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Considerações iniciais
Este estudo é advindo de pesquisa conceitual e simbólica sobre a auto & mitopoiese na
educação de sensibilidade. O componente da pesquisa que será tratado provém da reflexão
sobre a convergência dos símbolos e imagens provenientes de mitohermenêutica da obra de
Remedios Varo (1908-1963).
Nosso referencial teórico relaciona-se com o paradigma (ou gradiente) holonômico
(PAULA-CARVALHO, 1998; FERREIRA SANTOS, 2004), da complexidade (MORIN,
2005) ou do imaginário (Durand, 2001), que busca, sinteticamente, a integração dos saberes,
ampliando seus limites em um projeto de reconstituição do sentido. Sabendo-se que esta
opção nos encaminha para uma organização complexa do conhecimento — que inclui a
imagem, sistematicamente reprimida na história ocidental (DURAND, 1982, p. 40-43), como
base estruturante dos conceitos e vinculadora de significados existenciais —, valemo-nos de
outras possibilidades lógicas, em que o terceiro é incluído (coexistência contraditorial,
Lupasco), sem sínteses ou exclusões a priori, numa ontologia não dualista. A educação de
sensibilidade é uma das expressões deste “gradiente”, cuja perspectiva dialógica e analógica
permite o fluxo de diferentes sensibilidades, possuindo em seu núcleo a criação.
Na educação de sensibilidade, as vivências na Cultura, propiciadas pela experimentação
de seus frutos nas Artes em diversas organizações espaço-temporais das culturas, possibilitam
a articulação do simbolismo e semantismo presente nas narrativas com as experiências da
pessoa (FERREIRA SANTOS, 2004). A apropriação dos conteúdos, numa dinâmica
autopoiética de “reimpressão” sensível auto-referente, através da “formação de coerências
internas”, transforma o separado, imóvel e distante em próprio, dinâmico e sentido.
A fenomenologia biológica na qual a educação de sensibilidade se enraiza é a
autopoiética, pertencente ao corpus teórico da Biologia do Conhecer de Maturana e Varela
(2002). Sinteticamente, na noção de autopoiese postula-se que o organismo é uma rede de
1
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, FEUSP.
2
produção de componentes fechada sobre si mesma, que, num processo circular, produz os
componentes responsáveis pela sua própria produção. A incorporação do novo dá-se com o
aprendizado, visto como criação, numa reelaboração auto-referente de significados, sendo a
realidade o compartilhamento de coerências internas dos organismos em redes consensuais. O
conhecimento, nestes termos, é a extensão do que é próprio.
A interpretação da obra de arte, neste contexto, é tida como criação, como apropriação
de uma dinâmica de sentidos, cujos “diversos universos” (multiversos) resultantes são
igualmente válidos e complementares.
Mitodologia
de acordo com certas chamadas misteriosas”, algo similar à paisagem semântica das
“correspondances” baudelairianas.
O amadurecimento do estilo de Varo comporta modificações das técnicas surrealistas
numa singular apropriação da “sobre-realidade”, que veremos a seguir. Tivemos acesso à
aproximadamente 260 produções da artista2, entre desenhos, colagens, pinturas e escultura
(Homo rodans), das quais selecionamos e organizamos parte de sua obra em simbólicas que
se repetiam. Com a identificação dos mitos relacionados, verificamos núcleos temáticos
(errância, criação e cura) para os quais os símbolos convergiam. Cabe salientar que tais
aproximações foram conduzidas pela imagem, pela disposição dos elementos na “narrativa
pictórica”.
Neste ensaio intentamos expôr as imagens e símbolos que nos conduziram para tais
temas insistentes, buscando seus entrelaçamentos e os significados surgidos ao longo da
jornada interpretativa. O significado do aparecimento conjugado dos termos será estudado
através das relações míticas de Athena, Hefaísto, Médusa e Asclépio, sendo que a integração
destes termos em profundidade compõe nossa proposta de educação de sensibilidade.
2
Pode ser visualizada em: http://pintura.aut.org/BU04?Autnum=14.914.
3
Aquele de muitas voltas, multiversátil.
