Vous êtes sur la page 1sur 190
Ivan Domingues . —OGRAU ZERO DO ' CONHECIMENTO 10 problema da fundamentacao das ciéncias humanas / COLECAO Be osorte vars ae 1, Para ler @ Fenomenologia do Espirito Paulo Meneses 2. A vereda trdgica do Grande Sertéo: Veredas Sénia M. V. Andrade 3, Escritos de Filosofia I Henrique C. de Lima Vaz Vv 4, Marx e a natureza em O Capital Rodrigo A. de P. Duarte 5. Marxismo e liberdade Luiz Bicca 6. Filosofia e violéncia Marcelo Perine . Cultura do ‘simulacro gina B, de 8. Escritos de Filosofia II Henrique C, de Lima Vaz 9, Filosofia do mundo os Filippo Selvaggi 10, O Conceito de religido em Hegel Marcelo F, de Aquino . 11. Filosofia e método no segundo Wittgenstein Werner Spaniol . 12, Filosofia Polttica 13,€O caminho poético de Parménides ») 14, A filosofia na crise da modernidade Manfredo A, Oliveira 15. Antropologia filosdfica 1 Henrique C, de Lima Vaz 16. Religido ¢ histéria em Kant Francisco Javier Herrero 17. Justiga de quem? Qual racionalidade? / Alasdair Macintyre 18. O grau zero do conhecimento Ivan Domingues 19. Maquiavel republicano Newton Bignotto 20. Moral e histéria em John Locke Edgard J. Jorge Filho RRR nena IVAN DOMINGUES O grau zero do conhecimento O problema da fundamentacao das ciéncias humanas Edicées Loyola QO pe eo? po Agradecimentos Gostaria de expressar todo meu reconhecimento a Hennio Morgan Birchal, pelo paciente trabalho de revisio do verndculo e das citacdes em grego e em latim. A Francisco Javier Herrero Botin, pela leitura cuidadosa dos originais. A Hugo Pereira do Amaral e a M. Jacques Garelli, aos quais devo o estimulo e a iniciativa de publicar o presente trabalho. A Luiz de Carvalho Bicalho, meu mestre, com quem aprendi 0 exercicio eo gosto da filosofia. PREFACIO A idéia deste livro, em sua origem uma tese de doutorado defendida junto a Sorbonne, surgiu da leitura de um autor que, como poucos, soube seduzir os espiritos de uma época: Michel Foucault, e de uma obra que, como nenhuma outra, soube despertar toda uma geracao de estudantes de filosofia e de outras tantas disciplinas’das ciéncias humanas: As Pala- : — vras ¢ as Coisas, Por certo, Foucault é mais um desses camaledes filoséficos com que os franceses de uns tempos para c4 resolveram brindar-nos, justificando a invectiva de Castoriadis que, referindo-se a Lévi-Strauss, diz que, enquan- to os xamas matam por fumigacio,’ antropélogos como ele matam por estruturalizacéo. Algo semelhante se passa com Foucault que, a exemplo de Baudrillard, mata por dissimulagao (cf. p. ex. A Arqueologia do Saber). Porém, mais do que uma dissimulagao_estéril, As Palavras e as Coisas, mesmo onde elas erram e nos confundem, tratam de uma maneira extre- mamente fértil os temas do homem e despertaram em nés um problema que nos consumiu dez anos de trabalho: a questéo da fundamentagao das ciéncias humanas. Foucault, no entanto, tergiversa e dissimula a epistemologia em arqueologia e a histéria em genealogia. A necessidade de encontrar um antidoto nos levou a Cassirer e Gusdorf: a Filosofia da llustrag@o e a Historia das Ciéncias Humanas, A necessidade de encontrar um remédio contra uma no¢ao de Episteme a um tempo rigida e abstrata nos levou a trabalhar a axiomética da economia, da lingiiistica, da politica e da histéria, no periodo que se estende do século XVII ao XIX, da qual a arqueologia foucauldiana, na pressa de generalizar, passa ao largo. Assim, o livro que nasceu com Foucault cedo se voltou contra ele. Com Foucault, trabalhamos o tema da fundamentagio das ciéncias huma- nas. Contra Foucault, que na sua arqueologia nos fala de uma tnica Episteme' — a Episteme moderna —, ignorando suas variantes e inflexdes e pondo lado a lado um Descartes e um Newton, um Espinosa e um Smith (mathesis universalis), procuramos mostrar: 1) em realidade, a Episteme moderna nao é uma s6, mas varias; 2) pelo menos trés estratégias discursivas diferentes em sua motivac3o e em sua indole conformaram as 1. Por Episteme entendemos, com a tradicéo filosdfica que nos vem dos gregos, 0 sistema de conhecimentos racionais fundado no !égos demonstrative, incluindo a ciéncia e a filosofia, e nao uma sorte de inconsciente do saber ou de a priori histérico, como em Foucault, o elénelas humanas no periodo que se estende do século XVII ao XIX: a) uma, de tipo “essencialista”, no século XVII (a Etica, de Espinosa, e a Gramatica, de Port-Royal); b) outra, de tipo “fenomenista”, no século XVIII (0 Espirito das Leis, de Montesquieu, e a Riqueza das Nagées, de A. Smith); ¢) outra enfim, nem essencialista nem fenomenista, mas “histérica”, no século XIX (O Capital, de Marx, e a Gramética Comparada, de Bopp). Por seu turno, quanto a axiomatica, procuramos mostrar que as ciéncias hu- manas nasceram segundo os canones do principio da fundamentacado suficiente do conhecimento? — seja de consisténcia légica; seja de sufi- ciéncia empirica — e, ainda, como, uma vez constituidas, foram elas levadas @ abandonar este principio, na passagem da modernidade a nossos dias, dando lugar ao paradoxo que é 0 fato de que elas se encontram hoje “fun- dadas”, mas perderam seu “fundamento” no movimento mesmo deg sua “fundagao” — e o sentido e o alcance desses deslocamentos e inflexGes. Demais, cuidamos de mostrar que as ciéncias humanas ao longo des- tes trés séculos se edificaram primeiro em torno da metafisica e do méto- do l6gico-metafisico (Port-Royal) e da matematica e do método metafisico- -matematico (Espinosa), no século XVII; em seguida, da fisica e do méto- do empirico-dedutivo (Montesquieu) ou mateméatico-experimental (Smith), no século XVII; enfim, da histéria e do método positivo-comparado (Bopp) ou dialético-hipotético-dedutivo (Marx), no século XIX. E isto com o ob- jetivo de ampliar os quadros da andlise epistemolégica tradicional, que privilegia o método, na direcdo de uma certa “arqueologia” como a de Foucault — a qual de um medo um tanto vago poderiamos chamar ainda de filosofia da ciéncia —, buscando dar conta de seu ponto de intersegio com a antropologia filosdfica — porque visamos ao homem —, com a teoria do conhecimento — porque visamos a sintaxe do saber e ao regime da verdade — e com a ontologia — porque visamos ao modo de ser que essas diferentes Epistemes permitem instalar: 0 século XVII nos falando de uma natureza humana co-substancial ao homem (Espinosa); 0 século XVIII reduzindo-a a estas “empiricidades” que sAo a riqueza e o homo oeconomicus (Smith) e o estado e o homo politicus (Montesquieu); 0 século XIX pulverizando-a na histéria (antropologia do homem histérico) e nos rindo a instauragéo de um novo modo de ser — o “ser-adven- =, fundado nao mais no ponto fixo do ser e do seu fundamento — mas antes nos pontos cambiantes do devir e no espétaculo de sua itago — o acontecimento (hist6rico) ele mesmo. outro lado, um pouco além da axiomatica e um pouco aquém da @ da teoria do conhecimento, sob varios aspectos nosso livro 5 da Introducio, onde explicamos 0 que compreendemos por esse principio oH sua origem histérica. — \ \ pode ser entendido como um ensaio sobre as diferentes formas de pensar que conformaram a Episteme moderna. Ou seja, tentamos mostrar a exis- téncia de uma cortelacao entre os “estilos de filosofar” e as “figuras do pensamento”, das quais a histéria da filosofia é téo rica em exemplos e que vamos encontrar espalhadas nas diferentes disciplinas das ciéncias -humanas que se constituiram ao longo destes trés_séculos. Com vistas a melhor precisar o sentido e o alcance dessa andlise “es- tética” ou “estilistica”, faremos em seguida uma pequena digressdo sobre as figuras do pensamento na histéria da filosofia, para em seguida carac- terizar as formas de pensar que armaram a Episteme moderna e suas __ respectivas estratégias discursivas — a estratégia essencialista, a fenoménista e a histérica —, cuja “fenomenologia” procuramos descrever nas trés partes que se seguem. Comecemos 1) com Aristételes que, na Metafisica, ao se referir a Platdo, nos fala da figura do “pensamento complicativo” como aquele de um homem que, porque considera muito dificil contar os graos de uma saca de feijéo que ele tem diante de si, joga por cima uma outra saca para tornar mais facil a contagem — no caso Platdo que, nao totalmente satis- feito com as dificuldades que tinha diante de si para explicar o “mundo real”, inventa o “mundo das idéias”; em conseqiiéncia, no lugar de ter um problema ele cria um segundo, “et pour cause”... 2) Uma outra figura é a do “pensamento némade” de que nos fala Hume, aludindo ao empirismo que, nao tendo o suporte da ousia de Arist6teles e da substantia de Des- cartes, est4 condenado, como um némade, a passar, num movimento sem. trégua, de uma percepcio a outra, ad infinitum... 3) Uma terceira figura é a do “pensamento circular” de que nos fala Hegel, referindo-se a dialética e as suas mediagdes que, se na sua marcha irresistivel nos levam ao Ab- soluto, € porque desde o comego elas j4 estavam 14, no Absoluto — e que Nietzsche ridicularizou dizendo “saber absoluto = saber do absoluto = um ponto de vista de Deus... qual Deus? Hegel, vivendo em Berlim!”... 4) Uma quarta figura nos oferece Merleau-Ponty, reportando-se ao positivismo, quando nos fala de um “pensamento em sobrevéo” incapaz de apreender a coisa mesma. 5) Uma quinta figura se encontra em Heidegger, referindo-se nao ao positivismo, mas 4 fenomenologia existen- cial, como a de um pensamento enrolado como um caracol que se contor- ce para falar do inefavel ou do indizivel, que é a vida ou o vivido. Pois bem, o que mostramos 1) na primeira parte do presente traba- Iho — estratégia essencialista — é a aparicéo do “espirito geométrico” de que nos fala Pascal, com sua exigéncia de tudo definir e de tudo demons- trar, que d& nascimento a um discurso de cariz dogmAtico quando ele se funde com o “espirito de sistema” tao caro 4 metafisica. Uma metafisica dogmitica e racionalista, pois acteditava que a raz4o encontraria os fun- 9 damentos @ltimos do conhecimento dentro de si mesma, desde que exa- minasse seu proprio fundo e procedesse a uma espécie de ascese, a fim de fe livrar deste estorvo que é 0 corpo, depositdrio da alma, mas também a sede destes verdadeiros obstaculos epistemolégicos que sao os sentidos, 8 instintos ¢ as paix6es. Eis em poucas palavras o estilo de filosofar desta “razio raciocinante” que nos vem de Platdo e que vai marcar tao profun- damente o destino da modernidade: caracterizado pelo gosto da clareza, do universal, das definigdes essenciais e da deducao sistematica, a sua expressdo mais perfeita no campo das ciéncias humanas é essa obra a um tempo tio artificial — com sua exposigdo more geometrico — e tao desconcertante — como o é sua teoria das paixGes — que é a Etica de Espinosa, 2) Por sua vez, na segunda parte — estratégia fenomenis- ta —, estamos diante do nascimento do “espirito positivo”, deste enten- dimento medidor e calculador de que nos fala Voltaire, marcado pelo gosto do particular e do fatico, das descrigdes empfricas e da indugéo amplificadora, cuja expressao mais perfeita no campo das ciéncias huma- nas se encontra talvez em Smith — “que calculava, que pesava, que media, que observava” — oferecendo-nos esta obra-prima da “razao calculado- ra” — 0 espirito positivo — que é a Riqueza das Nagées. 3) Enfim, na terceira parte — estratégia histérica —, est em jogo o aparecimento do chamado “espirito histérico”, deste pensamento vegetativo de que nos fala Koyré, marcado pelo gosto das metéforas org&nicas (totalidade, orga- nismo) e por uma certa fixacdo nas origens (raizes, relacgées de filiacio etc.). Assim est ele em Bopp, adquirindo em seguida um ar roméntico em Marx, com seu ideal estético (0 homem total), a paixao pelas rupturas (a revolugao) e a suspensdo do devir (0 comunismo), e enfim enrolando- -se como um caracol em Dilthey, com seu circulo hermenéutico, cujo cen- tro se encontra em toda parte e em nenhum lugar, contorcendo-se para falar do inefavel ou do indizivel que é a vida ou 0 vivido. Eis-nos diante dos estilos de filosofar desta “razao hist6érica” que, em seu esforgo ines- gotavel de vencer 0 devir, acabou, como a serpente de Valéry, por engolir ua propria cauda, abandonando o principio da fundamentagio suficiente e fechando assim o ciclo da teoria do conhecimento, na passagem da modernidade a nossos dias. Isto posto, chegamos ao fim de nossas investigag6es, quando conclui- mos, \ luz destes deslocamentos e¢ inflexdes, que, se estas diferentes figu- ¥ai do pensamento que conformaram as diferentes idades das ciéncias humanas levam-nos a abandonar pura e simplesmente as idéias de fun- t lento e de fundamentacao do conhecimento, este resultado nao signi- feafirmar o caminho da davida, do desespero, da negacdo vazia do mento cético, de que nos fala Hegel, mas antes significa a necessi- ‘de pdr o problema do conhecimento no campo das ciéncias huma- bases absolutamente novas. Com efeito, onde o fundamento esta ausente — diz Ladrigre —, 0 solo se retrai e se abre A Episteme 0 “abismo” no qual vai afundar-se este pensamento sempre demasiadamente seduzido pela metéfora do edificio, pelo-conforto da substéncia, pela seguranca do fundamento: a metafisica. E desde entéo o caminho que se oferece ao espfrito é simplesmente seguir ‘os vestigios do ser no calvario de sua obra — o devir — e procurar nestes pontos de fuga sempre cambiantes onde o ser — o homem — se entrecruza com o devir — a histéria — seu solo e fundamento ultimo, sem que nenhum “ponto de ancoragem e de acabamento de principio lhe seja assinalavel” (Ladriére). Era o fim do saber absoluto: 0 homem_e o de- vir — o ser-advento — sio a partir de agora a medida de todas as coisas’. tae 3. No presente trabalho, limitamos deliberadamente o campo de nossas investigagbes as trés estratégias discursivas supracitadas: a essencialista, a fenomenista e a hist6rica. Sabidamente, elas esto longe de esgotar as estratégias que conformaram as ciéncias humanas na modernidade: ha ainda a via da hermenéutica da compreensio (Dilthey e Weber), que por vezes mencionamos; hé também a via da hermenéutica da interpretacéo (Freud); hé por fim a via do estruturalismo (Lévi-Strauss). Demais, 0 critério histérico a que parecemos obedecer (séculos XVII, XVIII e XIX) é meramente “diditico”. Nao foram poucas as ocasides em que fomos forcados a alargé-lo ou simplesmente a abandoné-lo, de forma a incorporarmos autores e disciplinas que se furtam a toda periodizagao, a exemplo de Arquimedes que, com seu matematismo experimental, sob este aspecto, é mais "moderno” do que Hegel e sua metafisica, apesar de historicamente ter aparecido antes. IL Introducdo geral As CIENCIAS HUMANAS E 0 principio da fundamMeNTacao SUFICIENTE “Archiméde, pour tirer le globe terrestre de sa place et le transporter en un autre lieu, ne demandait rien qu'un point qui fit fixe et assuré. Ainsi j'aurai droit de concevoir des hautes espérances, si je suis assez heureux pour trouver seulement une chose qui soit oertaine et indubitable” (Descartes, Méditation Seconde), 1. As Idades das Ciéncias Humanas Ao concluir sua arqueologia das ciéncias humanas, Foucault nos su- gere que o homem é um problema recente na trajetéria da cultura e como tal destinado a desaparecer do espaco de nossa Episteme, como um rosto na areia com o refluxo da maré. Mas,-se olharmos as coisas mais de perto, vamos ver que desde a noite dos tempos os homens sempre estiveram engajados em tentativas de attocompreensao,/nao se limitando a interro- gar as coisas mesmas ¢ os enigmas do universo, Um bom exemplo disso_ é 0 preceit6 délfico do “conhece-te a ti mesmo”, de que Plato nao hesitou “em fazer a divisa por exceléncia do pensamento socratico e que, segundo Cassirer, é a prova elogiiente da importancia que os gregos conferiam ao_ problema antropolégico, fazendo dele um dos eixos maiores de suas re- flexdes '. —Para.tanto, em diferentes épocas, os homens trataram de desenvolver formagées discursivas as mais variadas, desde o mifo nas sociedades pri- © __mitivas, a filosofia na antiguidade classi va Teologia na idade média, até a ciéncia no pensamento ocidental, a partir da modernidade. ‘De sorte se desenham quatro idades na arqueologia das ciéncias humanas —-se+) deixamos de lado 0 mito.e as-sociedades primitivas —, nas quais nem 0 homem nema Episteme sao os mesmos: 1) a idade cosmolégica, na antigui- dade classica, época emi que o problema-do homem é pensado a partir do cosmos (analogia micro/macrocosmos, pélis/cosmos-etc.), vale dizer, de -uma alma césmica universal na qual o espirito busca aquele principio de vida e de movimento que confere 4s coisas humanas a necessidade de uma physis, dando lugar 4 “antropologia do homem interior”, que remon- da significagao antropolégica desta méxima, ver CASSIRER, E. Essai sur Paris: Les Editions Minuit, 1975, p. 13-19, que seguimos de perto ao longo desta Introduglo; sobre as relacdes deste imperativo com a ética e seu papel na descoberta do “ho- mem interior’, ver LIMA VAZ, H. C. Escritos de filosofia IT; fitica e cultura, Sio Paulo: EdigGes Loyola, 1988, p. 59-61. 15 ta a Séerates; 2) a idade teolégica, na idade média, época em que o proble- ma do homem é pensado a partir dos designios da providéncia divina e no seio dos “mistérios” da doutrina da criagdo (queda/resgate), dando origem A chamada “antropologia do homem pecaminoso”, que nos vem de Santo Agostinho; 3) a idade mecinica, na modernidade, época em que © homem adquire autonomia e é interrogado a partir dele mesmo e das eondigées da subjetividade, em busca dos “dispositivos mecdnicos” (me- canismos) postos no fundo do seu ser, os quais regulam suas relagdes de si consigo mesmo, com o outro e com 0 mundo (natureza humana), dando nascimento 4 “antropologia do homem-méquina”, origindria de Descar- (es; 4) enfim, a idade da histéria, na passagem da modernidade a nossos dias, época em que temos o descentramento do homem e a dissolugao da natureza humana nas positividades da hist6ria e da cultura (riqueza, lin- guagem, inconsciente), buscando as raz6es de seus diferentes modos de ser na histéria ela mesma (do individuo, em Freud; da sociedade, em Marx; da lingua, em Bopp etc.), e dando lugar a “antropologia do homem hist6rico”, que nos reenvia a Kant. Nas paginas que se seguem, procuraremos reconstruir essas diferen- tes configuragdes do homem e da reflexdo antropolégica que despontam ao longo da trajetéria do pensamento-ocidental, nas quais nem.a forma nem 0 objeto de conhecimento séo os mesmos, ainda que seja a mesma a questo a que se procura responder: que é 0 homem? Nos itens 2, 3 e 4 desta Introdugdo, & luz desta verdadeira obsessdo que é 0 imperativo do “conhece-te a ti mesmo”, 0 qual como uma sombra acompanhou os ho- mens desde a noite dos tempos, analisaremos 0 problema da formagao das ciéncias humanas, vale dizer, as diferentes configuragdes do homem na histéria da civilizacdo e da cultura (antiguidade classica, idade média, modernidade), e, ainda, as diferentes formas de que se.reveste a reflexdo antropolégica em suas diferentes idades (na antiguidade classica, propon- do-se como filosofia e buscando seu modelo na cosmologia; na idade média, recorrendo 4 religiao e buscando seu modelo na teologia; na modernidade, aparecendo como ciéncia e buscando seu modelo nas ma- » temiticas primeiro, na fisica depois, na biologia e na histéria enfim). No ttem 5, analisaremos o problema da fundamentagao das ciéncias huma- if, para o que vamos limitar nossas investigagGes 4 modernidade, época que data o nascimento das ciéncias positivas, e as trés estratégias vas por elas adotadas neste perfodo, com este intento: uma (séc. mais atenta ao modus essendi dos objetos (tedugéo as esséncias) e ao de ser das substancias, dos acidentes, dos atributos etc. (estratégia ita); outra (séc. XVIII), ao modus operandi dos objetos (ordena- js fendmenos) e ao modo de ser dos fenémenos — fato ou coisa fenomenista); outra (séc. XIX), por fim, ao modus faciendi dos objetos (reconstrugao histérica) e ao modo de ser do devir (fieri) — ser- -advento (cane hace tres paties em. que se subdivide _o presente_trabalho, com a ajuda das das quais mostraremos, na conclusdo, que o problema antropolégico, se j4 nao era tao “moderno” quanto queria Foucailt e como de resto a Introdugdo se encarregara de demonstrar, tampouco esté fadado a desaparecer como ele suspeita: estando seu rosto profundamente esculpido na nossa memé6ria, sem que consigamos visualizd-lo, e nao sendo, qual uma figura na areia, uma imagem aderida 4 superficie, destinada a ser vista e a desaparecer, o homem 6, a exemplo da esfinge, um enigma a ser decifrado. Porém, a diferenga do enigma de Sisifo no qual quem interroga € 0 objeto (a esfin- ge), no enigma do homem quem interroga é o préprio sujeito (0 homem), 0 “si mesmo” que o Preceito délfico ordenava conhecer. Parece-nos, por- tanto, que & pergunta “que é 0 homem?” ndo é a nao-resposta que da a sentenga de morte, a exemplo da esfinge, mas a resposta; ficar com a pergunta é dar-lhe vida — enigma e interrogacao. 2. A Antiguidade Classica Conta Hesfodo, em sua genealogia dos deuses e dos titas, que uma luta de vida e de morte se sucedeu entre estes entes poderosos, com o tita Cronos (tempo) 4 frente, destronando seus antecessores, castrando Urano (céu) e gerando. Zeus, que fica no lugar do pai e, numa luta sangrenta, instaura os deuses olimpicos no poder. Nestas p4ginas imortais, ele nos fala também de Prometeu, filho de lapeto e Climene e pai dos homens, numa seqiiéncia que nos mostra no fim todo o peso do destino que lhes seria reservado e da dualidade de sua condigdo — mortais e miserdveis, mas também desejosos de serem deuses, buscando no conhecimento e no trabalho o meio de igualarem-se 4s poténcias divinas e de medirem forgas com elas. Mas como foi feito 0 homem? De que matéria? De barro, de Agua e deste sopro divino que é alma — diz. Hesiodo nao economizou detalhes ao descrever a empresa do titd. Prometeu arranca com as maos 0 barro do chao, mistura-o com suas pré- prias l4grimas e, com muito engenho e arte, trabalha aquela massa infor- me até dar-Ihe a forma de uma estdtua e as feigdes de um deus. Em seguida, o tita, nao contente com uma s6 estatua, decide fabricar outras tantas, e passa dias e noites a trabalhar a matéria informe, até dar-lhe feig6es divinas. Terminada a operacdo, ele contempla, embevecido, a be- leza de sua obra. As estatuas sao perfeitas, em tudo semelhantes aos deuses, mas... falta-lhes vida. 17 Dai @ segundo ato da criagao: Prometeu, com a boca, insufla-lhes espi- titos animais — a coragem do ledo, a fidelidade do cavalo, a forca do touro, @ esperteza da raposa, a avidez do lobo. E as criaturas de barro, agora vivas, passam a se movimentar, lentas, porém decididamente. Mas ainda Ihes fal- tava a fafsca do espirito divino, aquela que os tornar4 capazes de pensar, de deliberar e de agir, e, assim, de igualarem-se aos deuses... Na seqiiéncia chega-se ao terceiro e tltimo ato: Atena, a filha inteli- gente de Zeus (deusa da sabedoria), porta ajuda ao tité e da as criaturas uma taca cheia do precioso liquido. De repente, sobre a cabega de cada criatura, surge uma luz nova e bela. Sao homens. Quase deuses. Tém uma alma. Mas nao sabem o que fazer com ela... Prometeu devera ensinar- -lhes tudo. A comecar pelo fogo, cujo segredo ele rouba de Zeus — 0 que deveu custar-lhe caro’. Com o sacrificio do tité, abandonado a si mesmo, parece que neste es- tado 0 homem ficou: portador do espirito divino (a alma), é perfeito como os deuses; feito de barro, é imperfeito, mortal e miseravel, e néo tem como se livrar dessa condigao. O trabalho, por exemplo, dé ao homem um meio de igualar-se aos deuses; porém, é também pena, fadiga, testemunho de sua condicéo mortal, e, como a doenga, desse fardo ele sé se livra com a morte. Essa narrativa, tao rica em ensinamentos, nos mostra que desde os tempos arcaicos os antigos estavam convencidos de que é na alma que reside a natureza propria do homem, e de que é seu espirito divino que faz dele a mais divina das criaturas. Esta convicgao ganha densidade ao longo do tempo, e cedo a alma foi objeto de culto nas sociedades arcaicas espalhadas no Ocidente e no Oriente, como o atestam a doutrina da transmigracao e os deuses da familia, ambos a evocar sua capacidade de aperfeigoar-se e de sobreviver a prépria morte — a nossa e de nossos antepassados longinquos. Porém, se num primeiro momento os homens nao sabiam o que fazer com ela, limitando-se a lhe dedicar, temerosos, respeito e devogdo, com a descoberta do [égos, que é também a redescoberta da alma (alma racional), © homem logo aprende o que fazer com ela: us4-la como instrumento de conhecimento, primeiro das coisas, depois dos homens, quando finalmen- te ela se dobra sobre si mesma (consciéncia de si). Tistes dois acontecimentos maiores do pensamento ocidental, a desco- do Idgos e sua aplicagao ao conhecimento da alma e por extensdo do am, foram celebrizados por Platio, na pessoa de Sécrates, o qual diz que ela é o proprio homem (Alcebiades, 131c/132e) e faz do “co- ANIA, J. A. (divetor). Mitologia, Sao Paulo: Abril Cultural, 1973, v. 2, p. 305-306. nhece-te a ti mesmo” o exercicio divino por exceléncia. Exercicio superior ao da gindstica, pois por meio dele o homem, olhando a divindade, se serve do melhor espelho ao alcance dos mortais para o conhecimento da natureza de si mesmo, que é a alma (Alcebiades, 134a/135b), e, enfim, se descobre como ser livre e sujeito de liberdade — um deus, € certo, mas também um ser mortal e miseravel, um ser que, humildemente, s6 sabe que nada sabe... Inicialmente voltada para as coisas mesmas (Escola de Mileto), é so- mente num segundo momento que a filosofia grega, na esteira deste fato maior da Episteme ocidental que € a descoberta do légos, estende-o aos homens e 4 sociedade (Sécrates, Platéo, Aristételes). E nesta viragem Sécrates 6 a grande marca. ele quem inaugura 0 periodo antropol6gico, fazendo do homem e do mundo moral 0 eixo de suas reflexdes. Segundo Cassirer, nao encontramos em Sécrates uma nova fisica ou uma nova légica, nem sequer uma ética coerente e sistematica; nele nado ha sendo uma s6 e tinica questdo: que é o homem?? Para responder a ela, desconfiado do mito, ele procura satisfazer 0 ideal de uma verdade obje- tiva, absoluta, universal; entretanto, o tinico universo que conhece e ao qual todas suas investigagées se referem é 0 universo do homem. Esta é a raz4o pela qual sua filosofia é estritamente antropolégica. Com efeito, a prevaléncia do preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo” é tal em Sécrates que ele chega a nao esconder um certo desprezo pela natureza e pelo conhecimento das coisas mesmas. Como no-lo lem- bra Cassirer, em um de seus didlogos (Fedro, III-V), Platio nos descreve Sécrates passeando nos arredores de Atenas com seu discipulo Fedro. Este admira a beleza do lugar. Num certo momento interrompe Sécrates, pois surpreende-se com o fato de que seu mestre se comporta como um estrangeiro. Ele lhe pergunta entio se ele, Sécrates, j4 ultrapassara uma vez na vida os muros de Atenas. E 0 filésofo Ihe responde: “Seja indul- gente para comigo, meu bom amigo: eu gosto de aprender, tu sabes. No entanto, 0 campo e as arvores nao me ensinam nada, mas os homens da cidade”‘. Apesar de todo o peso do problema antropolégico estar posto neste didlogo, Sécrates nao nos oferece em nenhuma ocasido uma solugdo direta do mesmo. Ao longo dos didlogos platénicos que tratam desta matéria e daquele autor, encontraremos uma anilise detalhada das diver- sas qualidades e virtudes humanas — beleza, justica, temperancga etc. —, jamais uma definicaéo do homem ou uma teoria da natureza hu- mana, qualquer que seja ela* — salvo 0 célebre “o homem é um ser em busca constante de si mesmo”, o que 6 evidentemente muito pouco. 3. CASSIRER, E. op. cit. p. 17. 