Health Care in the county of Curitiba. The method used was the analysis of secondary
data, produced by the World Bank on research conducted in 2005, regarding the management of
primary health care. The contracting was considered important in the organization of the work
process, being useful for identifying and solving problems, to establishing priorities, and mutual
commitments between professionals, managers and the public. However, there are still gaps in
the fulfillment of the agreed management and in the process of negotiation of goals.
1 Universidade Federal do
Paraná (UFPR) – Curitiba KEYWORDS Contracts; Primary Health Care; Health management; Negotiation.
(PR), Brasil.
prof.rafaelgd@gmail.com

2 Universidade Federal do

Paraná (UFPR) – Curitiba


(PR), Brasil.
thabata.cristy@hotmail.com

3 Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-
PR) – Curitiba (PR), Brasil.
simone.moyses@pucpr.br

4 Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-
PR) – Curitiba (PR), Brasil.
s.moyses@pucpr.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005323 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 207-220, DEZ 2015
207
208 DITTERICH, R. G.; ZERMIANI, T. C.; MOYSÉS, S. T.; MOYSÉS, S. J.

Introdução qual é necessária a criação de mecanismos


formais de contratualização que abranjam
A contratualização em saúde é um tema todos os pontos da Rede de Atenção à Saúde
importante nas agendas de discussão em a fim de que se tenha uma gestão eficaz, efi-
âmbito nacional e internacional (DITTERICH; ciente e qualificada.
MOYSÉS; MOYSÉS, 2012). Vários países, tanto de Em estudos de Costa e Silva (2014) são
orientação bismarckiana como beverid- apresentados quatro dispositivos de contra-
giana adotaram diferentes processos de tualização no Brasil: o contrato interno esta-
contratualização a fim de propiciar maior belecido entre uma Secretaria Municipal de
efetividade dos cuidados à saúde e maior Saúde (SMS), unidades de saúde e equipes
eficiência no uso dos recursos. Como pertencentes à administração direta, com
exemplos, podem ser citados a Austrália, destaque ao município de Curitiba (PR),
o Canadá, a Espanha, o Reino Unido, a que o instituiu de forma inovadora em 2002,
Holanda, a Alemanha e a França (ESCOVAL; e Belo Horizonte, em 2011; o contrato de
RIBEIRO; MATOS, 2010). Portugal já propunha gestão entre a Fundação Estatal de Saúde
mudanças em seu processo organizacional da Família (Fesf-SUS) na Bahia, vinculado
e a negociação de metas desde 1996. No à administração indireta e os munícipios
entanto, foi a partir de 2005, com o projeto deste estado a ela associados; o contrato
de reconfiguração dos centros de saúde e de gestão estabelecido entre Secretarias de
implementação das unidades de saúde fa- Saúde e Organizações Sociais, como aqueles
miliares em Portugal que os mecanismos de implantados no estado de São Paulo e do
contratualização foram de fato instituídos Rio de Janeiro; e o contrato interno entre
(NEY; PIERANTONI; LAPÃO, 2015). munícipios e governo federal na esfera do
No Brasil, sobretudo após o ano de 1990, Programa Nacional de Melhoria do Acesso e
a implantação do Sistema Único de Saúde da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)
(SUS) impôs a busca por novas formas de instituído em 2011.
gestão em saúde. As instâncias deliberati- Em todas as situações discriminadas, o
vas/executivas passaram por um processo processo de contratualização tem por obje-
de descentralização e as decisões foram tivo propiciar melhorias na saúde da popu-
deslocadas para os níveis locais. Integrando lação, atendendo de forma efetiva as suas
o repertório dos mecanismos de gestão em necessidades; obter um controle sobre as
saúde, algumas cidades e estados no Brasil despesas de origem pública com a saúde,
implantaram o processo de contratualiza- alcançando maior eficiência na gestão dos
ção, o qual tem sido empregado tanto no recursos; coordenar as ações das partes en-
setor hospitalar como na atenção primária. volvidas, assegurando que os compromissos
Também tem sido uma ferramenta bastan- sejam cumpridos; além de disponibilizar in-
te utilizada nas parcerias com o terceiro formação aos cidadãos (BRASIL, 2010).
setor, como verificado entre as Organizações Nesse contexto, pode ser definida como
Sociais (OS) e o governo na gestão de di- um processo de relacionamento entre fi-
versos hospitais, sendo que, atualmente, nanciadores e prestadores, fundamentado
passaram também a ser celebrados com a ad- em uma filosofia contratual, em que há
ministração direta, nas pactuações internas uma clara ligação entre o financiamento
em secretarias e órgãos dos governos mu- atribuído e os resultados esperados. Esse
nicipais e estaduais (DITTERICH; MOYSÉS; MOYSÉS, processo se fundamenta na autonomia e
2012). Nesse sentido, ressalta-se o entendi- responsabilidade das partes e na existência
mento explicitado na Portaria nº 4.279, de 30 de um sistema de informação que possibi-
de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010), segundo o lite o planejamento e a avaliação de forma

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 207-220, DEZ 2015


A contratualização como ferramenta da gestão na Atenção Primária à Saúde na percepção dos profissionais da 209
Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil

eficaz, sendo objetos de contrato as metas e a capacitação insuficiente dos profissionais


de produção, acessibilidade, qualidade envolvidos (ESCOVAL, 2010).
e eficiência (FREITAS, 2002 APUD ESCOVAL, 2003). Freitas e Escoval (2010) apontam a neces-
Araújo (2010) ressalta que, para a efetiva- sidade de blindar o sistema à volatilidade
ção desse processo, devem ser estabeleci- do sistema político, uma vez que o ciclo de
das metas, que orientem a ação da gestão; vida político é efêmero para a produção
meios, que criem condições para o alcance de efeitos das reformas estruturais. Nesse
das metas; controle, permitindo o acom- sentido, esses contratos devem instituir me-
panhamento do processo e da alocação de canismos de participação social, propiciando
recursos e a avaliação da implantação das a transparência do processo e seu monitora-
ações; e os incentivos, que mobilizam o mento contínuo, desde o planejamento fun-
comportamento humano em direção aos damentado nas necessidades dos cidadãos
objetivos propostos. até o financiamento justo da atividade em
O documento assinado pelas partes que questão. Costa e Silva, Escoval e Hortale
viabiliza essa forma de atuação estatal pode (2014) afirmam ser necessária uma pactuação
receber várias denominações, como con- bilateral, permitindo que os grupos anterior-
tratos de gestão ou termos de compromis- mente considerados como objetos da ação
sos. Ressalta-se, ainda, que eles podem ser gerencial atuem como sujeitos de formula-
classificados como contratos endógenos ou ção de diretrizes.
exógenos. Os primeiros são aqueles em que Em Curitiba, no estado do Paraná, a
o ‘contratante’ e o ‘contratado’ são institui- partir do seu processo de municipaliza-
ções/entidades estatais, como os contratos ção, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS
que secretarias municipais de saúde esta- Curitiba) optou por redesenhar sua política
belecem com suas unidades de prestação de de saúde, bem como a gestão desta política,
serviços ou com unidades administrativas passando do controle vertical centralizado
desconcentradas (COSTA E SILVA, 2004). Por outro em instâncias superiores, para a gestão, mo-
lado, os contratos exógenos são aqueles em nitoramento e avaliação de resultados, com
que o ente contratante é uma instituição base em negociações políticas. A primeira e
estatal que se relaciona com entes prestado- principal tarefa realizada foi o planejamen-
res externos, como instituições públicas não to e a programação das ações de saúde, em
estatais, instituições privadas filantrópicas relações horizontalizadas entre população
ou lucrativas (MENDES, 2002). e equipe de saúde, em nível local, em um
Escoval, Ribeiro e Matos (2010), ao analisar processo ascendente para o nível distrital e
o processo de contratualização na Atenção nível central. Nesse processo de discussão, a
Primária à Saúde (APS) em diversos países, SMS criou o cargo de Autoridade Sanitária
constataram que se trata de um instrumento Local (ASL), como forma de melhor gerir a
necessário para o alcance de maior eficiên- atenção primária, sendo a ASL responsável
cia, acesso mais amplo aos serviços de saúde, pela coordenação e chefia da Unidade Básica
prestação de cuidados com maior qualidade, de Saúde (UBS) e da saúde da população na
com enfoque na prevenção e na promoção da sua área de abrangência (DUCCI, 2007).
saúde. Entretanto, ainda há algumas falhas, Em 2002, construiu-se a proposta de
entre elas, a falta de orientações claras e ade- desenvolvimento da contratualização na
quadas por parte do governo, a dificuldade atenção primária, tendo por objetivo o
em conciliar metas predefinidas ao orça- aumento da participação, negociação e
mento da saúde, a desarticulação entre orça- responsabilidade mútua entre os gesto-
mento e execução financeira, a falta de um res, as equipes de saúde e a comunidade.
programa de reestruturação organizacional Posteriormente, em 2003, essa proposta

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 207-220, DEZ 2015


210 DITTERICH, R. G.; ZERMIANI, T. C.; MOYSÉS, S. T.; MOYSÉS, S. J.

foi implantada em todas as UBS e Distritos e observem os seus resultados (AZEVEDO, 2009).
Sanitários. No período compreendido entre Existem metas pactuadas para o nível local
2002 e 2007, o aprimoramento deste ins- (unidades de Atenção Básica) e outras espe-
trumento de gestão, o qual foi denominado cíficas para os Distritos Sanitários.
Termo de Compromissos (Tercom), aliado A contratualização, além da assina-
ao sistema de remuneração variada e fer- tura do Tercom, contempla mecanis-
ramentas de planejamento, possibilitou a mos de monitoramento e avaliação e um
consolidação do sistema de avaliação par- sistema de incentivos, chamado Programa
ticipativa, voltado para resultados (AZEVEDO; de Incentivo ao Desenvolvimento da
FAORO; XAVIER, 2013). Qualidade (IDQ), propondo o pagamen-
O Tercom, além do aspecto administra- to de incentivos financeiros mensais, por
tivo, também traz um componente ético meio de gratificações sobre o salário-base,
e moral, uma vez que não dispõe de uma aos funcionários que apresentarem bons
base legal para a cobrança dos compromis- resultados em seu desempenho (DUCCI,
sos assumidos (MENDES, 2002). Esses Termos 2007). Esse programa encontra-se vincula-
de Compromissos, em âmbito municipal, do à busca de resultados por meio do de-
são firmados anualmente entre a equipe sempenho do indivíduo e da equipe, e sua
de saúde, o gestor da unidade de saúde e o aplicação sustenta-se em um sistema de
gestor distrital, culminando com o gestor avaliação articulado com os indicadores de
municipal, que deve responder à popula- resultados contratados na SMS por meio
ção em última instância. Neste momento, dos contratos de gestão. O IDQ é avaliado
verifica-se também a participação de re- trimestralmente por uma equipe de gestão
presentantes dos usuários, membros dos de recursos humanos da SMS Curitiba por
Conselhos Locais de Saúde. Têm como ele- meio de quatro planilhas: avaliação indi-
mentos constitutivos básicos os objetivos vidual do profissional da saúde (realizada
e metas fixados nos instrumentos básicos pela chefia), autoavaliação, avaliação da
de planejamento, como o Plano Municipal unidade de saúde e avaliação da comuni-
de Saúde, a Programação Anual de Saúde, dade (AZEVEDO; FAORO; XAVIER, 2013).
o Pacto pela Saúde, o Planejamento Local, A análise do processo de contratualização
entre outros, visando coordenar e garantir em nível local é de grande valia na medida
que estes compromissos sejam cumpridos em que é neste nível que ocorre a prestação
(AZEVEDO; FAORO; XAVIER, 2013). de serviços, bem como a pactuação e nego-
Ao assinar o Tercom, as unidades de saúde ciação das metas. A escolha do município
e os Distritos Sanitários formalizam a orga- de Curitiba para realização desta análise se
nização do processo de trabalho, buscando justifica pelo fato de ser uma das experiên-
identificar e resolver problemas, estabele- cias pioneiras no âmbito da administração
cendo prioridades e incentivando relações pública e da APS no Brasil, desenvolvida
intersetoriais com outras áreas da adminis- desde 2003, o que revela a maturidade desta
tração municipal (DUCCI, 2007). Um dos com- política. A importância deste tema é eviden-
ponentes do Tercom é o Plano Operativo ciada pela expansão dessa ferramenta de
Anual (POA), o qual consiste em uma plani- gestão, em suas diferentes modalidades, em
lha, composta por indicadores, metas pac- vários municípios e estados nas diferentes
tuadas para cada nível institucional, bem modalidades de gestão.
como fontes para monitoramento (AZEVEDO; Baseando-se nos argumentos apresentados,
FAORO; XAVIER, 2013). O POA possui 74 indicado- o presente artigo tem como objetivo analisar o
res, que são monitorados trimestralmente, uso do Tercom como ferramenta da gestão na
possibilitando que as equipes acompanhem APS no município de Curitiba, Brasil.

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A contratualização como ferramenta da gestão na Atenção Primária à Saúde na percepção dos profissionais da 211
Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil

Métodos Conselho Local de Saúde, à influência polí-


tica e ao IDQ. A pesquisa do Banco Mundial
Este estudo fundamentou-se na análise dos restringiu-se à avaliação das frequências das
dados secundários produzidos em 2005 pelo respostas sobre o ponto de vista do total de
Banco Mundial, o qual pesquisou inovações participantes, realizando somente a análise
em gestão no Brasil, incluindo a gestão hos- descritiva dos dados, sem considerar a análise
pitalar em São Paulo e a gestão dos cuidados mais detalhada dos diferentes atores envolvi-
primários à saúde no município de Curitiba. dos no processo.
No ano de 2006, o Banco Mundial publicou Este artigo faz parte de uma pesqui-
o relatório técnico ‘Brazil enhancing perfor- sa maior intitulada ‘A contratualização
mance in Brazil’s Health Sector: lessons from como ferramenta de gestão e organização
innovations in the state of São Paulo and the da Atenção Primária à Saúde: avanços,
city of Curitiba’, no qual apresentou os dados dificuldades e desafios’, desenvolvida em
e informações de forma geral e objetiva. 2011, a qual objetivou analisar a percepção
No entanto, a sua base de dados somente se dos trabalhadores da saúde no município
tornou pública após o período de cinco anos. de Curitiba, acerca do Tercom e do IDQ
A pesquisa do Banco Mundial realizou um como ferramentas da gestão e organização
levantamento da percepção dos servidores na APS no município. Para sua realização,
que atuavam em suas unidades de saúde sobre foi obtido termo de consentimento da
o uso e aplicabilidade do contrato interno de SMS para a cessão e uso da base de dados
gestão (Tercom). Ela foi enviada, por meio do secundários gerados com a pesquisa do
sistema de correio interno da SMS, para 372 Banco Mundial, citada anteriormente. O
funcionários elegíveis (nível superior) em protocolo de pesquisa apresentado como
uma amostra representativa de unidades de pré-requisito à execução deste trabalho foi
saúde do município. O total de participantes submetido à análise pelo Comitê de Ética
que responderam ao questionário foi de 254 em Pesquisa da Pontifícia Universidade
servidores (a taxa de resposta foi de 68%). As Católica do Paraná, tendo sido devida-
31 unidades participantes da amostra foram mente aprovado sob nº 5667 e parecer nº
escolhidas para fornecer uma representação 004066/10, em 30 de junho de 2010.
adequada de todos os Distritos de Saúde, Esta pesquisa utilizou a base de dados
bem como a distribuição por tipo de cargos e secundária produzida pelo Banco Mundial,
carreiras superiores constituintes da equipe realizando um trabalho prévio de filtragem
mínima da atenção primária no município e consistência dos dados, excluindo-se da
(ASL, médico, enfermeiro e cirurgião-dentis- análise as ASL e os profissionais que apresen-
ta), e da distribuição entre unidades básicas tavam menos de um ano atuando nas unida-
com Equipes de Saúde da Família e unidades des de saúde, ao tempo em que as entrevistas
básicas sem Equipes de Saúde da Família foram realizadas. Considerou-se o critério
(WORLD BANK, 2006). As questões do instru- de que para responder aos itens pesquisados
mento de coleta de dados de pesquisa foram os participantes deveriam já ter se apropria-
propostas, após discussão com a direção da do do sistema de avaliação do desempenho,
SMS, tendo em vista que o principal objetivo com um mínimo de tempo de serviço. Dessa
das entrevistas de campo seria compreender forma, entre os 254 servidores que responde-
se o sistema de gestão por resultados, com a ram ao questionário do Banco Mundial, foram
pactuação de metas, teria potencial para in- utilizadas nesta pesquisa as respostas de 196
fluenciar o desempenho institucional global. deles, entre os quais se tornaram elegíveis aos
O questionário foi composto de 29 questões critérios de inclusão: 25 ASL, 71 médicos, 30
de múltipla escolha referentes ao Tercom, ao enfermeiros e 70 cirurgiões-dentistas. Houve

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212 DITTERICH, R. G.; ZERMIANI, T. C.; MOYSÉS, S. T.; MOYSÉS, S. J.

pequena variação do número de participantes Resultados


(perdas amostrais) dependendo da pergunta
em análise, pois elas eram variáveis indepen- Ao analisar as respostas obtidas nos ques-
dentes, existindo a possibilidade de se abster tionários, observou-se na base dados secun-
de responder ao item. Das 29 questões aplica- dários que em algumas perguntas houve
das pelo Banco Mundial, na presente análise abstenções de poucos profissionais referen-
foram selecionadas 3 para este artigo referen- tes ao item avaliado, o que foi permitido na
tes ao uso do Tercom para a organização do pesquisa do Banco Mundial. Isso justifica a
processo de trabalho, para a identificação e diferença de respondentes nas distintas cate-
solução de problemas, para estabelecimento gorias avaliadas em cada uma das tabelas do
de prioridades e para a avaliação da negocia- trabalho (tabela 1 a 5), o que não compromete
ção sobre metas pactuadas. a análise, já que para cada pergunta foi rea-
Outro importante ponto de diferenciação lizada uma análise estatística. As perguntas,
entre os resultados apresentados no relatório apesar de avaliarem o Tercom, não eram vari-
do Banco Mundial e a presente pesquisa foi áveis dependentes.
a preocupação desta em avaliar a percepção A avaliação do Tercom enquanto ferramen-
das diferentes categorias profissionais sobre ta na organização do processo de trabalho nas
o Tercom. O recorte metodológico proposto unidades de saúde no município revelou que
buscou identificar a existência de diferenças este se constitui em um instrumento subs-
na percepção de cada categoria profissional tancialmente ou totalmente importante para
(médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas) a maioria dos profissionais, atingindo um
ante a percepção da ASL, sobre a utilização percentual próximo a 80% em cada categoria
das metas e indicadores pactuados na orga- profissional (tabela 1). Contudo, ao comparar
nização da APS em Curitiba. A análise dos as opiniões das ASL com a dos profissionais
dados foi realizada pelo software SPSS® for da equipe básica de saúde, constataram-se
Windows v. 13.0. O teste de U Mann-Whitnney, divergências na distribuição de respostas, já
com nível de significância de 5%, foi aplicado que os médicos (17,6%) e cirurgiões-dentistas
para verificar a diferença entre as opiniões (23,2%) apontam pouco ou parcial efeito
das ASL comparado com os outros cargos sobre a organização do processo de trabalho,
profissionais participantes sobre os contratos ao passo que este percentual foi de apenas
internos de gestão. 10% para os enfermeiros e de 0% para as ASL.

Tabela 1. Avaliação do Tercom como ferramenta na organização do processo de trabalho pelos diferentes profissionais participantes no município de
Curitiba (PR), 2005

Cargo O Tercom é útil para a organização do processo de trabalho Total Teste U Mann- Whitney
Minimamente Parcialmente Substancialmente Totalmente (p)

Autoridade
Sanitária 0 0 8 (32,0%) 17 (68,0%) 25 (100%) 0,006*
Médico 2 (2,9%) 10 (14,7%) 29 (42,7%) 27 (39,7%) 68 (100%)
Autoridade
Sanitária 0 0 8 (32,0%) 17 (68,0%) 25 (100%) 0,281
Enfermeiro 0 3 (10,0%) 10 (33,3%) 17 (56,7%) 30 (100%)
Autoridade
Sanitária 0 0 8 (32,0%) 17 (68,0%) 25 (100%) 0,024*
Cirurgião-dentista 2 (2,9%) 14 (20,3%) 20 (29,0%) 33 (47,8%) 69 (100%)
Fonte: Dados do World Bank (2006).
Nota: * Estatisticamente significante (p≤0,05).

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A contratualização como ferramenta da gestão na Atenção Primária à Saúde na percepção dos profissionais da 213
Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil

Ao analisar a utilidade do Tercom na identi- escolheu a opção totalmente útil para ambos os
ficação e solução dos problemas nas unidades aspectos, excetuando a categoria profissional
de saúde (tabela 2), os servidores participantes dos médicos, cuja percepção quanto à utilida-
sinalizaram que ele é uma ferramenta substan- de para a solução de problemas foi majoritaria-
cialmente ou totalmente útil para este aspecto, mente substancial. Também se constatou que
com um percentual que variou de 65% a 91% as ASL apresentam percepção mais positiva
para as diferentes categorias profissionais. nesses itens do que os profissionais que atuam
Percebeu-se que a maioria dos entrevistados na atenção à saúde.

Tabela 2. Avaliação do Tercom como ferramenta para a identificação e solução de problemas pelos diferentes profissionais participantes no município de
Curitiba (PR), 2005

Cargo O Tercom é útil para a identificação de problemas Total Teste U


Minimamente Parcialmente Substancialmente Totalmente Mann- Whitney
(p)
Autoridade
0 2 (8,3%) 7 (29,2%) 15 (62,5%) 24 (100%)
Sanitária 0,208
Médico 0 12 (17,9%) 22 (32,8%) 33 (49,3%) 67 (100%)
Autoridade
0 2 (8,3%) 7 (29,2%) 15 (62,5%) 24 (100%)
Sanitária 0,668
Enfermeiro 0 3 (10,0%) 10 (33,3%) 17 (56,7%) 30 (100%)
Autoridade
0 2 (8,3%) 7 (29,2%) 15 (62,5%) 24 (100%)
Sanitária 0,116
Cirurgião-dentista 4 (5,8%) 10 (14,5%) 23 (33,3%) 32 (46,4%) 69 (100%)
Cargo O Tercom é útil para a solução de problemas Total Teste U
Minimamente Parcialmente Substancialmente Totalmente Mann- Whitney
(p)

Autoridade
0 4 (16,7%) 8 (33,3%) 12 (50%) 24 (100%)
Sanitária 0,056
Médico 4 (6%) 13 (19,4%) 32 (47,8%) 18 (26,9%) 67 (100%)
Autoridade
0 4 (16,7%) 8 (33,3%) 12 (50,0%) 24 (100%)
Sanitária 0,939
Enfermeiro 0 4 (13,3%) 12 (40,0%) 14 (46,7%) 30 (100%)
Autoridade
0 4 (16,7%) 8 (33,3%) 12 (50,0%) 24 (100%)
Sanitária 0,151
Cirurgião-dentista 6 (8,6%) 18 (25,7%) 18 (25,7%) 28 (40,0%) 70 (100%)
Fonte: Dados do World Bank (2006).

A tabela 3 revela que a maioria dos pro- mais positivamente esta questão do que as
fissionais identificou ser o Tercom um ASL, ao considerar a ferramenta com 100%
instrumento bastante importante para o esta- substancialmente ou totalmente importante;
belecimento de prioridades, com percentuais sendo que, ao considerar apenas a classifica-
superiores a 80% para todas as categorias, ao ção totalmente, nota-se que as ASL obtiveram
considerar as classificações substancialmente um maior percentual (79,1%). Já os médicos
e totalmente. Todavia, ao analisar a percep- e cirurgiões-dentistas avaliaram mais nega-
ção discriminada entre os diferentes profis- tivamente esse item, sendo esta diferença de
sionais avaliados, os enfermeiros avaliaram posições estatisticamente significante.

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214 DITTERICH, R. G.; ZERMIANI, T. C.; MOYSÉS, S. T.; MOYSÉS, S. J.

Tabela 3. Avaliação do Tercom como ferramenta para o estabelecimento de prioridades pelos diferentes profissionais participantes no município de
Curitiba (PR), 2005

Cargo O Tercom é útil para o estabelecimento de prioridades Total Teste U


Minimamente Parcialmente Substancialmente Totalmente Mann-
Whitney
(p)
Autoridade
0 1 (4,2%) 4 (16,7%) 19 (79,1%) 24 (100%)
Sanitária 0,030*
Médico 2 (3,0%) 8 (12,1%) 20 (30,3%) 36 (54,6%) 66 (100%)
Autoridade
0 1 (4,2%) 4 (16,7%) 19 (79,1%) 24 (100%)
Sanitária 0,175
Enfermeiro 0 0 12 (40,0%) 18 (60,0%) 30 (100%)
Autoridade
0 1 (4,2%) 4 (16,7%) 19 (79,1%) 24 (100%)
Sanitária 0,016*
Cirurgião-dentista 0 11 (15,7%) 23 (32,9%) 36 (51,4%) 70 (100%)
Fonte: Dados do World Bank (2006).
Nota: * Estatisticamente significante (p≤0,05).

Relativamente ao processo de pactua- 13,8% dos enfermeiros e 11,6% dos cirur-


ção das metas do Tercom (tabela 4), mais giões-dentistas destacam a imposição de
de 50% dos respondentes de cada classe metas pela gestão municipal, sendo este
profissional consideraram haver uma ne- percentual de somente 4,2% entre as ASL.
gociação parcial das metas, já que o gestor Outro ponto a ser identificado, apesar do
do Distrito Sanitário impõe algumas metas número reduzido de servidores respon-
e renegocia outras. Entretanto, ao analisar dentes a esta questão, é que somente as
o percentual de profissionais que relatou a ASL e os médicos apontaram que a gestão
imposição de metas, pode-se perceber uma municipal sugere algumas metas ao invés
variação, sendo que 15,5% dos médicos, de impô-las.

Tabela 4. Avaliação do processo de negociação de metas no Tercom pelos diferentes profissionais participantes no município de Curitiba (PR), 2005

Cargo Sobre o processo de pactuação do Tercom com o Distrito Sanitário Total Teste U
Impõe metas Impõe metas e Negocia metas Sugere metas Mann- Whitney
negocia outras (p)

Autoridade 1 (4,2%) 13 (54,1%) 9 (37,5%) 1 (4,2%) 24 (100%) 0,069


Sanitária
Médico 11 (15,5%) 42 (59,2%) 16 (22,5%) 2 (2,8%) 71 (100%)
Autoridade 1 (4,2%) 13 (54,1%) 9 (37,5%) 1 (4,2%) 24 (100%) 0,234
Sanitária
Enfermeiro 4 (13,8%) 16 (55,2%) 9 (31,0%) 0 29 (100%)
Autoridade 1 (4,2%) 13 (54,1%) 9 (37,5%) 1 (4,2%) 24 (100%) 0,089
Sanitária
Cirurgião-dentista 8 (11,6%) 43 (62,3%) 18 (26,1%) 0 69 (100%)
Fonte: Dados do World Bank (2006).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 207-220, DEZ 2015


A contratualização como ferramenta da gestão na Atenção Primária à Saúde na percepção dos profissionais da 215
Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil

Na eventualidade de ocorrer a situação está aberto à renegociação; somente em


da equipe não cumprir as metas pactua- algumas situações permite-se justificar
das (tabela 5), percebeu-se que a maioria (e mudar) as metas pactuadas no Tercom.
dos profissionais concorda plenamente ou Esta diferença entre a opinião das ASL e a
parcialmente com a existência de abertu- dos outros profissionais é estatisticamente
ra do Distrito Sanitário à renegociação, significante, já que a distribuição das res-
atingindo um percentual variável entre postas é bem divergente, pois enquanto as
75% e 100% entre as categorias profissio- ASL apontam somente os itens ‘concordo
nais. Observou-se que as ASL obtiveram o parcialmente’ e ‘concordo plenamente’, os
maior percentual de plena concordância outros servidores apresentam distribuição
(72%), já os demais profissionais afirma- nos itens ‘discordo totalmente’, ‘discordo
ram que nem sempre o Distrito Sanitário parcialmente’ e ‘indiferente’.

Tabela 5. Avaliação no caso de não cumprimento das metas pactuadas pelos diferentes profissionais participantes do município de Curitiba (PR), 2005

No caso do não cumprimento das metas pactuadas, o Distrito Sanitário é aberto a negociá- Teste U
las Mann-
Discordo Discordo Concordo Concordo Whitney
Cargo totalmente parcialmente Indiferente parcialmente plenamente Total (p)
Autoridade
0 0 0 7 (28,0%) 18 (72,0%) 25 (100%)
Sanitária 0,002*
Médico 4 (5,8%) 1 (1,5%) 8 (11,6%) 29 (42,0%) 27 (39,1%) 69 (100%)
Autoridade
0 0 0 7 (28,0%) 18 (72,0%) 25 (100%)
Sanitária 0,008*
Enfermeiro 0 4 (13,8%) 3 (10,3%) 10 (34,5%) 12 (41,4%) 29 (100%)
Autoridade
0 0 0 7 (28,0%) 18 (72,0%) 25 (100%)
Sanitária 0,032*
Cirurgião-dentista 3 (4,5%) 2 (3,0%) 4 (6,1%) 24 (36,4%) 33 (50,0%) 66 (100%)
Fonte: Dados do World Bank (2006).
Nota: * Estatisticamente significante (p≤0,05).

Discussão a autoridade do especialista (conhecimento)


e a autoridade administrativa (hierarquia).
O contrato de gestão é um instrumento ge- Visa, discursivamente, o desenvolvimento de
rencial proposto, idealmente, para reduzir a fóruns de discussão ampliada, com ênfase no
distância entre a gestão estratégica e o centro trabalho em equipe (COSTA E SILVA, 2004).
operacional, isto é, entre o planejamento e a No entanto, para que isso ocorra, Fortuna
implementação das ações, conjugando, em et al. (2002) apontam que é necessário romper
um ambiente institucional ‘pacificado’ a ne- com a dicotomia na organização do processo
gociação e a adoção de compromissos pactu- de trabalho instituída em grande parte dos
ados. Assim, a contratação pode compensar a municípios, em que o gestor ou uma equipe
diferenciação entre o técnico e o administra- técnica é responsável pelo planejamento e
tivo e a diferenciação entre categorias profis- avaliação das ações e programas de saúde e
sionais, reduzindo tensionamentos gerados que os trabalhadores, na linha de frente nas
por subjetividades, expectativas ambíguas e UBS, são apenas responsabilizados pela exe-
conflitos de autoridade – por exemplo, entre cução, em uma delegação de tarefas muitas

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216 DITTERICH, R. G.; ZERMIANI, T. C.; MOYSÉS, S. T.; MOYSÉS, S. J.

vezes alienante. Os resultados deste estudo clínico, estratificação de risco, protocolos,


evidenciaram que ainda há imposição de perfil epidemiológico e gestão por resulta-
algumas metas no município de Curitiba. dos. Verificou-se melhoria dos indicadores
Ressalta-se, assim, a necessidade de haver locais, maior compromisso das equipes,
corresponsabilidade e compromisso entre melhor distribuição das atribuições, melhor
os trabalhadores e o nível diretivo, para que convivência, reforço das atitudes positivas,
sejam atingidas as finalidades da gestão por reconhecimento de objetivos comuns e o
resultados. As metas devem, portanto, ser incremento da ação multiprofissional (BRASIL,
pactuadas entre todos os atores envolvidos 2006). Azevedo, Faoro e Xavier (2013) constata-
e avaliadas periodicamente (DITTERICH; MOYSÉS; ram mudanças de postura entre os profissio-
MOYSÉS, 2012). nais, que passaram a ser ativos e orientados
Sobre o sistema gerencial de saúde em para a busca de resultados. Além disso, ob-
Curitiba, Mendes (2007) argumenta que este servou-se melhora no desempenho dos ser-
possui pontos fortes, pois é sustentado por viços e dos indicadores locais de saúde.
um planejamento estratégico; desenvolve- No entanto, apesar de os dados combi-
-se por meio de um plano tático que deriva nados para todas as categorias profissionais
de uma planilha de programação contida pesquisadas, mais as ASL, serem sugestivos
em cada protocolo clínico; a partir destas de avanços em algumas dimensões do pro-
planilhas fazem-se as programações anuais cesso de trabalho com repercussões sobre a
em cada unidade de saúde; estas progra- gestão/avaliação, a presente pesquisa identi-
mações geram um contrato de gestão entre ficou que algumas condições avaliadas sobre
a Secretaria e os profissionais; e estes con- o Tercom não foram unanimemente perce-
tratos podem gerar um sistema de incenti- bidas e respondidas. Tal fato pode ser veri-
vos para as equipes que cumprem as metas ficado ao analisar, por exemplo, a resposta
programadas. às questões sobre a utilidade do Tercom na
Uma avaliação preliminar com os servido- organização do processo de trabalho e no
res da saúde sobre o instrumento contratual estabelecimento de prioridades, uma vez
na gestão da APS em Curitiba concluiu que que a percepção dos médicos e cirurgiões-
o Tercom é útil para organizar os processos -dentistas divergiu da percepção das ASL e
de trabalho, identificar e resolver problemas, dos enfermeiros.
esclarecer objetivos e estabelecer priori- Azevedo (2009), reaplicando as mesmas
dades, entre outros benefícios (WORLD BANK, questões avaliadas pelo Banco Mundial, mas
2006; MENDES, 2007). Em consonância com tal incluindo as categorias profissionais de nível
avaliação, no presente estudo, embora tenha médio, também identificou diferenças entre
se observado uma variação nas respostas as respostas das ASL e as dos profissionais
entre as diferentes categorias profissionais, a de saúde de nível superior e de nível médio.
maioria dos respondentes também conside- A autora também constatou que as melhores
rou este instrumento útil para a organização percepções sempre foram identificadas pelas
do processo de trabalho, para a identificação ASL, seguidas pelos profissionais de nível su-
e solução de problemas e para o estabeleci- perior e os de nível médio, respectivamente.
mento de prioridades, Esses dados permitem algumas outras
A SMS de Curitiba, em documento publi- interrogações e o diálogo com a literatura,
cado pelo Ministério da Saúde, relatou que, pois, segundo Alves, Penna e Brito (2004),
com a implantação dessa ferramenta, foram o enfermeiro é o profissional de saúde
observadas mudanças nos processos de tra- que historicamente tem ocupado a grande
balho, gerência, planejamento e acompanha- maioria dos cargos de chefia/coordena-
mento de indicadores. Aprendeu-se manejo ção de unidades de saúde, uma vez que o

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 207-220, DEZ 2015


A contratualização como ferramenta da gestão na Atenção Primária à Saúde na percepção dos profissionais da 217
Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil

curso de graduação em enfermagem é um da atenção à saúde, e tendo que cumprir


dos poucos da área da saúde que possuem metas, processos e rotinas. Para Fortuna et
conteúdos/disciplinas curricularmente al. (2002), na grande maioria dos municípios
voltados para a formação em administra- brasileiros, os administradores das unidades
ção. Ainda assim, não consegue formar de saúde são indicados politicamente pelos
um gerente com as capacidades exigidas gestores municipais, sem permitir aos traba-
na contemporaneidade para enfrentar as lhadores da saúde a discussão e participação
novas demandas impostas pela adminis- no processo decisório da escolha da melhor
tração pública. Os autores consideram que, pessoa para assumir o cargo. Nota-se, assim,
entre os servidores da saúde, o enfermeiro, a necessidade de tornar mais claro o pro-
por ter essa formação diferenciada, acaba cesso de definição dos gestores, analisando
se destacando em seu posicionamento as competências de cada um, para que essa
no cumprimento de normas e no repasse escolha seja definida através do mérito.
de ideologias institucionais. Certamente, Um aspecto importante observado em
esses argumentos não são consensuais e algumas respostas neste estudo está relacio-
inquestionáveis, mas há de se considerar a nado à imposição de metas e à falta de nego-
hipótese de que os enfermeiros estão mais ciação por parte da gestão municipal. Ayala
habituados a processos administrativos em e Oliveira (2007), ao avaliarem as tensões
unidades de saúde, a rotinas e processos de entre os profissionais de saúde e gestores
normatização e regras na organização do no município de Joinville (SC), argumentam
processo de trabalho, além de apresentarem que, entre os vários problemas que conspi-
maior familiaridade na utilização de infor- ram contra a pactuação, destaca-se o fato
mações e indicadores de saúde no planeja- do gestor operar, muitas vezes, com base
mento local em saúde. em mecanismos impositivos para o alcance
Assim, é possível que enfermeiros e ASL de metas, em detrimento das condições dos
consigam perceber mais nitidamente uma trabalhadores, frequentemente operando
das principais finalidades do Tercom, que, acima dos seus limites, comprometendo a
segundo Azevedo (2009), visa ao aprimora- qualidade dos serviços ofertados e sendo
mento do planejamento e avaliação local, pouco resolutivos quanto às necessidades
na medida em que o monitoramento das dos usuários.
ações é permanente, melhorando a viabili- Nesse sentido, Araújo (2010) destaca a im-
dade técnica, política e financeira das ações portância da avaliação ex-post, que consiste
prestadas pela SMS à população de Curitiba. na comparação entre as metas estabeleci-
Isso pode ser percebido nas questões que das e as metas realizadas, para verificar os
analisaram se o Tercom é útil à identificação acertos e erros da tomada de decisão em
e solução de problemas, pois os profissio- um determinado momento, permitindo que
nais afirmam que ele tem grande poder de se planeje o futuro; e que o profissional de
identificação e substancial potencial para a saúde se aproprie das metas e indicadores
solução dos problemas. pactuados pela gestão, participando das de-
Observou-se uma visão mais positiva dos cisões e se sentindo corresponsável pela exe-
gestores, principalmente em relação à pac- cução das ações.
tuação de metas, quando comparados aos A fim de ampliar a responsabilização
servidores que atuam na linha de frente do sobre os resultados desejados, faz-se neces-
cuidado. Talvez em virtude de os profissio- sário aprimorar os mecanismos de controle e
nais serem a ‘face’ visível no cotidiano das monitoramento, definir precisamente os in-
relações institucionais com a população, dicadores e seus padrões no campo da assis-
experimentado as contradições e desafios tência e da gestão e capacitar os envolvidos

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218 DITTERICH, R. G.; ZERMIANI, T. C.; MOYSÉS, S. T.; MOYSÉS, S. J.

na elaboração do plano (DITTERICH; MOYSÉS; o Tercom, institucionalizou a ideia de que


MOYSÉS, 2012). Ney, Pierantoni e Lapão (2015) resultados prioritários devem ser pactuados
ressaltam alguns fatores que podem consti- e alcançados na gestão da atenção primária.
tuir pontos de fragilidade, como o processo Por meio de metas e objetivos preestabeleci-
de seleção dos indicadores de monitoramen- dos no contrato interno de gestão, os quais
to, os quais podem não privilegiar as necessi- são avaliados objetivamente e de forma con-
dades locais de saúde da população, podendo tínua, o município desenvolveu mecanismos
não representar melhoria de qualidade. e ferramentas que ressaltam a importância
Para Ditterich, Moysés e Moysés (2012), é da corresponsabilidade e da instituição de
necessária a análise do processo de trabalho compromissos mútuos entre os trabalhado-
sob o ponto de vista coletivo, e não apenas res da saúde em nível local, a gestão muni-
na singularidade da produção individual. cipal e a população. Iniciativas como essa
Talvez baseada nesses preceitos, a SMS de- reforçam a importância da presença dos ser-
monstrou preocupação com essa questão, vidores da saúde no processo de definição
pois as metas são consideradas coletivamen- de metas e objetivos institucionais, demons-
te, por unidade de saúde, o que demonstra trando ser uma maneira criativa e inovadora
um ganho em relação ao trabalho em equipe, para enfrentar e repensar os problemas na
pois é estimulado um dispositivo tal qual gestão em saúde pública.
um “efeito sentinela”, desencadeando uma Restam os desafios de se repensar a gestão
preocupação em rede na busca da produção por resultados de uma forma em que o pro-
do cuidado em saúde que foi pactuado (DUCCI, cesso de trabalho seja analisado sob o ponto
2007, P. 52). de vista coletivo, e não somente na singulari-
Em relação a algumas contradições per- dade da produção individual. Com base nos
cebidas nos resultados, será importante que resultados apresentados, há ainda lacunas
a gestão municipal reveja o eventual caráter importantes separando a enunciação discur-
impositivo de algumas metas e a forma siva da efetivação concreta da gestão pactu-
de renegociá-las, pois os trabalhadores da ada, sendo necessário que os profissionais
saúde acabam não compreendendo o porquê de saúde se apropriem de todas as etapas
de algumas metas não serem passíveis de re- de planejamento, elaboração, execução e
negociação. Para isso, faz-se necessário por avaliação das ações e programas pactuados
parte da SMS desvelar que muitos desses no Tercom. Também é importante que a
indicadores e metas são pactuados primei- pactuação de resultados seja um investi-
ramente em nível federal e estadual, antes mento humano permanente, não somente
mesmo de serem discutidos e acordados em respeitando parâmetros quantitativos e de
nível local. Quando os servidores da saúde produtividade, mas também observando
souberem o que a gestão espera deles e co- centralmente que a produção do cuidado em
nhecerem realmente os critérios que estão saúde exige a humanização do trabalho, a sa-
sendo pactuados, a SMS de Curitiba terá um tisfação dos usuários e a geração de impacto
sistema de gestão por resultados ainda mais socioepidemiológico.
eficaz e que tenha como objetivo principal a Estudos como este são relevantes na
qualidade de seus serviços de saúde. medida em que propiciam o reconhecimento
dos aspectos positivos e negativos desse ins-
trumento por aqueles que estão diretamente
Conclusão envolvidos com a atenção à saúde. A partir
desse reconhecimento, é possível adequá-lo,
A Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, corrigindo os seus aspectos falhos e amplian-
ao implantar mecanismos gerenciais, como do sua efetividade. Além disso, os resultados

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A contratualização como ferramenta da gestão na Atenção Primária à Saúde na percepção dos profissionais da 219
Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil

obtidos são úteis visto que permitem a tomada outros municípios que estão adotando os con-
de consciência de tais aspectos também por tratos de gestão de forma mais recente. s

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Recebido para publicação em maio de 2015
Versão final em outubro de 2015
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 207-220, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 221

Núcleo de Apoio à Saúde da Família:


potencialidades como dispositivo de
mudança na Atenção Básica em saúde
Family Health Support Nucleus: potentials as change device in
Primary Health Care

Paula Roberta Rozada Volponi1, Mara Lúcia Garanhani2, Brigida Gimenez Carvalho3

RESUMO O artigo analisa a potencialidade do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf ) para
constituir-se em dispositivo de mudança nas práticas de cuidado e nos modos de atuação de
uma equipe gestora da Atenção Básica. Estudo de abordagem qualitativa, de caráter compre-
ensivo, realizado junto aos gestores da Diretoria de Atenção Primária à Saúde de município de
grande porte do Paraná, no período de setembro/2012 a abril/2013, por meio de observação e
entrevistas. Os resultados revelaram predominância do objetivo estratégico do Nasf enquanto
dispositivo, que a gestão colegiada se mostrou um arranjo potente para a gestão e, por fim, que
a implantação do Nasf pode ser compreendida como uma ação que potencializa a produção de
mudanças na Atenção Básica.

PALAVRAS-CHAVE Gestão em saúde; Atenção Primária à Saúde; Saúde da família.

ABSTRACT The article analyzes the potentiality of the Family Health Support Nucleus to esta-
blish itself as changing device in primary care practices and in the performance ways of a primary
care management team. It’s a qualitative approach study, of sympathetic character, performed
with the Primary Health Care Board managers of a large size municipality of the Paraná State,
from September/2012 to April/2013. The results revealed predominance of the Family Health
Support Nucleus’s strategic objective while a device, that the collegiate management showed
as a powerful arrangement for the management and, finally, that the Family Health Support
Nucleus implementation can be understood as an action that enhances the production of changes
in Primary Care.

1 Universidade
KEYWORDS Health management; Primary Health Care; Family health.
Estadual de
Londrina (UEL) – Londrina
(PR), Brasil.
prvolponi@hotmail.com

2 Universidade Estadual
de Londrina (UEL) –
Londrina (PR), Brasil.
maragara@hotmail.com

3 Universidade Estadual
de Londrina (UEL) –
Londrina (PR), Brasil.
brigidagimenez@gmail.com

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005418 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 221-231, DEZ 2015
221
222 VOLPONI, P. R. R.; GARANHANI, M. L.; CARVALHO, B. G..

Introdução de mudanças capazes de mobilizar e im-


pactar as práticas hegemônicas em saúde,
No contexto atual da produção do cuidado imersas em um cenário de desvalorização
no Brasil, permanece a necessidade de busca dos serviços públicos e de precarização
por mudanças substantivas na dinâmica das condições de trabalho, mergulhado em
das organizações de saúde, em especial, nos sentimentos de impotência, de descrença,
modos de produção do cuidado. de impossibilidade de mudança, de apatia e
Contudo, não estamos nos referindo a conformismo (AZEVEDO, 2010).
qualquer mudança, e sim à construção de Para Onocko Campos (2003), tais disposi-
um processo de fortalecimento da dimensão tivos buscam subverter as linhas de poder
pública e social das organizações de saúde, instituídas. Como exemplo de dispositivos,
que expressa a defesa da saúde como um podem ser citadas oficinas de planejamento,
direito do cidadão e dever do Estado. Essas cursos/treinamentos/formação, análise/su-
mudanças possibilitariam novas formas de pervisão institucional, assembleias etc. Estes
organização dos serviços e renovação dos dispositivos devem estabelecer um padrão de
processos de gestão, proporcionando a de- relacionamento que propicie outras formas
mocratização das instituições, com maior de experimentação da grupalidade, que não
participação dos agentes e melhoria em seus seja a de relação do outro como ameaça,
resultados (AZEVEDO, 2010). como depositário de tudo que é ruim.
Para alcançar os objetivos desta mudança, Além dos dispositivos, Onoko Campos
permitindo a construção e a disponibiliza- (2003) distingue os arranjos como forma de
ção de uma caixa de ferramentas para os instalar espaços na organização. Estes têm
gestores, é necessário viabilizar, propiciar e certa estruturação e permanência. Assim,
experimentar determinados arranjos insti- podem ser institucionalizados, para que
tucionais que sejam facilitadores de novos possam operar com potencialidade, em
processos de comunicação e coordenação fluxos contínuos contrários à produção
no âmbito das instituições (CECÍLIO; MERHY, 2003). baseada no controle. Apresenta como ar-
Tais arranjos devem permitir, ao mesmo ranjos: o colegiado de gestão, que impõe
tempo, a incorporação da inteligência já pro- uma mudança estrutural nas linhas de
duzida e a de novos saberes, possibilitando mando, eliminando gerências, coordena-
uma atuação competente em relação aos pro- ções ou direções especializadas, como um
cessos de produção, que sempre emergem espaço de deliberação e discussão clínica; o
em fluxos de grande incerteza. apoio matricial, como um suporte especia-
Tais mudanças exigidas e impressas lizado, desvinculado da linha de mando; e a
nos processos de trabalho também geram Equipe de Saúde da Família (EqSF), equipe
novas exigências para os trabalhadores, de referência que se corresponsabiliza pelo
uma vez que abalam as formas tradicionais usuário, criando vínculo, com a prerrogati-
do exercício de funções, papéis, responsa- va de coordenar o cuidado.
bilidades e desempenhos, assim como as Inseridas nesta discussão, há reflexões que
formas de interação. Tais mudanças acar- apontam que o caminho para a mudança está
retam a necessidade de adequações nos pautado em uma tarefa do conjunto dos tra-
processos, nas condições de trabalho e, so- balhadores de saúde, no sentido de modificar
bretudo, na busca por novos conhecimen- o cotidiano do seu modo de operar o traba-
tos, habilidades e métodos de atuação em lho no interior dos serviços de saúde (MERHY,
equipe (SANTOS-FILHO; BARROS, 2009). 2013), e em novos modos de gestão em saúde
Para se consolidar as mudanças pre- (ARAÚJO; PONTES, 2012). Tais mudanças devem
tendidas, devem-se buscar dispositivos ter capacidade de construir novos pactos de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 221-231, DEZ 2015


Núcleo de Apoio à Saúde da Família: potencialidades como dispositivo de mudança na Atenção Básica em saúde 223

convivência e novas práticas, aproximando concretos para uma mudança nos modos de
os serviços dos conceitos de atenção integral, produção do cuidado e na gestão em saúde
humanizada, de qualidade, e equânime, e dos devem ser gerados, emerge a indagação: O
demais marcos dos processos de reforma do Nasf tem potencialidade para se constituir
sistema de saúde brasileiro (CECCIM, 2005). enquanto dispositivo de mudança nas práti-
Nessa perspectiva, o governo brasileiro, cas de cuidado e de gestão?
desde a década de 1990, vem tomando inicia- Diante do exposto, o presente trabalho
tivas para reorientar o modelo de atenção à busca analisar essa possibilidade, a partir das
saúde a partir da Atenção Básica (AB), com ações desenvolvidas por uma equipe gestora
a Estratégia Saúde da Família (ESF). Esta da AB, de um município de grande porte.
estratégia deve estar inserida em um con-
texto de gestão democrática e participativa,
pautado no trabalho em equipe, direcionado Método
às populações de territórios definidos, utili-
zando tecnologias de cuidado complexas, a Tratou-se de um estudo com uma abordagem
fim de manejar as demandas e necessidades qualitativa, de caráter compreensivo e inter-
de saúde de forma eficiente (BRASIL, 2012). pretativo. É um recorte da dissertação de mes-
Dentro deste contexto, os Núcleos de Apoio trado intitulada ‘Implantação dos Núcleos de
à Saúde da Família (Nasf ) foram instituídos apoio à saúde da família: atuação da equipe
pelo Ministério da Saúde em 2008 (BRASIL, gestora da atenção’, realizado em um municí-
2008), com a intencionalidade de se alcançar a pio de grande porte do sul do Brasil.
integralidade do cuidado e a interdisciplinari- Foram incluídos no estudo, profissionais
dade das ações em saúde, de maneira a apoiar integrantes da equipe gestora municipal,
e complementar o trabalho da ESF. que, na época da coleta de dados, exerciam
É neste sentido que o Nasf, inspirado no cargos oficiais na Diretoria de Atenção
apoio Paidéia – metodologia que busca re- Primária à Saúde (Daps), e profissionais do
formular os tradicionais mecanismos de Nasf. Esta equipe é formada pela diretoria de
gestão, voltada à formação de pessoas com AB, assessorias técnicas, gerências regionais
capacidades ampliadas para analisar e inter- de Unidades Básicas de Saúde (UBS), gerên-
vir sobre as relações sociais (CAMPOS; CUNHA; cias de programas especiais, coordenadorias
FIGUEREDO, 2013), constitui-se em proposta es- dos ciclos de vida e coordenadores de UBS.
tratégica para auxiliar na mudança das práti- O período de coleta de dados compreen-
cas. Tem a perspectiva de atuação em gestão deu os meses de setembro a dezembro de
colegiada e criação de vínculos para que, de 2012, final da gestão municipal 2009-2012, e
maneira prática, seja possível combinar au- os meses de fevereiro a abril de 2013, início
tonomia e responsabilidade. da gestão 2013-2016.
O Nasf é composto por profissionais de di- Os instrumentos metodológicos esco-
ferentes áreas do conhecimento. Tem atuação lhidos foram: observação participante e
pautada no trabalho em equipe, com a função entrevista semiestruturada. Entre entre-
principal de apoiar a EqSF, aumentando sua vistados e participantes, nos momentos
resolubilidade (CUNHA; CAMPOS, 2011). Enquanto observados, a pesquisa contou com o en-
apoiador matricial das equipes de referência, volvimento de 58 pessoas. Entre elas, 48
também é visto com potencialidade para se exerciam cargos de gestores formais (15
tornar um dispositivo da gestão, para fomentar eram da diretoria da AB e 31, coordena-
a rede de serviços em saúde (SAMPAIO ET AL., 2012). dores de UBS) e 12 eram profissionais do
Desta forma, com base na ideia de Nasf (membros do colegiado gestor e par-
que alguns dispositivos potencialmente ticipantes de reuniões presenciadas).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 221-231, DEZ 2015


