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Resumo
A palavra “técnica” tem origem no grego techné cuja tradução é arte. No ser humano,
distinguindo-se dos animais, a técnica surge da sua relação com o meio e caracteriza-se por ser
surgimento da técnica da linguagem. Como é que os pensadores e cientistas sociais têm pensado a
alguns autores optam por fazer um exorcismo da técnica como se ela fosse desumana. E finalmente,
numa terceira óptica, o mundo da técnica e do humano entram numa espécie de fusão por vezes
do romantismo ligadas aos poetas e aos revoltados contra a técnica desumana, que nos aparecem
como aparentemente opostas, são, de acordo com esta terceira visão, duas faces da mesma moeda
que tornaram as ligações técnicas quase invisíveis e por isso mais eficazes e alienantes.
Abstract
The word "technique" is based on the Greek techné whose translation was art. In humans,
1
distinguishing themselves from the animals, the technique is a relationship with the environment
and it is characterized as conscious, reflexive and inventive (Wikipedia, 2008). In industrial society,
happens an intensification of exteriorization started by prehistoric man with the use of flint and the
emergence of the technique of language. How did the thinkers and social scientists have thought the
technique? First, looking at it as a mere instrument of progress. Second, some authors choose to do
somekind of exorcism of the technique as it were inhumane. And finally, third view argues that the
world of the technical and the human is a kind of fusion sometimes contradictory and difficult to
understand. At this stage of human history, the free links, underlined by the modern and rational
technological determinism and the links related to the romantic poets against inhumane technique,
which appear as seemingly opposite, are, in this third approach, two sides of the same coin that
made the connections techniques almost invisible and therefore more effective and alienating.
Introdução
A palavra ''técnica'' tem origem no grego techné cuja tradução é arte. A técnica, portanto,
confundia-se com a arte tendo sido separada desta ao longo dos tempos. A técnica consiste
actualmente nos procedimentos ou no conjunto de procedimentos que têm como fim atingir um
resultado específico na área da Ciência, da Tecnologia, das Artes ou em outra actividade humana tal
como no trabalho. A técnica não é específica da espécie humana, pois também se manifesta, com
formas muito rudimentares, na actividade de todo ser vivo como um factor essencial para a sua
sobrevivência. No ser humano, contudo, a técnica surge da sua relação com o meio e caracteriza-se
por ser consciente, reflexiva e inventiva (Wikipedia, 2008). Na sociedade industrial, acontece uma
mão, começa a desaparecer sendo substituído por agrupamentos de conjuntos técnicos e humanos
2
com objectos cada vez mais concretos, mais atravessados pela intencionalidade que antes era um
privilégio quase total do animal homem. Este deixa de ser o portador intencional da ferramenta para
Fonte: Mähring e outros (2004) [inspirado num quadro destes autores com profundas modificações].
De que forma os pensadores e cientistas sociais têm pensado a técnica? Em primeiro lugar,
olhando-a como um factor determinante e refugiando-se em fronteiras bem definidas entre social e
não social, vendo a técnica de uma foma realista como um mero instrumento de progresso. Em
segundo, alguns autores das ciências sociais e da filosofia optam por fazer um exorcismo da técnica
como se ela fosse, nalguns casos, algo de maligno e desumano que nos pode mesmo destruir, ou,
numa versão mais elaborada, como sendo atravessada pelo social, como um constructo das
interacções humanas. E finalmente, numa terceira óptica, existem os que defendem que estamos
3
perante um fenómeno complexo, que cresceu exponencialmente nas últimas décadas, em que se
estabelece entre o mundo da técnica e o humano uma espécie de fusão por vezes contraditória e
difícil de compreender. Esta perspectiva sublinha o peso cada vez maior das ligações de carácter
atractivo e irracional das novas técnicas em detrimento das relações contratuais do tipo racional e
racionalizadora das novas técnicas digitais, estes autores argumentam que não estamos perante uma
valorização do subjectivo no seu sentido emancipador e humanista, mas sim perante uma "'fusão'
das ligações racionais e das ligações atractivas, que constitui um elemento essencial da ligação
técnica" na actualidade (Miranda, 2002: 274). Na verdade, abandonam-se cada vez mais as relações
concretas do face-a-face, tanto na vida pessoal como no trabalho, em que a relação política é um
elemento fulcral, para se assistir a uma "profusão de metáforas como as de interactividade, conexão,
conectividade, on-line, links, etc.". Estas novas ligações constituem o melhor sinal da emergência
de uma euforia da ligação mediada pela técnica com aspectos ameaçadores, ao mesmo tempo que
criam condições para novas possibilidades de interrogação e de criação, abrindo assim as portas a
ligações humanas mais belas, livres e justas (Miranda, 2002: 277).Vejamos em detalhe cada uma
humano/não humano.