4 Ibidem. p. 18, 19 A razio desta aparente insuficiéncia reside no fato de que, segundo fiderates, ao contririo dos objetos fisicos, que podem explicar-se por suas Ppropriedades objetivas, tidas como a esséncia acabada da coisa, e como tais abertas 4 observacao empirica e a analise légica, o homem sé pode ser definido pela sua consciéncia (alma). Para seu conhecimento de nada servem um e outro procedimento: 0 homem nao é um ser pronto e aca- bado, mas um ser em busca constante de si mesmo, a todo momento examinando suas condig6es de existéncia, sem jamais encontrar um ponto de repouso. Demais, sua esséncia — a alma — ndo se oferece diretamente ao olhar, mas indiretamente no comércio dos homens, consistindo a via da verdade nao propriamente na contemplacéo exterior do sujeito cognoscente num monélogo consigo mesmo, porém na inspegao interior e no didlogo com outros homens *. Assim, como diz Cassirer, em Sécrates a verdade é por sua propria natureza filha do pensamento dialético; ela nao é uma coisa, mas 0 pro- duto de um ato social, ¢ nao pode ser obtida sendo através de uma coo- peracio constante dos homens, numa interrogagao e resposta reciprocas (didlogo). Dai a idéia de maiéutica, celebrada por Platao no Teeteto. Dai também a importancia da pdlis e da dgora. Afinal de contas, as coisas nao falam e nada nos podem ensinar. S6 os homens... E por isso que a resposta que Sécrates nos dé a questao “que é 0 ho- mem?” é indireta, e nao poderia ser diferente: o homem é um ser em busca constante de si mesmo, um ser inquieto que seu ddimon incansdvel forca a todo momento a examinar e a avaliar as condig6es de sua existéncia. E aqui que reside toda a importancia da consciéncia (psyché), a um tempo principio diretor da busca e elemento que introduz a differentia specifica em telacdo aos animais ¢ as bestas, sem o que ele se perderia na mesma indiferenca ontoldgica da coisa — que nao é, simplesmente existe (e uma vida ndo examinada, nao merece ser vivida, diré Sécrates). E aqui que reside, por fim, o peso do imperativo do “conhece-te a ti mesmo”, no qual se encontra a esséncia do nsamento socratico, centrado todo ele na consciéncia e seu contetido moral. B sendo a consciéncia e seu contetido moral o que hd de mais digno no homem, a disciplina filoséfica que deles se ocupa — a Etica — é que nos vai dar a chave da problemdtica do homem ?, De qual “homem’ se fala, com efeito? Do homem natural e suas de- nagdées empiricas? Do homem-medida de Protdgoras e suas sensa- #* Nem de um nem de outro, mas simplesmente do “homem interior” 0 individuo ético, cuja esséncia é alma. Tal foi a grande descoberta Casslrer, B, op. cit. p. 18 antropolégica de Sécrates. Segundo ele, a alma seria constituida de trés “faculdades”: razdo, desejo e sensibilidade. Mas, ao preconizar a supre- macia da razao, Sécrates afirma de um sé golpe que é a ela que o homem deve o que é: um homem, e nao um animal qualquer, sujeito livre e ser de liberdade. Tal é 0 sentido da moral socrética, uma moral “racionalista”: comandado pela razdo, isto é, pelos valores e qualidades que lhe sao imanentes, seu fim é 0 controle (senhorio) das paixdes (apetites), através da deliberagao firme da alma, cujas leis 0 obrigam in foro interno e cuja agio liberta-o da vis a tergo da natureza. E tal é a atitude que ela comporta, luma atitude “interiorista”: 1) tudo que vem de fora é nulo e vao: riqueza, posigio, distingdo social; 2) a tinica coisa que conta é a atitude interna da alma, que exige que o homem obedega a seu ddimon interior e se paute em fut aco por valores internos, tais como a justica, a bondade, a temperan- ga etc; 3) e sua finalidade é adquirir 0 controle de si, um “cdlculo” dos prazeres pelo qual o homem se liberta do turbilhao das paixdes e da necessidade exterior da physis, e se descobre enfim como sujeito moral ou individuo ético. Ei-lo, fechado, o circulo da filosofia grega que nos con- duz de Herdclito a Sécrates e que acaba por fazer convergir num s6 e mesmo ponto (0 homem interior): 1) a interrogago socrética “que é 0 homem?”, 2) o “si mesmo” que o preceito délfico ordenava conhecer e 3) 0 entds énthropos a partir do qual Herdclito caracterizava toda sua filosofia (eu me procurei a mim mesmo, dizia) — isto 6, 0 homem-psiqué, portador da sabedoria, capaz de discernir o bem e o mal, e de escolher 0 justo e 0 melhor *. Platao estende a moral socratica 4 sociedade e subordina a politica 4 ética, em busca de um solo firme onde, fundar a a¢ao politica em bases heguras e racionais, para além do terreno movedico da déxa e da fluidez do devir. Este solo é a consciéncia — fonte comum da moral e da politica. FE seu fim, o bem — na politica, a justica, definida como “justa medida”, © ponto de equilibrio no qual a bela alma reencontraria, no 4mbito da polis, a mesma harmonia experienciada no plano individual. Da mesma forma Aristételes que, a despeito de assimilar a politica a uma espécie de téchne, faz da arte de governar a extensao da ética (qual @a melhor forma de governo?, pergunta), e da pélis o lugar por exceléncia de realizagéo do “sujeito moral” (comunidade de obras para os homens yiverem bem e felizes — dizia). A exceléncia do lugar é tanto mais nobre que é a nivel da esfera publica da polis que o homem — a mais divina das criaturas — pode livrar-se do peso das necessidades da vida e enfim tornar-se “homem” (zéon politikén), adquitindo uma sorte de imortalidade através das atividades publicas e de praticas virtuosas baseadas em valo- © LIMA VAZ, H.C. op. cit. p. 60. 21 ‘f68 eterno#, como a justica, a temperanca, o bem comum etc. E tanto mais desejavel que confere a cada individuo aquela paz interior, a harmonia Bragas A qual ele se torna semelhante aos deuses e encontra em si o mesmo equilfbrio & imagem das belas proporgées do cosmos. Mais tarde, com os estéicos, o principio diretor que Sécrates descobre no mundo dos homens — a alma —, junto com 0 ideal de equilfbric e de harmonia, ultrapassa a esfera da moral e da politica e se estende ao uni- verso inteiro. Agora, a alma nao é téo-s6 do homem, mas do mundo, uma alma césmica universal subjacente 4 ordem das coisas e ao mundo dos homens, com o que o “conhece-te a ti mesmo” ganha um alcance metafisico universal. “A necessidade de se interrogar aparece entao, no estoicismo assim como em Socrates, escreve Cassirer, como a privilégio do homem e seu dever essencial. Mas este dever é agora tomado num sentido mais amplo; sua significagéo nao é mais somente moral, ela 6 também universal e metafisica. ‘Pér-se essa questéo em toda ocasiao; examinar o que eu tenho atualmente nesta parte da alma que se chama parte diretora (té hegemonikén)'. Quem vive em harmonia com seu eu proprio, com seu deménio (ddimon — ID), vive em harmonia com o universo, pois a ordem universal e a ordem individual sao somente expressées e manifestacdes diferentes de um mesmo principio subjacente. O homem demonstra seu poder inerente de criticar, de julgar e de discernir, compreendendo que nesta correlagéo é 0 Eu e néo o Universo que desempenha o papel pre- ponderante. Uma vez que o Eu encontrou sua natureza propria, esta permanece inalterdvel e impassivel. ‘Tornado esférico, ele guarda sua forma circular’. Esta é por assim dizer — continua Cassirer —a Giltima palavra da filosofia grega: uma palavra que, uma vez mais, contém e explica o espfrito no qual ela foi originalmente concebida. Este espirito era o do julgamento, do discernimento critico entre o Ser e o Nao-ser, entre a ver- dade e a ilusdo, entre o bem e o mal. A vida é em sua esséncia cambiante e flutuante, mas seu verdadeiro valor deve ser procurado numa ordem eterna que nao admite nenhuma mudanga. Nao é no mundo dos sentidos, mas somente por nosso préprio poder de julgar que podemos apreender esta ordem. Julgar é 0 principal poder do homem, a fonte comum da a lade e da moralidade: somente ai o homem depende inteiramente de | Mesmo; (somente ai-ID), ele é livre, autonomo e se basta a si mesmo”’. Mas de qual “alma” se trata, com efeito? Da psiqué individual (eu Jégico) que nds, contempordneos, vivendo neste século do ego que psicologiza tudo, como ante um idolo, aprendemos a cultuar? lutamente: filosofia do sujeito ausente, a psyché da antiguidade @ uma psiqué individual, mas “trans-individual’, pois nela E, op. elt. p. 21-22; as frases citadas por Cassirer sio de Marco Aurélio. nio é o individuo que habita sua psiqué, mas uma alma césmica transindividual que habita o individuo. Ou seja, ndo é a alma do homem, mas a alma no homem, conforme observa-o Vernant. Para os gregos — escreve —, “a psyché é em cada um de nés uma entidade impessoal ou suprapessoal. £ a alma em mim mais do que a minha alma. Em primeiro lugar, porque essa alma se define pela sua oposicéo radical ao corpo e a tudo quanto esta ligado a ele; porque ela exclui por conseqiiéncia o que em nds se deve as particularidades individuais, as limitagdes proprias da existéncia fisica. Em seguida, porque esta psycké é em nés um déimon, um ser divino, um poder sobrenatural cujo lugar e fungao no universo ultra- passam a nossa pessoa singular. O niimero de almas no cosmos esté fixa- do de uma vez por todas; permanece eternamente o mesmo. Existem tantas almas quantos astros. Cada homem encontra, pois, 4 nascenga, uma alma que ja existia desde o principio do mundo, que nio é de modo algum exclusiva dele, e que, depois da morte, ira encarnar num outro homem ou num outro animal ou numa planta, se nao conseguiu, na sua ultima vida, tornar-se suficientemente pura para ir juntar-se no céu ao astro a que esta ligada. A alma imortal nao traduz no homem a sua psicologia singular, mas antes a aspiraco do sujeito individual a fundir- +8e no todo, a reintegrar-se na-ordem césmica geral”.” © elo procurado entre 0 homem e o mundo tinha sido, portanto, encontrado: quem os liga é a alma, uma alma césmica universal que se exterioriza no mundo e se faz césmos e que se interioriza no homem e se faz légos. Alma do mundo e alma do homem, a alma césmica universal habita 0 individuo antes de ser habitada por ele, e a natureza do seu ser ¢ 0 antipoda da alma (pensamento) de Descartes e do espirito dos moder- nos: co-natural ao mundo e ao homem, a alma dos antigos nao é a psiqué individual dos modernos que se recolhe no individuo e vira as costas ao mundo, mas uma alma transindividual e suprapessoal que habita o indi- viduo e o reconcilia com o mundo. Por isso, a descoberta do homem interior e de sua esséncia — a alma — nao deu lugar a uma filosofia interiorista 4 maneira de Descartes, mas a uma filosofia objetivista: filoso- fia do sujeito ausente, nela o pensamento ([dgos) é apreendido como césmos, como uma totalidade racional, e 0 césmos é apreendido como légos, como totalidade de pensamento ou todo racional. E desde entaéo, como o ho- mem e a natureza repousam sobre um principio de racionalidade ou ar- ché — a alma césmica universal — ¢ habitam o mesmo mundo — o cés- mos —, € 0 césmos que seré 0 modelo de racionalidade das coisas mesmas e do mundo dos homens. Em primeiro lugar, do mundo das coisas, como no-lo mostra Cicero, que vé na raiz da imensa harmonia do universo a acao inteligente de uma 10. VERNANT, }-P. “ individu na cidade”. In: VEYNE, P. et al. Individuo ¢ poder. Lisboa: Edigdes 70, 1988, p. 40. 23 ‘do mundo, de uma alma césmica universal que ele assimila @ pré- divindade (“sopro divino”): “Que dizer também deste acordo do universo que comunica (...) uma mesma continuidade entre suas partes. (.) A terra poderia, passo a passo, cobrir-se de flores e depois se secar? Poder-se-ia, enquanto as coisas se transformam, reconhecer como 0 sol se aproxima, depois se afasta, nos solsticios de verdo e de inverno? Veriamos esta correspondéncia entre os movimentos das vagas do mar, assim como a8 correntes, o nascer e 0 ocaso da lua? Quando o céu inteiro opera sua conversio em um movimento tinico, os astros conservam com a mesma regularidade seus movimentos t4o diversos? Tudo isso nao poderia acon- tecer com uma tal concordancia em todas as partes do mundo, se um mesmo sopro divino nao as unisse todas e ndo as mantivesse juntas”. Enfim, o cdsmos nos da 0 principio de inteligibilidade do mundo dos homens, a via que os eleva 4 divindade e também o modelo de suas préprias aces, conforme estabelece Ptolomeu: “Nada melhor que a As- tronomia poderia abrir a via ao conhecimento teolégico; com efeito, so- mente ela tem o poder de atingir com seguranca a Energia imével e a abstrata, tomando come ponto de partida o estudo aproximativo das energias que esto submetidas aos sentidos e que sao a um tempo moventes e movidas; de atingir as esséncias eternas e impassiveis que residem sob os acidentes (...). Melhor que toda outra ocupacao, ela prepara os homens que sabem na pratica e nos costumes discernir 0 que é 0 belo e o que € o bem, pela contemplagao da constante similitude que apresentam as coisas celestes, da perfeita simetria, da simplicidade que ai reinam; (...) ela habi- tua a alma a adquirir uma constituicao que se lhe assemelha e por assim dizer ela Ihe torna natural esta constituicao”?, Eis o quadro a partir do qual a antiguidade classica pensa o problema do homem e procura compreender seu destino no universo. A um tempo mergulhado na physis e fora dela, mas com ela integrando o mesmo todo (césttos), o homem, dotado de consciéncia, pode nao somente compreendé- -la, mas também se compreender a si mesmo como consciéncia moral e vontade politica. O lugar da reflexdo era a filosofia — uma filosofia “objetivista” tematizada como cosmologia; uma filosofia “interiorista” msada como metafisica: a antropologia do homem interior, matriz da itlea e da politica. A verdade é que a antiguidade classica tinha todas as condicées para fundar as ciéncias humanas 4 maneira de uma fisica, por exemplo (fisica das qualidades): tinham isolado o objeto — o homem interior — e sua esséncla — a alma. Mas nio o fez: no seu lugar ficou uma economia 11, Apud GUSDORF, G, Fondements du savoir romantique. Paris: Payot, 1982, p. 329. 12 Apud GURSDORF, G. op. cit. p. 327. pensada como arte (administracao doméstica), uma “lingijstica” diluida na légica e pensada como arte do discurso (retérica), uma histéria cons- tituida como crénica e arte da meméria. No homem, o tinico dominio estdvel é a consciéncia, a Gnica que chega a escapar da fluidez do devir, e, com ela, apenas as esferas do pensamento, da moral e da politica, na falta de um eu substancial, encerram uma certa espessura ontolégica (ne- cessidade e universalidade). Cabia a filosofia tematiz4-las e nos oferecer na légica, na ética e na politica a imagem daquilo que ha de mais digno no homem e faz dele a mais divina das criaturas: a alma e suas diferentes “figuras” (a verdade, a virtude e o bem). Muitas paginas j4 foram dedicadas 4 nova racionalidade que a desco- berta do fégos permitiu instalar (cf. Vernant, Cornford etc.). Com certeza nao € e nao pode ser a mesma do mito. Hesfodo nos fornece uma genealogia por demais obscura e por vezes incoerente (em algumas versdes do mito de Prometeu, 0 tita sofre seu tormento por ter tentado criar a raca dos humanos e, assim, impor-se aos deuses, durante 30 anos; outras dizem. que so 30 séculos). Platao, ao que parece, nao leva téo a sério assim o mito, e propée algo diferente, uma racionalidade instalada, nao ex-abrupto, a exemplo do mito, sem uma justificativa prévia numa ordem de razoes fundadora, como que por meio de uma inspiracdo divina aberta a poucos iniciados, mas com a ajuda de um raciocinio cujas regras sdo franqueadas a todos, apoiando-se em argumentos capazes de se justificarem (“dar raz4o”) e de resistirem as provas e contraprovas, e, sobretudo, cuidando de dar as ilagses do pensamento a necessidade das conexées da coisa. Por isso, o conhédimento da alma ¢ do homem em Platéo tem a natureza de uma ciéncia discursiva: para-tal,-vate-oargumento e sua capacidade de~ instalar a verdade e a prova.Tal ndo_¢, ao que parece, o caso de Arist6- teles, Antiplaténico, o Estagirita, a despeito de ter encerrado a alma na physis e Ihe ter reservado uma ciéncia demonstrativa — a fisica —, ao ter ante si o mundo dos homens, governados pela alma intelectiva, mas tam- bém pelos espiritos animais, nao hesitou em ver em sua verdade uma verdade pratica, em sua certeza uma certeza por aproximacao, em seu conhecimento uma ciéncia pratica (praktiké episthéme)". Tanto na via aristotélica (ciéncia pratica) como na platénica (ciéncia discursiva), o conhecimento da alma e da homem se da, portanto, fora dos quadros de uma ciéncia empirica (positiva) tal como a conhecemos e a praticamos hoje. Sem a matéria com que operar — o fenédmeno, esvazia- do de toda espessura ontolégica prépria —, néo havia como pensar uma ciéncia empirica do homem. Mas, dispondo do objeto (a alma) e do meio 13. A este respeito, ver ARISTOTELES. Etica a Nicdmaco. 1094b-1095a, onde o Estagirita esclarece a natureza da verdade na ética e na politica. 25 —————— . Assim, operando com um modelo substancialista do signo (vefculo das esséncias) e nao simplesmente nominalista (convengio arbitraria), a comandar a méthesis em sua variante essencialista, vamos encontrar o chamado modelo légico-metafisico da linguagem, onde temos, sem diivi- da, a construgao mais ousada do espirito com vistas ao programa de fundagao do conhecimento, uma fundamentacao que se quer absoluta e como tal posta ao abrigo da davida cética e dos ataques da sofistica das mais diversas procedéncias. Muito embora sua origem seja muito antiga, remontando a Aristételes, este modelo vai sofrer algumas modificacées para atender aos designios e necessidades da Episteme moderna, ainda que a unidade elementar de sentido sobre a qual ele repousa seja a mes- ma: a proposicao, e nao a palavra, como quer Foucault. Segundo Ladriére, na sua dimensio semintica, a relacio palavras/ coisas é comandada por uma dualidade de fungGes inserita no interiorda. linguagem:de_um lado,ja fungio de referéncia; de outro, a_funcdo de 14. Apud GUSDORF, G. La réuolution galiléenne. Paris: Payot, 1969, v. 2, p. 30. 15, CE. DESCARTES, R. op. cit. p, 169, onde se afirma: 1) Pelo nome de idéia — no tientido de representacéo (algo que fica no lugar de algo) — entende-se 0 elemento proprio do pensamento “de tal modo que nada posso exprimir por palavras, ao compreender 0 que digo, sem que daf mesmo seja certo que possuo em mim a idéia da coisa que é significada Por minhas palavras”; 2) “Pela realidade objetiva de uma idéia, entendo a entidade ou 0 ser coisa representada pela idéia, & medida que tal entidade esté na idéia (..). Pois, tudo {ante concebemos como estando nos objetos das idéias, tudo esta objetivamente, ou por Tepreaentagio, nas proprias idéias”, predicagio. Esta dualidade de fungées articulada na unidade da proposi- gio comporta uma dualidade de estatutos: “Enquanto as entidades as quais se faz referéncia subsistem)de alguma_forma-por-si_mesmas, as propriedades-artieuladas na predicagio sda flutuantes, nao tém existéncia senao nas entidades que elas afetam, e apelam, por sua propria natureza, a uma sintese atributiva que as restitui 4 sua ancoragem real”"*. E implica a distingao entre suporte e atributo: a nota que distingue o-suporte é sua autarcia. —"ele existe por si mesmo e néo num outro —, enquanto o atributo néo é o que & sendo gracas ao suporte, nao se torna real senao gragas a sua ineréncia a ele’. Em conseqiiéncia, para além da necessidade de reenviar 0 atributo ao suporte — e tal ser4 no fim de contas 0 sentido profundo da relagao de predicagao —, a fungio referencial da linguagem nos sugere uma ontologia, vale dizer, a postulagdo de um termo iiltimo de ancoragem do préprio referente, termo que é precisamente o suporte da relagéo Iégica de atribuigéo e que nao divide com nenhum outro esta propriedade: a incondicionalidade"*, Assim, 4 luz do modelo da estrutura proposicional, nada mais natural que muitos tenham visto ou encontrado ai toda a forca da vocagao légica e metafisica da linguagem — vocacio légica da gramiatica, que dispoe as palavras segundo a forma légica do pensamento: sujeito-verbo-predicado. {atributo); vocagdo metafisica do verbo ser, que faz a sintese atributiva, ligando 0 atributo ao suporte; vocagao metafisica da substancia, termo ultimo de ancoragem além do qual é-nos impossivel remontar, ai se refu- giando na incondicionalidade de sua autoposicao. Aplicado ao ser, este modelo deu origem as mais diferentes metafisi- cas — da idéia em Platao, da substancia em Aristételes, etc. —, todas em busca de um principio primeiro (arché) e de uma forma de predicacao universal absolutamente legitima, que nos ponha ao abrigo das ilusdes da déxa e das incertezas do conhecimento simplesmente empirico. Saber livre das ilus6es, saber certo de si mesmo, autofundado e por isso mesmo ca- paz de conferir os fundamentos das ciéncias e disciplinas particulares, era a propria linguagem que autorizava o projeto da metafisica, e era a pré- pria linguagem que se queria metafisica e Jhe assegurava tal privilégio na hierarquia do conhecimento (a linguagem é a linguagem do ser, diz Aris- t6teles com Antistenes). Aplicado ao conhecimento, este modelo deu origem ao chamado mode- lo Iégico-metafisico do conhecimento. “Légico”, porque pensa o saber como uma forma de predicagéo que sé é valida ou legitima se atende a certas 16. LADRIERE, J. “L’abime”. In: LADRIBRE, J. et al. Savoir, faire, espérer; les limites de la raison. Bruxelas: Publication des Facultés Universitaires Saint-Louis, 1976, p. 179. 17. Tbidem. p. 179-180. 18. Ibidem. p. 180. 65. nt 64 padrdes de pensamento (as regras do silogismo, os principios | i identidade, da contradigdo e do terceiro excluido etc.) — correlato da fungdo predicativa da linguagem. “Metafisico”, porque pensa o conheci- mento como um discurso do ou sobre o ser, discurso que sé se legitima @ cumpre seu fim se se revela capaz de nos oferecer sua arché: a substan- ela, na sua qualidade de principio frontal do ser e de sua inteligiblidade ete de ineréncia, de subsisténcia, de incondicionalidade) — correlato la fungéo referencial da linguagem. Dai a operagéo de fundagéo de conhecimento, a luz deste modelo, para além das relagGes de atribuicdo instalando numa ponta da cadeia o “fundante” (o suporte) e noutra o “fundado” (0 atributo), consistir em remontar, a nivel do referente, através de operagées “Iégicas” apropria- das, tais como a intuigéo, a dedugéo e a reducdo, aquele termo tiltimo de ancoragem que nao pede ele mesmo ser fundado e que, sendo s6 ele o fundante, nao divide com nenhum outro esta condigdo: a substancia. Daf enfim o privilégio da substancia a um tempo na ordem do conhecimento e na ordem do ser: arché do ser e do conhecer, o tiltimo na cadeia regres- siva da ordem especulativa é o primeiro na ordem da instauragdo do ser, e é por meio dela que o espirito da as ilagses do pensamento a necessi- dade das conexées da coisa. Eis em poucas palavras o sentido do apelo 4 metafisica que vamos en- contrar nos diferentes programas de fundacdo Ho conhecimenta,da antigui- ‘dade classica 8 modernidade tardid.. Estes programas, além de um logicismo- (ow matematismo, se se preferir), fautorizam um ontolo logismo, uma 0: dos principios, armada.em-torno da idéia de hypokéimenon (no sentido dé “suporte, aquilo que subjaz, esta sob e sustenta alguma coisa), na qual reside a chave da nogao de substancia e de atributo, tao importantes na organiza- ao da economia do pensamento por mais de 2.000 anos. Ora, na sua qua- lidade de relagéo de ineréncia de si consigo mesma, no sentido préprio, como diz Ladriére, de interrogagao sobre o ser do ente, a substancia é pre- cisamente o ser que tem o ser em si e por si mesmo — e ndo num outro — € por isso ancora de alguma forma o ente na soberania de seu ser, e ainda 0s atributos enquanto tais. Por sua vez, o atributo sé é tal na medida em que ele 6 uma modalidade da substancia (“afeccio”), e ndo existe senao gracas a sua ineréncia a ela. A tarefa da metafisisica vai consistir exatamente em articulé-los. Quem faz a cépula é 0 “ser”, verbo e substantivo, o “é” impes- soal que nos instala na regiéo das énta eternas, fixando a distincio de essén- cla, que qualifica a substancia, e o acidente (atributo). Distingéo que, segun- do Ladriére, além de indicar uma divisao irredutivel na ordem do ser, vai comandar toda a categorizacao ulterior do pensamento — a total autonomia da primeira (substancia) correspondendo a total heteronomia do segundo (atributo)”. 19, LADRIERE, J. op. cit. p. 181. O mesmo apelo 4 metafisica e ao modelo légico-metafisico da lingua- gem reaparece na modernidade: a busca da arché, a procura de uma forma de predicagao universal absolutamente legitima, a sua organizacio segun- do a forma légica sujeito-verbo-atributo etc., estéo 14, a testemunhd-lo, em Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz. A propria Gramética de Port- -Royal, mais do que uma légica aplicada, quer-se uma metafisica, uma metafisica da linguagem. Mas nao nos deixemos enganar pelas ilusdes da continuidade, pois nao queremos sugerir com o estabelecimento das fon- tes ou das origens histéricas da via essencialista, que a modernidade apenas se limitou a acolher 0 modelo légico-metafisico da linguagem, como se Descartes 0 tivesse extraido diretamente de Aristételes, de um s6 golpe, tal como Atena saiu da cabeca de Zeus, oferecendo-nos uma espécie de aristotelismo renovado, porém segundo os canones do método do légos. Se é verdade que os MM de Port-Royal se limitaram a estender este modelo a linguagem, oferecendo-nos uma axiomitica de tipo aristotélico, o que define em contrapartida a modernidade é sua fusdo com as matemiticas, quando a linguagem matemitica se torna a gramatica do mundo, sem as TestrigGes do esquema aristotélico-platénico (mundo supralunar/mundo sublunar, mundo sensivel/mundo inteligivel etc.). E desde entio, neste novo modelo, o matematismo esté para o logicismo, assim como as essén- cias matematico-mec4nicas estéo para a metafisica (ontologismo): 1) Matematismo: porque, como diz Descartes, as matematicas nos oferecem o modelo por exceléncia de uma forma de predicacdo legitima, ‘qualquer que seja.o dominio do conhecimento a que se aplique, desde que fundado nas exigéncias da razdo.(prova, clareza, distingao): “Essas longas cadeias de razdesAtedas-simples-e faces, de que os ge6metras costumam e para chegar as suas mais dificeis demonstracSesy haviam-1 me dado "a ocasido de imaginar que_todas as coisas possiveis de cair sob 0 conhe- cimento dos homens seguem-se umas as outras da mesma maneira, e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qual- quer uma que nao o seja, ¢ que guardemos sempre a ordem necessdria para deduzi-las umas das outras, nao pode haver quaisquer tao afastadas a que nao se chegue a ela por fim, nem tao ocultas que nao se descu- bram’”™. De modo que — sentencia Descartes no Entretien avec Burman — “quando tivermos habituado 0 espirito aos raciocinios matemiticos, nés © tomaremos conforme a busca de outras verdades, j4 que nao h4 em toda parte sendo uma s6 e mesma forma de raciocinar””. 2) Ontologismo: porque, a exemplo de Galileu, que dizia estar o livro do mundo escrito em linguagem matemitica (circulos, tridngulos etc.), 20. DESCARTES, R. Discurso do método, S40 Paulo: Abril Cultural, 1979 p, 38-39. 21. Apud GUSDORE, G. La révolution galiléenne. v. 1, p. 245. Segtindo Descartes a propria natureza est4 povoada de uma essénci Matematica no mais recéndito de seu ser — a extenséo — e para seu eonhecimento bastam as matematicas e seus principios: “Que eu no acei« te principios em fisica que nao sejam aceitos em matematica, a fim de que @u possa provar pela demonstragdo tudo o que deles deduzirei; e que estes principios sejam suficientes para tal, na medida em que todos og fendmenos da natureza possam ser explicados através deles. (...) Pois confesso francamente aqui que nao conhego outra matéria das coisas corpéreas senao aquela que pode ser dividida, figurada e movida de to- das as formas, isto 6, aquela que os geémetras nomeiam quantidade e tomam por objeto de suas demonstracées (...). E porque desta forma se pode dar raz4o a todos os fendmenos da natureza, como se poderé julgar pelo que se segue, néo penso que se devam aceitar outros princfpios em fisica, nem mesmo que se tenha razao de desejar outros, afora os que sio aqui explicados’”. Tudo isso traz profundas conseqiiéncias. A primeira delas € a corre- lagdo funcional entre o espirito e a realidade, tendo por termo médio as matematicas, a lingua comum falada pelas coisas e pelos homens: “A natureza deve ser matematizdvel — escreve Gusdorf — porque o espirito é matemitico e reciprocamente; a matematica deve fazer a unidade da natureza assim como ela faz a unidade do espirito” *. A segunda, fica autorizado o projeto de uma mathesis universalis, tendo por eixo: no plano da axiomatica, um logicismo pensado como matematismo; no plano da metafisica, uma ontologia dos principios pensada como a matemitica e consoante a seu modelo. Coisa estranha. Ao contrario da lenda que diz poderem as matemé- ticas, em principio, aplicar-se a toda espécie de objeto, porque elas concernem a forma e nao 4 matéria do saber, a razdo é mais profunda: mais além do espirito, ele mesmo matemitico, é a prépria realidade que comporta uma estrutura matemitica, e desde logo autoriza o projeto de uma mathesis universalis, cujo modelo e instrumento so as matemiticas. Modelo, pelo lado de sua construgio teérica, clara e sem lacunas; instru- mento, pelo lado de seu método, intuicao e deducio — as mateméaticas tornam-se a gramdtica do mundo, cabendo a elas, ao cabo de sua fusio com o método metafisico, conferir os titulos de validade ao conhecimento. No caso da fisica, os principios de fundagao — as esséncias — nao sao mais que a extensao, a figura e o movimento — afirma Descartes, De sorte que, se a Episteme antiga € acompanhada de uma apofantica segundo 0 modelo do silogismo — o logicismo —, no limiar da modernidade assis- 22. DESCARTES, R. Principes de philosophic. Paris: Gallimard, 1953, p. 652. 