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De manhã: o café. Um café forte e amargo que preenche as xícaras que estão na mesa.

Xícaras que
estão com a tinta descascada e cheia de trincos. Há muito tempo elas são utilizadas todas as manhãs.
Porém, as xícaras não são importantes nessa manhã. Manhã em que eu encaro o homem a minha frente
por um tempo indeterminável. Seu olhar não se desvia um segundo sequer do jornal sobre a mesa e a
notícia estampada na manchete não é nada interessante. O homem a minha frente aparenta ser muito
mais velho do que dizem os números. O que o fez envelhecer tão precocemente é apenas suposição.
Não costumo fazer suposições. O homem a minha frente trabalha num importante escritório e possui
um alto cargo. Ele está sempre impecável no seu terno caro, pois é fundamental que alguém de tanto
requinte porte-se assim. Este homem possui problemas no coração e dores nas costas, além de uma
tosse interminável. O médico o avisou que seria melhor parar de fumar, porém os maços de cigarro
continuam guardados na segunda gaveta da cômoda do quarto e os remédios na terceira porta do
armário na cozinha. Ele dorme do lado direito da cama. Este homem assiste ao telejornal todos os dias
logo após tomar banho. Que demoram um pouco, pois a água quente melhora as dores nas costas. O
homem nunca se atrasa para o jantar. E, de alguma forma, é esperado que eu não me atrase também. A
cadeira da ponta da mesa está mais desgastada do que as outras. O homem a minha frente é meu
marido. E eu não sei se o conheço. Casamos há 30 anos. Tivemos somente um filho, que já há um tempo
criou independência. Este homem é meu marido. E ele sempre bebe uma xícara cheia de café forte e
amargo antes de sair de casa. Não consigo lembrar-me de algum dia em que isso não aconteceu. Eu
ainda estou encarando-o e ele ainda lê aquela notícia. E, apesar de não ser de costume que eu faça
suposições, eu tento imaginar o que este homem está pensando. Seria algo referente àquela notícia ou
sua mente estaria em algum problema do escritório? E eu não consigo chegar a ideia alguma. Eu não
costumo fazer suposições, pois elas não são necessárias na minha vida. Não consigo criar hipóteses do
por que meu marido não chegou para o jantar porque ele sempre chega. Não preciso imaginar como ele
está se sentindo porque já sei todos os sintomas de suas enfermidades. Não é necessário provar deste
café para que eu saiba que está forte e amargo. Porém, minha cabeça ainda procura por algumas
respostas, como se, de repente, quisesse conhecer o tal homem. Pergunto-me o que o homem está
sentindo e logo a resposta vem: dor nas costas. Porém não, não é isso que quero saber. Quero saber
seus sentimentos, suas emoções, mas não consigo supor nada. Não obstante, continuo encarando-o. Eu
vejo um homem a minha frente e é só isso. Um homem que está acabando de tomar sua xícara de café,
prestes a ir para o escritório em que trabalha. Ele dá o último gole, fecha o jornal calmamente e levanta-
se. Nesse momento tenho um breve susto. Ele não notou.
De manhã: o café. A água já está quase fervendo quando começo a colocar o pó de café no coador. São
cinco colheres. Sei disso há um tempo que não posso dimensionar. E então ponho uma, duas, três. Parei
por um segundo. E não cheguei às cinco colheres. A água transpassou o coador como todos os outros
dias. Nada parecia diferente, porém havia um peso estranho em minha cabeça. Como se, de repente,
tivesse feito uma grande descoberta e a mantivesse em segredo. O homem logo sentou-se em sua
cadeira desgastada e abriu o jornal. Coloquei o café em sua xícara, enchendo-a. E tudo estava igual,
exceto o reboliço dentro do meu peito incessante. Eu encaro o homem. A notícia da manchete é ainda
mais desinteressante. Dessa vez, é notável que ele reconhece isso. E então, o homem segura a xícara e
bebe um gole do café. Nesse momento o planeta poderia ter explodido. Toda a ordem do universo
poderia ter desmoronado. O homem encara o jornal. Seu olhar é distante. Algo está errado. Algo
definitivamente está errado. E então ele vira o rosto para a minha direção, meu coração bate rápido
demais, e ele não diz nada. Somente me observa. E isso me incomoda, me inquieta. Não consigo deixar
de encará-lo também. Ele abre a boca para dizer algo, mas fecha logo em seguida. Eu suponho que ele
fosse questionar o porquê do café estar tão fraco. Mas não quero supor nada além de sentimentos.
Acredito que todos os sentimentos são suposições. Suponho agora que este homem esteja bravo ou, no
mínimo, incomodado. O homem, que é meu marido, continua a me encarar. E então eu percebo que
nós dois falhamos e esse momento é a conseqüência. E a consequência foi perceber que somos
humanos. Fui humana ao falhar na quantidade de pó de café necessária para que o tempo não pare e o
mundo continue a girar em seu curso natural. O homem foi humano ao parar de ler a notícia do jornal
quando percebeu que o café não possuía o mesmo gosto e quis, de alguma forma, contestar. Ele
poderia ter feito qualquer comentário banal ou talvez uma longa reclamação, porém, antes disso, ele
notou minha presença e notou o quão estranho seria trocar poucas ou muitas palavras com uma
desconhecida. E já há um tempo ele está me encarando, porque é somente isso que somos capazes de
fazer neste momento. Não há espaço para uma discussão entre duas pessoas que não se conhecem e,
ao mesmo tempo, dormem na mesma cama. E agora, suponho que ele esteja vendo o quão humana eu
sou e não sabia que era. Suponho (e espero) que esteja notando o quão humano ele é e não sabe. Eu
não conheço este homem a minha frente. Conheço uma figura que toma uma xícara de café forte e
amargo todos os dias de manhã. O homem que está a minha frente também não me conhece. Conhece
uma figura que todos os dias prepara um café forte e amargo. Mas nenhuma dessas figuras está aqui
hoje. O café não está forte. Essas figuras deixaram de existir. Suponho que agora somos somente um
homem e uma mulher que não se conhecem e não conhecem mais nada. E estamos nos encarando
como dois estranhos. Não há mais como ele terminar de ler o jornal e sair para o trabalho porque
aquela figura não existe mais. E não são mais necessárias suposições porque tudo está muito claro. Está
claro para mim e está claro para este homem. Eu fiz uma grande descoberta hoje e não a guardei em
segredo. Nós dois estamos marcados por ela e não há como voltar. Somos dois estranhos. Eu deveria
dizer alguma coisa? Há alguma coisa a ser dita? Não. Depois do que aconteceu, as palavras se tornaram
pequenas demais. E aquele momento em que nos encaramos pode ter durado poucos minutos, porém
foi infinito. O mundo não pode seguir seu curso natural porque ele se tornou imprevisível. E qualquer
coisa poderia acontecer agora ou daqui a pouco ou daqui a 10 anos. O café esfriou na xícara, o jornal
não terminou de ser lido e ele saiu atrasado para o trabalho. Pela primeira vez pensei na possibilidade
daquele homem não voltar para o jantar. Porém havia tantas possibilidades para aquele homem e para
mim que já não valia a pena se desesperar. Somos dois estranhos a nós mesmos e ao mundo. E não há
como voltar atrás.

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