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Terezinha Della Justina
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Maria Inês Pagliarini Cox
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Professora da UNEMAT, campus de SINOP. Email: (tekadellaj@gmail.com)
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Professora do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem na UFMT. Email:
(minescox@hotmail.com)
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Este estudo culminou com a dissertação “A fonética e a fonologia em livros didáticos do
ensino médio: posições discursivas em jogo”, defendida, em 2011, por Terezinha Della Justina,
junto ao MeEL/UFMT.
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Trata-se do projeto “Enunciados da linguística em enunciados sobre/do ensino de português:
batalhas de sentidos”, coordenado pela professora Dra. Maria Inês Pagliarini Cox.
eternidade, tornando-se muito resistentes e difíceis de serem abalados e
silenciados no campo discursivo em que circulam. O DG é um desses
discursos patriarcais: por séculos dominou sozinho, cruzando fronteiras,
tempos e espaços, modelando leituras de fenômenos linguísticos e sendo
repetido por especialistas das Letras, mas também pelo senso comum.
As raízes tentaculares do DG começaram a ser abaladas no início do
século XX, com a irrupção do DL. A partir de então, o DG teve de dividir com o
DL a competência e o direito de enunciar sobre a língua, cada um elegendo o
outro como seu adversário. Assim, no espaço que eles compartem, grassa a
interincompreensão5, já que os dois veem/leem os fatos da língua pelo seu viés
interpretativo, mal-entendendo o ponto de vista do outro.
O advento da sociolinguística, na década de 1960, sacudiu a idéia de
“erro” gramatical, que vingara sem rivalidade alguma por séculos e séculos,
tornando-se alvo de desconfiança e descrédito. Os ares renovadores da
sociolinguística, aos poucos, chegaram à seara do ensino de língua materna,
abrindo uma ruidosa polêmica com os espíritos reacionários que persistem na
crença de que a língua é homogênea e estática, fazendo o papel de guardiões
da boa norma contra seus corruptores. A despeito da resistência dos filiados à
posição gramatical, a concepção de língua plural foi incorporada aos
documentos oficiais contemporâneos (PCNEF/1997, PCNEM/1998,
PCNEM+/2002, OCEM/2006) que orientam o ensino de língua portuguesa e,
consequentemente, começou a ser incluída nos livros didáticos, uma vez que o
Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio – PNLEM, lançado em 2004
pelo MEC/SEB/FNDE, articula-se estreitamente com a proposta defendida por
tais documentos. Assim, entrar num arquivo formado por enunciados de livros
didáticos contemporâneos é, certamente, entrar num território de fricções entre
o DG e o DL.
Por DG, designamos o conjunto de enunciados que interpretam,
prescritivamente, a língua pelo viés do certo e do errado, recusando-se a ver
regularidade e gramaticalidade nos usos que não coincidem com a norma
padrão. Os principais veículos e suportes de difusão desse discurso são as
gramáticas normativas, os livros didáticos e os meios de comunicação de
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Empregamos os conceitos de interdiscurso e interincompreensão tal como Maingueneau (2005).
massa. Sua produtividade é, pois, garantida por sectários do purismo linguístico
que repelem os “erros” e os estrangeirismos como forças que arruínam o
português castiço.
Por DL, entendemos o conjunto de enunciados que vêm se constituindo
desde o limiar da chamada linguística moderna, pela abordagem descritiva e
explicativa da língua que chancela, com a sociolinguística, a leitura da variação
com um fenômeno inerente ao sistema. A língua passa a ser vista como um
conjunto de regras categóricas e variáveis e não apenas categóricas. Diante da
heterogeneidade, variação e mudança observadas nos usos linguísticos, o DL
não os interpreta como absolutamente certos ou errados, mas sim como
adequados ou inadequados relativamente aos contextos e registros. Tal
discurso propaga-se principalmente no espaço das universidades, entre
linguistas, encontrando, contudo, resistência para se expandir no domínio do
senso comum e da mídia e mesmo do ensino de língua materna.