23, GUSDORE, G. op. cit. p. 246. dros de .uma-entelogia dos principios e do mais estrito matematismo de_ } timos ao nascimento de uma nova apofantica — 0 matematismo. E desde entdo a matematica, ao articular a unidade do signo, da representacdo e da coisa 4 maneira de uma fisica dos Principios, se entrecruza com a metafisica e vé seu campo de acéo ampliar- mindo ‘as esséncias (matematicas) das coisas iesmas. ial & em poucas _ ido da intwigao genial de Descartes. Desta-sorte,-stéo_é¢ devido_ao_acaso que naquela época, num século que se inscreve sem-reservas;/salvo algumas excecoes isoladas, nos qua-_ iragio platénica,{os espiritos procurem edificar_a axiomatica do siste-__ ma das ciéncias segundo seus cAnones, e busquem na geometria euclidiana 0° novo modelo de racionalidade, a qual vai ocupar o lugar da légica aristotélica na condicéo de método por exceléncia das ciéncias discursivas. jAs_razdes do prestigioydos Elementos de Euclides nos_dispensam maiores explicaées{ Por um lado, como diz Blanché, ‘por conta dos titulos de sua demonstrabilidade;— o que_os fez passar por muito tempo como. o modelo insuperdvel, e mesmo inigualavel, de teoria dedutiva Nos. Ele- fentos—=esctevé — “os terinos proprios da teoria nunca sao introduzidos sem ser definidos; as proposiges nao sao jamais avancadas sem ser de- monstradas, a excecéo de um pequeno namero dentre elas, que sao enun- ciadas ao comego, a titulo de principios: a demonstragéo nao pode com efeito remontar ao infinito e deve portanto repousar sobre algumas pro- posigées primeiras, mas teve-se o cuidado de as escolher tais que nenhu- ma ddvida subsista a seu respeito num espirito sio”. Por outro lado, porque a geometria euclidiana permite, como nenhum outro modelo axiomatico, reunir na unidade da proposigéo as duas fungées da lingua- gem que evocamos acima, a saber, a funcao de referéncia e a funcio de predicacio, estabelecendo as conexées entre a verdade material das pro- posigGes e a verdade formal de seu encadeamento légico, com a ajuda de dois procedimentos metédicos fundamentais: a definicéo e a demonstra- cdo. Assim sendo, 4 luz do modelo da estrutura proposicional, toda a axiomatizagao vai consistir, como o faz notar Blanché, gracas a um certo namero de principios de base previamente definidos — os postulados — ea outros tantos principios de derivagéo — a deducdo —, “em construir a partir dai proposigGes novas, justificadas por meio de demonstragGes e de termos novos fixados através de definigées”™. E a partir dessas coordenadas que se procurou construir na modernidade a axiomatica do sistema de ciéncias nos quadros da estraté- gia essencialista, de Descartes a Espinosa, de Leibniz a Malebranche. Pensando o conhecimento 4 maneira de uma axiomatica do pensamento 24. BLANCHE, R. L'axiomatique. Paris: PUB, 1955, p. 1 e 15. puro, fechado sobre si mesmo e tendo no interior de si 0 index da verdade OU fla medida, o espirito de sistema é o tracgo que o define. A exemplo de Platio, que dizia que o filésofo deve ser synoptikés e cuidar da intuiggo do todo, estima-se que num conhecimento que procede segundo as exi- géncias da razao, cada teorema deve estar ligado, através de uma relagao. de necessidade (necessidade légica), a um corpus de proposigdes de base do qual ele se deriva a titulo de conseqiiéncia. Demais, pretende-se que os lagos que os unem séo téo mais fortes e tio mais firmes que se pode construir a partir deles, passo a passo, um sistema fechado sobre si mes- mo, no qual, direta ou indiretamente, as verdades de cada Proposicéo sé comunicam umas as outras, dando lugar a um discurso de tal forma articulado que — sublinha Blanché — “ nao se poderia modificar uma parte sem comprometer 0 todo”®. Por fim, acredita-se que, além de arti- culado, o sistema é tanto mais completo que ele encontra em si o index de sua verdade e a garantia de sua certeza ou validade, sem necessidade de fazer apelo a nenhuma instAncia externa: a idéia ou 0 conceito. Obra do pensamento, o qual controla passo a passo a sua construcdo, a sua edificagéo nao encerraria maiores mistérios. O anico cuidado, na impossibilidade de tudo definir e de tudo demonstrar, é o pensamento escolher, dentre as idéias por meio das quais ele conhece as coisas, aque- las que sejam tao evidentes que nao recaia sobre elas nenhuma duvida, e assim possam servir de ponto de apoio a cadeia de razdes: os axiomas, eles proprios indemonstraveis, ainda que condigéo da demonstracdo. Uma vez obtidos estes princfpios primeiros, a regra de construcéo das propo- sigdes, dos teoremas e do edificio inteiro, consistiria, segundo Pasch, em quatro operacées fundamentais: “1) Que sejam enunciados explicitamente os termos primeiros a partir dos quais se definam todos os outros; 2) Que sejam enunciadas explicitamente as proposigées primeiras com cuja ajuda se procura demonstrar todas as outras; 3) Que as relagdes enunciadas entre os termos primeiros sejam puras relagGes ldgicas, e permanecam independentes do sentido concreto que se possa dar aos termos; 4) Que apenas estas relagGes intervenham nas demonstragées, independentemen- te do sentido dos termos (0 que nos interdita, em particular, de emprestar algum sentido a consideragio das figuras)”*, Este método tinha sido aplicado com sucesso & fisica por Arquimedes, em plena antiguidade, no campo da estdtica, como observou muito bem Lalande no seu belo estudo sobre as Teorias da Indugio ¢ da Experimentagéo, acentuando seu procedimento puramente abstrato e apriorista na defini- Gho do fluido: “Hipétese: admite-se que a natureza de um fluido é tal que a 25, BLANCHE, R. op. cit. p. 1-2 %, Apud BLANCHE, R. op. cit. p. 23. fas partes se encontram igualmente dispostas e contiguas entre si; que Aquela que é menos pressionada é deslocada por aquela que o € mais; que eada parte do fluido é pressionada pelo fluido que esté em cima segundo _ i vertical. Partindo dai, Arquimedes demonstra que a superficie do fluido em repouso deve ser esférica; que um corpo que tenha a mesma densida- de do fluido desceré até o ponto em que esteja completamente submerso _ etc, etc. As demanstraches se-sucedem como num tratado de geometria, algumas s até mesmo deduzidas pelo absurdo.|Nao_se faz .nenhum_ apelo a experiéncia; e mesmo, no curso do Tratado, s6 se introduz uma ‘hipétese’ nova: supGe-se.que os corpos que, num fluido, séo impulsiona- dos para 0 alto, 0 sao segundo a vertical que passa pelo seu centro de ravidade. Que a lenda seja verdadeira ou falsa, a experiéncia sugeriu estas construgées, mas precisamente no sentido em que ela pode sugerir ao gedmetra a construg’o de circulos e cilindros. Sem davida Arquimedes, na pratica, fazia algumas experiéncias, mas sem falar delas, a titulo de tateamento ou de verificagéo. A céncia, para ele, exige o encadeamento a prior das idéias, definidas in abstracto?”. Agualmente.o_faz.a madernidade,que estende este procedimento em _ primeiro lugar a fisica celeste,/com Copémico-e Kepler, ¢ enfim.a-fisica terrestre (dindmica),.com Galileu e Descartes. Porém, uma condicao deve ser satisfeita para que este_métodoj possa ser estendido ao mundo das c6isa5, 0b pena de operar no vazio das abstragées: é preciso dar as ilages do pensamento a necessidade das conexées da coisa, e para tal fim asso- ciar o método matemitico com o método metafisico. Com isso, o espirito de sistema logo se identificop com o espirito metafisico,ra ponto_ de Des- cartes neles ver uma s6 e mesma coisa: aplicadas as existéncias reais, as definigdes querem-se-reais eessenciais, nao simplesmente ideais e nomi-_ nais; os primeiros principios sao tidos principios da coisa ¢ nao tio-s6 do pensamento *; a intuicao intelectual e a dedugdo sistematica so as vias pelas quais um espirito sao procura dar as ilagdes do pensamento a neces- sidade das conexdes da coisa — a deducao oferecendo-nos os elos da cadeia de razées, a intuigio nos instalando na coisa mesma e nos forne- cendo suas naturae simplices. Tudo isso confere ao método um cardter a um tempo formalista e apriorista: “Formalista”, pelo lado do matematismo, pois seus principios sio postulados fj ‘acto, e desde logo mais_afetos 4 forma_do que a matéria do saber; “apriorista”, pelo lado da ontologia dos principios, uma 27. LALANDE, A. Les théories de U'induction et de expérimentation. Paris: Boivin & Cie Editeurs, 1929. p. 22-23, 28. C£. DESCARTES, R. Principes de philosophic, p. 669-670, onde nosso autor trata da certeza apoditica, mostrando-nos que ela se aplica aos seres de razio das mateméticas, bem como as coisas corpéreas da fisica. 7 ontologia que se quer a priori, pois seus Principios o pensamento os tira de seu préprio fundo, antes de nos falar da coisa mesma. E este método que organizou a mdthesis em sua variante essencialista, tornando possiveis essas individualidades que sao Descartes, Espinosa e Leibniz. Se um nome Ihe convém — ou ao menos a nés que estamos acostumados a pensar que 48 coisas existem quando lhes damos um nome —, é chamé-lo de categé- rico-dedutivo, e nao hipotético-dedutivo, este bem mais tardio para que se lhe possa aplicar: “categérico”, pela natureza da inferéncia, assentada em definigGes essenciais e em hipdteses que, ao invés de nos levar ao real Sragas ao rodeio de uma conjetura do pensamento avangada sub-judice (hip6tese-conjetura), nos instalam diretamente na coisa, fixando uma suppositio sobre a natureza do seu ser (hip6tese-principio); “dedutivo’, pela forma da inferéncia, que cuida de dar as ilagdes do pensamento a forga da conexao das coisas, estabelecendo os nexos de necessidade que as ligam entre si (dedugao sistematica). Um bom exemplo deste procedimento metédico no campo das cién- cias humanas é 0 método matematico-metafisico de Espinosa, no qual a fusio do matematismo e da ontologia dos principios deu lugar a tentativa de buscar na linguagem dos planos, dos ntimeros e das figuras a chave do. mundo do éthos e do agir humano, e ao mesmo tempo de encontrar a forma de predicagao absolutamente legitima na necessidade de um ens a se causa sui: a substancia. Uma variante deste método é 0 légico-metafisico dos MM de Port-Royal, no qual o logicismo nao deu lugar a um matematismo de estrita observancia, a exemplo de sua ontologia, igual- mente de tipo aristotélico e nao platénico. 3. A Mathesis e as Ciéncias Humanas Qualquer que seja o dominio a que se aplique, a axiomiatica deve, pois, satisfazer a duas exigéncias fundamentais: 1) deve-se fundar na propria realidade, para o que se postula que a “maquete” dos principios, definida in abstracto e a priori, corresponda ao real empirico e se reporte ao em-si da coisa (ontologismo); 2) deve atender As exigéncias de controle do préprio intelecto, de modo que as verdades do pensamento apresen- tem por toda parte os mesmos titulos de demonstrabilidade e os mesmos efnones de rigor e de precisdo (matematismo)®. Descartes dizia que, as- sim como o sol ilumina todas as coisas, 6 uma mesma raz4o que conhece todas as coisas; ora, ao se estender as existéncias reais, pretende-se igual- mente que as ciéncias naturais e as ciéncias humanas se sirvam dos mes- mos procedimentos metédicos e instaurem um mesmo sistema de sa- 29, GUSDORE, G. La révolution galiléenne. v. 2, p. 126. ber —a méthesis —, marcado pela necessidade de nos dar a determinacao completa da coisa e de conferir suficiéncia “légica” a seu corpus de pro- posigées (principio da fundamentagio suficiente do conhecimento). Entretanto, o corpus das ciéncias discursivas modernas nao nasceu de. um s6 golpe, mas antes de um lento trabalho de desconstrucao racional, envolvendo os conceitos de homo e de natura, de que resulta uma nova imagem do homem e do universo. Comecemos por este tiltimo: o conceito de natureza. Com efeito, 0 termo grego physis, bem como.o.latino natura, reenvia, em sua etimologia, 4 idéia de vida, ja_um_ de vida e de movimento que” eit universalidade e necessidade se impée a todas as coisas e confere a cada_ uma a natureza propria do seu_ser.Mas como é diferente a naturez para . o homem antigoamedieval e renascentista! Uma natureza onde reina a ordem, a beleza das formas e a harmonia das proporgées, estima o ho- mem antigo, um homem que habita um universo finito, Compartilhando - com. cada coisa de. uma mesma alma do mundo que os integra num todo nico e 3 ea aa seu destino esta tio indissoluvelmente colado como a nafureza que no inicio.era o paraiso. vivo e alegria a-terra era taete novo viverd em unio com Deus, mercé-de sua graca-(Uma natureza-mae que cuida com zelo de suas criaturas, acre- dita o homem renascentista, fm homem que se imagina assistido erto por uma vontade providencial atenta as suas afligées e rica em prodigios e adverténcias cifradas (magia natural). Ora, habitando um mundo aberto e um universo infinito, o homem moderno vé nestas figuras da natureza e na alma que a anima algo como o residuo do pensamento magico, e procura um novo conceito mais con- forme aos seus designios e ao mundo novo que o abriga. Seu olhar nao 6 mais o de um filho temeroso que a reverencia (natura mater); sequer 0 de uma criatura infeliz ante um ente decaido; menos ainda o de um in- dividuo nela integrado e que nela tem o seu limite — mas o de um senhor que a submete a seus fins, pondo-a a seu servigo. Filho da idade mecanica, 0 universo que 0 homem moderno habita ndo é um universo organico, mas mecanico, e a imagem que se lhe afigura nao é a da mae zelosa, dos astros-deuses ou do bom Deus, mas a da maquina. Um mecanicismo a medida do prometeismo, eis a natura do homem e dos tempos modernos. Neste novo universo, se ha um lugar para a providéncia divina, ela nao é mais a do patriarca biblico ou do demiurgo criador, mas a do deus dos geémetras, que construiu uma épura tao perfeita que dispensa seus servigos, ou a do deus dos relojoeiros, que se limita a reparé-lo de tempos 73 @f tempos. Tendo ante si um mundo abandonado a seus mecanismos, 0 horem moderno logo o esvaziou da alma, da velha alma do mundo que, qual um sopro divino insuflado em cada ente, governava o seu ser e 0 flubmetia a seus fins. No seu lugar, ficou um mecanismo sem alma, & imagem do relégio. E a alma, junto com Deus, se retira do mundo, aban- dona 0 corpo e se aloja na esfera do espirito ou do sujeito. Mundo sem Deus e sem alma, a natureza como que se dessacraliza, € se abre ao cAlculo e a anlise matematica. Pensada como combinacao de matéria e de movimento, nao é mais necessdrio imagind-la dotada de uma espontaneidade vital: bastam a matéria e as forcas exercendo-se sobre ela, Uma natureza mecénica auto-regulavel e matemétizdvel, tal é a physis dos modernos: um agregado de dtomos justapostos, diréo uns; uma extensdo. ou corpo geométrico, dirdo outros. Esta “desencarnagaéo” foi operada por Gassendi, Galileu, Mersenne e outros, provocando o “milagre” dos anos 20 de que nos fala Lenoble. Em todos os dominios, expurgam-se as qualidades ocultas e as afinidades secretas das coisas, junto com a alma do mundo, num processo irresistivel que termina jogando por terra o esquema do cosmos e o hilozofsmo que 0 acompanhava. Embora nao seja obra de um s6, mas de todo um século, é sem dtivida Descartes quem nos da o melhor testemunho desta desencarnagao, quando, em diversas partes de sua obra, acusa de “mito antropomérfico” a idéia de alma como principio de vida e de movimento do corpo, atribuindo sua origem a um misto de ignorancia e de supers- tigdo, e vendo em sua raiz uma idéia confusa que é preciso abandonar®, De um lado, 0 fato de experienciarmos, desde nossa infancia, que varios movimentos obedecem a vontade, que é uma das poténcias da alma, nos predisp6e a acreditar que a alma é€ o principio de todos. De outro,.a ignorancia da anatomia e da mecdnica faz com que os homens, tendo em conta apenas 0 que percebem do exterior dos corpos, se vejam impedidos de imaginar que, tendo tal constituigao e tais dispositivos internos, os corpos poderiam mover-se por si mesmos, independentemente de todo elemento volitivo e consciente. A estes soma-se um outro erro, ainda mais Brave: 0 fato de constatarmos que os corpos mortos tém os mesmos ér- g40s que os vivos, faltando-Ihes apenas a alma, e que nao ha neles, toda- via, nenhum movimento, nos leva a acreditar que a auséncia da alma é que provoca a morte e a falta de todo movimento”. Descartes vé em tudo isso um equivoco. Mais além dos movimentos voluntdrios, h4 os involuntdrios, bastando para sua compreensdo os espiritos animais e a disposicdo das partes do préprio corpo”, Um bom exemplo disso nos dao 30, GURSDORE, G, La révolution geliléenne. v. 1, p. 272. 51. Ibidem. p. 272. 32. Ibidem. p. 272. as fungdes de digerir a carne no estémago e de mover 0 coragdo e as artérias, as quais nao contém nenhum pensamento e dependem tao-s6 do corpo préprio, mostrando-nos que é mais normal /que um corpo seja movido por um eutro corpo do qué por-uma-alma, \Por fim, um corpo nao morre porque a alma o abandona,\mas a alma o abandona porque o corpo meorre — conclui o autor das Paixdes da Alma. O resultado de tudo isso é a desconstrugaéo do conceito de physis, suspeito demais (de animismo) para ser conservado na nova Episteme, a qual procura encontrar um outro mais conforme a seus designios. Um caminho é 0 de Boyle, que buscou nas idéias de atomo e de agregado o substituto das esséncias vitalistas e das virtudes secretas, vendo na “na- tureza” um conceito cujo significado se embaralhou demasiadamente em seu uso corrente, no qual coexistem inspiragées e tradicgdes as mais con- traditérias: “Eu considero — escreve Boyle — como uma coisa infeliz e prejudicial a um tempo 4 fisica e a filosofia que a palavra ‘natureza’ tenha sido empregada tao freqiientemente, e de uma maneira tao desastrada, por toda sorte de pessoas. Pois, a imensa ambigitidade deste termo, e 0 uso confuso que se fez dele, sem a devida atengao 4 diversidade de suas significac6es, torna ininteligivel, impréprio ou falso um bom ntimero das expressdes nas quais ele é empregado”, podendo designar desde Deus ele mesmo (Natura Naturans) até a esséncia e a qitididade dos escolasticos (Natura Naturata), Para nos ajudar a sair desta imensa confuséo — comen- ta Gusdorf — Boyle propée sua prépria definicao: “A natureza é 0 agre- gado dos corpos que constituem o mundg, no seu estado presente, con- lerado como um principio em virtude do qual eles sao ativos e passivos, segundo as leis do movimento prescritas pelo Autor de todas as coisas”. Outro caminho é o de Descartes, que nos convida a distinguir a alma do corpo, @ a ver nas matérias corpéreas a solidez de um corpo geométrico ea forma de uma pura extensao, pois no universo fisico em sua totalidade nao ha matéria corpérea que “ndo possa ser dividida, figurada e movida de todas as formas”, e como tal redutivel aquilo que os “geémetras cha- mam quantidade e tomam como objeto de suas investigacdes”™. Assim, para além das diferencas de indole, quer sob a forma de um agregado de dtomos justapostos, quer sob a forma de uma extensao ou corpo geomé- trico, estamos de fato ante um mundo novo: 0 mundo da bela épura concebido como geometria encarnada, de Descartes; o mundo dos 4tomos e dos vazios concebido como fisica do movimento, de Boyle — ambos pondo no lugar das esséncias vitais e afinidades secretas da alma do mundo um mecanismo sem alma 4 imagem do relégio, e como tal indi- ferente a nossas intengdes e a nossos fins. 33. Apud GUSDORE, G. op. cit. p. 273-274. 34, Cf, DESCARTES, R. op. cit. p, 652, A exemplo do conceito de natureza, a idéia de homem se prestou no eurso da historia a toda espécie de ambigitidades e mal-entendidos, aos quais se procura estender os mesmos procedimentos do modelo meeanicista. Comecemos pela antiguidade classica (Grécia). Aqui, as dificuldades para reduzi-lo (0 homem) a um conceito homogéneo e univoco saltam a vista: com efeito, como se poderia falar de uma natureza humana, se um Sécrates o define nado como um “ser” (ser natural), mas como um “dever- -ser” (ser moral), aludindo 4 divisao tripartite da alma (razao, sensibilida- de e desejo), e A necessidade de controlar os instintos, através de uma vontade consciente; se um Platao, destacando por sua vez sua “natureza”, o define como um “bipede sem plumas”; e se enfim um Aristételes, além de defini-lo como 0 tinico “animal que ri”, faz dele um animal gregario 4 maneira das abelhas e das formigas, nao sem antes, ao se referir ao zéon politikin, os haver dividido em duas classes de homens — a primeira, constituida de individuos livres, capazes de cultivar as virtudes (areté) e de tornarem-se homens no sentido forte (homens de bem), e assim de viverem numa comunidade (comunidade de obras); a segunda, a dos escravos, entendidos estes como “nao-homens” e verdadeiras “maquinas animadas”? A idade média nao parece estar reservada uma melhor sorte. Assim como a natureza, o cristianismo enquadra 0 homem nos “mistérios” da doutrina da criagao, afirmando que Deus criou ex-wihilo a natureza, a comecar pela sua esfera fisica (invencio da luz), passando pela das plan- tas e dos animais, depois pelo homem e pela mulher, até chegar a socie- dade, ocasidéo em que ele deixa a cena e abandona o homem a si mesmo, cuja existéncia fica suspensa “entre” dois mundos — o daqui de baixo, corrompido pela queda e pelo pecado; o do além, lugar do resgate e da salvacao ao fim dos tempos, com a ajuda da providéncia divina (graga) e de seu amor pelos homens. Donde se segue a condicéo a um tempo “na- tural” e “sobrenatural” do homem: na origem, antes da queda, o homem aparece como a mais divina das criaturas, criada 4 imagem e 4 semelhan- ga de Deus; no fim, depois da queda, como uma criatura corrompida e miserdvel (cf. Santo Agostinho: 0 homem é uma criatura miseravel que nasce entre excrementos e urina). De modo que, abandonado a si mesmo, © homem é uma criatura invadida pelo pecado, a vida nao tem sentido e a terra é um vale de lagrimas; 0 verdadeiro fundamento do homem nao residindo neste mundo, deve ser buscado alhures, e é portanto graca e uniio com Deus. Da mesma forma, enfim, a renascenga, cujo quadro nao poderia ser mais desolador, se visto a partir da exigéncia de um conhecimento “po- sitivo” da natureza humana. Com efeito, como se poderia conciliar a afir- macio do “homem total” de humanistas como Erasmo e de uma certa maneira Montaigne, com a antropologia pessimista de um Maquiavel, que toma os instintos naturais da maior parte dos homens como maus ¢ cor- rompidos, dizendo que os homens ndo fazem jamais nada de bom e de bem, se nao sao obrigados a fazé-lo sob o peso da mais violenta das coergdes? Ou mesmo com a teologia de Lutero e Calvino, que nos falam da “natureza pecaminosa do homem” — Lutero, dizendo que a vontade do homem é€ mi, isto é, nado que algo seja mau no homem, mas que o homem € mau no mais recéndito do seu ser, que sua maldade é sua natureza mesma corrompida; Calvino, afirmando que o pecado original é a perversao e a corrup¢ao herdadas por nossa natureza em todas as suas partes, de forma que, invadido pelo pecado da cabega aos pés, nenhuma parte de seu ser esta livre dele, tudo o que ele faz deve ser considerado como pecado, pois, como diz Sao Paulo, todo pensamento e pulsdo da came é hostilidade para com Deus e portanto morte?® Dai a necessidade de desconstrucdo dos conceitos de homem e de natureza humana, estimam os modernos, vendo neles um par de idéias confusas e contraditérias. Definir o homem pela esséncia, a exemplo da alma, ac que parece ndo resolve o problema: 1) ao ser ético e espiritual de Sécrates se sobrepde 0 z6on politikin de Aristoteles, que toma o homem como uma coisa (animal) e faz da alma uma afecgao da natureza (physis); 2) a mais divina das criaturas da tradicdo judeu-crista se inflete na natu- reza pecaminosa do homem do outro lado do cristianismo — o protestan-. tismo. Resultado: ao invés de nos oferecer uma natureza humana homo- génea e univoca, estas esséncias em realidade instalam uma _verdadeiza aporia— ins, fazendo do homem um cidadao de dois mundos (munde—- sensivel e mundo inteligivel), como em Platao; outros, suspendendo-o entre dois mundos, o “aqui embaixo” e o “além”, como no cristianismo e sua dialética da queda e do resgate. Por seu turno, se a esséncia nia — resolve o problefiia, falar do homem real com a ajuda das notas do devir ("acidentes”) nao nos oferece uma melhor sorte, pois as diferencas que 0 qualificam seriam sempre arbltrévias, gontingentes e extrinsecas ao ser ("0___ hemem“), como viu Xenéfanes ao se referir ads deuses dos egipcios e dos trdcios, os primeiros negtos € com 0 Nariz chato, os tiltimos com os olhos verdés'e os cabelos ruivos... como eles. De fato, como diz Horkheimer, nao existe uma forma de predicacdo universal que determine de uma vez por todas a esséncia do homem e suas relagdes com a sociedade e a natureza, do mesmo modo que ndo se pode considerar a histéria como a emanagdo de uma esséncia humana unitaria, que guarda sua identidade desde a noite dos tempos. A exemplo 35. Cf. HORKHEIMER, M. Teorfa erftica. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, cap. V, © qual seguimos de perto na nossa abordagem. 7 da formula acidental, que simplesmente abandona o homem ao devir e 0 toma como um acidente, a férmula fatalista é igualmente ingénua, a saber, © curso do devir histérico 6 dominado por uma necessidade “exterior aos homens — Deus, a Natureza, a Fortuna. Assim procedendo, seja re= portando-se ao ser, seja remontando-se ao devir, perde-se a natureza do homem: numa, retém-se o devir e se perde o ser; noutra, retém-se 0 sel e perde-se o devir®. Ora, filho da idade mecAnica, o homem moderno nao se reconhece nestas definigées que o faziam residir em dois mundos, ou mesmo, qual um imperium in imperio, nam mundo a parte, 0 mundo da liberdade e oposicdo ao mundo da necessidade. Ele, que habitava um universo meca: nicamente determinado, nao se via afetado em seu campo de acio pel barreira da natureza e menos ainda diminuido em suas prerrogativas direitos: conhecendo-lhe 0 seu mecanismo e obedecendo as suas leis, ell poderia mesmo chegar a dominé-la e converter-se em “majtre et possesseu de la nature”. Demais, livrando-se das trevas da ignorancia e da supersti: Gio, e conhecendo os mecanismos da natureza humana e da sociedade dos homens, ele poderia colocar as poténcias humanas a seu servigo, afas: tando os acidentes e as fatalidades que, qual um destino cego, estorvaval © progresso e as liberdades. Tal é a a convicgio do homem moderno. ponto de Espinosa nao hesitar em afirmar que liberdade e necessidade sao uma s6 e mesma coisa, vale dizer, antes de ser livre-arbitrio e liberta indifferentiae, é libertas independentiae e consciéncia da necessidade. Uma natureza dessacralizada quer um homem desmitizado. E, co! efeito, € um homo novus que a scientia nova nos quer oferecer. Ao invés di encerrar o homem no circulo de ferro da physis, instala sua morada naj historia e na cultura. Nao vendo no seu embate com a natureza nada di sacrflego, e cuidando de afastar Deus e a esfera das divindades para ber longe, é um novo prometefsmo que se anuncia: a mesma fé no homem, mesmo gosto da liberdadee e a mesma crenca na virtude emancipadori do conhecimento do prometeismo antigo; porém, a diferenca do sofrido tita, que se batia contra os deuses num combate sem esperangas, poli sabia de antemao que eles eram mais poderosos, 0 Prometeu modernd sabe-se mais forte e est4 certo de que finalmente vai impor-se aos deuseg; convertendo-se em senhor e possuidor da natureza”. 36. HORKHEIMER, M. op. cit. p. 52. 37. Vale notar que 0 mito de Prometeu é um tema constante na modernidade ¢ ut imagem recorrente na histéria da humanidade. Marx chega mesmo a colocar em epigrafe mil gua tese de doutorado a fala de Prometeu a Zeus em Esquilo: “Sabe tu que jamais quererll eu trocar meu inforténio pela condicao de servo teu. Pais melhor me parece estar acorrentad a este rochedo do que passar toda a vida como fiel escudeiro do Pai Zeus”, Marcuse em Ea ¢ Civilizagio afirma que “Prometeu ¢ 0 heréi cultural do trabalho penoso, da produtividad do progresso, em meio a repressao (...); 0 astuto e (softido) rebelde contra os deuses, que crlf 2 De modo que se a pergunta ainda é a_mesma: que _é 0 homem?,a resposta agora é diferente, pois 6 um novo olhar que se volta sobre ele. E preciso antes de mais nada conciliar dois fatos/ou pélos aparentemente de natureza, o homem parece estar governado pela - mesma necessidade da physis; ger de artificio ede invencao_(ser cultural c hist6rico), o homem se insurge contra a natureza_e, livre, desobedece as leis que ele préprio criou;Como.dar ao-primeiro a “souplesse” do segundo, sem perder a forca coercitiva dos, mecanismos que da 4 necessidade a {prema da lei? Como dar ao segundo a forga constritiva do primeiro, sem sacrificar o elemento da liberdade,que faz do. homem uma _criacao conti- _ nua de si mesmo e_um_devir?