224 VOLPONI, P. R. R.; GARANHANI, M. L.; CARVALHO, B. G..

A observação, registrada em diário de da ESF e Nasf, pois o cargo estava vago no


campo, foi realizada no ambiente de trabalho momento da pesquisa.
dos diferentes atores da pesquisa, de modo a As entrevistas estão identificadas pela
permitir maior interação entre pesquisador e letra G, acompanhadas de um símbolo numé-
participantes. Foram 98 horas de observação rico, de 1 a 15, e escolhidas aleatoriamente.
de reuniões e atividades do cotidiano, distri- Na primeira fase da análise, foram reali-
buídas nos 5 meses de coleta de dados. Em zados procedimentos de leitura flutuante,
relação aos encontros, observaram-se, princi- com exploração do material transcrito, a fim
palmente, as reuniões semanais dos gestores de conhecer o texto e se deixar invadir por
da Daps (40h), os grupos de trabalho e pre- impressões e orientações. A fase de explora-
paração de oficinas (8h), as reuniões mensais ção do material consistiu na administração
da equipe da Daps com as coordenadoras de sistemática das decisões tomadas na fase an-
UBS (8h), reunião de gestores com os Nasf terior, na qual realizamos leitura aprofunda-
(4h), reuniões do colegiado gestor (8h) e as da de cada entrevista, seguida da produção
reuniões das gerentes regionais com as coor- de análise individual das mesmas, e de uma
denadoras de UBS e com o Nasf (20h). síntese. Após a conclusão das 15 sínteses, os
As entrevistas individuais, entre o pesqui- resultados foram agrupados em dois espaços
sador (entrevistador) e os gestores (entre- de gestão: os gestores formais alocados na
vistados), foram realizadas entre os meses Daps (diretores, assessores e gerentes) e
de fevereiro e abril de 2013; gravadas e, pos- os alocados nas UBS (coordenadores). Na
teriormente, transcritas, com a autorização última fase, com os resultados significativos,
dos participantes. Nessa fase, também foram foram propostas inferências e realizaram-
registradas informações em diário de campo, -se interpretações com base nos objetivos
relacionadas a expressões e atitudes dos en- traçados. O diário de campo foi utilizado
trevistados ou a outros aspectos considera- como suporte para a construção da análise
dos relevantes. A entrevista foi guiada por e interpretação das entrevistas. Ao longo do
um roteiro que abordou a caracterização dos trabalho, os trechos oriundos dessa fonte de
entrevistados e as ações desenvolvidas no pesquisa estão identificados com as letras
processo de implantação do Nasf. Tomou-se DC, seguidas das datas do registro.
o cuidado de utilizar um ambiente confortá- O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo
vel e silencioso, com menores possibilidades Comitê de Ética em Pesquisa da instituição
de interferências e interrupções externas. em que estão inseridos os pesquisadores, ca-
Buscou-se a criação de um clima favorável, dastrada com Certificado de Apresentação
que deixasse o entrevistado à vontade para para Apreciação Ética (CAAE) nº
responder aos questionamentos. 06127012.7.0000.5231, aprovada sob Parecer
Foram entrevistados 15 gestores. Entre nº 93.228. Também foi autorizado pela
os entrevistados, 11 estavam ligados ao nível Secretaria de Saúde do município pesquisado.
central da Daps: a diretoria (1), todas as ge-
rências regionais (6), as assessorias técnicas
(2), a gerência de programas especiais (1) e Resultados e discussão
a coordenação do ciclo de saúde da criança
e aleitamento materno (1). Foram entre- Os 15 profissionais entrevistados eram todos
vistadas também quatro coordenadoras enfermeiros e contratados sob o regime es-
de UBS da região da qual a equipe gestora tatutário. Houve predominância do sexo
apontou o Nasf que desenvolvia, com maior feminino (14); tempo de atuação superior a
eficiência, o trabalho relacionado ao apoio 2 anos, com variação até superior a 15 anos.
matricial. Não se entrevistou o coordenador Apresentavam, em sua maioria, experiência

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Núcleo de Apoio à Saúde da Família: potencialidades como dispositivo de mudança na Atenção Básica em saúde 225

em cargos de coordenação de UBS (13), ge- democrática e participativa, o que gerou di-
rências regionais (8) e assessoria técnica de ferentes posicionamentos a esse respeito.
enfermagem (5). Todos tinham formação Esses resultados estão em consonância
complementar: em saúde da família (8), saúde com o conceito de Nasf apresentado por
coletiva (6) e educação profissional (7). alguns autores: como um dispositivo ino-
Os resultados estão apresentados em duas vador, capaz de potencializar as ações das
categorias: (1) Nasf: dispositivo de mudança equipes da ESF e de confrontar desafios a
e (2) Colegiado gestor: um arranjo com po- serem enfrentados na AB (SILVA ET AL., 2012).
tencialidades para a mudança. Assim, se constitui em dispositivo funda-
mental para assegurar integralidade ao
cuidado e resolutividade à AB, especialmen-
Nasf: dispositivo de te, por intervir na cultura dos encaminha-
mudança mentos. Possibilita, concomitantemente,
promover uma discussão sobre a formação
A investigação possibilitou apreender que o dos profissionais em saúde.
Nasf foi assumido como uma estratégia ino- Os gestores visualizaram avanços com a
vadora (G1, G3, G7, G9), com potencialidades chegada do Nasf. Houve referência de que
criadoras de novas práticas no cotidiano dos muitos dos programas que não existiam no
serviços (G1, G2). Tais práticas foram apon- município, agora existem por mérito do Nasf
tadas como possíveis contribuições para a (G2). Para eles, houve uma ampliação do
efetivação das desejadas mudanças no traba- olhar para a produção do cuidado (G2, G3)
lho em saúde e na produção do cuidado. e um aumento no cardápio de ações ofere-
O processo de trabalho do Nasf foi orien- cidas pela UBS (G5, G13) aos seus usuários,
tado pelas diretrizes do Ministério da Saúde relacionadas à atenção aos ciclos de vida
(G1, G2, G5, G9), com adaptações às neces- anteriormente pouco assistidos; aos novos
sidades do município (G2, G4, G8). Assim, grupos terapêuticos; ao desenvolvimento
o trabalho foi organizado com base no com- do apoio matricial; e à ampliação de ações
partilhamento e no apoio às práticas em de prevenção e promoção. Houve também
saúde, em especial, no reforço às seguintes relatos sobre o impacto nas doenças crônicas
diretrizes: a ação interdisciplinar e interse- (G2, G14) e na melhoria da qualidade de vida
torial; a educação permanente em saúde; a da população assistida (G1, G12), com des-
educação popular; o território; a integralida- taque para a atuação de dois profissionais,
de; o controle social; a promoção da saúde; o nutricionista e o profissional de educação
e a humanização. As equipes têm orienta- física. Entre as novas atividades realizadas,
ção para priorizar nove áreas estratégicas: citou-se o trabalho com a obesidade infantil,
atividade física/práticas corporais; práticas a depressão, grupos de coluna, caminhadas e
integrativas e complementares; reabilita- atividades com idosos (G2).
ção; alimentação e nutrição; saúde mental;
serviço social; saúde da criança/adolescente [...] já vi avanços nesse último ano, porque nós
e do jovem; saúde da mulher; e assistência trabalhamos a questão do matriciamento [...]
farmacêutica (BRASIL, 2010). Nós observamos também o grande trabalho do
O trabalho desenvolvido pelos profis- Nasf junto à população com ações de prevenção
sionais do Nasf possibilitou o repensar dos e promoção à saúde, com impacto nas doenças
gestores sobre a produção de trabalhadores crônicas e melhora na qualidade de vida da po-
sujeitos, autônomos e protagonistas, além pulação. Especificamente, observo o nutricionista
do fortalecimento de vínculos e a coparti- fazendo isso muito claramente, o educador físi-
cipação e corresponsabilização na gestão co com essa possibilidade de promover saúde a

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grupo de idosos, de gestantes, crianças com obe- de seus objetivos, ou seja, para a integrali-
sidade [...]. (G1). dade da produção do cuidado e a interdis-
ciplinaridade, foram criados novos padrões
Desta forma, as ações praticadas citadas de relacionamento, que propiciaram outras
se relacionam com os principais desafios do formas de experimentação de grupalidade.
Nasf, no que se refere a melhorar a qualida- Eles provocaram certos incômodos no modo
de do serviço ofertado e não apenas suprir a de se operar no interior dos serviços, produ-
demanda assistencial (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2010). ziram reflexões das práticas, estabeleceram
Em relação aos avanços no processo de novas parcerias.
construção para a integralidade do cuidado, Deve-se entender que um dispositivo de
foi citado um caso que envolveu uma situação mudança tem dois momentos essenciais: o da
de luto, em que a atuação dos profissionais do predominância de um objetivo estratégico; e o
Nasf junto à equipe desencadeou uma refle- da produção de efeitos positivos, negativos ou
xão sobre o processo de trabalho. Essa refle- indesejados, por meio de uma relação de res-
xão contribuiu para que fossem vislumbradas sonância e de contradição, que exige rearticu-
novas possibilidades de atuação dos profissio- lações e reajustes de elementos que surgem, de
nais, com vistas à integralidade do cuidado. forma dispersa, em um processo contínuo de
preenchimento estratégico (FOUCAULT, 2006).
Uma coisa que para mim marcou, foi a questão do Enquanto dispositivo de mudança, apre-
luto. É muito comum, na unidade de saúde, se che- sentou maiores avanços em um dos dois
gar alguém passando mal, alguém já vai pedindo momentos essenciais a essa condição, o
para ver a pressão e sai falando: morreu marido da momento da predominância do objetivo
fulana e ela está passando mal. E aí, vem uma psi- estratégico. Isso se deu principalmente na
cóloga e diz para mim: ‘É normal, ela está nervosa, institucionalização de alguns espaços, como
ela tem que chorar, faz parte do luto’[...] Para nós, as reuniões de matriciamento, nos momen-
não. Já dá o remédio, já vê pressão, já vê consulta tos de reuniões com a EqSF e nos encontros
com cardiologista [...] e não entende a questão formais com os gestores. Podem se relacio-
toda que permeia aquela hipertensão. (G2). nar a esse momento algumas contribuições:
a deflagração do uso do apoio matricial; a
Foi referido que a construção do processo instituição de arranjos para a reorganização
de trabalho do Nasf acontece no cotidiano do das relações de poder e para a configuração
serviço, por erros e acertos, apoiada em ava- de espaços mais democráticos e participati-
liações realizadas, coletivamente, por repre- vos (com análise, negociação e intervenção);
sentantes da gestão da Daps, da gestão local e avaliações das práticas cotidianas.
e dos profissionais do Nasf. Em relação ao segundo momento de um
dispositivo – o da produção de efeitos posi-
É com a experiência mesmo do dia a dia. A gen- tivos, negativos e indesejados –, percebeu-se
te vai fazendo, vê o que dá certo, o que não dá, que algumas ações e concepções relaciona-
faz avaliações. Então, normalmente, a gente faz das ao trabalho do Nasf encontraram resso-
avaliações regionais [...] com o Nasf para avaliar nância entre os gestores e foram capazes de
como estão as atividades, como estão se desen- produzir efeitos positivos. Como exemplo
volvendo, o que pode mudar, o que pode melho- disso, podemos citar: a ampliação do olhar
rar, o que tem que acrescentar. (G15). para a produção do cuidado; o aumento no
cardápio de ações oferecidas pela UBS aos
A partir dos resultados, inferimos que o seus usuários; a construção para a integrali-
Nasf se caracterizou como um dispositivo de dade do cuidado; e a ampliação de ações para
mudança, uma vez que, para a concretização a promoção da saúde e para a diminuição do

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Núcleo de Apoio à Saúde da Família: potencialidades como dispositivo de mudança na Atenção Básica em saúde 227

impacto de doenças crônicas, como estraté- profissional, embasados em uma visão de


gia para a melhoria da qualidade de vida dos apoio e retaguarda assistencial especializada.
usuários. Quando não houve ressonância,
foram produzidos efeitos indesejados e, até [...] Cada categoria sempre tem alguém que se des-
mesmo, negativos, como a demonstração taca, tem mais iniciativa, é pró-ativo. Então, a gente
de indiferença por parte de alguns gestores chamou esses que se destacavam de cada categoria:
quanto à relevância do trabalho do Nasf. farmacêutico, psicólogo, nutricionista, fisioterapeuta
Desse modo, o Nasf foi se transformando e educador físico. Fizemos uma reunião e montamos
em uma produção viva em ato, permeado por o colegiado, e demos carta branca. ‘Vocês vão ajudar
disputas de poder, desejos e necessidades. a gente a direcionar o trabalho do Nasf’. Criaram-se
fóruns de discussões. Eles começaram a produzir o
protocolo. Criaram-se fóruns locais e reuniões men-
Colegiado gestor: sais de Nasf, com, pelo menos, uma enfermeira da
um arranjo com unidade. E tem os fóruns regionais. (G2).

potencialidades para a Os gestores apontaram o colegiado como


mudança algo inovador (G1, G5), uma alternativa ao modo
de gerir o trabalho do Nasf e, também, como
Observamos que a formação do colegiado uma forma de disseminar as decisões tomadas
gestor do Nasf foi impulsionada pela difi- no coletivo e aproximar-se da gestão central
culdade no processo de gestão do trabalho (G4). Aos olhos do gestor, sua atuação na gestão
do próprio Nasf. O espaço falho no organo- se aproxima à dos gerentes regionais no que se
grama da diretoria – expresso pela falta do refere à deliberação, ao poder de decidir.
coordenador do Nasf – somado à postura
passiva de alguns coordenadores de UBS A gente criou um grupo gestor, acredito ser algo ino-
em relação à definição de direcionamentos vador. Não sei se, no Brasil, tem ou não tem [...] Cada
para as ações e atividades a serem desempe- categoria tem um representante [...] para discutir
nhadas pelo Nasf e a resistência destes co- um pouco mais aprofundado as políticas de saúde,
ordenadores em assumir a gestão, resultou [...] as políticas específicas do Nasf, para a gente
nesse arranjo. “[...] A gente tem, no organo- disseminar melhor pelos grupos. Porque são 50 pro-
grama aqui da prefeitura, um coordenador fissionais [...] O grupo gestor, ele já faz um trabalho
de saúde da família e do Nasf. Só que, até como gerente, como um coordenador regional. Essa
hoje, não conseguiu alocar ninguém. Por era uma ideia nossa, a princípio [...]. (G1).
questões inúmeras” (G2).
O colegiado se formou pela indicação de O colegiado do Nasf foi visto por alguns
um componente de cada categoria profissio- gestores como um arranjo com potenciali-
nal do Nasf, todos embasados em critérios e dade para buscar alternativas frente à per-
características individuais de pró-atividade e manência de práticas hegemônicas pelos
habilidades para discutir e direcionar o traba- novos profissionais, e para revelar interesses
lho. Os participantes se reúnem em fóruns de em disputas nas UBS, como, por exemplo,
discussão, que, inicialmente, proporcionam o o desejo de que o Nasf realizasse o apoio e
debate de políticas públicas, em especial, das o trabalho compartilhado em equipe com a
relacionadas ao Nasf. Esse modo de operar ESF (G7, G9); ou o desejo do atendimento
contribui para as discussões das funções a clínico especializado à demanda (G12, G13).
serem desempenhadas pelos profissionais No entanto, observamos que o colegia-
e favorece a formulação de protocolos de do também vem se constituindo em espaço
assistência, direcionados a cada categoria que propicia: o controle das atividades

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228 VOLPONI, P. R. R.; GARANHANI, M. L.; CARVALHO, B. G..

desenvolvidas nas UBS; a disseminação, entre a serem utilizadas nos grupos, com a padroni-
equipes e categorias profissionais, de informa- zação, e lhes é explicado que o objetivo é criar
ções sobre as decisões dos gestores; e a elabora- linha-guia, conduzir o caminho e direcionar os
ção de ‘receitas’ sobre como construir o trabalho novos profissionais, evitando prolongar a discus-
do Nasf, em um movimento de criação de linhas são. (DC 13/03/2013).
de conduta e estruturação do trabalho. Desta
forma, o espaço do colegiado possibilita, ao re- Constatamos, também, que o colegiado
presentante do nível central da gestão, imprimir foi criado para auxiliar os gestores da Daps
um forte direcionamento às atividades a serem de forma mais consultiva, possibilitando a
desenvolvidas pelo Nasf. O trecho do diário de expressão das opiniões dos profissionais
campo ilustra esta ponderação. que auxiliassem na tomada de decisão de
tais gestores, o que corrobora as ideias de
O encontro se inicia com o questionamento sobre os Cecílio (2010).
avanços nas sistematizações dos grupos, em um tom Notamos que, para alguns profissionais do
de controle/cobrança do cumprimento de tarefa an- Nasf, o colegiado foi visto apenas como um
teriormente solicitada. A maioria das falas é voltada espaço para transmissão de diretrizes do nível
ao coordenador do grupo. (DC 13/03/2013). central, a serem cumpridas localmente, refor-
çando uma conotação autoritária para o cole-
A este respeito, Cecílio (2010) nos afirma giado. Além disso, por vezes se configurou como
que há dificuldades quanto às concepções, às espaço para que o corporativismo se manifestas-
formas de organização e ao funcionamento de se, pois o representante no colegiado se revestia
colegiados gestores como instrumentos para a de porta-voz de sua categoria profissional, nem
inovação da gestão. Neste estudo, visualizamos sempre atingindo a adequada articulação entre
que os profissionais não conseguiram concre- os representantes e seus representados.
tizar o colegiado como espaço efetivo de par- Para analisar os modos de gestão, tomamos
ticipação, de negociação, decisão e pactuação. emprestados os conceitos de gerir e de gerar
Também observamos que alguns dos pro- apresentados por Onocko Campos (2003, P. 124).
fissionais membros do colegiado se apre- O gerir se relaciona à gestão clássica, como a
sentam com ‘olhares analisadores ruidosos’ “ação sobre as ações dos outros”, e se relacio-
sobre o modo como vêm se constituindo as na ao controle, à regulação e às normatiza-
práticas em saúde pelos profissionais do ções. Pode, também, estar ligado ao exercício
Nasf, sobre suas tecnologias e direcionalida- de poder disciplinado, que tem grande preo-
des, e sobre o modo de fazer gestão presente cupação com a produtividade e forte tendên-
no cotidiano do serviço. Entretanto, esses cia a reproduzir as práticas vigentes. O gerar
ruídos parecem, algumas vezes, ignorados e estaria relacionado à busca, a movimento, à
sobrepostos, no momento do encontro, pelo desestabilização do instituído. Abriria, para
‘tarefismo’, resultante da estrutura funciona- gestão, um lugar e um tempo. Criaria e ins-
lista da organização. Observa-se uma disputa tituiria espaços para a experimentação de
de poderes, que respeita a hierarquia e abafa tomadas de decisões coletivas e criação de
os ruídos, ao invés de deixá-los aflorar. Esta projetos. Espaços como instâncias reflexivas
prática deixa passar a oportunidade de pu- e com análises implicadas com o que se pre-
blicizar e problematizar as situações cotidia- tende produzir (ONOCKO CAMPOS, 2003).
nas, nem sempre possibilitando a discussão Podemos destacar que os gestores vis-
coletiva e a busca de novos caminhos. lumbraram, na gestão colegiada, a possibi-
lidade de este se constituir em um arranjo
Profissionais ‘A’ e ‘B’ demonstram preocupação potente para a gestão. Ressaltamos que o
sobre o possível engessamento das estratégias colegiado gestor se estabelece como um

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Núcleo de Apoio à Saúde da Família: potencialidades como dispositivo de mudança na Atenção Básica em saúde 229

arranjo ao se tornar uma forma de organi- na necessidade dos usuários e em uma postura
zação institucionalizada, com certa estru- pró-ativa de mudanças.
turação e permanência, com potencialidade Com base nas ideias de Cecílio (2007), acre-
para produzir fluxos na direção contrária dita-se que o ponto de partida de toda pre-
(ONOCKO CAMPOS, 2003). tensão de mudança, na forma de fazer gestão
Porém, apesar de a intenção da equipe e organizar o cuidado, deve se relacionar à
gestora ter vislumbrado a dimensão do gerar capacidade de interrogar o mundo do traba-
com esse arranjo, criando e instituindo um lho antes de propor, a priori, conceitos e/ou
espaço para a experiência de tomada de modos prescritivos de fazer a gestão. É ne-
decisão coletiva, e possibilitando a formula- cessário (des)construir categorias/conceitos/
ção de projetos coletivos, a dimensão do gerir sentidos, em um encontro capaz de provocar
parece ter predominado no colegiado do Nasf. discussão, debate, diálogo, de forma espontâ-
Percebemos que a dimensão do gerir pode nea e não sistematizada, em um processo de
se relacionar à instituição dos protocolos como criação e operação de novas categorias e con-
forma de chefiar a produção de atos e procedi- ceitos que façam sentido para a prática.
mentos, e pela necessidade de controle sobre o Assim, para que o Nasf se potencialize en-
produto do Nasf no cotidiano dos serviços. Isto quanto dispositivo inovador nos processos de
pode ser relacionado ao forte perfil de controle mudança, em busca da produção do cuidado
de alguns membros do colegiado, que, por di- integral e da satisfação das necessidades de
versos momentos, comprometeu a dimensão saúde da população, há de se investir na ga-
do gerar desse arranjo de gestão. rantia de espaços que promovam o encontro;
Diante do exposto, deve-se destacar que possibilitem o diálogo; potencializem as ações
apenas a instituição do colegiado de gestão, das equipes da ESF; problematizem as ações
por si só, não garante a distribuição de poder cotidianas; favoreçam ações compartilhadas e
e o estabelecimento de espaços de decisão corresponsáveis; deixem aflorar os conflitos;
legitimados por todos os profissionais de e estimulem novas reflexões e o desenvolvi-
saúde, conforme é defendido por alguns mento de estratégias criativas para novos e
autores (CECÍLIO; MENDES, 2004). velhos problemas de saúde. Além disso, deve
Portanto, ficou evidente que as poten- estar integrado às equipes da ESF com inte-
cialidades do gerar, desse arranjo, não es- ração dos núcleos dos saberes, o que possibi-
tiveram a salvo de serem capturadas pela litaria a construção de contratualizações das
predominância do gerir dos serviços de relações de trabalho; a horizontalização de
saúde, o que corrobora a proposição de que relações de poder capazes de aglutinar certas
toda coisa que um dia se institucionaliza, habilidades que estão no campo da tensão
não está a salvo de ser capturada pela lógica entre os modelos e os processos de trabalho;
dominante (ONOCKO CAMPOS, 2003). o agenciamento e a aproximação das pessoas
Desse modo, percebeu-se a convivência envolvidas; e o favorecimento de espaços de
entre o desejo da mudança e suas dificuldades, conversa e negociação.
em um movimento de avanço e retrocesso no Devem-se manter arranjos que visem a
confrontamento com o processo instituído. O modos de gerir amparados em princípios de-
retrocesso pode se relacionar ao estabeleci- mocráticos, que não excluam a dimensão do
mento da construção de protocolos por catego- autogoverno, mas considerem a potencialida-
ria profissional, com a pretensão de provocar de de todos os envolvidos no processo e explo-
mudanças de modo controlado, e os avanços rem o espaço permanente de tensões, conflitos
podem ser traduzidos como uma nova possi- e disputas. Arranjos amparados em formalis-
bilidade de inventar modos de gerir, com pro- mos contratuais, que delegam poder e poten-
fissionais na disputa por projetos embasados cialidade de mudança a poucos, não garantem

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230 VOLPONI, P. R. R.; GARANHANI, M. L.; CARVALHO, B. G..

o compromisso e o comprometimento neces- Por se tratar de uma política recente, os re-


sários para os processos de mudança. As or- sultados desta pesquisa tornam-se relevantes,
ganizações precisam ser consideradas como pois analisam o Nasf enquanto um dispositivo
espaços mutantes de construção permanente e de mudança, com potencialidades criadoras de
inacabada (ACIOLE, 2013). novas práticas, com capacidade de ampliar e
Os dispositivos e arranjos deflagrados intensificar as ações das EqSF, de deflagrar pro-
necessitam, assim, ser pensados a partir dos cessos e de instituir novos arranjos na AB. Além
seus verdadeiros instituintes, os usuários. disso, apresenta possibilidades na gestão do seu
Convém expor que o estudo limitou-se a processo de trabalho, por meio da instituição de
explorar o olhar dos gestores formais da AB. arranjos, como o colegiado gestor, uma possibi-
Apesar de serem uma parcela importante lidade na dimensão ‘gerar’ da gestão.
dos atores na gestão, devemos considerar O processo de busca por mudanças é
que não representam a totalidade da visão. favorecido quando há constituição de dis-
Assim, acreditamos que futuros estudos positivos e arranjos que utilizam decisões
possam apreender outras impressões, in- compartilhadas e pactuadas, com foco na
cluindo a visão de outros atores envolvidos consecução do objetivo comum: a atenção
no processo. Houve a intencionalidade de à vida e a produção do cuidado integral e
discutir os resultados sob a ótica de um dado de qualidade. Assim, para que se efetivem
referencial, porém outros estudos podem ser transformações, deve-se ousar e investir
analisados sob outras perspectivas teóricas. no potencial de mudança do Nasf enquanto
dispositivo, e, no colegiado gestor, enquanto
arranjo. Eles devem ser mantidos de forma
Conclusão criativa e como alternativas aos fazeres
atuais no cotidiano dos serviços, com a am-
O presente trabalho procura demonstrar pliação da capacidade de interrogar tais
que a implantação/implementação das fazeres e com investimento na garantia de
equipes Nasf se constituiu como um dis- espaços que proporcionem o encontro.
positivo com a potencialidade de instituir Acreditamos que os resultados desta
mudanças nos processos de trabalho e na pesquisa trazem à tona concepções e ações
produção do cuidado. O Nasf e os arranjos desempenhadas pelos gestores da AB no
implementados a partir deste dispositivo município pesquisado. A reflexão sobre estas
foram, em alguns momentos, capazes de concepções e ações contribui para a compre-
cumprir seu papel, por interrogar os pro- ensão de movimentos em um processo de
cessos de trabalho e as produções do co- mudança. Destacamos as alternativas de rom-
tidiano, e por trazer novas disputas para o pimento de práticas hegemônicas em favor
cenário. Em outros momentos, foi utilizado de processos instituintes, visando a modos de
para a manutenção do status quo. alcançar a integralidade do cuidado. s

Referências

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Janeiro, v. 26, n. 3, mar. 2010. sionais da atenção primária do município de São Paulo,
Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 11, p.
______. O “trabalhador moral” na saúde: reflexões sobre 2076-2084, nov. 2012.
um conceito. Interface – Comunicação, Saúde, Educação,
Botucatu, v. 11, n. 22, p. 345-351, maio/ago. 2007.
Recebido para publicação em maio de 2015
Versão final em outubro de 2015
Conflito de interesses: inexistente
CECILIO, L. C. O.; MENDES, T. C. Propostas alternati-
Suporte financeiro: não houve
vas de gestão hospitalar e protagonismo dos trabalha-
dores: porque as coisas nem sempre acontecem como os
dirigentes desejam? Saúde Soc., São Paulo, v. 13, n. 2, p.
39-55, 2004.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 221-231, DEZ 2015


232 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Atenção Primária à Saúde nos municípios


brasileiros: eficiência e disparidades
Primary Health Care in Brazilian municipalities: efficiency and
disparities

Grazielle Custódio David1, Helena Eri Shimizu2, Everton Nunes da Silva3

RESUMO O estudo tem por objetivo analisar a eficiência da Atenção Primária à Saúde e de ave-
riguar possíveis disparidades em saúde por meio de um estudo ecológico transversal baseado
em dados dos municípios referentes ao IDSUS da atenção primária e no gasto total médio per
capita, estratificado por região e grupos homogêneos, para o período 2008-2010. Observou-
se a dificuldade de estruturação da atenção primária nas grandes cidades e no Norte; o fa-
vorecimento das transferências federais aos municípios com maiores necessidades; a maior
eficiência foi encontrada no Nordeste e no grupo homogêneo de municípios com os piores
indicadores socioeconômicos e de estrutura de saúde. Observaram-se, também, grandes dis-
paridades entre as regiões brasileiras e os grupos homogêneos de municípios, segundo suas
características socioeconômicas e de estrutura de saúde, no que se refere à eficiência da
Atenção Primária à Saúde e à capacidade de aplicação de recursos próprios pelos municípios.
Constatou-se, por fim, a existência de importante inexecução do valor transferido pela União
para os municípios dentro do bloco de financiamento da Atenção Básica.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Disparidades em assistência à saúde; Economia


da saúde.

ABSTRACT The study aims to analyze the efficiency of Primary Health Care and to find out pos-
sible disparities in health by means of a cross-sectional ecological study based on data from mu-
nicipalities concerning primary care IDSUS and total expenditure per capita average, stratified
by region and homogeneous groups, for the period 2008-2010.It was noted the difficulty in struc-
turing primary care in the municipalities and in the North Region; the favoring of federal trans-
fers to municipalities in greater needs; the greatest efficiencies found in the Northeast Region in
the homogeneous group of municipalities with the worst socio-economic and structural health
1 Universidade
indicators. Large differences were also observed among Brazilian regions and homogeneous
de Brasília
(UnB) – Brasília (DF), groups of municipalities according to their socio-economic characteristics and health structure
Brasil. as regards the efficiency of primary health care and the municipalities’ ability to apply their own
grazifisio3@hotmail.com
resources. Finally, it is to be remarked the significant nonuse of the amount transferred by the
2 Universidade de Brasília federal government to the municipalities within the primary care funding block.
(UnB) – Brasília (DF),
Brasil.
shimizu@unb.br KEYWORDS Primary Health Care; Healthcare disparities; Health economics.
3 Universidade de Brasília
(UnB) – Brasília (DF),
Brasil.
evertonsilva@unb.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005512
232
Atenção Primária à Saúde nos municípios brasileiros: eficiência e disparidades 233

Introdução e Norte, dos municípios com melhor sane-


amento e maior proporção de crianças, en-
Em um contexto em que os recursos são limi- quanto municípios com maior proporção de
tados, o Estado deve fazer escolhas ótimas para idosos, capitais de estados, e maior relação
gerir a oferta de ações e serviços de saúde no de médicos por enfermeiros estavam asso-
intuito de aumentar os resultados à população ciados com menor eficiência.
em termos de longevidade e de qualidade de Considerando o aumento do gasto público
vida. Nesse sentido, a análise econômica torna- na área social nas últimas décadas (BRASIL,
-se uma ferramenta importante para definir 2012B), torna-se premente conduzir pesquisas
alternativas eficientes em saúde (BROUSSELLE; que o avaliem, no intuito de orientar a apli-
LACHAINE; CONTANDRIOPOULOS, 2013). cação mais eficiente dos recursos disponí-
A eficiência em saúde é entendida como a veis, especialmente os gastos relacionados
relação entre o custo e o impacto dos servi- à atenção primária, que representa a prin-
ços sobre a saúde da população, mantido um cipal estratégia de reorganização do sistema
nível de qualidade determinado (VIACAVA ET AL., de saúde e cujo propósito é desenvolver
2012). Eficiência refere-se à capacidade de um atenção integral que impacte na situação de
sistema de funcionar com menores custos saúde e nos determinantes e condicionantes
sem sacrificar os resultados, com vistas a de saúde das coletividades, de acordo com a
obter a melhor relação de custo-efetividade Portaria GM/MS n. 2.488/2011.
possível (DONABEDIAN, 2003). O financiamento da atenção primária é
São poucos os estudos que avaliam a efi- tripartite, financiado pelos três entes fede-
ciência em saúde no Brasil. A maioria dos rados, sendo que a União transfere aos mu-
artigos realizados recentemente refere-se à nicípios os recursos financeiros por meio do
avaliação de ações, procedimentos e servi- bloco de financiamento da atenção primária,
ços de saúde específicos, com média e alta na modalidade fundo a fundo, que é consti-
complexidades. Especificamente relaciona- tuído pelos pisos da Atenção Básica: i) fixo
dos à atenção primária, foram encontrados (PAB fixo), composto por recurso per capita;
quatro estudos: dois com escopo estadual e ii) variável (PAB variável), composto por
em São Paulo (VARELA; MARTINS; FÁVERO, 2012) e recursos destinados à implantação de estra-
Espírito Santo (ALVES; COSTA, 2013), um voltado tégias prioritárias (PIOLA ET AL., 2009). Os estados
aos municípios da região Sudeste (SANTOS; também transferem, fundo-a-fundo, recursos
GONÇALVEZ; FIGUEIREDO, 2013) e o último, aos mu- financeiros aos municípios por meio do bloco
nicípios brasileiros (DIAS, 2010); todos utili- de financiamento da Atenção Básica. Por fim,
zaram como método de avaliação a Análise o município aplica recursos próprios para fi-
Envoltória de Dados (DEA). nanciar a Atenção Primária à Saúde (APS).
Os principais achados foram: tanto nos A expansão da atenção primária tem
estudos sobre dos municípios paulistas sido significativa. No final de 2013, havia 36
como capixabas, observou-se que somente mil equipes de Estratégia Saúde da Família
maior aporte de recursos financeiros não (ESF), 300 mil agentes comunitários de
implica maior eficiência; o estudo da região saúde e 23 mil equipes de saúde bucal
sudeste teve como uma de suas principais (RODRIGUES ET AL., 2014). Apesar desses avanços,
contribuições a proposta do modelo analíti- o seu financiamento tem sido problemáti-
co de desempenho da alocação de recursos co, sobretudo porque ainda é insuficiente
na Atenção Básica da saúde pública; por fim, (MENDES; MARQUES, 2014).
o estudo que avaliou 4.007 municípios brasi- Apesar das estratégias para aprimorar o fi-
leiros observou maior eficiência da Atenção nanciamento da atenção primária, sabe-se que
Básica nos municípios da região Nordeste os municípios convivem com diversos tipos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


234 DAVID, G. C.; SHIMIZU, H. E.; SILVA, E. N.

de dificuldades, especialmente os de pequeno em termos econômicos, visto que obtive-


porte, porque não contam com recursos pró- ram desempenho acima da média nacional
prios suficientes para financiar as despesas não (output) com recursos financeiros per capita
cobertas pelo governo federal (MENDES; MARQUES, aplicados na atenção primária abaixo da
2014), o que demanda a necessidade de analisar média nacional (input); os municípios do
com maior profundidade uma distribuição grupo BA, por sua vez, foram considerados
mais equitativa dos recursos para o melhor de- ineficientes, pois apresentaram desempe-
sempenho do sistema de saúde. nho abaixo da média nacional e utilizaram
Dessa forma, este estudo tem por objetivo recursos financeiros per capita acima da
avaliar a eficiência econômica da APS nos média nacional.
municípios brasileiros, além de averiguar O Índice de Desempenho do Sistema
possíveis disparidades regionais e de fatores Único de Saúde da Atenção Primária
socioeconômicos e de características do (IDSUS-AP) foi utilizado como medida de
sistema de saúde, com base no gasto e o de- desempenho dos municípios brasileiros e
sempenho da atenção primária no Brasil no disponibilizado pelo Ministério da Saúde em
período 2008-2010. 2012. É composto por indicadores de acesso e
efetividade da atenção primária, a partir dos
dados do período de 2007-2010 (BRASIL, 2012A).
Método Esse índice pode assumir valores entre zero
(pior desempenho) e dez (melhor desempe-
Trata-se de um estudo ecológico transver- nho). São dez indicadores que caracterizam
sal baseado em dados dos municípios bra- o IDSUS-AP, sendo três referentes a acesso:
sileiros no período 2008-2010 referentes ao cobertura populacional estimada pelas
desempenho e aos gastos em saúde, ambos equipes de atenção primária; cobertura po-
atinentes às ações e serviços da atenção pri- pulacional estimada pelas equipes de saúde
mária. O índice de desempenho da atenção bucal; e proporção de nascidos vivos de mães
primária e seu respectivo gasto total médio com no mínimo sete consultas pré-natal. Os
per capita foram estratificados em duas ca- outros sete se referem à efetividade: pro-
tegorias – alto (A) e baixo (B) –, levando- porção de internação sensível à atenção
-se em consideração a média nacional do primária; taxa de incidência de sífilis con-
período sob investigação. Assim, obtive- gênita; proporção de cura de novos casos de
ram-se quatro grupos: tuberculose pulmonar bacilífera; proporção
de cura de novos casos de hanseníase; cober-
i) AA, municípios com alto desempenho tura com vacina tetravalente em menores de
e alto gasto total médio per capita; um ano; média da ação de escovação dental
supervisionada; e proporção de exodontia
ii) AB, municípios com alto desempenho em relação aos procedimentos odontoló-
e baixo gasto total médio per capita; gicos. Todos os indicadores tinham meta
previamente estabelecida pelo Ministério da
iii) BA, municípios com baixo desempe- Saúde. Assim, resultados que superaram a
nho e alto gasto total médio per capita; meta ultrapassaram o índice de 100%.
O gasto total médio per capita foi obtido
iv) BB, municípios com baixo desempenho do Sistema de Orçamentos Públicos em
e baixo gasto total médio per capita. Saúde (Siops) do Ministério da Saúde por
meio do bloco de financiamento da Atenção
Para fins desta análise, consideraram- Básica. Optou-se pela média dos valores de-
-se os municípios do grupo AB eficientes clarados pelos municípios de 2008 a 2010, de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


Atenção Primária à Saúde nos municípios brasileiros: eficiência e disparidades 235

forma a manter a correspondência temporal índices foram utilizados para caracterizar os


com o IDSUS-AP; o ano de 2007 foi excluí- agrupamentos: Índice de Desenvolvimento
do da análise porque 79,3% dos municípios Socioeconômico (IDSE); Índice de Condição
não declaram o valor despendido na atenção de Saúde (ICS) e Índice de Estrutura do
primária, o que enviesaria substancialmente Sistema de Saúde do Município (IESSM).
a média amostral dessa variável. Já para os Com base nesses índices, criaram-se seis
anos 2008, 2009 e 2010, a porcentagem dos Grupos Homogêneos (GH) (BRASIL, 2012A).
municípios que não declaram o valor despen-
dido com APS caiu para 8,8%, 7,5% e 6,2%, i) GH 1, com 29 municípios, apresenta
respectivamente. Os municípios sem esses alto índice de desenvolvimento eco-
dados foram excluídos da amostra; assim, nômico, médio índice de condição de
dos 5.565 municípios brasileiros, a amostra saúde e alto índice de estrutura do
do estudo conta com 4.706. O gasto refere-se sistema de saúde do município;
ao valor total aplicado na atenção primária
pelos municípios e é constituído por finan- ii) GH 2, com 94 municípios, apresenta
ciamento tripartite (recursos próprios dos alto índice de desenvolvimento eco-
municípios, acrescidos das transferências da nômico, médio índice de condição de
União e dos estados). Esses dados foram de- saúde e médio índice de estrutura do
flacionados a preços de julho de 2014, utili- sistema de saúde do município;
zando-se a série histórica do Índice Nacional
de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) cal- iii) GH 3, com 632 municípios, apresenta
culado pelo Instituto Brasileiro de Geografia médio índice de desenvolvimento eco-
e Estatística (IBGE, 2014). nômico, médio índice de condição de
O valor transferido pela União para os mu- saúde e baixo índice de estrutura do
nicípios foi obtido do Siops do Ministério da sistema de saúde do município;
Saúde por meio do bloco de financiamento
da Atenção Básica. A avaliação da execução iv) GH 4, com 587 municípios, apresenta
desse recurso foi realizada pela subtração do baixo índice de desenvolvimento eco-
valor transferido pela União do gasto total nômico, baixo índice de condição de
com APS pelo município. Quando o valor do saúde e baixo índice de estrutura do
gasto total era inferior ao da transferência, sistema de saúde do município;
considerou-se como inexecução. É possível
que a inexecução das transferências federais v) GH 5, com 2.039 municípios, apresenta
seja ainda maior do que o que foi encontrado médio índice de desenvolvimento eco-
neste estudo, o que só seria possível avaliar nômico, médio índice de condição de
por meio da análise dos fundos municipais saúde e baixíssimo índice de estrutura
de saúde, cujos dados, em muitos casos, do sistema de saúde do município, por
ainda não estão disponíveis online. não apresentar nenhuma estrutura de
Para identificar eventuais disparidades média e alta complexidade;
regionais, de fatores socioeconômicos e
de características do sistema de saúde dos vi) GH 6, com 2.184 municípios, apresenta
municípios, estes foram agrupados por baixo índice de desenvolvimento eco-
regiões brasileiras e por grupos homogê- nômico, baixo índice de condição de
neos. Utilizando a metodologia elaborada saúde e baixíssimo índice de estrutura
pelo Ministério da Saúde, este estudo adota do sistema de saúde do município, por
a proposta do IDSUS para conformação de não apresentar nenhuma estrutura de
grupos homogêneos de municípios. Três média e alta complexidade.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


236 DAVID, G. C.; SHIMIZU, H. E.; SILVA, E. N.

Por se tratar de dados secundários e Ao se analisarem os grupos homogêneos


disponíveis ao público no sítio eletrônico referentes aos indicadores selecionados de
do Ministério da Saúde, não foi necessário acesso e efetividade da atenção primária,
submeter este estudo ao Comitê de Ética percebem-se diferenças substanciais. Os
em Pesquisa. grupos homogêneos 5 e 6 ultrapassaram a
meta previamente estabelecida de cobertu-
ra populacional da atenção primária, com
Resultados 125,40% e 115,80%, respectivamente – os
valores acima de 100% ocorrem porque
A tabela 1 apresenta os dados descritivos existem mais equipes de saúde da Atenção
referentes ao índice de desempenho da Básica em relação à população coberta, do
atenção primária nos 4.706 municípios bra- que é preconizado pela norma, ao passo que
sileiros, os quais refletem informações cole- os grupos homogêneos 1 e 2 ficaram abaixo
tadas no período 2007-2010, além de alguns da meta (61% e 64%, respectivamente).
indicadores individuais sobre acesso e efeti- A meta estabelecida para cobertura popu-
vidade que compuseram o IDSUS-AP. De um lacional da saúde bucal era de 50%, a qual foi
modo geral, a média nacional do IDSUS-AP ultrapassada pelos grupos homogêneos 4, 5
foi relativamente alta, correspondendo a 8,11 e 6(61,9%, 93,5% e 93,2%, respectivamente).
(DP95% 1,53). Observou-se que os grupos Com relação ao indicador de internação sen-
de municípios avaliados com os menores sível à Atenção Básica, a meta não deveria
índices de desenvolvimento econômico, de superar 28%; todavia, somente os grupos
condição de saúde e de estrutura do sistema homogêneos 1 e 2alcançaram 26,9% e 28,2%,
de saúde foram os que apresentaram maiores respectivamente. A taxa de sífilis congênita
notas do IDSUS-AP: grupos homogêneos 5 e é alta em todos os grupos em relação à meta
6 obtiveram nota 8,54 (DP95% 1,34) e 8,25 estabelecida de 1 caso em 1.000 nascidos
(DP95% 1,34), respectivamente; enquanto vivos por ano, tendo o grupo homogêneo 3
os grupos homogêneos 1 e 2 obtiveram nota a menor taxa (1,32/1.000 nascidos) e o grupo
6,21 (DP95% 1,52) e 6,7 (DP95% 1,47), res- homogêneo 1 a maior (2,96/1.000 nascidos).
pectivamente. Em termos regionais, o Norte Em relação à cobertura da vacina tetravalen-
se distancia das demais regiões em relação te em menores de um ano, apenas o grupo
ao IDSUS-AP, com nota 7,23 (DP95% 1,91), homogêneo 1 não atingiu a meta estabele-
enquanto as outras ficaram muito próximas cida de 95%, apesar de ter apresentado um
à média nacional. elevado percentual de cobertura (93%).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


Atenção Primária à Saúde nos municípios brasileiros: eficiência e disparidades 237

Tabela 1. Média e desvio padrão dos indicadores selecionados e notas atribuídas aos municípios brasileiros referentes ao Índice de Desempenho do SUS
na Atenção Primária (IDSUS-AP), por região brasileira e grupo homogêneo, Brasil, 2007 a 2010

  AP – Acesso AP – Efetividade IDSUS-AP


(a) (b) (c) (d) (e) (f)
  Cob. AP Cob. Saúde Bucal Tx intern. sens. à Tx sífilis cong. Cob. vacina tetra IDSUS-AP
(%) (%) AP (%) (%)
n 4.706 4.706 4.706 1.531 4.706 4.706
Média Nacional
110,3 2,20 8,11
Brasil (48,43) 83,6 (49,15) 37,7 (11,20) (1,40) 107,1 (27,12) (1,53)
Grupo Homogêneo
61,0 26,9 2,96 93,0 6,21
1 (20,43) 28,3 (16,59) (5,53) (2,66) (5,37) (1,52)
64,0 28,2 1,92 95,0 6,7
2 (18,80) 35,3 (19,22) (6,37) (1,85) (7,56) (1,47)
75,3 32,3 1,32 7,22
3 (29,95) 48,3 (30,21) (8,71) (1,06) 101,0 (33,06) (1,71)
85,0 1,95 7,34
4 (31,95) 61,9 (32,87) 44,0 (11,22) (1,87) 103,3 (23,78) (1,72)
125,4 34,2 2,46 8,54
5 (56,38) 93,5 (55,26) (9,59) (0,44) 109,4 (25,68) (1,34)
115,8 2,81 8,25
6 (39,54) 93,2 (43,84) 41,5 (11,22) (0,96) 108,4 (27,54) (1,34)
Região Brasileira
87,3 2,21 7,23
N (38,91) 65,2 (40,64) 41,9 (11,17) (1,59) 104,6 (26,99) (1,91)
106,6 2,38 8,15
NE (32,99) 85,6 (39,79) 43,4 (11,60) (1,31) 104,7 (23,03) (1,30)
104,4 37,4 2,66 8,28
CO (43,83) 87,6 (43,66) (9,73) (2,30) 109,6 (26,18) (1,22)
116,1 34,0 1,64 8,20
SE (59,57) 83,2 (56,52) (9,54) (1,10) 110,8 (32,37) (1,56)
117,3 33,4 2,06 8,35
S (50,31) 84,4 (51,86) (9,46) (1,05) 104,4 (23,52) (1,46)
Fonte: Elaboração própria.
Notas: Desvio padrão entre parênteses; (a) cobertura populacional com atenção primária; (b) cobertura populacional com saúde bucal; (c) taxa de internações sensíveis à
atenção primária; (d) taxa de sífilis congênita por mil nascidos vivos; (e) cobertura com vacina tetravalente em menores de um ano; (f) nota do índice de desempenho do
SUS da atenção primária; (n) número de observações municipais constantes no IDSUS.

As regiões Sul e Sudeste apresentaram a 41,9%, respectivamente) e mais baixo no Sul e


maior cobertura populacional da atenção pri- Sudeste (33,4% e 34%, respectivamente), sendo
mária (117,4% e 116,1%, respectivamente), en- importante ressaltar que nenhuma das regiões
quanto o Norte apresentou a menor (87,3%), alcançou a meta de ter no máximo 28% de taxa
sendo a única região que ficou abaixo da meta. de internações de condições sensíveis à atenção
As regiões Nordeste e Centro-Oeste apresen- primária. A taxa de incidência de sífilis congê-
taram a maior cobertura populacional com nita é alta em todas as regiões, sendo a menor
saúde bucal (85,6% e 87,6%, respectivamente), taxa no Sudeste (1,64 casos/1.000 nascidos) e a
enquanto a Norte apresentou a menor (65,2%); maior no Centro-Oeste (2,66 casos/1.000 nas-
apesar disso, todas as regiões ultrapassaram a cidos). A cobertura da vacina tetravalente está
meta de 50% de cobertura de saúde bucal. O in- acima da meta em todas as regiões.
dicador de internação sensível à atenção primá- A tabela 2 sumaria os dados financeiros
ria é mais alto no Nordeste e no Norte (43,4% e médios per capita aplicados na atenção

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


238 DAVID, G. C.; SHIMIZU, H. E.; SILVA, E. N.

primária referentes aos 4.706 municí- de R$ 136,99 (DP95% 164,03). Observou-


pios brasileiros no período 2008-2010 em se que as transferências federais seguem
relação às transferências da União e ao um padrão voltado à equidade, pois houve
valor total aplicado nesse nível de densi- maior repasse de recursos aos municípios
dade tecnológica de atenção à saúde. Em com maiores dificuldades no período 2008-
termos nacionais, a média per capita das 2010, tanto por grupo homogêneo – GH1
transferências federais aos municípios R$ 27,38 (DP95% 9,61) versus GH6 R$ 67,07
foi de R$ 54,61 (DP95% 29,71) entre 2008 (DP95% 27,67) – como por região – Sudeste
e 2010, enquanto o valor total médio per R$ 46,65 (DP95% 168,67) versus Norte R$
capita aplicado na atenção primária foi 66,37 (DP 95% 31,99).

Tabela 2. Média e desvio padrão das transferências federais per capita e do gasto total per capita dos municípios para a atenção primária, por grupo
homogêneo e por regiões, Brasil, 2008 a 2010

  2008 2009 2010 2008-2010


  (a) (b) (c) (d) (e) (f) (g) (h)
Transf. fed. Gasto total Transf. fed. Gasto total Transf. fed. Gasto total Transf. fed. média Gasto total médio
per capita per capita per capita per capita per capita per capita per capita per capita
(R$) (R$) (R$) (R$) (R$) (R$) (R$) (R$)
  Média Nacional
Brasil 46,37 127,15 54,76 (30,61) 130,67 62,70 (33,11) 153,15 54,61 (29,71) 136,99 (164,03)
(28,63) (309,71) (156,25) (172,41)
  Grupos Homogêneos
1 21,21 (8,66) 56,58 (71,14) 32,93 (10,07) 60,45 28,00 98,56 27,38 71,86 (77,21)
(81,05) (10,59) (121,64) (9,61)
2 31,97 (10,07) 55,22 (71,00) 27,50 (11,11) 69,90 30,99 (11,64) 80,24 30,15 (10,54) 68,45 (67,84)
(84,29) (82,42)
3 27,61 (16,19) 80,94 33,04 94,44 37,66 (10,50) 114,55 32,77 (17,56) 96,64 (96,56)
(102,46) (18,09) (109,79) (129,98)
4 43,59 63,24 51,39 (21,64) 79,29 59,75 95,37 (76,21) 51,57 (21,52) 79,30 (56,97)
(20,96) (77,46) (68,25) (24,30)
5 42,82 147,83 50,20 170,65 56,55 200,25 49,85 (26,58) 172,91 (176,83)
(25,55) (192,45) (27,69) (199,75) (28,42) (219,93)
6 56,53 141,97 67,10 (28,90) 120,70 77,58 (31,61) 139,28 67,07 (27,67) 133,98 (175,42)
(28,52) (447,17) (121,67) (133,07)
  Regiões Brasileiras
N 56,69 88,69 (95,18) 66,10 97,02 76,34 (37,71) 114,16 66,37 (31,99) 96,88 (77,33)
(32,30) (32,04) (89,62) (106,71)
NE 54,76 127,52 64,83 99,62 74,60 (27,93) 116,21 64,68 (25,51) 114,00 (176,64)
(26,42) (480,25) (26,41) (96,22) (104,24)
CO 53,06 140,61 59,75 (32,65) 157,65 69,84 182,81 60,88 (31,92) 160,35 (168,46)
(32,40) (186,73) (174,26) (33,37) (190,63)
SE 39,17 132,82 46,91 (31,31) 154,64 53,88 (31,28) 182,42 46,65 (168,53) 156,62 (168,67)
(24,59) (177,68) (187,45) (59,49)
S 42,15 142,00 49,31 (25,94) 159,51 54,41 (26,69) 184,80 48,62 (24,27) 162,43 (147,74)
(23,87) (161,46) (171,68) (183,98)
Fonte: Elaboração própria.
Notas: Valores deflacionados a preços de julho de 2014, com base no IPCA-IBGE, seguido do desvio padrão entre parênteses: (a) transferências federais per capita aos
municípios brasileiros referentes à atenção primária em 2008; (b) gasto total per capita aplicado na atenção primária pelos municípios brasileiros em 2008, considerando
o financiamento tripartite (União, estado e município), avaliado por meio do bloco de financiamento da Atenção Básica; (c) transferências federais per capita aos
municípios brasileiros referentes à atenção primária em 2009; (d) gasto total per capita aplicado na atenção primária pelos municípios brasileiros em 2009, considerando
o financiamento tripartite (União, estado e município); (e) transferências federais per capita aos municípios brasileiros referentes à atenção primária em 2010; (f) gasto
total per capita aplicado na atenção primária pelos municípios brasileiros em 2010, considerando o financiamento tripartite (União, estado e município); (g) transferências
federais médias per capita aos municípios brasileiros referentes à atenção primária entre 2008 e 2010; (h) gasto total médio per capita aplicado na atenção primária pelos
municípios brasileiros entre 2008 e 2010, considerando o financiamento tripartite (União, estado e município).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


Atenção Primária à Saúde nos municípios brasileiros: eficiência e disparidades 239

Em termos de grupos homogêneos e do menor gasto total per capita: Norte R$ 96,88
gasto total médio per capita com a atenção (DP95% 77,03) e Nordeste R$ 114,00 (DP95%
primária no período 2008-2010, verifica- 176,64); ao passo que a região Sul aplicou R$
-se que os grupos 5 e 6, mais pobres e com 162,43 (DP95% 147,74).
serviços de saúde menos densos tecnolo- A tabela 3 mostra os dados dos municí-
gicamente, apresentaram maior valor per pios brasileiros que informaram um gasto
capita liquidado, correspondendo a R$ total com atenção primária inferior ao valor
172,91 (DP95% 176,83) e R$ 133,98 (DP95% transferido pela União quando o gasto é ava-
175,42), respectivamente; já os grupos ho- liado por meio do bloco de financiamento
mogêneos 1 e 2, mais ricos e com serviços da Atenção Básica do Siops, excluídos os
de saúde mais densos tecnologicamente, li- municípios que não informaram seus gastos.
quidaram relativamente menos na atenção De modo geral, observa-se a tendência de
primária, com média no período de R$ diminuição da frequência de inexecução das
71,86 (DP95% 77,21) e R$ 68,45 (DP05% transferências federais ao longo do período
67,84), respectivamente (tabela 2). analisado – de 18,23% em 2008 para 13,28%
Quanto às regiões brasileiras, observa-se em 2010, na média nacional. No entanto,
dificuldade na contrapartida do gasto total ressalta-se que a frequência de inexecu-
médio per capita com atenção primária pelos ção ainda foi relativamente alta (10,75% na
municípios das regiões Norte e Nordeste, média nacional) no período 2008-2010. Essa
visto que, apesar de receberem as maiores tendência também é verificada nos grupos
transferências federais per capita, têm o homogêneos e nas regiões.