Considerada essa conjuntura de mudança de paradigma no escopo do
ensino de língua materna, os autores de livros de língua portuguesa que
almejem sua inclusão no “Catálogo do PNLEM” não podem mais ignorar os
critérios sinalizados pelo edital de convocação para inscrição no processo de
avaliação e seleção de obras didáticas, em estreita sintonia com o DL. Afinal, a
Ficha de Avaliação anexada ao Catálogo do PNLEM/2009, publicado em 2008,
traz a questão “A obra apresenta problemas conceituais graves quanto aos
conteúdos linguísticos?” (BRASIL, 2008, questão f, item 3.1, p.131). Essa
pergunta nos parece tornar inadiável o diálogo com os conhecimentos
produzidos pelos vários ramos da linguística. Por exemplo, hoje seria um
equívoco desconhecer que a fonética e a fonologia são ciências distintas com
objetos próprios, assim como seria um equívoco desconhecer que elas são
ciências descritivas e explicativas e não normativas. Destarte, considerando que
a ortoépia e a prosódia constituem um capítulo privilegiado da gramática
normativa, como ficam no escopo do livro didático atual? Elas estão aí
presentes? Se sim, como são abordadas? Os chamados erros de ortoépia e
prosódia são ressignificados como casos de variação, à luz da interpretação do
português como uma língua plural, concepção abonada pelo seguinte critério de
eliminação do PNLEM: “Será eliminado o livro didático que não respeite as
diversidades linguísticas e culturais.” (BRASIL, 2007, p.39)? Movidas pelo
desejo de buscar respostas para tais questionamentos, debruçamo-nos sobre
as seções e/ou capítulos destinados à fonética e à fonologia em sete livros
didáticos do ensino médio, os seis primeiros constantes do Catálogo do
PNLEM/2009, conforme lista a seguir:
OBRAS E AUTORES
José de Nicola
São Paulo: Scipione, 2005/2008
PORTUGUÊS: LÍNGUA, LITERATURA E PRODUÇÃO TEXTUAL (L7)
Analisando tais obras, observamos que elas, com exceção de L7, não
fazem, nas seções e/ou capítulos focalizados, qualquer referência às variações
do português no plano sonoro, silenciando completamente os conhecimentos
produzidos sobre esse tema pela fonética, fonologia, sociolinguística,
dialetologia, dentre outras disciplinas da macrolinguística. Nenhum outro tópico
gramatical seria tão propício à abordagem das variações linguísticas do
português quanto a fonética e a fonologia, já que, nesse plano, as variações são
abundantes e reconhecíveis até mesmo por quem não é especialista no assunto.
Quando ouvimos falantes comuns de português conversando sobre as
diferenças dialetais da língua que compartilham, é principalmente às variações
fonéticas que se referem – a diferença articulatória do português falado pelo
outro é o que é primeiro percebido pelos nossos ouvidos. Ademais, a Ficha 3 do
PNLEM/2009 inclui as seguintes questões, sinalizando a concepção de língua a
presidir o tratamento destinado aos conhecimentos linguísticos nos livros
didáticos do ensino médio:
antes das outras vogais. Não lhes interessa aí tratar da variação fonética do
português em si, mas sim explorar o conceito de fonema como um conjunto de
sons que vale um único fonema, na esteira do conceito de valor saussureano,
rememorado sob a forma de uma incisa discursiva6. Quer dizer, no plano
fonológico, um fonema não necessariamente representa um único fone ouvido no
plano fonético, ele pode representar um conjunto de fones – a relação entre
fonemas e fones não é de um para um. Embora o caso da africação tenha sido
usado apenas para ilustrar a aplicação dos princípios de análise fonológica, ele
deixa entrever a postura descritiva dos enunciadores diante do fenômeno
variação, interpretado por eles como um fenômeno natural do português.
Ademais, a postura descritiva ante a variação linguística, em L7, contrasta
gritantemente com a postura normativa adotada nos demais livros didáticos que
interpretam a variação de pronúncia como “erro”, “desvio”, exclusivamente nas
seções de ortoépia e prosódia, numa evidente submissão ao DG:
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As incisas discursivas são formas não marcadas de heterogeneidade discursiva e consistem
em sequências ou fragmentos de sequências discursivas oriundos de outros discursos que, ao
serem interiorizados, não deixam marcas de sua procedência externa, nem de seu processo de
apropriação” (INDURSKY, 1992, p. 345).
projétil ou projetil
réptil ou reptil
sóror ou soror
xérox ou xerox
zângão ou zangão (L5, p. 203 e 204)
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Maingueneau (2005) recorreu aos conceitos de heterogeneidade constitutiva e
heterogeneidade mostrada propostos por Authier-Revuz (2004, p. 37) com base no conceito de
dialogismo de Bakhtin (1988), que pressupõe, como lei constitutiva do discurso, que “o lugar do
‘outro discurso’ não é ao lado, mas no discurso”. A heterogeneidade mostrada pode ser
marcada, percebida na superfície linguística de um texto, ou não-marcada, apresentada de
forma velada, diluída no “novo” texto.
“ou” entre as variantes de uma palavra e não a conjunção aditiva “e”, remetem-
nos para o DG e para a concepção de língua como sendo una e invariável.
Essa derrapagem em direção ao DG continua a ocorrer no enunciado
imediatamente após as perguntas – “Para ajudar a esclarecer essas dúvidas, a
fonologia desenvolve estudos sobre a pronúncia adequada das palavras,
segundo a variedade padrão da língua portuguesa”. A fonologia, no sentido que
lhe dá o DL, não se incumbe do estudo da “pronúncia adequada das palavras,
segundo a variedade padrão”, muito menos chancela a postura normativa
embutida na “ortoépia” e na “prosódia”; é sua função descrever-explicar o que
ocorre no plano fonético-fonológico em todas as variedades de uma língua e
não normatizar-corrigir a suposta pronúncia inadequada pelo metro de uma
suposta pronúncia padrão. Apenas em relação ao caleidoscópio de variedades
linguísticas de uma língua é que faz sentido usar o termo
“adequado/inadequado”.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Entrevista com Luiz Carlos Cagliari. Especial – Acordo
Ortográfico. http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/especial_ao/04_012.php
INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e outras vozes. 1992. Tese (Doutorado
em Linguística). Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas,
1992.