{Para dar_uma resposta satisfatéria.a.essas perguntas, 0 homem moderno-trata de pensar o_mundo da cultura e da histéria como uma espécie de segunda natureza, dotado das mesmas leis necessdrias e universais, porém leis que obrigam in foro interno, e desde logo distintas da vis a tergo da natureza simplesmente fisica. A necessida- de da lei, junto com a liberdade e a possibilidade de desobedecer-lhe, busca-se no interior da propria natureza humana, nos mecanismos e dis- positivos do corpo e na liberdade da vontade da alma. E desde entao, 0 fato de o homem, um ser de liberdade, pér-se 4 margem da natureza, nao constitui problema: se ndo se pode colocar o homem na natureza, deve haver um meio de pér a natureza no homem e descobrir os mecanismos internos que o governam (Desanti) — eis a idéia-forga da figura da natu- reza humana da modernidade e do homem que a acompanha: 0 homem- mé4quina. Mercé desse novo olhar, comega-se a falar de uma natureza humana mecanicamente determinada 4 imagem do relégio, um corpo-maquina com seus “tuyaux, filets, ressorts” etc., da mesma ordem que os autématos fabricados pelos homens, esvaziando assim a distingdo cara aos antigos entre os seres de artificio (artificialia) e 0 seres de natureza (essentiae). A prépria sociedade é compreendida como um imenso mecanismo, cujas unidades ou elementos sao os individuos, e como tais movidos por um duplo motor: 1) a regido neutra dos instintos e das paixGes; 2) a acéo reguladora ou corretiva da razéo (Horkheimer). Por seu turno, o modelo a cultura ao prego da dor perpétua. Ele simboliza a produtividade, o incessante esforgo de dominar a vida (...). Prometeu é © heréi-arquétipo do principio da performance”. Celebrado por Hesfodo, o mito de Prometeu, que é também o mito da criacdo do homem, narra o roubo do segredo do fogo pelo titd e o posterior castigo, pelos deuses, de sua insoléncia. Em seus didlogos Platio nos fala de Premeteu como deus civilizador. Além dos temas do castigo e do destino, caros aos antigos, duas outras idéias estdo assocladas no mito desde os tempos areaicos: a) a acdo emancipadora do conhecimento; b) a afirmacdo da liberdade, o gosto da aco, a £6 no homem — nas quais vamos encontrar dois tragos fundamentais da Episteme e do homem modernos. Porém, a diferenga do tité antigo, o Prometeu moderno, como diz Gusdorf, sabe que € mais forte do que os deuses ¢ que, finalmente, vai impor-se a eles, convertendo-se em,senhor da natureza. 79 de racionalidade capaz de unir esses motores e as diferentes esferas do sé (homem) 6, nado o cosmos, Deus ou a natureza, mas a maquina e sell mecanismo. De um lado, 0 corpo humano e o espirito sao verdadeiral méaquinas — uma maquina de pensar, de calcular e de falar, diziam Leibni Pascal e Condillac; um corpo-maquina de inteligibilidade matemdtica, afirmava Descartes*. De outro, a prépria sociedade politica é uma mdqi na — uma maquina de governar, observa Hobbes no Leviathan, afirmand que o estado é um gigantesco autémato, onde os magistrados e os funcia nérios s4o as articulagées artificiais a servico da lei e da justiga, e o sob rano uma sorte de raz4o ou vontade artificial, cujo artifice é o proprit homem e cuja construcéo — edificada sobre 0 pacto e o contrato — assemelha a “Aaquele Fiat, ao Fagamos o homem proferido por Deus Criagao”®. Ser de natureza e ser de artificio e de invengao, é no ponto de inte segao dos mecanismos naturais da physis e de um plano artificial elev: do-se sobre ela que o homem deve ser inventado e forjado como uma ol a exata medida de si mesmo — tal é 0 sentido e a necessidade da histérl e da cultura. Para dar a necessidade a forma da lei no mundo da cultura, a gram tica e a politica nascentes vao buscar no contrato aquela forca adstringet que obriga in foro interno contratantes e contratados, soberanos e stdit ea propria comunidade dos falantes: a razao. Na gramiatica, o sistema dit signos é pensado a luz de um contrato coletivo que submete os fala as regras coercitivas de uma raz4o universal, com vistas as necessidad de comunicagao. De modo que, se o signo enquanto elemento préprio linguagem € um artificio criado pelos homens e comporta uma natul arbitraria, a estrutura da linguagem nao é nada arbitraria. Quem estf raiz do contrato e da a necessidade a forma da lei — as regras da gram tica — 6 a razéo — as esséncias ideais do pensamento e sua necessid légica — A qual a linguagem se limita a dar forma (veiculo das essénel Ou seja: uma raz4o universal comum a todas as linguas, para al€é! diversidade de indole ou de espirito (algumas linguas sao declinati¥ outras, s40 prepositivas; algumas dispéem o sujeito légico no inicio frase, como o francés; outras, os termos ou ocorréncias mais important a exemplo do latim etc.). Por sua vez, na politica, 6 também o contrato da a necessidade a forma da lei, uma lei-mandamento que obriga in fi 38. Cf, DESCARTES, R. La formation du foetus: “Si Yon connaissait bien quelles sont les parties de la semence de quelque espéce animal en particulier, par exemple de I on pourrait en déduire de cela seul, par des raisons entiéremente mathématiques et cert toute la figure et la conformation de ses membres"; apud GUSDORE, G. La révolution gall v. 1, p. 273. 39. HOBBES, T. Leviata. Sao Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 5. 80 interno e pede assentimento — e nao simplesmente uma cadeia artificial que aprisiona do exterior os homens —,, articulando uma razo que co- manda e uma vontade que obedece, e sua agao é tanto mais forte que é capaz de neutralizar os efeitos dissolventes dos instintos que governam os homens em estado de natureza: 1) em primeiro lugar, e tal vai ser a via de Hobbes, postula-se que, em estado de natureza, os individuos sdo solitarios e egofstas, destituidos de todo laco social (homo homini lupus); 2) em seguida, estendem-se aos individuos atributos da natureza extra-hu- mana que vamos encontrar espalhados no mundo natural, em comum com as bestas e os animais — os instintos: no estado de natureza o maior mal é a morte e o maior bem a vida, e toda a atividade dos seres que 0 habitam, homens e animais, é dirigida a este fim — evitar a morte e manter-se em vida —, nao economizando meios para tal (instinto de so- brevivéncia); 3) enfim, faz-se recair sobre os efeitos dissolventes dos ins- tintos e das paixGes que governam os homens em estado de natureza, a acao reguladora da razio que, se nao tem o poder de elimina-los, é sufi- cientemente forte para retificé-los e subordind-los a seus fins: abandona- dos a seus préprios instintos e 4s suas prdprias paixdes, os homens em estado de natureza sao levados a se codestruirem (guerra de todos contra todos); por isso, os homens, que sao de toda forma razoaveis, sob a amea- a da destruigéo da propria espécie, fazem um pacto e entram em socie- dade, criando 0 corpus de suas leis e instituigdes®. Muito embora criadas pelos homens, estas estao longe de estar esvaziadas, porque artificiais, e sua agao é tanto mais eficaz que, além de neutralizarem as impulsdes egoistas que acompanham os homens desde o nascimento até a morte, criam a sociedade e forjam o corpo dos cidadaos, gracas a um forte apa- relho repressivo (estado), a uma dura disciplina dos conflitos e diferendos (direito) e a uma absoluta submissao & lei do dever (moral). Para vencer a diversidade do éthos histérico e a relatividade dos va- lores da cultura, e assim dar a necessidade a forma da lei (universalida. de), Espinosa pde na raiz da agdo o conatus, tomando-o como 0 principio de afirmagéo do ser na atualidade do agir (sens in actu), e buscando na lingua dos planos e das figuras — 0 método geométrico com seus axio- mas, seu apelo a evidéncia, suas redugdes ao absurdo e o indefectivel CQD —a chave do mundo do éthos e do agir humano. Um mundo ¢ uma acao governados pelo conatus (desejo), em cuja raiz vamos encontrar ndo uma falta constitutiva que opera o homem (falta do ser, que a acdo visa preencher ou suprir-Ihe a lacuna), mas a pulsio de afirmagao do ser na atualidade do agir (vale dizer, na raiz do conatus nao temos a falta, mas 0 excesso, a sobra de energia, e desde logo conta como uma “positividade”). 40. A respeito da axiomética do Leviaté e da categoria de natureza humana em Hobbes, ver MACPHERSON, C. B. “Introduction”. In: HOBBES, T. Leviathan, London: Penguin Books, 1968, p. 9-63. 81 €si8a Ab pensamento; 2) da linguagem ao pensamento, cujo termo médio bu elemento comum € a representagao. Donde se segue uma dupla con- feqiiéneia: 1) ¢ gragas ao medium da representacao que se institui a ligacéo entre as palavras e as coisas; 2) € gracas ao signo-representagéo que se dispde a matéria e a forrna do conhecimento num sistema de saber con- temporineo de si mesmo: o discurso-quadro. As ‘im, elemento préprio da mdthesis, 0 signo-representagdo vai per- mitir-nos introduzir exatamente o “arbitrario justificado do sistema”. E ele — escreve Foucault — que dé lugar a procura da origem e a busca da calculabilidade; 4 constituigao de quadros fixando as composigées possi- veis e a restituicao de uma génese a partir dos elementos mais simples. E ele que aproxima todo o saber de uma linguagem — uma lingua bem feita, segundo Condillac —, procurando substituir todas as linguas natu- rais por um sistema de simbolos artificiais e de operagées de natureza légica’®. E ele ainda que autoriza uma analitica (redugao da natureza aos elementos simples) e uma combinat6ria (reconstrucdo genética ou sintéti- ca do complexo a partir do simples). E ele por fim que tornou possiveis estas individualidades que se chamam Hobbes, Berkeley, Hume e Condillac’, todos habitando um espago epistemolégico comum, cujo solo arqueolégico 6 0 mesmo — a mathesis cum taxinomia— e cujo regime dos signos — uma espécie de Algebra das representag6es — é soliddrio a um tempo de uma apofantica e de uma teoria nominalista do conhecimento, abrigando lado a lado um Descartes e um Newton (mathesis), um Lineu e um Buffon (taxinomia). Nao obstante sua capacidade de seduzir os espiritos, 0 defeito da bela arqueologia de Foucault é que ela torna homogéneas as diferentes estra- tégias discursivas que armaram a Episteme moderna, ao negligenciar as diferentes vias pelas quais 0 espirito procurou construir sua axiomiatica e ao ignorar o papel da metafisica na instalacio da ontologia dos principios que Ihe é soliddria. Com efeito, se 6 verdade que o sistema de conheci- mento na idade mecanica — 0 discurso-quadro — esté assentado no sig- no-representagao, isto estd longe de autorizar sua redugdo a um discurso “nominalista”, como quer Foucault. Certo, tanto na estratégia essencialista como na fenomenista, a representacao € o dado mais imediato do conhe- cimento, e toda a dificuldade consiste em saber como podemos dispé-la em ordem (“ordem de razées”, dizia Descartes) e como conferir necessi- dade (ldgica) aos seus lagos. Mas a via nominalista em teoria do conheci- mento depende sempre de uma escolha que a ultrapassa e que cabe a uma certa ontologia elucidar: ou dobramos a representagio ao objeto, e ela 12 FOUCAULT 15, Ibidem, p. 92. funciona como cépia (modo do objeto), ou a dobramos ao sujeito, e ela funciona como esséncia (modo do sujeito) — num pélo, a doutrina do influxus physicus (Hobbes, Locke); noutro, a doutrina da espontaneidade do entendimento ou da produtividade origindria da razao (Descartes, Hspinosa). Entre os dois extremos, um certo nominalismo, como o de ilume, 0 qual nos interdita de remontar a representacao seja ao sujeito seja ao objeto de conhecimento. O que nos sugere que o estatuto da repre-_ sentagao nao é univoco nestas diferentes estratégias discursi' uma, dobrando-a sobre simesma‘e tomando-a como umnome ou uma cdo arbitréria’ (vi iinalista); outras, vergando-a ao referente (fer no) ém sua empiricidade (via fenomeni: reenviando-a a uma rede de essénciaé a habitar os recessos do sujeito e do objeto enquanto tais (via essencialista).! *Da mesma forma,o regime dos signos. De toda evidéncia, a Episteme mode! sti longe-de-sacrificar os direitos do referente e instituir um “regime bindrio a se esgotar nas relacdes do significante (palavra) ao sig-_ nificado (idéia),.come-quer Foucault. A julgar pela cisdo palavras-coisas que se instala com a passagem do mito ao ldgos, se é verdade que a contraparte da dissociagao palavras-coisas éa associagao linguagem-pen- samento, que pode dar lugar na via fenomenista a um discurso hipotético ea um corpus de conhecimentos nominais, esta nao é nem a fGinica e nem a via por exceléncia percorrida pelo espirito na modernidade. Para Descartes, 0 que define o conhecimento verdadeiro n3o é nem sua natureza hipotética nem suas esséncias nominais, mas,. antes,-sua~ natureza apoditica e suas esséncias reais, 6 desde ento a necessidade de funda-lo no proprio referente (naturae simplices, dizia). Também Espinosa em sua Etica ndo.nos sugere outra coisa: mais.ousado.do_que Descartes, @le funda o paralelismo da ordem do conhecimentoze da ordem do ser _ diretamente ‘na substancia divina, sem_a-necessidade-de-passar pelo ro- deio do pensamento (representacdo). e da coisa.mesmaj— Igualmente,..a Gramidtica de Port-Royal que, para. neutralizar a dissociagao origindria palavras-coisas, restitui a funcgao estabilizadora do referente e funda a linguagem na coisa mesma, ao cabo de uma dupla reducdo: 1) uma pri- meira, que nos reconduz. da linguagem ao pensamento. (as diversas espé- cies de palavras — nomes, verbos, conjungées etc. — sao marcas. do pen- samento, e sua disposigéo no discurso 6.deduziday numa ordem necessd- ria, da maneira pela qual exprimimos-nossas idéias, diziam os solitarios de Port-Royal); 2) uma segunda reducdo, que reenvia as palavras e as representagdes ao préprio referente (coisa), em sua-condigao de arquétipo ou suporte do discurso (na ordem do discurso — escrevem os MM de Port-Royal —, é preciso distinguir as palavras que significam as substan- cias, designadas por nomes substantivos, das que significam os acidentes, 63 designadas por nomes adjetivos — as primeiras subsistindo por si mes- Mas) as tillimas tendo necessidade de outras como ponto de apoio ou suporte)", Donde se segue que a linguagem em seu ser proprio nos reenvia a uma rede de qualidades a habitar a ordem das coisas (substancias, aciden- tes ete.), a qual seré objeto de um discurso fundamental — a metafisi- ca —, 0 Gnico capaz de fundar o conhecimento, remontando-o ao ponto de intersecao onde se entrecruzam o signo, a representaco e a coisa mes- ma. A comandar este discurso primeiro, que emerge 14 onde o ser irrompe no limiar do pensamento e da linguagem, vamos encontrar os dois eixos da Episteme modema em sua variante essencialista: a ontologia dos prin- cipios e o matematismo — uma metafisica do objeto e uma analitica do Ppensamento puro, tendo por elemento préprio o signo-representacdo de que nos fala Foucault. Porém, este somente é bindrio (signicante/ signifi- cado) e se esgota nas relacdes do pensamento com a linguagem, porque se substantiva e restitui i totum os direitos do referente no elemento geral da representacao, em sua absoluta transparéncia a Jinguagem, ao pensa- ment e a coisa mesma (vefculo das esséncias)'>. Assim, operando com um modelo substancialista do signo (vefculo das esséncias) e nao simplesmente nominalista (convengio arbitraria), a comandar a méthesis em sua variante essencialista, vamos encontrar o chamado modelo légico-metafisico da linguagem, onde temos, sem diivi- da, a construgao mais ousada do espirito com vistas ao programa de fundagao do conhecimento, uma fundamentacao que se quer absoluta e como tal posta ao abrigo da davida cética e dos ataques da sofistica das mais diversas procedéncias. Muito embora sua origem seja muito antiga, remontando a Aristételes, este modelo vai sofrer algumas modificacées para atender aos designios e necessidades da Episteme moderna, ainda que a unidade elementar de sentido sobre a qual ele repousa seja a mes- ma: a proposicao, e nao a palavra, como quer Foucault. Segundo Ladriére, na sua dimensio semintica, a relacio palavras/ coisas é comandada por uma dualidade de fungGes inserita no interiorda. linguagem:de_um lado,ja fungio de referéncia; de outro, a_funcdo de 14. Apud GUSDORF, G. La réuolution galiléenne. Paris: Payot, 1969, v. 2, p. 30. 15, CE. DESCARTES, R. op. cit. p, 169, onde se afirma: 1) Pelo nome de idéia — no tientido de representacéo (algo que fica no lugar de algo) — entende-se 0 elemento proprio do pensamento “de tal modo que nada posso exprimir por palavras, ao compreender 0 que digo, sem que daf mesmo seja certo que possuo em mim a idéia da coisa que é significada Por minhas palavras”; 2) “Pela realidade objetiva de uma idéia, entendo a entidade ou 0 ser coisa representada pela idéia, & medida que tal entidade esté na idéia (..). Pois, tudo {ante concebemos como estando nos objetos das idéias, tudo esta objetivamente, ou por Tepreaentagio, nas proprias idéias”, predicagio. Esta dualidade de fungées articulada na unidade da proposi- gio comporta uma dualidade de estatutos: “Enquanto as entidades as quais se faz referéncia subsistem)de alguma_forma-por-si_mesmas, as propriedades-artieuladas na predicagio sda flutuantes, nao tém existéncia senao nas entidades que elas afetam, e apelam, por sua propria natureza, a uma sintese atributiva que as restitui 4 sua ancoragem real”"*. E implica a distingao entre suporte e atributo: a nota que distingue o-suporte é sua autarcia. —"ele existe por si mesmo e néo num outro —, enquanto o atributo néo é o que & sendo gracas ao suporte, nao se torna real senao gragas a sua ineréncia a ele’. Em conseqiiéncia, para além da necessidade de reenviar 0 atributo ao suporte — e tal ser4 no fim de contas 0 sentido profundo da relagao de predicagao —, a fungio referencial da linguagem nos sugere uma ontologia, vale dizer, a postulagdo de um termo iiltimo de ancoragem do préprio referente, termo que é precisamente o suporte da relagéo Iégica de atribuigéo e que nao divide com nenhum outro esta propriedade: a incondicionalidade"*, Assim, 4 luz do modelo da estrutura proposicional, nada mais natural que muitos tenham visto ou encontrado ai toda a forca da vocagao légica e metafisica da linguagem — vocacio légica da gramiatica, que dispoe as palavras segundo a forma légica do pensamento: sujeito-verbo-predicado. {atributo); vocagdo metafisica do verbo ser, que faz a sintese atributiva, ligando 0 atributo ao suporte; vocagao metafisica da substancia, termo ultimo de ancoragem além do qual é-nos impossivel remontar, ai se refu- giando na incondicionalidade de sua autoposicao. Aplicado ao ser, este modelo deu origem as mais diferentes metafisi- cas — da idéia em Platao, da substancia em Aristételes, etc. —, todas em busca de um principio primeiro (arché) e de uma forma de predicacao universal absolutamente legitima, que nos ponha ao abrigo das ilusdes da déxa e das incertezas do conhecimento simplesmente empirico. Saber livre das ilus6es, saber certo de si mesmo, autofundado e por isso mesmo ca- paz de conferir os fundamentos das ciéncias e disciplinas particulares, era a propria linguagem que autorizava o projeto da metafisica, e era a pré- pria linguagem que se queria metafisica e Jhe assegurava tal privilégio na hierarquia do conhecimento (a linguagem é a linguagem do ser, diz Aris- t6teles com Antistenes). Aplicado ao conhecimento, este modelo deu origem ao chamado mode- lo Iégico-metafisico do conhecimento. “Légico”, porque pensa o saber como uma forma de predicagéo que sé é valida ou legitima se atende a certas 16. LADRIERE, J. “L’abime”. In: LADRIBRE, J. et al. Savoir, faire, espérer; les limites de la raison. Bruxelas: Publication des Facultés Universitaires Saint-Louis, 1976, p. 179. 17. Tbidem. p. 179-180. 18. Ibidem. p. 180. 65. nt 64 padrdes de pensamento (as regras do silogismo, os principios | i identidade, da contradigdo e do terceiro excluido etc.) — correlato da fungdo predicativa da linguagem. “Metafisico”, porque pensa o conheci- mento como um discurso do ou sobre o ser, discurso que sé se legitima @ cumpre seu fim se se revela capaz de nos oferecer sua arché: a substan- ela, na sua qualidade de principio frontal do ser e de sua inteligiblidade ete de ineréncia, de subsisténcia, de incondicionalidade) — correlato la fungéo referencial da linguagem. Dai a operagéo de fundagéo de conhecimento, a luz deste modelo, para além das relagGes de atribuicdo instalando numa ponta da cadeia o “fundante” (o suporte) e noutra o “fundado” (0 atributo), consistir em remontar, a nivel do referente, através de operagées “Iégicas” apropria- das, tais como a intuigéo, a dedugéo e a reducdo, aquele termo tiltimo de ancoragem que nao pede ele mesmo ser fundado e que, sendo s6 ele o fundante, nao divide com nenhum outro esta condigdo: a substancia. Daf enfim o privilégio da substancia a um tempo na ordem do conhecimento e na ordem do ser: arché do ser e do conhecer, o tiltimo na cadeia regres- siva da ordem especulativa é o primeiro na ordem da instauragdo do ser, e é por meio dela que o espirito da as ilagses do pensamento a necessi- dade das conexées da coisa. Eis em poucas palavras o sentido do apelo 4 metafisica que vamos en- contrar nos diferentes programas de fundacdo Ho conhecimenta,da antigui- ‘dade classica 8 modernidade tardid.. Estes programas, além de um logicismo- (ow matematismo, se se preferir), fautorizam um ontolo logismo, uma 0: dos principios, armada.em-torno da idéia de hypokéimenon (no sentido dé “suporte, aquilo que subjaz, esta sob e sustenta alguma coisa), na qual reside a chave da nogao de substancia e de atributo, tao importantes na organiza- ao da economia do pensamento por mais de 2.000 anos. Ora, na sua qua- lidade de relagéo de ineréncia de si consigo mesma, no sentido préprio, como diz Ladriére, de interrogagao sobre o ser do ente, a substancia é pre- cisamente o ser que tem o ser em si e por si mesmo — e ndo num outro — € por isso ancora de alguma forma o ente na soberania de seu ser, e ainda 0s atributos enquanto tais. Por sua vez, o atributo sé é tal na medida em que ele 6 uma modalidade da substancia (“afeccio”), e ndo existe senao gracas a sua ineréncia a ela. A tarefa da metafisisica vai consistir exatamente em articulé-los. Quem faz a cépula é 0 “ser”, verbo e substantivo, o “é” impes- soal que nos instala na regiéo das énta eternas, fixando a distincio de essén- cla, que qualifica a substancia, e o acidente (atributo). Distingéo que, segun- do Ladriére, além de indicar uma divisao irredutivel na ordem do ser, vai comandar toda a categorizacao ulterior do pensamento — a total autonomia da primeira (substancia) correspondendo a total heteronomia do segundo (atributo)”. 19, LADRIERE, J. op. cit. p. 181. O mesmo apelo 4 metafisica e ao modelo légico-metafisico da lingua- gem reaparece na modernidade: a busca da arché, a procura de uma forma de predicagao universal absolutamente legitima, a sua organizacio segun- do a forma légica sujeito-verbo-atributo etc., estéo 14, a testemunhd-lo, em Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz. A propria Gramética de Port- -Royal, mais do que uma légica aplicada, quer-se uma metafisica, uma metafisica da linguagem. Mas nao nos deixemos enganar pelas ilusdes da continuidade, pois nao queremos sugerir com o estabelecimento das fon- tes ou das origens histéricas da via essencialista, que a modernidade apenas se limitou a acolher 0 modelo légico-metafisico da linguagem, como se Descartes 0 tivesse extraido diretamente de Aristételes, de um s6 golpe, tal como Atena saiu da cabeca de Zeus, oferecendo-nos uma espécie de aristotelismo renovado, porém segundo os canones do método do légos. Se é verdade que os MM de Port-Royal se limitaram a estender este modelo a linguagem, oferecendo-nos uma axiomitica de tipo aristotélico, o que define em contrapartida a modernidade é sua fusdo com as matemiticas, quando a linguagem matemitica se torna a gramatica do mundo, sem as TestrigGes do esquema aristotélico-platénico (mundo supralunar/mundo sublunar, mundo sensivel/mundo inteligivel etc.). E desde entio, neste novo modelo, o matematismo esté para o logicismo, assim como as essén- cias matematico-mec4nicas estéo para a metafisica (ontologismo): 1) Matematismo: porque, como diz Descartes, as matematicas nos oferecem o modelo por exceléncia de uma forma de predicacdo legitima, ‘qualquer que seja.o dominio do conhecimento a que se aplique, desde que fundado nas exigéncias da razdo.(prova, clareza, distingao): “Essas longas cadeias de razdesAtedas-simples-e faces, de que os ge6metras costumam e para chegar as suas mais dificeis demonstracSesy haviam-1 me dado "a ocasido de imaginar que_todas as coisas possiveis de cair sob 0 conhe- cimento dos homens seguem-se umas as outras da mesma maneira, e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qual- quer uma que nao o seja, ¢ que guardemos sempre a ordem necessdria para deduzi-las umas das outras, nao pode haver quaisquer tao afastadas a que nao se chegue a ela por fim, nem tao ocultas que nao se descu- bram’”™. De modo que — sentencia Descartes no Entretien avec Burman — “quando tivermos habituado 0 espirito aos raciocinios matemiticos, nés © tomaremos conforme a busca de outras verdades, j4 que nao h4 em toda parte sendo uma s6 e mesma forma de raciocinar””. 2) Ontologismo: porque, a exemplo de Galileu, que dizia estar o livro do mundo escrito em linguagem matemitica (circulos, tridngulos etc.), 20. DESCARTES, R. Discurso do método, S40 Paulo: Abril Cultural, 1979 p, 38-39. 21. Apud GUSDORE, G. La révolution galiléenne. v. 1, p. 245. Segtindo Descartes a propria natureza est4 povoada de uma essénci Matematica no mais recéndito de seu ser — a extenséo — e para seu eonhecimento bastam as matematicas e seus principios: “Que eu no acei« te principios em fisica que nao sejam aceitos em matematica, a fim de que @u possa provar pela demonstragdo tudo o que deles deduzirei; e que estes principios sejam suficientes para tal, na medida em que todos og fendmenos da natureza possam ser explicados através deles. (...) Pois confesso francamente aqui que nao conhego outra matéria das coisas corpéreas senao aquela que pode ser dividida, figurada e movida de to- das as formas, isto 6, aquela que os geémetras nomeiam quantidade e tomam por objeto de suas demonstracées (...). E porque desta forma se pode dar raz4o a todos os fendmenos da natureza, como se poderé julgar pelo que se segue, néo penso que se devam aceitar outros princfpios em fisica, nem mesmo que se tenha razao de desejar outros, afora os que sio aqui explicados’”. Tudo isso traz profundas conseqiiéncias. A primeira delas € a corre- lagdo funcional entre o espirito e a realidade, tendo por termo médio as matematicas, a lingua comum falada pelas coisas e pelos homens: “A natureza deve ser matematizdvel — escreve Gusdorf — porque o espirito é matemitico e reciprocamente; a matematica deve fazer a unidade da natureza assim como ela faz a unidade do espirito” *. A segunda, fica autorizado o projeto de uma mathesis universalis, tendo por eixo: no plano da axiomatica, um logicismo pensado como matematismo; no plano da metafisica, uma ontologia dos principios pensada como a matemitica e consoante a seu modelo. Coisa estranha. Ao contrario da lenda que diz poderem as matemé- ticas, em principio, aplicar-se a toda espécie de objeto, porque elas concernem a forma e nao 4 matéria do saber, a razdo é mais profunda: mais além do espirito, ele mesmo matemitico, é a prépria realidade que comporta uma estrutura matemitica, e desde logo autoriza o projeto de uma mathesis universalis, cujo modelo e instrumento so as matemiticas. Modelo, pelo lado de sua construgio teérica, clara e sem lacunas; instru- mento, pelo lado de seu método, intuicao e deducio — as mateméaticas tornam-se a gramdtica do mundo, cabendo a elas, ao cabo de sua fusio com o método metafisico, conferir os titulos de validade ao conhecimento. No caso da fisica, os principios de fundagao — as esséncias — nao sao mais que a extensao, a figura e o movimento — afirma Descartes, De sorte que, se a Episteme antiga € acompanhada de uma apofantica segundo 0 modelo do silogismo — o logicismo —, no limiar da modernidade assis- 22. DESCARTES, R. Principes de philosophic. Paris: Gallimard, 1953, p. 652. 