Tabela 3. Percentual de municípios que não executaram o valor transferido pela União, por grupo homogêneo e por região
brasileira, Brasil, 2008 a 2010

  2008 2009 2010 2008-2010


  (a) (a) (a) (a)
% mun. não exec. % mun. não exec. % mun. não exec. % mun. não exec.
Média Nacional
Brasil 18,23 13,79 13,28 10,75
Grupo Homogêneo
1 37,50 45,83 25,00 25
2 29,27 26,83 17,07 19,51
3 19,34 16,79 12,23 12,04
4 29,51 14,75 14,14 15,57
5 15,34 11,7 10,77 9,08
6   16,69 16,13 15,46 9,83
Região Brasileira
N 20,53 18,93 19,2 17,87
NE 23,24 16,85 15,94 12,22
CO 11,14 7,67 8,91 7,92
SE 13,69 13,69 12,12 7,95
S 19,11 14,13 10,53 10,71
Fonte: Elaboração própria.
Nota: (a) porcentagem dos municípios que não executaram o valor transferido pela União.

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240 DAVID, G. C.; SHIMIZU, H. E.; SILVA, E. N.

Especificamente aos grupos homogêneos, A tabela 4 apresenta a distribuição dos mu-


a inexecução das transferências da União nicípios brasileiros nas quatro categorias (AA,
pelos municípios para a atenção primária AB, BA e BB), identificando os municípios efi-
no período 2008-2010 foi maior no grupo cientes e ineficientes com respeito à atenção
homogêneo 1 (25,0%) e menor no grupo ho- primária. Nacionalmente, a maior parte dos
mogêneo 5 (9,08%). Em relação às regiões municípios (44,7%) encontra-se na categoria
brasileiras, no mesmo período, o Norte e o AB, considerada como a mais eficiente, por
Nordeste foram as regiões que menos exe- representar a melhor relação gasto/desempe-
cutaram o valor transferido pela União dire- nho. O percentual de municípios ineficientes
cionado à atenção primária (17,87% e 12,22%, (categoria BA) é de 8,72%. Foi possível ob-
respectivamente), enquanto o Centro-Oeste servar também que 78,11% dos municípios
apresentou um menor percentual de muni- brasileiros apresentam alto IDSUS-AP. Entre
cípios com inexecução dos repasses federais os municípios com baixo IDSUS-AP, 80,36%
(7,92%) (tabela 3). apresentam também baixo gasto.

Tabela 4. Resultados da análise de eficiência dos municípios brasileiros segundo categorias AA, AB, BA e BB, por grupos
homogêneos e regiões brasileiras, Brasil, 2008 a 2010

  AA % AB % BA % BB %
  Alto IDSUS-AP e alto Alto IDSUS-AP e baixo Baixo IDSUS-AP e alto Baixo IDSUS-AP e baixo
gasto gasto gasto gasto
Média Nacional
Brasil 26,47 35,81 9,49 28,23
Grupo Homogêneo
1 12,45 8,33 8,33 70,83
2 6,09 12,19 8,53 73,17
3 17,15 19,52 15,51 47,81
4 9,83 36,06 3,89 50,2
5 42,24 33,21 12,24 12,29
6 32,48 43,12 6,97 17,42
Regiões Brasileiras
N 18,4 24 9,06 48,26
NE 21,78 47,66 5,61 24,85
CO 38,61 26,48 15,09 19,55
SE 40,78 25,67 12,05 21,4
S 43,21 29,17 9,97 17,54
Fonte: Elaboração própria.
Notas: AA, municípios com alto desempenho e alto gasto total médio per capita; AB, municípios com alto desempenho e baixo gasto total
médio per capita; BA, municípios com baixo desempenho e alto gasto total médio per capita; BB, municípios com baixo desempenho e
baixo gasto total médio per capita.

Nos grupos homogêneos 1, 2, 3 e 4 pre- de municípios (43,12%). Em termos regio-


valeceram os municípios da categoria BB, nais, por sua vez, o Norte e o Nordeste obti-
chegando a mais de 70% nos grupos 1 e 2. Na veram quase metade de seus municípios em
categoria dos mais eficientes (AB), destaca- uma categoria, sendo o Norte na BB (48,26%)
-se o grupo 6, que obteve o maior percentual e o Nordeste na AB (47,66%). Cabe destacar

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


Atenção Primária à Saúde nos municípios brasileiros: eficiência e disparidades 241

que o Nordeste também apresentou o menor de resolução desse nível de cuidado; assim,
percentual de municípios na categoria BA, o acesso à atenção primária de qualidade ra-
com 5,61% do total desta região. zoável deveria reduzir esse indicador (ANSARI;
LADITKA; LADITKA, 2006). Porém, alguns autores
Discussão argumentam que essas internações podem
estar mais relacionadas a variáveis socioe-
Os resultados deste estudo apontam as se- conômicas do que à efetividade da atenção
guintes observações: i) a dificuldade de es- primária, particularmente devido aos deter-
truturação da atenção primária nas grandes minantes sociais do processo saúde-doença
cidades (grupos homogêneos 1 e 2) e no (REHEM, 2011).
Norte; ii) as transferências federais favore- As transferências federais para a atenção
ceram os municípios com maiores necessi- primária demonstraram ser realizadas de
dades, visando à equidade, em termos tanto acordo com a equidade. Os grupos homogê-
dos grupos homogêneos quanto das regiões; neos 6, 5 e 4 e as regiões Norte e Nordeste
iii) a existência de inexecução orçamentária receberam maior transferência per capita.
em alguns municípios brasileiros referente à Tanto a equidade quanto a ampliação do
atenção primária, principalmente no grupo valor per capita transferido pela União são
homogêneo 1 e nas regiões Norte e Nordeste, reforçados a partir de 2003 (CASTRO; MACHADO,
quando avaliados os gastos informados pelos 2010). Nesse ano, o Ministério da Saúde es-
municípios através do bloco de financiamen- tabeleceu uma estratégia de correção pro-
to da Atenção Básica no Siops; iv) a grande gressiva, aumentando o PAB fixo, valor
contribuição em termos de eficiência do transferido per capita, sem necessidade de
grupo homogêneo 6 e do Nordeste na relação pactuações, a exemplo do que ocorre no
gasto/desempenho da atenção primária. PAB variável. Além disso, com o objetivo de
A cobertura populacional da atenção atingir um financiamento mais equitativo, a
primária no grupo homogêneo 1 e 2 ainda Portaria do Ministério da Saúde GM/MS nº
é muito baixa. Essa é uma situação antiga, 1.434/2004, pela primeira vez, empregou in-
dado que desde 2002 observa-se que a ESF dicadores de condições sociais como critério
tem tido dificuldade de ser introduzida de para diferenciar os repasses federais aos mu-
forma ampla e substitutiva ao modelo as- nicípios (SOLLA ET AL., 2007).
sistencial tradicional nos grandes centros Apesar da transferência federal mais
urbanos, com sistemas de saúde complexos. equitativa para a atenção primária nas
Nessas cidades, a Estratégia ainda é focaliza- regiões Norte e Nordeste, a execução or-
da apenas em grupos populacionais de maior çamentária não é adequada: essas são as
risco social e por meio apenas da expansão regiões com maior percentual de inexecu-
de cuidados mínimos (CAETANO; DAIN, 2002). ção do valor transferido pela União para
Alguns desafios decorrem das desigualdades os municípios por meio do bloco de finan-
sociais e de acesso aos serviços de saúde e ciamento da Atenção Básica. Tal execução
das diferentes combinações do mix público– ocorre também no grupo homogêneo 1. Uma
privado nesses municípios, que acabam por possível razão para essa baixa execução or-
concorrer para a consolidação do modelo de çamentária é a disponibilidade insuficiente
atenção primária preventiva (VIANA ET AL., 2008). de profissionais de saúde, especialmente
O único indicador que foi melhor no médicos para atuarem nessas regiões, o que
grupo homogêneo 1 do que nos demais é o dificulta a aplicação dos recursos (MAFRA, 2011).
de internação sensível à atenção primária, Outro elemento que os municípios alegam
considerado um indicador utilizado para para justificar a baixa execução orçamentá-
avaliar os serviços de saúde e a capacidade ria da atenção primária é a transferência de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


242 DAVID, G. C.; SHIMIZU, H. E.; SILVA, E. N.

valores excessivamente ‘carimbados’ pela organização desses níveis de atenção – com


União, isto é, de destinação muito fechada e maior densidade tecnológica, o que demanda
nem sempre de acordo com a necessidade da muitos recursos financeiros e humanos – com
realidade local (ASSIS ET AL., 2007). a estruturação da atenção primária. Além
Existe ainda a possibilidade que, como os dessas dificuldades, existe ainda uma cobran-
dados de execução orçamentária são decla- ça social que constantemente demanda mais
rados pelos municípios, a informação esteja recursos para a média e alta complexidade,
incorreta; isto é, apesar de os municípios direcionando a escolha política dos gestores
receberem o recurso federal por meio do no investimento dos recursos, que acaba por
bloco de financiamento da Atenção Básica, precarizar a atenção primária.
podem estar informando o gasto em outro A maior parte dos municípios da região
bloco. Ainda assim, sendo o Siops único no Nordeste e do grupo homogêneo 6 (onde
seu propósito, resta-nos avaliar o financia- estão 71,32% dos municípios nordestinos)
mento e a execução orçamentária com APS encontra-se na categoria AB. A eficiência
por meio dos dados ali contidos e trazer ao (relação menor gasto com maior desempe-
conhecimento esse possível problema, que nho) nordestina na atenção primária também
exige uma melhor adequação da contabilida- foi observada em outro estudo realizado com
de dos municípios. Especialmente porque o dados de 2008, que utilizou indicadores do
Art 6º. da Portaria GM/MS n. 204/2007de- Pacto pela Saúde e o gasto realizado pelo
termina que “os recursos referentes a cada município, por meio da metodologia DEA,
bloco de financiamento devem ser aplicados em 3.892 municípios brasileiros; ademais,
nas ações e serviços de saúde relacionados as capitais foram consideradas ineficientes
ao próprio bloco” (BRASIL, 2007), não é possível (DIAS, 2010). A eficiência do Norte também foi
o uso do recurso federal em bloco distinto do observada naquele estudo, sendo um ponto
inicialmente determinado. de divergência com nossos resultados.
A contrapartida municipal/estadual é outro Uma possível explicação para o Nordeste
elemento importante do financiamento da ser mais eficiente pode ser a comparação da
atenção primária. Neste estudo, verificaram- alta adesão à ESF às outras regiões. Na média
-se grandes diferenças na proporção entre o do período 2007-2010, a cobertura popula-
gasto total médio e o valor federal transferido cional por agentes comunitários de saúde e
para a atenção primária entre 2008 e 2010: a por equipes de saúde da família foi de 85,7%
região Norte aplicou 1,45 vez o valor transfe- e 69,8%, respectivamente, no Nordeste. Nas
rido, enquanto a região Sul aplicou 3,34 vezes. demais regiões, somente o Norte se aproxi-
A baixa aplicação própria das regiões Norte mou da cobertura por agentes comunitários
e Nordeste era esperada, por serem regiões (80,8%), estando as demais em torno de 55%,
com menor arrecadação tributária, tendo, e, na cobertura por equipe saúde da família,
portanto, pouca capacidade de aplicação de a média das demais regiões é bem inferior ao
recursos próprios (PIOLA ET AL., 2009). Nordeste, em torno de 46% (BRASIL, 2015). Já se
Nos grandes centros urbanos que havia observado que o modelo de saúde da
compõem os grupos 1 e 2, existe uma prepon- família está associado a melhor desempenho
derância de assistência de média e alta com- quando comparado com o modelo de atenção
plexidade, com precária oferta de atenção primária tradicional (FACCHINI ET AL., 2006).
primária; nesses municípios, o orçamento Algumas limitações relacionadas aos re-
e a força de trabalho são voltados para os sultados deste estudo devem ser ressaltadas.
níveis secundários e terciários, não havendo A primeira está relacionada à opção de uti-
prioridade ao primário (ASSIS ET AL., 2007). Isso lizar a média dos valores declarados pelos
pode ocorrer pela dificuldade em conciliar a municípios de 2008 a 2010, tendo o ano de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


Atenção Primária à Saúde nos municípios brasileiros: eficiência e disparidades 243

2007 sido excluído da análise porque 79,3% piores indicadores socioeconômicos e de es-
dos municípios não declaram o valor des- trutura de saúde (grupo homogêneo 6), para
pendido na atenção primária, o que enviesa- o qual 43,12% dos municípios foram conside-
ria substancialmente a média amostral dessa rados eficientes. Em termos de disparidade,
variável; inicialmente, o ano de 2007 seria o Norte apresentou a maior proporção de
utilizado para fazer correspondência tem- municípios (48,26%) com baixo desempe-
poral com o IDSUS-AP. A segunda advém nho e baixo gasto total médio per capita na
da forma como esse índice foi calculado – a atenção primária, bem como baixo desempe-
partir de coleta de indicadores ao longo de nho e gastos, além de melhores indicadores
quatro anos (2007-2010) de forma pontual –, o socioeconômicos e de estrutura de saúde
que impediu a obtenção de uma tendência de (grupo homogêneo 1), com 70,83%. Também
evolução dos indicadores ao longo dos quatro foi encontrada inexecução orçamentária
anos. No entanto, esse é o único índice de de- entre 2008 e 2010 (10,75%), mostrando que
sempenho da atenção primária disponível no alguns municípios encontraram dificuldades
Brasil que se aplica em nível nacional e para em executar o valor transferido pela União
todos os municípios brasileiros. para a atenção primária ou não informaram
de maneira correta seus gastos com APS por
meio do bloco de financiamento da Atenção
Conclusão Básica, sendo que se destacaram os muni-
cípios da região Norte e Nordeste e aqueles
Este estudo avaliou a relação entre o gasto com melhores indicadores socioeconômicos
total médio per capita e o desempenho, e de estrutura de saúde (grupos homogêneos
ambos relacionados com a atenção primária, 1). Essas informações são importantes para
nos municípios brasileiros no período 2007- orientar o planejamento das políticas públi-
2010, com vistas a identificar a eficiência cas de saúde, especialmente com relação ao
e possíveis disparidades. O Nordeste foi a seu financiamento e à promoção da redução
região que obteve o maior número de mu- das desigualdades regionais com o objetivo
nicípios considerados eficientes na atenção de aprimorar de forma equitativa e eficiente
primária (47,66%), isto é, apresentou a a atenção primária no Brasil. Podem, ainda,
melhor relação de menor gasto com maior ser importantes para orientar a adequada
desempenho. Resultado semelhante foi en- capacitação dos municípios sobre como in-
contrado para o grupo de municípios com os formar seus gastos no Siops. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 232-245, DEZ 2015


246 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Práticas de cuidado e população em situação


de rua: o caso do Consultório na Rua
Care practices and homeless population: the street clinic case

Carolina Cruz da Silva1, Marly Marques da Cruz2, Eliane Portes Vargas3

RESUMO O estudo visa compreender as práticas de cuidado de um Consultório na Rua, em


Manguinhos/RJ, de forma a contribuir com o debate da Atenção Primária à Saúde para po-
pulações específicas. Trata-se de estudo de caso, tendo por procedimentos metodológicos:
análise documental, observação direta, entrevistas com profissionais e representante do mo-
vimento social. Os resultados apontam para a construção de vínculos e para o rompimento
com uma lógica prescritiva, prevalecendo uma escuta qualificada. Os profissionais exprimi-
ram existir ainda resistências em atender a população em situação de rua, comumente as-
sociada a imagens estigmatizantes, que expressam os desafios na garantia do acesso desta
população ao SUS.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; População em situação de rua; Saúde da família.

ABSTRACT The study aims to understand the care practices of the Consultório na Rua (street
clinic) in Manguinhos/RJ in order to contribute to the debate of the Primary Health Care focused
on specific vulnerable populations. This case study used as methodological procedures: documen-
tal analysis, direct observation, interviews with professionals and the representative of the social
movement. The results point to the construction of bonds and the break with a prescriptive logic
prevailing qualified listening. Professionals reported there were still resistance regarding health
and social care towards homeless people, commonly associated with stigmatizing images that
express one of the challenges in ensuring access of this population to the public health system.

KEYWORDS Primary Health Care; Homeless people; Family health.


1 SecretariaMunicipal de
Saúde do Rio de Janeiro –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
asccscarol@gmail.com

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Aroca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
marly@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Instituto
Oswaldo Cruz (IOC) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
epvargas@ioc.fiocruz.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005270
246
Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua 247

Introdução e fragmentação pela lógica do especialista.


Dentro de uma nova concepção, as Equipes
A categoria cuidado tem sido significativa- da Saúde da Família (EqSF) deveriam, em
mente discutida no campo da saúde pública tese, estar atreladas à orientação ‘centrado
no Brasil por diversos autores, como Mehry nos usuários’, em contraposição à lógica do
(2004), Pinheiro e Mattos (2008) e Ayres ‘centrado nos procedimentos’ (MEHRY, 2004).
(2009), quando apontam a complexidade que Cabe destacar que esta opção pressupõe o
permeia as práticas a ela relacionada. Na aumento da capacidade reflexiva de cuidar
visão destes autores, o cuidado à saúde rela- voltada para as necessidades dos usuários
cionado ao ato de cuidar diz respeito a ‘do’ e ‘no’ território. No entanto, mesmo com
novas formas de produzir saúde, por meio
uma interação entre dois ou mais sujeitos, vi- desta estratégia consolidada a partir dos en-
sando o alívio de um sofrimento, ou o alcance foques nos núcleos familiares e no território,
de um bem-estar, sempre mediada por sabe- a ESF ainda reproduz, em alguns casos, o
res especificamente voltados para essa finali- cuidado com atos ‘medicocêntricos’, ou seja,
dade. (AYRES, 2009, P. 42). centrados na atuação médica, estruturados
por atos prescritivos (MEHRY, 2005).
No cuidado à saúde, portanto, encontra-se Nessa perspectiva, a categoria cuidado
ressaltada uma perspectiva relacional entre os expressa a complexidade da sua efetivação
sujeitos: profissional de saúde e usuário. Sendo na atenção à saúde, uma vez que esta não se
assim, cabe aos profissionais de saúde se dá apenas por prescrições, medicalização,
ou normatizações de condutas reduzidas a
mobilizarem pela construção de um projeto procedimentos e/ou protocolos. Isso porque,
político que qualifique o cuidado, transcen- mais do que prescrever exames e medica-
dendo a sua dimensão instrumental, o que se mentos, os profissionais de saúde na atenção
viabiliza quando, além do aumento da oferta primária devem estar abertos ao diálogo com
de serviços e da resolubilidade de ações téc- os usuários do serviço, aos seus desejos, às
nicas, exercita-se a escuta sensível de neces- suas histórias, angústia e desafios, que são
sidades, praticando-se um acolhimento que elementos constitutivos no projeto de vida
valorize singularidades articuladas à totalida- destes. Tal perspectiva visa romper com uma
de. (COELHO; FONSECA, 2005, P. 216). proposição fragmentada do atendimento e
pouco atenta aos aspectos psicossociais do
Faz-se necessário considerar a impor- adoecimento (AYRES, 2009). Torna-se, portanto,
tância do cuidado não só no contexto do importante ressaltar que a resolutividade
Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, na rede básica de saúde está ligada não só
mas também no cenário internacional, no ao recurso instrumental e conhecimento
acesso à atenção e aos serviços oferecidos técnico dos profissionais, mas também à
pelo sistema, prioritariamente pela Atenção ação acolhedora, ao vínculo que se estabe-
Primária à Saúde (APS). A Estratégia Saúde lece com o usuário, ao significado que se dá
da Família (ESF) tem contribuído para o na relação profissional/usuário, que surge do
campo da APS no Brasil, sendo a diretriz “encontro de sujeitos com o sentido de atuar
de vínculo entre a equipe, usuário, família sobre o campo da saúde” (MERHY, 2002, P. 189).
e comunidade uma das principais nortea- A questão que se coloca no presente
doras de mudança do modelo assistencial. estudo é como garantir, além do acesso, esse
Esta vem se contrapor a um processo de cuidado para as populações em situação de
trabalho caracterizado tradicionalmente vulnerabilidade extrema, como a População
pela centralidade em programas de saúde em Situação de Rua (PSR)?

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


248 SILVA, C. C.; CRUZ, M. M.; VARGAS, E. P.

Embora o Brasil tenha avançado no acesso e 27,9% negros. No total, 74% sabiam ler e
aos serviços de saúde por meio da expansão escrever, e quase a metade (48,4%) alegou
da cobertura pelas EqSF nos diversos mu- ter completado o ensino fundamental. Os
nicípios do País, ainda existem grupos que, principais motivos pelos quais essas pessoas
devido à organização dos serviços e seus passaram a viver e morar na rua se referem
modos de vida, encontram grande dificulda- aos problemas de alcoolismo e/ou drogas
de de acesso a estes serviços em decorrência (35,5%), ao desemprego (29,8%) e (29,1%) às
de suas singularidades (CARNEIRO JUNIOR ET AL., desavenças com familiares (BRASIL, 2008).
2010). Esse é o caso das pessoas em situação Com base nas questões assinaladas, surgiu
de vulnerabilidade, o que requer constante o interesse em estudar as práticas de cuidado
renovação dos arranjos e das metodologias de no âmbito da atenção primária neste contexto
organização do cuidado. Destacam-se nesse específico de CR, no território de Manguinhos.
grupo as pessoas que vivem em situação de As perguntas que orientaram esta investigação
rua que, historicamente, tem acesso limitado foram: Quais são as ações e práticas organiza-
aos serviços de saúde com uma gama de en- das para o cuidado da população em situação
traves, alguns destes assinalados por Costa de rua neste contexto? Como são desenvolvi-
(2005): a exigência de comprovação de residên- das? Elas permitem a construção de vínculo?
cia, tratamentos de saúde aplicados a regras Tendo em vista essas indagações, o ob-
que não levam em consideração as condições jetivo do estudo consistiu em caracterizar
de vida destes indivíduos, e o despreparo dos como a equipe de CR da Clínica da Família
profissionais para o acolhimento a esse grupo. Victor Valla (CFVV), em Manguinhos/RJ,
Recentemente, a Política Nacional de desenvolve suas práticas de cuidado à saúde
Atenção Básica instituiu os Consultórios para a população em situação de rua. Ao con-
na Rua (CRs) com o objetivo de ampliar o siderar ainda a escassa produção de pesqui-
acesso dos usuários à rede de serviços de sas sobre o tema, o intuito foi o de ampliar
saúde (BRASIL, 2012A). A proposta das equipes o conhecimento sobre práticas de cuidado
do CR consiste em promover uma articu- acerca de um segmento tão discriminado e
lação da rede com a principal finalidade de estigmatizado, bem como dar visibilidade a
garantir o acesso à atenção integral à saúde mais uma experiência inovadora no campo
às pessoas em situação de rua/usuários de da saúde pública no contexto da rede de APS
álcool e outras drogas. Algumas experiências na cidade do Rio de Janeiro.
brasileiras, como as de Belo Horizonte, São
Paulo e Porto Alegre (COSTA, 2005) e Salvador
(OLIVEIRA, 2009), vêm se destacando no atendi- Método
mento à PSR, especificamente na atuação
das EqSF, criadas para desenvolver ações de Esta investigação se caracteriza como um
saúde no território da rua. Com o objetivo estudo de caso apoiado na abordagem qua-
de caracterizar o perfil dessa população, foi litativa, adequada para a problematização de
realizada uma pesquisa pelo Ministério do questões muito particulares de objetos com-
Desenvolvimento Social, no ano de 2008, em plexos (YIN, 2010).
metrópoles brasileiras, com exceção de São O estudo, realizado como requisito parcial
Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre. do mestrado em saúde pública realizado na
Os dados obtidos revelam que de um grupo Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
de 31.922 pessoas, 82% eram homens e pouco Arouca/Fiocruz (2011-2013), foi desenvol-
mais da metade (52%) entre 25 e 44 anos de vido na cidade do Rio de Janeiro, no CR da
idade. Com relação ao quesito raça/cor auto- CFVV, localizada no bairro de Manguinhos.
declarado, 39,1% eram pardos, 29,5% brancos A escolha dessa Unidade foi definida a partir

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua 249

de dois critérios: o primeiro, relacionado e dinâmica do atendimento: horário, porta de


ao seu perfil caracterizado por ser destina- entrada, acolhimento, abordagem e estraté-
do à atenção primária e funcionar segundo gias de criação de vínculo e registro das infor-
a lógica da ESF; o segundo, diz respeito ao mações); (2) de entrevista com profissionais
fato da experiência de realização do CR ser de saúde (descrição das práticas de cuidado;
recente no território de Manguinhos. experiência no e rotina do atendimento; es-
Verificou-se existirem diversos grupos de tratégias de abordagem; registros de dados;
pessoas em termos das condições sociais, mas redes de apoio identificadas e lições apren-
também quanto às diferentes cenas de ocupa- didas); (3) de entrevista com um informante-
ção nas ruas de Manguinhos: na linha do trem, -chave representante do movimento social
nas vielas, nas avenidas principais. Nelas são (mapeamento de dificuldades, problemas de
encontradas pessoas dormindo, trabalhando saúde, acesso aos serviços de saúde e necessi-
com venda e coleta de lixo, utilizando drogas, dade de vínculo), visando cotejar, em relação
fazendo higiene pessoal, alimentando-se etc. aos dados levantados, aspectos relacionados
Algumas características desse grupo favore- às demandas e necessidades dessa popula-
cem sua vulnerabilidade. Uma caracteriza- ção e (4) roteiro de levantamento de dados
ção pode ser traçada com dados dos usuários (faixa etária, sexo, escolaridade, naturalidade,
atendidos, disponibilizados pela equipe do ocupação, formas de sustento; uso de álcool/
CR: 76% permanecem diariamente na região outras drogas, principais agravos de saúde
do estudo; concentram-se na faixa de 19 a 24 identificados e acompanhados, tempo na rua,
anos, sendo 39% mulheres e 61% homens; motivo de ida pra rua, relação com familiares)
53,1% são de cor parda e 33,9% negra; 67% para caracterização do perfil dos usuários
possui contato familiar esporádico; 96% in- em prontuário, relatórios e fichas de cadas-
formou o uso de algum tipo de droga; e 44% tro. Esta descrição não será objeto de análise
não possui documentação. neste artigo. Complementarmente, utilizou-
A descrição das práticas de cuidado do CR -se um diário de campo para registro do tra-
de Manguinhos tem por referência os atribu- balho de campo.
tos da atenção primária e a experiência da ESF. As entrevistas foram realizadas com os
Por meio desta, buscou-se focalizar nas cenas profissionais de saúde que atuam diretamen-
de produção desse cuidado, nas ações dos pro- te com a população em situação de rua, con-
fissionais no espaço da rua e no contexto de siderando o papel desempenhado por cada
vulnerabilidade no qual se inserem as pessoas categoria profissional: agente comunitário
que vivem em situação de rua em Manguinhos. de saúde, técnico de enfermagem, enfermei-
O trabalho de campo foi desenvolvido por uma ro, médico, dentista, e profissionais de saúde
das pesquisadoras-autoras, profissional de mental. Estes pertencem à equipe de CR,
saúde com experiência na APS. com exceção de um que pertencia a outra
Para o desenvolvimento da pesquisa, equipe da CFVV. Foram entrevistados oito
foram utilizadas três técnicas para a coleta de profissionais no espaço da educação perma-
dados, as duas primeiras aplicadas de julho nente da Unidade e um informante-chave
a outubro de 2012: ‘observação direta’ das representante do movimento social. Para
ações das cenas de cuidado desenvolvidas confidencialidade dos entrevistados, as en-
pelos profissionais diretamente no espaço da trevistas foram codificadas por numeração
rua, ‘entrevistas semiestruturadas’ e ‘levanta- de modo que o sigilo, o nome e a identidade
mento de dados’ secundários de informação. profissional fossem preservados.
Foram utilizados roteiros para cada técnica: Na análise das entrevistas, os relatos foram
(1) de observação (infraestrutura; contexto transcritos, organizados e relacionados aos
organizacional; composição da equipe; rotina dados da observação direta, o que tornou

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


250 SILVA, C. C.; CRUZ, M. M.; VARGAS, E. P.

possível a descrição dos temas e tópicos rela- estabelecimento de elos de ligação entre o
tivos às práticas de cuidado na rua, levando- serviço de saúde e a população em situação
-se em consideração as proposições iniciais de rua, sendo o encontro diretamente na rua
do estudo. Nessa direção os resultados serão um meio para a construção de vínculos que
apresentados em torno de dois eixos inter- estimulem a ida dos usuários às unidades de
ligados e separados apenas para efeito de saúde. No caso em questão, a cena do cuidado
apresentação: a coordenação e organização focalizada na pesquisa é a rua, sendo o pla-
do cuidado; vínculo e acolhimento, ambos nejamento organizado com foco no encontro
relativos especificamente ao cuidado na rua. com os usuários nas diversas cenas de uso
As entrevistas foram gravadas e armazenadas de drogas no território. Assim, se o encon-
em local seguro, sob responsabilidade do pes- tro entre profissionais da ESF e os usuários
quisador principal. O projeto foi aprovado pelo ocorre no domicílio e no serviço de saúde,
Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional no CR o encontro é na rua e em um único
de Saúde Pública Sergio Arouca/Ensp/Fiocruz, consultório localizado na CFVV. As ações
sendo o número de parecer 61.931. na rua são focadas na redução de danos, que
têm como característica principal “ofertar
cuidado no espaço da rua” (BRASIL, 2012A). Nesse
Resultados ponto, a prática se configura inicialmente no
campo da intersubjetividade, traduzida nos
O olhar, neste estudo, voltou-se principalmen- encontros no espaço da rua que possibilitam
te aos “microprocessos do trabalho em saúde” a construção de vínculo entre os profissio-
(FRANCO; MEHRY, 1999, P. 6), nos afazeres do cotidiano nais e os usuários, com vistas de construção
relativos à organização do cuidado em saúde, de projetos terapêuticos.
sobre os quais se observou o processo de aco- Na observação direta das ações dos pro-
lhimento e o estabelecimento de vínculo da fissionais no espaço da rua, foi identifica-
equipe do CR com seus usuários. De um ponto da uma atuação diversificada da equipe:
de vista teórico, cabe destacar que o ato de realização de orientações sobre problemas
cuidar pode assumir diferentes significados de saúde, distribuição de insumos de pre-
e, particularmente, no caso das práticas de venção de DST/Aids e explicação da propos-
cuidado em saúde voltadas para a população ta de trabalho da equipe do CR. Foi possível
em situação de rua, almeja-se que esteja rela- também presenciar, dependendo da situação
cionado à promoção de ações que garantam o de saúde apresentada no cuidado no espaço
princípio da equidade expresso no SUS. da rua, os profissionais convidando os usu-
As informações, impressões e dados que ários para irem à clínica, a fim de realizar o
serão apresentados buscam, portanto, trazer cuidado necessário.
à tona não somente questões que são enun- A entrada da PSR na CFVV se apresentou
ciadas, mas também às vezes silenciadas como o segundo passo fundamental a ser
pelos profissionais de saúde no seu cotidia- galgado pela equipe para a continuidade do
no de trabalho, de modo a contribuir para a cuidado que, muitas vezes, se faz necessá-
produção de práticas de cuidado inovadoras rio no espaço físico do serviço. Em relação
e coletivas no campo da APS, voltadas para à utilização do espaço físico da CFVV, os
populações específicas. informantes do estudo apontaram ter vi-
venciado inicialmente obstáculos descri-
A organização do cuidado na rua tos por um dos profissionais entrevistados
(E4). Segundo ele, no início da utilização do
O CR, em sua concepção original, se cons- serviço pelos usuários os demais profissio-
titui como uma das estratégias para o nais da CFVV ficavam receosos, com medo e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua 251

muito resistentes em receber as pessoas em como muito profissionais a denominavam, no


situação de rua no serviço. espaço do acolhimento. O turno da manhã era
Os profissionais do CR relataram que um o de maior volume de recepção da população,
dos aspectos que favoreceram a entrada dos e a maioria esperava o atendimento sentada.
usuários no espaço físico da CFVV foi a dis- Alguns usuários aguardavam de pé para
seminação de informações sobre o serviço serem chamados pelos Agentes Comunitários
entre os próprios usuários. Muitas vezes as de Saúde (ACS) nos guichês da unidade.
PSR levavam seus colegas ao serviço quando Assim que era chamado, informava o seu local
estes precisavam de cuidado. A entrada de moradia e, minimamente, o que buscava,
desses usuários no serviço demonstrou para fosse uma consulta agendada, uma consulta
os demais profissionais da clínica, principal- por demanda espontânea ou outra demanda.
mente aqueles que acreditavam ser impossí- Depois de conversar com o ACS no guichê,
vel cuidar dessa população, que o fato deles os usuários esperavam um pouco mais para
morarem nas ruas e utilizarem drogas não serem atendidos pela equipe de enfermagem
os impedia de procurar cuidado e de serem ou médica. Por mais que houvesse muitas
cuidados. Além disso, era recorrente entre consultas marcadas, a maioria das deman-
profissionais o discurso de que cada usuário das se apresentava de forma inesperada. O
que chegava ao serviço estimulava a equipe excesso desse tipo de demanda favorece um
a repensar suas estratégias, técnicas e pro- tipo de trabalho ambulatorial sem que haja
cedimentos, com vistas à adequação para a por parte dos profissionais um conhecimento
realidade de vida dos usuários. prévio e um acompanhamento da maioria dos
No entanto, a resistência em atender a PSR usuários ao longo de seus itinerários terapêu-
ainda era grande para alguns profissionais da ticos, o que apresenta dificuldades em relação
CFVV, gerando como consequência a insegu- à integralidade do cuidado.
rança e/ou o medo da população em buscar o No caso da PSR, essa população adentra
acesso ao serviço. Com a implantação do CR, a CFVV com os profissionais ou por conta
observa-se que esse cenário tem se modifica- própria e é direcionada ou se direciona
do, pois a equipe vinha utilizando como es- para a sala do consultório ‘10’. Em frente a
tratégia o diálogo com a PSR enfatizando, de este consultório, são encontrados bancos
acordo com um dos depoimentos, de que o (longarinas) para recepcionar/acomodar as
acesso seria mais fácil e o atendimento mais pessoas em situação de rua que procuram
rápido. Com isso, a incerteza de conseguir o serviço ou para serem levadas a ele pela
um atendimento de saúde vem sendo modi- equipe que diariamente vai ao encontro dos
ficada paulatinamente com o vínculo que se usuários nas cenas de uso de drogas. Ali é o
estabelece no espaço da rua, nas cenas de uso espaço onde são realizadas as consultas dos
de droga, além de se fortalecer no espaço da diversos profissionais do CR. Esse é o prin-
CFVV. Os usuários aos poucos foram se sen- cipal espaço físico utilizado pelos usuários e
tindo seguros com a referência de cuidado pela equipe do CR onde diariamente atuam
no espaço da clínica e passaram a frequentar os profissionais da área de enfermagem e os
a unidade, principalmente, de acordo com ACS ou Agentes Sociais (AS).
os profissionais, quando realmente as PSR Cabe assinalar que, para um dos profis-
sentiam muita dor, febre, ou alguma ferida sionais da CFVV, a diferença, no âmbito da
que causava incômodo. recepção/acolhimento da PSR, é vista como
Durante o trabalho de campo, foi possí- uma ‘certa segregação’, se comparado ao dos
vel permanecer em diferentes horários e outros usuários. Na percepção de um dos
em ambos os turnos de funcionamento do profissionais de uma das EqSF da CFVV,
serviço, na sala de espera da unidade ou, havia dúvida se a escolha de separar o espaço

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


252 SILVA, C. C.; CRUZ, M. M.; VARGAS, E. P.

do acolhimento seria o melhor caminho. Isso recolhido por equipes de outras secretarias
porque o usuário, ao chegar na clínica, ou do município do Rio de Janeiro, e por outro,
se dirige para as cadeiras em frente ao con- experimentava a oferta de acolhimento e
sultório ‘10’, ou é recepcionado pelo guarda, cuidado pela equipe de saúde. Por fim, o
que, segundo o informante, tem uma abor- desejo de ser cuidado pelos usuários foi apa-
dagem especial, que o direciona para o local recendo no decorrer das primeiras visitas às
de atendimento até mesmo conduzindo-o cenas de uso nesse território.
diretamente à equipe e apresentando-o. Este Com vistas à aproximação com os usuários,
atendimento especial, como descrito, não as estratégias utilizadas pelo CR no território
ocorre com os outros usuários. foram diversas, sendo algumas delas assinala-
das por um dos profissionais entrevistados: a
mudança do jaleco do ACS, o uso apropriado
Vínculo e acolhimento da linguagem e uma postura para escutar e
respeitar quando o usuário não quer aproxi-
As práticas de cuidado desenvolvidas pelo mação. De acordo com o depoimento de uma
CR têm como eixo essencial a criação de profissional (E6), em algumas situações era
vínculo, como atitude fundamental na reali- necessário omitir para os usuários a categoria
zação do cuidar. Ou seja, buscam abrir mais profissional de membros da equipe para que
espaço para os usuários como sujeitos, e não fosse confundido com os profissionais da
não como objetos de intervenção, para uma Secretaria Municipal de Assistência Social
maior capacidade da atenção e continuidade (SMAS), pois estes significavam para eles uma
das ações no serviço, visando o atendimento experiência negativa de atenção ao morador
às diferentes demandas de indivíduos (AYRES, de rua. De forma processual, com o tempo
2009). Tal prática resulta na promoção de e a persistência da equipe em atuar nas ruas,
um efetivo envolvimento de profissionais sempre com uma postura respeitosa e buscan-
e usuários, na perspectiva de resolução das do a aproximação com base nas estratégias de
demandas apresentadas, de acordo com redução de danos, os profissionais observaram
o tempo e a necessidade da população. Se que os usuários passaram ‘a confiar e aceitar os
o profissional, em sua prática, atuar com serviços prestados pela equipe’.
posturas preconceituosas, buscando definir A fim de prover um cuidado integral, a
condutas que não condizem com a realidade equipe estudada vem buscando cotidianamen-
de vida dessas pessoas, dificilmente o plano te mapear e conhecer a rede de proteção social
de cuidado proposto será realizado e, muito e suas diversas instituições governamentais
menos, a possibilidade de construção de e não governamentais direcionadas à PSR.
vínculo vai ser efetivada. Realizam-se visitas às instituições para conhe-
O vínculo inicial da equipe do CR de cer o funcionamento e rotinas e procuram-se
Manguinhos estabelecido com as pessoas em relacionar os serviços mapeados ao perfil e às
situação de rua naquela região foi marcado necessidades dos usuários. Essas ações contri-
nos primeiros momentos pelo constran- buem para a construção de oferta de serviços
gimento, pelo medo e, simultaneamente, mais qualificados pela equipe do CR.
pelo desejo de cuidado. O constrangimento, A entrevista com o representante do Fórum
segundo relato da equipe, esteve associado Estadual Permanente da PSR adulta foi revela-
ao fato dos usuários acharem que seriam re- dora no sentido de apontar os desafios de ga-
jeitados no espaço da clínica. O medo era de- rantir o acesso desta população pelo SUS. Para
rivado da contradição das políticas públicas, ele, o Samu (Serviço de Atendimento Médico
particularmente da Prefeitura/RJ, uma vez de Urgência) é um dos principais equipamen-
que o usuário por um lado era repreendido, tos de saúde, sendo que não está habilitado, no

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua 253

que se refere à sensibilidade e ao preparo, para EqSF deve, em média, ter 3 mil cadastrados,
lidar com este tipo de atendimento. Segundo chegando ao máximo de 4 mil pessoas cadas-
esse informante, é importante um esforço de tradas. Em contrapartida, uma equipe de CR
superação do abismo presente na relação entre deve se responsabilizar por um número de
os profissionais de saúde e a PSR sendo neces- pessoas em situação de rua que varia de 80 a
sário o desprendimento dos profissionais de mil, conforme orientação descrita na regula-
‘coisas pré-concebidas’. mentação do Ministério da Saúde para os CRs
(BRASIL, 2012A).
No período do trabalho de campo, foi re-
Discussão latado por um dos profissionais do CR que
havia um total de 357 pessoas cadastradas. O
No que se refere à produção do cuidado, obser- quantitativo de pessoas estipulado pelo MS
va-se que a equipe do CR organizou seu proces- para o CR, que é de no máximo mil usuários,
so de trabalho com certas particularidades no contribui significativamente com a construção
tocante às demais equipes da CFVV. Em primei- de vínculo, com a possibilidade de respostas às
ro lugar, destaca-se que houve adaptações das necessidades de saúde da PSR (BRASIL, 2012C). No
diretrizes da ESF, no que concerne à adscrição caso das EqSF, o elevado número de pessoas
da clientela. As EqSF direcionam seu trabalho cadastradas vem sendo apontado como um
para a população cadastrada com domicílio desafio para a qualificação da ESF, sendo
fixo, o CR atende as pessoas no território da rua, considerado o modelo de atenção ideal para
sejam elas cadastradas ou não. Os procedimen- pequenos municípios e não para os grandes
tos que eram denominados de forma diferen- centros urbanos (CONILL, 2008).
ciada como ‘visita domiciliar’, passaram a ser Em terceiro lugar considera-se o recorte
‘visita de rua’ (CARNEIRO JUNIOR ET AL., 2010). A rotina territorial, isto é, a atuação do SF por ser bem
de ‘visita de rua’ é diária, mas, diferentemente diferente quanto ao espaço geográfico e seus
das outras EqSF da unidade, os profissionais do limites, se comparada ao trabalho do CR,
CR não concentram tais visitas majoritariamen- uma vez que a PSR apresenta grande mobili-
te nos ACS. Todos os profissionais têm agenda dade em relação à população cadastrada de
semanal, e para alguns quase diária, com vistas a Manguinhos. Sendo assim, não é possível deli-
fortalecer os vínculos e ampliação da acessibili- mitar o espaço de atuação por área ou microá-
dade de novos usuários à unidade. rea, como é realizado pelas EqSF. A equipe do
Um profissional chamou a atenção ao as- CR é responsável pelo acompanhamento de
sinalar que essa população era vista como todas as pessoas que se encontram em situa-
‘bicho-papão’. Alguns relatos de discrimi- ção de rua no Território Integrado em Saúde
nação por parte dos profissionais de saúde a (Teias) de Manguinhos, a qual muitas vezes
essa população também foram descritos em ultrapassa o espaço geográfico do Teias para o
outros trabalhos ao apontarem preconceitos e acompanhamento de seus usuários.
discriminações sofridas pela PSR nos serviços Por último, cabe problematizar a proposta
de saúde. Como exemplo, Canônico et al. (2007, de cadastro dos usuários, na qual a equipe de
P. 801) encontraram que as PSR questionavam CR propôs um modelo específico para essa
o “preconceito por parte de equipes de saúde população, em que o cadastramento era feito
que resistiam em atendê-las, em decorrência inicialmente na rua. Ocorre que após alguns
de sua condição precária de higiene de saúde”. meses de trabalho, os próprios usuários foram
Em segundo lugar, destaca-se o quantitativo se colocando contrários a relatar particulari-
de população cadastrada, em relação ao que dades de sua vida nas cenas de uso da droga.
é preconizado pela ESF. Segundo a Política Também há uma preocupação em utilizar
Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2012B), uma uma linguagem que deixe claras as ações e os

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


254 SILVA, C. C.; CRUZ, M. M.; VARGAS, E. P.

procedimentos desenvolvidos na prática de Considerações finais


cuidado realizada pelos profissionais.
As adequações particulares, ou dito de outro Esta pesquisa buscou caracterizar as práti-
modo, os novos arranjos institucionais criados cas de cuidado em CR na APS, tendo como
no processo de trabalho do CR ocorreram por base a experiência desenvolvida na CFVV,
conta das singularidades do ‘modo de andar a localizada no território de Manguinhos/
vida’ (CARNEIRO JUNIOR ET AL., 2010) das PSR, reque- RJ. Trata-se de uma experiência recente,
rendo, constantemente, novos arranjos e meto- que possibilitou uma reflexão sobre os
dologias de organização do cuidado. Conforme necessários arranjos institucionais e orga-
assinala Reis Junior (2011), a ausência de resi- nizacionais para a atenção e cuidado da-
dência formal e o comportamento migratório queles que vivem em situação de exclusão
inerente à PSR constituem especificidades social na rua.
nem sempre contempladas no trabalho das De acordo com os resultados da pesqui-
EqSF, restringindo, dessa forma, o acesso às sa, o cuidado com o usuário do CR não se
populações que se organizam sem residência restringiu apenas à equipe específica para
fixa, como, por exemplo, os ciganos. este fim. Observou-se o envolvimento dos
Em relação à organização da equipe do CR, demais profissionais da CFVV, principal-
há uma ênfase no desenvolvimento de práticas mente dos profissionais médicos que vêm
coletivas e troca constante de saberes por parte demonstrando disponibilidade para o aten-
dos profissionais, o que, para Passos e Barros dimento a essa população. O que se almeja
(2000), pode ser definido por interseção, de é que o preconceito e o estigma diminuam
conjugação de dois domínios na constituição a cada dia, na medida em que cuidar dessa
de um terceiro, o que pode ser definido por in- população deixa de ser exclusividade do CR
terdisciplinaridade, ou seja, a criação de inter- para fazer parte do caminho de comprome-
seção entre os saberes e técnicas dos diversos timento a ser construído por todos os pro-
profissionais. O espaço da reunião de equipe se fissionais da CFVV.
apresenta como um espaço de educação per- Nas cenas de cuidado no contexto do
manente, sendo um “recurso estratégico para estudo, foram observadas singularidades
transformação das práticas e da própria orga- da APS voltadas para uma população es-
nização do processo de trabalho” (CUNHA, 2010, P. pecífica historicamente excluída do acesso
65). A integração dos saberes contribui para a aos serviços de saúde e demais políticas
construção de um projeto de cuidado para a públicas. Destaca-se, nessa direção, ter
PSR que abarque a complexidade e a multidi- havido uma maior flexibilidade da equipe
mensionalidade das necessidades de saúde. do CR em Manguinhos em relação às nor-
Do ponto de vista de mudança na lógica mativas de organização e implementação,
da produção do cuidado, foi possível perce- enquanto na EqSF prevalece a exigência
ber nitidamente que o cuidado ofertado pela do cumprimento de metas de produção
equipe não é centrado na figura médica. Ao de cadastro, procedimentos e acompanha-
contrário, toda orientação do trabalho dos mento de programas.
profissionais é centrada nas demandas e ne- A organização de trabalho da equipe do
cessidades dos usuários, o que Franco, Bueno CR demonstrou uma prática interdisciplinar,
e Mehry (1999) denominam como um modelo com processos constantes de troca de saberes
de atenção ‘usuário-centrada’, até porque, di- e técnicas entre os profissionais da equipe. O
ferentemente de outros usuários da unidade, reconhecimento da equipe como a referência
a lógica prescritiva de condutas e medica- em busca de cuidados por parte dos usuários
mentos vai contra o estilo e modo de vida das tem conferido a ela, de fato, a condição de
pessoas em situação de rua. ordenadora das demandas dessa população

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua 255

para os demais serviços da rede, na medida CR de Manguinhos demonstrou avanços na


em que procura resolver a maior parte das garantia do acesso a essa população específi-
necessidades de seus usuários. As equipes ca, dirigido por uma equipe responsável pelo
específicas para o atendimento a PSR ainda cuidado. Contudo, alguns desafios permane-
não estão aprisionadas às exigências dos cem presentes no acesso a essa população
demais atendimentos, o que lhes possibilita como o seu cotidiano, tais como as regras
construir um modelo alternativo de atenção, de alguns serviços de saúde da rede e o pre-
embora muitas vezes seja similar à proposta conceito ainda presente por parte de alguns
da ESF. Nessa direção, muitos são os avanços profissionais da clínica, bem como a falta
com a criação de uma equipe específica, de Centro de Atenção Psicossocial Álcool e
mas não se pode afirmar que a ampliação do Drogas (Capsad) no território que se soma à
acesso esteja plenamente garantida. Estudos falta de articulação da rede de atenção.
mais aprofundados são necessários para que Cabe ressaltar, no entanto, que a proposta se
se possa avaliar o surgimento nesse cenário apresenta de forma inovadora na cidade do Rio
desta categoria denominada ‘equipe especí- de Janeiro, na qual é desenvolvida, na medida
fica’ em suas amplas dimensões. em que parte das práticas de cuidado ocorre no
O que se apresentou no decorrer do contexto da rua. Com isso, o processo de tra-
estudo é que, a fim de prover um cuidado balho da equipe traz elementos para o debate
integral, a equipe do CFVV vem buscando em torno das políticas públicas voltadas para a
cotidianamente mapear e conhecer a rede PSR, apresentando novos caminhos e horizon-
de proteção social e suas diversas institui- tes que respeitem os direitos dessa população.
ções governamentais e não governamentais
direcionadas à PSR. As ações voltadas ao re-
conhecimento do funcionamento de rotinas Agradecimentos
e mapeamento de serviços e perfil de modo
a correlaciona-los às necessidades dos usuá- Agradecimento especial aos profissionais de
rios contribuem para a construção de oferta saúde que atuam nos Consultórios na Rua da
de serviços mais qualificados pela equipe do atenção básica em saúde, particularmente à
CR. Pode-se perceber ainda que a equipe do equipe do território de Manguinhos. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


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mento e os processos de trabalho em saúde: o caso de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 246-256, DEZ 2015


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 257

Atuação do cirurgião-dentista na
identificação de maus-tratos contra crianças
e adolescentes na atenção primária
Dental surgeons’ work in the identification of child and adolescent
abuse in primary health care

Gracyelle Alves Remigio Moreira1, Ana Carine Arruda Rolim2, Maria Vieira de Lima Saintrain3,
Luiza Jane Eyre de Souza Vieira

RESUMO Analisou-se a atuação do cirurgião-dentista na identificação de maus-tratos contra


crianças e adolescentes na atenção primária e os fatores associados. Estudo transversal com
212 cirurgiões-dentistas em 85 municípios cearenses. Usou-se questionário com variáveis
sociodemográficas, conhecimento, identificação e notificação de maus-tratos; remetido aos
participantes via gestão municipal. Realizou-se análise bivariada e multivariada por regressão
logística. Poucos profissionais identificaram maus-tratos, refletindo dificuldades para essa
prática. As análises mostraram que ter pós-graduação e conhecer a ficha de notificação au-
mentou a chance de identificar maus-tratos.

PALAVRAS-CHAVE Maus-tratos infantis; Odontólogos; Atenção Primária à Saúde; Saúde coletiva.

