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REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ISSN 2177-9325 • www.revista.cfch.ufrj.br


Edição Especial SIAC 2016

Vicissitudes do trauma: psicanálise e escrita

Clara Martins Fontes


Instituto de Psicologia
claramfontes@gmail.com

Orientador: Doutora Angélica Bastos de Freitas Rachid Grimberg


Instituto de Psicologia
abastosg@terra.com.br

Palavras-chave:
Trauma. Escrita. Pulsão. Psicanálise. Primo Levi.

O presente trabalho teve como objetivo investigar a problemática do trauma,


bem como interrogar suas vicissitudes e tratamentos possíveis. Para tal, delimitaram-se
os principais momentos do conceito na obra de Freud para em seguida atualizar-se o
problema segundo algumas indicações de Jacques Lacan e de psicanalistas que nos são
contemporâneos. Feito isto, recorreu-se a Primo Levi - escritor italiano e sobrevivente
de Auschwitz - a fim de colocar em evidência a função que o recurso à escrita
desempenhou no ofício do escritor ao se haver com sua experiência concentracionária.
Como resultado da pesquisa, foi possível concluir em que medida seu trabalho com a
linguagem pôde fazer as vezes de um tratamento conferido ao real.
O tema do trauma esteve presente na obra de Freud desde os primórdios da
psicanálise, associado à etiologia da histeria. Primeiramente descrito como trauma
psíquico (FREUD, 1893), o termo logo ganhou contorno sexual com a delimitação da
hipótese da sedução traumática (FREUD, 1896) - entendimento que se dissolveria
cerca de um ano depois, com a descoberta das fantasias inconscientes (FREUD, 1897).
A partir de então, Freud passa a assumir a fala de seus pacientes como sendo investida
de desejo, não encerrando uma realidade objetiva mas portando, em contrapartida, uma
realidade psíquica, de maneira que a clínica psicanalítica não se orientará mais pelo
objetivo de remontar a um suposto trauma “original” que estaria na etiologia da