O determinismo tecnológico
Encontramos uma narrativa mítica grega que se assemelha à primeira solução, a uma ambição
moderna: a história de Prometeu – Deus do fogo. Prometeu revoltou-se contra o Deus dos Deuses e
roubou o fogo do céu para dar vida ao homem de barro por ele esculpido. Zeus, evidentemente, não
gostou deste gesto de rebeldia e prendeu-o no Cáucaso onde um abutre lhe devorava o fígado que se
refazia indefinidamente. Por fim, o herói Hércules matou o abutre e libertou-o. Celebra-se a vontade
4
Esta vontade mítica atravessa a forma como se encara a técnica tanto na Filosofia, como na
Sociologia, como no discurso dos cientistas e políticos.. Nas palavras de Hermínio Martins, "a
tradição Prometeica liga o domínio técnico da natureza a fins humanos e sobretudo ao bem humano,
à emancipação da espécie inteira e, em particular, das «classes mais numerosas e pobres»" (1996:
200). De facto, a primeira resposta, denominada de determinisno tecnológico, afirma que, de uma
forma geral, a técnica, em si, é neutral e instrumental - uma visão naturalizada defendida por
engenheiros, cientistas, políticos, divulgadores científicos – exemplo, Carl Sagan – e por alguns
filósofos e sociólogos da técnica. Defendem que a técnica só pode ser pensada em termos técnicos,
ou, como se costuma fazer nas escolas universitárias de engenharia como uma questão de
tecnologias. Valoriza-se a técnica (vista no seu significado material) como um logos neutral. Nesta
perspectiva, as novas formas da técnica inserem-se numa grande meta narrativa moderna que as
do sistema" (Lyotard, s/data). Estas novas tecnologias podem mesmo produzir uma espécie de
diferença entre aqui-agora e ali-então, que resulta da extensão das tele-relações, no esquecimento
concluiremos que as ameaças que pesam por causa desta situação, a nossa, sobre a escrita, sobre o
amor, sobre a singularidade, são, na sua natureza profunda, parentes das que foram descritas por
Orwell" (Lyotard, 1993: 114). Desta forma, quando são colocados em causa – nomeadamente pela
história – reagem com um "terrorismo doce" baseado na performance, de tal forma que, "quando
surgem as «razões técnicas», deparamos com um campo que está vedado à discussão" (Cordeiro,
1994: 68). Na verdade, a visão tradicional de encarar a técnica apresenta algumas características
conhecimentos práticos que resulta da ciência: a tecnociência. Desta forma, a tecnologia, como uma
mera aplicação, não seria atravessada por valores. Numa segunda característica, a tecnologia seria
5
uma simples ferramenta ou artefacto para desempenhar um determinado conjunto de tarefas. Por
essa razão, os artefactos técnicos podem ser mal ou bem usados mas isso não releva da própria
natureza do objecto técnico. Esta posição remete para uma lógica realista em que os factores sociais
técnicas são "uma tarefa técnico-científica para especialistas, na qual os factores sociais
(percepções, crenças, interesses, poder, influências culturais e contextuais) envolvidos são tidos
como deformadores da solução ideal e, portanto, devem ser minimizados ou excluídos" (Neto e
outros, 2002: 59-60). Finalmente, em terceiro lugar, a evolução da tecnologia é considerada como
autónoma e imparável numa lógica de uma cada vez maior eficácia. "Há um processo teleológico
que, partindo da energia animal, passa pelos motores a vapor e acaba nos reactores nucleares"
(Garcia e outros, 1996: 132); e, ao nível dos artefactos técnicos há um processo semelhante que,
partindo da pedra lascada da pré-história, desemboca nos computadores modernos da era digital.