4
2. Fonte de nascimentos
Na trilha da filha querida de Zeus — nascida no mesmo local em que o cordão
umbilical de seu pai fora deixado (DEVEREUX, 1991: p.123), às margens ou próximo ao
lago Triton (Athena Tritogéneia), cujas águas costumavam adicionar penas aos
mergulhadores4 — Remedios Varo empluma suas criaturas pictóricas.
Em “Criação das aves”, uma figura com a epiderme revestida de penas de coruja5
realiza seu trabalho valendo-se da luz estrelar. É esta ave estrigídea, cujo vocábulo “em grego
glaúks, etimologicamente, brilhante, cintilante, porque enxerga nas trevas; em latim noctua,
ave da noite” (BRANDÃO, 2005, p.32), que acompanha Athena, a de olhos glaucos. Nesta
mesma obra vê-se um par de ânforas trocando conteúdos, assim como aquelas que
transportavam azeite6 para premiação dos heróis nas festividades da deidade.
Na obra “Centro do Mundo”, um homem com um casaco de penas caído sobre os
ombros equilibra sua prenhez do universo. A gravidez masculina não parece incomum nos
mitos: depois que Zeus, com terrível dor de cabeça, pediu a Hefaísto que lhe abrisse a cabeça,
nasceu Palas-Athena, com o égide e lança nas mãos dançando a pírrica7, da fenda craniana do
agrega nuvens. Esta ocorrência foi devido o engolimento de Métis8 grávida, como precaução
de um suposto destronamento caso seu rebento fosse homem. Palas-Athena nasce duas vezes:
do ventre de sua mãe Métis e do crânio de seu pai Zeus (DEVEREUX, 1991, 107). Em Creta
a de olhos glaucos é deusa dos nascimentos (ibid., p. 143).
4
Algumas tradições, principalmente dentre os romanos, sugeriam que “os homens que mergulhavam nas águas
desse lago voltavam dele coberto de penas” (DEVEREUX, 1991: p.132).
5
Presentes em diversas obras da pintora: “Casa noturna”, “Mulher sedenta”, “O encontro”, “As aves”, etc.
6
Produto derivado da oliveira, árvore preferida de Palas-Athena.
7
Dança guerreira realizada com armas, origem dórica.
8
Deusa infinitamente sábia “[...] mais que todos os deuses” (CAMPBELL, 2004, p.129).
6
ocorrência do fluxo de imagens do subsolo das figurações, mas uma pintura reflexiva, que se
observa pintando.
Em “Mulher saindo do psicanalista”, uma pessoa com a face parcialmente coberta por
um véu possui no peitoral um duplo de sua face, entre o tecido plissado. Direciona, pelas
barbas, a cabeça de um homem decapitado, à um espelho de água circular. Mamadeira, linhas,
chave e outros objetos estão acomodados em um cesto pendente em seu braço. Na soleira
próxima à personagem velada vê-se uma placa: “Dr. F.J.A”, que segundo as notas da pintora
tratavam-se das iniciais de Freud, Jung e Adler (KAPLAN, 2001, p.155). Parece-nos que
nesta versão, Perseu não encheu seu embornal…
Propomos que a face ocultada nas obras de Varo relaciona-se ao mito de Médusa9,
górgona mortal (adj. gorgón relacionado a “apavorante, terrível”, BRANDÃO, 2004, p.
238) que possuía a cabeça tomada de serpentes, petrificando aquele que lhe fitasse. Médusa,
na obra de Varo, parece constituir-se no feminino encarcerado (p. ex. “Mingau estrelar”, “A
caçadora de astros”). Porém, a composição dos mitos de Athena e da górgona mortal nos
conduz para algo além da visão petrificante: o olhar auto-observante que no ex-phantós
mobiliza a integração do vilipendiado.
Palas-Athena incorporou a cabeça de Médusa em seu égide (peitoral, de couro de cabra
ou escudo mágico denominado “gorgoneum”) após a decapitação da górgona por Perseu. A
veia esquerda de Médusa continha a morte e a direita guardava a cura e a vida.