ABSTRACT We analyzed the role of the dental surgeon in identifying child and adolescent mal-
treatment in primary care and associated factors. A cross-sectional study of 212 dentist-surgeons
in 85 municipalities of Ceará. A questionnaire containing socio-demographic variables and in-
formation on knowledge, identification, and notification of maltreatment was sent to partici-
pants by the municipal manager. Bivariate and multivariate logistic regression analyses were
performed. Few professionals identified maltreatment, indicating the difficulties of this practice.
Analysis showed that having a post-graduation degree and knowing the notification form increa-
1 Universidade
sed the chances of identifying maltreatment.
de
Fortaleza (Unifor) –
Fortaleza (CE), Brasil. KEYWORDS Child Abuse; Dentists; Primary Health Care; Public health.
gracyremigio@gmail.com

2 Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp)
– Campinas (SP), Brasil.
anacarine.rolim@hotmail.
com

3 Universidade de
Fortaleza (Unifor) –
Fortaleza (CE), Brasil.
mariavieira@bol.com.br

4 Universidade de
Fortaleza (Unifor) –
Fortaleza, (CE), Brasil.
janeeyre@unifor.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005235 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015
257
258 MOREIRA, G. A. R.; ROLIM, A. C. A.; SAINTRAIN, M. V. L.; VIEIRA, L. J. E. S

Introdução às autoridades competente, baseado no


Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
Os maus-tratos vêm atingindo um crescen- (BRASIL, 1990), nas Portarias nº 1.968/2001 (BRASIL,
te número de crianças e adolescentes, de 2001) e nº 104/2011 (BRASIL, 2011) do Ministério
todas as idades e sexos, constituindo-se em da Saúde, assim como no Código de Ética
um problema social e de saúde pública em Odontológica, que constitui como deveres
vários países, inclusive no Brasil (FINKELHOR do profissional zelar pela saúde e pela digni-
ET AL., 2013; MATOS; MARTINS, 2013). Os reflexos da dade do paciente, além de promover a saúde
violência são nitidamente percebidos no coletiva no desempenho de suas funções,
âmbito dos sistemas de saúde seja pelas cargos e cidadania, independentemente
mortes, traumas físicos e agravos mentais de exercer a profissão no setor público ou
decorrentes do ato; pelo comprometimento privado (CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA, 2012).
da qualidade de vida dos indivíduos; pelos Embora tenha havido avanços no campo
custos econômicos com tratamento e reabi- legal e político, a maior parte dos cirurgi-
litação ou pela necessidade de reorganiza- ões-dentistas que trabalha na APS está des-
ção das práticas de saúde (OLIVEIRA ET AL., 2012). O preparada para atuar ante os maus-tratos
tema tem ganhado visibilidade, estampando contra crianças e adolescentes, apresen-
com frequência os noticiários nacionais, e o tando dificuldades para a identificação das
governo vem investindo na formulação de situações e, consequentemente, para uma
uma agenda de políticas e programas, nas atenção adequada aos casos. Dessa forma,
diferentes áreas de atuação pública, para o pode-se considerar que a instituição de pre-
enfrentamento do fenômeno. ceitos legais e políticas públicas não garante
Como parte do modelo de atenção à saúde uma atuação efetiva diante do fenômeno
brasileira, a Atenção Primária à Saúde (APS) por parte desses profissionais. Isso mostra
se configura em um nível privilegiado para que a violência e suas repercussões se apre-
a identificação e o manejo de situações de sentam como desafio para os gestores do
maus-tratos dirigidas à população infantoju- Sistema Único de Saúde (SUS).
venil (ROLIM ET AL., 2014), uma vez que se pauta A identificação de maus-tratos repre-
em princípios que lançam o olhar sobre os senta a fase primordial de atuação profis-
determinantes de saúde da população, am- sional para o enfrentamento do problema
pliando o seu campo de atuação. (PORTO; BISPO JÚNIOR; LIMA, 2014). O não reconhe-
O cirurgião-dentista, como integrante cimento das situações de violência viven-
da Equipe de Saúde da Família, também é ciadas por crianças e adolescentes impede
responsável por práticas que extrapolam o a notificação dos casos e o acionamento da
modelo técnico-curativista devido à com- rede de proteção social, impossibilitando
plexidade das demandas da APS. Nesse con- a cessação dos atos, o que contribui para
texto, esse profissional desempenha papel o aumento de morbidade e mortalidade
fundamental na prevenção, identificação, nessa faixa etária.
notificação e atenção às situações de maus- Nessa perspectiva, estudos que tragam
-tratos. A literatura enfatiza sua posição ao debate essa realidade e que elenquem
estratégica para a detecção dos casos uma os fatores que facilitam a identificação de
vez que a maioria das lesões se encontra na maus-tratos contra este grupo populacio-
região da cabeça, pescoço, face e boca (ULDUM nal tornam-se relevantes na medida em que
ET AL., 2010; AUSTIN, 2012; CARVALHO; GALO; SILVA, 2013). podem oferecer subsídios para a superação
No Brasil, o cirurgião-dentista tem o de obstáculos que atravancam a implemen-
dever legal, ético e moral de notificar casos tação das normatizações e a qualificação das
suspeitos ou confirmados de maus-tratos ações da APS diante do problema.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


Atuação do cirurgião-dentista na identificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes na atenção 259
primária

Visando sobrepujar a distância entre o dados de uma pesquisa mais abrangente inti-
que está posto nos documentos oficiais e a tulada ‘Violência envolvendo crianças e ado-
prática nos serviços de saúde, este artigo tem lescentes: fatores condicionantes, processo de
como objetivo analisar a atuação do cirur- notificação e mecanismos de enfrentamento’,
gião-dentista na identificação de maus-tra- realizada no contexto da APS com médicos,
tos contra crianças e adolescentes no âmbito enfermeiros e cirurgiões-dentistas, em muni-
da APS e os fatores associados. cípios cearenses. Este artigo se reporta, especi-
ficamente, à categoria dos cirurgiões-dentistas.
O estado do Ceará é composto por 184
Métodos municípios. Este estudo abrangeu 46,2%
destes, totalizando 85 cidades investiga-
Trata-se de um estudo de corte transversal, que das, contemplando todas as regiões de
utilizou como fonte de informações o banco de saúde do estado (figura 1).

Figura 1. Mapa do estado do Ceará evidenciando os municípios investigados, Ceará, Brasil, 2015

A população acessível foi obtida com base A coleta de dados ocorreu entre os anos
nos dados fornecidos pelo Departamento da de 2010 a 2012, cuja operacionalização
Atenção Básica (DAB). Na época da pesqui- aconteceu por meio do envio dos formulá-
sa, os municípios referidos contavam com rios, previamente organizados em envelo-
714 cirurgiões-dentistas atuantes na APS. pes lacrados e identificados por município,
Para a produção de dados, um conjunto de aos gestores das Coordenadorias Regionais
cartas-convite, Termos de Consentimento de Saúde e/ou das Secretarias Municipais
Livre e Esclarecido (TCLE) e questionários de Saúde, que intermediaram a entrega do
foi enviado a todos os profissionais identifi- material aos cirurgiões-dentistas de cada
cados. Destes, 212 responderam e compõe a município. O retorno dos instrumentos pre-
amostra desta pesquisa. enchidos seguiu o fluxo inverso.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


260 MOREIRA, G. A. R.; ROLIM, A. C. A.; SAINTRAIN, M. V. L.; VIEIRA, L. J. E. S

O questionário estruturado foi compos- A pesquisa foi aprovada pelo Comitê


to por 32 questões, adaptadas e revisadas, de Ética em Pesquisa da Universidade de
com os seguintes domínios analíticos: so- Fortaleza – Unifor, sob o parecer nº 072/2007.
ciodemográfico, formação profissional, ins-
trumentação e conhecimento sobre o tema,
identificação e notificação de casos de maus- Resultados
-tratos em crianças e adolescentes.
Neste artigo, estabeleceu-se como des- Os participantes do estudo (n=212 cirurgi-
fecho a identificação de maus-tratos em ões-dentistas) tinham entre 21 e 68 anos,
crianças e adolescentes e como variáveis com média de idade de 33,8 anos (DP±10,3)
preditoras: sexo; idade; situação conjugal; e maior frequência na faixa etária de 21 a 34
tempo de formado; tempo de trabalho na anos (128/60,4%). Verificou-se o predomínio
APS; pós-graduação; sofreu maus-tratos do sexo masculino (111/52,4%), não casados
na infância; participou de treinamento (116/54,7%), tempo de formado de 5 anos
sobre o tema; conhece o ECA; conhece a ou mais (121/57,1%), com menos de 5 anos
ficha de notificação; ficha de notificação de trabalho na APS (107/50,5%), com pós-
na Unidade de Atenção Primária à Saúde -graduação (144/67,9%) e que não sofreram
(Uaps); confia nos órgãos de proteção; sabe maus-tratos na infância (196/92,5%).
para onde encaminhar os casos; medo de As características referentes à instru-
envolvimento legal; lê sobre a temática; mentação e ao conhecimento dos profis-
discute assunto no trabalho; conhece insti- sionais sobre os maus-tratos em crianças e
tuição de apoio; e vantagem em instituir à adolescentes apontam que 178 (84,0%) não
notificação na APS. conhecem a ficha de notificação, 158 (74,5%)
Para análise, o teste qui-quadrado (x2) relataram que a Uaps não possui a ficha, 148
foi utilizado para verificar a associação (69,8%) confiam nos órgãos de proteção ao
entre o desfecho e as variáveis preditoras. grupo, 106 (50,0%) mencionaram saber para
Estabeleceu-se p<0,05 para significância onde encaminhar os casos, 151 (71,2%) refe-
estatística. Seguiram-se a essas análises riram não ter medo de envolvimento legal
os procedimentos de modelagem múltipla ao notificar e 192 (90,6%) acham vantagem
por meio de regressão logística, incluin- instituir a notificação na APS.
do no modelo as variáveis preditoras que Em relação à apropriação do tema pelos
mostraram associação ao desfecho com participantes, 183 (86,3%) não participa-
significância p<0,25. Permaneceram no ram de treinamento acerca da temática, 115
modelo múltiplo as variáveis ao nível de (54,2%) conhecem o ECA, 145 (68,4%) não
significância p<0,05. A força de associação faziam leituras sobre a questão e respon-
entre o desfecho e as variáveis preditoras deram que o assunto não era discutido no
foi expressa em valores estimados de Odds ambiente de trabalho e 166 (78,3%) não co-
Ratio (OR) bruto e ajustado, com Intervalo nheciam instituição de apoio às crianças e
de Confiança (IC) de 95%. Todos os ques- adolescentes em situação de maus-tratos.
tionários foram conferidos e inseridos no Quanto à identificação e notificação de
banco com dupla entrada, a fim de verificar casos de maus-tratos, 71,2% (151) dos cirur-
a consistência dos dados, que foram digita- giões-dentistas afirmaram que não haviam
dos no programa SPSS (SPSS Inc., Chicago, identificado situações de maus-tratos na
Estados Unidos), versão 17.0. A análise sua prática profissional. Dos 28,3% (60) que
estatística foi realizada utilizando-se do já tinham identificado algum caso, 83,1%
programa STATA (Stata Corp LP, College não notificaram as ocorrências, enquanto
Station, TX 77845, USA), versão 11.0. 16,9% realizaram esse procedimento.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


Atuação do cirurgião-dentista na identificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes na atenção 261
primária

Na tabela 1, na análise bivariada, observa- O modelo logístico final mostrou que


-se que pós-graduação (p=0,010), participar há mais chance de o cirurgião-dentista
de treinamento (p=0,024) e conhecer a ficha identificar situações de maus-tratos em
de notificação (p=0,003) apresentaram asso- crianças e adolescentes se tiver pós-gra-
ciação com a identificação de maus-tratos. As duação (2,35 vezes mais que aqueles que
demais variáveis não mostraram significância não possuem) e se conhecer a ficha de
(p>0,05). No modelo logístico final, ter pós- notificação (elevou quase o triplo, 2,93, a
-graduação e conhecer a ficha de notificação chance em relação àqueles que não conhe-
permaneceram associadas ao desfecho. cem a ficha) (tabela 1).

Tabela 1. Análise bivariada e multivariada entre a identificação de maus-tratos e fatores associados. Atenção Primária à Saúde, CE, Brasil, 2010-2012

Cirurgião-dentista identificou
maus-tratos
Sim Não Não Ajustada Ajustada (modelo final)
Variável N % N % OR (IC95%) p OR (IC95%) p
Sexo (n=211)
Masculino 32 53,3 79 52,3
Feminino 28 46,7 72 47,7 0,96 (0,50-1,82) 0,894
Idade (n=191)
21-34 anos 39 69,6 89 65,9 1,18 (0,57-2,48) 0,618
>34 anos 17 30,4 46 34,1
Situação conjugal (n=210)
Casado 30 50,8 64 42,4 1,40 (0,73-2,68) 0,267
Não casado 29 49,2 87 57,6
Tempo de formado (n=211)
< 5 anos 26 43,3 65 43,1
≥ 5 anos 34 56,7 86 56,9 0,98 (0,51-1,89) 0,969
Tempo de trabalho na APS (n=211)
< 5 anos 32 53,3 75 49,7
≥ 5 anos 28 46,7 76 50,3 0,86 (0,45-1,64) 0,631
Pós-Graduação (n=208)
Sim 49 81,7 94 63,5 2,55 (1,18-5,90) 0,010 2,35 (1,11-4,97) 0,024
Não 11 18,3 54 36,5
Sofreu maus-tratos na infância (n=210)
Sim 06 10,0 09 6,0 1,74 (0,48-5,76) 0,309
Não 54 90,0 141 94,0
Participou de treinamento (n=210)
Sim 13 21,7 15 90,0 2,48 (1,00-6,05) 0,024
Não 47 78,3 135 10,0
Conhece o ECA (n=210)
Sim 39 65,0 76 50,7 1,80 (0,93-3,55) 0,059
Não 21 35,0 74 49,3
Conhece ficha de notificação (n=209)
Sim 16 26,7 16 10,7 3,02 (1,28-7,02) 0,003 2,93 (1,32-6,48) 0,008
Não 44 73,3 133 89,3
Ficha de notificação na Uaps (n=205)
Sim 17 28,8 31 21,2 1,50 (0,70-3,13) 0,245
Não 42 71,2 115 78,8
Confia nos órgãos de proteção (n=201)

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


262 MOREIRA, G. A. R.; ROLIM, A. C. A.; SAINTRAIN, M. V. L.; VIEIRA, L. J. E. S

Tabela 1. (cont.)

Sim 43 71,7 104 73,8 0,89 (0,43-1,89) 0,759


Não 17 28,3 37 26,2
Sabe para onde encaminhar (n=199)
Sim 32 55,2 74 52,5 1,11 (0,57-2,16) 0,729
Não 26 44,8 67 47,5
Medo de envolvimento legal (n=204)
Sim 18 30,5 36 24,8
Não 41 69,5 109 75,2 0,75 (0,36-1,57) 0,404
Lê sobre a temática (n=207)
Sim 23 38,3 40 27,2 1,66 (0,83-3,27) 0,114
Não 37 61,7 107 72,8
Discute assunto no trabalho (n=208)
Sim 26 43,3 38 25,7 2,21 (1,11-4,34) 0,012
Não 34 56,7 110 74,3
Conhece instituição de apoio (n=205)
Sim 13 21,7 27 18,6 1,20 (0,52-2,67) 0,616
Não 47 78,3 118 81,4
Vantagem notificação na APS (n=207)
Sim 55 91,7 136 92,5 0,88 (0,26-3,42) 0,835
Não 05 8,3 11 7,5

Discussão naturalização da violência contra crianças e


adolescentes; assim como pela própria orga-
A atuação na APS pressupõe vantagens para a nização do processo de trabalho na APS.
identificação de maus-tratos contra crianças Apesar do esforço do setor saúde em reco-
e adolescentes tendo em vista a proximidade mendar as ações e práticas de identificação,
territorial e o vínculo dos profissionais com as notificação, tratamento e prevenção às várias
famílias. Contudo, os resultados deste estudo expressões da violência doméstica, a capaci-
revelam que uma pequena parcela dos cirur- tação de recursos humanos para tais condutas
giões-dentistas identificou alguma situação ainda é limitada. Esta fragilidade inicia-se
de maus-tratos na sua prática nesse âmbito. na formação desses profissionais, pois essas
Este fato reflete a existência de dificuldades questões dificilmente são introduzidas nas
na identificação dos casos. matrizes curriculares da graduação.
Trabalhos estrangeiros também mostram Carvalho, Galo e Silva (2013), em um estudo
baixo percentual de cirurgiões-dentistas que empreendido com 80 cirurgiões-dentistas da
detectaram ou suspeitaram de atos violentos rede pública e privada de saúde de um municí-
contra a população infanto-juvenil (ULDUM ET pio do estado de São Paulo, constataram que a
AL., 2010; SONBOL ET AL., 2012). Achados semelhan- maioria dos profissionais relatou que o assunto
tes também são verificados em pesquisas na- não foi abordado durante a graduação. Fracon,
cionais (FRACON; SILVA; BREGAGNOLO, 2011; CARVALHO; Silva e Bregagnolo (2011) ressaltam que, mesmo
GALO; SILVA, 2013). A inabilidade do profissional tendo recebido informações durante a gradua-
em identificar os maus-tratos pode ser atri- ção, quase a totalidade dos profissionais inves-
buída a fatores, como: ausência ou insufici- tigados as consideraram insuficientes.
ência de abordagem do tema na graduação Também se evidencia que a lacuna do co-
e em treinamentos profissionais; conduta nhecimento ultrapassa os limites das institui-
clínica baseada no modelo biomédico; ções formadoras e se estende para a rotina das

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


Atuação do cirurgião-dentista na identificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes na atenção 263
primária

unidades de saúde, em virtude de a temática como lesões e traumas resultantes das agres-
da violência ainda ser pouco trabalhada ou até sões. Diante da complexidade do fenômeno
mesmo estar ausente da pauta de educação e de suas múltiplas dimensões, tem-se a ne-
permanente dos serviços (MOREIRA ET AL., 2014). cessidade de uma abordagem que priorize a
Confirmando este argumento, neste estudo, execução da clínica ampliada e que viabilize
86,3% dos cirurgiões-dentistas não participa- o desenvolvimento de uma atenção integral
ram de treinamento acerca do tema e 68,4% ao indivíduo (PORTO; BISPO JÚNIOR; LIMA, 2014).
não faziam leituras sobre a questão e relata- Ressaltam-se, além disso, o fato de que
ram que o assunto não era discutido no am- aspectos culturais, valores e tabus também
biente de trabalho. Isto indica que o enfoque podem influenciar intensamente a identifi-
na questão dos maus-tratos na APS ocorre de cação de maus-tratos. Culturalmente, ainda
forma incipiente, pontual e assistemática. Em parece ser aceita a concepção do direito
razão desses aspectos, os profissionais sentem- sem limites dos cuidadores sobre as crian-
-se inseguros e despreparados para a detecção ças e os adolescentes, o que leva ao abuso
e para a condução desse tipo de ocorrência. de poder do mais forte sobre o mais fraco. O
Outra questão é que a prática de atenção à uso da punição física ou outras expressões
saúde bucal no SUS está fortemente pautada de violência ainda constituem instrumentos
no modelo clínico (ARAÚJO; DIMENSTEIN, 2006; DE-­ frequentemente utilizados na educação dos
CARLI ET AL., 2014). Esse perfil clínico prepon- filhos. Consequentemente, essa banaliza-
derante vai de encontro às características ção da violência física faz com que práticas
preconizadas pelo modo de produzir saúde abusivas, muitas vezes, sejam consideradas
na APS (ARAÚJO; DIMENSTEIN, 2006). A reprodu- como práticas normais de disciplinamento,
ção de práticas tradicionais, fragmentadas e até mesmo pelos profissionais de saúde.
isoladas, fundadas na lógica de atendimento Outra barreira para a detecção dos casos
clínico-biológico, voltado para o tratamento diz respeito à própria organização do pro-
de lesões físicas, restringe uma atuação ade- cesso de trabalho na APS. A sobrecarga de
quada ante os casos de violência. atribuições incorporadas pelos profissio-
A dificuldade em identificar crianças e ado- nais, a elevada quantidade de famílias por
lescentes em situação de maus-tratos atrela-se equipe, o processo de avaliação de desempe-
ao fato de a demanda explícita, no que concer- nho centrado na produtividade e o excesso
ne ao atendimento por este motivo, ser con- de atividades burocráticas são questões que
siderada baixa, apesar dos altos índices desse fragilizam a atenção em saúde dispensada
problema nos territórios adscritos (PORTO; BISPO aos usuários do serviço. Esse acúmulo de
JÚNIOR; LIMA, 2014), enquanto os casos velados, atribuições reflete, muitas vezes, a realiza-
sem sinais visíveis, manifestam-se como em- ção de atendimentos rápidos, superficiais
pecilhos para o reconhecimento da violência. e focados na sintomatologia, sem a devida
Guedes, Nogueira e Camargo Jr. (2009), ao atenção às causas do problema (PORTO; BISPO
discorrerem sobre as limitações do modelo JÚNIOR; LIMA, 2014). De acordo com Porto,
biomédico diante de pacientes com sintomas Bispo Júnior e Lima (2014), as limitações dos
indefinidos, argumentam que o obstáculo de profissionais para lidar com o problema
desvelar o não aparente está relacionado com a também acentuam obstáculos dos pacien-
formação baseada nesse modelo hegemônico, tes ou pessoas da comunidade enxergarem
que não valoriza os aspectos subjetivos, e com as Uaps como local de apoio e acompanha-
a singularidade do sofrimento humano. mento às situações de violência.
Nesse sentido, a atuação dos profissionais O presente estudo também elucida os
diante dos maus-tratos está vinculda, com fatores que facilitam a identificação, pelos
frequência, àquilo que se consegue visualizar cirurgiões-dentistas, de maus-tratos contra

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


264 MOREIRA, G. A. R.; ROLIM, A. C. A.; SAINTRAIN, M. V. L.; VIEIRA, L. J. E. S

crianças e adolescentes na realidade estuda- Além disso, a negligência na saúde bucal


da. A análise múltipla mostrou que ter pós- pode ser um indicador de violência domés-
-graduação e conhecer a ficha de notificação tica. Crianças e adolescentes em situação
aumentou a chance de os profissionais iden- deste tipo de violência podem ser restrin-
tificarem os casos. gidos (pelos seus agressores) de atividades
Esses achados ressaltam a importância da de higiene diárias normais, atendimento
academia na formação de profissionais que odontológico ou médico, resultando em pa-
possam, de forma ética e científica, contribuir tologias não tratadas, dor e/ou dor crônica,
na vigilância em saúde das pessoas durante infecção, traumas, entre outras, afetando a
o exercício da profissão. Supõe-se que as sua qualidade de vida. Trabalho analisando a
propostas curriculares das pós-graduações relação entre cárie dentária e negligência em
construídas em eixos interdisciplinares fa- crianças detectou relação entre experiência
voreçam a troca de saberes e experiências de cárie e fatores de risco sugestivos de ne-
profissionais ante as demandas sociais que gligência, tendo sido importante na APS para
estão inscritas nas políticas temáticas e que a orientação de seus cuidadores (LOURENÇO;
desafiam a efetividade da gestão em saúde. SAINTRAIN; VIEIRA, 2013).
Nessa compreensão, os Ministérios da Os cirurgiões-dentistas, ao identificarem
Saúde e da Educação incentivam a implan- uma situação de violência, devem notificar
tação de residências e pós-graduações de o caso, assim como determinar se um pa-
caráter interdisciplinar para que as diretri- ciente pediátrico/adolescente requer ava-
zes políticas, que norteiam a reorientação liação mais detalhada ou uma intervenção.
do modelo de atenção à saúde, alcancem re- Para tanto, os profissionais precisam de
sultados que transformem os indicadores de conhecimento aprofundado, ferramentas
saúde da população, especificamente nesta didáticas e clínicas que possam ajudá-los a
pesquisa, dos que apontam os altos índices identificar os sinais e sintomas de violência
de maus-tratos em crianças e adolescentes. doméstica. Na visão de Austin (2012), cada
Tradicionalmente, a área da saúde tem prática no aprendizado odontológico pode
concentrado esforços em atender os efeitos determinar estratégias adequadas para a
da violência: a reparação dos traumas e intervenção e comunicação com o pacien-
lesões físicas nos serviços de emergência, te vítima de violência. Afirmação esta que
na atenção especializada, nos processos de corrobora os achados desta pesquisa de
reabilitação, nos aspectos médico-legais e que os profissionais tendo pós-graduação
nos registros de informações. Ultimamente, apresentam 2,35 mais chances de detectar
sobretudo em relação a alguns agravos, como a violência quando comparado aos que não
violência contra a população infanto-juvenil, possuem esta formação.
amplia-se a abordagem que inclui aspectos O conhecimento generalista e humaniza-
psicossociais e psicológicos tanto em relação do do cirurgião-dentista é efetivo para con-
ao impacto sobre os indivíduos como em tribuir na sua atuação de maneira preventiva,
relação à caracterização do agressor. identificando crianças e adolescentes mal-
A violência doméstica é um assunto muito tratados, quer física ou negligencialmente.
sensível, e relatar suspeita de maus-tratos é De modo importuno, ainda há falta de in-
um tópico circunspecto para profissionais formação e desconhecimento destes profis-
de Odontologia. Cirurgiões-dentistas podem sionais no que tange à violência contra essa
desempenhar um papel importante para in- faixa etária. Estudo brasileiro com cirurgi-
terromper o ciclo de maus-tratos, visto que ões-dentistas acerca do tema revela que a
75% das lesões físicas têm assento na cabeça, grande maioria (84,2%) não recebeu orien-
pescoço, face e/ou boca (AUSTIN, 2012). tações na graduação ou após a graduação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


Atuação do cirurgião-dentista na identificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes na atenção 265
primária

(FRACON; SILVA; BREGAGNOLO, 2011),


justificando o o cirurgião-dentista detectar maus-tratos,
alerta dos pesquisadores quanto à necessi- neste estudo, revela a importância da dis-
dade de capacitação dos trabalhadores da posição desse instrumento nas unidades de
área de saúde para diagnosticar, conduzir o saúde. De forma contrária, a insuficiência
atendimento nos casos de maus-tratos e co- de insumos pode comprometer o fluxo de
municar às autoridades competentes. atendimento, inviabilizando condutas que
Outro aspecto que favoreceu a identifi- culminem com soluções preconizadas na
cação de maus-tratos foi o conhecimento legislação (ROLIM ET AL., 2014).
da ficha de notificação da violência. A no- Reconhece-se os investimentos das
tificação é o processo que visa interromper esferas de governo ao legislarem e pro-
atitudes violentes no plano familiar ou por mulgarem políticas de enfrentamento às
parte de qualquer agressor, a partir do acio- violências direcionadas à população in-
namento dos órgãos competentes, como fanto-juvenil. Entretanto, a sua divulgação
o Conselho Tutelar. Este procedimento e ‘empoderamento’ por parte dos profis-
também fornece subsídios para a formula- sionais parece não ter sido suficiente para
ção de políticas públicas, tendo em vista o a efetivação das diretrizes e consequente
dimensionamento epidemiológico do pro- reorientação de uma prática predomi-
blema (MOREIRA ET AL., 2014). nantemente clínica para uma centrada no
A ficha de notificação funciona como sujeito, considerando as singularidades que
importante fonte de comunicação entre a emergem das demandas sociais.
Secretaria de Saúde, o Conselho Tutelar e o Autores enfatizam que os cirurgiões-
profissional ou equipe de saúde que tiveram -dentistas reconhecem a importância do
contato próximo com a criança ou o adoles- seu papel no que se refere à condução de
cente, sua família e que diagnosticaram o ato casos de violências no grupo pediátrico e
de violência. Esse instrumento foi instituído hebiátrico, entretanto, apresentam dificul-
e padronizado no âmbito do SUS e orienta dades na identificação e em como conduzir
a coleta de informações e a condução dos os procedimentos ante essas casuísticas
casos (BRASIL, 2001, 2011). (CARVALHO; GALO; SILVA, 2013).
Os cirurgiões-dentistas, comprometidos Assume-se que esta pesquisa apresen-
com a promoção da saúde da população e ta como limitação a taxa de devolução dos
preocupados com a garantia dos direitos da questionários, perfazendo um percentual
criança e do adolescente, muitas vezes têm de 29,7%. Este valor pode estar relacionado
dúvidas quanto à maneira correta de agir. com a sobrecarga de trabalho dos profis-
Por esse motivo, protocolos de orientação sionais, com a complexidade do objeto de
profissional são importantes para apoiá-los investigação, com a falta de interesse e for-
no diagnóstico, registro e notificação dos mação no assunto ou até mesmo com o não
casos de violência, favorecendo maior segu- reconhecimento da realização de pesquisas
rança para a sua identificação. como um dos dispositivos que contribui
Rolim et al. (2014) argumentam que a exis- para a reorientação do modelo de atenção
tência de protocolos que firmem condutas à saúde em acordo com o que preconiza a
na unidade de saúde propicia a instrumen- legislação do SUS.
tação dos profissionais para a atuação no Dessa forma, os resultados do estudo
tema. Por essa razão, a gestão deve assegu- podem não representar, em sua totalida-
rar, no mínimo, o material necessário para de, a prática dos cirurgiões-dentistas das
uma prática de qualidade na APS. O fato de regiões de saúde investigadas, não sendo
que conhecer a ficha de notificação ter au- possível sua generalização. Todavia, vale
mentado em quase três vezes a chance de salientar que os dados apresentados estão

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


266 MOREIRA, G. A. R.; ROLIM, A. C. A.; SAINTRAIN, M. V. L.; VIEIRA, L. J. E. S

em consonância com a literatura sobre o das ações e, sobretudo, na gestão. Entende-


tema, até mesmo com pesquisas empreen- se que é imperioso ampliar as discussões
didas em outros níveis de atenção à saúde e nos cursos de graduação e sistematizar a
no cenário internacional. educação permanente como instrumento
transformador das demandas sociais que
aportam os cenários da APS, apropriando-
Conclusão -se dos conteúdos das políticas de enfren-
tamento às múltiplas facetas com que as
A maior parte dos cirurgiões-dentistas violências se desdobram.
que atua na APS dos municípios investi- Há ainda que se considerar a necessida-
gados não identificou situações de maus- de de mudanças nas abordagens realizadas
-tratos contra crianças e adolescentes na pelos profissionais, para não priorizarem
sua prática profissional. O modelo logís- apenas o cumprimento de metas e a execu-
tico final evidenciou que fatores, como ção das técnicas propostas pelos programas
ter pós-graduação e conhecer a ficha de e observarem os aspectos subjetivos que
notificação, facilitam a detecção dos casos circunscrevem as ‘queixas dolorosas’ que
pelos profissionais. adentram os consultórios odontológicos no
Nesse sentido, o estudo aponta proposi- âmbito da APS. Em conclusão, os processos
ções que devem ser consideradas no redire- de trabalho nesse contexto demandam uma
cionamento de políticas que reorganizam as gestão incisiva, comprometida com a quali-
redes de atenção à saúde, no planejamento dade científica, técnica e ética. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 257-267, DEZ 2015


Atuação do cirurgião-dentista na identificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes na atenção 267
primária

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uma revisão bibliográfica. Revista espaço para a saúde,
Londrina, v. 14, n. 1, p. 82-93, dez. 2013.
Recebido para publicação em abril de 2015
Versão final em setembro de 2015
Conflito de interesses: inexistente
MOREIRA, G. A. R. et al. Fatores associados à notifica-
Suporte financeiro: Fundação Cearense de Apoio ao
ção de maus-tratos em crianças e adolescentes na aten- Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Edital de
Segurança Pública nº 05/2008
ção básica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.
19, n. 10, p. 4267- 4276, dez. 2014.

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268 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Rede de Atenção à Saúde ao portador


de Diabetes Mellitus: uma análise da
implantação no SUS em Recife (PE)
Health Care Network to people with Diabetes Mellitus: an analysis of
implementation in the SUS in Recife (PE)

Rebecca Soares de Andrade Fonseca dos Santos1, Luciana Caroline Albuquerque Bezerra2,
Eduardo Freese de Carvalho3, Annick Fontbonne4, Eduarda Ângela Pessoa Cesse5

RESUMO O artigo avalia a implantação da Rede de Atenção à Saúde aos portadores de Diabetes
Mellitus no SUS em Recife, Pernambuco. Trata-se de uma pesquisa avaliativa, do tipo análise
de implantação nos níveis da atenção primária e especializada. Os resultados demonstram
implantação parcial da Rede em relação às dimensões de estrutura e processo de trabalho. O
contexto político de gestão mostrou-se favorável à implantação da Rede, muito embora ainda
existam obstáculos a serem superados.

PALAVRAS-CHAVE Avaliação em saúde; Assistência à saúde; Doenças crônicas; Diabetes Mellitus.

ABSTRACT The article evaluates the implementation of the Health Care Network to diabetic
patients in the SUS in the city of Recife, Pernambuco. It is an evaluative research, of the type im-
plantation analysis in the levels of primary and specialized care. The results demonstrate partial
1 Fundação Oswaldo
implementation of the Network in relation to the dimensions of the structure and work process.
Cruz (Fiocruz), Centro de The political context of management was favorable to the implementation of the Network, al-
Pesquisas Aggeu Magalhães though there are still obstacles to be overcome.
– Recife (PE), Brasil.
rebecca_soaresandrade@
yahoo.com.br KEYWORDS Health evaluation; Delivery of health care; Chronic disease; Diabetes Mellitus.
2 Institutode Medicina
Integral Professor
Fernando Figueira (Imip) –
Recife (PE), Brasil.
lua_cad@yahoo.com.br

3 Fundação Oswaldo

Cruz (Fiocruz), Centro de


Pesquisas Aggeu Magalhães
– Recife (PE), Brasil.
freese@cpqam.fiocruz.br

4 Institutde Recherche
pour le Développement,
Montpellier, França.
annick.fontbonne@ird.fr

5 Fundação Oswaldo

Cruz (Fiocruz), Centro de


Pesquisas Aggeu Magalhães
– Recife (PE), Brasil.
educesse@cpqam.fiocruz.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005368
268
Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus: uma análise da implantação no SUS em Recife (PE) 269

Introdução Em dezembro de 2010, o Ministério da


Saúde estabeleceu diretrizes para organiza-
A partir da década de 1990, foram realiza- ção da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do
das reformas nos sistemas de saúde de di- Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2010), e
versos países da América Latina com vistas em 2013, instituiu a Rede de Atenção à Saúde
a ampliar o acesso e qualificar os serviços das Pessoas com Doenças Crônicas (BRASIL,
de saúde. Nesse contexto, no Brasil, as 2013). Posteriormente, estabeleceu diretrizes
Redes de Atenção à Saúde (RAS) se cons- para a organização das linhas de cuidado da
tituem em uma proposição relativamente Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com
recente. A sua implementação pretende Doenças Crônicas (BRASIL, 2014A).
adequar e ampliar os serviços prestados em Os objetivos das RAS são melhorar a
consonância com as necessidades de saúde qualidade da atenção prestada e garantir a
das populações. Nessa lógica, elas propõem longitudinalidade do cuidado, por meio de
o rompimento da gestão baseada na oferta medidas e ações articuladas de prevenção,
e investem na integralidade da assistência promoção e tratamento. Adicionalmente,
e longitudinalidade do cuidado. Essa tem visa otimizar a utilização dos recursos e pro-
sido a forma apontada como mais eficaz mover a equidade em saúde. Nesse sentido,
para enfrentar o incremento da prevalência busca promover a integralidade do cuidado
das doenças crônicas (SILVA; MAGALHÃES, 2011). com a oferta de um ciclo completo de aten-
Em 2007, as Doenças Crônicas Não dimento ao usuário nos diferentes pontos de
Transmissíveis (DNCT) foram responsáveis atenção da Rede. As RAS são compostas por:
por 72% das mortes ocorridas no País (SCHMIDT uma população específica, uma estrutura
ET AL., 2011). Segundo a Organização Mundial de operacional e um modelo de atenção à saúde.
Saúde, os anos de vida perdidos ajustados por A população é o primeiro elemento cons-
incapacidade – DALY (Disability-Adjusted tituinte das RAS, imprescindível para sua
Life Years – anos de vida perdidos por morte organização e operacionalização. O conheci-
prematura e incapacidade) permitem estimar mento em profundidade da população usuária
os efeitos das doenças crônicas de maneira de um sistema de saúde permite romper com
mais adequada que apenas a mortalidade a gestão baseada na oferta, característica dos
total. Um DALY significa um ano de vida sistemas fragmentados, e instituir a gestão
perdido (MURRAY; LOPEZ, 1996). Estudo realizado baseada nas necessidades de saúde da popu-
no Brasil sobre a carga de doença, com dados lação, elemento essencial das RAS.
de 1998, já apontavam as doenças crônicas A estrutura operacional é formada pela
como responsáveis por 66,3% dos DALYs Atenção Primária à Saúde (APS), pela
(SCHRAMM; OLIVEIRA; LEITE, 2004). Atenção Especializada (AE), pelos Sistemas
A Sociedade Brasileira de Diabetes, de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT),
em 2014, apontou que essa enfermidade pelos Sistemas Logísticos (SL) e pelo Sistema
atingiu mais de 387 milhões de pessoas em de Governança (SG). A APS é o centro de co-
todo o mundo, correspondendo a 8,3% da municação da Rede e deve funcionar como
população mundial. Apontou ainda que ordenadora e coordenadora do cuidado. A
quase metade das pessoas com diabetes AE reúne os diversos pontos de atenção com
não foi sequer diagnosticada nas diver- densidades tecnológicas distintas, como os
sas nações do mundo contemporâneo. No ambulatórios, as emergências e os hospitais,
Brasil, o diabetes esteve relacionado com a devendo apoiar e complementar os serviços
morte de mais de 48 mil pessoas entre 20 da atenção básica de forma resolutiva e em
e 60 anos de idade, com uma prevalência tempo oportuno. Os SADT ofertam o apoio no
estimada de 8,7%. que diz respeito à diagnose e terapêutica: são

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


270 SANTOS, R. S. A. F.; BEZERRA, L. C. A.; CARVALHO, E. F.; FONTBONNE, A.; CESSE, E. A. P.

os exames, as atividades corporais, as práticas (PE), incluindo a análise da estrutura e do


integrativas e as atividades desempenhadas processo de todos os seus componentes,
pelo Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) bem como a análise de fatores contextuais
e pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família que influenciam o seu grau de implantação.
(Nasf ). Os SL são responsáveis pelo estabele- Isso permite identificar entraves e proposi-
cimento de ligações entre os pontos da rede, ções para sua implantação. A identificação
pela racionalidade de fluxos e contrafluxos de tais aspectos, realizada em uma pesquisa
de usuários, produtos e informações. O SG desenvolvida em um distrito sanitário de
é responsável pelo acompanhamento da im- Recife, é relevante pela possibilidade de
plantação da rede e articulação com os atores contribuir na reorganização dessa rede, com
envolvidos (BRASIL, 2014A). vistas ao seu aperfeiçoamento e melhora da
Por fim, o terceiro elemento constitutivo qualidade do serviço ofertado.
das RAS e fundamental para sua estrutura-
ção é o modelo de atenção à saúde. Ele define
a forma como a atenção deve ser realizada na Métodos
rede e como os diversos pontos devem se co-
municar e se articular. O Modelo de Atenção Foi realizada uma pesquisa avaliativa do
às Condições Crônicas (MACC) foi criado no tipo análise de implantação (CHAMPANGNE,
Brasil com o objetivo de nortear a atenção ao 2011), utilizando o modelo Político
portador de doenças crônicas. Esse modelo Contingente, proposto por Denis e
prevê cinco níveis de intervenções em saúde: Champangne (1997), para análise do contex-
intervenções de promoção da saúde, de pre- to. Foi realizado o estudo de caso da RAS
venção das condições de saúde, gestão da aos portadores de Diabetes Mellitus (DM)
condição de saúde simples, gestão da con- do município de Recife, tomando por re-
dição de saúde complexa e gestão de caso ferência o Distrito Sanitário III. O distrito
para as condições de saúde muito complexas escolhido dispõe de tecnologias de distin-
(BRASIL, 2014A; MENDES, 2012). tas complexidades que visam assegurar a
No Brasil, ainda existem poucos estudos oferta do atendimento integral.
acerca da temática de RAS na realidade do Para avaliação do grau de implantação,
SUS. Entretanto, eles já apontam para uma foram construídos o Modelo Lógico da in-
inefetividade da APS em ser resolutiva, prin- tervenção ( figura 1), a Matriz de Análise e
cipal porta de entrada, ordenadora da Rede Julgamento e avaliadas as dimensões de es-
e coordenadora do cuidado (ALMEIDA ET AL., 2010; trutura e processo dessa RAS. Na dimensão
AZEVEDO, COSTA, 2010; GIOVANELLA; ESCOREL; MENDONÇA, estrutura, foram avaliados o espaço físico,
2003). Apontam também para ineficiência da os recursos humanos e os equipamentos e
AE em apoiar e complementar os serviços materiais necessários para oferta do atendi-
da atenção básica de forma resolutiva e em mento integral ao portador de DM na RAS,
tempo oportuno (OLIVEIRA ET AL., 2010; SILVA, 2012; por meio de 55 indicadores. Na dimensão
SPEDO; PINTO; TANAKA, 2010). Entretanto, pouco processo, foram avaliadas as atividades per-
ainda se tem refletido sobre a implantação tinentes a cada componente, que em conjun-
dessas redes. Hartz e Contandriopoulos to possibilitaria a oferta da atenção integral
(2004) afirmam que o questionamento acerca ao portador de DM na RAS. Essas atividades
da implantação deve ser anterior ao da efici- foram avaliadas por meio de 60 indicadores
ência ou efetividade. (SANTOS, 2015). O modelo lógico e a matriz de
Dessa forma, o objetivo deste artigo é análise e julgamento foram submetidos à
avaliar a implantação da RAS aos portado- apreciação de especialistas, conforme reco-
res de Diabetes Mellitus no SUS em Recife mendação de McLaughlin e Jordan (1999).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus: uma análise da implantação no SUS em Recife (PE) 271

Figura 1. Modelo Lógico da Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus.

Componente Estrutura Processo Resultados intermediários Resultado final

Atenção Cadastrar os diabéticos; Gestão baseada


Primária à Estratificar os diabéticos por nas necessidades
Saúde risco; de saúde das
Promover continuidade do pessoas.
cuidado;
Atenção Realizar atendimento em tempo
Especializada oportuno; Maior articulação
Espaço físico; Ofertar leitos; e integração da
Ofertar exames; RAS;
Recursos Atenção
Ofertar medicamentos;
Sistemas de humanos integral aos
Ofertar transporte sanitário; Maior
Apoio capacitados; portadores de
Prestar assistência especializada resolutividade da
Diagnóstico e DM em todos
nos casos mais complexos; atenção ao DM;
Terapêutico Equipamentos os pontos de
Promover capacitações aos
e material; atenção.
profissionais; Aumento da
Estabelecer fluxos assistenciais; eficiência da
Medicamentos. Articular serviços/ações de atenção à saúde.
Sistema
saúde;
Logístico
Realizar programação
Melhoria da
orçamentária.
racionalidade no
Articular projetos intersetoriais;
uso das
Sistema de Desenvolver autocuidado
tecnologias de
Governança apoiado;
saúde.
Desenvolver gestão de caso.

Contexto Político - Contingente

Fonte: Elaboração própria.

Para avaliação do contexto, foi constru- Após a determinação do contexto, foi verifica-
ída sua matriz de análise. Nessa matriz, da a sua influência sobre o grau de implantação.
foram analisadas três variáveis relacio- Foram realizadas entrevistas estrutura-
nadas ao contexto estrutural (atributos das e semiestruturadas, observação direta e
operacionais, dos gestores e do ambiente) análise documental dos Planos Municipais
e três relacionadas ao contexto político de Saúde – 2010-2013 e 2014-2017 – e da
(suporte dado à intervenção, controle na Programação Anual de Saúde de 2013
organização para operacionalizar a inter- (quadro 1). Na consulta a documentos, bus-
venção e coerência entre os objetivos da cou-se identificar aspectos relacionados à
implantação da RAS e as ações). Ao total, Atenção à Saúde dos portadores de doenças
foram criadas dez categorias de análise. crônicas e DM e sua respectiva RAS.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


272 SANTOS, R. S. A. F.; BEZERRA, L. C. A.; CARVALHO, E. F.; FONTBONNE, A.; CESSE, E. A. P.

Quadro 1. Síntese dos métodos de coleta e das fontes de informações utilizadas na etapa de análise da implantação
segundo os componentes
Método de Etapa de análise da
Componente Fonte de Informação
Coleta implantação
Atenção Primária à Entrevista
Informante-chave (médico/enfermeiro) Determinação do GI
Saúde estruturada
Entrevista
Atenção Especializada Informante-chave (médico/enfermeiro) Determinação do GI
estruturada
Sistema de Apoio
Entrevista Informante-chave (trabalhadores da rede -
Diagnóstico e Determinação do GI
estruturada APS, AE e dos SADT)
Terapêutico
Entrevista Informante-chave (trabalhadores da rede -
Determinação do GI
Sistema de Apoio estruturada APS, AE e dos SADT)
Logístico Entrevista Informante-chave Estudo do contexto de
semiestruturada (Secretária Executiva de Regulação e Saúde) implantação
Entrevista Informantes-chave Determinação do GI
estruturada (Coordenadora da Política de Saúde dos
Portadores de DCNT, Secretária Executiva
Entrevista de Regulação e Saúde, e Coordenadora da Estudo do contexto de
semiestruturada Vigilância Epidemiológica Distrital) implantação

Sistema de Governança Existência de setor específico para RAS aos


Observação Estudo do contexto de
portadores de doenças crônicas e condições
direta implantação
de trabalho no Nível Central.
Planos Municipais de Saúde (2010-2013 e
Consulta a Estudo do contexto de
2014-2017) e Programação Anual de Saúde
documentos implantação
(2014)

Fonte: Elaboração própria.


Nota: GI: Grau de implantação; APS: Atenção Primária à Saúde; AE: Atenção Especializada; SADT: Sistemas de Apoio Diagnóstico e
Terapêutico; DCNT: Doenças Crônicas Não Transmissíveis.

Nos diferentes níveis de complexidade da físicos ou fisioterapeutas no Sistema de


RAS, no período de outubro de 2014 a janeiro Apoio Diagnóstico e Terapêutico (Nasf,
de 2015, foram entrevistados 22 profissio- SAD e Programa Academia de Saúde);
nais, reconhecidos como informantes-chave a Secretária Executiva de Regulação
nos serviços analisados. Foi considerada in- em Saúde da Secretaria Municipal de
formante-chave a pessoa que possuía conhe- Saúde (SMS), pertencente ao Sistema
cimento especial sobre o que se pretendia Logístico; a coordenadora de Vigilância
averiguar para compartilhar com o entrevis- Epidemiológica do distrito sanitário e a
tador (TOBAR; YALOUR, 2001). coordenadora da Política de Saúde dos
Esses profissionais estavam distribuí- Portadores de DCNT da SMS, pertencente
dos da seguinte forma: seis profissionais ao Sistema de Governança da Rede. Todos
médicos ou enfermeiros nas Unidades de os serviços da AE são referência para o tra-
Saúde da Família (USF), representando a tamento do DM no município.
totalidade do componente da APS; cinco Para análise do grau de implantação
profissionais médicos ou enfermeiros na das dimensões estrutura e processo, foi
AE (ambulatórios, emergências e hospital); realizado o somatório das pontuações
oito profissionais enfermeiros, educadores obtidas nos indicadores de cada dimensão

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus: uma análise da implantação no SUS em Recife (PE) 273

separadamente, dividido pela pontuação categorias temáticas favoráveis era maior


esperada para a dimensão, e depois mul- que o de desfavoráveis.
tiplicado por 100. O grau de implantação Para avaliação da influência do contexto
total (estrutura + processo) foi estabelecido sobre o grau de implantação, foi feito o confron-
de forma ponderada, por considerar que a to da classificação do GI obtido com a classifica-
dimensão processo era mais importante que ção final do contexto político de gestão.
a dimensão estrutura na implantação da A pesquisa obedeceu às normas que regem as
RAS aos portadores de DM. Nesse sentido, pesquisas com seres humanos, obtendo aprova-
foi atribuído peso quatro para a dimensão ção da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa
estrutura e peso seis para a dimensão pro- (Conep) sob parecer 768.025 e do Comitê de
cesso. Assim, o grau de implantação (GI) Ética e Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz –
total de cada unidade de análise foi obtido Pernambuco sob parecer 421.616.

)
da seguinte forma1:

GI Total =
)
(4ΣE1 + 6ΣP1 )/10
* 100 Resultados
(4ΣE1 + 6ΣP2 )/10
Grau de implantação
A análise considerou os seguintes
pontos de corte: <25,0% – não implantado; A implantação da RAS aos portadores de DM
de 25,1% a 50,0% – implantação incipiente; foi classificada como de implantação parcial
de 50,1% a 75,0% – parcialmente implanta- (GI=65,5%), considerando as dimensões
do; e >75,1% – implantado. estrutura e processo. A dimensão estrutura
O material resultante das entrevistas (GI de 58,1%) obteve pior desempenho que
semiestruturadas e da análise documental a dimensão processo (73,1%). À exceção do
foi submetido à análise de conteúdo temá- Sistema Logístico, para o qual se observou
tica à luz do modelo Político-Contingente implantação incipiente (GI=46,9%), todos os
para avaliação do contexto. Esse foi con- demais componentes da RAS estavam par-
siderado favorável quando o número de cialmente implantados (tabela 1).

Tabela 1. Grau de implantação (%) geral e por dimensões de estrutura e processo da Rede de Atenção à Saúde ao portador
de DM no Distrito Sanitário de Recife segundo os componentes, 2014-2015.