Numa palavra, esta posição tradicional apresenta muitas afinidades com o determinismo técnico, ou
seja, o progresso tecnológico é o factor principal de transformação (Garcia e outros, 1996: 129-
136).
O ponto de vista construtivista social tende a acentuar a noção de construção social, seja no
explicações em termos de lógica interna. Também o social e o económico são, como a tecnologia,
económicos e técnicos. Não existe nenhum nível que, em última instância, dirija a mudança
6
constituir ou não conflitos ou desacordos abertos" (Pareja e Cazorla, 1998: 8). Segundo alguns
autores marxistas, a tese de Karl Marx iria, inicialmente, no sentido do determinismo tecnológico
sublinhando esta sua afirmação: “adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu
modo de produção, e mudando o seu modo de produção, a maneira de ganhar a sua vida, eles
mudam todas as suas relações sociais. O moinho baseado na força humana dará origem à sociedade
com um soberano; o moinho a vapor, à sociedade com o capitalista industrial” (Marx, 1965: 79). No
entanto, não se pode afirmar que Marx seja tão determinista pois, mais à frente, diz: “o moinho
baseado na força humana supõe uma visão do trabalho diferente da do industrial” (1965: 99).
Segundo Bragança de Miranda, Karl Marx, em alguns dos seus textos, já acentua o carácter
complexo desta sociedade embora de uma forma ambivalente como se viu atrás. Segundo Bragança
de Miranda, « a teoria marxista da técnica pressupunha que, à medida que o trabalho era substituído
pelas máquinas, caberia aos humanos a função de «controlo» dos processos. O desenvolvimento dos
computadores veio mostrar que mesmo as funções de controlo podem ser quase integralmente
automatizadas. (Miranda, 2008: 11) Marx, devido ao contexto histórico da técnica centrada na era
da energia a vapor, não pode ter em conta o carácter híbrido das técnicas digitais recentes
Muitas das reflexões da sociologia da técnica inspiram-se na, relativamente recente, filosofia
da técnica. De facto, ao contrário da filosofia e da sociologia da ciência que se iniciou três séculos
atrás, a filosofia e a sociologia da técnica é muito mais jovem. Distinguem-se duas grandes
aplicação da ciência, sendo por isso essencialmente neutral. A segunda, com um forte pendor
humanista, efectua quer uma crítica cultural ao domínio tecnológico - Lewis Mumford (1998) e
Jacques Ellul (1990), quer uma aproximação fenomenológica à técnica – Heidegger (1966),
Marcuse e Habermas (1973). Esta abordagem de Heidegger e Habermas ainda pensa a técnica como
algo exterior ao homem. A leitura sociológica de Habermas assenta também nesse dualismo
7
que nas sociedades capitalistas avançadas há uma tendência da dimensão técnica para se sobrepor à
passa pela ciência e pela técnica como portadoras de uma nova tecnologia. O desenvolvimento
tecnológico originou um novo tipo de dominação social que é legitimado pela técnica. Partindo da
tradição da Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Marcuse) Habermas fornece pistas para uma
crítica da absolutização da razão técnica na nossa sociedade (1973). Também será interessante ver o
trabalho desenvolvido na filosofia da técnica (acentuando a sua autonomia) por autores alemães tais
como Ernst Kapp (finais do século XIX), Heinrich Beck, Arnold Gehlen e Alois Nedoluha (século
XX)1.
Por outro lado, os estudos sociais sobre a técnica começaram no âmbito da sociologia do
importância dos artefactos, das mediações técnicas, das inscrições, o que permitiu uma maior
articulação com um outro domínio – os estudos sociais sobre a técnica. Na medida em que se
começou por abrir a caixa negra da ciência e se descobriu o seu carácter de mediação técnica,
os seus objectos não eram nem apenas técnicos, nem apenas sociais.