O sangue de Médusa possui a mesma natureza bifronte do vocábulo phármakon: “toda
substância que pode produzir alteração benéfica ou maléfica de um corpo (…) essa palavra
sintetiza vários sentidos opostos: remédio, veneno, magia (…) Platão afirma que a linguagem
é um phármakon” (CHAUÍ, 1994, p. 357).
Um episódio que se assemelha à natureza deste duplo, refere-se à uma cerimônia anual
ateniense, onde dois pharmakoí, um homem e uma mulher, eram utilizados para reversão da
deterioração coletiva, como expõe Vernant & Vidal-Naquet (1977, p.94-97). A escolha dos
pharmakós era efetuada dentre o que consideravam vil: seres degradados ou, inversamente,
pessoas do mais alto grau. Reside na figura dos pharmakoí a fecundidade, seus órgãos sexuais
eram alvo da população, por carregarem “virtude benéfica da fertilidade”.
Semelhante bipolaridade parece promover-se na profusão de enfaixamentos e laços
presentes nas obras de Varo (“Dor reumática II”, “Cigana e Arlequim”, “Rompendo o círculo
vicioso”). Paisagem imersa na mítica de Hefaísto, xamã dos nós que fora criado por Tétis
9
Dentre as possibilidades etimológicas: “a que governa” e da raiz med- (que originou o termo) “assumir com
autoridade as medidas apropriadas”, algumas vezes relacionada com medicina (Brandão, 2000, p.470).
7
nereida, recolhido após ter sido jogado do Olimpo (numa das versões) e cuja queda o deixou
coxo. Geralmente relaciona-se a mutilação de Hefaísto com o desenvolvimento de sua
destreza artística e xamanismo. O ferreiro possui a habilidade de atar e desatar (efeito
benéfico ou maléfico), sendo o enfaixamento corporal associado às práticas de cura: os nós
agem em defesa de forças maléficas ou para conservação de força (BRANDÃO, 2000, p.494).
Na obra “Rompendo o círculo vicioso” vê-se a generalização da função mágica do
“atar/desatar”: uma figura impressionante arrebenta uma corda que circunda seu corpo. Se a
origem do vício é a falta de medida (hybris), romper o círculo vicioso é aproximar-se da raiz
verbal de métis: moderação entre os extremos, sophrozyne.
Hefaísto e Athena, unidos por “núpcias intelectuais e artísticas” (BRANDÃO, 2000,
p.491), relacionam-se nos recintos que compõem a obra de Varo: oficinas de criação,
ambientes enclausurados, espaços de labuta dos artesãos (”Harmonia”, “A tecelã de Verona”,
“O relojoeiro”). No templo casto e silencioso, Parthenon, complementar ao espaço do labor
ruidoso do ferreiro Hefaísto, prossegue a criação.
10
Eixo do mundo, interliga a porção celestial à terrestre.
8
Athena e Médusa mas que fora modificada por pressões provenientes do patriarcalismo que se
expandiu em tal região.
Considerações finais
Referências Bibliográficas
——.Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo: Editora Landy,2002. 230
p.
CHAUÍ, M. Introdução à história da filosofia: dos pré socráticos a Aristóteles. São Paulo:
Brasiliense, 1994. 390 p.
DEVEREUX, G. Mulher e mito. Campinas, SP: Papirus, 1990. 328 p.
DURAND, G. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa: Editora Presença (?), 1982.
——. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 551 p.
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JAEGER. W. Paideia: a formação do homem grego. Lisboa: Editorial Aster, 1936. 1.343 p.
KAPLAN, J. Viajes inesperados. México: Ediciones Era, 2001. 272 p.
MATURANA, H. & VARELA, F. De máquinas e seres vivos: autopoiese — a organização
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MAFFESOLI, M. Sobre o nomadismo. Rio de Janeiro: Record, 2001. 205 p.
MORIN, E. O método I: A natureza da natureza. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005. 479 p.
PAULA-CARVALHO, J. Imaginário e mitodologia: hermenêutica dos símbolos e das
histórias de vida. Londrina: ed. UEL, 1998.
VERNANT, J.P & VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Duas
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WHITMONT, E. O retorno da deusa. São Paulo: Summus editorial, 1991. 287 p.
WILLER, C. Surrealismo e Escrita Automática. Aísthesis, Revista de Estética, São Paulo,
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