23, GUSDORE, G. op. cit. p. 246. dros de .uma-entelogia dos principios e do mais estrito matematismo de_ } timos ao nascimento de uma nova apofantica — 0 matematismo. E desde entdo a matematica, ao articular a unidade do signo, da representacdo e da coisa 4 maneira de uma fisica dos Principios, se entrecruza com a metafisica e vé seu campo de acéo ampliar- mindo ‘as esséncias (matematicas) das coisas iesmas. ial & em poucas _ ido da intwigao genial de Descartes. Desta-sorte,-stéo_é¢ devido_ao_acaso que naquela época, num século que se inscreve sem-reservas;/salvo algumas excecoes isoladas, nos qua-_ iragio platénica,{os espiritos procurem edificar_a axiomatica do siste-__ ma das ciéncias segundo seus cAnones, e busquem na geometria euclidiana 0° novo modelo de racionalidade, a qual vai ocupar o lugar da légica aristotélica na condicéo de método por exceléncia das ciéncias discursivas. jAs_razdes do prestigioydos Elementos de Euclides nos_dispensam maiores explicaées{ Por um lado, como diz Blanché, ‘por conta dos titulos de sua demonstrabilidade;— o que_os fez passar por muito tempo como. o modelo insuperdvel, e mesmo inigualavel, de teoria dedutiva Nos. Ele- fentos—=esctevé — “os terinos proprios da teoria nunca sao introduzidos sem ser definidos; as proposiges nao sao jamais avancadas sem ser de- monstradas, a excecéo de um pequeno namero dentre elas, que sao enun- ciadas ao comego, a titulo de principios: a demonstragéo nao pode com efeito remontar ao infinito e deve portanto repousar sobre algumas pro- posigées primeiras, mas teve-se o cuidado de as escolher tais que nenhu- ma ddvida subsista a seu respeito num espirito sio”. Por outro lado, porque a geometria euclidiana permite, como nenhum outro modelo axiomatico, reunir na unidade da proposigéo as duas fungées da lingua- gem que evocamos acima, a saber, a funcao de referéncia e a funcio de predicacio, estabelecendo as conexées entre a verdade material das pro- posigGes e a verdade formal de seu encadeamento légico, com a ajuda de dois procedimentos metédicos fundamentais: a definicéo e a demonstra- cdo. Assim sendo, 4 luz do modelo da estrutura proposicional, toda a axiomatizagao vai consistir, como o faz notar Blanché, gracas a um certo namero de principios de base previamente definidos — os postulados — ea outros tantos principios de derivagéo — a deducdo —, “em construir a partir dai proposigGes novas, justificadas por meio de demonstragGes e de termos novos fixados através de definigées”™. E a partir dessas coordenadas que se procurou construir na modernidade a axiomatica do sistema de ciéncias nos quadros da estraté- gia essencialista, de Descartes a Espinosa, de Leibniz a Malebranche. Pensando o conhecimento 4 maneira de uma axiomatica do pensamento 24. BLANCHE, R. L'axiomatique. Paris: PUB, 1955, p. 1 e 15. puro, fechado sobre si mesmo e tendo no interior de si 0 index da verdade OU fla medida, o espirito de sistema é o tracgo que o define. A exemplo de Platio, que dizia que o filésofo deve ser synoptikés e cuidar da intuiggo do todo, estima-se que num conhecimento que procede segundo as exi- géncias da razao, cada teorema deve estar ligado, através de uma relagao. de necessidade (necessidade légica), a um corpus de proposigdes de base do qual ele se deriva a titulo de conseqiiéncia. Demais, pretende-se que os lagos que os unem séo téo mais fortes e tio mais firmes que se pode construir a partir deles, passo a passo, um sistema fechado sobre si mes- mo, no qual, direta ou indiretamente, as verdades de cada Proposicéo sé comunicam umas as outras, dando lugar a um discurso de tal forma articulado que — sublinha Blanché — “ nao se poderia modificar uma parte sem comprometer 0 todo”®. Por fim, acredita-se que, além de arti- culado, o sistema é tanto mais completo que ele encontra em si o index de sua verdade e a garantia de sua certeza ou validade, sem necessidade de fazer apelo a nenhuma instAncia externa: a idéia ou 0 conceito. Obra do pensamento, o qual controla passo a passo a sua construcdo, a sua edificagéo nao encerraria maiores mistérios. O anico cuidado, na impossibilidade de tudo definir e de tudo demonstrar, é o pensamento escolher, dentre as idéias por meio das quais ele conhece as coisas, aque- las que sejam tao evidentes que nao recaia sobre elas nenhuma duvida, e assim possam servir de ponto de apoio a cadeia de razdes: os axiomas, eles proprios indemonstraveis, ainda que condigéo da demonstracdo. Uma vez obtidos estes princfpios primeiros, a regra de construcéo das propo- sigdes, dos teoremas e do edificio inteiro, consistiria, segundo Pasch, em quatro operacées fundamentais: “1) Que sejam enunciados explicitamente os termos primeiros a partir dos quais se definam todos os outros; 2) Que sejam enunciadas explicitamente as proposigées primeiras com cuja ajuda se procura demonstrar todas as outras; 3) Que as relagdes enunciadas entre os termos primeiros sejam puras relagGes ldgicas, e permanecam independentes do sentido concreto que se possa dar aos termos; 4) Que apenas estas relagGes intervenham nas demonstragées, independentemen- te do sentido dos termos (0 que nos interdita, em particular, de emprestar algum sentido a consideragio das figuras)”*, Este método tinha sido aplicado com sucesso & fisica por Arquimedes, em plena antiguidade, no campo da estdtica, como observou muito bem Lalande no seu belo estudo sobre as Teorias da Indugio ¢ da Experimentagéo, acentuando seu procedimento puramente abstrato e apriorista na defini- Gho do fluido: “Hipétese: admite-se que a natureza de um fluido é tal que a 25, BLANCHE, R. op. cit. p. 1-2 %, Apud BLANCHE, R. op. cit. p. 23. fas partes se encontram igualmente dispostas e contiguas entre si; que Aquela que é menos pressionada é deslocada por aquela que o € mais; que eada parte do fluido é pressionada pelo fluido que esté em cima segundo _ i vertical. Partindo dai, Arquimedes demonstra que a superficie do fluido em repouso deve ser esférica; que um corpo que tenha a mesma densida- de do fluido desceré até o ponto em que esteja completamente submerso _ etc, etc. As demanstraches se-sucedem como num tratado de geometria, algumas s até mesmo deduzidas pelo absurdo.|Nao_se faz .nenhum_ apelo a experiéncia; e mesmo, no curso do Tratado, s6 se introduz uma ‘hipétese’ nova: supGe-se.que os corpos que, num fluido, séo impulsiona- dos para 0 alto, 0 sao segundo a vertical que passa pelo seu centro de ravidade. Que a lenda seja verdadeira ou falsa, a experiéncia sugeriu estas construgées, mas precisamente no sentido em que ela pode sugerir ao gedmetra a construg’o de circulos e cilindros. Sem davida Arquimedes, na pratica, fazia algumas experiéncias, mas sem falar delas, a titulo de tateamento ou de verificagéo. A céncia, para ele, exige o encadeamento a prior das idéias, definidas in abstracto?”. Agualmente.o_faz.a madernidade,que estende este procedimento em _ primeiro lugar a fisica celeste,/com Copémico-e Kepler, ¢ enfim.a-fisica terrestre (dindmica),.com Galileu e Descartes. Porém, uma condicao deve ser satisfeita para que este_métodoj possa ser estendido ao mundo das c6isa5, 0b pena de operar no vazio das abstragées: é preciso dar as ilages do pensamento a necessidade das conexées da coisa, e para tal fim asso- ciar o método matemitico com o método metafisico. Com isso, o espirito de sistema logo se identificop com o espirito metafisico,ra ponto_ de Des- cartes neles ver uma s6 e mesma coisa: aplicadas as existéncias reais, as definigdes querem-se-reais eessenciais, nao simplesmente ideais e nomi-_ nais; os primeiros principios sao tidos principios da coisa ¢ nao tio-s6 do pensamento *; a intuicao intelectual e a dedugdo sistematica so as vias pelas quais um espirito sao procura dar as ilagdes do pensamento a neces- sidade das conexdes da coisa — a deducao oferecendo-nos os elos da cadeia de razées, a intuigio nos instalando na coisa mesma e nos forne- cendo suas naturae simplices. Tudo isso confere ao método um cardter a um tempo formalista e apriorista: “Formalista”, pelo lado do matematismo, pois seus principios sio postulados fj ‘acto, e desde logo mais_afetos 4 forma_do que a matéria do saber; “apriorista”, pelo lado da ontologia dos principios, uma 27. LALANDE, A. Les théories de U'induction et de expérimentation. Paris: Boivin & Cie Editeurs, 1929. p. 22-23, 28. C£. DESCARTES, R. Principes de philosophic, p. 669-670, onde nosso autor trata da certeza apoditica, mostrando-nos que ela se aplica aos seres de razio das mateméticas, bem como as coisas corpéreas da fisica. 7 ontologia que se quer a priori, pois seus Principios o pensamento os tira de seu préprio fundo, antes de nos falar da coisa mesma. E este método que organizou a mdthesis em sua variante essencialista, tornando possiveis essas individualidades que sao Descartes, Espinosa e Leibniz. Se um nome Ihe convém — ou ao menos a nés que estamos acostumados a pensar que 48 coisas existem quando lhes damos um nome —, é chamé-lo de categé- rico-dedutivo, e nao hipotético-dedutivo, este bem mais tardio para que se lhe possa aplicar: “categérico”, pela natureza da inferéncia, assentada em definigGes essenciais e em hipdteses que, ao invés de nos levar ao real Sragas ao rodeio de uma conjetura do pensamento avangada sub-judice (hip6tese-conjetura), nos instalam diretamente na coisa, fixando uma suppositio sobre a natureza do seu ser (hip6tese-principio); “dedutivo’, pela forma da inferéncia, que cuida de dar as ilagdes do pensamento a forga da conexao das coisas, estabelecendo os nexos de necessidade que as ligam entre si (dedugao sistematica). Um bom exemplo deste procedimento metédico no campo das cién- cias humanas é 0 método matematico-metafisico de Espinosa, no qual a fusio do matematismo e da ontologia dos principios deu lugar a tentativa de buscar na linguagem dos planos, dos ntimeros e das figuras a chave do. mundo do éthos e do agir humano, e ao mesmo tempo de encontrar a forma de predicagao absolutamente legitima na necessidade de um ens a se causa sui: a substancia. Uma variante deste método é 0 légico-metafisico dos MM de Port-Royal, no qual o logicismo nao deu lugar a um matematismo de estrita observancia, a exemplo de sua ontologia, igual- mente de tipo aristotélico e nao platénico. 3. A Mathesis e as Ciéncias Humanas Qualquer que seja o dominio a que se aplique, a axiomiatica deve, pois, satisfazer a duas exigéncias fundamentais: 1) deve-se fundar na propria realidade, para o que se postula que a “maquete” dos principios, definida in abstracto e a priori, corresponda ao real empirico e se reporte ao em-si da coisa (ontologismo); 2) deve atender As exigéncias de controle do préprio intelecto, de modo que as verdades do pensamento apresen- tem por toda parte os mesmos titulos de demonstrabilidade e os mesmos efnones de rigor e de precisdo (matematismo)®. Descartes dizia que, as- sim como o sol ilumina todas as coisas, 6 uma mesma raz4o que conhece todas as coisas; ora, ao se estender as existéncias reais, pretende-se igual- mente que as ciéncias naturais e as ciéncias humanas se sirvam dos mes- mos procedimentos metédicos e instaurem um mesmo sistema de sa- 29, GUSDORE, G. La révolution galiléenne. v. 2, p. 126. ber —a méthesis —, marcado pela necessidade de nos dar a determinacao completa da coisa e de conferir suficiéncia “légica” a seu corpus de pro- posigées (principio da fundamentagio suficiente do conhecimento). Entretanto, o corpus das ciéncias discursivas modernas nao nasceu de. um s6 golpe, mas antes de um lento trabalho de desconstrucao racional, envolvendo os conceitos de homo e de natura, de que resulta uma nova imagem do homem e do universo. Comecemos por este tiltimo: o conceito de natureza. Com efeito, 0 termo grego physis, bem como.o.latino natura, reenvia, em sua etimologia, 4 idéia de vida, ja_um_ de vida e de movimento que” eit universalidade e necessidade se impée a todas as coisas e confere a cada_ uma a natureza propria do seu_ser.Mas como é diferente a naturez para . o homem antigoamedieval e renascentista! Uma natureza onde reina a ordem, a beleza das formas e a harmonia das proporgées, estima o ho- mem antigo, um homem que habita um universo finito, Compartilhando - com. cada coisa de. uma mesma alma do mundo que os integra num todo nico e 3 ea aa seu destino esta tio indissoluvelmente colado como a nafureza que no inicio.era o paraiso. vivo e alegria a-terra era taete novo viverd em unio com Deus, mercé-de sua graca-(Uma natureza-mae que cuida com zelo de suas criaturas, acre- dita o homem renascentista, fm homem que se imagina assistido erto por uma vontade providencial atenta as suas afligées e rica em prodigios e adverténcias cifradas (magia natural). Ora, habitando um mundo aberto e um universo infinito, o homem moderno vé nestas figuras da natureza e na alma que a anima algo como o residuo do pensamento magico, e procura um novo conceito mais con- forme aos seus designios e ao mundo novo que o abriga. Seu olhar nao 6 mais o de um filho temeroso que a reverencia (natura mater); sequer 0 de uma criatura infeliz ante um ente decaido; menos ainda o de um in- dividuo nela integrado e que nela tem o seu limite — mas o de um senhor que a submete a seus fins, pondo-a a seu servigo. Filho da idade mecanica, 0 universo que 0 homem moderno habita ndo é um universo organico, mas mecanico, e a imagem que se lhe afigura nao é a da mae zelosa, dos astros-deuses ou do bom Deus, mas a da maquina. Um mecanicismo a medida do prometeismo, eis a natura do homem e dos tempos modernos. Neste novo universo, se ha um lugar para a providéncia divina, ela nao é mais a do patriarca biblico ou do demiurgo criador, mas a do deus dos geémetras, que construiu uma épura tao perfeita que dispensa seus servigos, ou a do deus dos relojoeiros, que se limita a reparé-lo de tempos 73 @f tempos. Tendo ante si um mundo abandonado a seus mecanismos, 0 horem moderno logo o esvaziou da alma, da velha alma do mundo que, qual um sopro divino insuflado em cada ente, governava o seu ser e 0 flubmetia a seus fins. No seu lugar, ficou um mecanismo sem alma, & imagem do relégio. E a alma, junto com Deus, se retira do mundo, aban- dona 0 corpo e se aloja na esfera do espirito ou do sujeito. Mundo sem Deus e sem alma, a natureza como que se dessacraliza, € se abre ao cAlculo e a anlise matematica. Pensada como combinacao de matéria e de movimento, nao é mais necessdrio imagind-la dotada de uma espontaneidade vital: bastam a matéria e as forcas exercendo-se sobre ela, Uma natureza mecénica auto-regulavel e matemétizdvel, tal é a physis dos modernos: um agregado de dtomos justapostos, diréo uns; uma extensdo. ou corpo geométrico, dirdo outros. Esta “desencarnagaéo” foi operada por Gassendi, Galileu, Mersenne e outros, provocando o “milagre” dos anos 20 de que nos fala Lenoble. Em todos os dominios, expurgam-se as qualidades ocultas e as afinidades secretas das coisas, junto com a alma do mundo, num processo irresistivel que termina jogando por terra o esquema do cosmos e o hilozofsmo que 0 acompanhava. Embora nao seja obra de um s6, mas de todo um século, é sem dtivida Descartes quem nos da o melhor testemunho desta desencarnagao, quando, em diversas partes de sua obra, acusa de “mito antropomérfico” a idéia de alma como principio de vida e de movimento do corpo, atribuindo sua origem a um misto de ignorancia e de supers- tigdo, e vendo em sua raiz uma idéia confusa que é preciso abandonar®, De um lado, 0 fato de experienciarmos, desde nossa infancia, que varios movimentos obedecem a vontade, que é uma das poténcias da alma, nos predisp6e a acreditar que a alma é€ o principio de todos. De outro,.a ignorancia da anatomia e da mecdnica faz com que os homens, tendo em conta apenas 0 que percebem do exterior dos corpos, se vejam impedidos de imaginar que, tendo tal constituigao e tais dispositivos internos, os corpos poderiam mover-se por si mesmos, independentemente de todo elemento volitivo e consciente. A estes soma-se um outro erro, ainda mais Brave: 0 fato de constatarmos que os corpos mortos tém os mesmos ér- g40s que os vivos, faltando-Ihes apenas a alma, e que nao ha neles, toda- via, nenhum movimento, nos leva a acreditar que a auséncia da alma é que provoca a morte e a falta de todo movimento”. Descartes vé em tudo isso um equivoco. Mais além dos movimentos voluntdrios, h4 os involuntdrios, bastando para sua compreensdo os espiritos animais e a disposicdo das partes do préprio corpo”, Um bom exemplo disso nos dao 30, GURSDORE, G, La révolution geliléenne. v. 1, p. 272. 51. Ibidem. p. 272. 32. Ibidem. p. 272. as fungdes de digerir a carne no estémago e de mover 0 coragdo e as artérias, as quais nao contém nenhum pensamento e dependem tao-s6 do corpo préprio, mostrando-nos que é mais normal /que um corpo seja movido por um eutro corpo do qué por-uma-alma, \Por fim, um corpo nao morre porque a alma o abandona,\mas a alma o abandona porque o corpo meorre — conclui o autor das Paixdes da Alma. O resultado de tudo isso é a desconstrugaéo do conceito de physis, suspeito demais (de animismo) para ser conservado na nova Episteme, a qual procura encontrar um outro mais conforme a seus designios. Um caminho é 0 de Boyle, que buscou nas idéias de atomo e de agregado o substituto das esséncias vitalistas e das virtudes secretas, vendo na “na- tureza” um conceito cujo significado se embaralhou demasiadamente em seu uso corrente, no qual coexistem inspiragées e tradicgdes as mais con- traditérias: “Eu considero — escreve Boyle — como uma coisa infeliz e prejudicial a um tempo 4 fisica e a filosofia que a palavra ‘natureza’ tenha sido empregada tao freqiientemente, e de uma maneira tao desastrada, por toda sorte de pessoas. Pois, a imensa ambigitidade deste termo, e 0 uso confuso que se fez dele, sem a devida atengao 4 diversidade de suas significac6es, torna ininteligivel, impréprio ou falso um bom ntimero das expressdes nas quais ele é empregado”, podendo designar desde Deus ele mesmo (Natura Naturans) até a esséncia e a qitididade dos escolasticos (Natura Naturata), Para nos ajudar a sair desta imensa confuséo — comen- ta Gusdorf — Boyle propée sua prépria definicao: “A natureza é 0 agre- gado dos corpos que constituem o mundg, no seu estado presente, con- lerado como um principio em virtude do qual eles sao ativos e passivos, segundo as leis do movimento prescritas pelo Autor de todas as coisas”. Outro caminho é o de Descartes, que nos convida a distinguir a alma do corpo, @ a ver nas matérias corpéreas a solidez de um corpo geométrico ea forma de uma pura extensao, pois no universo fisico em sua totalidade nao ha matéria corpérea que “ndo possa ser dividida, figurada e movida de todas as formas”, e como tal redutivel aquilo que os “geémetras cha- mam quantidade e tomam como objeto de suas investigacdes”™. Assim, para além das diferencas de indole, quer sob a forma de um agregado de dtomos justapostos, quer sob a forma de uma extensao ou corpo geomé- trico, estamos de fato ante um mundo novo: 0 mundo da bela épura concebido como geometria encarnada, de Descartes; o mundo dos 4tomos e dos vazios concebido como fisica do movimento, de Boyle — ambos pondo no lugar das esséncias vitais e afinidades secretas da alma do mundo um mecanismo sem alma 4 imagem do relégio, e como tal indi- ferente a nossas intengdes e a nossos fins. 33. Apud GUSDORE, G. op. cit. p. 273-274. 34, Cf, DESCARTES, R. op. cit. p, 652, A exemplo do conceito de natureza, a idéia de homem se prestou no eurso da historia a toda espécie de ambigitidades e mal-entendidos, aos quais se procura estender os mesmos procedimentos do modelo meeanicista. Comecemos pela antiguidade classica (Grécia). Aqui, as dificuldades para reduzi-lo (0 homem) a um conceito homogéneo e univoco saltam a vista: com efeito, como se poderia falar de uma natureza humana, se um Sécrates o define nado como um “ser” (ser natural), mas como um “dever- -ser” (ser moral), aludindo 4 divisao tripartite da alma (razao, sensibilida- de e desejo), e A necessidade de controlar os instintos, através de uma vontade consciente; se um Platao, destacando por sua vez sua “natureza”, o define como um “bipede sem plumas”; e se enfim um Aristételes, além de defini-lo como 0 tinico “animal que ri”, faz dele um animal gregario 4 maneira das abelhas e das formigas, nao sem antes, ao se referir ao zéon politikin, os haver dividido em duas classes de homens — a primeira, constituida de individuos livres, capazes de cultivar as virtudes (areté) e de tornarem-se homens no sentido forte (homens de bem), e assim de viverem numa comunidade (comunidade de obras); a segunda, a dos escravos, entendidos estes como “nao-homens” e verdadeiras “maquinas animadas”? A idade média nao parece estar reservada uma melhor sorte. Assim como a natureza, o cristianismo enquadra 0 homem nos “mistérios” da doutrina da criagao, afirmando que Deus criou ex-wihilo a natureza, a comecar pela sua esfera fisica (invencio da luz), passando pela das plan- tas e dos animais, depois pelo homem e pela mulher, até chegar a socie- dade, ocasidéo em que ele deixa a cena e abandona o homem a si mesmo, cuja existéncia fica suspensa “entre” dois mundos — o daqui de baixo, corrompido pela queda e pelo pecado; o do além, lugar do resgate e da salvacao ao fim dos tempos, com a ajuda da providéncia divina (graga) e de seu amor pelos homens. Donde se segue a condicéo a um tempo “na- tural” e “sobrenatural” do homem: na origem, antes da queda, o homem aparece como a mais divina das criaturas, criada 4 imagem e 4 semelhan- ga de Deus; no fim, depois da queda, como uma criatura corrompida e miserdvel (cf. Santo Agostinho: 0 homem é uma criatura miseravel que nasce entre excrementos e urina). De modo que, abandonado a si mesmo, © homem é uma criatura invadida pelo pecado, a vida nao tem sentido e a terra é um vale de lagrimas; 0 verdadeiro fundamento do homem nao residindo neste mundo, deve ser buscado alhures, e é portanto graca e uniio com Deus. Da mesma forma, enfim, a renascenga, cujo quadro nao poderia ser mais desolador, se visto a partir da exigéncia de um conhecimento “po- sitivo” da natureza humana. Com efeito, como se poderia conciliar a afir- macio do “homem total” de humanistas como Erasmo e de uma certa maneira Montaigne, com a antropologia pessimista de um Maquiavel, que toma os instintos naturais da maior parte dos homens como maus ¢ cor- rompidos, dizendo que os homens ndo fazem jamais nada de bom e de bem, se nao sao obrigados a fazé-lo sob o peso da mais violenta das coergdes? Ou mesmo com a teologia de Lutero e Calvino, que nos falam da “natureza pecaminosa do homem” — Lutero, dizendo que a vontade do homem é€ mi, isto é, nado que algo seja mau no homem, mas que o homem € mau no mais recéndito do seu ser, que sua maldade é sua natureza mesma corrompida; Calvino, afirmando que o pecado original é a perversao e a corrup¢ao herdadas por nossa natureza em todas as suas partes, de forma que, invadido pelo pecado da cabega aos pés, nenhuma parte de seu ser esta livre dele, tudo o que ele faz deve ser considerado como pecado, pois, como diz Sao Paulo, todo pensamento e pulsdo da came é hostilidade para com Deus e portanto morte?® Dai a necessidade de desconstrucdo dos conceitos de homem e de natureza humana, estimam os modernos, vendo neles um par de idéias confusas e contraditérias. Definir o homem pela esséncia, a exemplo da alma, ac que parece ndo resolve o problema: 1) ao ser ético e espiritual de Sécrates se sobrepde 0 z6on politikin de Aristoteles, que toma o homem como uma coisa (animal) e faz da alma uma afecgao da natureza (physis); 2) a mais divina das criaturas da tradicdo judeu-crista se inflete na natu- reza pecaminosa do homem do outro lado do cristianismo — o protestan-. tismo. Resultado: ao invés de nos oferecer uma natureza humana homo- génea e univoca, estas esséncias em realidade instalam uma _verdadeiza aporia— ins, fazendo do homem um cidadao de dois mundos (munde—- sensivel e mundo inteligivel), como em Platao; outros, suspendendo-o entre dois mundos, o “aqui embaixo” e o “além”, como no cristianismo e sua dialética da queda e do resgate. Por seu turno, se a esséncia nia — resolve o problefiia, falar do homem real com a ajuda das notas do devir ("acidentes”) nao nos oferece uma melhor sorte, pois as diferencas que 0 qualificam seriam sempre arbltrévias, gontingentes e extrinsecas ao ser ("0___ hemem“), como viu Xenéfanes ao se referir ads deuses dos egipcios e dos trdcios, os primeiros negtos € com 0 Nariz chato, os tiltimos com os olhos verdés'e os cabelos ruivos... como eles. De fato, como diz Horkheimer, nao existe uma forma de predicacdo universal que determine de uma vez por todas a esséncia do homem e suas relagdes com a sociedade e a natureza, do mesmo modo que ndo se pode considerar a histéria como a emanagdo de uma esséncia humana unitaria, que guarda sua identidade desde a noite dos tempos. A exemplo 35. Cf. HORKHEIMER, M. Teorfa erftica. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, cap. V, © qual seguimos de perto na nossa abordagem. 7 da formula acidental, que simplesmente abandona o homem ao devir e 0 toma como um acidente, a férmula fatalista é igualmente ingénua, a saber, © curso do devir histérico 6 dominado por uma necessidade “exterior aos homens — Deus, a Natureza, a Fortuna. Assim procedendo, seja re= portando-se ao ser, seja remontando-se ao devir, perde-se a natureza do homem: numa, retém-se o devir e se perde o ser; noutra, retém-se 0 sel e perde-se o devir®. Ora, filho da idade mecAnica, o homem moderno nao se reconhece nestas definigées que o faziam residir em dois mundos, ou mesmo, qual um imperium in imperio, nam mundo a parte, 0 mundo da liberdade e oposicdo ao mundo da necessidade. Ele, que habitava um universo meca: nicamente determinado, nao se via afetado em seu campo de acio pel barreira da natureza e menos ainda diminuido em suas prerrogativas direitos: conhecendo-lhe 0 seu mecanismo e obedecendo as suas leis, ell poderia mesmo chegar a dominé-la e converter-se em “majtre et possesseu de la nature”. Demais, livrando-se das trevas da ignorancia e da supersti: Gio, e conhecendo os mecanismos da natureza humana e da sociedade dos homens, ele poderia colocar as poténcias humanas a seu servigo, afas: tando os acidentes e as fatalidades que, qual um destino cego, estorvaval © progresso e as liberdades. Tal é a a convicgio do homem moderno. ponto de Espinosa nao hesitar em afirmar que liberdade e necessidade sao uma s6 e mesma coisa, vale dizer, antes de ser livre-arbitrio e liberta indifferentiae, é libertas independentiae e consciéncia da necessidade. Uma natureza dessacralizada quer um homem desmitizado. E, co! efeito, € um homo novus que a scientia nova nos quer oferecer. Ao invés di encerrar o homem no circulo de ferro da physis, instala sua morada naj historia e na cultura. Nao vendo no seu embate com a natureza nada di sacrflego, e cuidando de afastar Deus e a esfera das divindades para ber longe, é um novo prometefsmo que se anuncia: a mesma fé no homem, mesmo gosto da liberdadee e a mesma crenca na virtude emancipadori do conhecimento do prometeismo antigo; porém, a diferenca do sofrido tita, que se batia contra os deuses num combate sem esperangas, poli sabia de antemao que eles eram mais poderosos, 0 Prometeu modernd sabe-se mais forte e est4 certo de que finalmente vai impor-se aos deuseg; convertendo-se em senhor e possuidor da natureza”. 36. HORKHEIMER, M. op. cit. p. 52. 37. Vale notar que 0 mito de Prometeu é um tema constante na modernidade ¢ ut imagem recorrente na histéria da humanidade. Marx chega mesmo a colocar em epigrafe mil gua tese de doutorado a fala de Prometeu a Zeus em Esquilo: “Sabe tu que jamais quererll eu trocar meu inforténio pela condicao de servo teu. Pais melhor me parece estar acorrentad a este rochedo do que passar toda a vida como fiel escudeiro do Pai Zeus”, Marcuse em Ea ¢ Civilizagio afirma que “Prometeu ¢ 0 heréi cultural do trabalho penoso, da produtividad do progresso, em meio a repressao (...); 0 astuto e (softido) rebelde contra os deuses, que crlf 2 De modo que se a pergunta ainda é a_mesma: que _é 0 homem?,a resposta agora é diferente, pois 6 um novo olhar que se volta sobre ele. E preciso antes de mais nada conciliar dois fatos/ou pélos aparentemente de natureza, o homem parece estar governado pela - mesma necessidade da physis; ger de artificio ede invencao_(ser cultural c hist6rico), o homem se insurge contra a natureza_e, livre, desobedece as leis que ele préprio criou;Como.dar ao-primeiro a “souplesse” do segundo, sem perder a forca coercitiva dos, mecanismos que da 4 necessidade a {prema da lei? Como dar ao segundo a forga constritiva do primeiro, sem sacrificar o elemento da liberdade,que faz do. homem uma _criacao conti- _ nua de si mesmo e_um_devir?