É possível, contudo, distinguir dois grandes grupos nos estudos de Ciência, Tecnologia e
Sociedade: a visão construtivista social numa versão mais forte: os programas SCOT – Social
construtivismo fraco, uma visão que valoriza a componente cultural específica da tecnologia: a
abordagem culturalista norte-americana e alguns autores que estudam a relação entre tecnociência e
a sua compreensão pública. Vejamos detalhadamente o que distingue estes dois enfoques. A
corrente construtivista social forte encara o artefacto técnico como significando problemas e
soluções que diferentes grupos tentam impor uns aos outros. Por outro lado, desenvolve-se um
construtivismo social fraco – a corrente culturalista. Como primeiro exemplo, temos a escola
8
teórico de construção da tecnologia, deve antes centrar-se nas formas de acção que favorecem uma
maior democratização dos projectos tecnológicos (Winner, 2003: 88; 1991). Um outro defensor
duma perspectiva culturalista da tecnologia tem sido o sociólogo inglês Brian Wynne. A sua
abordagem, com um carácter reflexivo, sublinha a importância da percepção pública dos riscos
social implicaria a exposição, investigação e debate sistemático dos modelos sociais implícitos e
dos pressupostos que estruturam as análises «factuais» da tecnologia" (Pareja e Cazorla, 1998: 11).
Nos dois casos, os autores pretendem ultrapassar o sócio-centrismo anterior valorizando o aspecto
cultural que atravessa o artefacto técnico ou a construção dos factos tecnocientíficos. Interessam-se,
acima de tudo, pelos efeitos práticos envolvendo assim a investigação numa lógica pragmática. No
entanto, ao produzirem uma reflexão pouco aprofundada sobre o carácter cultural da tecnologia
Não negando a existência de uma assimetria que torna dominante um discurso baseado na
neutralidade social da técnica, a solução, para um terceiro grupo de autores, passa antes por
têm, a partir dos anos 70, tentado sair desta lógica dicotómica. Entre muitos outros, salientámos: os
autores que trabalham no âmbito dos estudos em ciência, tecnologia e sociedade que deram origem
à Teoria do Actor-Rede (latour, 1998); a sociologia alemã na linha de Ulrich Beck (1997), que
estuda o risco nas sociedades modernas; o pós-estruturalismo francês – Foucault (1971) e Deleuze
(Deleuze e Guattari, 1972) – que tem afectado vários sociólogos britânicos tais como Scott Lash
(2002); o pós-feminismo de Donna Haraway (1994); algumas correntes dos "estudos culturais"
9
[Cultural Studies] anglo-saxónicos; paleoantropologia da técnica de André Leroi-Gourhan (1964 e
1965); o pensamento original de Gilbert Simondon sobre a individuação técnica (Simondon, 1989;
Neves, 2007).
Estes autores comungam da mesma preocupação que consiste em defender que o mundo não-
humano – sejam os artefactos técnicos, sejam os outros organismos biológicos, para lá do homem –
interage de uma forma complexa com o social. E estas interacções não podem ser reduzidas a
construções sociais. Isto é,“as acções humanas, certamente as mais relevantes no seu impacto
social, são hoje predominantemente co-acções de homens e máquinas (no sentido lato da palavra
Um dos exemplos mais fecundos tem sido a teoria do actor-rede, ao conseguir articular a
tradição fenomenológica das ciências sociais (com origem em Max Weber, Alfred Schütz e na
Etnometodologia2) com a tradição dos estudos sociais da ciência e tecnologia, de forma a resolver
alguns dos bloqueios do estudo dos fenómenos técnicos (Latour, 1998). De facto, esta perspectiva,
ao evitar a dicotomia entre o domínio do social e do técnico, permitiu que as características que
não-humanos através do estudo "das maneiras através das quais os actores criam e tentam impor uns
aos outros versões tanto do mundo natural como do social. Isto é, dirige-se para a análise dos
processos de «tradução» nos quais os actores (incluídas as colectividades) combatem para impor a
outros versões da realidade que definem (a) o número desses outros, tanto naturais como sociais,
que pode dizer-se que existem no mundo, (b) as suas características, (c) a natureza das suas inter-
relações, (d) os seus respectivos tamanhos e (e) as suas posições em relação ao actor que intenta
fazer a tradução. [...] Tanto a realidade natural como a estrutura social têm de ser contempladas
como o produto cambiante final de intentos mútuos de tradução" (Law, 1998: 68-69).
2
Também um dos clássicos da sociologia, Georg Simmel, apresenta uma reflexão muito próxima destes autores tal
como defende José Luís Garcia (2003).