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neurose, mas pela investigação do modo singular como fantasia e desejo inconsciente se
estruturam para cada sujeito. O tema do trauma ficará a partir de então em segundo
plano na obra de Freud para reaparecer somente décadas depois, com a introdução da
pulsão de morte na metapsicologia freudiana em 1920.
A partir de então, o trauma será definido como resultado da ruptura do sistema
de proteção do aparelho psíquico, que seria inundado por grandes quantidades de
estímulo, perturbando-o. O autor privilegia a excitação proveniente do interior do
organismo como sendo a maior responsável pelo desencadeamento do trauma ao indicar
que contra esta o aparelho não apresenta defesa adequada, destacando as pulsões como
os representantes mais proeminentes deste tipo de força (FREUD, 1920, p. 198). Desta
maneira, seria possível afirmar que, neste momento, o traumático para o aparelho
psíquico seria a própria pulsão, conclusão esta que aponta para a existência de um
excedente à capacidade do aparelho psíquico de assimilar a força pulsional. Em outros
termos, como sobra da atividade do aparelho psíquico há um resto pulsional não
representado e não representável.
A propósito do conceito de repetição, Lacan (1964) retoma o caráter de
inassimilável que o trauma apresenta e delimita um tipo específico de repetição que se
manifesta em torno de um real inassimilável que, justamente pela propriedade de não se
fazer representar, insiste, retornando sempre ao mesmo lugar (LACAN, 1964). O autor
indica que o que estaria em causa neste tipo de repetição seria a realidade faltosa
constitutiva da experiência pulsional, dado que em seu exercício a pulsão não encontra
seu objeto, nem mesmo a representação dele, mas encontra somente o representante da
representação; seu lugar-tenente. Assim, o encontro faltoso que marca a relação na
pulsão com seu objeto - com o real - revelaria a dimensão traumática constitutiva da
vida pulsional.
Uma questão fundamental que se coloca, no meu entender, a este respeito é:
como tratar este tipo de repetição que, além de não ser acessível pela via do
significante, ainda está extremamente facilitada pela incidência da satisfação da
pulsão, que sabemos não “abrir mão” de uma via de descarga direta?
A fim de propor alguma resposta para este problema, recorremos a Primo Levi,
escritor italiano de origem judaica que se tornou reconhecido mundialmente pelos seus
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testemunhos do que teria sido sua experiência de um ano num campo de concentração
nazista. Químico de formação, Levi foi detido pela Milícia Fascista em 1943, aos 24
anos, e alocado no Complexo de Auschwitz, tendo sido libertado um ano depois pela
Armada Russa, após derrocada alemã.
Em seu livro “Primo Levi; a escrita do trauma”, Lucíola Freitas de Macêdo
afirma que, logo depois de seu retorno de Auschwitz, Levi teria sido tomado por uma
“necessidade incontrolável de narrar” (MACÊDO, 2014, p.87) o que teria sido sua
experiência no Campo, tendo se dedicado febrilmente à atividade de escrita. No prefácio
de seu primeiro livro, “É isto um homem?” (LEVI, 1947), Levi afirma que “se não de
fato, pelo menos como intenção e concepção, o livro já nasceu nos dias do Campo”
(LEVI, 1947, p. 8). Afirma também que “a necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar
‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de
impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades
elementares” (LEVI, 1947, p. 8). De que necessidade elementar se trata no exercício
que Levi encontra na escrita?
Em seu livro, Macêdo propõe uma leitura da obra de Levi que parta do caráter
de inassimilável que a experiência concentracionária parece ter assumido para o autor,
exigindo dele trabalho incessante de dar contorno ao que teria vivido no Campo. A
autora argumenta que a escrita parece funcionar para Levi não a serviço da tarefa
impossível de explicar ou entender o ocorrido, mas como um modo de “circunscrever o
que aconteceu, para que isso não se alastrasse por todos os interstícios da vida,
corroendo-a” (MACÊDO, 2014, p. 355). Partindo destas indicações, cabe a pergunta:
teria a obra de Primo Levi a capacidade de nos ensinar a respeito da lida e trato com o
real traumático daqueles que não estiveram submetidos à nefasta experiência do
Campo?
Ao longo de sua narrativa em “É isto um homem?”, Levi confronta o leitor com
uma sucessão de acontecimentos desprovidos de qualquer sentido, onde a brutalidade
arbitrária da máquina concentracionária toma o lugar de qualquer mediação simbólica.
Em suma, Levi apresenta uma série de situações onde o “sem porquê” - que Macêdo
chega a definir como sendo a “fórmula do trauma” - prevalece, em sua proximidade do
real enquanto aquilo que não se assimila, que resiste ao sentido.
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Ao chegar ao Campo, Levi perde seu nome e tatuam-se números em seu braço.
A partir de então, ele será referido como uma sequência de números enunciados numa
língua estranha - uma série de sons desprovidos de qualquer significado. Levi parece
estar assim submetido a uma realidade social onde a ausência de sentido se soma à
violência gratuita da máquina nazista. A morte está, conforme descreve em um dos seus
poemas, “por um sim ou por um não” (LEVI, 1947, p. 9), na escolha casual entre duas
direções arbitrárias a se tomar - questão que também se tornou assunto de um de seus
poemas, no qual retrata uma situação de chegada dos prisioneiros ao Campo, onde
deveriam ingressar por duas entradas indistintas: uma que levará para o interior do
Campo e a outra direto para a câmara de gás.
Neste mesmo livro, Levi pontua o texto onde narra seu percurso pelo Campo:
“qualquer suposição é arbitrária e carece de todo fundamento” (LEVI, 1947, p. 47) e,
em outro momento, “há muito tempo que parei de tentar compreender” (LEVI, 1947, p.
67). O Campo parece mesmo ser avesso a qualquer tentativa de elaboração pela via do
sentido e como estratégia para lidar com isto que resiste à linguagem e que resta sem
tratamento Levi parece ter desenvolvido uma estética capaz de se conformar a tais
propriedades - o que Macêdo nomeia de estética dos fragmentos. O próprio Levi chega
a mencionar o “caráter fragmentário” de sua escrita no prefácio de seu primeiro livro, ao
indicar que os capítulos do mesmo foram organizados “não por sucessão lógica, mas
por ordem de urgência” (LEVI, 1947, p. 8). É desta maneira, em fragmentos, abdicando
da tentativa de dar conta da totalidade do que foi sua experiência, que Levi obtém
sucesso na tarefa de tornar “legível não alguma pretensa verdade universal dos Campos,
e sim sua própria lacuna” (MACÊDO, 2014, p. 113).
Em sua abordagem da obra de Levi, Lucíola Macêdo propõe a tese de que ao
longo dos mais de quarenta anos de trabalho o escritor teria sido capaz de “nomear o
que não tem nome” (MACÊDO, 2014, p. 143), encontrando assim “um lugar para isso
que antes se apresentava como indizível”’ (MACÊDO, 2014, p. 143): a “zona cinzenta”.
Significante que permeou toda sua obra, a palavra “cinzento” - bem como seus
derivados - teria inscrito na obra de Levi uma temporalidade, até ser elevada de figura
de linguagem a conceito, tornando-se uma noção central e original no contexto da sua
obra (MACÊDO, 2014, p. 148). Assim, poderíamos dizer que, em seu ato de criação,
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Levi teria proporcionado certo tratamento ao real traumático que o requisitou


incessantemente ao longo dos anos através de uma produção muito particular - a de um
“envoltório significante” - em torno de um vazio, contornando-o e velando-o mas, ainda
assim, demarcando-o (MACÊDO, 2014, p. 168).
Vemos, deste modo, em que medida a obra de Levi é capaz de nos transmitir
algo do trabalho do autor no esforço de se haver com o real e, principalmente, algo do
que restou deste ofício - a zona cinzenta -, trabalho este da ordem da invenção, possível
através do recurso à escrita, subsidiário à linguagem. Desta maneira, seria possível dizer
que esta abordagem da obra do escritor vale para além dos limites da sua subjetividade,
sendo ensinante para nós outros, que não necessariamente estivemos submetidos à
experiência concentracionária ou similar, mas que estamos também expostos aos efeitos
disruptivos da lida com o real. Ensina, principalmente, a respeito do trabalho de
construção de respostas singulares de como fazer com o real traumático que o encontro
falhado entre pulsão e seu objeto convoca.

Referências

FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria, 1893. In:______. Edição standard


brasileira (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 2.

______. A hereditariedade e a etiologia das neuroses, 1896. In:______. Edição


standard brasileira (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 3.

______. Carta 69, 1897. In:______. Edição standard brasileira (ESB). Rio de Janeiro:
Imago, 1996. v. 1.

______. Além do princípio do prazer, 1920. In: _____. Obras completas. São Paulo:
Companhia das letras, 2010. v. 14.

LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise, 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LEVI, Primo. É isto um homem?, 1947. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MACÊDO, Lucíola Freitas de. Primo Levi: a escrita do trauma. Rio de Janeiro:
Subversos, 2014.

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