{Para dar_uma resposta satisfatéria.a.essas perguntas, 0 homem moderno-trata de pensar o_mundo da cultura e da histéria como uma espécie de segunda natureza, dotado das mesmas leis necessdrias e universais, porém leis que obrigam in foro interno, e desde logo distintas da vis a tergo da natureza simplesmente fisica. A necessida- de da lei, junto com a liberdade e a possibilidade de desobedecer-lhe, busca-se no interior da propria natureza humana, nos mecanismos e dis- positivos do corpo e na liberdade da vontade da alma. E desde entao, 0 fato de o homem, um ser de liberdade, pér-se 4 margem da natureza, nao constitui problema: se ndo se pode colocar o homem na natureza, deve haver um meio de pér a natureza no homem e descobrir os mecanismos internos que o governam (Desanti) — eis a idéia-forga da figura da natu- reza humana da modernidade e do homem que a acompanha: 0 homem- mé4quina. Mercé desse novo olhar, comega-se a falar de uma natureza humana mecanicamente determinada 4 imagem do relégio, um corpo-maquina com seus “tuyaux, filets, ressorts” etc., da mesma ordem que os autématos fabricados pelos homens, esvaziando assim a distingdo cara aos antigos entre os seres de artificio (artificialia) e 0 seres de natureza (essentiae). A prépria sociedade é compreendida como um imenso mecanismo, cujas unidades ou elementos sao os individuos, e como tais movidos por um duplo motor: 1) a regido neutra dos instintos e das paixGes; 2) a acéo reguladora ou corretiva da razéo (Horkheimer). Por seu turno, o modelo a cultura ao prego da dor perpétua. Ele simboliza a produtividade, o incessante esforgo de dominar a vida (...). Prometeu é © heréi-arquétipo do principio da performance”. Celebrado por Hesfodo, o mito de Prometeu, que é também o mito da criacdo do homem, narra o roubo do segredo do fogo pelo titd e o posterior castigo, pelos deuses, de sua insoléncia. Em seus didlogos Platio nos fala de Premeteu como deus civilizador. Além dos temas do castigo e do destino, caros aos antigos, duas outras idéias estdo assocladas no mito desde os tempos areaicos: a) a acdo emancipadora do conhecimento; b) a afirmacdo da liberdade, o gosto da aco, a £6 no homem — nas quais vamos encontrar dois tragos fundamentais da Episteme e do homem modernos. Porém, a diferenga do tité antigo, o Prometeu moderno, como diz Gusdorf, sabe que € mais forte do que os deuses ¢ que, finalmente, vai impor-se a eles, convertendo-se em,senhor da natureza. 79 de racionalidade capaz de unir esses motores e as diferentes esferas do sé (homem) 6, nado o cosmos, Deus ou a natureza, mas a maquina e sell mecanismo. De um lado, 0 corpo humano e o espirito sao verdadeiral méaquinas — uma maquina de pensar, de calcular e de falar, diziam Leibni Pascal e Condillac; um corpo-maquina de inteligibilidade matemdtica, afirmava Descartes*. De outro, a prépria sociedade politica é uma mdqi na — uma maquina de governar, observa Hobbes no Leviathan, afirmand que o estado é um gigantesco autémato, onde os magistrados e os funcia nérios s4o as articulagées artificiais a servico da lei e da justiga, e o sob rano uma sorte de raz4o ou vontade artificial, cujo artifice é o proprit homem e cuja construcéo — edificada sobre 0 pacto e o contrato — assemelha a “Aaquele Fiat, ao Fagamos o homem proferido por Deus Criagao”®. Ser de natureza e ser de artificio e de invengao, é no ponto de inte segao dos mecanismos naturais da physis e de um plano artificial elev: do-se sobre ela que o homem deve ser inventado e forjado como uma ol a exata medida de si mesmo — tal é 0 sentido e a necessidade da histérl e da cultura. Para dar a necessidade a forma da lei no mundo da cultura, a gram tica e a politica nascentes vao buscar no contrato aquela forca adstringet que obriga in foro interno contratantes e contratados, soberanos e stdit ea propria comunidade dos falantes: a razao. Na gramiatica, o sistema dit signos é pensado a luz de um contrato coletivo que submete os fala as regras coercitivas de uma raz4o universal, com vistas as necessidad de comunicagao. De modo que, se o signo enquanto elemento préprio linguagem € um artificio criado pelos homens e comporta uma natul arbitraria, a estrutura da linguagem nao é nada arbitraria. Quem estf raiz do contrato e da a necessidade a forma da lei — as regras da gram tica — 6 a razéo — as esséncias ideais do pensamento e sua necessid légica — A qual a linguagem se limita a dar forma (veiculo das essénel Ou seja: uma raz4o universal comum a todas as linguas, para al€é! diversidade de indole ou de espirito (algumas linguas sao declinati¥ outras, s40 prepositivas; algumas dispéem o sujeito légico no inicio frase, como o francés; outras, os termos ou ocorréncias mais important a exemplo do latim etc.). Por sua vez, na politica, 6 também o contrato da a necessidade a forma da lei, uma lei-mandamento que obriga in fi 38. Cf, DESCARTES, R. La formation du foetus: “Si Yon connaissait bien quelles sont les parties de la semence de quelque espéce animal en particulier, par exemple de I on pourrait en déduire de cela seul, par des raisons entiéremente mathématiques et cert toute la figure et la conformation de ses membres"; apud GUSDORE, G. La révolution gall v. 1, p. 273. 39. HOBBES, T. Leviata. Sao Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 5. 80 interno e pede assentimento — e nao simplesmente uma cadeia artificial que aprisiona do exterior os homens —,, articulando uma razo que co- manda e uma vontade que obedece, e sua agao é tanto mais forte que é capaz de neutralizar os efeitos dissolventes dos instintos que governam os homens em estado de natureza: 1) em primeiro lugar, e tal vai ser a via de Hobbes, postula-se que, em estado de natureza, os individuos sdo solitarios e egofstas, destituidos de todo laco social (homo homini lupus); 2) em seguida, estendem-se aos individuos atributos da natureza extra-hu- mana que vamos encontrar espalhados no mundo natural, em comum com as bestas e os animais — os instintos: no estado de natureza o maior mal é a morte e o maior bem a vida, e toda a atividade dos seres que 0 habitam, homens e animais, é dirigida a este fim — evitar a morte e manter-se em vida —, nao economizando meios para tal (instinto de so- brevivéncia); 3) enfim, faz-se recair sobre os efeitos dissolventes dos ins- tintos e das paixGes que governam os homens em estado de natureza, a acao reguladora da razio que, se nao tem o poder de elimina-los, é sufi- cientemente forte para retificé-los e subordind-los a seus fins: abandona- dos a seus préprios instintos e 4s suas prdprias paixdes, os homens em estado de natureza sao levados a se codestruirem (guerra de todos contra todos); por isso, os homens, que sao de toda forma razoaveis, sob a amea- a da destruigéo da propria espécie, fazem um pacto e entram em socie- dade, criando 0 corpus de suas leis e instituigdes®. Muito embora criadas pelos homens, estas estao longe de estar esvaziadas, porque artificiais, e sua agao é tanto mais eficaz que, além de neutralizarem as impulsdes egoistas que acompanham os homens desde o nascimento até a morte, criam a sociedade e forjam o corpo dos cidadaos, gracas a um forte apa- relho repressivo (estado), a uma dura disciplina dos conflitos e diferendos (direito) e a uma absoluta submissao & lei do dever (moral). Para vencer a diversidade do éthos histérico e a relatividade dos va- lores da cultura, e assim dar a necessidade a forma da lei (universalida. de), Espinosa pde na raiz da agdo o conatus, tomando-o como 0 principio de afirmagéo do ser na atualidade do agir (sens in actu), e buscando na lingua dos planos e das figuras — 0 método geométrico com seus axio- mas, seu apelo a evidéncia, suas redugdes ao absurdo e o indefectivel CQD —a chave do mundo do éthos e do agir humano. Um mundo ¢ uma acao governados pelo conatus (desejo), em cuja raiz vamos encontrar ndo uma falta constitutiva que opera o homem (falta do ser, que a acdo visa preencher ou suprir-Ihe a lacuna), mas a pulsio de afirmagao do ser na atualidade do agir (vale dizer, na raiz do conatus nao temos a falta, mas 0 excesso, a sobra de energia, e desde logo conta como uma “positividade”). 40. A respeito da axiomética do Leviaté e da categoria de natureza humana em Hobbes, ver MACPHERSON, C. B. “Introduction”. In: HOBBES, T. Leviathan, London: Penguin Books, 1968, p. 9-63. 81 Assim, 0 que retine os gramiaticos e os tedricos da politica é 0 fato dt porem o mesmo problema: que é 0 homem? qual é a origem da linguagem. e da sociedade politica? E de resolvé-los pelos mesmos meios: natureza) humana, estado de natureza e contrato social‘! Para tanto, é necessdrio admitir, em primeiro lugar, uma esséncia — a natureza humana —, uma natureza humana definida como um ser de natureza e também um ser de artificio e de invencdo, capaz nio somente de inventar a linguagem com seu cortejo de signos convencionais, mas igualmente de criar este imenso mecanismo artificial que é o Estado e a sociedade politica. Em seguida, 6 preciso admitir ainda um estado originério que seja a um tempo o gra zero da linguagem e o nada de sociedade: o estado de natureza no seio do qual os homens aparecem em estado nascente — escreve Althusser: “Saindo da terra como abéboras” (Hobbes); “aos gritos e nus” (Rous- seau) — numa transicdo que vai do grito a fala, do grunhido origindrio & forma verbal articulada, no plano da gramitica e da filologia; ou, no da politica, do triunfo do forte sobre o fraco A instituigao do poder soberano e da paz social (Hobbes), da solidao e da vida virtuosa do bom selvagem a promiscuidade e a corrupcao do homem civilizado (Rousseau). Enfim, é preciso descobrir os “mecanismos” que fizeram com que os homens, deixassem esse estado e criassem a linguagem articulada e a sociedade: politica organizada: 0 contrato. Contrato que nos mostra que a sociedade, bem como a linguagem, sdo um artificio e o fruto de uma convengao, cujo artifice € o préprio homem (ser de artificio e de invenc4o). Porém, nao um ser que se furta as leis e se poe 4 margem da natureza, mas um ser qué se da a si as suas leis e encontra no interior de si a forga que confere ao artificio a forma da lei e a necessidade de uma natureza (segunda natu+ reza): a forga dissolvente dos instintos e a agdo reticadora da razéo — 0 contrato assegurando a passagem do grito primitivo 4 linguagem verbal articulada, do nada social ao pleno das sociedades histéricas constituidas, Nés vamos encontrar o modelo teérico deste esquema, como diz Althusser, no sistema cartesiano — o modelo da reducao as essén- cias —, 0 Gnico capaz: 1) de compreender a infinita diversidade das ins- tituigdes humanas de todos os tempos e de todos os lugares, remontando a) o diverso das sociedades histéricas efetivamente existentes 4 unidad de uma sociedade ideal definida in abstracto e a priori: estado de natureza, contrato, estado societério etc. (Hobbes); b) da diversidade das lingua: vivas na comunidade dos falantes 4 unidade de uma metalingua unive sal definida pelas esséncias ideais do pensamento ou da razdo (Port-Royal) ¢) da diversidade do éthos hist6rico da comunidade dos homens a uni de do éthos substancial definido por uma esséncia: 0 conatus (Espinosa); 41, Cf, ALTHUSSER, L. Montesquiet, a politica ea histéria. Lisboa: Editorial Presenca, 1! p. 30 et seq. 3 de nos mostrar a origem propriamente humana, e mesmo artificial, das instituigSes humano-sociais, devolvendo o homem ao préprio homem e fazendo do homem um jogo de mecanismo e liberdade. Nas paginas que se seguem, junto com a axiomatica da Etica de Espinosa e da Gramatica dos MM de Port-Royal, vamos procurar fixar as figuras do homem que as acompanham: a figura do ser de natureza ontologicamente determinado de que nos fala Espinosa (conatus); a figura do ser de artificio e de invencao. que nos leva a Arnauld e a Lancelot (linguagem). O conflito destas figuras que marcaram profundamente o destino da modernidade s6 serA resolvido no dia em que a Episteme, ao entrar na Idade da historia, abandone a antropologia do homem-méquina em favor de uma antropologia do homem histérico, fazendo do homem um ser de artificio e de invengdo a tecer nas tramas da histéria e da cultura o solo e o télos da criagSo continua de si mesmo — o ser-advento ou o devir. I ESPINOSA, A ETICA E AS CIENCIAS HUMANAS 1. Do Ethos a Etica Ha uma substancia, dois atributos e varios modos... Tudo se passa como se a Etica de Espinosa fosse mais uma dessas obras de metafisica escoldstica que a Idade Média nos ofereceu durante séculos, com seus causa sui, summum bonum e ens a se, residindo sua especificidade na heran- ¢a da tradicao ardbico-judaica e na influéncia do cartesianismo. Tal é a convicgao de um Woltshon — escreve Caillois —, para quem “ha sob o Espinosa Benedictus, autor da Ethica more geometrico demonstrata, um Espinosa Baruch, autor de uma Ethica more scolastico-rabbinocoque demonstrata, um filésofo pleno da tradigdo ardbico-judaica, bem como um leitor de Descartes”'. Além deste Espinosa “metafisico”, que na Etica procura oferecer-nos um saber total da realidade total — a realidade total da substdncia na sua exis- téndia finita e infinita —, podemos apontar com Caillois um Espinosa “te6- logo”, que na mesma obra nos oferece uma sorte de “teologia racional” e nos fala de um ens realissimus — 0 Deus das Sagradas Escrituras —, numa época em que as fronteiras entre a filosofia e a teologia eram ainda incertas, como © atestam as obras de Descartes, de Leibniz e de Malebranche. “Assim — escreve —, podemos encontrar na Etica o plano tradicional do tratado de teologia. Vé-se nela sucessivamente uma teoria de Deus (primeira parte), uma teoria da alma (II), uma teoria dos ‘efeitos’ dos modos de conhecimento (IIL, IV, V até a proposigao II), uma teoria da salvagio pelo amor de Deus (V). Poder-se-ia seguir no detalhe das diferentes partes o plano escolastico tao diferente da démarche souple das Meditagdes de Descartes. Nela encontraria- mos Santo Tomas, Leio Hebreu, Maiménides e com alguma freqiiéncia, através deles e varios outros, Aristoteles”?, 1, CAILLOIS, R. “Notes”. In: SPINOZA, B. Ocuores complétes. Paris: Gallimard, 1954, p. 304, : 2. Ihidem. p. 304-305, a4 Poderiamos com Balibar assinalar ainda a existéncia de um Espinosa “politico”. Um teérico da politica cujas bases antropol6gicas ja se encon- tram na Etica, e cujos lagos com os Tratados ele, Balibar, procura restituir, mostrando-nos que nao ha nenhuma contradigio entre o fato de o filésofo ter considerado a politica como matéria da histéria e da paixdo, e seu designio de analisar as ag¢Ges humanas 4 maneira dos geémetras, sem as ridicularizar, as deplorar e as maldizer, como se estivesse diante de cur- vas, de superficies e de volumes’. Poderiamos, por fim, afirmar com Desanti a existéncia de varios Espinosas, a tal ponto — escreve — que se péde fazer dele em filosofia um “idealista absoluto” (ver Hegel, que fala do seu “acosmismo”), um filésofo da pura “interioridade” (Brunschvicg), um mistico “bébado de Deus” (Lagneau) e um “materialista ateu” (seus contemporaneos, que nao se enganaram, e os enciclopedistas). E pergunta Desanti, algo desolado, em busca de “seu” Espinosa, dividido entre o materialismo e o idealismo: “Podendo estas interpretagdes apoiar-se em textos dentre os quais cada um, tomado isoladamente, aparecera como ‘decisivo’, qual é 0 verdadeiro Espinosa?”* Ora, correndo o risco de multiplicar mais ainda os “Baruchs”, os “Benedictus” e os “Benoits” de que nos falam Wolfshon, Caillois e Desanti, o autor que vamos procurar trazer a existéncia nas paginas que se seguem é um Espinosa “ético” ou “moralista”. Para tanto, vamos ater-nos a Etica, na sua dupla acepcao de ciéncia do éthos e de ciéncia do homem, cuja reconstituicdo, se nos levou a antiguidade classica, foi para fazer recair 0 acento sobre a anilise sistemdtica, em detrimento da anilise hist6rica das fontes e das filiagdes. A razdo desta ultima restrigéo se deve ao fato de que, nestas matérias, como o observou com argtcia Russell em algum lugar, a andlise nao teria fim, e toda a histéria da filosofia no fim das contas nao seria mais do que uma nota de rodapé em torno de Platao. Eis o “nosso” Espinosa. Trata-se do autor que, logo no inicio do Tra- tado da Reforma do Entendimento, ao nos falar de seu itinerdrio na filosofia, numa sorte de autobiografia intelectual algo suméria, afirma que a busca do “soberano bem” é 0 que definiu o eixo de sua vida de homem e o percurso de suas reflex6es de filoséfo — um pouco como se pode dizer que a procura e a metafisica do “bem” definiu a vida e a obra de Platao: “Desde que a experiéncia me ensinou ser vao e futil tudo o que costuma acontecer na vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que temia nao continham em si nada de bom nem de . “ Avant-propos”. In: —— Spinoza et la politique. Paris: PUF, 1985, p. 5-6. 4. DESANTI, J. T. Introduction & Vhistoire de la philasophie. Paris: Les Editions de la Nouvelle Critique, 1956, p. 98. 85 mau senho enquanto o animo se deixava abalar por elas, resolvi, enfi indagar se existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunical “se, ¢ pelo qual unicamente, rejeitado tudo o mais, o animo fosse afetad| mais ainda, se existia algo que, achado e adquirido, me desse para sempi © gozo de uma alegria continua e suprema”®, Eis a “nossa” Etica. Trata-se da obra em que ele afirma que o supre! bem é 0 conhecimento ou o amor intelectual de Deus e que a verdade! vida ou a vida virtuosa nao é outra coisa sendo viver sob 0 comando razio, que quer o bem e nos leva a Deus. Uma obra que faz do éthos lugar do agir e a morada do homem, e um autor que faz da Ethica m geometrico demonstrata a ciéncia do homem por exceléncia, no rastro uma vasta tradicao que, de Sécrates a Platao, de Aristételes a Descarte; concedeu a ciéncia do éthos e 4 busca do supremo bem a mais viva di atengdes e um lugar privilegiado no sistema do saber. Evidentemente, “nosso” Espinosa e “nossa” Etica exigem uma jus cativa, e podem mesmo chocar os espiritos contemporaneos como o n so, testemunha de um século que esté demasiadamente habituado a ide: tificar a ética com a moral ou com uma filosofia dos valores, sem nenhi ma relacdo com as ciéncias positivas, e ao qual é mais facil reconhecer sua teoria das paixdes uma psicandlise avant a lettre 4 Freud, e na sui teoria da virtude um perspectivismo moral 4 Nietzsche. Certo, por mai gue analisemos e recortemos Espinosa, toda esperanca de encontrar Etica uma teoria dos deveres é va. Mas isto ndo autoriza nem uma psica ndlise nem uma genealogia, pela taz4o muito simples de que sua Etica uma “ética do ser” e ndo do “fazer”, sua “teoria das paixdes” é meno} uma psicologia da alma, do que uma analitica das condicdes subjetivas d agir humano, e o homem dé que ele nos fala 6 menos 0 “sujeito de caré cia e de desejo” de uma certa antropologia moderna do que o “homem interior” de Sdcrates, definido pela plenitude de sua esséncia: a alma, Ainda que seja “contempordneo” o autor e que a atualidade da obra, exemplo de sua teoria do desejo e das paixées, surpreenda os espiritos, que define o projeto espinosano nao é com certeza uma ética do fazer uma filosofia pratica, mas uma ética do ser e uma metafisica do be! onde € possivel reconhecer os trés grandes eixos que definiram o pensa: mento ético na antiguidade classica de que nos fala Robin, a saber: 1) idéia de lei e de bem; 2) a virtude e a eudaimonia; 3) 0 sujeito da aco mo: e 0 papel das condigées psicolégicas ou subjetivas no agir humano., Antes de mais nada, algumas preliminares semanticas com vistas precisarmos 0 campo de nossa problemitica. Para tanto, vamos seguir di perto os belos capitulos dedicados a ética cldssica por H. C. de Lima Vi 5. ESPINOSA, B. Tratado de eorregio do intelecto, Sio Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 45, 86 nos seus Escritos de Filosofia Il. Tudo bem estimado — escreve —, nesta vasta tradigéo que nos leva de Herdclito a Aristételes, o éthes é, ao lado da physis, uma das formas primeiras de manifestagao do ser (éthos duthropo déimon, dizia Herdclito). Com efeito, “a primeira acepcao de éthos (com eta inicial) designa a morada do homem (e do animal em geral). O éthos é a casa do homem. O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do éthos. Este sentido de um lugar de estada permanente e habi- tual, de um abrigo protetor, constitui a raiz semantica que dé origem a significagao do éthos como costume, esquema praxiolégico durdvel, estilo de vida e agao. A metéfora da morada e do abrigo indica justamente que, a partir do éthos, o espago do mundo tornou-se habitavel para o homem. O dominio da physis ou o reino da necessidade é rompido pela abertura do espaco humano do éthos, no qual irdo inscrever-se os costumes, os hdbitos, as normas e os interditos, os valores e as ages. Por conseguinte, © espaco do éthos enquanto espaco humano no é dado ao homem, mas por ele construido ou incessantemente reconstruido. Nunca a casa do éthos esta pronta e acabada para o homem, e esse seu essencial inacabamento € 0 signo de uma presenga a um tempo préxima e infinita- mente distante, e que Platéo designou como a presenga exigente do bem, que est4 além de’todo ser (ousi2) ou para além do que se mostra acabado e completo”* Por sua vez, a segunda acepgao — acrescenta —, com épsilon inicial, “diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. E, portanto, o que ocorre freqiientemente ou quase sempre (polldkis), mas nao sempre (aéi), nem em virtude de uma necessi- dade natural. Daqui a oposicao entre éthei e physei, o habitual e o natural. O éthos neste caso denota uma constancia no agir, que se contrapGe ao impulso do desejo (rexis). Esta constancia do éthos como disposigéo per- manente é a manifestagdo e como que o vinco profundo do éthos como costume, seu fortalecimento e o relevo dado as suas peculiaridades. O modo de agir (trdpos) do individuo, expressdo da sua personalidade ética, dever4 traduzir, finalmente, a articulagdo entre o éthos como cardter e 0 éthos como habito”?. E em torno deste nticleo semantico primitivo — 0 éthos como morada do ser (homem) € o éthos como disposigao permanente para o agir — que se desenha o projeto de uma ciéncia a um tempo discursiva e normati- va — a ética — que volta sobre o homem (ou, antes, sobre o éthos como espaco de realizacgio do homem) o instrumento do légos demonstrativo, e trata, qual uma téchne, de conformar a praxis dos homens consoante a 6. LIMA VAZ, H.C. Escritos de filosofia Il; Btica e cultura. Sio Paulo: Edigées Loyola, 1988, p, 12-13. 7. Ibidem. p. 14. 87 a) medida do bem e do melhor, elevando-os a um plano de existéncia supe rior ao da physis, ainda que enraizado nela. Um conhecimento, portant que se quer pritico, criando uma disposicéo permanente para o agir, cuja principio reside no interior do préprio homem, e pondo-o ao abrigo do turbilhdo das paixGes de que ele é vitima em seu estado natural. Tal 6 parece-nos, 0 sentido proprio de temas tais como enkréteia, autdrceia, areté, enérgeia etc., que cedo se incorporaram ao campo seméntico do éthos — uns, denotando o dominio de si (enkrdteia) e a agao posta sob 0 comando do agente e que exprime o bem e o senhorio de si mesmo (autarceia); outros, designando a capacidade (poténcia) da afirmacao do ser na atua- lidade do agir (enérgeia), ou a disposigao permanente para o agir em con+ formidade com a exigéncia do bem e do melhor (areté). E ainda a idéia da constituigao (politéia) do Estado, consoante leis justas e universais, a qual, segundo Lima Vaz, fecha “o circulo semantico do éthos, ao conferir A praxis sua mais alta qualificagdo, vem a ser, a da virtude politica ou dis- posicao permanente para o exercicio da liberdade sob a soberania da lei justa”®. Em conseqiiéncia, o lugar de realizacéo do éthos ou € 0 individuo, e 0 contetido da aco ética é entéo “virtude”, ou é a pélis, e 0 contetdo da acao ética é entao “lei” (Lima Vaz), numa transigéo que da lugar a estrita solidariedade da ética e da politica, cuja bela unidade s6 vai ser rompida na modernidade. Solidariedade que pode revestir-se seja da forma de um circulo (politica) incluido no outro (ética), a exemplo de Plato, seja de dois circulos concéntricos abarcando um espaco comum, mas reservando a cada um seu espago proprio, como em Aristételes: em ambos, o circulo do éthos, afirmando-se como o lugar de realizagao do homem enquanto individuo, e o da pélis, como o lugar de realizagao do cidadao e 0 espaco privilegiado da inscric4o de sua préxis (’comunidade de obras” ou “asso- ciagdo de homens para viver bem e felizes”, dizia Arist6teles) — tal 6 0 campo seméntico da ciéncia do éthos na antiguidade classica. Duplamente centrada no homem — o éthos como a morada do ser (homem); a pélis como o lugar do agir e da obra do homem — de qual “homem’” fala, com efeito, a ética? Do “individuo empirico”, abandonado ao arbitrério de um principio de indeterminacao inscrito no fundo de seu ser e que, de uma forma errdtica, se perde na absoluta contingéncia da utilidade e do interesse, como querem os sofistas? Ou, antes, do “homem. natural”, movido pela necessidade exterior da physis, contra a qual se eleva Herdclito, submetendo as coisas 4 medida do homem? Nem de um nem de outro, mas do “homem interior” definido pela necessidade ima- nente de sua esséncia — a alma-psiqué — de que nos fala Socrates, e como tal capaz de ir além da esfera da utilidade e do interesse imediato e de se elevar a gratuidade do bem e do agir virtuoso, e, assim, determinar-se en- quanto sujeito moral ou individuo ético — tal é o objeto e o campo de problematica da ciéncia do éthos pensada como ciéncia do homem. Uma vez isolado o seu objeto, o homem interior, portador do légos, 0 préximo passo foi estender-lhe este mesmo légos, e nos oferecer, assim, uma ciéncia (episthéme) do mesmo: a ética. Em sua qualidade de ciéncia discursiva (que dé raz4o) e saber normativo (que prescreve), a ética nas- cente vai buscar seu modelo de racionalidade na fisica e na medicina, gracas a duas analogias a partir das quais ela procura pensar as suas categorias e definir 0 estatuto do saber que ela pretende instaurar: a ana- logia physys/éthos, de um lado; a analogia éthos/téchne, de outro. Com a analogia physis/éthos transpde-se para 0 mundo humano a continuidade e a constancia prépria dos objetos naturais, agora firme como a rocha e est4vel como o movimento dos astros, e nao simplesmente cam- biante e voliivel como os caprichos de uma mulher. Um bom exemplo dessa transposic¢ao s4o as categorias de virtude, que de forga fisica das coisas vé seu campo semantico estendido 4 alma humana (firmeza e forca da alma), e de enérgeia, glosada em energia espiritual da alma etc. Ea forma de conhecimento que ela autoriza, a exemplo da fisica, é a de uma ciéncia discursiva voltada para a imutabilidade e a universalidade do que é (sershomem=psyché). Por seu turno, com a analogia éthos/techné transp6e-se para o mundo humano a idéia de perfeigao ou de aperfeigoamento da alma, @ luz do modelo da péiesis e da perfeigao da obra, glosada como perfeicio do agen- te, instaurando uma técnica ou arte de existéncia pensada como uma acéo corretiva ante a eterna ameaga de recaida no sensivel, 4 faléncia do ser que acomete os homens de tempos em tempos, a uma certa deficiéncia de ser que atinge todos os homens de todos os tempos (dai a necessidade da acao, para “preenché-lo”}. Mais além da pdiesis e das regras extrinsecas da arte da fabricagéo, nas quais ela vai buscar a categoria de areté (exceléncia do agente em analogia com a perfeicaéo da obra e o virtuosismo do arte- so), é na medicina enquanto téchne que a ética em suas origens gregas vai buscar as demais categorias e compreender o sentido do discurso e da préxis que ela visa instalar: as categorias de cuidado de si (cuidado do corpo=cuidado da alma), de medicina do espirito (em analogia com a medicina do corpo), e de remédio para a alma (cura de seus excessos); um saber pratico voltado para a agao e a contingéncia do agir. Desta forma, como diz Lima Vaz, € no ponto de intersecao destes dois tipos de racionalidade — uma, de tipo causal; outra de tipo teleolégico — que vai emergir a racionalidade propria do éthos — A analogia éthos-physis correspondendo a necessidade nomolégica do discurso demonstrativo 89 (necessidade do ser); 4 analogia éthos-téchne (no caso, ética-medicina), Necessidade pratica do discurso normativo (necessidade do fazer ou dever-ser). Mas, bem entendido, estas analogias estao longe de nos sugerir que ciéncia do éthos nestas duas valéncias — saber que demonstra e que razio; saber que prescreve um interdito e uma norma de acio — estritamente homogénea & ciéncia da physis, e A péiesis e suas téchnai. um lado, se o éthos reintroduz a necessidade da physis fixando-a na cons: tancia dos habitos (héxis) e.na disposicéo permanente para o agir (cardte ou firmeza da alma), é para reinscrevé-la no espaco da liberdade e da indeterminagao do ser que acompanha sempre o agir humano — a neces sidade exterior da physis correspondendo a necessidade interior do légos que obriga in foro interno. De outro, se o éthos reintroduz a finalidade da péiesis, fixando-a no ideal de perfeicéo que conforma a praxis ou o agit moral, é para reinscrever um hiatus entre estes dois dominios da ago — 4 perfeicao da obra da péiesis correspondendo a perfeicao do agente ou da agao enquanto tal (praxis). Tendo ante si seu objeto proprio — o homem interior — e dispondi de seu proprio modelo de racionalidade, o sentido e a necessidade d ética se mostram agora 4 luz do dia: nascida da crise da razao, é pela razdo que ela procura vencé-la, e desde logo se propde como légos discursivo; nascida da crise da ago, nela a funcdo argumentativa da palavré é ret6rica, urgéncia da acao, e desde logo quer-se um saber pratico e é um légos pratico que anuncia. Surgindo da crise dos valores que se instala com a ruina do mito e das tradigdes nele fundadas, quando se pe em questao © ser, a-verdade, e o sentido da ago, a ética termina por incor porar a filosofia sua terceira questdo axial: a primeira é que é 0 ser?, di metafisica; a segunda, que é verdade?, da légica; a terceira, que é 0 bem?, da moral. Na raiz desta pergunta, vamos encontrar a questo socratica de saber como podemos tornar o agir humano conforme ao légos, isto é, racional @ eticamente justificdvel? Ou em outras palavras: dado que o homem é ui ser de razdo, e que ele pode e deve comportar-se segundo as regras da Tazao, como poderemos saber com efeito se uma aco é boa, justa, virtuo- sa? Questao radical que diz respeito ao métron da acdo, em torno da qual vai gravitar toda a reflexdo ética na antiguidade Classica, e que vai dat origem a chamada “aporia do pensamento ético”, a qual aparece nos did logos socraticos de Platao: se 6 necessdrio praticar a virtude para pode! defini-la, e é necessério defini-la para bem praticé-la, qual é entdo a m dida do agir? A prépria praxis? O légos? A. praxis é homogénea ao légos, 9. LIMA V. LC. op. eit. p. 107. 