1
conceitos como tradução e rede, esta teoria poderá ter uma conotação simplista. Tradução e rede
são conceitos que, embora pareçam ser facilmente descritos, têm por detrás um conjunto de opções
epistemológicas e teóricas bastante complexas. Por isso, alguns autores salientaram a necessidade
Surge então, numa segunda fase, a conversão ontológica desta corrente, o que foi designado
por pós-teoria actor-rede mostrando, ao mesmo tempo, as suas afinidades com o trabalho
desenvolvido por autores como Gilles Deleuze e Gilbert Simondon (Law e Hassard, 1999: Law,
2002). Segundo Pickering, esta mudança passou por sugerir categorias menos normativas e
antropocêntrica. Ora, estas duas sugestões tornam mais relevante o problema do papel da técnica
nas ligações humanas. Uma proposta é avançada por Bowers que sugere a defesa do princípio da
simetria entre humanos e não-humanos não como um a priori mas como um efeito, algo que se
torne visível após estudar contextos e situações concretas, cartografando as ligações técnicas. Um
outro grupo sugere actores-rede que ligam o técnico com o humano como uniões inconsistentes e
ambivalentes. Cussins parte da ideia de descrições que se baseiam numa metáfora da dança: os
actores-rede como coreografias ontológicas. Por outro lado, Singleton (1998) fala-nos de ontologias
inconsistentes e ambivalentes. Por fim, John Law (2002) utiliza a ideia de mosaicos em que
convivem similitudes e diferenças atravessadas pelo esforço de conexão (Domènech e Tirado, 1998:
42-43; . Mol, 1999). De facto, os trabalhos mais recentes da teoria do actor-rede sublinham a
O trabalho da bióloga Donna Haraway marcou profundamente os estudos sobre a técnica nos anos
90. De facto, o seu manifesto sobre o cyborg introduziu três temas radicalmente novos: "a
3
No entanto, o primeiro estudo de Latour – A vida no Laboratório – tinha paradoxalmente uma matriz ontológica mais
próxima da segunda fase da Teoria do actor-rede (Latour e Woolgar, 1986).
1
transgressão da fronteira entre humano e não humano; a quebra da distinção entre organismo
humano e máquina; o apagamento dos limites entre o físico e o não físico" (Santos, 2003: 154). Mas
simultaneamente aponta para uma nova visão da dominação exercida através da tecnociência
moderna. Ou seja, para além de uma dimensão que remete para um novo olhar epistémico, há
também efeitos políticos: "o problema não é só que a tecnociência está transformando o homem em
cyborg; além disso, a transformação obedece a um projecto inédito de dominação. Nesse sentido, o
Manifesto busca nos consciencializar — a nós, mas sobretudo às mulheres e às feministas — que
não basta reconhecer o que fizeram connosco: a nossa desconstrução e reprogramação; é preciso,
ainda, buscar em nossa nova condição uma saída não planeada, é preciso nos transformarmos em
cyborgs de oposição ao que Haraway intitula «informática da dominação»" (Santos, 2003: 155). Os
fundamentos que atravessam esta dominação assentes nas ciências da comunicação e nas biologias
modernas pretendem traduzir o mundo através da codificação, "uma linguagem comum na qual toda
símbolo militar para a sua teoria das operações" (Haraway, 1994: 262). Estamos desta forma
Concluindo, a terceira visão entende as ligações entre seres e humanos e objectos técnicos
com um longo e complexo processo. Nega a ideia de uma oposição entre a individuação técnica e a
individuação humana. Esse tem sido o leitmotiv do tipo de discurso humanista e tecnofóbico sobre a
técnica. Ora, esse discurso conduz, de acordo com esta perspectiva, a um pensamento bloqueado em
lógicas dicotómicas e, como tal, a um não-pensamento. De facto, não se trata de uma ruptura, o
fenómeno produzido pela cada vez maior peso da técnica que atravessa as ligações actuais. Trata-se
antes de algo que tende a crescer acelerando-se, invadindo cada vez mais o geo-gráfico, criando um
1
estudados por Leroi-Gourhan (1964 e 1965). Não se trata de uma luta dicotómica entre o humano e
o não-humano, como nos aparece na antropologia humanista de Rousseau, mas antes o acentuar de
uma tendência técnica que constitui o humano. O que há de preocupante na era actual não é
propriamente o domínio da técnica pois ela é uma característica intrínseca ao humano – ela cria o
humano – que acentua a diferença entre os primatas humanos e outros animais, mas antes a forma
como se inter-relacionam o ser biológico e a matéria orgânica organizada. O maior perigo passa por
uma aceleração desta tendência técnica, criando uma nova zoologia tecno-humana muito
semelhante ao que se passa nos agrupamentos totalitários de animais (ver o exemplo das colmeias)4.