Dimensões APS AE SADT SL SG DS


Estrutura 48,8 62,0 68,2 45,5 90,0 58,1
Processo 72,6 77,2 72,0 60,0 54,5 73,1
1Em que ∑ E¹ = Somatório
Grau de Implantação Ponderado 63,8 69,4 69,2 46,9 67,9 65,5
das pontuações obtidas
Fonte: Elaboração própria. nos indicadores que
Nota: APS: Atenção Primária à Saúde; AE: Atenção Especializada; SADT: Sistemas de Apoio Diagnóstico e Terapêutico; SL: Sistema compunham a dimensão
estrutura; ∑ P¹ =
Logístico; SG: Sistema de Governança; DS: Distrito Sanitário.
Somatório das pontuações
obtidas nos indicadores
que compunham a
dimensão processo; ∑ E² =
Avaliação da dimensão estrutura considerado adequado, com GI=83,3%, Somatório das pontuações
esperadas nos indicadores
porém os recursos humanos obtiveram que compunham a
Na avaliação realizada para o conjunto dos implantação parcial (GI=58,3%). Foi ve- dimensão estrutura; e
∑ P² = Somatório das
componentes da APS, a dimensão estrutu- rificado que o apoio matricial às Equipes pontuações esperadas
ra caracterizou-se como de implantação de Saúde da Família (EqSF) não era reali- nos indicadores que
compunham a dimensão
incipiente (tabela 1). O espaço físico foi zado na frequência considerada adequada processo.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


274 SANTOS, R. S. A. F.; BEZERRA, L. C. A.; CARVALHO, E. F.; FONTBONNE, A.; CESSE, E. A. P.

(GI=25%). Quanto aos equipamentos e ma- Já o Sistema Logístico obteve o pior de-
teriais, estes foram classificados como grau sempenho da dimensão estrutura (tabela 1)
de implantação incipiente, em relação ao por dispor de maneira insatisfatória da maior
material necessário ao cadastramento dos parte dos recursos necessários ao desenvol-
diabéticos (GI=33%), e não implantados no vimento de suas atividades. O transporte
que se refere aos protocolos para estratifi- sanitário caracterizou-se com implantação
cação dos diabéticos por risco (GI=16,7%). incipiente (GI=36,4%) devido à inexistência
As medicações, avaliadas quanto à dispo- de um transporte próprio da Unidade, embora
nibilidade e regularidade na distribuição, existisse apoio do Sistema de Atendimento
foram classificadas desde não implantadas Móvel de Urgência (Samu). O prontuário
(para controle de neuropatias e fitoterápi- eletrônico único ou outro mecanismo que
cos, homeopáticos ou plantas medicinais), garantisse a continuidade informacional foi
com implantação incipiente (para melhora caracterizado como não implantado (GI=0%).
do perfil lipídico), até parcialmente im- Apenas a Central de marcação de consultas,
plantadas (para controle de DM, controle exames e regulação de leitos foi considerada
pressórico e medicação cardioprotetora). implantada (GI=100%).
Na AE, a dimensão estrutura obteve O componente da RAS como um todo
GI=62%, sendo, portanto, classificada que apresentou o melhor desempenho
como parcialmente implantada (tabela 1). em relação à estrutura foi o Sistema de
O espaço físico foi considerado parcial- Governança (tabela 1). Esse componente
mente implantado (GI=65%), os recursos foi caracterizado com adequado espaço
humanos foram caracterizados como exis- físico e equipamentos e materiais neces-
tindo em quantidade suficiente (GI=80%), sários ao desenvolvimento de suas ativida-
porém ainda sem a qualificação necessá- des: local de trabalho, acesso a documentos
ria ao desenvolvimento de suas ativida- e disponibilidade de recursos financeiros
des (GI=40%). Quanto aos equipamentos (GI=100%). Os recursos humanos, entre-
e materiais, destaca-se a inexistência de tanto, obtiveram GI incipiente (GI = 50%),
protocolos (para atendimento do DM, devido à quantidade de profissionais clas-
para estratificação por risco, para solici- sificada como insuficiente para a realiza-
tação de exames) nos serviços de urgên- ção das atividades.
cia e emergência (GI=0%). As medicações
foram caracterizadas desde implantação Avaliação da dimensão processo
incipiente (fitoterápicos, homeopáticos
ou plantas medicinais), parcialmente Na APS, destacaram-se as atividades de
implantadas (para controle do DM e de cadastro e de estratificação por risco, que
neuropatias), até implantadas (para con- se caracterizaram como não implantadas.
trole pressórico, cardioprotetora e para O encaminhamento para outros níveis de
melhora do perfil lipídico). atenção foi considerado implantado em
Nos SADT, a dimensão estrutura carac- todas as EqSF, mas a contrarreferência, ana-
terizou-se como parcialmente implantada lisada pelo indicador ‘comunicação entre
(tabela 1), com destaque para a existência pontos de atenção’ caracterizou-se como
de referência para o Nasf (GI=100%) e a não implantada, tendo sido relatada acon-
não existência de referência sistemática tecer nunca ou quase nunca por 66,7% das
para clínica especializada em tempo opor- EqSF analisadas, e raramente ou às vezes
tuno (GI=48,5%). A disponibilização de pelo restante das equipes.
exames também foi considerada parcial- Na AE, a consulta caracterizou-se como
mente implantada. não implantada (GI=0%) porque não era

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus: uma análise da implantação no SUS em Recife (PE) 275

realizada na frequência recomendada pelo de diagnósticos, o monitoramento e a ava-


Ministério da Saúde nem era realizada em liação das ações relacionadas à atenção à
sua completude. Também foram considera- saúde dos portadores de DM, entre outras.
dos não implantados: a comunicação entre Também contribui positivamente para a
os pontos de atenção nos ambulatórios implantação da RAS a existência de um
(GI=25%) e a discussão de caso clínico nos setor específico para a Coordenação da
hospitais (GI=0%). Política de Saúde dos portadores de DCNT
Nos SADT, as atividades de matricia- no município.
mento e gestão compartilhada obtiveram Alguns aspectos do contexto, entretanto,
GI incipiente. Todas as outras ativida- influenciam negativamente a implantação
des desse componente caracterizaram-se da RAS aos portadores de DM no distrito. O
como parcialmente implantadas (visita fato de a Coordenação da Política de Saúde
domiciliar, atendimento domiciliar, ativi- das pessoas com doenças crônicas ter sido
dades corporais) ou implantadas (suporte criada há pouco tempo (menos de dois meses
técnico e emocional, educação em saúde, quando da realização da pesquisa) demonstra
projeto terapêutico singular e projeto que esta é uma preocupação recente no mu-
saúde no território). nicípio, e esse aspecto tem intrínseca relação
O Sistema Logístico caracterizou-se com a falta de programação orçamentária, de
como incipiente quanto à regulação de leitos análise e divulgação de informações acerca da
(GI=50%) e parcialmente implantado quanto situação de saúde dos portadores de DM. Esse
ao agendamento de consultas e exames fato também pode ter corroborado a frágil
(GI=66,7%). Já no Sistema de Governança, comunicação existente entre os diferentes
foi possível observar a não implantação para pontos de atenção da Rede.
programação orçamentária e análise e divul- A inexistência de um responsável pela
gação de informações e implantação inci- Vigilância Epidemiológica (VE) das DCNT
piente para articulação de serviços de saúde. no distrito ocasionou dificuldades nas
As demais atividades foram consideradas análises e divulgação de informações pela
implantadas (construção de diagnósticos, Governança. A inexistência do prontuário
estabelecimento de prioridades, monitora- eletrônico único ou outro mecanismo que
mento e avaliação). garantisse a comunicação entre os pontos de
atenção à saúde foi relacionada à pouca prio-
Análise do contexto e sua influência ridade dada à temática pela gestão.
sobre o grau de implantação

O contexto apresentou-se favorável à im- Discussão


plantação da RAS ao portador de DM no
Distrito Sanitário de Recife. Obteve 50% das Os resultados que serão aqui discutidos são
categorias no contexto político e 83,3% no parte integrante de um estudo mais amplo
contexto estrutural, perfazendo um total de que objetiva avaliar como estão inseridos
66,7% de categorias favoráveis. os componentes de alimentação, nutrição,
A coerência do plano municipal de atividade física e assistência farmacêutica
saúde (2014-2017) com a implementação da na rede de atenção ao portador de doenças
RAS ao portador de DM mantém relação crônicas, a partir da Estratégia Saúde da
positiva com alguns achados na avaliação Família em quatro polos de macrorregi-
do GI. São exemplos: nos SADT, a existên- ões de Pernambuco. Para tanto, tornou-se
cia de referência para o SAD, para o Nasf; necessária a identificação da existência
no sistema de Governança, a construção da própria Rede. A discussão que se inicia

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


276 SANTOS, R. S. A. F.; BEZERRA, L. C. A.; CARVALHO, E. F.; FONTBONNE, A.; CESSE, E. A. P.

debate acerca dos resultados encontrados essencial para o controle do DM e suas co-
para implantação dessa RAS. morbidades, observa-se que a quantidade
No processo de estruturação e organi- de medicamentos recebidos pelos serviços
zação, ou seja, na institucionalização de de saúde não corresponde à necessidade de
uma RAS, alguns elementos são essenciais. todos os usuários. Situações semelhantes
População, modelo de atenção e serviços de foram verificadas por Souza et al. (2008) e
saúde precisam estar interligados a fim de Serapioni e Silva (2011), demonstrando a ne-
que se possa romper com a gestão baseada na cessidade de uma observação mais criteriosa
oferta, característica dos sistemas fragmen- acerca da Assistência Farmacêutica que vem
tados, e instituir a gestão baseada nas neces- sendo realizada no Brasil.
sidades de saúde da população, garantindo a Ainda como prerrogativa de funcionamen-
longitudinalidade do cuidado e a integralida- to da Rede de Atenção à Saúde ao portador de
de da atenção. Nesse sentido, a população de DM, a APS deve funcionar como ordenadora e
responsabilidade da RAS deve ser totalmente coordenadora do cuidado. Nesse sentido, para
conhecida e estratificada em subpopulações que as necessidades de saúde sejam atendidas
por fatores de risco (MENDES, 2012). nos espaços tecnológicos mais adequados
No que se refere à RAS ao portador de e para que a APS garanta a continuidade da
DM, as ações de cadastro e de estratificação atenção, ela deve realizar encaminhamentos
por risco foram caracterizadas como não para consultas com especialistas, realização
implantadas. Corroboram a não realização de exames ou ainda para práticas corporais e/
dessas ações a inexistência de protocolos ou integrativas, sempre que detectada neces-
para estratificação dos pacientes por risco, sidade (TANAKA, 2011).
verificada em 83,3% das USF estudadas, e a Dessa forma, o retorno desses encaminha-
implantação incipiente de material para ca- mentos (a contrarreferência) é essencial para
dastro dos diabéticos. o exercício da coordenação da atenção pela
Apesar de ser uma ferramenta útil e neces- APS. É essa comunicação entre os pontos
sária, o protocolo de estratificação de risco de atenção da rede que darão racionalidade
isoladamente não é capaz de definir o risco ou ao atendimento, evitando que consultas e
a vulnerabilidade do indivíduo. O Ministério exames sejam realizados em duplicidade ou
da Saúde destaca que o diálogo, a interação, a que sejam solicitados desnecessariamente.
escuta, o respeito e o acolhimento do usuário O encaminhamento para outros níveis
e sua queixa são necessários para avaliação do de atenção foi considerado implantado em
potencial de agravamento (BRASIL, 2012). Essas todas as EqSF estudadas. Um importante
atitudes não só balizam a estratificação dos fator que contribuiu para isso foi a existência
indivíduos como também contribuem para e utilização do fluxograma de atendimento
aumentar a resolubilidade da APS. ao DM verificadas no município. Giovanella,
Nessa perspectiva, atividades de matri- Escorel e Mendonça (2003) consideram o
ciamento, gestão compartilhada, projetos estabelecimento de fluxos uma importante
intersetoriais, entre outros, são estimu- estratégia para a integração do sistema e me-
ladas para serem adotadas nos serviços lhoria da referência.
de saúde pelo Ministério da Saúde (BRASIL, Já a contrarreferência foi caracteriza-
2014B). No presente estudo, todas essas ati- da como não implantada tanto pela APS
vidades obtiveram GI incipiente, o que já quanto pela AE. Esses resultados estão em
corrobora uma baixa resolubilidade desse consonância com o estudo de Fausto et al.
nível de atenção. (2014), que verificaram que 52% dos espe-
No que se refere à disponibilidade e re- cialistas para quem os pacientes são enca-
gularidade de distribuição das medicações, minhados nunca entram em contato com a

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus: uma análise da implantação no SUS em Recife (PE) 277

EqSF para trocar informações. No mesmo foram observadas em outras cidades, como
sentido, Giovanella, Escorel e Mendonça Florianópolis (SISSON ET AL., 2011) e uma cidade
(2003) observaram que um terço ou mais dos do estado de São Paulo (MARIN; MARCHIOLI;
profissionais de nível superior das EqSF MORACVICK, 2013). Para os autores, o fato dos
nunca recebem qualquer tipo de contrarre- serviços de maior densidade tecnológica não
ferência de pacientes atendidos na AE. terem acompanhado a ampliação da cober-
A implantação do cartão do usuário do tura da Estratégia de Saúde da Família oca-
SUS é uma possível estratégia para garantir sionou na descontinuidade da atenção e em
a contrarreferência e melhorar a articulação prejuízos aos atendimentos dos usuários.
entre os serviços de saúde (GIOVANELLA; ESCOREL; Muitos autores concordam que a resolubi-
MENDONÇA, 2003). Medina (2006), entretanto, lidade da atenção básica depende, em grande
acredita que os problemas concernentes à co- medida, do acesso aos serviços especializados
municação estão mais relacionados à atuação (ESCOREL ET AL., 2007) e que essa dificuldade de
do profissional de saúde – seu engajamento, acesso tem se revelado um dos principais en-
concepções e disposições – que à existência traves na garantia da integralidade da atenção
de ferramentas gerenciais. A autora observou (SPEDO; PINTO; TANAKA, 2010), condição indispensá-
que a disponibilidade de instrumentos de co- vel para efetiva implantação das RAS.
municação (guias de referência e contrarrefe- Esse fato sugere que a simples amplia-
rência e telefone) não influenciou nos escores ção da cobertura dos serviços especiali-
relacionados a essa questão. zados pudesse garantir a integralidade da
Assim, constata-se a necessidade de atenção. Entretanto, em 2008, no municí-
investir na formação dos profissionais de pio de Recife, as cinco especialidades com
saúde que trabalham ou trabalharão no maior demanda reprimida (oftalmologia,
SUS, para que eles tenham uma prática ortopedia, otorrinolaringologia, cardiologia
adequada aos preceitos desse sistema. É e urologia) eram as mesmas com maiores
fundamental que eles reconheçam a im- percentuais de absenteísmo nas consultas.
portância da realização da contrarreferên- Dessa forma, ou existe uma real insuficiên-
cia e de seu papel na corresponsabilização cia na oferta, ou existe um mau gerencia-
da saúde de seu paciente. mento para esses procedimentos, em que
Outro mecanismo que visa estabelecer a não se realiza o diagnóstico consistente da
continuidade informacional acerca da situ- capacidade instalada e o percentual efetivo
ação de saúde dos usuários é o prontuário de utilização desses serviços (ALBUQUERQUE ET
eletrônico único, que se caracterizou como AL., 2013). Para Alves (2011), a demora na obten-
não implantado neste estudo, não tendo sido ção do atendimento pode levar o usuário
observado em qualquer serviço de saúde agendado a faltar, uma vez que ele não
analisado. Um estudo realizado em 2012 com poderia esperar tanto tempo pelo procedi-
16.566 EqSF demonstra que essa é a realidade mento e procuraria outros serviços.
vivenciada pela maioria das equipes de saúde Portanto, fica evidenciada a necessi-
no País, visto que apenas 11% das equipes re- dade de aperfeiçoamento do processo de
lataram utilizar o prontuário eletrônico único regulação desses procedimentos. Quanto
no seu cotidiano (FAUSTO ET AL., 2014). a essa questão, o contexto apresentou-
A referência para clínica especializa- -se favorável. O município opera com o
da caracterizou-se com implantação inci- sistema de regulação on-line disponibili-
piente por não ofertar cotas para todas as zado pelo Departamento de Informática
especialidades em quantidade suficiente do SUS (Datasus), o Sisreg, que permite ao
e as consultas não ocorrerem em tempo gestor conhecer o tamanho real das filas de
oportuno. Situações semelhantes a essa espera, monitorá-las, definir prioridades

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278 SANTOS, R. S. A. F.; BEZERRA, L. C. A.; CARVALHO, E. F.; FONTBONNE, A.; CESSE, E. A. P.

clínicas, planejar a oferta da AE e moni- responsabilidade de garantir o fluxo de


torar o índice de abstenção a consultas e pessoas na RAS, foi caracterizado com GI
exames (ALMEIDA ET AL., 2010). incipiente, tendo sido relatado existir apenas
Além disso, a regulação municipal nas unidades sob gestão estadual. Algumas
capacita os profissionais de nível supe- unidades sob gestão municipal afirmaram
rior e técnico acerca dos mecanismos de disponibilizar vale-transporte em algumas
marcação de consultas e exames, priori- situações ou, ainda, contatar o Samu em caso
zando sempre os serviços mais próximos de urgências e emergências.
da localidade do usuário no momento Um estudo realizado na cidade de Belo
da marcação. Também está em processo Horizonte acerca do funcionamento do
de implantação o Short Message Service transporte sanitário de pessoas demonstrou
(SMS), que informa ao usuário o local, a que esse serviço integrado às várias unidades
data e o horário da consulta via telefonia de saúde de diferentes níveis de complexida-
móvel (aparelho celular), sempre que ele é de foi decisivo para atender às necessidades
agendado. O serviço de Call Center é dis- dos usuários. Antes, estes eram encaminha-
ponibilizado para os usuários retirarem dos e necessitavam se deslocar com recursos
dúvidas. Todos esses mecanismos visam próprios, de que nem sempre dispunham.
reduzir o absenteísmo, ordenar fluxos e Com o serviço, possibilitou-se o acesso e,
reduzir o tempo de espera. consequentemente, a maior satisfação dos
O município de Recife é habilitado em usuários (ALVES; SILVA; NEIVA, 2010).
gestão plena. Segundo a Norma Operacional A governança, que possui papel funda-
de Assistência à Saúde (Noas) 2002 e o Pacto mental na implantação da RAS ao portador
pela Saúde 2006, nesta condição, um único de DM, caracterizou-se por não realizar a
gestor responde por toda a rede assistencial programação orçamentária nem a análise e
na sua área de abrangência, conduz a negocia- divulgação de informações de maneira satis-
ção com os prestadores e assume o comando fatória. Segundo Vieira (2009), o planejamen-
da política de saúde em seu território. to é vital para que se alcance os resultados
No período da pesquisa, o leito hospitalar esperados. Sem ele, as atividades são reali-
e alguns exames mais complexos (como cin- zadas por inércia, de forma desarticulada e
tilografia, ressonância) permaneciam sendo desordenada, e os recursos são utilizados de
regulados pelo Estado, e a regulação de leitos forma menos eficiente.
foi caracterizada com GI incipiente por não Chama a atenção o tempo de implantação
ocorrer em tempo oportuno. Apesar disso, o da Coordenação da Política de Saúde das
contexto foi julgado favorável à implantação pessoas com DCNT no município (inferior a
porque além de o município ter investido nos dois meses no período do estudo). Esse fato,
mecanismos de SMS e Call Center, encontra- ao mesmo tempo em que demonstra que a
va-se em fase final a construção de um hos- saúde das pessoas portadoras de doenças
pital municipal que disponibilizaria leitos crônicas é uma prioridade recente da gestão,
e exames de alta complexidade, totalmente também justifica a não realização de algumas
regulado pelo município. Além disso, existia atividades por essa Coordenação, haja vista o
a perspectiva de o município assumir a to- seu curto período de estruturação.
talidade de sua regulação, assumindo uma A existência de uma equipe qualificada,
Central Regional, em que passaria a regular porém com profissionais em quantidade
os serviços de saúde de alta complexidade insuficiente nessa Coordenação, reforça os
para mais 71 municípios. achados. A equipe, que era composta pela
O transporte sanitário, importante me- Coordenadora da Política e por mais quatro
canismo do Sistema Logístico por sua apoiadores institucionais com formação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus: uma análise da implantação no SUS em Recife (PE) 279

em saúde pública, foi considerada pequena que desenvolvessem suas atividades de


para atender às demandas do Sistema de maneira satisfatória.
Governança. Cada apoiador ficava respon- No quadro 2, são apresentadas as princi-
sável sozinho por dois distritos sanitários pais dificuldades relacionadas à implemen-
e, além da política de DCNT, também era tação da RAS ao portador de DM e algumas
responsável por outras políticas. Dessa proposições baseadas na equidade, na inte-
forma, apesar de possuírem qualificação, o gralidade e na qualificação da gestão, visando
acúmulo de responsabilidades não permitia à implementação da RAS.

Quadro 2. Problemas e proposições relacionadas à implementação da Rede de Atenção à Saúde ao portador de Diabetes Mellitus. Recife, 2014-2015

Componente Limitações à implementação da RAS Proposições para implementação da RAS


Objetivo: Garantir a equidade, tendo a população como essência
- Material para cadastro dos diabéticos em quantidade
da RAS
insuficiente;
- Aproximar VE com o cenário de ocorrência das DCNT, com
- Inexistência de protocolo para estratificação dos
APS vistas a fortalecer a estratificação por riscos e, assim, garantir a
diabéticos por risco;
gestão baseada nas necessidades de saúde da população;
- Não realização do cadastro dos diabéticos;
- Ampliar a oferta de material, inclusive para cadastro e protocolo
- Não estratificação dos diabéticos por riscos;
de estratificação por risco;
Objetivo: Garantir a integralidade da atenção, com foco na
- Não realização da contrarreferência, sugerindo para
responsabilização dos profissionais de saúde
uma prática de desresponsabilização dos profissionais
- Ofertar educação permanente para os profissionais de saúde que
com a saúde do paciente;
AE atuam no SUS para que eles tenham uma prática harmônica aos
- Deficiências na organização do sistema de
preceitos do sistema;
contrarreferência à APS;
- Organizar o sistema de contrarreferência à APS;
- Inexistência de protocolos e manuais;
- Ofertar protocolos e manuais;
Objetivo: Garantir a integralidade, com foco na resolubilidade da
atenção
- Incipiente realização das atividades matriciais e gestão - Definir responsabilidades de cada serviço;
SADT
compartilhada entre Nasf/SAD e APS; - Aumentar a interlocução entre os serviços;
- Incrementar o apoio matricial à APS para aumentar a
resolubilidade desse componente;
Objetivo: Garantir a equidade e a integralidade da atenção através
da qualificação da gestão
- Implementar mecanismos que garantam a comunicação entre os
pontos de atenção;
- Fragilidade na comunicação entre os pontos de atenção
- Padronizar as informações de preenchimento obrigatório
da Rede;
SL no prontuário eletrônico único e instituí-lo como meio de
- Ausência de transporte sanitário no nível municipal;
avaliação dos serviços de saúde, com vistas ao fortalecimento da
- Regulação sob duplo comando;
continuidade informacional;
- Efetivar a regulação sob comando único;
- Ofertar o transporte sanitário no nível municipal e articular com
a AS o transporte daqueles que não dispõem de recursos;
Objetivo: Qualificar a estrutura e o processo de trabalho da gestão
- Deficiência na organização do processo de gestão;
- Apoiar e reforçar a Coordenação da Política de Saúde dos
- Equipe em quantidade insuficiente;
SG portadores de DCNT no município, com vistas a melhorar a
- Não realização da programação orçamentária;
atenção aos pacientes diabéticos.
- Não realização da análise e divulgação de informações;
- Aumentar a quantidade de profissionais da equipe;
Fonte: Elaboração própria.
Nota: APS: Atenção Primária à Saúde; AE: Atenção Especializada; SADT: Sistemas de Apoio Diagnóstico e Terapêutico; SL: Sistema Logístico; SG: Sistema de Governança;
RAS: Rede de Atenção à Saúde; DM: Diabetes Mellitus; Nasf: Núcleo de Apoio à Saúde da Família; SAD: Serviço de Atenção Domiciliar; VE: Vigilância Epidemiológica; DCNT:
Doença Crônica Não Transmissível; AS: Assistência Social.

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280 SANTOS, R. S. A. F.; BEZERRA, L. C. A.; CARVALHO, E. F.; FONTBONNE, A.; CESSE, E. A. P.

A todas essas proposições, acrescente- Em relação ao contexto político de


-se a importância do mútuo funcionamento gestão, este se mostrou favorável à implan-
de todos os componentes da Rede, dada a tação da Rede, muito embora ainda existam
interdependência que possuem. Só assim, a obstáculos a serem superados, no sentido de
implementação da RAS ao portador de DM atender fundamentalmente às necessidades
será plena. da população, dado que ela é a essência e a
razão de ser da RAS.
Nesse sentido, o presente estudo possi-
Conclusão bilitou constatar a necessidade premente
de interligar as diferentes ações e serviços
Foi verificada a existência de dificuldades re- de saúde, a fim de garantir a equidade e
lacionadas à estrutura e ao processo de traba- a integralidade da atenção, contribuindo
lho nos diferentes níveis de atenção à saúde para o aperfeiçoamento e reorganização
(atenção primária, AE e nos SADT) e de da RAS e subsidiando a tomada de decisão
gestão (Sistemas Logístico e de Governança). pelos gestores. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 268-282, DEZ 2015


ENSAIO | ESSAY 283

Implementação de políticas públicas:


metodologia de análise sob o enfoque da
política institucional
Implementation of public policies: analysis methodology under the
focus of institutional policy

Eduardo Tonole Dalfior1, Rita de Cássia Duarte Lima2, Maria Angélica Carvalho Andrade3

RESUMO O artigo apresenta uma discussão metodológica sob o enfoque da política institucio-
nal do Grupo Francês Strategor. Propõe-se a expor um método de análise da implementação
de políticas públicas, visando compreender questões presentes no ambiente institucional,
através dos determinantes da política institucional. Esse método poderá contribuir para
despertar, nos agentes implementadores de políticas e pesquisadores, um olhar mais crítico
sobre as instituições públicas, visando sanar problemas que perpassam o bom andamento das
políticas públicas. Busca-se colaborar no sentido de conferir à etapa de implementação uma
posição-chave dentro do processo da política pública.

PALAVRAS-CHAVE Políticas públicas; Políticas públicas de saúde; Análise qualitativa.

ABSTRACT The article presents a methodological discussion with focus on institutional policy
of the Strategor French Group. We propose to expose a method of analysis of implementation of
public policies in order to understand issues present in the institutional setting, through the de-
terminants of institutional policy. This method could help awakening, in researchers and agents
implementing policies, a more critical eye on public institutions to remedy problems that pervade
the smooth progress of public policies. The aim is to collaborate to confer to the implementation
stage a key position within the public policy process.

KEYWORDS Public policies; Health public policy; Qualitative analysis.

1 Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes)
– Vitória (ES), Brasil.
edutonole@yahoo.com.br

2 Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes) –
Vitória (ES), Brasil.
ritacdl@uol.com.br

3 Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes) –
Vitória (ES), Brasil
geliandrade@hotmail.com

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005316 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 283-297, DEZ 2015
283
284 DALFIOR, E. T.; LIMA, R. C. D.; ANDRADE, M. A. C.

Introdução o que fazem os governos, como e por que o


fazem (LABRA, 1999).
A análise de implementação de políticas Dentre os modelos de análise de políti-
públicas no Brasil apresenta uma trajetó- cas públicas, destaca-se o do ciclo da políti-
ria recente. É uma área em consolidação e ca, que considera o processo político como
com pouca acumulação de conhecimento. algo organizado no tempo e composto por
Portanto, compreender o processo de im- etapas. Nesse modelo, a análise da política
plementação de políticas, pode se traduzir é organizada em um ciclo político, em que
em um importante elemento de aperfeiço- são identificadas cinco etapas: 1) constru-
amento da ação governamental, uma vez ção da agenda; 2) formulação de políticas;
que se propõe a analisar as relações entre 3) processo decisório; 4) implementação de
governos, governantes e cidadãos. É im- políticas e 5) avaliação de políticas (BAPTISTA;
portante destacar que, em uma definição REZENDE, 2011; NAJBERG; BARBOSA, 2006; VIANA; BAPTISTA,
ampliada, a palavra governo se aproxi- 2009; RIBEIRO, 2009).
ma do estado moderno e não diz respeito Nas três primeiras etapas, são definidos os
apenas ao conjunto de pessoas que detêm o princípios e diretrizes que nortearão as ações,
poder político e que definem a orientação e são desenhadas as metas a serem atingidas,
política de determinada sociedade, mas os recursos a serem utilizados e o horizon-
também aos órgãos que institucionalmen- te temporal da intervenção. Durante esse
te têm o exercício do poder (SILVA; MELO, 2000; processo, há invariavelmente embates entre
VIANA; BAPTISTA, 2009). grupos e posições, e os consensos, sempre
No panorama atual das políticas públicas, provisórios, expressam as possibilidades
as definições e conceituações apresentam-se de ação (PINTO; SILVA; BAPTISTA, 2014). O resulta-
bastante diversas, mas é possível afirmar que do dessas etapas constitui-se na formaliza-
falar de política pública é falar de Estado, ção das decisões por meio de leis, decretos,
de pacto social, de interesses e também de medidas provisórias e resoluções, sendo essa
poder, envolvendo recursos, atores, arenas, a fase final do processo decisório (SERAFIM; DIAS,
ideias e negociações (VIANA; BAPTISTA, 2009). 2012). No Brasil, a estrutura decisória da po-
É nesse ponto de análise, no qual reside a lítica de saúde está assentada nos mecanis-
relação entre os diversos sentidos de políti- mos de participação e controle social (FLEURY;
ca pública com a percepção que se tem do OUVERNEY, 2008).A fase de implementação tem
Estado (SERAFIM; DIAS, 2012), que se reconhece a sido considerada, de acordo com Pinto, Silva
política pública como um objeto sobre o qual e Baptista (2014), o momento crucial do ciclo
se lança um olhar que permite refletir sobre da política, em que as propostas se materia-
os diferentes interesses, cultura, poder e dis- lizam em ação institucionalizada mediante a
putas (LACLAU APUD LOPEZ; MOREIRA, 2013). atuação dos agentes implementadores. Essa
Seria simples pensar que toda política etapa é o momento de se colocar em prática
de saúde visa melhorar as condições sani- as ações e projetos de governo. Sua discussão
tárias da população. No entanto, existem mais ampliada permite analisar esse proces-
outros interesses que implicam nos rumos so dentro do contexto local. É fundamental
e no formato dessas políticas, uma vez que essa discussão no nível da microgestão do
a sua construção perpassa pelos interesses governo – micro no âmbito do processamen-
envolvidos no âmbito do poder (COHN, 2009). É to da política – uma vez que é no nível local
dentro desse entendimento que a análise de que os ajustes são realizados para alcançar
políticas públicas se mostra um campo com- as prerrogativas anteriormente desenhadas
plexo e dinâmico, exigindo grande conheci- pelos fazedores de políticas ou não. Nesse
mento para que se possa entender e explicar sentido, para que uma política pública seja

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 283-297, DEZ 2015


Implementação de políticas públicas: metodologia de análise sob o enfoque da política institucional 285

implementada, é necessário traduzi-la como Política Empresarial do grupo Hautes Études


uma política institucional. É importante des- Commerciatres de Jouy-em-Josas, da França.
tacar que o termo institucional aqui abor- Por meio dos determinantes da política ins-
dado deve ser entendido como sinônimo de titucional do referencial Strategor, propõe-
organizacional. -se compreender as questões presentes no
É na etapa da implementação que o papel ambiente institucional e, assim, constituir-se
dos gestores e o desenho institucional da po- em uma ferramenta de análise do processo
lítica se tornam críticos, em função dos atores de implementação de políticas públicas.
envolvidos, dos instrumentos estabelecidos Este artigo baseia-se em uma abordagem
e do grau de centralização dos processos. teórica estruturada para abordar a lógica de
Salienta-se, ainda, a alta complexidade do análise estratégica de Strategor adaptada como
processo de implementação de uma política proposta metodológica para análise de imple-
e, sobretudo, sua capacidade de gerar conse- mentação de políticas públicas, com ênfase nos
quências sobre o funcionamento das organi- quatro determinantes da política institucional:
zações de saúde. No contexto institucional estratégia, estrutura, decisão e identidade.
brasileiro isto é especialmente verdadeiro
nos municípios de pequeno porte, nos quais
se destacam a forte diferenciação funcional O referencial de Strategor
e, principalmente, os problemas de coor-
denação e cooperação intergovernamental A análise de políticas é um assunto vasto e
(SILVA; MELO, 2000). difícil de condensar, uma vez que a temática
Inicialmente, a ideia de implementação passa por mudanças de bases conceituais, o
pode se restringir ao cumpra-se da política, que torna necessário criar novas variáveis à
uma vez que se pressupõe que a decisão da medida que os sistemas políticos e as socie-
autoridade seria automaticamente cumprida. dades se tornam mais complexos (LABRA, 1999).
No entanto, os estudos mostram que a opera- A apresentação de uma proposta metodoló-
cionalização da política apresenta inúmeros gica inovadora busca lançar um novo olhar
entraves no nível local (PRESSMAN; WILDAVSKY sobre o processo de implementação de po-
APUD PEREZ, 2006). O processo de implementação líticas públicas, de forma a compreender os
passa a ser entendido como um processo de determinantes intrínsecos deste processo. A
aprendizado articulado em uma rede comple- base dessa nova proposta está fundamentada
xa de atores que dão sustentação à política, na adaptação do enfoque da política institu-
formando ‘elos de ligação’ que sustentam os cional do grupo de gestão estratégica deno-
programas por meio da coordenação interins- minado Strategor.
titucional e da capacidade de mobilizar recur- A política institucional compreende a
sos institucionais (SILVA; MELO, 2000). instituição como ator da vida econômica e
Apesar da reconhecida importância da social e busca conhecer os seus determinan-
implementação, este tema mostra-se carente tes internos e externos, com vistas a explicar
de metodologias de análise (CARVALHO ET AL., seus comportamentos passados, de prever
2010). Este artigo objetiva, em linhas gerais, e, sobretudo, de orientar os seus comporta-
apresentar uma proposta metodológica de mentos futuros. Considera a instituição em
análise do processo de implementação de sua totalidade, incluindo fatores internos
políticas em âmbito local, com base na obra e externos, sendo esse o principal ponto de
‘Strategor: política global da empresa – es- vista de uma gestão (STRATEGOR, 2000).
tratégia, estrutura, decisão e identidade’, Na área da saúde pública, um dos métodos
do Grupo de Estudo Strategor, formado por mais conhecidos de aplicabilidade do enfoque
professores do Departamento de Estratégia e institucional de Strategor é a Demarche

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286 DALFIOR, E. T.; LIMA, R. C. D.; ANDRADE, M. A. C.

Strategique. Segundo Rivera (1997), o enfoque por elas traçados, o que faz com que tenham
de gestão estratégica de Crémadez e Grateau liberdade para definir os objetivos que pre-
de 1997 – Démarche Strategique – é um tendem perseguir e as estratégias que utili-
método que supõe a adaptação do enfoque zarão para esse fim. É justamente a escolha
de Strategor ao setor público de serviços da estratégia que corresponde ao difícil
de saúde francês. O método foi desenhado exercício de se colocar em prática os obje-
para hospitais regionais em um contexto de tivos gerais (STRATEGOR, 2000). Apesar de esses
contenção de recursos públicos, propondo- objetivos serem previamente definidos nas
-se a definir racionalmente a missão de um políticas públicas, a sua efetiva implemen-
hospital, situando-o na perspectiva ideal de tação depende de uma posição estratégica
uma rede coordenada de cuidados de saúde, por parte dos implementadores da política,
ultrapassando as barreiras internas do jogo de pois são eles que contribuem para colocar as
poder e pactuando, assim, as diretrizes gerais ações em prática.
para o processo de planejamento em nível Embora exista na literatura um grande
local, com ênfase em uma descentralização número de definições para estratégia, de
compartilhada (RIVERA, 1997). acordo com o referencial Strategor (2000),
No Brasil, o método foi trazido por Rivera elaborar a estratégia representa escolher os
(1997) e vem sendo adaptado e aplicado em campos de atividade em que a instituição
várias unidades hospitalares pelo Brasil (LOPES, deseje estar presente e aplicar os recursos
1997; ARTMANN, 2002A, 2002B; RIVERA, 2003, ARTMANN; para que ela se sustente e desenvolva, ou seja,
RIVERA, 2003, ANDRADE; ARTMANN, 2009, ARTMANN; o sentido específico da estratégia está fun-
ANDRADE; RIVERA, 2013, ARAÚJO; ARTMANN; ANDRADE, damentalmente ligado à ideia de vantagem
2013). O método se alimenta de diversos en- concorrencial. Assim, definir a estratégia
foques de planejamento e gestão estratégica, está relacionado com um autorreconheci-
baseados em elementos da microeconomia, mento de suas potencialidades e suas fraque-
do campo da estratégia e da política, e da área zas, identificando em quais campos ou áreas
do desenvolvimento organizacional e cultu- de atuação possui maior força. Para isso,
ral, além de categorias próprias da saúde e da é necessário, também, conhecer de forma
epidemiologia (ARTMANN, 2002B). especial o ambiente externo, identificando
Para melhor compreensão, o referencial as ameaças e oportunidades. Após esse re-
Strategor aborda a política institucional em conhecimento, a estratégia busca orientar
quatro grandes áreas, sendo elas: estratégia, a instituição sobre como melhor aplicar os
estrutura, decisão e identidade. Esta divisão seus recursos para se manter e permanecer
em quatro áreas não significa que essas competitiva. De forma geral, a estratégia
ocorram em momentos distintos e segmen- direciona a instituição para conhecer a sua
tados, mas trata-se de uma divisão metodoló- missão, sua razão de existência e, para isso,
gica para melhor entendimento do conteúdo. aponta diversos métodos e técnicas para ela-
A abordagem de Strategor consolida diversos borar a estratégia.
métodos e técnicas de gestão administrativa, A estratégia possui duas fontes princi-
importantes para orientar, analisar e definir pais de informação, que é o conhecimento
a política institucional (STRATEGOR, 2000). do território ou ambiente em que esteja in-
serida e uma boa apreciação das próprias
forças. Para gerar esse conhecimento, é
Estratégia preciso realizar uma análise contextual na
qual estarão presentes os fornecedores, o
As instituições perseguem objetivos que setor empresarial e os clientes/usuários.
lhes são próprios, por meio dos caminhos A partir disso, podem ser identificadas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 283-297, DEZ 2015


Implementação de políticas públicas: metodologia de análise sob o enfoque da política institucional 287

diversas questões que estão envolvidas ou de competência, cujo controle garante


nessa relação e que ao final, se bem con- posição de destaque (RIVERA; ARTMANN, 2006).
duzida e aproveitada pela instituição, A definição da missão deve associar de
contribuirá para identificar a posição con- maneira interativa uma análise interna dos
correncial, ou seja, dessa análise, pode-se recursos disponíveis, visando relacionar as
caminhar para identificar os atributos que suas competências naturais, fundamentais e
fazem a instituição se destacar das outras e específicas, e uma análise externa que permita
se manter com elevado desempenho. Essas identificar as características concorrenciais e
variáveis constituem-se na vantagem con- os FCS do setor e das atividades da instituição.
correncial (STRATEGOR, 2000). A missão resulta da carta cognitiva, da
A vantagem concorrencial, adaptada para constatação dirigente da instituição do que
o campo da saúde, fundamenta-se no fato de esses indivíduos veem ou não veem, com-
que os usuários (pacientes ou serviços que preendem ou não compreendem, anteci-
os referenciam) reconhecem na oferta de um pam e intuem no seu ambiente próximo. À
dos concorrentes um valor suficiente para medida que abrange longitudinalmente toda
recorrerem a ele (RIVERA; ARTMANN, 2006). Esse a organização, constituindo as competências
reconhecimento corresponde à percepção fundamentais, os elos que interligam as divi-
de uma maior qualidade relativa, pela qual sões e as unidades estratégicas, é igualmente
o usuário se disporia inclusive a pagar um claro que a missão interage com a estrutura.
preço maior. Em realidades em que o preço O sucesso de uma instituição depende da sua
não impera, como no caso do Sistema Único capacidade de equilibrar e alinhar os quatro
de Saúde (SUS), pode-se apreciar o valor determinantes fundamentais da política ins-
concedido a um serviço pelos esforços feitos titucional (estratégia, estrutura, decisão e
pela clientela para ter acesso a ele (desloca- identidade). Assim, apenas focar a análise da
mento, espera consentida etc.). estratégia não daria conta da complexidade
gestora. Ao definir a estratégia, a sua apli-
cação pressupõe divisão de tarefas no inte-
A missão institucional rior da instituição. Tal distribuição envolve
muitas pessoas, que são diferentes umas das
A definição da missão pode estar correla- outras e possuem competências diferencia-
cionada aos fatores-chave de sucesso (FCS), das, assim como métodos e maneiras de ver e
que caracterizam a soma das competências realizar as tarefas. Esse aspecto é designado
postas em jogo pela instituição, e o que é es- pelo termo estrutura, usualmente simboliza-
sencial, a partir de uma percepção subjetiva do por um organograma.
do saber-fazer específico da instituição. Os
FCS consistem em competências, recursos e
trunfos que uma instituição deve necessaria- Estrutura
mente possuir para obter êxito em uma dada
atividade e servem para avaliar a capacidade Para o Strategor (2000), a estrutura consiste
das instituições para alcançar bons resulta- na distribuição de tarefas, assim como as
dos em cada um dos segmentos de atividade ligações existentes entre os responsáveis
para satisfazer a demanda do serviço. Assim, pelas tarefas. A estrutura de uma instituição
os FCS correspondem às competências e/ou apresenta três características principais: a
tecnologias que devem ser controladas para especificação, ou seja, o modo e o grau de
obter êxito nas atividades. A identificação divisão do trabalho; a coordenação, que
dos FCS requer capacidades específicas de trata do(s) modo(s) de colaboração insti-
ordem relacional, tecnológica, financeira tuído entre as unidades; e a formalização,

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288 DALFIOR, E. T.; LIMA, R. C. D.; ANDRADE, M. A. C.

isto é, o grau de precisão na definição das o desenho formal da estrutura representa um


funções e das ligações. compromisso firmado em um determinado
Com relação ao modo e o grau de divisão momento entre os elementos do passado, os
do trabalho, a estrutura de uma instituição condicionantes do presente e uma visão de
caracteriza-se por sua forma principal de aposta no futuro. A estrutura real é o resul-
especialização, que trata do modo como tado da interação dinâmica desses três com-
compõe suas atividades, seja por funções ponentes, e a sua perenidade depende de sua
(recursos humanos, financeiro etc.), por capacidade de integrar as necessárias adap-
grupo de produtos (exames, cirurgias, va- tações ligadas à vida da instituição.
cinação etc.) ou por outras formas. Esse Existem diversos modelos de estruturas,
modo de especialização vai depender da no entanto, todos apresentam limitações.
complexidade da instituição e deve se Aceitar que existe essa heterogeneidade
adaptar às variadas situações com que a conduz a uma nova paisagem organizacio-
instituição é confrontada. nal, como também a uma renovação das
No que diz respeito à segunda carac- práticas de gestão e das relações emprega-
terística da estrutura, a forma clássica de dor/empregados e supervisor/subordinado,
coordenação dentro de uma instituição passando de uma visão patriarcal para uma
tem sido a hierarquizada, representada relação de pares, sendo esta relação forte-
por uma pirâmide, na qual os supervisores mente privilegiada nas instituições de saúde
estão acima de seus subordinados em uma (ARTMANN, 2002B)
relação de cima para baixo. Em uma visão A função do dirigente evolui para uma
mais moderna, as relações verticais de visão estratégica, para o desenvolvimento
supervisor-subordinado completam-se por da capacidade de mobilização das sinergias
mecanismos de relações horizontais, como estruturais e de criação de uma liga cultu-
comissões, grupos de trabalho e projetos. A ral que aproxime os fins e as motivações.
hierarquia assegura a coordenação, seguin- Desvia-se da especificação normalizadora
do as linhas determinadas pela especializa- e orienta-se para a condução de processos
ção principal. Além disso, a coordenação se de assistência e de resolução de problemas
apoia em mecanismos de circulação de in- (STRATEGOR, 2000).
formação que não se dissociam da estrutura Para o Strategor (2000), as instituições
propriamente dita. Esses mecanismos con- devem evitar os reflexos redutores de cen-
tribuem para a eficácia e para a flexibilida- tralização, normalização, uniformização e
de das ligações hierárquicas e horizontais regulamentação, bem como a ambiguidade
e constituem, com a estrutura, um todo in- tradicional da relação delegação-controle.
dissociável, que se analisa, em último caso, Não devem confundir uma estruturação
como um instrumento de tratamento da consciente e explícita da cooperação entre
informação, com vista à tomada de decisão. atores com uma espécie de reflexo comuni-
Finalmente, a formalização trata da tário visando fazer assentar a integração na
existência da lei escrita. Várias institui- fusão de pontos de vista dos atores. Uma vez
ções possuem seus manuais de organização admitido que a interdependência de coope-
que descrevem a estrutura, as funções que ração entre os atores é essencialmente diver-
as compõem, as ligações entre unidades e sificada, pertencer a uma comunidade regida
setores e, por vezes, até as tarefas que cada por valores e por uma forte visão comparti-
um deve realizar, sendo um instrumento lhada dos desafios permite aos indivíduos
que fixa o quadro de funcionamento. Dessa viver de maneira extremamente positiva.
forma, os gráficos e os organogramas tradu- Os embasamentos teóricos sobre estru-
zem mais intenções do que realidade. Assim, tura apontam para diversos modelos ditos

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Implementação de políticas públicas: metodologia de análise sob o enfoque da política institucional 289

como tradicionais ou normativos que difi- de concretização dessa vontade. É, portanto,


cultam a comunicação e o enfrentamento de um processo explícito que se apoia em um
eventuais problemas que exigem decisões método e que se desenvolve no tempo e no
rápidas para melhor adaptação aos cenários. espaço, segundo um programa predetermi-
Para o referencial Strategor, fica claro que a nado (um plano). É um modo de tomada de
estrutura tem relação direta com a estratégia decisão que se distingue, em particular, pelo
e vice-versa, pois, em ambos, o entendimento seu caráter formalizado, sem que signifique
da missão é fundamental. Para que a estrutu- que seja inteiramente padronizado. O plane-
ra responda bem aos objetivos da instituição, jamento, portanto, caracteriza-se por uma
seria melhor lançar mão de uma estrutura atitude de compromisso baseada na anteci-
menos normalizada, formalizada com base pação, na finalização e na vontade. Requer
em resultados, aproveitando as potencialida- o exame prévio de um conjunto de proble-
des de cada ator dentro do processo. mas e de ações para avaliar a possibilidade
de se levar aos resultados pretendidos, com
mais segurança e mais eficácia do que deci-
Decisão sões tomadas aleatoriamente. Determina, de
maneira explícita, um estado desejado ou de-
Qualquer escolha tomada no ambiente sejável em um determinado horizonte e con-
institucional constitui-se em termos de sidera necessário realizar ações para atingir
responsabilidade e de poder, e, portanto, esse estado desejado, que não está inscrito
essas escolhas consistem em um espaço no curso natural das coisas (STRATEGOR, 2000).
de liberdade política para aqueles que as O processo de decisão, para Strategor
fazem em processos de decisão que não (2000), para muitos, pode se colocar como
se explicam pelos problemas colocados uma ação bastante evidente do ser humano.
em nível de estratégia e de estrutura, mas No entanto, ao discutir a decisão, enquanto
sim pela maneira como a instituição trata grupo ou instituição, pode-se apontar par-
esses problemas. A decisão é a parte menos ticularidades curiosas, no sentido de evi-
visível da política institucional; no entanto, denciar problemas provocados pela decisão
é o seu principal motor, pois é por meio dela coletiva. A decisão estratégica não pode ser
que as ideias, os sentimentos e as ambições tratada como uma atividade individualista,
dos indivíduos transformam-se em ações e isso demonstra que o processo de decisão
estratégicas. A definição de decisão estraté- não é simples e está implicado por questões
gica está assentada ao processo pelo qual a complexas, pois está relacionado com o cole-
instituição modifica a sua estratégia real. É, tivo. Nesse contexto, é importante ressaltar
portanto, por meio dos processos de decisão que as decisões tomadas dentro de uma ins-
que introduzem as mudanças capazes de tituição repercutem sobre todas as áreas.
levar uma instituição do ponto t para o Rivera e Artmann (2006) apontam para
ponto t+1. É dentro dessa parte da política características das instituições do tipo pro-
institucional que assentam as discussões fissional que interferem diretamente sobre
sobre o planejamento, os processos de deci- o processo decisório. A partir da caracteri-
sões, o domínio da estratégia e o problema zação de Mintzberg sobre a estrutura ins-
da formação da estratégia e da sua evolução titucional tradicional, Crémadez e Grateau
ao longo do tempo (STRATEGOR, 2000). detalham algumas características das insti-
O planejamento institucional é um pro- tuições do tipo profissional que interferem
cesso de tomada de decisão que elabora uma diretamente sobre o processo decisório.
representação pretendida do estado futuro 1) Primazia do centro operacional: os ser-
da instituição e especifica as modalidades viços de saúde compreendem um grande

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número de unidades bastante independente, mais curto prazo, representada pelas de-
altamente especializadas, que reconhecem mandas e necessidades dos pacientes. Estas
um ambiente diferenciado. Isso significa atividades são exercidas de maneira liberal
que estas unidades são mais importantes e têm uma fraca pertinência organizacional.
do que outras instâncias institucionais por O nível hierárquico, no mundo assistencial,
reunirem saber e autonomia suficiente para está determinado pela competência.
tomar suas próprias decisões. Dessa forma, - Diferenciação entre logística e centro
cada um desses centros operacionais se di- operacional: a logística está organizada de
ferencia por possuir suas próprias normas, maneira mecanicista e coordenada segundo
procedimentos, usuários diferenciados e critérios econômicos, de forma centralizada.
pela ligação que possuem com entidades ou Já o mundo assistencial é descentralizado
sociedades de especialistas, como sociedade e organizado segundo o saber próprio e es-
de cardiologia, sociedade de anestesiologia, pecializado, especialmente, o saber médico.
de oftalmologia, entre outros. Dessa forma, ocorrem choques entre a admi-
2) Debilidade da tecnoestrutura: a tecno- nistração e o centro operacional no que diz
estrutura tem um fraco poder de ingerência respeito ao controle dos equipamentos e das
sobre os processos operacionais da institui- tecnologias médicas descentralizadas.
ção, a não ser na dimensão econômica. - Diferenciação no centro operacional:
3) A logística é importante: o tipo de co- existe uma forte especialização horizontal,
ordenação respectiva é do tipo procedural e assim como uma diferenciação no interior
por resultados e se efetiva de maneira cen- de cada serviço entre várias categorias de
tralizada. A organização diferenciada do profissionais e entre os profissionais médico
universo médico e do logístico pode gerar e não médicos. É necessário respeitar algum
problemas de coordenação. Destaca-se que grau de diferenciação, valorizar as diferen-
essa expansão da importância dos meios lo- ças sem buscar homogeneidade ou simetria,
gísticos, tipicamente médicos, como tecno- pois a diferenciação é fonte de eficácia.
logias hospitalares e equipamentos, resulta A prática decisória em organizações pro-
em um conflito de influências entre os admi- fissionais é incrementalista, dado o resul-
nistradores e profissionais da área médica, tado de suas características estruturais e
assim como gera conflitos dentro da própria dinâmicas, ou seja, as decisões são tomadas
comunidade médica. em série, em função do poder de pressão mo-
4) Ausência de linha hierárquica rígida: mentâneo dos vários atores institucionais,
a direção não tem capacidade nem compe- sem uma perspectiva de conjunto, havendo
tência para dirigir diretamente os chefes dos assim uma justaposição de objetivos, não se
vários serviços. Atua diretamente por meio verificando um processo de formulação de
da tecnoestrutura e dos serviços funcionais uma estratégia anterior. A estratégia seria o
e/ou instâncias de negociação. resultado emergente de decisões de natureza
Essas características apontam para uma mais operacional e pontual. Dessa forma, a
forte diferenciação, com muitas dimensões: estratégia emergente é fruto de uma inflexão
- Diferenciação entre o mundo adminis- ou de um deslocamento discreto da estra-
trativo e o mundo assistencial: o adminis- tégia anterior sob a influência de decisões
trativo volta-se para instâncias de regulação, sucessivas, não geradas de forma global na
persegue objetivos quantitativos e econômi- instituição (ARTMANN; RIVERA, 2003).
cos, em uma perspectiva política, articulan- Outro ponto a ser destacado sobre a di-
do o curto e o longo prazo. Por outro lado, o nâmica institucional dos serviços de saúde
mundo assistencial percorre objetivos mais refere-se ao seu fechamento/isolamento
qualitativos, ligados a uma perspectiva de em relação ao ambiente externo e ao baixo

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Implementação de políticas públicas: metodologia de análise sob o enfoque da política institucional 291

sentimento de pertencimento à instituição três eixos da política institucional tratados


por parte dos profissionais de saúde. Nesse anteriormente, a condicionante humana
contexto, a postura tomada com relação ao estará presente em todas elas. Assim, a es-
ambiente é sempre reativa, pois a instituição tratégia tem que ser aplicada por uma co-
está centrada sobre si mesma. Para inverter letividade humana. A ação coletiva passa
essas tendências, o processo de decisão es- pelo cérebro humano e sofre, portanto, a
tratégia pode contribuir, pois objetiva ajudar filtragem da sua capacidade cognitiva e dos
a criar uma cultura em que o ambiente seja seus afetos. A ação também passa por uma
percebido como recurso, no qual se ante- estrutura, com o jogo de influências, de co-
cipam as tendências do ambiente de modo ligações e de manobras. A organização é
a atuar criticamente sobre ele e no qual a composta por pessoas e a ação coletiva, em
instituição desenvolva sinergias e parcerias uma determinada instituição, encontra-se
de modo a trabalhar dentro da premissa de geralmente marcada por uma lógica coeren-
redes de colaboração (ARTMANN, 2002B). te que a distingue de qualquer outra. Essa
Em uma abordagem de gestão estratégica, lógica é constituída e firmada no tempo, dá
existe o rompimento entre o estratégico e à instituição certa continuidade, permite a
o operacional, que objetiva minimizar essa cada pessoa identificar essa instituição e, em
divisão verticalizada. A gestão estratégica certos casos, identificar-se com ela. É o que
baseia-se no poder de decisão difundida pela se chama identidade (STRATEGOR, 2000).
instituição sobre o aproveitamento de uma A palavra identidade institucional é um
oportunidade, e não em uma decisão centra- correlato do conceito de cultura. A cultura
da no dirigente. A direção dá as orientações, contempla as representações sociais com-
os valores centrais do projeto institucional, partilhadas sobre a instituição e a sua
mas não decide sobre a estratégia, pois esta missão, dada sua história e seu papel na
depende de todos os atores da instituição sociedade. O conceito de identidade acres-
(ARTMANN, 2002A). centaria, a esta visão integradora, uma di-
Para além da maneira como se tomam mensão que está oculta pela cultura: a dos
as decisões estratégicas, produz-se um jogos dos atores e de seus mecanismos psí-
fenômeno que interfere largamente na es- quicos (STRATEGOR, 2000).
tratégia, a ponto de, às vezes, paralisá-la. Nessa perspectiva, a cultura é significante
Trata-se da identidade institucional, que da identidade, sendo esta entendida como algo
consiste na imagem coletiva da instituição que recupera a função ideológica das repre-
para todos os que lá trabalham. Identidade sentações institucionais. A palavra identida-
é uma imagem infinitamente mais comple- de é mais adequada do que a palavra cultura,
xa, que não se confunde de forma alguma embora esta seja mais usada na literatura.
com a imagem externa (percebida pelos Quando se trata de procurar as vias da liber-
clientes, fornecedores, usuários dos ser- dade de agir, cultura é um termo mais passivo,
viços), que é facilmente manipulável pela mais manipulado, ficando no nível mais su-
publicidade e pelas relações públicas perficial das ideias e valores ou de convicções,
(STRATEGOR, 2000; ARTMANN, 2002B). como aquilo a que se convencionou chamar
de universo simbólico (as ideologias, mitos,
ritos, tabus, normas de comportamento que os
Identidade exprimem). A identidade inscreve-se no nível
das paixões. A noção de identidade interroga
A identidade procede de uma cultura interna sobre os modos de emergência dessas imagens
da instituição. Nesse entendimento, seja qual e desses símbolos, e é aí que se encontra o ver-
for o modelo adotado em qualquer um dos dadeiro problema do poder (STRATEGOR, 2000).

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292 DALFIOR, E. T.; LIMA, R. C. D.; ANDRADE, M. A. C.