90 ou um hiato os separa? Eis o problema que obcecou os gregos desde o comego: a busca de um métron absoluto da agao que, mais além das medidas relativas ou subjetivas, tais como aquelas propostas pelos sofistas (pra- zer/desprazer, ttil/nao-atil, prazer/dor etc.), pudesse dar ao agente a verdadeira medida do bem e a certeza de sua posse, uma vez de posse dele. E eis a resposta que nos deu Sécrates, ainda que sem fazer uma ciéncia do éthos: a medida é a alma, e o verdadeiro bem & agir de confor- midade com a alma. Encontrado o métron da ago e conhecido o bem, faltava agora dar- -Thes a forma de ciéncia, e é esta a tarefa a que se propuseram Platdo e Arist6teles. Platéo buscara a saida do circulo aporético, segundo Lima Vaz, na transcendéncia da medida 4 praxis, postulando um bem que esta para além de toda existéncia determinada e que, em sua realidade ideal, se da a um tempo como a realidade realissima e métron absoluto da agao. Por seu turno, ao subordinar a idéia de virtude a existéncia do varao virtuoso, Aristételes se afastar4 da rota plat6nica (critica do bem separa- do) e buscara a saida na imanéncia do métron 4 agao, levando a termo, com soberana mestria, uma das tendéncias mais profundas do espirito grego, a saber: a aspiracao a perfeigéo como forma acabada, realizada na atualidade do agir (enérgeia) e a busca do seu index no sentimento de felicidade franqueado a quem a experiencia — tal é “a areté, que esplende como norma viva no varao virtuoso”, escreve Lima Vaz, e, ainda, é pre- ciso dizé-lo, a eudaimonia tao justamente celebrada pelo Estagirita ". Nas vias platénica e aristotélica, sao duas maneiras diferentes de ar- ticular a fheoria com a praxis que se configura. Platéo simplesmente verga a praxis A theoria e nos propée uma teoria pratica, isto é, uma teoria na qual a praxis se funda, se prova e, enfim, se justifica na e pela prépria teoria, nos quadros de um esquema vertical de uma tnica direcdo, onde a propria teoria desce até o sensivel e como que se dilata, abarca e produz a praxis. Aristteles, por seu turno, dobra a teoria a pratica e nos propée uma teoria pratica, vale dizer, uma teoria que se funda e se justifica na e pela praxis ("aquilo que somos obrigados a fazer para aprender, s6 0 aprendemos fazendo” — dizia Aristoteles), nos quadros de um esquema vertical de duas direcées: uma, que se eleva da teoria ao inteligivel puro; outra, que desce da teoria ao sensivel e se vé penetrada por ele — a um tempo reconhecendo o cardter irredutivel da préxis empirica (inde- terminacao do ser, contingéncia da agao) e concedendo 8 teoria o papel de métron e de guia da acio (praxis). Duas coisas sio dignas de nota nestas duas vias que levaram a um ponto de nao-retorno o pensamerito ético no Ocidente: 1) tanto na via 10. LIMA VAZ, H. C, op. cit. p. 107. a1 aristotélica como na platénica, estamos diante de uma mesma “ética d ser” (homem interior) que, se terminou por se cindir numa ciéncia teoréti (Platéo) e numa ciéncia pratica (Aristoteles), é para reafirmar a unidad entre o homem e o mundo, sendo 0 elo que os liga uma razéo césmi universal que, exteriorizando no mundo, se faz cdsmos e, interiorizando no homem, se faz ldégos (analogia éthos-physis); 2) quer se trate de w theoria homogénea a praxis, quer se trate de uma theoria heterogénea & praxis, estamos diante de uma s6 e mesma raz4o, a qual se mostra em sua unidade e em sua universalidade a um tempo como teorética e como pratica (analogia éthos-téchne). Segundo Lima Vaz, a diferenca do cogito cartesiano e da consciéncia de si kantiana, aqui estamos ante uma racionalidade objetiva, e esta razdo universal todo homem dotado de um espirito so encontra no interior de si (ldgos) e no mundo que o rodeia (césmos). Caberia a ciéncia do éthos a tarefa de fixar a unidade da razio teorética e da razdo pratica e de defini-la como efetivamente universal, seja referindo-se com Platao a idéia do Bem transcendente 4 natureza e & histéria, seja ordenando-a com Aristételes ao bem concreto da eudaimonia talhado 4 medida do homem, seja reportando-se com os estéicos a physis dotada de um /égos universal imanente, seja por fim remontando-se & hedoné epicurista como aspiragao de todo ser vivo"'”. Ora, é justamente esta bela unidade da ética antiga que é rompida na modernidade. Duplamente rompida, com efeito: antes de mais nada, no rastro da revolugao mecanicista do século XVII, hd a fratura da physis e do éthos, dando lugar a dicotomia do eu e do mundo e a uma ética “interiorista” absolutamente desconhecida na antiguidade classica, como 0 atesta muito bem a “morale par provision” de Descartes, cujo centro de gravidade é a vontade soberana de um “eu legislador” que, como “ew construtor”, jé tinha ocupado o centro de gravidade do sistema da ciéncia (Lima Vaz); por fim, na esteira da revolugéo copernicana de Kant, ha a fratura da razao pratica e da razdo tedrica que, aprofundando a ciséo entre o eu e o mundo, interioriza mais ainda o éthos nas estruturas a priori do “sujeito”, nos quadros de uma “ética do dever”, segundo a qual a natureza e o éfhos se limitam entre si como dois reinos independentes: @ mundo da necessidade oferecido 4 legislacdo da raz4o pura; o mundo di liberdade oferecido ao imperativo da razao pratica’?. Sem a unidade do ser a remontar e sem a unidade da razao a reportar, trés caminhos se oferecem a ética moderna, passando todos um tanto at largo do solo que um dia a viu nascer: 1) a ética do dever, que vai busca! seu ponto de ancoragem na vontade — a “vontade boa” (Descartes) ou “boa vontade” (Kant) — na linhagem da ética das virtudes de Aristétele: I. LIMA VAZ, H. C, op, cit. p. 69. 12. Ibidem. p. 199. 92 2) a ética do fazer, que reduz a praxis 4 poiesis, dando origem auma moral pragmitica ou instrumental, na qual a agao “se exaure na feitura de uma obra ou na execuco de uma tarefa exterior ao sujeito”, como 0 ilustram muito bem um certo empirismo utilitarista no inicio da modernidade e certas variantes da filosofia analitica em nossos dias; 3) a ética do agir, que vai buscar seu ponto de ancoragem diltimo na imanéncia da acio dissociada de toda raziio e absolutizada em vontade de poténcia, vale dizer, como a afirmagdo das poténcias extra-racionais da alma, a exemplo da genealogia de Nietzsche". Na esteira desta dupla cisdo (physis/éthos; razdo teorética/raz40 pré- tica), mais do que um caminho ow caminhos diferentes para recolocar a reflexdo ética sobre novas bases, algo como uma ciéncia positiva ou uma filosofia pratica, finalmente livres da metafisica que sobre ela pesava como um fardo, é um descaminho que se desenha e um progressivo esvazia- mento das categorias éticas que se nos afigura: o bem degradado em um valor subjetivo, o métron em avaliagao subjetiva, a virtude em “um sim- ples efeito do querer de acordo com o dever ou a uma disposicao para semelhante querer” (Scheler). O resultado é 0 “niilismo ético” que vai caracterizar as diferentes filosofias da praxis, da vida e da vontade, desen- cadeando uma crise sem precedentes no pensamento ético contempora- neo. Este, sem solo (virtude) e sem ¢élos (bem), vai buscar, como diz Lima Vaz", a medida do agir humano no padrao de racionalidade — eficdcia, utilidade, rentabilidade etc. — do sistema de objetos sem vida e sem alma do mundo técnico-cientifico-industrial, quando a ética, antes antevista como uma das tarefas mais dignas da reflexao, vé-se marcada com o estigma de um pensum de moralistas e de um artigo de padres ou tedlogos. Desta forma, Espinosa e Hegel sio justamente os dois solitarios que, contra 0 espirito do tempo, reinscrevem a ciéncia do éthos nos quadros de uma ética do ser, num esforco notével para restabelecer a antiga unidade physis/éthos e razdo tedrica/razao pratica — Espinosa, fundando a univer- salidade do éthos na physis estéica dotada de um I6gos universal imanente; Hegel, “no tépos inteligivel da propria Histéria, concebida aristotelicamente como entelécheia, que tem em si mesma seu principio de movimento € o seu fim’, Todavia, uma escolha se impunha: diante da alternativa, ou dobrar a prisxis as necessidades do légos (Plato), ou vergar 0 légos & praxis (Aristételes), eles escolhem a primeira disjuntiva, na diregéo de um matematismo estrito e de uma rigorosa ontologia dos princfpios, unindo ética e metafisica na unidade de um mesmo discurso, e desde logo nos 13. LIMA VAZ, H.C. op. cit. p. 188. 14, Ibidem. p. 224. +15, Ibidem. p. 72. 93 Ppropondo uma ética do ser como uma metafisica do homem, onde rea} recem uma a uma as categorias caras A antiguidade classica, Um bom exemplo disso sao as categorias de enérgeia, enkrateia, “vii de-ciéncia”, “salvacéo pelo conhecimento” etc, que vao reencontrar 81 razio de ser na obra de Espinosa; mas é sem dévida na sua reinterpreta dos conceitos de “bem” e de “virtude” que podemos melhor medir alcance e 0 significado de sua ética do ser. De um lado, ao fazer “supremo bem’ (a idéia de Deus) a arché da ciéncia do éthos, nos quadi de uma metafisica dos principios fundada na identidade de Deus, verdade e do bem, ele termina, assim, por restabelecer os direitos platonismo, mas nao sem antes, no rastro da critica do “bem separado” Arist6teles, ter infletido a transcendéncia da Idéia em favor da imanént da Natureza (tal € um dos sentidos possiveis do famoso Deus sive Natu) de Espinosa). De outro, ao fazer da “perfeicdo” (areté) a medida da praxt humana, nos quadros de uma teoria das virtudes que acaba por restaby lecer 0 conceito aristotélico de enérgeia, ele acentua nao propriamente “deveres” do individuo, mas, antes, seu conatus ou a poténcia da afirma: Gao do ser — que deve ser o que é — na absoluta imanéncia e atualidad do agir. Eis 0 “nosso” Espinosa e a “nossa” Etica justificados: na sua dupla condigao de ciéncia do éthos e de ciéncia do homem, 1) a exemplo da ética classica, trata-se de um saber demonstrativo que “dé razio” e de um saber normativo que “prescreve”; 2) do mesmo modo que na ética cldssi- ca, € ao “homem interior” de Sécrates que ela se refere. Deste saber de- monstrativo e normativo que tem por objeto o éthos e o homem interior, Aristételes faz uma ciéncia pratica, e Espinosa uma ciéncia teorética.., como Platao. No entanto, 0 que faz de Espinosa, com sua ética do ser, um moderno, ndo um antigo? O autor da Ethica com certeza fala das analogias physis- -éthos e éthos-téchne; todavia, a resposta encontrada Para a questao socratica (que é 0 homem? que é 0 bem?) nao é a mesma do fundador da Acade- mia. Muito embora prefira a ética causalista de Platao A finalista de Aristoteles, € uma outra urdidura conceitual que nos oferece a sua obra. Filho da idade mecénica, a ética espinosana é determinista: o éhos é um desdobramento mecanico da physis, e, sem a acdo constritiva do bem que de fora regula sua ago e Ihe dé 0 métron do seu agir, o homem espinosano est4 mecanicamente determinado desde seu interior a agir de conformida- de com o bem que lhe é imanente (tal é 0 sentido do conatus, na sua acepcio de esforco, empenho, impulso, inclinagdo, tendéncia etc., glosado em energia espiritual capaz de afirmar o ser na atualidade do agir). Eo que vamos mostrar em seguida. 94 a 2. A Etica, a Geometria e a Metafisica “Os sdbios, 6 Célicles — escreve Plataéo —, afirmam que o céu e a terra, os deuses e os homens conservam a'comunidade e a amizade, a boa ordem, a sabedoria e a justiga e por isso, companheiro, chamam a esse universo de ordem, e nao de desordem e desregramento. Mas tu, sendo sabio, pareces nao aplicar tua mente a estas coisas e, ao invés, te esqueces de que a igualdade geométrica pode muito entre os deuses e entre og homens. Pensas que é preciso esforcar-se para se poder sempre mais. E que te descuidas da geometria”'*. Tudo se passa como se, dois mil anos depois, ao ler estas belas pagi- nas de Platéo no canto de uma lareira,|numa destas noites geladas que deram nascimento a um estilo de filosofar tao justamente célebre, e acom- panhado de sua pipe solitaire, Espinosa tivesse olhado de través as Paixées da Alma de Descartes e tivesse dito a si mesmo com um ar a um tempo decepcionado e desafiador: de fato, se o ilustre e mui sébio M. Descartes, apés nos ter prometido a mais elevada moral, fundada has waigéncias da razdo e nos cinones do método geométrico, a qual seria o cimo da “drvore da ciéncia”, ndo nos ofereceu mais do que uma morale par provision, uma espécie de saber pratico que mal distingue as regras de conduta dos moralistas dos artigos de fé de um crente piedoso, € porque este gentilhomme descuidou da geometria. Onde Descartes fracassou, imagina Espinosa, eu poderei vencer, desde que desmantele, uma por uma, todas as pecas do sistema cartesiano, mas conservando 0 ideal do conhecimento racional e as exceléncias do método geométrico como instrumento do conhecimento verdadeiro e da verdadeira sabedoria, fundada em idéias claras e distin- tas. O resultado deste projeto ambicioso, a cujo levar a termo Espinosa dedicou quinze anos, é a Ethica More Geometrico Demonstrata, Uma obra em que temos, como diz Caillois, malgrado o lado artificial de sua ordem de exposicao, o “esforco mais extraordinario de que se tem conhecimento, depois de Aristételes e antes de Hegel, para construir uma rede tao total dos conceitos apreendendo a totalidade do ser’”. No caso, uma metafisica do homem onde se fundem, com uma mestria nunca vista, as exigéncias do método metafisico, que quer que o discurso se reporte ao em-si da coisa em sua espessura ontolégica (ontologia dos principio), e as exigén- cias do método geométrico, que quer que a verdade do discurso nasca do jogo dos conceitos no interior do discurso em sua discursividade, e ape- nas dele (matematismo). 16. PLATAO Apud LIMA VAZ, H. C. op. cit p. 49-50, n. 53; Gérg., 507e-508a. 17, CAILLOIS, R. “Notes”. In: SPINOZA, B. op. cit. p. 304. 95, Para tanto, Espinosa inscreve sua Etica nos AW easéncias que nos vem de Platao, €m encontrar o principio que, concebido em si € por si mesmo, situar-se no inicio da cadeia de razées, dele se derivando, por deducag todo o resto. Este Principio — a arché no sentido que lhe da Aristételes, Principio fontal do ser e da sua inteligibilidade — nao € senao a “substai cia infinita” de Descartes, ou simplesmente Deus ou a Natureza. De ti sorte que 0 método em Espinosa vai reunir na unidade de uma mes estratégia discursiva 1) a via metafisica da reducao as esséncias, que -n9| conduz, ao cabo de uma cadeia Tegressiva, a um ponto de ancoragent Gltimo na ordem do ser: é “légica” da dedugao sistematica, que nos leva, de deducdo em deducia a um corpus de idéias derivadas, cujo ponto de apoio altimo é um conjun Mas havia bem uma condicao para que 0 método matematicg ~Mmetafisico em Espinosa cumprisse essa dupla fungao: para dar As ilagd do pen: de razio em que estava encerrada, teza e do mundo dos homens, dispondo-as numa ordem Tigorosa de zGes que, a partir do Jogo de seus conceitos, fizesse aparecer a verdade © em-si da coisa como se a deduzfssemos da propria coisa, diretament| sem nada acrescentar. Tal condicao aos olhos de Espinosa nao constity Problema: bastaria reduzir a coisa 4 idéia, e desde entao a geometria, ef a ajuda de seus conceitos e deduces, deixaria falar o objeto como que fi si mesmo, e faria aparecer a verdade como que a deduzindo diretame da coisa mesma (Caillois). E por isso, neste esforco para tornar a © ao éthos, que Espinosa vai encontrar no cartes. Plat6nico, Descartes acabara de definir, como diz Caillois, o idi do conhecimento racional a imagem das matemiticas, vendo na geo} tria um extraordindrio poder do espfrito, uma norma de inteligibili firme e inabalavel"*. Ainda que este encontro nao tenha dado lugar novo ideal de conhecimento, pois, tudo bem considerado, presta num e noutro ao mesmo Papel de fundar sem ambigiidad seu itinerdrio filoséfico a D ——______ 18. CAILLOIS, R. “Introduction”. In: SPINOZA, B. op. cit. p. XVII %6 conhecimento verdadeiro, que € 0 conhecimento racional, Espinosa dela vai exigir bem mais do que 0 autor das Meditacées, Com efeito, conforme o observou muito bem Lalande, para Descartes os métodos de demonstragao da geometria nao so mais que um remédio Para as insuficiéncias do espirito, um instrumento de que se serve o en- tendimento humano no seu esforgo de conhecer as coisas, sem jamais conseguir preencher in totum o hiato que separa a vontade do pensamento €, assim, afastar o fantasma do erro e as armadilhas do malin génie ("0 verdadeiro ideal do conhecimento €0 conhecimento fundado na intuicao, © nao na demonstrac4o, e Deus, que tudo sabe e tudo vé, pode muito bem dispensar a demonstracéo com suas longas cadeias dedutivas, com seus axiomas, com suas provas” — diria Descartes, com Plato). E menos ain- da, como faz notar Gueroult, conseguiria apagar um certo mistério subsistente nas realidades divinas e uma certa opacidade que, como uma sombra, acompanha as coisas e 0 proprio homem. Se Deus é a mais clara e distinta das idéias, seus fins Nos séo absolutamente insondaveis, pois subsiste sempre um certo mistério escondido no fundo de seu ser; e diante da absoluta incapacidade de o entendimento decidir se as coisas sdo finitas ou infinitas e de dar conta da unido substancial da alma e do corpo, Descartes vai afirmar simplesmente que 0 universo é indefinido e que esta unido pode ser somente vivida, e nao compreendida ou pensada’, Ora, é justamente contra este método fundado negativamente, isto & néo na poténcia do espfrito, mas nos seus limites, conferindo-lhe o esta- tuto de remédio contra o assalto da divida e de defesa contra as armadi- lhas do malin génie, e nos sugerindo uma falta (deficiéncia) ou uma espé- cie de pecado constitutivo da natureza humana, é portanto contra este método “negativo” que se eleva Espinosa. Ao fazé-lo, ele espera da geo- metria algo de diferente do que esperava Descartes, e vai lhe pedir ou exigir bem mais. Antes de mais nada, mais do que um instrumento do conhecimento verdadeiro, que ela seja 0 veiculo do verdadeiro conheci- mento, que é 0 conhecimento absoluto, afirmando simplesmente que nossa inteligéncia acede ao saber absoluto, “pois o entendimento Puro é, quanto 4 sua natureza, o mesmo no homem e em Deus” ». Enfim, mais do que um remédio contra a davida e as insuficiéncias de um espirito finito, que ela seja uma poténcia infinita da verdade, afirmando que o erro nao é ° signo de uma falta constitutiva da natureza humana, mas de uma insufi- ciéncia de conhecimento que se corrige no e pelo conhecimento, e que o mistério e a opacidade nao sao um indice ontol6gico incrustado nas coi- 8as, mas um asylum ignorantiae, 0 index de um déficit de conhecimento que 8e desfaz tao logo possuamos as idéias adequadas e as reenviemos a seu 10 ROEROULT, M. Spinoza, Paris: Aubier Montaigne, 1968, v., p. 9, ®, Ibidem, p, 11. fundamento origindrio absoluto, que 6 Deus ele mesmo, cuja esséncia tio transparente ao espirito quanto os teoremas da geometria. Eis por que Espinosa procede ao longo da Etica A destruicdo sistemé- tica das teses cartesianas sobre a esséncia do cogito, a natureza da alma e © estatuto da idéia, e isto menos por uma certa idiossincrasia ou pela gosto da polémica que faria da Etica uma simples “resposta” as Paixdes da Alma de Descartes, do que pelas injungdes de uma empresa que visa dobrar o éthos as necessidades da razao e as exigéncias do método geomé- trico enquanto tal: 1) a esséncia do cogito: na espontaneidade de suas operagées, 0 pen- samento nao se define pela dévida ou pela possibilidade do erro, mas pela certeza de sie pela posse da verdade (”o pensamento em sua espon- taneidade 6 a poténcia da verdade”, diria Espinosa); sua formula correta no pode ser cogito ergo sum, mas ego sum cogitans, pois, como diz Gueroult?!, a natureza do pensamento consiste em ir da intuigdo do eu existo, origi- nariamente dada em nés, A sua revelacio como pensante; a esséncia do cogito nao pode ser o “eu” abandonado a si mesmo, como quer Descartes, que identifica o “eu existo” com o “eu penso”, separa 0 pensamento do corpo e dissocia o cogita de Deus, mas em sua imediatidade est4 intima- mente associado ao corpo (“a alma 6 a idéia do corpo”), e sua essentia & Deus ele mesmo, enquanto “modo” do atributo do pensamento de que participamos e que pertence a ele (cogito cum Deo); 2) a natureza da alma: segundo Gueroult, a destruicgio das teses. cartesianas sobre a natureza da alma é levada a cabo por Espinosa ao longo da segunda parte da Etica, na qual fica estabelecido: “A alma nao é uma substancia (prop 10 e 11); ela nao é simples (prop. 15); ela é divi- sivel tanto quanto o corpo (ibid.); ela nao é a forma (sic! — ID) do corpo humano (prop. 13); ela é a idéia deste corpo (ibid.); ela ndo é em si, considerada por si mesma, uma idéia clara e distinta (esc. da prop. 28); ela ndo tem e nem pode ter no cogito uma idéia clara e distinta de si (prop. 29); e sua esséncia, tal como ela é em si, escapa ao cogito (ibid.); ela nao é, por natureza, independente do corpo, j4 que, em si, isto é, em Deus, a idéia do corpo a constitui (inicio da prop. 19); ela nao é mais facil de ser conhecida do que o corpo, uma vez que ela ndo se conhece a si mesma sendo pelas afecgdes de seu corpo, logo somente enquanto ela possui o conhecimento de seu corpo (prop. 23)”, 3) 0 estatuto da idéia: as idéias nao séo quadros ou imagens das coisas (representagdes), mas concepcdes do espirito (conceitos); a verdade nao reside nem no sujeito nem na coisa, mas na idéia (modo do pensamento); 21, GUEROULT, M, op. cit. p. 34. 22. Idem. Spinoza. Paris: Aubier Montaigne, 1974, v. 2., p. 283-284, 98 a verdade da idéia nao é uma veritas in repraesentando, mas uma veritas in essendo, e sua certeza nao é a adaequatio (externa) intellectus ef rei, mas a adaequatio (interna) do pensamento consigo mesmo; uma idéia nao é ver- dadeira porque adequada, mas adequada porque verdadeira, e seu index é sua clareza e sua distingao; a verdade é 0 critério da verdade e a medida do erro (veritas index sui et falsi), e como tal dispensa a exigéncia de uma caugdo ou garantia (externa) de sua veracidade: a prova; a ordem ea conexao das idéias sio as mesmas que a ordem e a conexdo das coisas, e seu fundamento comum é Deus ele mesmo; por isso, 0 ponto de partida do conhecimento nao pode ser nem a idéia do eu (alma), nem a da natu- reza (mundo), mas a idéia de Deus, e o espirito tem um conhecimento adequado da esséncia eterna e infinita de Deus®, De fato — estima Espinosa —, Descartes progredira em relagdo 4 Escola ao denunciar o conhecimento sensivel em favor do conhecimento racional, mostrando-nos que os conceitos de Deus e de natureza sao es- séncias racionais, a exemplo do cogito, da alma e da idéia. Porém, separan- do Deus do cogito, clivando a alma e 0 corpo, e vacilando quanto a natu- Teza da idéia (ora funciona como esséncia, ora como cépia), Descartes nao era mais capaz do que um tomista, com sua rede intermindvel de substan- cias e quididades, de nos mostrar a natureza do conhecimento verdadeiro, que é 0 conhecimento absoluto. Fundado na identidade de natureza entre entendimento humano e o entendimento divino, no conhecimento abso- luto no ha lugar para os mistérios e as opacidades, ambos um asylum ignorantiae para um espirito fraco e algo desconfiado de suas capacidades e talentos, Ora, ao contrario do que diz Descartes, na espontaneidade de seu funcionamento, 0 elemento do espirito nao é a davida ou o erro, mas a verdade, e sendo o que é, uma poténcia produtora da verdade, ele vai de verdade em verdade, se sabe em cada instante como verdade e encon- tra no interior de si mesmo 0 index da verdade ou sua medida (Gueroult). De modo que na Elica todo o mistério é banido e toda a opacidade é desfeita: a exemplo das sombras da caverna de Platao, os mistérios e as opacidades se desfazem tao logo trazidas 4 luz do dia e a transparéncia da razao. E neste quadro de inteligibilidade total que se inscreve toda uma série de teses destinadas a tornar 0 método geométrico conforme ao método metafisico, teses que Espinosa nem sempre formula explicitamente, é verdade, mas que, de toda forma, como diz Gueroult, sio a condigéo deste saber total que ele nos quer oferecer e, em todos os aspectos, em. direta e frontal oposigéo a Descartes. Estas teses dizem que: 1) pela idéia 23. CE. ESPINOSA, B. Ftica, $40 Paulo: Abril Cultural, 1979, proposigao XLVI e XLVI, p. 167-168. adequada, Deus e o homem conhecem a natureza das coisas tal como ela @ em si: a substancia; 2) os atributos constituem o ser mesmo da substan- cla, a qual nao reside num mais além deles; 3) os modos sio afeccées da substancia e, a exemplo do atributo, sao a ela inerentes e pertencem a ela; 4) 0 conhecimento verdadeiro, vale dizer adequado, procede do todo as partes, e consiste em dispor no inicio da cadeia, gracas ao jogo dos con- ceitos (ens a se, causa sui etc.), e de principios definidos in abstracto e a priori (subsisténcia, ineréncia etc.), e apenas deles, 0 ser ndo-causado que se poe a si mesmo na incondicionalidade de sua autoposicao (0 ens a se causa sui), cuja existéncia é auto-implicada e dela se deduz, por derivacio, a de todo 9 resto: Deus; 4) os érgaos do conhecimento verdadeiro sio a intuigao e a dedugao, e o elemento sobre o qual elas operam é a idéia; 5) a operagdo do conhecimento se passa toda ela no interior do pensamento (idéia), e lida com definig6es essenciais, seja para as coisas seja para as idéias; 6) tendo por elemento a idéia, lidando com definicées essenciais e apoiando- -se na intuicéo e na dedugdo, o método do conhecimento verdadeiro é geométrico e, na espontaneidade de sua operacio, é também metafisico; 7) 0 método geométrico funda todo conhecimento verdadeiro e, em con- seqiténcia, toda verdadeira metafisica; 8) por sua vez, o método metafisico demonstra que 0 método geométrico funda todo o conhecimento verda- deiro e a prépria metafisica™. Todavia, se, como diz Espinosa no famoso escélio II da Pproposicaéo XL da segunda parte da Etica, hd trés modos de conhecimento: conhecimento do primeiro género ou Imaginatio, conhecimento do segundo género ou Ratio, conhecimento do terceiro género ou Scientia Intuitiva, em qual deles devemos pois alojar a Etica? No conhecimento do segundo género que, por meio da razdo e somente da raz4o, nos oferece as determinacées das coisas, fazendo dela uma sorte de “fisica do éthos”, A imagem da mecanica que, apoiando-se nas “nogées comuns”, nos fornece um conhecimento exato da queda dos corpos, do movimento e do repouso? No conhecimen- to do terceiro género, fazendo dela uma parte integrante da metafisica, um pouco como em Platéo a ciéncia do éthos é um capitulo da metafisica do Bem? Sem divida, e tal foi a grande audacia de Espinosa, a Ethica More Geometrico Demonstrata se aloja toda ela do lado do conhecimento do ter- ceiro género, inscrevendo-se no registro destas “filosofias da eternidade” que, de Platao a Hegel, vao engajar a ciéncia do éthos na via do conheci- mento racional (Caillois), e exigir uma espécie de “conversao ao absolu- to”, um ponto de vista do absoluto no qual a verdade da coisa como que brota diretamente da prépria coisa, sem a intervencgio do homem e sem nenhum apelo a um arquétipo externo, qualquer que seja ele — eis diante 24. Cf. GUEROULT, M. Spinoza. v. 1, p. 12-13, donde tiramos o essencial de nossa argu- mentagio. 