Por isso, o problema segundo este ponto de vista não está na técnica em si mas na mobilização
técnica, como dizia Ernst Jünger, que se acelerou vertiginosamente nas últimas décadas (Cordeiro,
1994: 68-69). O perigo está numa cada vez maior individuação técnica que empobrece a própria
experiência do mundo, de ligação entre humano e não-humano, como muito bem previu Walter
Benjamim na primeira metade do século XX. Não se trata de acabar com a técnica em direcção a
uma pureza humana natural, mas antes de estar atento aos híbridos e às mega-etnias tecno-
geográficas desterritorializadas que nos rodeiam e, muitas vezes, nos capturam e quase escravizam.
E esta eficácia deve-se, por mais paradoxal que possa parecer, ao seu aspecto sedutor e viciante. Na
fase actual da história da humanidade, as ligações livres, modernas (racionais) sublinhadas pelo
revoltados contra a técnica desumana, que nos aparecem como aparentemente opostas, são, de
acordo com esta terceira visão alternativa, como duas faces da mesma moeda que tornaram as
ligações técnicas quase invisíveis e por isso mais eficazes. Tal como diz Bragança de Miranda, "as
ligações técnicas criam assim, um bloco alucinatório ultra-denso de ligações, ao mesmo tempo
4
Esta hipótese de um devir atrópodo da sociedade (esta assemelha-se cada vez mais a uma sociedade de insectos) "irá
permitir evocar as questões críticas dos modos de regulação induzidos pela transformação tecnológica e industrial dos
meios pré-individuais num contexto hiper-industrial e, correlativamente, pela exteriorização generalizada das funções
motrizes [automóvel], simbólicas e mentais nas próteses que encerram cada vez mais os corpos vivos" (Stiegler, 2004:
150). Trata-se de um conjunto de redes em que a individuação (cada vez mais pobre) se aproxima mais de processos
reactivos (próximos dos insectos) do que activos. De facto, "na medida em que o sistema cardino-calendário integrado
conduz os indivíduos a viverem cada vez mais em tempo real e no presente, a des-individuar-se perdendo as suas
memórias — tanto a do eu como a do nós a que ele pertence —, tudo se passa como se estes agentes «cognitivos», que
nós ainda somos, tendessem a tornar-se agentes «reactivos», isto é, puramente adaptativos — e não mais inventivos,
singulares, capazes de adoptar comportamentos excepcionais e nesse sentido imprevisíveis ou «improváveis», ou seja
radicalmente diacrónicos, em suma: activos" (Ibid.: 155).
1
absolutamente compulsivas e puramente livres e aleatórias" (Miranda, 2002: 272).
Importa por isso sublinhar o peso cada vez maior das ligações de carácter atractivo e
irracional, que nos parece paradoxal tendo em conta o discurso racionalizador tecnocrata, em
detrimento das relações contratuais do tipo racional e voluntário. Ao contrário do que pensam
muitos defensores da modernidade e da magia racionalizadora das novas técnicas digitais, não
estamos perante uma valorização do subjectivo no seu sentido emancipador e humanista, mas sim
perante uma "'fusão' das ligações racionais e das ligações atractivas, que constitui um elemento
essencial da ligação técnica" na actualidade (Miranda, 2002: 274). Na verdade, abandonam-se cada
vez mais as relações concretas do face-a-face, tanto na vida pessoal como no trabalho, em que a
relação política é um elemento fulcral, para se assistir .a uma "profusão de metáforas como as de
interactividade, conexão, conectividade, on-line, links, etc.". Estas novas ligações constituem, por
outro lado, o melhor sinal da emergência de uma euforia da ligação mediada pela técnica com
aspectos ameaçadores, ao mesmo tempo que criam condições para novas possibilidades de
interrogação e de criação, abrindo assim as portas à emergência de ligações humanas mais belas,
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