A identidade recupera a função ideológi- Para esses autores, a mudança do para-


ca das representações institucionais e a sua digma da medicina está relacionada com
lógica de poder. Nesse sentido, a identidade a intervenção gerencial, em que o estilo
é entendida como um tipo de lógica coerente liberal profissional diminui e se intensifica
de uma instituição, uma visão coletiva, parti- o controle administrativo da estrutura ins-
lhada, procedente de influências internas e titucional. Nessa lógica, o trabalho médico,
externas. Está assentada na base do contrato por exemplo, se insere nessa estrutura, na
psicológico entre cada indivíduo e a institui- qual a medicina passa a ser vista sob uma
ção, que define a natureza e a força de sua nova perspectiva. Assim, a atuação médica
identidade com ela (RIVERA; ARTMANN, 2006). eficaz passar a supor uma articulação entre
Uma instituição constrói-se sobre valores, a medicina orgânica/positivista, e o enfoque
quando não é vivida pelos seus membros ecológico perde sentido. Nessa perspecti-
como sendo somente um instrumento econô- va, também perde sentido o agir isolado do
mico, mas como sendo também fonte direta médico, as parcerias se tornam indispen-
de satisfação pessoal, intelectual e afetiva. sáveis e a busca da solidariedade entre os
Por esse fato, produz uma identidade que os atores passa a ocupar o centro das atenções.
seus membros podem subscrever, que pode Com relação às mudanças do paradigma
marcar todos os aspectos da vida da insti- dos serviços público, os limitados recursos e
tuição e garantir uma integração social, que as dificuldades em prestar acesso universal e
vai muito além dos mecanismos formais de igualitário fizeram com que muitos serviços
coordenação, particularmente hierárquicos. se monopolizassem, atuando com excessiva
A satisfação é proporcionada por via dos independência. Acredita-se, nessa perspec-
ideais pessoais ou imagens de si: orgulho do tiva, que o serviço público deve aceitar a
que se faz, sensação de realizar algo que faz concorrência, a avaliação, a necessidade de
sentido, lealdade. A instituição e os líderes escuta dos usuários e a abertura ao ambiente.
estão presos à ideologia que criam, e é isso O serviço público deve se tornar competitivo
que faz a eficiência da primeira e a grandeza internamente (racionalizando seus recursos
dos segundos. e trabalhar em rede), privilegiando a ideia de
A instituição é formada por ‘agentes contratualização e formas de cooperação e
sociais’. Quando um indivíduo vem trabalhar parcerias (RIVERA; ARTMANN, 2006).
em uma instituição, ele traz consigo suas A mudança do paradigma do profissio-
propriedades socioculturais, sua história e nal pauta-se na perspectiva de que a ex-
seus hábitos (STRATEGOR, 2000). periência profissional deixa de ser a base
Rivera e Artmann (2006), apoiados em da competência, uma vez que a renovação
atores, como Crémadez e Grateau, apontam cada vez mais rápida dos conhecimentos e
que a crise de identidade na saúde pública tecnologias tornam os recursos cognitivos
está atribuída à modificação de determina- anteriores obsoletos, o que provoca um cres-
dos paradigmas tradicionais. O resultado cimento da especialização e uma regressão
do impacto de mudanças de diversos pa- da autonomia dos especialistas. Uma maior
radigmas enfraquece o contrato psicoló- interpenetração entre o técnico e o econômi-
gico que liga os indivíduos à instituição. co é provocada pela crescente complexidade
No campo da saúde pública, alguns para- técnica. Nesse sentido, a formação e atua-
digmas contribuem para criar uma crise lização profissional tornam-se elementos-
de identidade, sendo eles: a mudanças do -chave da competência profissional. Assim, a
paradigma da medicina, a mudança do pa- possibilidade de operar reorientações profis-
radigma do serviço público e a mudança do sionais (mudança de especialidades) torna-
paradigma profissional. -se primordial tanto para o desempenho da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 283-297, DEZ 2015


Implementação de políticas públicas: metodologia de análise sob o enfoque da política institucional 293

carreira individual quanto para a eficiência ganho coletivo e que favorecem o compar-
institucional parcerias (RIVERA; ARTMANN, 2006). tilhamento de recursos. Nesse caso, a gestão
A discussão sobre esses paradigmas coloca estratégica permite que estratégias individu-
em questão os principais traços da identida- ais se combinem dentro de uma estratégia de
de institucional, que seriam: conjunto. A formalização da informação, das
análises e dos planos favorece a apreensão da
[...] a não explicação dos projetos organiza- instituição pelos atores (STRATEGOR, 2000).
cionais, a justaposição de objetivos, o iso- O processo de análise estratégica possi-
lamento dos profissionais e dos serviços, a bilitaria a criação de lugares de encontro,
recusa à avaliação das competências, o cor- o que estimularia a reflexão coletiva (intra
porativismo profissional, a predominância e intergrupo profissional), distribuindo as
dos critérios técnicos sobre os econômicos, a responsabilidades entre os grupos, criando
marginalização da gerência, a pouca preocu- novas unidades e aumentando as interfaces
pação com o ambiente externo, entre outros. externas. O sistema de poder evoluiria para
(ARTMANN, 2002B. P. 73). o estabelecimento de transversalidades e
de interdependências. A natureza técnica
Essas mudanças e quebras de paradigmas e econômica das decisões conduziria para
resultam em uma crise de identidade, que relações de colaboração entre os gestores e
acentua sentimentos e reações negativas, profissionais de saúde, havendo mais inte-
especialmente pelos grupos dominantes, gração e formalização (ARTMANN, 2002B).
como os médicos. Por outro lado, a institui- A socialização da informação promove o
ção tende a se tornar mais reativa em relação conhecimento mútuo, em uma gestão nego-
ao ambiente externo, superestima recursos ciada, acentuando a necessidade de sinergias
e encara o futuro com inquietação. Desse e parcerias operacionais. Os agentes institu-
cenário de crise de identidade, fazem parte cionais passam a se encontrar e a conversar
as necessidades de fortalecer a regulação ad- entre si. Nesse contexto, os valores passam
ministrativa e a introdução de critérios eco- a ser questionados, trazendo-os à tona
nômicos de gestão nos centros operacionais, como fundamento das decisões. Em função
o que ameaça a sua autonomia parcerias da possibilidade do encontro, a rigidez das
(RIVERA; ARTMANN, 2006). posições corporativas dá lugar a posições
Nesse contexto, a gestão estratégica mais flexíveis. A instituição evolui para uma
manifesta-se como uma possibilidade para valorização da interdependência, em uma
enfrentar esse cenário de crise de identida- aproximação positiva do sentido de bem co-
de e renovar o contrato psicológico entre letivo da atividade. Os atores institucionais
os atores e a instituição. Alguns fatores re- apropriam-se da instituição com informa-
sultantes desse impacto sobre identidade ção, formalização e análise e desenvolvem
institucional seriam: a formulação de um uma motivação para a ação.
projeto institucional baseado nas sinergias e Considerando a característica processu-
parcerias, o processo de análise estratégica, al, adaptável e detalhada dos projetos dos
a socialização da informação e a valorização vários serviços, é necessário que os diver-
da interdependência institucional. Formular sos atores subscrevam uma carta de inten-
um projeto institucional estruturado, com ções estratégicas gerais como meio de dar
base nas sinergias e parcerias, e induzido unidade às iniciativas locais, tal como ao
pela gestão estratégica, coloca em evidên- grande projeto estabelecido. Assim, como
cia soluções que têm impactos psicológicos existe uma distância importante entre o
favoráveis, possibilitando escolher aqueles discurso e a real modificação de comporta-
projetos que colaboram para um maior mento, torna-se fundamental que se assuma

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 283-297, DEZ 2015


294 DALFIOR, E. T.; LIMA, R. C. D.; ANDRADE, M. A. C.

a análise estratégica como um processo ex- Na relação existente entre estrutura e


ploratório, interativo e progressivo, como identidade, a estrutura colabora para forjar a
aprendizagem permanente (STRATEGOR, 2000; identidade. O organograma pode ser explíci-
RIVERA; ARTMANN, 2006). to ou implícito, oficial ou oficioso, mas do co-
nhecimento de todos. Nesse contexto, para
transformar a identidade, uma das possíveis
Considerações finais soluções seria criar uma identidade paralela,
modificando o organograma. Em compensa-
A organização das abordagens apresentadas ção, a identidade preexistente influencia a
por Strategor foi dividida, mas não se pode pre- evolução da estrutura, que pode ser conside-
tender que, na realidade, os fenômenos apon- rada como uma produção simbólica da iden-
tados classifiquem-se em uma dessas quatro tidade. Associa-se, assim, uma identidade do
categorias de maneira estanque. As discussões tipo gestora a uma estrutura flexível e des-
reúnem teorias e modelos, mas não se esgota, centralizada ao invés de uma identidade do
uma vez que se buscou fazer uma abordagem tipo burocrática a uma estrutura mecanicista
global da política institucional, adaptando-a fortemente hierarquizada.
a saúde pública. Os quatro determinantes da A utilização do referencial Strategor apre-
política institucional não podem ser conside- senta-se como uma potente ferramenta para
rados independentes uns dos outros, mas sim lançar um olhar analisador mais ampliado
como um conjunto estruturado. sobre o processo de implementação de po-
Para Strategor (2000), a ligação entre a líticas públicas. Isso seria possível uma vez
estratégia e a estrutura é muito forte, tal que os quatro determinantes da política ins-
como a estratégia e a identidade, mas todos titucional permitem apontar para questões
os elementos da política institucional estão pouco visíveis e difíceis de mensurar por
ligados uns aos outros. Estratégia e estru- meio da utilização de instrumentos de ava-
tura influenciam-se mutualmente. Existe liação. O referencial de Strategor possibilita
também uma ligação muito forte entre a ampliar o leque de análise, apontando para
estrutura e os processos de decisão, como, particularidades do processo de tomada de
por exemplo, uma estrutura muito descen- decisão, da complexidade humana presente
tralizada irá se adaptar mal às instâncias de dentro das instituições, na dinâmica da es-
decisão do topo da gestão. trutura institucional e, como consequência
A distribuição do poder permite estabe- disso, uma análise da estratégia assumida
lecer uma ligação entre estratégia e decisão. pela instituição para implementar determi-
A relação entre processo de decisão e identi- nada política. A partir dessas possibilidades,
dade é da mesma natureza que as anteriores. o método adaptado de Strategor apresenta-se
Processos burocráticos ou formalizados não com potencial para dar conta da complexi-
permitirão que se desenvolva uma identida- dade de análise do processo de implementa-
de gestora, mas tenderão a perpetuar uma ção ao despertar para um olhar voltado para
identidade do tipo burocrática. A implanta- o modo como uma instituição se organiza
ção de um sistema de planejamento ou de perante a necessidade de implementar uma
controle só pode ser validado após uma re- política pública. Portanto, o referencial de
flexão sobre a identidade. Os desafios criam Strategor como método de análise compre-
problemas e exigem transformações em um ende um referencial rico, que seria capaz de
ou em outro sentido. Assim, a importân- dar conta da complexidade de análise de im-
cia do líder como agente de mudança é um plementação de políticas públicas.
dos instrumentos de correspondência entre O referencial de Strategor pode se
identidade e decisão. destacar como instrumento analisador

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 283-297, DEZ 2015


Implementação de políticas públicas: metodologia de análise sob o enfoque da política institucional 295

estruturado, que promove discussões de É fato que o campo da análise de políti-


caráter estratégico e possibilita reflexões cas é amplo e complexo. Buscou-se discutir
sobre os determinantes da política institu- aqui uma proposta metodológica que poderá
cional, como uma ferramenta que permite se mostrar eficiente para esse fim, pois o
resgatar a etapa da implementação, ao método aponta para questões relevantes,
ponto de conferir a ela uma posição-chave podendo se tornar um importante instru-
para o fortalecimento da ação governa- mento analisador do processo de implemen-
mental. Tal estruturação, porém, não deve tação, já que congrega quatro grandes áreas
ser confundida com normatividade. Longe da política institucional.
de se apresentar como um ‘manual para O referencial de Strategor é amplo e abre
análise de políticas públicas’, esta pers- um campo de oportunidades para compre-
pectiva possibilita enfatizar a visão estra- ender a instituição, possibilitando apreender
tégica dos problemas de implementação, o desenho de estruturas de incentivo e os ar-
‘criando’ políticas e constantemente orien- ranjos cooperativos em redes de implementa-
tando a elaboração de novas políticas. ção. A proposta metodológica adaptada desse
Ao lançar mão desse referencial como referencial direciona o seu foco para a análise
foco de análise, abre-se um amplo campo de implementação de políticas e, para isso,
de oportunidades que poderão apresentar traz de forma concisa os principais elementos
resultados bastante diversos a depender do dos determinantes da política institucional,
contexto local pesquisado, bem como dos mas que se mostram úteis para viabilizar este
objetivos de análise definidos pelo pesqui- instrumento de análise.
sador. De qualquer maneira, os resultados Por fim, não cessa aqui o aprofundamen-
apontam para questões até então pouco dis- to desta temática, mas é posto em cena um
cutidas, uma vez que os estudos sobre aná- novo olhar para analisar o processo de im-
lises de políticas públicas têm direcionado plementação de políticas públicas brasileiro.
o seu foco especialmente para as etapas de Da formulação até a avaliação dos resulta-
formulação de política pública, em especial dos, uma política percorre uma longa cadeia
à definição da agenda política, assim como de atores que estão presentes nas mais di-
para a avaliação das políticas públicas, es- versas instâncias e atuam como potências
pecialmente na aferição dos resultados que contribuem ou não para o alcance dos
alcançados com base nas metas preestabe- resultados esperados. Esses autores criam
lecidas. Dessa forma, este método se propõe inovações que podem modificar o sentido ou
a abarcar uma visão ampliada do processo mesmo transformar completamente a noção
de implementação de políticas. de resultado da política. s

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Recebido para publicação em maio de 2015


Versão final em outubro de 2015
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 283-297, DEZ 2015


298 ENSAIO | ESSAY

A insustentável leveza do trabalho em saúde:


excessos e invisibilidade no trabalho da
enfermagem em oncologia
The unbearable lightness of health work: overdemand and invisibility
on nursing work in oncology

Maria Liana Gesteira Fonseca1, Marilene de Castilho Sá2

RESUMO Este artigo aborda a produção do cuidado, focalizando particularmente o tra-


balho da enfermagem. Trata-se de uma pesquisa teórica, apoiada na psicodinâmica do
trabalho, utilizando-se, para ilustração, de fragmentos de material oriundo de pesquisa
em uma enfermaria oncológica. Conclui-se que o trabalho em saúde possui uma dimen-
são intangível – caracterizada pela inteligência criadora e sensibilidade do trabalhador
– que é definitiva para a qualidade do cuidado e não pode ser mensurado por indicadores
formais. Exigindo simultaneamente intensidade e leveza, o trabalho em saúde necessita
ser sustentado, o que aponta para a importância da gestão em sua função de sustentação
material e psíquica do trabalho em saúde.

PALAVRAS-CHAVE Assistência à saúde; Cuidados de enfermagem; Assistência hospitalar;


Gestão em saúde.

ABSTRACT This article discusses the production of care, focusing particularly on nursing work.
This is a theoretical study, based upon work psychodynamics, using, for illustration, empiric ma-
terial from a research in an oncology sickroom. We conclude that health work has an intangible
dimension – characterized by the workers’ creative intelligence and sensitivity – which is defini-
tive for health care quality and can not be measured by formal indicators. Requiring both stren-
gth and lightness, health work needs to be sustained, pointing to the importance of management
for providing material and psychic support for health work.

KEYWORDS Delivery of health care; Nursing care; Hospital care; Health management.

1 InstitutoNacional do
Câncer (Inca) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
liana.fonseca@inca.gov.br

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
marilene@ensp.fiocruz.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 298-306, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005247
298
A insustentável leveza do trabalho em saúde: excessos e invisibilidade no trabalho da enfermagem em oncologia 299

Introdução É necessário compreender os desafios


ou exigências que esse trabalho, por sua
Este artigo aborda as especificidades do tra- própria especificidade, impõe aos traba-
balho em saúde e seus desafios para a gestão lhadores, bem como os impasses colocados
do trabalho nesse âmbito. Considerando os pelo atual contexto de grandes mudanças
aspectos relacionais e intersubjetivos que na saúde pública e no gerenciamento dos
são centrais neste tipo de trabalho (SCHRAIBER, serviços de saúde, especialmente dos hos-
1993; MERHY, 2002; CAMPOS, 2003; AYRES, 2004; SÁ, 2005, pitais, absortos na lógica dos resultados,
2009) e que atravessam as organizações de indicadores e números – estes cobrados
saúde, abordou-se o trabalho em saúde e a por instâncias superiores aos próprios
produção do cuidado especialmente em sua serviços de saúde e por vezes incorpora-
dimensão de ‘saber-fazer discreto’ (MOLINER, dos pela lógica gerencialista dos gestores.
2012), assim como o conceito de ‘contamina- A necessidade de metas, números e indi-
ção do tempo fora do trabalho’ (SANTOS, 2001), cadores é justificável e justificada, tendo
para ilustrar a complexa trama que pode em vista as necessidades dos usuários do
estar presente no vínculo dos trabalhadores Sistema Único de Saúde (SUS) e o impera-
de saúde com seu ofício. Focalizou-se parti- tivo de se garantir universalidade e equi-
cularmente o trabalho da enfermagem. dade no acesso aos serviços de saúde, com
Apresentam-se então aqui resultados de qualidade e eficiência no uso dos recursos
uma pesquisa teórica, apoiada sobretudo públicos. No entanto, no setor de saúde,
na psicodinâmica do trabalho (DEJOURS, 1982, especialmente em áreas mais específicas,
1993, 2004, 2008A, 2012A, 2012B), utilizando-se, em como a oncologia, por exemplo, as de-
caráter ilustrativo, de fragmentos de material mandas crescem exponencialmente e nem
empírico oriundo de uma pesquisa de campo sempre as condições de trabalho e de re-
ocorrida entre setembro de 2012 e junho de cursos humanos são condizentes com tais
2013, compreendendo entrevistas com tra- cobranças. Além disso, é importante consi-
balhadores de enfermagem de uma enfer- derar – o que será visto no presente artigo
maria oncológica e observação participante – que o trabalho em saúde possui uma
(FONSECA, 2014). Para este artigo, recortou-se a dimensão intangível que é muito maior e
temática do vínculo dos trabalhadores com muito mais definitiva para a qualidade do
seu trabalho e a chamada ‘contaminação do cuidado produzido do que aquilo que do
tempo fora do trabalho’. trabalho pode ser mensurado ou apreendi-
do por indicadores formais.
Por isso, é preciso observar mais de
O trabalho em saúde e suas perto e buscar compreender o trabalho
dimensões intangíveis real (DEJOURS, 2008A, 2012A) dos operadores do
cuidado, interrogando sobre sua distân-
O trabalho em saúde guarda especificidades cia e possíveis contradições com relação
que tornam seu gerenciamento mais com- às prescrições, metas, aos indicadores e à
plexo não só por se tratar de um trabalho que dinâmica organizacional. O que esse tipo
se dá entre sujeitos, portanto apresentando de trabalho demanda de seus trabalhado-
um caráter relacional central, mas também, res? O que é visível e o que é invisível no
principalmente, por significar intervir sobre trabalho de saúde? Esse trabalho seria ple-
a vida, os corpos e as paixões de sujeitos namente passível de captura e mensuração
que se colocam no momento desse encon- pelos métodos disponíveis de gestão que
tro como pacientes e usuários do sistema de se tem hoje? Como se expressa o vínculo
saúde (SÁ, 2005; SCRAIBER, 1993). entre trabalhador e organização/trabalho?

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 298-306, DEZ 2015


300 FONSECA, M. L. G.; SÁ, M. C.

Que elementos condicionam tal vínculo e trabalho, um trabalho de criação, de concep-


quais os efeitos deste para a qualidade do ção, de produção de saber e de uso de capa-
cuidado em saúde? cidades e saberes tácitos.
Para começar, é preciso que se tome o É justamente no hiato entre estes dois
conceito de trabalho. Para tanto, será usada polos, o trabalho prescrito e o trabalho real –
a concepção da psicodinâmica do trabalho, hiato este geralmente invisível para os atuais
desenvolvida por Christophe Dejours, que, métodos de gestão –, que se encontram boa
baseada na ergonomia da atividade e em parte das produções subjetivas daquele
autores como Guérin, Laville, Daniellou, que trabalha: sua inteligência criadora, seu
Duraffourg, Kerguelen, distingue o trabalho prazer e seu sofrimento.
prescrito do trabalho real, afirmando que No caso dos trabalhos em saúde, devido
há sempre uma diferença entre aquilo que à sua natureza eminentemente relacional
é solicitado pela organização formal do tra- (MERHY, 2002; SÁ, 2005, 2009) e ao próprio objeto
balho e aquilo que de fato trabalhadores e do trabalho, a vida, que é sempre dinâmica
trabalhadoras realizam em seu cotidiano, de e prenhe de variabilidades – o trabalhador
acordo com os eventos, com as variabilida- está sempre acrescentando de si às prescri-
des e as diversas necessidades emergentes, ções, sempre ajustando as regras gerais, aos
que demandam que a lacuna entre trabalho casos particulares e sempre lidando com
prescrito e trabalho real seja preenchida situações singulares (BRITO, 2011; MARSIGLIA, 2011).
(DEJOURS, 2004, 2008A, 2012A, 2012B). No caso de trabalhos em saúde, como o da
Tal lacuna é preenchida por aquilo que os enfermagem, por exemplo, cujo aprendiza-
sujeitos que trabalham acrescentam de si às do e trabalho prescrito se concentram prin-
prescrições. Segundo Dejours: cipalmente na execução de procedimentos
técnicos, a diferença entre o prescrito e o
O que ainda aparece para o clínico como a real fica ainda maior, na medida em que é
característica maior do ‘trabalhar’, é que, preciso, além de aplicar as técnicas, lidar
mesmo que o trabalho seja bem concebido, com um outro, em situação de extrema
a organização do trabalho seja rigorosa, as fragilidade, que se coloca à sua frente na
instruções e os procedimentos sejam claros, qualidade de paciente e que está trazendo
é impossível atingir a qualidade se as pres- situações únicas e geralmente viscerais,
crições forem respeitadas escrupulosamen- plenas das mais intensas emoções, ligadas
te [...]. O caminho a ser percorrido entre o à vida, à morte, às dificuldades sociais. No
prescrito e o real deve ser, a cada momento, entanto, a dimensão relacional desse tipo
inventado ou descoberto pelo sujeito que de trabalho nem sempre ganha seu peso
trabalha. ‘Assim, para o clínico, o trabalho se seja na formação, no planejamento ou nos
define como sendo aquilo que o sujeito deve métodos de avaliação do trabalho.
acrescentar às prescrições para poder atingir Dejours (2012A) usa a metáfora do iceberg
os objetivos que lhe são designados’. (DEJOURS, para definir o trabalho: aquilo que está acima
2004, P. 28) [grifo das autoras]. da água e, portanto, é visível é apenas uma
pequena parte do trabalho, o trabalho pres-
O hiato gerado entre a organização pres- crito; o que está abaixo e que consiste em sua
crita do trabalho e a organização real solici- parte mais volumosa e invisível, principal-
ta – a todo momento – da parte daquele que mente para os métodos de gestão e avaliação,
opera o trabalho uma atividade de concep- é o trabalho real, com suas variabilidades, im-
ção (DEJOURS, 2004) e mesmo de interpretação previstos e com tudo aquilo que o trabalhador
do mundo à sua volta (SÁ, 2005). Sendo assim, acrescenta de si para transformar a prescrição
o trabalho em saúde é também, como todo em algo concreto, em trabalho real.

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A insustentável leveza do trabalho em saúde: excessos e invisibilidade no trabalho da enfermagem em oncologia 301

Os trabalhos de cuidado os Porque eu sei que aquele paciente não é aque-


desafios do reconhecimento le, aquele... não são aqueles excrementos. Que
tudo aquilo é uma coisa natural. Que está em
Tomando os trabalhos de cuidado como mim. Então, eu sempre me coloco, procuro me
aqueles em que esta invisibilidade fica ainda colocar no lugar daquele paciente. Como eu
mais acentuada, na medida em que há algo gostaria de ser manipulada se eu estivesse na-
que lhe é fundamental e que escapa à visibi- quela situação? [...] Então, eu procuro manipu-
lidade – aquilo que Dejours (2012B) e Pascale lar com meu toque. Na hora da higienização, de
Molinier chamaram de ‘savoir-faire discreto’, lidar com essas eliminações, esses excrementos
o saber fazer discreto –, tem-se um proble- e tal de uma forma mais natural possível [...]. A
ma no que tange aos métodos de avaliação: gente registra os odores, a gente registra, não
aquilo que o trabalho tem de essencial é invi- tem como não registrar. Mas eu procuro ser o
sível, não mensurável e imprescritível. Como mais natural possível. E isso eu já observei que
trabalho invisível, é imaterial e difícil de ser faz diferença. (Técnica de enfermagem).
capturado por métodos de gestão e avaliação,
ainda que adquira extrema importância para Este tipo de exercício do cuidado é de
a qualidade do cuidado. difícil avaliação para os métodos que con-
Molinier (2012) destaca cinco dimensões sideram apenas as mensurações. Sendo
dos trabalhos de cuidado: como ‘savoir- de difícil avaliação, é também de difícil
faire discreto’, tal como afirmado acima; reconhecimento, a não ser em espaços in-
como gentleness, no sentido de se ante- formais entre pares ou entre usuários e tra-
cipar às necessidades do outro sem lhe balhadores. No entanto, é justamente uma
retirar seu estatuto de dignidade, como dinâmica intersubjetiva, a dinâmica do re-
“trabalho sujo”, no sentido de um trabalho conhecimento, que é capaz de proporcio-
com “os humores do corpo e as patolo- nar a passagem do sofrimento ao prazer no
gias da alma” (MOLINIER, 2012, P. 34), com tudo trabalho (DEJOURS, 2008B, 2012A, 2012B).
aquilo que não se quer ter contato; como A teoria da psicodinâmica do trabalho
“trabalho inestimável” (MOLINIER, 2012, P. 36), parte do princípio que o sujeito, em sua
no sentido de não ser passível de mensu- relação com o trabalhar, espera contribuir
ração e, finalmente, como ‘narrativa ética’, para a organização do trabalho, tal como
no sentido de fazer aquilo que deve ser a técnica de enfermagem acima procura
feito, não como bondade ou caridade, mas contribuir e não ser uma mera executora.
como imperativo ético. Tais dimensões A isso, Dejours chama de ‘direito à con-
não são passíveis de ser plenamente ava- tribuição’. A esta contribuição dada pelo
liadas, visto que dificilmente podem ser trabalhador à organização real do tra-
capturadas por mensurações, ao mesmo balho é esperada uma retribuição que é
tempo, são essenciais ao cuidado. fundamentalmente de natureza simbólica
Na pesquisa empreendida entre setembro (DEJOURS, 2008D): o reconhecimento.
de 2012 e junho de 2013 com uma equipe de Essa retribuição simbólica confere sentido
enfermagem de uma enfermaria em um hos- à experiência e à contribuição do trabalha-
pital de oncologia no Rio de Janeiro (FONSECA, dor. A mesma técnica de enfermagem acima
2014), dentre vários relatos de exercício do citada complementa: “Quando a gente faz de
cuidado, destacou-se este, que condensa as uma forma mais natural, o paciente percebe”.
dimensões enunciadas por Molinier, quando Este efeito no paciente lhe propicia alguma
uma técnica de enfermagem conta como faz gratificação, uma retribuição pelo esforço
a higiene íntima dos pacientes, como limpa empreendido na tarefa. Esforço não apenas
seus excrementos: de executá-la, mas de realizá-la de modo

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302 FONSECA, M. L. G.; SÁ, M. C.

sensível em relação às necessidades do pa- vezes, acompanhado de enxugamento dos


ciente, de realizar a tarefa a seu modo, empre- quadros de pessoal, pode impor limites im-
gando seus saberes, sua ‘inteligência prática’. portantes para a qualidade do cuidado e para
É dessa dinâmica intersubjetiva, fina e as próprias gerências intermediárias, no que
quase impalpável, de contribuir para a or- tange ao exercício de uso de mecanismos
ganização do trabalho e sentir o efeito dessa necessários para dar condições dignas aos
contribuição, por meio da percepção de um sujeitos que trabalham.
paciente, de um colega ou de um superior, O exercício do cuidado descrito acima pela
que depende a mobilização subjetiva para o técnica de enfermagem é mais do que a execu-
trabalho. Segundo Dejours (2008C), essa mo- ção de uma higiene íntima: ela contribui para
bilização está sempre presente em todos os a organização do trabalho e percebe o senti-
trabalhadores, desde que não seja desmobi- mento do paciente, retornando-lhe como algo
lizada por uma organização do trabalho que que lhe gratifica e que opera a passagem da
frustre o ‘direito de contribuição’. A falta de execução para a contribuição, construindo
reconhecimento da contribuição singular e reconstruindo o vínculo com o trabalho e
dos trabalhadores para a organização do o trabalhar. O ato de executar um procedi-
trabalho se configuraria como obstáculo à mento passa a ser, para aquela técnica, no
emergência da mobilização subjetiva e, por- exemplo da ‘execução da higiene íntima’, uma
tanto, ao vínculo com o trabalho. atividade em que é possível acrescentar de
si ao trabalho prescrito, transformar um ato
que, apesar de inicialmente penoso (limpar os
Invisibilidade do trabalho e excrementos de um paciente), passa a lhe dar
exigências da gestão algum prazer, pelas sutilezas da resposta do
paciente ao seu cuidado.
Considerando que boa parte dos trabalhos em No entanto, nem sempre é possível aos
saúde são de cuidado e que estes, por sua vez, operadores do cuidado dispor desse tempo.
possuem características que os tornam pouco A demanda incessante por produtividade
visíveis, se não totalmente invisíveis para os atravessa as mais altas esferas das hierar-
métodos de gestão e, consequentemente, não quias no campo da saúde pública e desce em
passíveis de apreensão direta ou mensuração, cascata, demandando de diretores, geren-
está-se diante do problema da relação dos tra- tes e, como consequência, trabalhadores do
balhadores de saúde com suas organizações e cuidado, números, indicadores, metas que
os muitos métodos de gestão que vêm sendo nem sempre têm contrapartida no número
implantados na atualidade, em uma perspec- de trabalhadores e nas condições de trabalho.
tiva que Gaulejac veio a chamar de “quanto- Não se faz gestão sem metas e indicadores,
frenia aguda” (GAULEJAC, 2007, P. 67). é verdade. Estes elementos são fundamen-
Embora Gaulejac não se refira especi- tais. No campo da saúde pública, eles são
ficamente ao setor saúde e, ainda que re- necessários para garantir acesso, equidade e
conhecendo que o setor público possui formulação de políticas. Todavia, a questão
particularidades, se comparado às tendên- que se coloca é que, cada vez mais, eles vêm
cias gerenciais dominantes no setor privado, tomando o lugar da interação humana e das
pode-se fazer uma reflexão acerca de tais informações qualitativas sobre os proces-
questões no trabalho em saúde hoje no SUS, sos de trabalho, que também devem ter seu
no Brasil. O contexto de implantação de lugar nos processos de gestão, assim como
novos modelos gerenciais nos serviços públi- espaços de visibilidade justamente para uma
cos de saúde, sem enfrentamento da situação dimensão do trabalho que fica à sombra: sua
de insuficiência de recursos humanos e, por dimensão invisível e não mensurável.

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A insustentável leveza do trabalho em saúde: excessos e invisibilidade no trabalho da enfermagem em oncologia 303

Na pesquisa citada (FONSECA, 2014), foi detec- procurando produzir no discurso uma sepa-
tado um certo grau de desmobilização para ração fictícia entre essas duas esferas, eram
o trabalho a partir do relacionamento dos frequentes durante as entrevistas e obser-
trabalhadores com a gestão. A mobilização, vações realizadas na pesquisa aqui citada
nesse caso, provinha tão somente da relação (FONSECA, 2014). Assim, enquanto “deixar as
desses trabalhadores com os pacientes. coisas do lado de fora” significava para eles
A desmobilização, expressa em falas, tentar ser profissional e não trazer as ques-
como “Não falo mais nada”; “Não me ma- tões de casa para o trabalho; “não levar coisas
nifesto mais”, “Não dou mais opinião”, era pra casa” significava tentar resistir em levar
oriunda principalmente de um sentimento as tristezas do trabalho para o âmbito do-
de invisibilidade do esforço empreendido méstico. Enquanto para alguns trabalhadores
na tarefa de prover o cuidado para pacientes essa influência recíproca era evidente, outros
em condições não favoráveis ao exercício passaram a se interrogar a respeito dessa se-
do cuidado no tempo que consideram ade- paração, à medida que iam refletindo mais
quado. Disse um técnico de enfermagem: “É profundamente. Ao longo de uma entrevista
muito paciente com câncer para pouco leito e individual, um técnico falou: “Eu não levo
muito leito pra pouco profissional”. problemas para casa, eu acho que eu não levo...
Uma enfermeira afirmou que “quase quer dizer agora já fiquei na dúvida até”. Para
errou uma quimioterapia” e acrescentou: outros trabalhadores, essa influência era evi-
“Quem diz que consegue assobiar e chupar dente. Uma enfermeira confessou que quase
cana está mentindo”. bateu o carro ao sair de um plantão, tomada
Na mesma direção, outra enfermeira pelos eventos vividos na enfermaria. Uma
afirmou: “Eu não sou um polvo. Não posso. técnica de enfermagem falou a respeito do
Eu falo. Eu não posso fazer três, como... Vai falecimento de uma jovem:
ficar uma porcariada tudo”, apontando para
a contradição entre qualidade do trabalho A Joana [nome fictício], quando morreu, ela es-
e metas e indicadores incompatíveis com a tava com meu crachá na mão, segurando minha
quantidade de trabalhadores disponíveis. mão. Eu estou falando sério! Ela morreu, ela me
Entre esses trabalhadores, havia um res- chamava... 17 anos!!! Ela queria que eu ficasse do
sentimento pela desvalorização, por parte da lado dela o tempo todo. E ela pra mim: ‘Fica!’. Eu,
gestão, da dimensão humana, paralelamente na minha cabeça: ‘Será que eu vou junto, depois
à idealização da tecnologia e da técnica que dela? Ela está me chamando para eu ir com ela’.
atravessa as organizações de saúde, principal- Que na cabeça da gente é umas coisas assim.
mente as de alta complexidade: “O ser humano Às vezes morre te chamando. Ela me chamava
tem que usar a tecnologia, entendeu? Eles esque- o tempo todo. Ela ficava: ‘Maria, Maria’ [nome
ceram que para utilizar a tecnologia precisa do fictício] e me chamando.
humano.” (Técnica na entrevista coletiva).
Essa mesma dimensão humana que, no A técnica foi para casa escutando a voz da
trabalho em oncologia, demandava desses jovem. Dejours (2012A) adverte que o trabalho
trabalhadores a lida cotidiana com a vida e não se esgota no espaço geográfico onde se dá
a morte em suas faces mais intensas também o trabalhar, mas coloniza a subjetividade. Nos
provocava a chamada “contaminação do trabalhos em saúde e, de forma mais intensa,
tempo fora do trabalho” (SANTOS, 2001, P. 155), isto no trabalho em oncologia, há uma intensi-
é, o levar para a casa a preocupação com os dade de vivências que penetram a vida dos
pacientes e com as questões da enfermaria. sujeitos, homens e mulheres, que trabalham
Expressões, tais como, “da porta para de forma mais punjente. Não foram poucos
fora” (do hospital) e “da porta para dentro”, os relatos a respeito dessa ‘contaminação do

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304 FONSECA, M. L. G.; SÁ, M. C.

tempo fora do trabalho’. Apesar disso, tais leitos e muitos leitos para poucos profissio-
trabalhadores, que possuem vínculo de 40 nais, configura-se como um drama cotidiano
horas semanais, são convocados a dispender no gerenciamento do trabalho em oncologia
100% dessa carga horária na atenção direta no SUS. No âmbito da assitência oncológica,
ao paciente, lidando com essa intesidade de aliada à intensa mobilização psíquica que
experiências em tempo integral. em geral caracteriza a maioria das situa-
ções deste tipo de cuidado, a demanda vem
crescendo exponencialmente, em oposição
Os desafios de gerir a uma insuficiência de recursos humanos
(sustentar) um trabalho de disponíveis. Por outro lado, ao invés de
processos e dispositivos de gestão que pro-
insustentável leveza movam suporte aos trabalhadores para o
enfrentamento de tais desafios, predominam
Pelo exposto até aqui, pode-se afirmar que a pressões por metas cada vez mais altas, in-
produção do cuidado em saúde se constitui dicadores e ‘excelência’. Excelência não ne-
essencialmente não apenas como um traba- cessáriamente pautada nas condições reais
lho intangível, com muitas dimensões invi- de produção do cuidado, mas na naquilo que
síveis, mas também, igualmente, como um Soboll e Horst (2013) chamaram de ‘ideologia
trabalho que exige dos trabalhadores, daque- da excelência’.
les que cuidam, um elevado esforço psíqui- Baseados em Christophe Dejours, esses
co (no caso da enfermagem, na maioria das autores afirmam que a ideologia de ‘excelên-
vezes, também grande esforço físico) para cia’, sistema de pensamento hegemônico no
sustentar a necessária sensibilidade e leveza, contexto atual de trabalho, que prima pelo
na interação com os sujeitos e suas demandas ‘mito da autossuperação e por resultados
de cuidado, em situações em geral atravessa- sempre superiores, subsidiando a crescente
das por muito sofrimento. Assim, trata-se de produtividade nas organizações’, já pressupõe
um trabalho que, embora exigindo leveza, é algo não partilhável, visto que, para ser ‘exce-
muitas vezes quase que insustentável. Por lente’, é preciso que alguém esteja aquém:
isso a alusão que fizemos no título deste
artigo ao romance de Milan Kundera. O termo excelência, por sua vez, refere-se a
No entanto, diferentemente dos prota- algo que, de antemão, não é partilhável. Assu-
gonistas do romance, para os quais a leveza mir uma conduta de excelência significa não
na relação com o outro se traduzia pela fra- partilhar esse objetivo com seus semelhantes.
gilidade dos vínculos, pela dificuldade de A excelência não é compartilhada. Para que
responsabilização, o trabalho em saúde, aqui um seja excelente é necessário outro que fi-
particularmente abordado através do traba- que aquém. A busca da excelência tem como
lho da enfermagem, é exercido pela maioria fundamento o individualismo e rompe com
dos profissionais como um trabalho de os laços de cooperação e de reconhecimento,
extrema intensidade de vínculos com os pa- essenciais para construção da identidade e da
cientes. Desse modo, para que possa ser bem saúde do trabalhador. (SOBOL; HORST, 2013, P. 225).
exercido, precisa igualmente ser sustentado,
e aqui destaca-se a importância da gestão em Quando se trata de trabalho em saúde e,
sua função de sustentação material e psíqui- especialmente, de trabalhos de cuidado, a
ca do trabalho em saúde. ideologia da excelência pode ser particular-
O paradoxo apontado por um dos técni- mente nefasta, na medida em que tende a não
cos de enfermagem, quando afirma haver considerar (porque não consegue avaliar)
alta demanda de atendimento para poucos suas dimensões invisíveis e não palpáveis.

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A insustentável leveza do trabalho em saúde: excessos e invisibilidade no trabalho da enfermagem em oncologia 305

Centrada prioritariamente em metas e in- e trabalhadores de saúde o acesso a sua


dicadores, imputa a responsabilidade sobre própria subjetividade – ao (re)conhecimen-
trabalhadores individualmente e não é capaz to das fontes de seu sofrimento e prazer no
de reconhecer a importância da gestão não trabalho, dos vínculos imaginários/afetivos
apenas para a garantia das condições mate- que os ligam ao trabalho, às organizações, ao
riais e tecnológicas para a realização do tra- outro (profissional, usuário) e do sentido do
balho em saúde, mas também na promoção trabalho em suas vidas. (SÁ, 2009, P. 658).
de espaços de sustentação subjetiva/inter-
subjetiva deste trabalho. Assim, Trata-se, portanto, como já observado
(SÁ, 2009) de buscar outros modos de se fazer
[…] para além dos necessários esforços de gestão em saúde. Desenvolver capacidade
reorganização e melhoria das condições e de reconhecimento das dimensões intangí-
dos processos de trabalho – e também, ob- veis do trabalho em saúde e capacidade de
viamente, de maior eficiência no uso dos escuta (e de resposta ou encaminhamento)
recursos e efetividades das ações – é ne- do sofrimento (não só dos pacientes, mas
cessário, […] buscar, propor e/ou fortalecer também dos trabalhadores/gestores) e das
dispositivos e processos de gestão e organi- demandas por sentido que atravessam a
zação do trabalho que favoreçam a gestores vida organizacional. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 298-306, DEZ 2015


REVISÃO | REVIEW 307

Desempenho de intervenções de saúde


em países da América Latina: uma revisão
sistemática
Performance evaluation of health interventions in Latin America: a
systematic review

Juliana Martins Barbosa da Silva Costa1, Vanessa de Lima Silva2, Isabella Chagas Samico3,
Eduarda Ângela Pessoa Cesse4

RESUMO Este estudo teve como objetivo investigar na literatura latino-americana os modelos
teóricos de avaliação de desempenho de intervenções de saúde nessa Região. Para tanto, re-
alizou-se revisão sistemática da literatura nas bases do Lilacs, Medline e Capes, com termos
relacionados à avaliação e desempenho, durante o período 2008-2013. Utilizaram-se critérios
da Joint Committee on Standards for Educational Evaluation para apreciação da qualidade bem
como de matriz para análise dos atributos bibliométricos e dos modelos. Encontraram-se seis
estudos explicitando o modelo de avaliação de desempenho de intervenções em saúde com
destaque para modelos unidimensionais com abordagem sistêmica.

PALAVRAS-CHAVE Avaliação em saúde; Modelos teóricos; América Latina; Revisão.

ABSTRACT This study aimed to investigate, in Latin American literature, theoretical models to
assess performance evaluation of health interventions in the Region. To this end, a systematic
review of literature on the Lilacs, Medline and Capes’ databases viewing assessment and per-
formance-related terms for the period 2008-2013 was conducted. Criteria based on the Joint
Committee on Standards for Educational Evaluation were applied to assess the quality of articles
as well as a matrix to analyze bibliometric attributes array and models. Six studies were found
1 Universidade Federal de explaining the assessment model of health intervention performance, especially for one-dimen-
Pernambuco (UFPE) – Recife sional models with systemic approach.
(PE), Brasil.
julimartins.costa@gmail.com

2 Universidade Federal de
KEYWORDS Health evaluation; Models, theoretical; Latin America; Review.
Pernambuco (UFPE) – Recife
(PE), Brasil.
vanelima@gmail.com

3 Instituto de Medicina

Integral Prof. Fernando


Figueira (Imip) – Recife
(PE), Brasil.
isabella.samico@gmail.com

4 Fundação Oswaldo Cruz

Pernambuco (Fiocruz – PE),


Centro de Pesquisas Aggeu
Magalhães – Recife (PE),
Brasil.
educesse@cpqam.fiocruz.br

DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005307 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 307-319, DEZ 2015
307
308 COSTA, J. M. B. S.; SILVA, V. L.; SAMICO, I. C.; CESSE, E. A. P.

Introdução à cada localidade e formas adequadas para


sua operacionalização (VIACAVA ET AL., 2004;
O desempenho é uma preocupação crescen- CHAMPAGNE ET AL., 2011).
te na gestão dos sistemas e serviços de saúde A definição hegemônica de desempenho
por todo o mundo (MARCHAL ET AL., 2014). O es- está ancorada na escola racional, que entende
tabelecimento de mecanismos que auxiliem o desempenho como o grau de alcance dos
uma prática gerencial focada no aprimora- objetivos e metas da organização (SICOTTE ET AL.,
mento da governança pública tem sido cada 1998). Contudo, a teoria organizacional é vasta
vez mais discutido na literatura (CARVALHO ET e apresenta uma profusão de modelos que
AL., 2012; HUNTER; NIELSEN, 2013; LAHREY; NIELSEN, 2013; carregam consigo visões diferenciadas sobre
MARCHAL ET AL., 2014). o desempenho. Alguns modelos valorizam a
A avaliação de desempenho surge nesse estabilidade e o controle; outros, a aquisição
contexto, e objetiva melhorar a eficiên- de recursos, o crescimento e a adaptação
cia, eficácia e qualidade das interven- e, outros, a negociação e o compromisso
ções (programas, serviços e sistemas) de (CHAMPAGNE ET AL., 2011; MARCHAL ET AL., 2014). Apesar
saúde (CONTRANDIOPOULOS ET AL., 1997; CARVALHO dessa aparente discordância, Champagne et
ET AL., 2012; HATRY, 2013), bem como aumentar al. (2011) ponderam que todos os modelos são
a responsabilização e a transparência da legítimos e focam dimensões diferentes do
gestão pública (LAHREY; NIELSEN, 2013). Diversos desempenho.
Organismos Internacionais (WHO, 2000; OPAS, O aprofundamento no tema e a veri-
2001; USAID, 2011) têm desenvolvido modelos ficação da insuficiência das abordagens
teóricos para avaliar o desempenho de que valorizam uma única dimensão do de-
organizações de saúde, estimulando sua sempenho, os denominados modelos uni-
implantação e a instituição de sistemas de dimensionais, para avaliar organizações
gerenciamento do desempenho. complexas como as do setor saúde levaram
Na América Latina, a avaliação de de- ao desenvolvimento de modelos multidi-
sempenho foi impulsionada pelo ‘World mensionais (CHAMPAGNE ET AL., 2011; VIACAVA ET AL.,
Health Report 2000’ (WHO, 2000), pelo quadro 2004). Esses modelos permitem uma análise
de referência proposto pela Organização mais global e examinam o desempenho a
Pan-Americana de Saúde (OPAS, 2001) e por partir da junção conceitual de dois ou mais
exigências de instituições financeiras, tais modelos unidimensionais (CHAMPAGNE ET AL.,
como o Banco Mundial e o Fundo Monetário 2011; TCHOUAKET ET AL., 2012).
Internacional. Algumas iniciativas foram Outra questão que vai além das concep-
desenvolvidas na região com o intuito de ções e abrangência dos modelos para avaliar
propor modelos que se aproximassem da re- o desempenho é o fato que muitos deles
alidade local, como o Proadess, que delineia foram elaborados para avaliar o desempe-
uma proposta para avaliar o desempenho nho de organizações que estão fora do setor
do sistema de serviços de saúde do Brasil saúde ou, quando relacionados, focam servi-
(VIACAVA ET AL., 2004). ços específicos (CHAMPAGNE ET AL., 2011; MARCHAL ET
Apesar da importância crescente do tema, AL., 2014; TCHOUAKET ET AL., 2012) ou realidades bem
a delimitação do conceito de desempenho diversas da encontrada na América Latina,
é uma das mais imprecisas em termos de o que traz a preocupação adicional no que
teoria organizacional, surgindo, ao longo do tange à escolha daquele que seria o mais ade-
tempo, inúmeras definições e modelos para quado para a realidade desses países.
avaliar o desempenho. Essa diversidade de Apesar de suas particularidades, os
abordagens gera confusão e dúvidas quanto países latino-americanos apresentam ca-
à escolha do modelo teórico mais apropriado racterísticas semelhantes no que tange à

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 307-319, DEZ 2015


Desempenho de intervenções de saúde em países da América Latina: uma revisão sistemática 309

sua conformação histórica, política e social. intuito de identificar a produção científica


De maneira geral, caracterizam-se por uma mais recente sobre tema.
elevada concentração de renda, desigual- Modelos de avaliação de desempenho
dades sociais e instabilidade política e eco- são esquemas teórico-conceituais que es-
nômica (SOUZA, 2011; HOMEDES; UGALDE, 2011). Além pecificam os elementos utilizados para
disso, a estruturação dos processos geren- medir, monitorar e promover processo sis-
ciais e a baixa qualificação da gestão pública temático de melhoria do desempenho das
impõem para a região desafios comuns, tais intervenções de saúde (KLASSEN ET AL., 2009;
como aumento insustentável nos custos, ine- CHAMPAGNE ET AL., 2011).
ficiência no gasto público, baixa cobertura, A pesquisa guiada sobre publicações foi
acesso desigual, ausência de mecanismos de realizada nos meses de outubro e novembro
avaliação do desempenho e pouca transpa- de 2013 nas bases de dados Lilacs (Literatura
rência na prestação de contas para a socieda- Latino-Americana e do Caribe em Ciências
de (HOMEDES; UGALDE, 2011; OPAS, 2012). da Saúde) e Medline (Medical Literature
Dessa forma, surge a necessidade de Analysis and Retrieval System Online) a
identificar os modelos teóricos adotados partir dos termos relacionados à avaliação
por pesquisadores latino-americanos para em saúde ou desempenho que fazem parte
avaliar o desempenho de intervenções da lista de Descritores em Ciências da Saúde
de saúde como forma de adicionar luz ao (DeCS), disponível no portal da Biblioteca
debate sobre o tema. Assim, este estudo Virtual em Saúde (http://decs.bvs.br).
teve como objetivo identificar na literatura Para a pesquisa da produção cientí-
latino-americana os modelos teóricos para fica, selecionaram-se os países latino-
avaliar o desempenho de intervenções de -americanos constantes da classificação
saúde. A intenção é a de que sirva de sub- da Comissão Econômica para a América
sídio às futuras pesquisas que pretendam Latina e o Caribe (Cepal), órgão da
analisar a pertinência e adequação dos Organização das Nações Unidas, que dis-
modelos à realidade destes países. tingue os países americanos de língua latina
em latino-americanos e caribenhos. Dessa
forma, foi pesquisada a produção científi-
Métodos ca dos seguintes países: Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México,
Realizou-se uma revisão sistemática da lite- Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
ratura, orientada pela seguinte pergunta de Utilizou-se a seguinte expressão de busca:
pesquisa: Quais os modelos utilizados para ‘avaliacao de desempenho’ or ‘avaliacao de
avaliar o desempenho de intervenções de impacto’ or ‘avaliacao de processos (cuida-
saúde presentes na literatura de países da dos de saúde)’ or ‘avaliacao de processos e
América Latina, no período de janeiro de resultados (cuidados de saude)’ or ‘avaliacao
2008 a outubro de 2013? de programas’ or ‘avaliacao de programas
Para tanto, procedeu-se pesquisa biblio- e projetos de saude’ or ‘avaliacao de resul-
gráfica de textos científicos (artigos, teses, tados (cuidados de saude)’ or ‘avaliacao do
dissertações e monografias) publicados no impacto na saude’ or ‘mecanismos de avalia-
período de janeiro de 2008 a outubro de 2013, cao em cuidados de saude’ or ‘benchmarking’
contendo temas relacionados à avaliação do or ‘benchmarking em assistencia a saude’ or
desempenho de intervenções (programas, ‘avaliacao de servicos de saude’ [descritor
serviços e sistemas) de saúde, publicados de assunto] and  ‘2008’ or ‘2009’ or ‘2010’
nos idiomas, português, inglês ou espanhol. or ‘2011’ or ‘2012’ or ‘2013’ [ano de publica-
O período de estudo foi selecionado com o ção] and  ‘argentina’ or ‘bolivia’ or ‘brasil’ or

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310 COSTA, J. M. B. S.; SILVA, V. L.; SAMICO, I. C.; CESSE, E. A. P.

‘chile’ or ‘colombia’ or ‘equador’ or ‘mexico’ de desempenho’ and ‘saude’ [descritor de


or ‘paraguai’ or ‘peru’ or ‘uruguai’ or ‘vene- assunto] and ‘2008’ or ‘2009’ or ‘2010’ or ‘2011’
zuela’ [país de afiliação]. or ‘2012’ or ‘2013’ [ano de publicação].
Além dos artigos científicos, a grey litera- A leitura do título e autor(es) permi-
ture foi pesquisada com o objetivo de incluir tiu a exclusão de duplicidades. A seleção
o maior número de modelos de avaliação de dos textos foi realizada em três etapas. A
desempenho, principalmente a literatura primeira consistiu na leitura dos resumos
científica ainda não publicada. Dessa forma, de cada trabalho, realizada por dois exa-
pesquisou-se o banco de teses da Capes minadores independentes, com base em
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal critérios de inclusão e exclusão (quadro 1).
de Nível Superior), agência de fomento à pes- Aplicou-se o índice de Kappa para análise
quisa ligada ao Ministério da Educação do de concordância entre os examinadores.
Brasil que congrega todos os programas de Nos casos de discordância, realizaram-se
pós-graduação deste País. A chave de busca reuniões de consenso com a presença de
utilizada foi: ‘desempenho’ or ‘avaliacao um terceiro examinador.

Quadro 1. Critérios de inclusão e exclusão dos textos na revisão sistemática sobre modelos de avaliação do desempenho
de intervenções de saúde em países da América Latina

CRITÉRIOS DE INCLUSÃO CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO


Explicitar o modelo teórico para avaliar o desempenho de Não explicitar o modelo utilizado para avaliar o
sistemas, serviços ou programas de saúde desempenho de organizações de saúde
Tratar do desempenho profissional, cuidados individuais
ou do desempenho de tecnologias médicas e biomédicas
Apenas apresentar o modelo teórico-lógico da
intervenção (programa, serviço ou sistema de saúde)
Ter sido realizado no período de 1 de janeiro de 2008 até Ter sido realizado antes de janeiro de 2008
31 de outubro de 2013
Estar publicado em português, inglês ou espanhol Estar publicado em outras línguas que não o português,
inglês ou espanhol
Ter como objeto de estudo a América Latina ou seus Ter como objeto de estudo unicamente países europeus,
países componentes (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, africanos, asiáticos, da Oceania, caribenhos e americanos
Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai, (exceto os latino-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil,
Venezuela), de forma isolada ou em conjunto com países Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru,
de outras regiões (Europa, África, Ásia, Oceania e os Uruguai, Venezuela)
da América do Norte, Central ou do Sul que não sejam
classificados como latino americanos)
Fonte: Elaboração própria.

Concluída essa fase, os textos com os Ao término da leitura completa calculou-


resumos que preencheram os critérios de in- -se o índice Kappa, após o que os textos in-
clusão (quadro 1) foram selecionados para a cluídos passaram para a terceira e última
segunda etapa, na qual se procedeu à leitura etapa de seleção. Essa etapa consistiu na
completa dos textos por dois examinadores análise da qualidade dos textos seleciona-
independentes, incorporando nessa etapa dos. Para tanto, aplicaram-se os critérios de
mais um critério de inclusão: a identificação avaliação da utilidade e qualidade de estudos
explícita no texto do modelo de avaliação do avaliativos propostos pela Joint Committee
desempenho utilizado no estudo. on Standards for Educational Evaluation

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Desempenho de intervenções de saúde em países da América Latina: uma revisão sistemática 311

(JCSEE), traduzidos e adaptados à realidade abordagem sistêmica analisam a intervenção


brasileira por Santos e Natal (2006). como um conjunto de elementos interconec-
Os critérios propostos pela JCSEE estão tados, de modo a formar um todo indivisível,
divididos em quatro parâmetros: a utilidade podendo ser compreendido enquanto um
(sete critérios) verifica se a avaliação atende sistema racional, no qual o desempenho é
às necessidades de informação dos usuários; avaliado por normas não apenas de resulta-
a factibilidade ou viabilidade (três critérios) dos, mas também, de processo e/ou estrutu-
analisa se o estudo é realista e moderado nos ra, ou como um sistema de ação social, em
custos, de modo a justificar a sua realização; a constante transformação (REIS, 2012).
propriedade (oito critérios) verifica se o pro- Em relação ao tipo de inovação, classifi-
cesso avaliativo é conduzido eticamente, com cou-se os modelos quanto ao seu ineditismo,
respeito ao bem-estar dos envolvidos; e a acu- podendo ser um novo modelo ou aplicação
rácia ou precisão (doze critérios) analisa as- de pré-existentes. O tipo de modelo conside-
pectos relativos à validade do julgamento de rou o quantitativo de dimensões envolvidas
valor ou mérito realizado (SANTOS; NATAL, 2006). na avaliação de desempenho classificando-
Cada um desses critérios recebeu uma -os em unidimensional, quando privilegia-
pontuação que variou de 0 a 10. Para julgar -se uma única dimensão do desempenho, ou
a qualidade calculou-se a média dos critérios multidimensional, quando há a junção con-
por parâmetro classificados conforme os ceitual de dois ou mais modelos unidimen-
escores obtidos, segundo a seguinte classi- sionais (CHAMPAGNE, 2011; TCHOUAKET ET AL., 2012). O
ficação: excelente de 9,0 – 10,0; bom de 7,0 nível de complexidade da intervenção a ser
– 8,9; regular de 5,0 a 6,9; fraco de 3,0 – 4,9 avaliada considerou os recursos necessários
e crítico < 3,0. Adotou-se como critério de para seu desenvolvimento classificando-os
exclusão escore crítico em qualquer um dos em programa, serviço ou sistema de saúde.
critérios avaliados (SANTOS; NATAL, 2006). A fonte de informação para a coleta de
Os textos incluídos tiveram seu conteúdo dados denominou-se de artigo científico ou
analisado e sistematizado por meio de uma grey literature.
matriz de extração de dados. Nela, foram
descritos: título; ano de publicação; idioma;
país de afiliação; objetivo do estudo; modelo Resultados
teórico utilizado para avaliar o desempenho;
abordagem conceitual; tipo de inovação, tipo A busca nas bases de dados levou à identifi-
de modelo, dimensões avaliadas, nível de cação de um total de 1.262 textos científicos
complexidade e fonte. (674 no Lilacs, 525 no Medline e 64 no portal
Na abordagem conceitual, classificou-se de teses da Capes). Desses, 179 foram excluí-
os modelos segundo os objetivos e caracte- dos por duplicidade, restando 1.083.
rísticas em três categorias denominadas de Na leitura dos resumos, 1.042 foram ex-
determinação social, centrado nos objetivos cluídos por não atenderem aos critérios de
e sistêmico. Os modelos com a abordagem inclusão e 19 apresentaram discordância
da determinação social são aqueles que entre os examinadores. Para estes últimos,
possuem uma compreensão hierarquizada e procedeu-se à leitura e análise por um ter-
integrada dos vários fatores que influenciam ceiro examinador e uma reunião de consen-
a saúde como um todo. Os que possuem uma so foi realizada, na qual foram incluídos nove
abordagem centrada nos objetivos, conside- e excluídos dez textos ( figura 1). A concor-
ram que uma intervenção apresenta um bom dância entre os examinadores foi substancial
desempenho quando consegue atingir seus (Kappa = 0,69; p > 0,05). Assim, 31 textos
objetivos e metas. Os modelos ancorados na foram selecionados para a etapa seguinte.

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312 COSTA, J. M. B. S.; SILVA, V. L.; SAMICO, I. C.; CESSE, E. A. P.

Figura 1. Fluxograma do processo de seleção de textos da revisão sistemática sobre modelos de avaliação do desempenho
de intervenções de saúde em países da América Latina

Na segunda fase da seleção, os 31 textos explicitavam o modelo teórico para esta


foram lidos na íntegra. Desses, seis foram avaliação.
selecionados, 20 não atenderam aos crité- No que concerne à análise da qualidade,
rios e foram excluídos do estudo e cinco os textos apresentaram critérios de quali-
apresentaram discordância entre os exa- dade entre excelente e regular, não havendo
minadores. A análise da concordância exclusão de nenhum texto nessa etapa do
entre examinadores foi substancial (Kappa estudo. De maneira geral, os artigos de
= 0.60; p > 0,05). Após a reunião de con- Yavich, Báscolo e Haggerty (2010) Brizola,
senso, todos os textos discordantes foram Cordoni Júnior, (2011), Moraes e Andrade
excluídos ( figura 1). (2011) apresentaram uma melhor qualidade do
Portanto, ao término da segunda etapa, que as teses de Battesini (2008) Duarte (2009),
foram selecionados seis textos que tinham Ponce (2012). Dentre os parâmetros analisa-
por objetivo avaliar o desempenho de pro- dos, a utilidade apresentou o escore mais
gramas, serviços ou sistemas de saúde e que baixo e a propriedade o mais alto (tabela 1).

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Desempenho de intervenções de saúde em países da América Latina: uma revisão sistemática 313

Tabela 1. Avaliação da qualidade dos textos da revisão sistemática sobre modelos de avaliação do desempenho de intervenções de saúde em países da
América Latina

Critérios Batesini, Duarte, 2009 Yavich Moraes & Brizola et Ponce,


2008 et al., 2010 Andrade, al., 2011 2012
2011
Utilidade (U) 8,6 7,0 7,9 7,3 8,7 6,4
**** *** *** *** **** ***
U1 – Identificação dos interessados 10 3 5 3 5 5
U2 – Credibilidade do avaliador 10 10 10 10 10 10
U3 – Escopo e seleção de informações 10 9 10 10 10 10
U4 – Identificação de valores 10 3 3 3 10 3
U5 – Clareza dos relatórios 10 10 9 7 8 3
U6 – Entrega a tempo e disseminação de 3 7 10 10 10 7
relatórios
U7 – Impacto da avaliação 7 7 8 8 8 7
Factibilidade (F) 9,7 7,7 9,3 8,3 7,7 8,0
***** *** ***** **** *** ****
F1- Procedimentos práticos 10 10 10 10 5 8
F2 – Viabilidade política 9 5 8 5 10 8
F3 – Custo-efetividade 10 8 10 10 8 8
Propriedade (P) 8,2 9,0 10,0 9,0 9,6 9,0
**** ***** ***** ***** ***** *****
P1 – Orientação para o serviço 10 9 10 10 10 10
P2 – Acordos formais 10 10 10 10 10 10
P3 – Direitos dos indivíduos 10 9 10 5 10 8
P4 – Relações humanas 3 10 10 10 10 7
P5 – Avaliação completa e justa 8 7 10 10 8 10
P6 – Disseminação de resultados 10 9 10 10 10 10
P7 – Conflito de interesses 10 10 10 10 10 10
P8 – Responsabilidade fiscal 10 9 10 5 10 8
Acurácia (A) 8,3 8,6 8,0 8,8 8,5 8,5
**** **** **** **** **** ****
A1 – Documentação do programa 10 10 8 7 6 6
A2 – Análise do contexto 8 8 8 8 8 8
A3- Descrição dos propósitos e procedimentos 10 10 5 10 10 10
A4 – Fontes confiáveis de informação 8 9 8 10 8 8
A5 – Informações válidas 8 8 8 8 8 8
A6 – Informações confiáveis 6 8 8 8 8 6
A7 – Informação sistemática 10 10 8 10 10 10
A8 – Análise quantitativa 9 10 9 10
A9 – Análise qualitativa 7
A10 – Conclusões justificáveis 5 5 5 9 9 9
A11 – Imparcialidade dos relatórios 9 9 5 9 9 10
A12 – Meta-avaliação 10 10 8 7 6 6
Média 8,7 8,1 8,8 8,3 8,6 8,0
**** **** **** **** **** ****
Fonte: Elaboração própria.
Nota: Excelente: ***** Bom: **** Regular: *** Fraco: ** Crítico: *.

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314 COSTA, J. M. B. S.; SILVA, V. L.; SAMICO, I. C.; CESSE, E. A. P.

A maioria dos estudos incluídos na revisão de artigos indexados (n=3) e os demais (n=3)
foi desenvolvida no Brasil (n=5), publicada procederam da grey literature e eram prove-
em 2011 (n=2), da qual a metade era composta nientes de teses de doutoramento (quadro 2).

Quadro 2. Textos selecionados na revisão sistemática sobre modelos de avaliação do desempenho de intervenções de
saúde em países da América Latina

AUTOR TÍTULO ANO PAÍS TIPO


Battesini Modelo multidimensional para avaliação de 2008 Brasil Grey literature
desempenho da vigilância sanitária: uma (Tese)
aplicação em nível municipal
Duarte Modelo sistêmico de avaliação de desempenho 2009 Brasil Grey literature
hospitalar por meio de indicadores (Tese)
assistenciais: o caso do indicador de dor aguda
no pós-operatório
Yavich et al. Construyendo un marco de evaluación 2010 Argentina Artigo
de la atención primaria de la salud para
Latinoamérica
Brizola et al. Análise de desempenho de um hospital de 2011 Brasil Artigo
ensino antes e após a contratualização com o
Sistema Único de Saúde
Moraes; Andrade Indicadores de qualidade para o gerenciamento 2011 Brasil Artigo
da disfagia em Unidades de Internação
Hospitalar
Ponce Diagnóstico da tuberculose: desempenho do 2012 Brasil Grey literature
primeiro serviço de saúde procurado em São (Tese)
José do Rio Preto

Fonte: Elaboração própria.

No que tange à abordagem conceitual, os (n=4) e multidimensionais (n=2). As dimen-


estudos trabalharam com a abordagem cen- sões mais frequentemente avaliadas nos
trada nos objetivos (n=1) e sistêmica (n=5). estudos unidimensionais foram estrutura,
Já nos estudos que trabalharam com a abor- processo e resultado, dois estudos cada. Nos
dagem sistêmica, dois grupos distintos foram estudos com modelos multidimensionais,
identificados. O primeiro (BRIZOLA; CORDONI não houve predominância de nenhuma das
JÚNIOR, 2011; MORAES; ANDRADE, 2011; PONCE, 2012) traba- dimensões avaliadas (quadro 3).
lhou com a concepção do sistema racional, no Quanto ao nível de complexidade, os
qual o desempenho é avaliado por normas e estudos abarcaram intervenções com
não apenas por resultados, mas também, por diversos graus de complexidade, desde
processo e/ou estrutura. E o segundo, (BATESINI, serviços, como hospitais (n=2) e servi-
2008; DUARTE, 2009) com a concepção de siste- ços públicos de saúde (atenção primária,
mas da ação social, na qual as intervenções pronto atendimento e serviço especializa-
são consideradas sistemas da ação social em do) (n=1), passando por programas, como
constante transformação (quadro 3). vigilância sanitária (n=1) e reabilitação da
Quanto ao tipo de modelo os estudos se deglutição (n=1), até sistemas de saúde
ancoraram em modelos unidimensionais (n=1) (quadro 3).

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Desempenho de intervenções de saúde em países da América Latina: uma revisão sistemática 315

Discussão contudo, se restringir a estes. Tais elementos


são trabalhados como componentes ou sub
Apesar de o desempenho ser uma questão de dimensões do desempenho, conforme obser-
grande importância para a gestão dos siste- vado nos modelos propostos pelo governo
mas de serviços de saúde (VIACAVA ET AL., 2004; canadense (ARAH; WESTERT, 2005), pelo EGIPSS
CHAMPAGNE ET AL., 2011; HATRY, 2013; MARCHAL ET AL., (SICOTTE ET AL., 1998; CHAMPGNE ET AL., 2011) e pelo
2014), das tentativas da OMS (WHO, 200) e Opas Proadess (VIACAVA ET AL., 2004).
(OPAS, 2001) em estimular o desenvolvimento Ademais, os modelos são representações
de sistemas de gerenciamento do desempe- da realidade e têm sido bastante utilizados
nho e da adoção do modelo de gestão por na avaliação como forma de delimitação e
resultados em diversos países da América descrição do objeto a ser avaliado e de ob-
Latina, entre eles o Brasil, a Argentina e o tenção de consensos e comunicação entre os
México (DI GIÁCOMO, 2005; BASSIT; BLUM; MARTINS, envolvidos (BEZERRA; CAZARIN; ALVES, 2010; LAHREY;
2009), poucos estudos explicitaram o modelo NIELSEN, 2013; REIS, 2012), além de ajudarem no
teórico para avaliar o desempenho de inter- esclarecimento das opções teóricas e na
venções de saúde nesses países. comparação entre estudos, apresentando-
Diante dessa constatação, não se pode -se como etapa fundamental na condução de
afirmar que pesquisas sobre a avaliação avaliações orientadas pela teoria.
de desempenho não vêm sendo realizadas Outra questão de grande relevância, que
na região, configurando-se como um dos pode se configurar como outro limite do
principais limites do estudo. Contudo, con- estudo, é a ausência de termo específico
siderando a natureza complexa, paradoxal que trate do desempenho de intervenções
e contingente do desempenho de interven- (programas, serviços e sistemas) de saúde
ções de saúde (SICOTTE ET AL., 1998; VIACAVA ET nos DeCS, vocabulário estruturado uti-
AL., 2004), bem como a profusão de modelos lizado para indexação e recuperação de
avaliativos disponíveis na literatura (VIACAVA textos científicos no Lilacs e Medline. Para
ET AL., 2004; CHAMPAGNE ET AL., 2011), ressaltam-se superar tal dificuldade, utilizou-se uma
a importância da delimitação teórica sobre ampla chave de busca envolvendo termos
o desempenho e a necessidade de explici- relacionados à avaliação em saúde e ao de-
tação das opções metodológicas adotadas sempenho, e pesquisada a grey literature,
para sua avaliação. como estratégia para aumentar a sensibili-
Esse aspecto é de grande importância dade da pesquisa e captar o maior número
diante das inúmeras definições e falta de de textos científicos (GALVÃO SAWADA; TREVIZAN,
consenso sobre o desempenho. Muitas 2001), perdendo-se, contudo, a especificida-
vezes, o termo é utilizado como sinônimo de no processo de busca.
de qualidade, efetividade ou eficiência, A inclusão do banco de teses da Capes
que não conseguem, sozinhos, representar como fonte de pesquisa (grey literature)
todo o espectro de questões abarcadas pelo revelou-se uma estratégia importante de
desempenho (SICOTTE ET AL., 1998; NAYLOR; IRON; captação de textos científicos (três dos seis
HANDA, 2002; CHAMPGNE ET AL., 2011), sendo insufi- selecionados foram provenientes dessa
cientes para promover o desenvolvimento base de dados) por conseguir agregar em
de intervenções em saúde. uma plataforma on-line informações biblio-
Segundo Champagne et al. (2011), o desem- gráficas das teses e dissertações defendidas
penho é um conceito genérico que envolve nos programas de pós-graduação do Brasil.
diversos aspectos relevantes do desenvol- Sugere-se maior aproveitamento e explora-
vimento organizacional, tais como a qua- ção de tal fonte de dados para estudos e pes-
lidade, a produtividade, a eficiência, sem, quisas, principalmente quando se procura

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 307-319, DEZ 2015


316 COSTA, J. M. B. S.; SILVA, V. L.; SAMICO, I. C.; CESSE, E. A. P.

por informações atuais, dado o tempo ne- por Donabedian (2003) foi a mais frequente-
cessário para a publicação de artigos cien- mente utilizada.
tíficos. Contudo, a ausência de bases de Revisão sistemática realizada por Klassen
dados semelhantes nos demais países lati- et al. (2009) estudou os modelos para medição
no-americanos inviabilizou a busca desse e melhoria do desempenho de sistemas de
tipo de literatura, constituindo-se uma das saúde, educação e serviços sociais contidos
limitações deste estudo. nos artigos publicados em inglês nas bases
Todos os textos que preencheram os cri- de dados Medline, CINAHL, Embase, Eric e
térios de inclusão e exclusão explicitados PsycINFO no período de 1986 a 2007. Esse
no protocolo da pesquisa apresentaram uma estudo identificou o Balanced Score Card (BSC)
boa qualidade segundo os critérios da JCSEE como modelo multidimensional mais frequen-
(SANTOS; NATAL, 2006). A qualidade das avalia- temente utilizado, seguido pelo modelo unidi-
ções é uma preocupação crescente entre os mensional Donabediano. Apesar de o estudo
estudiosos da avaliação de desempenho que não tratar especificamente da realidade latino-
vêm se dedicando à elaboração de critérios -americana, identifica a preponderância do
e ao desenvolvimento de meta-avaliações uso de modelos multidimensionais na literatu-
(ELLIOT, 2011; HARTZ, 2006). Essas meta-avaliações ra pesquisada (KLASSEN ET AL., 2009). Tais modelos
consistem na avaliação da qualidade das ava- têm se mostrado mais adequados para avaliar
liações à luz de critérios bem definidos e vêm intervenções de saúde em um mundo globali-
responder a uma necessidade fundamental zado, onde os governos necessitam lidar com
das revisões sistemáticas, uma vez que seus realidades complexas e voláteis (BASSIT; BLUMM;
resultados são dependentes da qualidade dos MARTINS, 2009; MARCHAL ET AL., 2014) e com a disper-
textos selecionados (GALVÃO SAWADA; TREVIZAN, são do poder entre mercados e instituições in-
2001; HARTZ, 2006; ELLIOT, 2011). ternacionais (UUSIKYLÄ, 2013).
Um aspecto que chama a atenção é a abran- Os estudos desta revisão que utiliza-
gência das intervenções em saúde (serviços, ram modelos multidimensionais (BATTESINI,
programas, sistemas) identificadas neste 2008; DUARTE, 2009) adotaram a concepção de
estudo, demonstrando a potencialidade da sistemas da ação social, modelos inspira-
instituição de mecanismos para avaliar o de- dos na Teoria Geral da Ação elaborada por
sempenho em intervenções com diferentes Parsons (1977). Nessa perspectiva, o conceito
graus de complexidade. Contudo, ressalta-se de sistema se refere às estruturas sociais
que a escolha das dimensões e indicadores relativamente estáveis, dentro de um limite
mais apropriados, atores participantes, nível definido de variações compostas pelas re-
de agregação e análise dos dados modificam- lações entre o sistema e o meio exterior, os
-se a depender do público alvo e das necessi- objetivos, a integração e a latência que cor-
dades que a avaliação venha a suprir (COSTA ET responde à espécie de depósito de motivação
AL., 2013; REIS, 2012; LAHREY; NIELSEN, 2013), e a escolha acumulada e difusora de energia que assegu-
deve ser feita em consonância com o modelo ra a fidelidade dos atores às normas e valores
e nível de análise desejado. que o sistema inspira (PARSONS, 1977).
Em que pese os limites dos modelos uni- Esses modelos avaliam o desempenho
dimensionais para avaliar organizações de sob a perspectiva integradora e do equilí-
saúde (SICOTTE ET AL., 1998; CHAMPAGNE ET AL., 2011; brio entre as funções básicas do sistema que
MARCHAL., ET AL. 2014), este foi o tipo de modelo se encontra em constante transformação
predominante encontrado neste estudo. (CHAMPAGNE ET AL., 2011). Além disso, a teoria
Dentre os modelos unidimensionais, a da ação social propicia um meio adequado
abordagem conceitual baseada na tríade, para a convergência de diversas perspecti-
estrutura, processo e resultados proposta vas de análise organizacional com os vários

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 307-319, DEZ 2015


Desempenho de intervenções de saúde em países da América Latina: uma revisão sistemática 317

conceitos e dimensões do desempenho uma profusão de modelos teóricos para


(SICOTTE ET AL., 1998; GUISSET ET AL., 2002). avaliar o desempenho de intervenções de
Os modelos multidimensionais são defi- saúde. Na América Latina, algumas inicia-
nidos na literatura como os mais adequados tivas foram realizadas no intuito de elabo-
para avaliar intervenções na área da saúde rar modelos condizentes com a realidade
devido à sua maior capacidade avaliativa e e a necessidade dos sistemas e serviços de
pela incorporação de relações de comple- saúde de alguns de seus países.
mentaridade entre as diferentes dimensões Apesar de tais iniciativas, nesta revisão,
avaliadas (MARCHAL ET AL., 2014; REIS, 2012), dialo- apenas um pequeno número de estudos ex-
gando com os conceitos de complexidade plicitou o modelo de avaliação de desempe-
proposto por Morin (2012). Dessa forma, tais nho. Esse fato traz a necessidade de maior
modelos estão mais aptos a lidar com as in- aprofundamento no que tange ao tipo de
certezas, ambiguidades e pluralidades dos pesquisa aqui empregado, reforçando uma
ambientes externo e interno das organiza- maior clareza das opções teórico-concei-
ções, nos quais deixa de existir um único tuais adotadas. Além disso, os achados da
padrão ordenador, mas uma necessidade revisão demonstram o predomínio do uso de
crescente de combinação de alguma forma modelos unidimensionais, que, a despeito de
integradora de distintos padrões para o sua aplicabilidade e importância, são restri-
alcance dos resultados (BASSIT; BLUMM; MARTINS, tos e não conseguem captar facetas impor-
2009; CHAMPGNE ET AL., 2011; MARCHAL ET AL., 2014). tantes para a melhoria do desempenho de
organizações de saúde.
Diante das restrições financeiras por que
Considerações finais passam os países do estudo, a avaliação de
desempenho deve ser concebida de forma
O debate em torno da necessidade e da per- a prover a gestão com informações estraté-
tinência da avaliação de desempenho de gicas, oportunas e com níveis distintos de
sistemas, serviços e programas de saúde é agregação. Para tanto, torna-se necessária a
uma questão que encontra certo consenso explicitação do significado de desempenho,
na literatura. Contudo, o aprofundamento da suas dimensões e componentes, bem como
discussão em torno das abordagens teórico- o arcabouço metodológico utilizado para o
-conceituais e dos modelos mais adequados julgamento de valor. Assim, os modelos de
para avaliar o desempenho de intervenções avaliação de desempenho ganhariam papel
de saúde ainda é necessário. de destaque por permitirem maior delimi-
A literatura internacional, principalmen- tação teórica, transparência e facilidade na
te norte americana e européia, apresenta condução da avaliação. s

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(Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde
Recebido para publicação em fevereiro de 2015
Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo cruz, Rio de Versão final em outubro de 2015
Conflito de interesses: inexistente
Janeiro, 2012.
Suporte financeiro: não houve

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 307-319, DEZ 2015


320 REVISÃO | REVIEW

O paciente com transtorno mental grave no


hospital geral: uma revisão bibliográfica
The patient with severe mental disorders in general hospital: a
literature review

Marina Fernandes do Prado1, Marilene de Castilho Sá2, Lilian Miranda3

RESUMO A atenção integral em saúde mental é um desafio para os serviços de saúde, sobretu-
do no que diz respeito ao acompanhamento não psiquiátrico. O objetivo deste artigo é apre-
sentar uma revisão bibliográfica acerca do atendimento ofertado ao paciente com transtorno
mental grave, internado no hospital geral devido a complicações clínico-cirúrgicas. Como re-
sultado, verifica-se que as publicações, ainda que escassas, indicam que o louco é considerado
perigoso, violento e imprevisível. Assim, conclui-se que não basta criar no hospital geral leitos
de atenção integral a pacientes com transtorno mental sem que se promova espaços de elabo-
ração das representações negativas associadas à loucura.

PALAVRAS-CHAVE Hospital geral; Saúde mental; Assistência integral à saúde; Comorbidade.

ABSTRACT Comprehensive health care practices in mental health represent a challenge for health
services, mainly regarding non-psychiatric care. The aim of this paper is to present a bibliogra-
phic review of the care delivered to patients with severe mental disorders who were admitted to
general hospitals due to clinical and surgical complications. We conclude that the scientific lite-
rature on this theme point out that the madman is considered dangerous, violent and unpredicta-
ble. The article highlights that it is not enough to create general hospital beads for comprehensive
care practices to patients with mental disorder, without promoting spaces to elaborate negative
representations associated with madness.

1 Fundação Oswaldo Cruz KEYWORDS General hospital; Mental health; Comprehensive health care; Comorbidity.
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
marinaf.prado@gmail.com

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
marilene@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
lilian.miranda@ensp.
fiocruz.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S005419
320
O paciente com transtorno mental grave no hospital geral: uma revisão bibliográfica 321

Introdução devem ofertar o acolhimento integral ao pa-


ciente em crise e estar articulados com outros
Desde a década de 1970, vivencia-se um dispositivos de referência para o paciente,
amplo processo de Reforma Psiquiátrica no sendo um componente essencial da porta de
Brasil. Este fora protagonizado, inicialmen- entrada da rede assistencial e um mecanis-
te, pelo Movimento dos Trabalhadores em mo efetivo de garantia de acessibilidade.
Saúde Mental (MTSM), que disparou uma Contudo, a despeito desses esforços,
série de denúncias contra a violência perma- aspectos centrais para a gestão da atenção
nente nos manicômios, a mercantilização da em saúde mental nos hospitais gerais
loucura, o monopólio de uma rede privada ainda são negligenciados pelas pesquisas
de assistência, além de questionar o saber em saúde mental, de tal modo que Dias,
psiquiátrico, sustentado no modelo hospi- Gonçalves e Delgado (2010) afirmam que os
talocêntrico de assistência às pessoas com estudos acerca das Unidades de Internação
transtornos mentais (BRASIL, 2005). Psiquiátrica do Hospital Geral (UIPHG),
Atualmente, 40 anos mais tarde, são vistos ainda que muito cuidadosos, não discutem
os frutos da luta antimanicomial brasileira, a questão da articulação e do papel desses
que ainda operacionaliza a transformação serviços com a rede de atenção em saúde
das práticas de saúde voltadas aos sujeitos mental.
diagnosticados com transtorno mental. Com Ao lado disso, observa-se que poucas
a aprovação da Lei 10.216, de 2001, e a cons- publicações científicas abordam o cuidado
trução do aparato normativo que a acompa- prestado ao paciente com transtorno mental
nhou, verificou-se um acelerado processo de grave internado em hospital geral em de-
desospitalização de pacientes internados em corrência de uma complicação clínica e/ou
grandes hospitais psiquiátricos, bem como a cirúrgica. Essa temática ainda é pouco dis-
expansão das unidades de saúde não hospi- cutida no Brasil, seja no âmbito das políticas
talares, entre as quais se destacam os Centros públicas, seja na própria academia.
de Atenção Psicossocial (Caps), serviços Essa escassez de discussão contrasta com
territorializados, cujas funções centrais são diversos estudos que afirmam que pacientes
acompanhar integralmente pacientes psi- com transtorno mental apresentam maior
cóticos e neuróticos graves e ordenar a rede risco de desenvolver algumas comorbidades
de saúde mental da região onde se inserem somáticas – como a diabete e doenças do
(BORGES; BAPTISTA, 2008). coração, doenças pulmonares, doenças da
A partir de 2006, a maior parte do mon- tiroide e doenças infecciosas, como tuber-
tante de gastos com saúde mental passou a culose e hepatite B e C em decorrência do
destinar-se a serviços não hospitalares, a uso prolongado de certas medicações, como
estratégias de reinserção social, como: os antipsicóticos –, e hábitos de vida não saudá-
Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), o veis, como uso de tabaco e outras drogas, falta
Programa de Volta para Casa, oficinas de tra- de atividade física e alimentação adequada
balho e centros de convivência (BRASIL, 2007). (ZOLNIEREK; CLINGERMAN, 2012; DE HERT ET AL., 2010; OUD
Com isso, o Ministério da Saúde preco- ET AL., 2010; OUD ET AL., 2009; ZOLNIEREK, 2009; CARNEY;
niza a utilização dos leitos de hospitalidade JONES; WOOLSON, 2006; DOMBROVSKI; ROSENSTOCK, 2004;
noturna, isto é, dispositivos de acolhimen- LYKETSOS ET AL., 2002).
to noturno integrados à rede de atenção à Ademais, o paciente com comorbidade
saúde mental, tais como: leitos de Hospitais psiquiátrica é menos propenso a receber
Gerais, de Caps III, das emergências gerais, cuidados primários de saúde por vários
dos Serviços Hospitalares de Referência motivos: dificuldade de acesso, falta de
para Álcool e Drogas (BRASIL, 2007). Esses leitos credibilidade por parte dos os profissionais

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


322 PRADO, M. F.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L.

e redução da percepção de dor (CASHIN; apresentar os resultados de uma revisão


ADAMS; HANDON, 2008; DOMBROVSKI; ROSENSTOCK, bibliográfica sobre o atendimento ofertado
2004; ZOLNIEREK; CLINGERMAN, 2012). Acredita-se ao paciente com transtorno mental grave,
que todos esses fatores podem contribuir internado em unidades não psiquiátricas de
para a demora desses sujeitos em procu- hospital geral devido a uma intercorrência
rar o serviço de saúde. Os hospitais gerais clínica e/ou cirúrgica.
também tendem a recusar o paciente com
transtorno mental em função de entraves
semelhantes (SULLIVAN ET AL., 2006). Metodologia
Dessa forma, as pessoas diagnosticadas
com transtorno mental chegam com mais As bases de dados utilizadas para a revisão
frequência aos serviços de saúde de emer- bibliográfica foram a Biblioteca Virtual de
gência (ZOLNIEREK, 2009; BARTELS, 2004) necessi- Saúde (BVS), Pubmed, Scopus e banco de
tando de intervenções mais invasivas, como teses da Capes. Foram termos de busca:
cirurgias, em consequência do agravamento saúde mental, comorbidade, comorbidade
de suas doenças por dificuldade de acesso psiquiátrica, comorbidade clínica, hospital
a cuidados básicos de saúde. Bouza, López- geral, hospitalização clínica, assistência
Cuadrado e Amate (2009) observaram que hospitalar, paciente psiquiátrico, cuidado
a hospitalização de pessoas com esquizo- integral, doença mental, hospitalização
frenia, em decorrência de doenças clínicas, não psiquiátrica. Foram realizadas várias
é mais frequente do que entre aquelas sem combinações desses termos, utilizando o
esquizofrenia. filtro ‘título, resumo e assunto’, ‘disponi-
Com base nesses estudos, entende-se bilidade de textos completos’ e ‘intervalo
que a chegada do paciente com transtorno temporal para publicações de 2004 a 2014’,
mental grave ao hospital geral em decor- considerando o período de 10 anos como
rência de complicações clínicas não parece suficiente para assegurar um conhecimento
incomum, o que reforça a importância da satisfatório e atualizado a respeito do mate-
discussão dessa temática e a obrigatorieda- rial disponível.
de das políticas de saúde em garantir a essa Buscou-se em tais bases de dados traba-
população uma assistência condizente com lhos: de qualquer parte do mundo, oriundos
suas necessidades de saúde. de pesquisas baseadas em métodos quan-
A literatura mostra que a dificuldade titativos ou qualitativos, que abordaram a
no manejo de pacientes diagnosticados temática do cuidado ofertado ao paciente
com transtorno mental grave está presente com transtorno mental grave, internado no
mesmo naqueles serviços ou setores volta- hospital geral devido a complicações clínico-
dos ao atendimento dessa população, em -cirúrgicas. A decisão pela seleção das publi-
caso de uma crise psíquica (PAULON, 2012; DUARTE; cações científicas foi tomada pelo primeiro
OLSCHOWSKY, 2011; CAMPOS; TEIXEIRA, 2001), o que se autor do presente artigo.
leva a questionar o cuidado produzido pelas Os critérios de exclusão das publicações
equipes de saúde em unidades não psiquiá- analisadas foram pesquisas que: a) aborda-
tricas do hospital geral, partindo do pressu- ram serviços especializados em psiquiatria
posto de que, nesses setores, o contato com ou da atenção básica ou primária em saúde; b)
o dito louco poderia ser mais inesperado, já tinham como temática o cuidado produzido
que não se destinam exclusivamente a essa a pacientes dependentes químicos ou diag-
população. nosticados com transtornos mentais leves e
Considerando a complexidade dessa moderados, como depressão; c) analisaram
questão, este artigo tem como objetivo

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


O paciente com transtorno mental grave no hospital geral: uma revisão bibliográfica 323

o percentual de pessoas com transtorno pois estas não possibilitaram o acesso a


mental internadas no hospital geral. qualquer trabalho. Assim, para essa base
A tabela 1 apresenta as combinações dos da Capes, foram utilizadas as seguintes
termos citados acima, bem como os filtros combinações: saúde mental e hospital
e a quantidade de trabalhos encontrados geral; paciente psiquiátrico e hospital
nas diferentes bases de dados, exceto no geral; saúde mental e comorbidade; doença
banco de teses e dissertações da Capes. mental e hospital geral. Vale ressaltar que
Neste último caso, não foi possível usar as a base não permite a utilização de filtros.
mesmas combinações de termos e filtros, Desse modo, foram capturados um total de

Tabela 1. Trabalhos científicos selecionados por bases de dados segundo combinações de termos de busca

Combinações dos Termos Base de Dados Total (*)


BVS SCOPUS PUBMED
Capt. Selec. Capt. Selec. Capt. Selec. Capt. Selec.
(n) (n) (n) (n) (n) (n) (n) (n)
(saúde mental) and
(comorbidade) and 179 7 24 - 20 - 273 7
(assistência hospitalar)
(paciente psiquiátrico) and
(comorbidade) and 1 - 474 2 - - 475 2
(hospital geral)
(saúde mental) and
(hospital geral) and 5 1 387 1 - - 392 2
(comorbidade clínica)
(paciente psiquiátrico) and
(hospital geral) and - - 385 6 - - 385 6
(comorbidade clínica)
(doença mental) and
157 - 12 1 30 2 199 3
(hospitalização não psiquiátrica)
(saúde mental) and
(hospital geral) and 3 - 141 1 - - 144 1
(cuidado integral)
(comorbidade psiquiátrica) and
3 - 548 3 13 1 564 4
(hospital geral)
Total 348 8 1971 23 63 3 2382 25
Fonte: Elaboração própria.
Notas: Foram utilizados os seguintes filtros: ‘título, resumo, assunto’, ‘texto completo’, (2004 – 2014).
(*) O total de recuperados exclui as repetições e os quatro não encontrados na íntegra.
Capt. = Número de Capturados; Selec. = Número de Selecionados.

20 trabalhos, sendo que apenas 1 foi consi- termos para o idioma inglês, no caso das
derado pertinente e selecionado. duas últimas bases.
A seleção dos trabalhos se deu em três A figura 1 apresenta o processo de revisão
etapas, respectivamente: por meio do título, bibliográfica e seleção final dos trabalhos
por meio do resumo e a partir da leitura do analisados. Os textos foram inicialmente
artigo completo. As combinações das pa- selecionados pelo título, chegando-se a um
lavras-chave foram iguais para a base BVS, total 122. Após essa etapa, iniciou-se a leitura
Pubmed e Scopus, fazendo a tradução dos dos resumos, sendo escolhidos 55 deles.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


324 PRADO, M. F.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L.

Excluindo-se as repetições, considerou-se artigos na íntegra, selecionou-se 20 artigos


29 resumos. Desses, quatro publicações e 1 dissertação. Essa diferença numérica se
não foram encontradas na íntegra, portanto deu em função da repetição dos textos nas
considerou-se o total de 25 trabalhos para diferentes bases (9 artigos se repetiram pelo
leitura. Por fim, após a leitura crítica desses menos uma vez), como à rejeição de outros

Figura 1. Fluxograma do processo de seleção das referências bibliográficas.

por não se enquadrarem na delimitação Universidade do Estado do Rio de Janeiro,


deste objeto de estudo. cujo trabalho foi apresentado pelo autor
A partir dos artigos selecionados, buscou- (ASSIS, 2014), e a outra foi de forma mais aleató-
-se também as referências utilizadas pelos ria, encontrada quando outro assunto estava
autores, aqui denominadas ‘referências sendo pesquisado. Dessa forma, consideran-
secundárias’. Foram incorporados mais 18 do-se a introdução das referências secundá-
artigos através dessas referências, totalizan- rias e as produções recuperadas por outros
do, ao final desse processo, 39 artigos cientí- meios, alcançou-se um total de 41 trabalhos
ficos analisados nesta pesquisa. científicos analisados.
Além disso, teve-se acesso a duas dis- Os resultados foram agrupados nas se-
sertações de mestrado por outros meios: guintes categorias de análise: a) Sujeitos da
uma delas foi por intermédio de um semi- pesquisa; b) Afetos despertados nos profis-
nário sobre saúde mental que aconteceu na sionais de saúde em contato com o louco; c)

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


O paciente com transtorno mental grave no hospital geral: uma revisão bibliográfica 325

Quando o estigma compromete a qualidade contextualização e discussão do tema, como,


do cuidado; d) Não apenas no hospital geral: por exemplo, as consequências de uma co-
dificuldades de acesso e baixa qualidade da morbidade psiquiátrica para os resultados
atenção no sistema de saúde; e) Eventos ad- de saúde desses pacientes, quando interna-
versos, custos e tempo de internações não dos em enfermarias – clínicas ou cirúrgicas
psiquiátricas de pacientes com transtorno – no hospital geral, focando no tempo e nos
mental; f ) A capacitação profissional como custos dessas internações.
uma das possibilidades de intervenção. A maioria dos trabalhos foram realizados
nos Estados Unidos das Américas (quadro
1). Com exceção de quatro dissertações de
Resultados mestrado e dois artigos (ambos produtos
dessas dissertações), não foram encontra-
Considerando o total de 41 trabalhos ana- dos estudos no Brasil sobre a temática dis-
lisados, 17 abordam, em alguma dimensão, cutida. Algumas pesquisas brasileiras estão
a problemática da produção do cuidado ao voltadas para o atendimento ao sujeito
paciente com transtorno mental severo no com transtorno mental no pronto atendi-
âmbito assistencial do hospital geral. Os mento do hospital geral em situações de
demais trabalhos, embora não abordem di- crise psíquica, mas não se referem àqueles
retamente essa problemática, voltam-se para que precisaram de outros tratamentos em
questões igualmente importantes para a enfermarias não psiquiátricas (PAULON, 2012;

Quadro 1. Trabalhos recuperados, países de realização dos estudos e referências das categorias de análise

TRABALHOS CIENTÍFICOS RECUPERADOS A PARTIR DAS BASES DE DADOS


AUTOR (ANO) PAÍS CATEGORIAS DE ANÁLISE
A B C D E F
ATKIN, K.; HOLMES, J.; MARTINS, C. (2005) Reino Unido enfermeiros S S N N S
BARTELS, S. J. (2004) Estados Unidos da América N N N N S N
BOLTON, J. (2012) Reino Unido N N N N N S
BOUZA; C.; LÓPEZ-CUADRADO, T.; AMATE, J.
Espanha N N N N N N
(2009)
BRADSHAW, L. E. (2013) Reino Unido N N N S N N
BRESSI, S. K.; MARCUS, S. C.; SOLOMON, P. L. (2006) Estados Unidos da América N N N N S N
CAI, X.; LI, Y. (2013) Estados Unidos da América N N N S N N
CAMARGO, R. M. P. (2011) Brasil enfermeiros S S N N S
CARNEY, C. P.; JONES, L.; WOOLSON, R. F. (2006) Estados Unidos da América N N N N N N
CLARK, C.; PARKER, E.; GOULD, T. (2005) Austrália enfermeiros S N N N S
CHIKAODIRI, A. N. (2009) Nigéria outros S N N N S
DE HERT, M. et al. (2010) Bélgica N N N N N N
DOMBROVSKI, A.; ROSENSTOCK, J. (2004) Brasil N N N N N N
ELIAS, A. D.; TAVARES, C. M. M.; CORTEZ, E. A. (2012) Brasil enfermeiros N N N N N
KHAYKIN, E. et al. (2010) Estados Unidos da América N N N N S N
KANNOPKA, A. (2011) Alemanha N N N N S N
LYKOURAS, L.; DOUZENIS, A. (2008) Grécia N N N S N N
MITCHELL, A. J.; DELAFFON, V.; LORD, O. (2012) Reino Unido N N S S N N

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


326 PRADO, M. F.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L.

Quadro 1. (cont.)

PAES, M. R.; MAFTUM, M. A.; MANTOVANI, M. F.


Brasil enfermeiros S N N N N
(2010)
RATHORE, S. S. et al. (2008) Estados Unidos da América N N N S N N
ZOLNIEREK,C. D. (2009) Estados Unidos da América N S S N N S
TRABALHOS CIENTÍFICOS RECUPERADOS A PARTIR DOS ARTIGOS (REFERÊNCIAS SECUNDÁRIAS)
CASHIN, C. E.; ADAMS, N.; HANDON, B. (2008) Estados Unido da América N N N N S S
DAUMIT, G. L. et al. (2006) Estados Unidos da América N N N N S N
DOLINAR, L. J. (1993) Estados Unidos da América N N N S N N
HOCHLEHNERT, A. et. al. (2011) Alemanha N N N N S N
HOOVER, D. R. et al. (2004) Estados Unidos da América N N N N S N
DE JONGE, P. D. et al. (2001) Europa (*) enfermeiros N S N N N
LETHOBA, K. G.; NETSWERA, F. G.; RANKHUMISE, E.
África do Sul enfermeiros N S N N S
(2006)
MACDONALD, M. T. (2007) Estados Unidos da América N S N N N N
MCDONALD, D. D. et al. (2003) Estados Unidos da érica enfermeiros N S N N S
MILENOVIC et al. (2011) Sérvia N N N N S N
MINAS, H. (2011) Malásia outros N S N N N
MUNRO, A.; WATSON, H. E.; MCFADYEN, A. (2007) EscóciAma enfermeiros N N N N S
REED, F.; FITZGERALG, L. (2005) Austrália enfermeiros S N N N S
RÜSCH, N.; ANGERMEYER, M. C.; CORRIGAN, P. W.
Alemanha N N N N N S
(2005)
SAYERS, S. L. et al. (2007) Estados Unidos da América N N N N S N
SULLIVAN, G. et al. (2006) Estados Unidos da América N N N N N N
ZOLNIEREK, C. D. (2011) Estados Unidos da América N N N N N S

Estados Unidos da América enfermeiros S S S N S


ZOLNIEREK, C. D.; CLINGERMAN, E. M. (2012)
TRABALHOS CIENTÍFICOS RECUPERADOS POR OUTROS MEIOS
ASSIS (2014) Brasil N N N S N N
ELIAS, A. D. (2012) Brasil enfermeiros N N N N S
Fonte: Elaboração própria.
Notas: A: sujeitos da pesquisa
B: Afetos despertados nos profissionais de saúde em contato com o louco
C: Quando o estigma compromete a qualidade do cuidado
D: Não apenas no hospital geral: dificuldades de acesso e baixa qualidade da atenção no sistema de saúde
E: Eventos adversos, custos e tempo de internações não psiquiátricas de pacientes com transtorno mental
F: A capacitação profissional com uma das possibilidades de intervenção
S: Sim
N: Não.
(*) países europeus não descritos.

DUARTE; OLSCHOWSKY, 2011; CAMPOS; TEIXEIRA, 2001; doença mental em hospital geral devido a
HILDEBRANDT; ALENCASTRE, 2001). problemas psiquiátricos, o que difere dos
Hildebrandt e Alencastre (2001), em seu achados deste estudo quando o assunto é
artigo de revisão bibliográfica sobre a inser- a internação de pacientes com transtorno
ção da psiquiatria em hospital geral, afirmam mental internados por outros problemas de
existir uma ampla literatura nacional e inter- saúde. Paes, Maftum e Mantovani (2010) foram
nacional sobre a internação de pessoas com responsáveis por um dos poucos trabalhados

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


O paciente com transtorno mental grave no hospital geral: uma revisão bibliográfica 327

nacionais encontrados que abordaram a pro- que relataram experiências de serem com-
blemática do cuidado produzido aos pacien- preendidos, também descreveram vivências
tes com transtorno mental no hospital geral. dolorosas anteriores, enfatizando sentimentos,
O quadro 1 apresenta, para cada trabalho como solidão, isolamento e vulnerabilidade.
científico recuperado – identificado por seu Ainda que a literatura apresente lacunas
autor e ano de publicação –, o país onde o quanto à escuta voltada para o paciente com
estudo foi realizado e as categorias de análise transtorno mental no que diz respeito ao
nas quais seus resultados foram agrupados. cuidado prestado por equipes não psiquiátri-
Vale ressaltar que um mesmo trabalho pode cas, Zolnierek e Clingerman (2012) apontam
remeter a mais de uma categoria. para o reconhecimento, por parte dos enfer-
Além disso, cinco trabalhos inseridos no meiros, da importância da participação do
quadro não remetem a nenhuma catego- paciente em seu tratamento.
ria de análise, já que seus resultados não as Seguindo a tendência internacional, os
abordavam centralmente, no entanto, seus pesquisadores Paes, Maftum e Mantovani
achados foram úteis para introduzir ou con- (2010) também se dedicaram a estudar o
textualizar o tema da pesquisa. Abaixo serão cuidado de enfermagem prestado ao pa-
apresentados os resultados de acordo com as ciente com comorbidade clínico-psiquiátri-
categorias de análise definidas. ca em uma unidade de pronto atendimento
no hospital geral.
Sujeitos das pesquisas
Afetos despertados nos profissionais
Observou-se que as publicações científicas de saúde em contato com o louco
que trataram do tema – o atendimento assis-
tencial prestado ao paciente com transtorno Ao considerar o cotidiano dos profissionais
mental grave em unidades não-psiquiátricas de saúde, sobretudo dos enfermeiros nos
– concentraram-se na percepção do profis- hospitais gerais, as publicações selecionadas
sional de enfermagem a respeito deste tipo descreveram os afetos despertados nesses
de assistência/paciente (ELIAS, 2012; ELIAS; TAVARES, sujeitos ao entrar em contato com a loucura.
2012; ZOLNIEREK; CLINGEMAN, 2012; PAES, MAFTUM; Paes, Maftum e Mantovavi (2010, P. 282) ca-
MANTOVANI, 2010; MUNRO; WATSON; MCFADYEN, 2007; tegorizaram seus achados em: “O cuidado é
LETHOBA; NETSWERA; RANKHUMISE, 2006; CLARK, PARKER; técnico e sem especificidade”; “Segurança
GOULD, 2005; ATKIN; HOLMES; MARTIN, 2005; REED; e proteção ao paciente”; “Contenção física
FITZGERALD, 2005; MCDONALD ET AL., 2003; DE JONGE ET e química como medida de proteção”. Os
AL., 2001).
Apenas dois artigos consideraram autores afirmam que os profissionais de en-
como sujeitos de pesquisa outros profissio- fermagem, ao prestarem cuidado “[...] ao pa-
nais de saúde – médicos, farmacêuticos, fi- ciente com sintomas psiquiátricos, tendem
sioterapeutas (MINAS ET AL., 2011; CHIKAODIRI, 2009). a apresentar sentimentos como: medo de
Nenhum dos estudos considerou a expe- agressão e insegurança, que podem dificul-
riência do cuidado prestado no hospital geral tar e até impedir o cuidado” (PAES; MAFTUM;
a partir do olhar do paciente com transtorno MANTOVAVI, 2010, P. 282). Os resultados dessa pes-
mental. Entretanto, Shattell et al. (2006) desen- quisa evidenciaram a dificuldade no manejo
volveram uma pesquisa em um serviço psiquiá- desses pacientes e de percepção de suas ne-
trico com o objetivo de investigar experiências cessidades pela equipe de enfermagem.
de pacientes que já se sentiram compreendi- De modo geral, tais resultados se repetem
dos por profissionais de saúde de diversas ca- em todos os artigos que abordaram a percep-
tegorias e especialidades, em algum momento ção e/ ou o atendimento prestado ao pacien-
da vida. Segundo os autores, mesmo os sujeitos te com transtorno mental no hospital geral,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


328 PRADO, M. F.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L.

seja devido a uma crise psíquica, seja devido em produzir o cuidado também são apontadas
a uma intercorrência clínica. As pesquisas no trabalho de Camargo (2011) como geradoras
evidenciam a dificuldade no manejo com de angústia na equipe de enfermagem.
esses pacientes e sugerem que as atitudes Em outro estudo, realizado por Chikaodiri
dos enfermeiros para com eles são conside- (2009), a equipe de saúde se posicionou a favor
radas negativas (ZOLNIEREK, 2009). da criação de uma enfermaria psiquiátrica
Zolnierek e Clingeman (2012) definiram no hospital geral. Apesar disso, a maioria
quatro categorias para caracterizar as expe- dos entrevistados não gostaria de trabalhar
riências de enfermeiros no atendimento a próximo desse setor. Os profissionais ex-
pacientes com transtorno mental no hospital pressam medo em cuidar do paciente com
geral: tensão, desconforto, falta de satisfação transtorno mental (CHIKAODIRI, 2009).
profissional e dificuldade. Vale ressaltar que outros elementos inter-
A categoria ‘tensão’ foi descrita como a ferem na qualidade do cuidado prestado ao
necessidade sentida pelos enfermeiros de paciente com transtorno mental grave. De
estarem constantemente em estado de vigi- acordo com Macdonald (2007) e Zolnierek
lância para garantir a segurança do paciente, (2009), alguns obstáculos encontrados no
a sua própria e a dos outros. Paes, Mafum e ambiente do hospital geral também podem
Mantovani (2010) também apresentam a pre- contribuir para a dificuldade e, consequen-
ocupação com a segurança e associam-na ao temente, para a recusa dos profissionais em
uso de contenção física e química. Segundo os atender pacientes com transtorno mental. A
autores, o uso da contenção física e química é organização do serviço, a estrutura, a restri-
muitas vezes justificado por esse motivo. ção de recursos disponíveis nas enfermarias
O desconforto foi descrito como o sen- e a falta de tempo são alguns desses fatores
timento de estar despreparado (falta de apontados pelos enfermeiros. As regras
formação/conhecimento) para lidar com rígidas do hospital, sua rotina rigorosa e
esses pacientes. Esse último tópico é um ar- o foco da atenção voltada às necessidades
gumento bastante frequente entre os profis- físicas desafiam a capacidade do profissional
sionais de saúde. A maioria deles afirma não em prestar adequadamente o cuidado a esses
ter habilidade e formação, conhecimento e pacientes (ZOLNIEREK; CLINGERMAN, 2012).
manejo com as comorbidades psiquiátricas
para proporcionarem um cuidado adequado Quando o estigma compromete a
e de qualidade (ATKIN; HOLMES; MARTIN, 2005; CLARK; qualidade do cuidado
PARKER; GOULD, 2005; REED; FITZGERALD, 2005).
A falta de satisfação profissional está rela- As considerações anteriores estão relaciona-
cionada ao pensamento de ineficácia de suas das ao estigma que envolve a loucura, de modo
ações, ou seja, os enfermeiros não acreditam que o diagnóstico psiquiátrico já é suficiente
que suas intervenções tenham algum resulta- para rotular o paciente como sendo difícil
do positivo para o paciente (ZOLNIEREK; CLINGEMAN, dentro das enfermarias cirúrgicas de um hos-
2012). Esse sentimento pode colaborar para a pital geral (ZOLNIEREK, 2009). Portanto, não é difícil
resistência dos profissionais de enfermagem de presumir que essas representações influen-
em atender as pessoas com transtorno mental, ciem negativamente a qualidade do cuidado
como observado por Camargo (2011). prestado pelos profissionais de saúde.
Por último, tem-se a categoria dificuldade, Camargo (2011) também elegeu como tema
que está relacionada à ideia de que esses pacien- de discussão de sua pesquisa o preconceito
tes interrompem a estrutura e o fluxo do traba- que emergiu das falas dos enfermeiros de um
lho da equipe e requerem mais tempo e esforço hospital geral. Segundo o autor, o preconceito
desta (ZOLNIEREK; CLINGEMAN, 2012). As dificuldades relacionado às pessoas com diagnóstico de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


O paciente com transtorno mental grave no hospital geral: uma revisão bibliográfica 329

transtorno mental apareceu na fala dos sujei- (ZOLNIEREK; CLINGEMAN, 2012), perturbadores (ATKIN;
tos entrevistados, sugerindo distanciamen- HOLMES; MARTIN, 2005),
mais complexos (DE JONGE
to e podendo ser expressado de diferentes e imprevisíveis (LETHOBA; NETSWERA;
ET AL., 2001)
maneiras. RANKHUMISE, 2006).
Na mesma direção, Minas et al. (2011)
apresentaram uma pesquisa realizada com Não apenas no hospital geral: dificul-
dois grupos de profissionais de saúde de um dades de acesso e baixa qualidade da
hospital geral. Um deles recebeu um caso atenção no sistema de saúde
de paciente diabético e outro um caso de
paciente com transtorno mental, sendo que, A literatura também aponta que os pacientes
depois, ambos foram orientados a responder com comorbidades psiquiátricas recebem
a um questionário. Aqueles que responde- pior atendimento nos serviços de saúde de
ram ao questionário a partir da vinheta de modo geral, trazendo implicações para a
saúde mental deram medidas significativa- saúde dessa população (BRADSHAW ET AL., 2013; CAI;
mente mais baixas para o cuidado e suporte LI, 2013; RATHORE ET AL., 2008; MITCHELL; DELAFFON; LORD,
prestado ao paciente e medidas mais altas 2012; LYKOURAS; DOUZENIS, 2008).
em relação ao comportamento evitativo e à Assis (2014), sobre o atendimento de uma
expressão de estereótipo negativo quando paciente esquizofrênica em uma unidade de
comparado com o grupo que respondeu ao atenção básica, diagnosticada com hanseníase,
questionário a partir do caso de diabetes. afirma que o acesso dela foi facilitado quando
Os resultados da pesquisa realizada por uma de suas parentes mencionou o diagnós-
Mcdonald et al. (2003) estão de acordo com o tico clínico alto e bom som na recepção do
estudo acima. Sessenta enfermeiros foram serviço. No entanto, o atendimento foi difi-
divididos em três grupos. Todos estes recebe- cultado, no mesmo dia, quando a paciente foi
ram a descrição do mesmo caso, configuran- considerada da ‘psiquiatria’. Segundo o autor,
do uma situação de infarto agudo que dera “[...] ser considerado paciente psiquiátrico era
entrada em uma unidade de emergência. um empecilho para ser recebido nos serviços
Entretanto, algumas diferenças em relação à que formavam a rede de saúde e não exclusiva-
medicação que esse paciente fazia uso foram mente de saúde mental” (ASSIS, 2014, P. 191).
apresentadas: um grupo recebeu a vinheta É importante considerar que os servi-
que acrescentava o uso de um ansiolítico, o ços de psiquiatria também demonstram
outro grupo recebeu a vinheta que descrevia dificuldade em lidar com pacientes que
várias medicações psicotrópicas e o grupo apresentam comorbidades clínicas além do
controle não recebeu essas informações. diagnóstico para transtorno mental (DOLINAR,
O grupo que recebeu o caso que configu- 1993). Mitchell, Delaffon e Lord (2012) afirmam
rava uma descrição de um paciente psicó- que pacientes psiquiátricos, principalmente
tico foi menos propenso a avaliar o quadro aqueles que fazem uso de medicação antip-
como sendo de um infarto. De acordo com os sicótica, são menos submetidos a exames
autores, o reconhecimento de que o estere- clínicos e monitoramento de sua saúde física
ótipo negativo direcionado a pacientes com nos serviços de psiquiatria.
comorbidades psiquiátricas pode influen-
ciar suas atitudes é importante para auxiliar Eventos adversos, custos e tempo
os profissionais na produção do cuidado de internações não psiquiátricas de
(MCDONALD ET AL., 2003). pacientes com transtorno mental
Em geral, os enfermeiros do hospital
geral consideram os pacientes com trans- Entre os estudos capturados na revisão bi-
torno mental como difíceis e problemáticos bliográfica, alguns apontam maior número

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


330 PRADO, M. F.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L.

de eventos adversos presentes nas inter- por pessoas com transtorno mental (SAYERS ET
nações não psiquiátricas de pacientes com AL., 2007; CASHIN; ADAMS; HANDON, 2008).
transtorno mental do que naquelas da popu-
lação em geral. Daumit et al. (2006) afirmam A capacitação profissional como uma
que durante as hospitalizações médicas e ci- das possibilidades de intervenção
rúrgicas, pessoas com esquizofrenia tinham
pelo menos duas vezes mais chances de A falta de capacitação e/ou conhecimento na
sofrer eventos adversos graves quando com- área de Saúde Mental foi citada, em diferen-
parados com pacientes sem esquizofrenia tes estudos, como um aspecto que interfere
que sofriam do mesmo problema de saúde. de modo negativo na qualidade do cuidado
Segundo os autores, tais eventos adversos (ZOLNIEREK; CLINGEMAN, 2012; CAMARGO, 2011; ATKIN;
foram associados com resultados clínicos HOMES; MARTIN, 2005; CLARK; PARKER; GOULD, 2005; REED;
ruins durante a hospitalização, aumentando FITZGERALD, 2005).
o tempo de internação, os custos, o uso de Como medida de intervenção para a
Unidade de Terapia Intensiva e óbito hospi- melhoria do cuidado produzido pelos pro-
talar para pacientes com esquizofrenia. fissionais de saúde aos pacientes com trans-
Os achados de Daumit et al. (2006) estão torno mental em hospitais gerais, a literatura
de acordo com a pesquisa realizada por aponta para a importância da implementa-
Khaykin et al. (2010). Estes últimos afirmam ção de unidades especializadas e intercon-
que pessoas com diagnóstico de esquizo- sultas psiquiátricas (ZOLNIEREK, 2009); formação
frenia têm maior probabilidade de sofrer os de equipes multidisciplinares (CASHIN, ADAMS;
tipos mais comuns de erros médicos. HANDON, 2008); desenvolvimento de processos
Em relação à interação medicamentosa, educativos e aumento do contato dos profis-
pode-se considerar que o tratamento farma- sionais com pacientes psiquiátricos, podendo
cológico de pacientes com transtorno mental mudar o estereótipo negativo e influenciar
se apresenta como grande desafio aos profis- positivamente as respostas dos profissionais
sionais médicos em geral. Milenovic et al. (MCDONALD ET AL., 2003; REED; FITZGERALD, 2005; RÜSCH,
(2011) afirmam que a interrupção abrupta de ANGERMEYER; CORRIGAN, 2005; LETHOBA; NETSWERA;
medicamentos psicotrópicos pode levar ao RANKHUMISE, 2006; CHIKAODIRI, 2009; ZOLNIEREK, 2009;
agravamento (desestabilidade) da doença. ZOLNIEREK; CLINGERMAN, 2012).
Ao mesmo tempo, a combinação de psico- Os profissionais de psiquiatria que res-
trópicos com anestésicos e medicamentos ponderam ao questionário realizado por
pós-operatórios, por exemplo, pode levar à Bolton (2012) sugeriram o treinamento em
intoxicação do paciente. Diante dessa reali- saúde mental para estudantes de medicina
dade, ambos os trabalhos consideram a im- e de enfermagem como a principal forma de
portância da interconsulta com psiquiatras combater o estigma da doença mental, cor-
e farmacêuticos no setting do hospital geral roborando os estudos supracitados. Já para
para auxiliar os outros profissionais. Zolnierek (2011), embora a interconsulta com
Por fim, pôde-se observar que o aumento profissionais de saúde mental possa ser uma
dos custos e do tempo de internação de pa- ferramenta importante, ela não é suficiente.
cientes com comorbidade psiquiátrica foram Segundo a autora, ambientes favoráveis à
enfatizados em vários artigos (BARTELS, 2004; prática dos enfermeiros devem ser capazes
HOOVER, 2004; BRESSI; MARCUS; SOLOMON, 2006; DAUMIT de estabelecer uma relação entre profissio-
ET AL., 2006; SAYERS ET AL., 2007; CASHIN; ADAMS; HANDON, nal e paciente, produzindo um cuidado cen-
2008; HOCHLEHNERT ET AL., 2011; KONNOPKA ET AL., 2011). trado na pessoa.
Além disso, algumas pesquisas mostram um Munro, Watson e McFadyen (2007) desen-
aumento de internações não psiquiátricas volveram uma pesquisa com o objetivo de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


O paciente com transtorno mental grave no hospital geral: uma revisão bibliográfica 331

testar o impacto do treinamento de equipes pensamentos e concepções a respeito da


de saúde que prestam cuidado às pessoas presença do louco no hospital geral. É pro-
com comorbidade psiquiátrica e uso de subs- vável que este protagonismo se dê porque
tâncias. Os resultados mostram melhoria das os enfermeiros e técnicos de enfermagem
atitudes terapêuticas por parte dos partici- são aqueles que passam mais tempo com o
pantes que lidam com esses pacientes tanto paciente em seu leito. São eles que regem a
imediatamente após o treinamento quanto rotina do paciente no hospital e que fazem,
durante seis meses de acompanhamento. muitas vezes, a mediação entre paciente/fa-
Segundo os autores, o treinamento também miliar e médicos (CARAPINHEIRO, 1998).
foi importante para melhorar o conhecimen- No entanto, é importante ressaltar que
to geral sobre álcool, drogas e comorbidades. muitos trabalhos se dedicaram a analisar
Elias (2012) aposta no potencial de oficinas os resultados clínicos de internações de
de sensibilização para enfermeiros não espe- pacientes com transtornos mentais graves
cialistas para cuidar do paciente psiquiátri- em unidades não psiquiátricas de hospitais
co em situação de uma emergência clínica. gerais. Os custos e o tempo de internação
Estando de acordo com os demais autores, não psiquiátrica desses pacientes foram con-
também defende que uma formação adequa- siderados fortes indicadores para analisar a
da “[...] é capaz de intervir positivamente no qualidade da assistência prestada. Zolnierek
imaginário da loucura” (ELIAS, 2012, P. 71). (2009) já apontava para ampla literatura
focando esses dois indicadores, mas, ao fazer
uma leitura crítica desses achados, enfatiza
Discussão que o cuidado ao paciente com transtorno
mental não pode se reduzir a esses aspectos,
A pouca bibliografia encontrada sobre o pois deve considerar o manejo dos sintomas
tema do presente artigo faz com que se fique psiquiátricos, bem como a experiência de
diante da problemática da produção do cuidado do paciente.
cuidado a partir da perspectiva da integra- Entende-se que o cuidado prestado nos
lidade. O trabalho de revisão desenvolvido serviços de saúde aos pacientes, com ou
neste estudo aponta para a necessidade de sem comorbidades psiquiátricas, vai além
acompanhamento clínico contínuo de pa- desses fatores abordados pela literatura.
cientes com transtorno mental grave, uma Essa discussão precisa ser ampliada, assim
vez que essa população tem de duas a três como a compreensão de cuidado que atra-
vezes mais chances de desenvolver diversas vessa as práticas de saúde. Com base em
doenças crônicas (ZOLNIEREK; CLIGERMAN, 2012). No autores como Merhy (2002) e Ayres (2000),
entanto, o que se vê é a redução da aborda- compreende-se o cuidado como produto de
gem a esses pacientes ao campo psiquiátrico. uma ‘con-vivência’, como resultado de prá-
Percebe-se que as questões do cuidado ticas exigentes do olhar para o sujeito que
produzido aos pacientes com transtorno se apresenta com sua história, desejos, sen-
mental grave não se restringem à negligência timentos e pensamento. Trata-se de um tra-
de um ou outro serviço de saúde, mas reflete balho que exige conhecimento técnico para
um problema de toda a rede de atenção em as intervenções, bem como consideração do
saúde. As dificuldades de acesso dessa popu- saber prático acumulado por experiência da
lação aos serviços básicos de saúde reforçam vida, e apreensão ampliada das necessida-
as lacunas da rede. des de saúde.
Observa-se ainda que o profissional de Observa-se que o cuidado assistencial a
enfermagem é um personagem central das crises somáticas prestado ao sujeito com
pesquisas, quando se discutem as crenças, transtorno mental grave no hospital geral

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


332 PRADO, M. F.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L.

parece ser uma questão de difícil manejo as leis da sociedade, como algo estranho,
para os profissionais de saúde. Os afetos que afasta o ‘sujeito de si e do mundo’, en-
comumente descritos pelos profissionais de fraquece extremamente o desenvolvimento
saúde em contato com a loucura estão rela- de processos de identificação positivos por
cionados ao imaginário produzido em torno parte dos trabalhadores da saúde para com
desse fenômeno. O louco, visto como impre- os pacientes, o que pode afetar fortemente a
visível, inconstante e problemático, desperta produção do cuidado.
angústia, medo e ansiedade, pois, acredita-se A angústia que esse contato pode produzir
estar diante de algo desconhecido, que foge nos profissionais de saúde que se veem im-
do controle, colocando os profissionais no possibilitados de dar uma resposta imediata,
lugar de impotência e gerando frustração. de saber o que fazer diante desse outro tão
O comportamento negativo ou evitativo desconhecido, coloca para o trabalhador o
ante o paciente com transtorno mental grave perigo de se haver com suas limitações, com
pode ter consequências sobre a qualidade a experiência da frustração que, de certo
da assistência prestada. Os achados biblio- modo, ameaça o desejo de onipotência do
gráficos apontam para o afastamento do sujeito, ou seja, de se sentir suficiente, capaz
profissional de saúde desses pacientes, o que de controlar uma situação, dando-lhe um
compromete a integralidade do cuidado. desfecho positivo.
Além disso, o maior número de eventos Diante dos diferentes afetos negati-
adversos e o aumento dos custos e do tempo vos que podem emergir do contato com a
de internação clínica de pacientes com loucura, os profissionais de saúde podem
transtorno mental nos hospitais gerais, desenvolver mecanismos de defesas in-
embora não sejam indicadores suficien- conscientes como uma forma de blindagem
tes para avaliar a qualidade da assistência àquilo que lhe provoca sofrimento (SÁ, 2005,
prestada, como já afirmado, faz com que 2009; AZEVEDO, 2002, 2005).
se questione a postura dos profissionais de Na mesma direção, Campos (2005) faz uma
saúde diante do louco e de que forma ela in- reflexão sobre as produções inconscientes,
fluência esses achados. próprias a qualquer trabalho que envolve
Essa postura que distancia, que repele relações intersubjetivas, apontando que a
esses sujeitos, pode impossibilitar a cons- realidade de trabalho em saúde, caracteri-
trução de processos de identificação entre zada essencialmente pelo contato com a dor
o profissional de saúde e o paciente. Como (física e psíquica) e a morte, produz sinto-
já observado em outro trabalho (SÁ, 2009), a mas. Estes se expressam nas narrativas dos
identificação, como processo intersubjetivo trabalhadores através de alusão a estados
e interpsíquico, constitui-se como uma das passionais, ideologização, somatização e
condições centrais tanto para percepção do burocratização, sensações de onipotência e
sofrimento alheio como para a mobilização impotência, bem como vivências persecutó-
contra ele. rias. Consequentemente, podem ser obser-
O cuidado, como produto do encontro vadas ações pautadas, muitas vezes, por uma
entre pelo menos dois sujeitos, exige que se espécie de passagem ao ato, o que implica a
considerem os diferentes afetos que atraves- impossibilidade de elaboração de estratégias
sam a cena terapêutica, afetos esses muitas de cuidado e o risco de negação do sofrimen-
vezes contraditórios. O ódio, a indiferença to do outro (AZEVEDO, 2010).
e a violência são sentimentos tão humanos Nesse sentido, esta revisão bibliográfica
como o amor, a empatia e a solidariedade. realizada reforça a negatividade a que está
A experiência da loucura, historicamente associada a experiência de contato com a
entendida como um fenômeno que transgride loucura. É como se a loucura se desse por

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O paciente com transtorno mental grave no hospital geral: uma revisão bibliográfica 333

contágio, um contágio imaginário. A loucura serem espaço de alta densidade/concentração


como algo enigmático, portanto, imprevisí- tecnológica, elevada padronização de proce-
vel, aciona as mais primitivas ansiedades nos dimentos e rotinas, apresentando, em geral,
trabalhadores de saúde. pouco espaço para interações mais livres
entre pacientes e profissionais, apresentam
muitos obstáculos à produção do cuidado na
Conclusão perspectiva da integralidade e mais ainda à
escuta sensível das necessidades de pacientes
A maior parte da produção científica que com transtorno mental.
trata do tema ‘o atendimento assistencial A experiência da loucura é vista pelos pro-
prestado ao paciente com transtorno mental fissionais de saúde sob a ótica do perigo, da
grave em unidades não psiquiátricas’ se violência, do imprevisível, daquilo que per-
baseia em estudos cujos sujeitos das pesqui- turba, que rompe com a rotina, que provoca
sas são enfermeiros. Estes, de modo geral, angústia. Essas impressões podem compro-
relatam sentir medo e despreparo para lidar meter fortemente a produção do cuidado.
com o louco, visto como aquele imprevisível, O distanciamento e a repulsa que, muitas
que costuma interromper a rotina dos servi- vezes, os profissionais sentem ao lidar com
ços. Nesse sentido, vários autores apontam pacientes com comorbidades psiquiátricas
que o estigma que envolve a loucura não graves impossibilita a produção do cuidado
deixa de incidir sobre os profissionais e de a partir de uma perspectiva relacional, que
prejudicar a assistência. Tal prejuízo não se não pode prescindir da consideração da sub-
restringe ao espaço hospitalar, podendo ser jetividade e do saber.
notado em toda a rede de serviços de saúde. Acredita-se que, sem considerar os en-
Nos hospitais, a baixa qualidade do cuidado traves, desafios e lacunas à produção do
se expressa através do maior número de cuidado identificados nesta revisão de litera-
erros médicos e eventos adversos relacio- tura, as iniciativas governamentais de prover
nados a pacientes com transtorno mental, a integralidade da atenção dificilmente terão
o que torna as internações desses sujeitos o êxito esperado. Ou seja, não basta criar
mais longas e caras. Para lidar com essas no hospital geral leitos de atenção integral
questões, são sugeridos trabalho em equipe a pacientes com transtorno mental nem,
interdisciplinar, realização de interconsultas tampouco, exigir seu atendimento, se não
e processos de capacitação ou sensibilização, trabalhar, do ponto de vista da gestão e da
acreditando-se que estes podem impactar reorganização dos processos de trabalho em
positivamente sobre o estigma da loucura. saúde, no sentido de superar a negatividade
Assim, a produção do cuidado integral associada à experiência da loucura. Coloca-
parece ser um desafio tanto para os serviços se também como um imperativo o provimen-
de saúde em geral que recebem pacientes com to de condições materiais, tecnológicas e
comorbidades psiquiátricas como para os ser- simbólicas para que os profissionais possam
viços de psiquiatria que recebem pacientes refletir sobre dimensão relacional/intersub-
com comorbidades clínicas. Os hospitais, por jetiva inerente ao cuidado em saúde. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 320-337, DEZ 2015


338 ENTREVISTA | INTERVIEW

Entrevista com o Professor Gastão Wagner


de Sousa Campos
Gastão Wagner de Sousa Campos1, Luciana Dias de Lima2, Maria Lucia Frizon Rizzotto3, Lenaura
de Vasconcelos Costa Lobato4, Vera Lucia Luiza5, Ruben Araújo de Mattos6

Introdução

Gastão Wagner de Sousa Campos é médico sanitarista e professor titular da Universidade


1 UniversidadeEstadual Estadual de Campinas. Militante da Reforma Sanitária, Gastão é um defensor intransigente do
de Campinas (Unicamp), Sistema Único e Saúde (SUS) e uma referência notória no campo da Saúde Coletiva no Brasil.
Faculdade de Ciências
Médicas (FCM) – Em agosto de 2015, durante o XI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva realizado em Goiânia
Campinas (SP), Brasil. (GO), foi eleita uma nova diretoria da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) tendo
Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (Abrasco) Gastão como Presidente.
– Brasil.
gastaowagner@mpc.com.br
Nessa entrevista, o professor reflete sobre os avanços e os problemas do SUS, bem como os
2 Fundação Oswaldo Cruz significados da crise atual e os desafios da formação e pesquisa em Saúde Coletiva e na área de
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde.
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
luciana@ensp.fiocruz.br Editoria: Fale brevemente de sua trajetória profissional e dos fatores que motivaram sua
3 Universidade
atuação no campo da Saúde Coletiva.
Estadual
do Oeste do Paraná
(Unioeste) – Cascavel Gastão Wagner de Sousa Campos: Fiz graduação em medicina na Universidade de Brasília.
(PR), Brasil. Centro
Brasileiro de Estudos de O curso era inovador, organizados em blocos interdisciplinares e que combinavam formação
Saúde (Cebes) – Brasil. teórica e prática. A medicina preventiva e comunitária e a saúde pública ocupavam grande
frizon@terra.com.br
parte de nosso currículo. Tive vários professores que me estimularam a trabalhar no campo do
4 Universidade Federal que seria Saúde Coletiva: Carlile Lavour, Henry Jouval, entre outros. Fiz residência em clínica
Fluminense (UFF),
Escola de Serviço Social, médica e depois fui para a Universidade de São Paulo (USP) fazer especialização em Saúde
Programa de Estudos Pública e mestrado em Medicina Preventiva.
Pós-Graduados em Política
Social – Niterói (RJ),
Brasil. Centro Brasileiro de Editoria: Na sua opinião, quais os principais avanços alcançados com a implantação do
Estudos de Saúde (Cebes)
– Brasil. Sistema Único de Saúde (SUS)?
lenauralobato@uol.com.br

5 Fundação Oswaldo Cruz GW: O principal é a própria existência concreta do SUS, um sistema com grandes proble-
(Fiocruz), Escola Nacional mas, mas que ampliou o direito à saúde. Além da utilidade, o SUS tem exercido um papel
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de simbólico, ao demonstrar a possibilidade e a importância da solidariedade, ao confirmar a
Janeiro (RJ), Brasil. necessidade de haver espaço social de não mercado, em que a gestão e o planejamento se
vera@ensp.fiocruz.br
orientam a partir das necessidades sociais e não da sobrevivência do mais apto.
6 Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (Uerj),
Instituto de Medicina Editoria: Que problemas identifica e quais as perspectivas para a universalização efetiva da
Social (IMS) – Rio de saúde no Brasil?
Janeiro (RJ), Brasil.
rubenm@uol.com.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 338-339, DEZ 2015 DOI: 10.5935/0103-1104.2015S0050003
338
Entrevista com o Professor Gastão Wagner de Sousa Campos 339

GW: Os principais problemas do SUS são na área de Políticas, Planejamento e Gestão


o financiamento inadequado, um modelo de em Saúde?
gestão fragmentado, e que tem dificultado
o uso intensivo dos recursos existentes, e GW: A formação em Saúde Coletiva se
ainda a inadequada política de pessoal para ampliou, inclui cursos de graduação, espe-
a saúde, desde a formação até a inexistência cialização, residência, mestrado profissio-
de carreira pública. Outro problema é a he- nal e pós-graduação acadêmica (mestrado e
gemonia da racionalidade empresarial que doutorado). É urgente a construção de uma
tende a invadir o espaço do SUS que deveria carreira para os sanitaristas no SUS, de pre-
funcionar segundo uma racionalidade ferência uma carreira com âmbito nacional,
pública. A perspectiva de avanço do direito que integre a criação de postos de trabalho
à saúde depende da sociedade civil, de nossa nos três âmbitos federativos. A pesquisa
capacidade e disposição para defender a em Saúde Coletiva se expandiu nos últimos
existência de políticas públicas e da demo- anos, mas, mesmo assim, se ressente do
cracia radical. predomínio de um sistema de gestão e de
avaliação com critérios reduzidos de julga-
Editoria: Como o Sr. está vendo a crise po- mento e com importante grau de exclusão e
lítica atual e como ela afeta ou pode afetar a de concentração de recursos em professores
saúde e o SUS? e grupos com suposta excelência.

GW: A crise política atual reflete o acir- Editoria: Como vê a importância da


ramento da luta de classes. O capital faz um Associação Brasileira de Saúde Coletiva
esforço mundial para resgatar para sua esfera (Abrasco)1 no contexto atual das políticas de
os recursos orçamentários destinados às po- saúde e da pós-graduação?
líticas públicas, por mais desastrosa e cruel
seja essa iniciativa. Entretanto, o SUS não se GW: A Abrasco faz parte do movimen-
constitui em prioridade para nenhuma das to de reforma sanitária. Tem zelado tanto
administrações da União desde sua constitui- pela construção do direito à saúde e do SUS,
ção. Ninguém se declara abertamente contra, quanto de pesquisas e de projetos coletivos,
mas não se observou esforço governamental de vigilância e promoção à saúde. s
significativo para consolidação do SUS.

Editoria: Quais os desafios atuais da for-


mação e pesquisa no âmbito da pós-gradu-
ação em Saúde Coletiva e, especialmente,

1As principais propostas


para a gestão da Abrasco
2015/2018 encontram-se
consolidadas no ‘Programa
para Abrasco 2015: um
projeto aberto’. Disponível
em: <http://cebes.org.
br/2015/07/programa-
para-abrasco-2015-um-
projeto-aberto/>.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 338-339, DEZ 2015


340 RESENHA | CRITICAL REVIEW

FLEURY, S. Uma rica avaliação da construção


da gestão democrática da saúde no nível local.
Rio de Janeiro: Cebes: Editora Fiocruz, 2014.
Paulo Henrique de Almeida Rodrigues1

É com prazer que recebi a incumbência de reforma. Antes do SUS, pode-se recordar,
fazer esta resenha do livro ‘Democracia e entre outros: o Projeto Montes Claros, que
inovação na gestão local da saúde’, de Sonia inovou na estruturação da rede de saúde e
Fleury, militante, fundadora e ex-presiden- na participação comunitária, ainda nos anos
te do Cebes (2006-2009), em coautoria com 1970 (ESCOREL, 1998); o Projeto Niterói, que
Assis Mafort Ouverney, Felipe Barbosa inovou na atenção primária e na organização
Zani, Renato Cesar Möller e Thais Soares distrital dos serviços de saúde (MOYSES, 1989);
Kronenberg. O livro resulta de duas pesquisas além do Projeto Papucaia (Cachoeiras de
desenvolvidas em 1996 e 2006, foi coeditado Macacu), na incorporação do saber popular
pelo Cebes e pela Editora Fiocruz e aborda nas práticas de saúde (CESPP, 2015), ambos nos
um tema desafiador da reforma sanitária anos 1980. Deve-se registrar nessa linha,
brasileira: o papel da gestão local da saúde e também: o Programa de Desenvolvimento
sua relação com a democratização das políti- de Comunidades Urbanas do Rio de Janeiro
cas públicas. Não foi sem dificuldades que fiz (1981-1986), talvez a primeira experiência bra-
a resenha, afinal tinha de elaborar um texto sileira com agentes comunitários de saúde,
que não fizesse feio perante o competente conduzida por Karen Giffin (RODRIGUES, 1988); a
prefácio de Fernando Abrucio e perante a criação dos Núcleos de Atenção Psicossocial,
profundidade e extensão da obra. São ainda em Santos, e do Centro de Atenção
raras as pesquisas longitudinais, como esta Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira,
que busca detectar a evolução da implanta- em São Paulo, por gestões petistas logo
ção do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse no início do SUS, que contribuíram para a
é um dos grandes méritos do livro, que ao reforma psiquiátrica em curso (LUZIO; L’ABBATE,
mesmo tempo explica uma limitação: como 2006). Outros exemplos importantes são as
a segunda pesquisa teve de manter coerência experiências de Icapuí e Quixadá, nos anos
com a primeira, para permitir a comparação, 1980, também em gestões petistas, que ins-
não pôde aprofundar certos temas sobre os piraram a criação dos Programas de Agentes
quais a discussão avançou recentemente. Comunitários de Saúde do Estado do Ceará e
1 Universidade do Estado Este é um caso típico, entretanto, em que os Nacional de Agentes Comunitários de Saúde
do Rio de Janeiro (Uerj), méritos são maiores do que os prejuízos. (LOTTA, 2006). Fico por aqui, assumindo o risco
Instituto de Medicina
Social (IMS) – Rio de Os dois eixos do livro são a ‘democra- da omissão de importantes experiências.
Janeiro (RJ), Brasil. tização’, pela via da municipalização, e a O tema da municipalização da saúde foi
Universidade Estácio de
Sá (Unesa), Programa de ‘inovação’ na gestão local da saúde. Temas caro e central desde relativamente cedo no
Pós-Graduação em Saúde presentes desde o início da formulação da movimento da reforma sanitária. O ideal da
da Família – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Centro de reforma sanitária brasileira. Foi, afinal, em municipalização buscou inspiração no prin-
Brasileiro de Estudos de municípios que ocorreram algumas expe- cípio da democratização das políticas públi-
Saúde (Cebes), Brasil.
pharodrigues@gmail.com riências inovadoras que contribuíram para cas e não deixava de idealizar e simplificar
a inspiração e para o desenvolvimento da a experiência da Ágora grega, e na menos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 340-344, DEZ 2015


DOI: 10.1590/0103-110420151050002023
Medicina financeira: a ética estilhaçada 341

falada, maior facilidade que lideranças do estratégia específica da indução de arranjos


movimento sanitário tiveram inicialmente regionalizados de serviços de saúde” (2014, P.
de penetrar na gestão da saúde pela via muni- 97), assim como a NOB 01/96 também reve-
cipal. Afinal a primeira era bastante restrita, lava uma interpretação do “federalismo in-
uma vez que dela só participavam os homens tegrado de bases claramente municipalistas”
ricos, com mais de 26 anos, e foi efetivamen- (2014, P. 101), embora proponha os primeiros
te pela via municipal que diversos líderes da elementos de indução da regionalização – as
Reforma Sanitária estrearam na gestão do Comissões Intergestores Bipartites (CIB) e a
SUS. A própria pesquisa que originou o livro Programação Pactuada Integrada (PPI). Não
partiu “da hipótese de que a descentraliza- aborda, entretanto, consequências da adoção
ção levaria à democratização da esfera local entusiasmada e acrítica da municipalização
de governo” (2014, P. 18), que é o tema central pelo movimento sanitário, que deixou de
do primeiro capítulo. O texto aponta o perigo considerar o papel do município na formação
que a ênfase recente dos estudos sobre “go- do Estado brasileiro. O afã municipalizador
vernança” tende a deslocar a discussão sobre abstraiu, em primeiro lugar, que os governos
as políticas públicas do âmbito político locais são, desde os tempos coloniais, a base
das relações entre o Estado e a sociedade e do poder da oligarquia agrária no Estado
enxerga os cidadãos principalmente como brasileiro e suas práticas patrimonialistas e
consumidores. No capítulo, Sonia Fleury faz do clientelistas (RODRIGUES, 2014). Tal abstração
conclamação para a necessidade de se focar pode-se explicar, em parte, pela consciência
a discussão sobre as políticas públicas nas um tanto difusa que o movimento tinha da
questões da democratização do Estado e da frágil base de sustentação social da Reforma.
construção de cidadania emancipatória. Afinal, os trabalhadores haviam sido captu-
O segundo capítulo, ‘A construção da mu- rados nos anos 1970 pela miragem da saúde
nicipalização da saúde: estratégias normati- privada, fenômeno que ainda está à espera
vas’, de Assis Monfort Ouverney, aborda os de elucidação pela crítica política e pela
caminhos da municipalização do SUS, inicia- pesquisa acadêmica. O frágil suporte social
dos pela Lei Orgânica da Saúde (BRASIL, 1990), do SUS certamente facilitou a aceitação da
e que tanto entusiasmou o movimento sani- aliança com o conservador movimento mu-
tário. Tal entusiasmo pode ser medido pelo nicipalista brasileiro (RODRIGUES, 2014).
lema ‘a municipalização é o caminho’, da O papel do município no Estado brasileiro
IX Conferência Nacional de Saúde (BRASÍLIA, é abordado parcialmente no capítulo quatro,
1992), e por medidas tomadas pelos reforma- de Fleury e Ouverney, ao tratar da renovação
dores já no Ministério da Saúde, a partir de das elites locais da saúde – perfil dos secre-
1988. Foi o caso, principalmente, das Normas tários de municipais de saúde. O capítulo
Operacionais Básicas (NOB) 01/93 (BRASIL, aponta dificuldades para a democratização
1993) e 01/96 (BRASIL, 1996). Para melhor carac- do poder local, por conta das tradições do
terizar o clima pró-municipalização vigente coronelismo, mandonismo e clientelismo
nos anos 1990, é importante lembrar que a que dificultam o “acesso dos cidadãos o inte-
NOB 01/93 tinha por inspiração o documen- rior aos benefícios do poder público” (2014, P.
to ‘Descentralização das ações e serviços de 204). A análise dos resultados de ampla gama
saúde: a ousadia de cumprir e fazer cumprir de dados sugere que o perfil dos secretários
a lei’, aprovado pelo Conselho Nacional de estaria alinhado com a maior democratiza-
Saúde, em abril de 1993. ção do poder, entre outras coisas, em função
O texto de Ouverney destaca a NOB 01/93 da diversificação crescente do seu perfil,
como o início efetivo da municipalização e maior presença de “profissões qualifica-
mostra que ela não “estabeleceu qualquer das”, maior participação das mulheres e “de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 340-344, DEZ 2015


342 DELDUQUE, M. C.; SILVA, J. A. Á.

grupos minoritários ou em desvantagem so- Ora, dizem os defensores da municipaliza-


cioeconômica” (2014, P. 284). É pena que a pes- ção, tal problema pode ser corrigido pela
quisa não tenha inquirido sobre os possíveis regionalização do sistema, prevista na LOS.
laços pessoais e familiares dos gestores com De fato, 12 anos da aprovação do SUS pela
os proprietários rurais, detentores de grande Constituição, tal objetivo passou a ser perse-
parcela de poder nos menores municípios, guido, embora sem muito sucesso, por diver-
nem com o setor privado de saúde, que sas medidas do Ministério da Saúde, como as
disputa com o SUS pelo controle de recursos. Normas Operacionais de Assistência à Saúde
Os capítulos cinco e seis tratam da gover- (Noas), de 2001 e 2002, o Pacto pela Saúde,
nança local no SUS e da modernização da de 2006, e mais recentemente, pelo Decreto
gestão local. Os autores enxergam evidências Presidencial n.º 7.058, de 2011. São várias,
de maior democratização da relação Estado entretanto, as dificuldades para o sucesso de
e sociedade na gestão local da saúde, por tais iniciativas.
conta da maior identificação dos atores com A mais imediata e visível diz respeito ao
a mesma embora pouco, ainda, em relação à problema da gestão cooperativa, através dos
gestão orçamentária. Continuaria havendo, frágeis, frouxos e instáveis ‘condomínios re-
contudo, elevada influência do Ministério gionais’ que constituem as nossas regiões de
da Saúde sobre a agenda local do setor, o saúde. Elas são compostas por um número
que indica uma limitação da descentrali- geralmente excessivo de municípios autô-
zação política e administrativa. O capítulo nomos entre si e dirigidos por forças e in-
sete apresenta conclusões otimistas sobre teresses políticos distintos. Cada município
a oferta de serviços e inovações na gestão. controla separadamente seus próprios re-
Aponta a existência de diferentes padrões cursos – unidades de saúde, profissionais e
de inovação, predominando a média e baixa recursos financeiros. Nenhum outro sistema
difusão desta, de insuficiente capacidade de universal de saúde existente no mundo aven-
identificação da demanda reprimida e dos turou-se a montar uma gestão fragmentada
mecanismos de organização da oferta nos desse tipo. Todos contam com algum tipo de
menores municípios e que o “modelo de autoridade sanitária regional que controla
indução do centro para a periferia” (2014, P. 410) o conjunto dos recursos da rede de ações e
adotado pelo Ministério da Saúde pode estar serviços de saúde, inclusive os financeiros.
contribuindo e inibindo a inovação na gestão Algumas regiões de saúde brasileiras são
e reduzindo a “autonomia dos municípios tão grandes que tornam sua governabilidade
para pensar em soluções originais” (2014, P. 411). altamente improvável, como é o caso, entre
O tom do texto é favorável à municipalização muitos, da macrorregião de saúde de Belo
e avança pouco em relação à “regionaliza- Horizonte, composta por 102 municípios
ção e hierarquização da rede de serviços de que somam mais de seis milhões de habitan-
saúde” (BRASIL, 1990), o segundo aspecto esta- tes (SANTOS, 2013).
belecido pela Lei Orgânica da Saúde para a Ligado a esse fator, houve abstração por
efetivação do princípio da “descentralização parte do movimento sanitário do papel
político-administrativa” (BRASIL, 1990). dos municípios no sistema político eleito-
Embora não seja analisado pela pesqui- ral brasileiro. Eles constituem a base desse
sa, outro aspecto também abstraído pelo sistema, cujas circunscrições eleitorais cor-
movimento sanitário ao abraçar a causa da respondem ao território dos estados, uma
municipalização é o fato de que 85% dos vez que não contamos com nenhum tipo de
5.565 municípios brasileiros têm menos distrito eleitoral. Circunscrições eleitorais
de 50 mil habitantes, o que inviabiliza que tão grandes obrigam candidatos aos cargos
contem com sistemas de saúde completos. eletivos estaduais e federais a buscar votos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 340-344, DEZ 2015


Medicina financeira: a ética estilhaçada 343

em muitos municípios, espalhados por de saúde se candidatam a cargos eletivos nas


territórios maiores do que muitos países. esferas estadual e federal, precisam angariar
As campanhas eleitorais no Brasil ficam votos em diversos municípios dos respecti-
caras demais por esta razão e dependem de vos estados, particularmente nos vizinhos
acordos e compromissos eleitorais em diver- imediatos, onde tendem a ser mais conhe-
sos municípios, onde a saúde costuma ser cidos. Uma cooperação muito estreita que
importante moeda de troca. Ainda há pouco fortaleça serviços de saúde localizados em
estudo e baixa consciência sobre como isso outros municípios costuma ser vista como
torna ainda mais complexa a pretendida e uma forma de ‘colocar a azeitona na empada
necessária regionalização do nosso sistema dos outros’.
público de saúde. Alguns dos aspectos acima apontados
O sistema político-eleitoral democrático é vêm sendo crescentemente reconhecidos
de natureza competitiva e não cooperativa, pelo movimento sanitário e constituem a
o que contradiz o falso ideal do ‘federalismo munição tanto para preocupações críticas
cooperativo’, para o qual muitos apelam para com os rumos da municipalização como para
resolver as consequências da fragmentação as levantadas por importantes defensores da
municipalista do SUS. As autoridades políti- reforma sanitária, como fizeram os sanita-
cas municipais vizinhas tendem mais a com- ristas e militantes do Cebes Jairnilson Silva
petir politicamente do que a cooperar entre Paim, em artigo publicado em 1992, e Gastão
si para um funcionamento mais integrado da Wagner Souza Campos (SANTOS; CAMPOS, 2014)
rede de serviços. São incentivadas a isso pelo ao propor a transformação do SUS em uma
sistema político-eleitoral, porque quando autarquia pública, organizada a partir das
prefeitos, vereadores e mesmo secretários regiões de saúde. s

Referências

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 340-344, DEZ 2015


344 DELDUQUE, M. C.; SILVA, J. A. Á.

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. ESPECIAL, P. 340-344, DEZ 2015


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um a um, ou seja, um arquivo para cada imagem, sem identificação As declarações de ‘Autoria e Responsabilidade’ e de ‘Aprovação do
dos autores, citando apenas o titulo e a fonte do gráfico, quadro Comitê de Ética em Pesquisa’ devem ser assinadas e postadas nos
ou figura. Devem ser numerados sequencialmente, respeitando correios ou digitalizadas e enviadas para o e-mail da revista (revista@
a ordem em que aparecem no texto. Em caso de uso de fotos, os saudeemdebate.org.br), depois do artigo aprovado:
sujeitos não podem ser identificados, a menos que autorizem, por
escrito, para fins de divulgação científica. 1. Declaração de autoria e responsabilidade.
Segundo o critério de autoria do International Committee of Me-
Exemplos de citações dical Journal Editors, os autores devem contemplar as seguintes
condições: a) contribuir substancialmente para a concepção e o
Para as citações utilizar as normas da ABNT (NBR 10520) planejamento do trabalho ou para a análise e a interpretação dos
dados; b) contribuir significativamente na elaboração do manus-
Citação direta crito ou revisão crítica do conteúdo; c) participar da aprovação
Já o grupo focal é uma “técnica de pesquisa que utiliza as sessões da versão final do manuscrito. Para tal, é necessário que todos os
grupais como um dos foros facilitadores de expressão de carac- autores e coautores assinem a Declaração de Autoria e de Res-
terísticas psicossociológicas e culturais”. (WESTPHAL; BÓGUS; ponsabilidade, conforme modelo disponível em: <http://www.
FARIA, 1996, p. 473). saudeemdebate.org.br/artigos/index.php>

Citação indireta 2. Ética em pesquisa


Segundo Foucault (2008), o neoliberalismo surge como modelo No caso de pesquisa que envolva seres humanos nos termos do
de governo na Alemanha pós-nazismo, numa radicalização do inciso II da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde
liberalismo que pretende recuperar o Estado alemão a partir de – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser hu-
nova relação Estado-mercado. mano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes
dele, incluindo o manejo de informações ou materiais–, deverá
Exemplos de referências ser encaminhado documento de aprovação do Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP) que a aprovou.
As referências deverão ser apresentadas no final do artigo, seguin-
do as normas da ABNT (NBR 6023). Devem ser de no máximo 20, 3. Conflitos de interesse
podendo exceder quando se tratar de revisão sistemática. Abreviar Os trabalhos encaminhados para publicação deverão conter infor-
sempre o nome e os sobrenomes do meio dos autores. mação sobre a existência ou não de conflitos de interesse. Os con-
flitos de interesse financeiros, por exemplo, não estão relacionados
Livro: apenas ao financiamento direto da pesquisa, mas também ao pró-
FLEURY, S.; LOBATO, L.V.C. (Org.). Seguridade social, cidadania e prio vínculo empregatício. Caso não haja conflito, inserir a informa-
saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. ção “Declaro que não houve conflito de interesses na concepção
deste trabalho” na folha de apresentação do artigo será suficiente.
Capítulo de livro:
FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: FLEU- Endereço para correspondência
RY, S.; LOBATO, L.V.C. (Org). Participação, democracia e saúde. Rio
de Janeiro: Cebes, 2009. Avenida Brasil, 4.036, sala 802
CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Artigo de periódico: Tel.: (21) 3882-9140/9140 - Fax: (21) 2260-3782
ALMEIDA-FILHO, N.A. Problemática teórica da determinação E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

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Instructions to authors for preparation and submission of articles

Revista Saúde em Debate Editor. The text must contain between 10 and 15 pages. This for-
mat does not require Abstract.
Instructions to authors for preparation
and submission of articles
5. Case study: description of academic, care or extension experi-
UPDATED ON DECEMBER 2013 ments. The text must contain between 10 and 12 pages.

The Health in Debate Review (Revista Saúde em Debate - RSD), 6. Book review: review of books of interest to the field of public
first printed in 1976, is a publication of the Brazilian Center for health policies, selected at the discretion of the Editorial Board.
Health Studies (Centro Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - Texts must contain an overview of the work, its theoretical as-
Cebes) that aims to disseminate studies, researches and thoughts sumptions and the public to whom it is addressed. The text must
that contribute to the debate in the field of national and interna- contain up to three pages.
tional health policies.
7. Document and testimonial: work on topic of historical or
Editorial policy cyclical interest, selected at the discretion of the Editorial Board.

Published quarterly since 2010, in March, June, September and De- The maximum number of pages does not include the coversheet and
cember, a hard copy of RSD is delivered to all members up to date references.
with their fees. In addition to regular issues, RSD also publishes spe-
cial issues following the same process of assessment and publication. Copyright

RSD accepts unpublished works in the form of original articles, es- Copyrights are of exclusive property of the Review and must be trans-
says, systematized review, case studies, opinion articles, reviews of ferred through the ‘Copyright Transfer Statement’ signed by all the au-
books of academic, political and social interest, as well as testimonies thors, as model available at the Review page. The total or partial repro-
and documents. The works must contribute to the scientific knowle- duction of works is allowed since source and authorship be identified.
dge of the field.
Submission and assessment process
Works submitted to the RSD cannot be simultaneously submitted to
other journals, partially or in full. Works must be submitted exclusively through the website www.sau-
deemdebate.org.br.
Cebes does not charge fees for the submission of works to RSD. The
Center publishing output is the result of collective work and institutio- After its registration, the author responsible for submission will recei-
nal and individual supports. Contributions for allowing the Review to ve a login and password. By submitting the text, all mandatory fields
remain as a democratic forum for the dissemination of critical know- of the page must be filled in with identical content to the file to be
ledge in the health field can be made by means of joining the Center, attached.
at http://cebes.org.br.
Flow of originals submitted for publication
Modalities of work accepted for evaluation
Every original received by Cebes is subjected to prior analysis. The
work not selected in this step is refused, being the authors infor-
1. Original paper: final results of scientific research that can be med by the system message. The work that does not conform to
generalized or replicated. The text must contain between 10 and the Review publication norms are returned to the authors for ade-
15 pages. quateness. Before forwarding to reviewers, the work is sent to the
Editorial Board for assessment of its relevance to the Review goals
2. Essay: critical analysis on a particular topic of relevance and and editorial policy.
interest to the Brazilian and international health policies. The text
must contain between 10 and 15 pages. Once accepted for appraisal, the originals are forwarded to two re-
viewers, who are chosen according to their expertise on the work
3. Systematized review: critical review of literature on current topic, prioritizing those reviewers outside the authors’ federation sta-
topic by applying a research method. It aims to answer a question tes. The work assessment applies the blind review method, i.e., the
of relevance to health. The work must detail the adopted metho- authors’ names remain confidential until the work final approval.
dology. The text must contain between 12 and 17 pages. In case of divergence between reviewers, the work will be forwarded
to a third reviewer for decision. Similarly, the Editorial Board may, at
4. Opinion piece: exclusively upon invitation of the Scientific its discretion, issue a third opinion.

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Instructions to authors for preparation and submission of articles

The assessment form is available at the Review website. The asses- – The style and creativity of authors as for the text composition are
sment output necessarily presents one of the following conclusions: respected, however, it must include elements such as:
(1) accepted for publication; (2) accepted for publication with ‘non-
-restrictive suggestions’; (3) resubmit for further assessment after • Introduction with clear definition of the problem investigated
modifications suggested; (4) rejected for publication. and its groundings.
• Objective description of the methods.
When the reviewer’s assessment concludes for ‘non-restrictive sug- • Results and comments can be approached in a same item or
gestions’, the opinion must be forwarded to the authors for correction separately.
of the work, which must be returned within twenty days. Upon return, • Conclusion.
the work is reassessed by the same reviewer within a period of fifteen • The repetition of data or information in different parts of the
days, extendable for a further fifteen days, to issuance of the final as- text must be avoided.
sessment. The Scientific Editor has full authority to decide also on the
final acceptance of the work as on the changes. – The full text must contain:

In the case of request to ‘resubmit for further assessment after modi- • Coversheet with the title, which must express clearly and
fications suggested’, the work must be forwarded by the author within briefly the content of the text, within no more than fifteen
two months. At the end of this term, and in the absence of any mani- words.
festation by the authors, the work shall be deleted from the system. • Texts in Portuguese and Spanish must be titled in the original
language and in English. Texts in English must be titled in En-
Any suggestions for modifications of structure or content by the Edi- glish and Portuguese.
torship will be previously agreed with the authors by means of com- • Author(s) full name. The information about institutional affi-
munication via website or email. No additions or modifications will be liation and title, address, telephone number and e-mail must
received after the work final approval. be added in a footnote.
• In the case of funding research, inform the funder.
The opinion form used by the Scientific Council is available at http:// • Abstract in Portuguese and English, or in Spanish and English,
www.saudeemdebate.org.br. containing a maximum of 700 characters, spaces included;
the goals, method employed and main conclusions must be
The works submitted for publication are the authors’ exclusive res- clearly stated.
ponsibility and must not exceed five authors per work. • Quotes or acronyms are not allowed in the Abstract, with the
exception of worldwide recognized abbreviations.
Clinical trial registry • At the end of the Abstract, three to five keywords must be in-
serted using the terms contained in the structured vocabulary
RSD supports the policies for registration of clinical trials of the Wor- (DeCS), available at http://decs.bvs.br. Then follows the text.
ld Health Organization (WHO) and the International Committee of
Medical Journal Editors (ICMJE), so recognizing their importance to – Footnotes are not allowed in the text. Footnote markings, if absolu-
the registry and international dissemination of knowledge on clinical tely necessary, must be overwritten and sequential. Example: Sani-
trials. Accordingly, clinical researches must bear the identification tary Reform1.
number in one of the Clinical Trial registries validated by WHO and
ICMJE, whose addresses are available at http://www.icmje.org. The – Testimonials must be italicized and follow the body of the text, wi-
identification number must appear at the end of the Abstract. thout indentation.

Format of work – Highlighted words or text excerpts, at the discretion of the author,
must use single quotation mark. Example: ‘gateway’.
– The text must be forwarded in Microsoft® Word or compatible sof-
tware, saved in doc or docx formats. – Spellchecking is strongly suggested so to identify misspellings and
typing mistakes before submitting the work to the Review.
– Standard A4 (210X297mm), 2.5cm margin on each side, font Times
New Roman size 12, 1.5 line spacing. – Pictures and tables must be sent in a high resolution file, black and
white or grayscale, apart from the text, numbered and titled proper-
– The text must not contain any information that identifies the au- ly, with indication of the units in which values are expressed, adding
thors or institutions. the respective sources.

– The text can be written in Portuguese, Spanish or English. – A maximum of five pictures and tables are allowed, in total, per article.

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Instructions to authors for preparation and submission of articles

– Files must be submitted one by one, i.e., a file for each image, wi- Internet source
thout the identification of authors, containing just the title and the CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Norms for submis-
source of the picture or table. sion of papers to Health in Debate Review. Available at: <http://www.
– They must be numbered sequentially in the same order they appear saudeemdebate.org.br/artigos/normas_publicacoes.pdf>. Access
in the text. on: 9 jun. 2010.

– In the case of photos, persons cannot be identified unless they autho- Mandatory documents
rize, in writing, for the purposes of scientific dissemination.
The documents ‘Statement of Authorship and Responsibility’ and the
Examples of quotation ‘Approval of the Committee of Ethics in Research’ must be signed and
posted or digitalized and sent to the journal’s e-mail address (revis-
For guidelines on quotations, please address to the norm NBR 10520 ta@saudeemdebate.org.br), after approval:
of ‘Brazilian Association of Technical Norms’ (Associação Brasileira
de Normas Técnicas – ABNT). 1. Statement of authorship and responsibility
According to the International Committee of Medical Journal Edi-
Direct quotation tors’ authorship criteria, authors must fulfil the following condi-
The ‘Healthcare Operational Norm’ (Norma Operacional da Assistên- tions: a) make a substantial contribution to the work design and
cia à Saúde - NOAS) asserts that the ‘Regionalization Plan’ (Plano planning or to the analysis and interpretation of data; b) make a
Diretor de Regionalização – PDR) “is based on the form of functio- substantial contribution to the manuscripts or to the critical re-
nal and resolving healthcare systems by means of the organization view; c) participate in the approval of the manuscript final version.
of state territories in regions/micro-regions and assistance modules” To this end, it is necessary that the author and co-authors sign the
(BRAZIL, 2002, p.9). ‘Statement of Authorship and Responsibility’, as the model avai-
lable at <http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/index.php>.
Indirect quotation
Breihl and Grenda (1986) noted that the health-disease process re- 2. Ethics in research
sults from a set of ascertainments that operate in a particular society, In the case of research involving humans under the subsection II
propitiating in different social groups the occurrence of perils that ari- of Resolution 196/96 of the National Health Council – research
se in the form of profiles or patterns of illness. that involves the human being, individually or collectively, directly
or indirectly, in its entirety or in part, including the handling of
Examples of references information or materials –, a research approval document must
be forwarded by the ‘Committee of Ethics in Research’ (CEP) res-
References must be inserted at the end of the article and follow ABNT ponsible for the approval.
(NBR 6023) norms. The number of references must not exceed 20,
except for the case of systematized review. Only the last name of the 3. Conflict of interests
author is written in full, being the name and middle names abbrevia- The work submitted for publication must contain information on
ted by the first letter. conflict of interests. Financial conflicts of interests, for example,
are not only strictly related to the research financing but also to
Book the very nature of the employment. If there is no conflict, the in-
CALFEE, R.C.; VALENCIA, R.R. APA guide to preparing manuscripts formation “I declare that there was no conflict of interests in the
for journal publication. Washington: American Psychological Asso- fulfilment of this work” suffices and must appear on the cover-
ciation, 1991. sheet.

Book chapter
O’NEIL, J.M.; EGAN, J. Men’s and women’s gender role journeys: A Mailing address
metaphor for healing, transition, and transformation. In: WAINRIB,
B.R. (ed.). Gender issues across the life cycle. New York: Springer, Avenida Brasil, 4.036, sala 802
1992. p. 107-123. CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Tel.: (21) 3882-9140 - Fax: (21) 2260-3782
Journal E-mail: revista@saudeemdebate.org.br
PETITTI D.B. et al. Blood pressure levels before dementia. American
Neurological Association, Chicago, v. 62, n. 1, p. 112-116, jan 2005.

SAÚDE DEBATE
Diagramação e editoração eletrônica
Layout and desktop publishing

HG Design Digital

Design de capa
Cover design

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Normalização e revisão de texto


Normalization and proofreading

Aline Miranda Barbosa (português e inglês)


Ana Karina Furginelli (inglês)
Ana Luisa Moreira Nicolino (inglês)
Carla de Paula (português)
Christian Lupovici (português e inglês)
Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro (Inglês)
Frederico Azevedo (normalização)
Lenise Saraiva de Vasconcelos Costa (português e inglês)
Luiza Nunes (normalização)
Simone Basílio (português)
Wanderson Ferreira da Silva (português e inglês)

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Printing

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Tiragem
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1.000 exemplares/copies

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Miolo em papel Offset LD 90 g/m2

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E–mail: cebes@cebes.org.br • revista@saudeemdebate.org.br

Saúde em Debate: Revista do Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Cebes –
n.1 (1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, Cebes, 2015.

v. 39. n. especial; 27,5 cm




ISSN 0103–1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Cebes


CDD 362.1
www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br

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