100 de nossos olhos o conhecimento sub specie aeternitatis no qual Espinosa aloja a Etica, um saber absoluto que é, como diz Hegel, o saber do abso- luto e que se sabe como tal. Mas € preciso que as palavras valham o que elas deveriam ou que- riam significar: 0 termo ethica nao resulta de uma idiossincrasia de Espinosa que, no seu lugar, deveria por metafisica, mas quer dizer simplesmente ética, uma ética do ser que, com a ajuda de principios e categorias tais como substancia, atributo, modo, causa sui etc., quer encontrar aquele principio que, situando-se na raiz do éthos e do homem — este, Pensado, diga-se de passagem, nao como substancia ou sujeito, mas como modo da substancia infinita —, nos dé a inteligéncia do seu ser na atualidade do agir: 0 conatus, Por seu turno, a expressdo more geometric, conforme o faz notar Gueroult, é para ele, nao uma “vestimenta de empréstimo, mas seu dispositivo interno, a forma necesséria pela qual ela (a Etica — ID) se produz e se promove como verdade”*. Neste sentido, se se quer vergar 0 éthos as necessidades da Tazao, deve-se apreendé-lo, como diz Gueroult, nao a maneira da fisica, que concebe seus objetos de fora e incompletamente, sem reconduzi-los a sua esséncia divina originaria, “mas 4 maneira pela qual a geometria concebe seus seres de raz4o, a saber geneticamente e de dentro, a partir de um principio que Ihe seria imanente”™. Ora, este principio — a exemplo da inteleccio do ponto em geometria, do qual se deduz a linha e outras figuras derivadas — é a substancia, da qual Espinosa deduz, de uma forma totalmente imanente, 0 corpus dos seres derivados que se ancoram nela e a “afetam” de diferentes maneiras, e cuja ordem de exposigao é a mesma que vamos encontrar num tratado de geometria: 1) a definigao, que fixa o sentido dos termos em conceitos, e que se quer essencial; 2) os axiomas e postulados, que sao afirmagGes que se dispoem no inicio da cadeia de razées e que, mais ou menos evidentes, ndo precisam ser de- monstradas, ainda que sejam a condicéo da demonstracao; 3) as proposi- g6es, que sao teoremas que resultam da articulacdo dos conceitos e cuja demonstragao se da com a ajuda dos axiomas e postulados, precedidos de um lema, que serve de ponto de apoio e facilita a demonstracao; 4) os corolérios, que sio proposigées que se deduzem de outras previamente demonstradas; 5) por fim, os escélios, que sao notas marginais ou comen- tarios relativos 4s proposigoes enunciadas e demonstradas e que, muito embora nao entrem articulada e organicamente na ordem de razes, por vezes comportam um interesse maior do que as proposicoes mesmas, como o faz notar Deleuze. Ha ainda os apéndices, mas 0 ideal seria pas- sarmos sem eles... 25. GUEROULT, M. Spinoza. v. 2, p. 471. 26, Ibidem. p. 472. Sem divida, Espinosa foi ousado ao tentar enquadrar este ser errdtico que é 0 homem, inquieto e governado pelo turbilhao das paixGes, num método que se presta mais facilmente as regiGes frias das matemiaticas @ 808 objetos sem vida e sem alma da fisica — quietude e deslocamento no espago. Todavia, neste intento ele nao estava s6, como o mostra igual designio de Hobbes em politica, ambos esforcando-se por nos oferecer uma anilise dos fenémenos humanos como se estivessem ante linha, superficies e curvas, e como de resto todo o século XVII em outros domf« nios do saber, um século que aprendeu a honrar Euclides, assim como a idade média soube honrar Aristételes e 0 século XVIII, Newton. Ainda que as vias do conhecimento verdadeiro sejam as mesmas em Descartes e em Espinosa, a saber: a intuigao e a dedugao, o autor da Etica, no seu esforgo de tornar 0 método geométrico conforme ao éthos e & metafisica, teve de redefinir 0 estatuto da primeira e 0 regime da segunda, Ora, para Descartes — escreve Desanti — “nés podemos conhecer por meio da intuicao as ‘naturezas simples’, vale dizer, seres de tal forma. Ppouco compostos que basta um olhar para ver sua natureza. Conhecemo! também pela intuicdo as propriedades mais simples dos seres geométricos (que duas quantidades iguais a uma terceira sio iguais entre si). Enfit conhecemos pela intuigao o lago que assegura, num raciocinio, a validadeé da dedugo: a passagem do principio a conseqiténcia. Ou seja, para Deg+ cartes, a nogdo de intuicgaéo encerra, antes de tudo, um alcance epistemolégico. Jé para Espinosa tudo se passa de modo diferente. Para ele, a intuicéo possui um valor propriamente ontolégico, uma vez que se objeto especifico é Deus e a relacdo direta, imediata, que, para além di toda deducéo, une o ser particular a substancia infinita’”. Demais, } onde a intuigéo em Descartes quer-se ontolégica, ela é intuigéo dos elt mentos (zaturae simplices), e nao intuigao do todo, enquanto em Espinosa, mais fiel a tradicéo platénica do que a escola cartesiana, ela é intuigdo d todo, e desde logo integrada organicamente na ascensao dialética que ni eleva ao todo. Por fim, se para Descartes a intuicdo é por assim dizer p. -discursiva, reportando-nos a um ver origindrio que, de um sé golp antes de qualquer conceito, nos dé o em-si da coisa, para Espinosa, contrapartida, ela é discursiva, e mesmo pés-discursiva (”o olho do es pi tito é a demonstragao”, diré) — tal 6 a Scientia Intuitiva e o primeiro d seus Orgaos. O segundo ¢ a deducdo, uma deducio que se quer sistei tica, € verdade, mas sem a suspeita de debilidade com que Descarte! tinha estigmatizado. Além de estreitar os lagos entre intuigdo e dedug dizendo que a evidéncia da primeira acompanha passo a passo as ilag® da segunda, o autor da Etica nao a quer como remédio para as debilidi do espirito, mas como érgao e veiculo do saber absoluto. E tanto 27. DESANTI, J. T. op. cit. p. 126-127. 102 forte e firme que suas demonstragoes dispensam toda prova e a exigéncia de uma caugao externa: os titulos da verdade sao a sua lems» e esta se obtém aliando intimamente a intuigéo a dedugao —eis ae na unidade do mesmo método os dois 6rgdos do conhecimento verdadei- ro, agora veiculos das esséncias do pensamento e do modo de instalar a sua verdade. Mas que seja bem compreendida esta nova can6nica do ee geo- métrico que acabamos de evocar: afirmamos que Espinosa tedel ae regime da deducio e o papel da intuico, e nao que ele criou uma ou ta geometria, ao sabor de suas necessidades de metafisico, uma espécie « le “geometria genética” como quer Gueroult, sentenciando que seus 6rgaos teriam sido recolhidos de Hobbes. Com efeito, conforme no-lo sugere 0 mesmo Gueroult, se olharmos de perto o funcionamento do método geométrico, logo Nos vamos aperceber de que ele encerra os seguintes tragos fundamentais: 1) nasce da Pura poténcia do entendimento que desenvolve por si mesmo, sem nenhum apelo a um fundamento externo, 0 contetido de uma nogao cuja origem absoluta reside nele, e somente nele; 2) esta noga0, conhecida em sie por si mesma, vale dizer, absolutamente, logo adequadamente, gragas as suas notas intrinsecas, € a quantidade; 3) a partir desta nosao, 0 entendimento forma espontaneamente todas as outras, determinando-a de inGinieras maneiras — dai nascem as defini¢oes do circulo, da esfera, da elipse etc.; 4) estas diversas figuras so apenas especificagoes de um 56 ys procedimento: a determinacao da quantidade pelo movimento. Saim © movimento do ponto engendra a linha, o movimento da linha, a superfi- cie, o movimento da superficie, o corpo. Para cada ser geométrico, temos pois uma definigao essencial exprimindo a forma pela qual Podemos determind4-lo por um movimento; 5) Por meio deste processo, o entendi- mento obtém uma infinidade de idéias claras e distintas, as quais apare- cem como dependendo apenas de uma poténcia que the é absolutamente interior, conhecidas de dentro como que por si e em si mesmas, de forma que o ser que designam e as conexées que elas autorizam originam-se “inteiramente da poténcia de nosso pensamento, que contém toda sua causa eficiente’™. Ora, tudo bem considerado, é precisamente este “espirito geométri- co”, com sua exigéncia de tudo definir e de tudo demonstrar, do qual nos fala Pascal, que vamos encontrar em outros racionalistas do século, como Descartes e Leibniz. Também eles pretendem, a exemplo de Espinosa, que o espirito opera por meio de definigses essenciais e que é jestamente a deduc&o que vai estender seus lacos, dispondo-as numa rede de razdes. 28, GUEROULT, M. Spinoza. v. 2, p. 473-474. ‘Também eles pretendem que o conhecimento deve organizar-se 4 maneira de uma axiomética do pensamento puro, vale dizer, a partir de um pro- cesso que Ihe é absolutamente interior e cujo fundamento tiltimo se en- contra dentro de si mesmo, desde que o espirito se dobre sobre si eo tire de seu proprio fundo, junto com sua ordem de razées. Porém, em Des- cartes ha os mistérios; em Leibniz o fundamento que dé a raz4o suficiente das coisas no mais das vezes é opaco e nao pode ser conhecido, Nao em Espinosa, que, desejoso de encontrar a forma de predicagdo absoluta que confere aos principios de Ppensamento o valor de um principio de realida- de, desfaz os mistérios e as opacidades e nos Propoe um racionalismo absoluto que nao conhece TestrigGes e limites no seu campo de acao, apli- cando-se indiferentemente & realidade divina, 4 ordem das coisas e ao mundo dos homens. Se ha diferengas entre os autores da Etica, das Medi- tagdes e da Monadologia, e de fato ha, elas dizem respeito, em Espinosa, mais a uma inflex4o e a um deslocamento de acento, do que a uma cesura ou uma descontinuidade absoluta a nivel do método que nos permitiria falar de uma nova geometria — a “geometria genética” de Gueroult — ou de uma nova metafisica. Assim, na Passagem do conhecimento do segun- do (Ratio) ao do terceiro género, onde se aloja o éthos (Scientia Intuitiva), est em jogo mais uma ascensao dialética que encontra enfim seu objeto proprio — a substAncia infinita — no seu elemento proprio — o concei- to —, do que uma “aplicagio” exterior de um método indiferente ao seu objeto, © qual poderia ser finito ou, infinito. Sem d&vida, 0 método é 0 mesmo, mas, a diferenga das existéncias reais finitas, agora ele é conforme a0 seu objeto, e € isto que autoriza um conhecimento absoluto do mesmo, um pouco como na metafisica de Descartes ao se referir A substancia infinita (de resto, mais facil de ser conhecida do que as finitas), e num sentido muito préximo da tradicdo platénica (”s6 0 que € absolutamente € absolutamente cognoscivel’, diria Espinosa com Platao). Operando com definigées essenciais e se servindo dos mesmos 6r- gaos: intuicéo e deducio, a metafisica nao faz sendo estender o método geométrico, para além dos seres de razdo em que estava encerrado, as existéncias reais do mundo das coisas. Por isso, como diz Gueroult, h4 uma correspondéncia ponto por ponto entre os dois métodos, correspon- déncia que autoriza uma ética more geometrico demonstrata pensada como uma axiomatica do pensamento puro e uma ética do ser como metafisica: 1) a exemplo da intelecgéo do ponto e da linha em geometria, 0 conheci- mento das existéncias reais s6 & verdadeiro se, para além de suas notas extrinsecas, nos dé suas conexées internas, com a ajuda de uma idéia que © entendimento tira de seu proprio fundo, na espontaneidade de seu funcionamento, sem se referir a nenhum arquétipo externo, qualquer que Seja ele: a extenséo e seus modos (movimento e repouso), reportados 4 104 sua esséncia: Deus; 2) a exemplo das idéias de quantidade e de movimen- to, nogdes primitivas da geometria, a partir das quais se chega a uma série de idéias e figuras derivadas: do ponto a linha, como uma soma de pon- tos, da linha ao circulo, obtido pelo movimento da linha em torno de um ponto imével, até se chegar 4 esfera, como um sélido resultante da. notin do semicirculo em torno de um eixo etc., a metafisica constréi a figura de Deus, definindo-o pela natureza de sua esséncia: substancia constituf- da por uma infinidade de atributos infinitos, pela sintese de suas proprie- dades (infinitude, eternidade, subsisténcia, ineréncia etc.), e através de uma idéia que imp6e ao nosso espirito a regra desta construgao ou desta sintese: substantia causa sui™, O elo procurado tinha sido, portanto, encontrado: é a idéia que se constitui no medium que permite a ligacdo entre o pensamento e a reali- dade, e é nela que vamos encontrar 0 index da verdade e sua medida, tanto para as existéncias reais da metafisica como para os seres de razdo da matemAtica. Entretanto, se Espinosa, de redugao em reducio, é levado a fundar a verdade na identidade da idéia e da idéia da idéia, nos quadros de uma axiomatica do pensamento puro que se passa toda ela no interior do pensamento, nao obstante isto esté longe de inscrever a Etica nestas “filosofias interioristas” que, de Descartes a Kant, vao ter um papel de grande relevo na trajetéria da Episteme moderna. Por um lado, se a Etica se quer uma axiomatica do pensamento puro, é porque ela reduz a coisa a idéia, e a idéia funciona como coisa. Por outro, se 0 cogito espinosano se quer uma poténcia produtora da verdade, que se sabe em cada instante como verdade e encontra no interior de si mesmo 0 index da verdade ou sua medida, é porque Deus, como diz Gueroult, desde 0 comego esta por inteiro investido nele (cogito cum Deo). Portanto, ainda que pensasse o conhecimento & maneira de uma axiomdtica do pensamento puro, como 0s cartesianos, Espinosa tinha perfeita consciéncia de se opor a Descartes: ao invés de encerrar o conhecimento na subjetividade, buscando seus fundamentos numa metaffsica existencial do homem finito, abandonado a si mesmo e marcado no mais rec6ndito do seu ser pelas vicissitudes do espaco e do tempo, Espinosa funda o conhecimento em Deus, desprende 0 éthos da ordem do espaco e do tempo, e nos inscreve por inteiro na via que nos eleva ao absoluto e ao sempiterno, que é a via destas “filosofias da eternidade” que, desde Platao, se constituiram como uma das matrizes do pensamento ético no Ocidente. Esforcando-se por encontrar a forma de predicacdo universal absolu- tamente legitima a partir das notas intrinsecas da idéia, e somente dela (matematismo), e buscando no ens a se causa sui, ou simplesmente Deus, 29. GUEROULT, M. op. cit. p. 479-480, donde tiramos o essencial de nossa argumentaco. 105 a arehé do ser e do conhecer, com o qual estima ter dado aos principios do pensamento o valor de um principio de realidade (ontologia dos prin cfplos), € bem uma ética do ser e uma metafisica do homem que no oferece Espinosa. Como Hegel, 150 anos depois. 3. A Ethica More Geometrico Demonstrata Para Aristételes — escreve Lima Vaz — seria insensato e mesmo ri- diculo querer demonstrar a existéncia do étitos, assim como é€ ridiculo querer demonstrar a existéncia da physis: “Sendo a physis um gndrimon ow um notum per se e, portanto, um principio (arqué) da demonstracao, querer provar a existéncia da physis seria uma apaideusia ton analytikén, uma ig- nordncia dos procedimentos analiticos”*. Tal nao é, ao que parece, o caso de Espinosa. Desejoso de encontrar uma forma de predicacdo absoluta, o autor da Etica nado somente procura demonstrar a existéncia do éthos, mas também cuida de nos mostrar que © principio (arché) que esté na raiz do mundo do éthos e nos permite conhecé-lo, a exemplo da physis, 6 simplesmente Deus. Principio do co- nhecer, a idéia de Deus nos da 0 index da verdade ou sua medida, tanto para o mundo das coisas como para o mundo dos homens. Principio do agir, a idéia de Deus nos da 0 métron da acao dos homens, medida que € absoluta, pois é-nos impossivel remontar além dela. Ao cumprir estas trés fungdes — arché do conhecimento, index da verdade e métron da ago —, a idéia de Deus nos daria, portanto, o principio de demonstrabilidade ab- soluta do éthos, com o que Espinosa termina por inscrever a ciéncia que dele se ocupa — a ética — nos quadros da tradicao platénica, nio sem antes eliminar as restrigdes do fundador da academia que levaram um Aristételes a fazer dela um saber pratico algo alheio aos cAnones das ciéncias discursivas. O primeiro passo de Espinosa em sua marcha especulativa que nos } leva do éthos a Deus, com vistas a instalar uma ciéncia discursiva que da | raz4o e um saber normativo que prescreve — a Etica —, vai consistir em | reduzir 0 éthos physis, buscando nas analogias éthos-physis e éthos-téchne | (medicina) aquela necessidade que o mundo dos homens apesar de tudo | comporta, e aquela racionalidade que a acao dos homens termina por instaurar, nado com certeza contra a natureza, mas “reconciliada” com ela. Mas ali onde um aristotélico interromperia sua andlise, imaginando que nao poderia ir adiante, pois incorreria numa petigdo de principio, Espinosa prossegue sua marcha regressiva, e, nao satisfeito com as analogias que 30, LIMA VAZ, H. C. Escritos de filosofia I ... p. 11, m. 1. 106 dio ao éthos a necessidade “exterior” de uma physis, descobre em Deus a necessidade toda interior da natureza — tal vai ser o segundo passo — e ainda do mundo do éthos e dos homens — tal vai ser o terceiro. Comecemos pela analogia physis-éthos. Muitos antes de Espinosa bus- caram na analogia physis-éthos a chave de racionalidade do agir humano. Porém, 0 que se mostra em suas empresas nao é tanto que o mundo dos homens esti governado pela mesma necessidade da natureza, mas, ao contrario, que o homem vive num mundo 4 parte, qual um império no império, um mundo da liberdade por oposicéo ao mundo da necessidade. Ao falarem dos homens, os moralistas de varias observancias parecem ter ante si nao um ser natural que segue as leis comuns da natureza, mas um ser fora da natureza. Ao falarem das acGes dos homens, parecem ter ante si o reino do puro arbitrario e da pura contingéncia, julgando que eles perturbam a ordem da natureza mais que a seguem, que eles tém sobre Os seus atos um poder absoluto e tiram de si mesmos a sua determinacio. Resultado: ao invés de procurarem a causa da inconstancia humana nas “notas” (virtudes) comuns da Natureza, buscam-na em nao se sabe qual “yicio” da natureza humana, e, por essa raz4o, lamentam-na, riem-se dela, desprezam-na, detestam-na; e aquele que mais eloqiiente ou mais sutil- mente souber censurar a impoténcia da alma humana é tido por divino, Desta atitude e destas idéias até mesmo Descartes, ao que parece, malgrado a grande penetracdo de seu espirito, nao conseguiu escapar, tio profun- damente elas estéo enraizadas nos homens e tao fortemente seus espiritos estdo impregnados por elas. Ora, o que quer Espinosa na sua Etica nao é uma moral, uma teoria dos deveres com base em conselhos cheios de prudéncia, mas compreender a natureza das afec¢ées e, ainda, o poder da alma sobre elas. Para tal, a atitude a esperar do analista nao é a do mo- ralista que prefere detestar ou ridicularizar as afecgGes e as acdes huma- nas a conhecé-las, mas a do ge6metra, e, com a mesma imparcialidade que este constréi suas figuras, demonstrar que elas sdo naturais e conformes a raz4o, e néo algo nao-natural, contrério 4 razdo, absurdo e digno de horror. E 0 que afirma Espinosa na introdugo a 3* parte da Etica, onde trata da origem e da natureza das afecgées: “Nada acontece na Natureza que possa ser atribufdo a um vicio desta; a Natureza, com efeito, é sempre a mesma; a sua virtude e a sua poténcia de agir sfo unas e por toda parte as mesmas, isto é, as leis e as regras da Natureza, segundo as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, so sempre e por toda parte as mesmias; por conseqiiéncia, a via reta para conhecer a natureza das coisas, quaisquer que elas sejam, deve ser também una e a mesma, isto é, sempre por meio das leis e das regras universais da Natureza. Portanto, as. afecgdes de édio, de célera, de inveja etc., consideradas em si mesmas, resultam da 107 mesma necessidade e da mesma forca da Natureza que as outras coi! aristotélico e um escoléstico, que logo imaginaréo uma lapiditas para a aingulares; por conseguinte, elas tem causas determinadas, pelas q pedridade da pedra, e outras tantas qiiididades para cada coisa e ser, so claramente conhecidas, e tém propriedades determinadas tao dignaf inclusive o homem. Imaginardo ainda uma falta e uma indeterminacao do nosso conhecimento quanto as propriedades de todas as outras coi do ser onde a coisa se apresenta de uma forma contingente e inacabada, cuja mera contemplagao nos da prazer. Tratarei, portanto, da natureza e uma agéo no sentido de preencher a falta e suprir a Jacuna do ser, da forga das afecgées, e do poder da alma sobre elas, com o mesmo méto determinando-o. Imaginarao por fim um plano providencial que governa com que nas partes precedentes tratei de Deus e da alma, e considerart © ser e a ado, algo como uma ordem do mundo que de alguma forma as acoes e os apetites humanos como se tratasse de linhas, de superfici preexiste a0 mundo, de modo que o movimento que nele ocorre nao seja ou de volumes”*. mais do que a realizagao desta ordem por seres que, estando privados Por seu turno, com a analogia ética-medicina, Espinosa nos most dela, s4o no entanto feitos para ela; algo como um reino dos fins, gus ° que, assim como a medicina é a arte que nos ensina como devemos cui movimento incessante que nos leva de um ser a outro nao é mais aoa do nosso corpo para que ele possa cumprir convenientemente sua fun. a passagem da poténcia ao ato, de uma natureza que Eee, nea a ética é uma sorte de “medicina da alma” que prescreverd os remédi os fins de seu ser e, assim, se pe em movimento para realiza-los”. contra as moléstias do espirito (0s “vicios”) e os excessos dos sentimento: Contra esta doutrina, Espinosa afirma que 1) a substncia néo sdo (a onipoténcia da vontade, as ilusdes do livre-arbitrio etc.), bem como muitas, mas uma 86 e infinita em sua extensao; 2) a contingéncia ndo é ensinaré os homens a viverem em harmonia com a natureza e reconcili« 0 index de uma falta ou de uma insuficiéncia ontolégica da coisa, mas de ados com ela. Esses “remédios”, nds os encontraremos gracas ao conht uma deficiéncia epistemolégica que se corrige no e pelo conhecimento, e cimento das “virtudes” do espirito. Um conhecimento que nos permi 0 verdadeiro conhecimento nos mostra que as coisas sio plena e causal- determinar 0 raio da acdo da poténcia humana, correlacionando-a com mente determinadas; 3) as causas finais do tipo “olhos para ver”, “dentes forca dos sentimentos e das coisas exteriores, e, assim, configurar o espagd para mastigar”, “ervas e animais para alimentar”, “sol para iluminar”, do mundo do éthos onde cumprimos nossa funcdo de seres racionais ¢ “mar para sustentar os peixes” etc., ndo s4o mais do que uma ficcio do livres, devendo buscar a satisfagao de nossas necessidades e encontrar a espirito que subverte completamente a Natureza e destréi a perfeigio de felicidade sob 0 comando e nos mandamentos da Razao. Esta nos mostra, Deus. Isto porque uma tal doutrina em realidade toma a causa pelo efeito por um lado, que a poténcia humana é muito limitada e é infinitamente e faz do mais elevado e mais perfeito algo menos elevado e mais imper- ultrapassada pela poténcia da Natureza que nos rodeia, nao estando a feito, pois se Deus fez as coisas porque estas lhe faltavam e com vistas a nosso alcance o poder de submeter a nosso servico as coisas que estado fo! seu fim, entdo necessariamente as coisas, porque plenas de realidade, de nés. Por outro, quanto s coisas que nos acontecem malgrado n6g, seriam mais perfeitas e excelentes do que aquele a quem elas faltavam e ensina-nos a suporta-las com a alma resignada, pois, sendo uma parte d que as produziu |!* Natureza, estamos sujeitos as suas leis, e nossa poténcia nao pode ir ag : : Espi viliece darextenato, ponto de evité-las ou de furtar-se ao seu campo de agao. Segundo Espinosa, Filhoda idade mecknien,a natinens que Espinosa bonlieoe i “se compreendermos isto de uma maneira clara e distinta, essa parte de) © 0 nico movimento que ele reconhece é 0 Eee eo a nés, que € definida pela inteligéncia, isto 6, a melhor parte de nés, encon« reza nao possui nenhum fim que lhe seja previamente iad <4 me lo trard nisso pleno contentamento e esforgar-se-4 por perseverar nesse con+ mundo é contempordnea ao mundo desde toda a eterni ee oa e tentamento”, de tal sorte que, desejando apenas aquilo que lhe € necess4+ mesma substancia que governa 0 mundo das coisas e 0 aa do dos a tio e nao se contentando sendo com a verdade, esta melhor parte de nés, te saber Deus. Teoh - Sen ee ee Lie a wenos wo plano « Me inteira *. us, Passso aut 2 que é alma, estard de acordo com a ordem da Natureza inteira *. ecpeculagio, na fidelidade a tradicao ou ortodoxia das opiniées, a marca Uma vez reduzido o éthos a physis, Espinosa pergunta: em que cons! de suas reflexdes de filésofo — o que deveu custar-lhe caro. te a natureza das coisas? como conservam elas sua natureza, apesar ” . 1 tra a tradicao filos6fica (no mudangas que afetam seu ser? Consiste na “substancia” — dirZo wi Antes de mais nada, Espinosa se eleva contra a tradiga caso, mais especialmente Descartes), que faz das substancias corpéreas 31, ESPINOSA, B. Ltica. p. 177. 33, DESANITI, J. T. Introduction @ l'histoire de la philosophie. p. 166. 32, Ibidem. p. 275. 34. CE. ESPINOSA, B. op. cit. Apéndice da parte 1, p. 119-120. 108 algo indigno da natureza divina e que nao lhe pode pertencer. Com efeito, que dizem os autores ligados a esta tradicdo?, pergunta no escélio di Pproposicdo XV da primeira parte. Simplesmente, apés terem suposto qu a substancia corpérea é constituida de partes, nos propdem um dilema; “Se a substancia corpérea, dizem, é infinita, conceba-se sua divisio em duas partes: cada parte ser finita ou infinita. Se finita, 0 infinito compote ~se-ia de duas partes finitas, 0 que é absurdo. Se infinita, haveria um infinito duplo de um outro infinito, o que também é absurdo. Além disso, se se medir uma quantidade infinita em partes do comprimento de um pé, ela deveré constar de tais partes em nimero infinito, do mesmo modo que se for medida em partes de uma polegada; por conseqiiéncia, um numero infinito sera doze vezes maior que um outro numero infinito”®, Ora — escreve Espinosa —, se examinarmos este dilema mais de perto, logo vamos ver que todas estas conseqiiéncias absurdas atingem em verdade os autores do dilema, seus adversdrios, os quais, imaginando que a subs« tancia extensa deve ser finita, “procedem exatamente como quem houves« se imaginado que o circulo tem as propriedades do quadrado e dai con- cluisse que 0 circulo nao tem centro do qual todas as retas tiradas para a circunferéncia sao iguais — pois a substancia corpérea, que s6 pode ser concebida como infinita, tinica e indivisivel (vide proposicées 5, 8 e 12), eles a concebem composta de partes finitas, miltipla e divisivel, para daf concluirem que ela é finita. Do mesmo modo, também outros, depois de terem imaginado que a linha é composta de pontos, sao capazes de des- cobrir muitos argumentos para mostrar que uma linha nao pode ser di- vidida ao infinito. E, certamente, nao é menos absurdo propor que a substancia corpérea é composta de corpos ou de partes, do que estabele- cer que 0 corpo € composto de superficies, a superficie de linhas e, por fim, a linha de pontos”™, Isto posto, Espinosa conclui que a infinidade e a eternidade da substancia se impdem pela razio muito simples de que ela nao se engendra nem se corrompe, e que ele nao sabe muito bem porque ela seria indigna da natureza divina, pois fora de Deus nao existe nenhuma substancia da qual ela possa padecer ou por ela ser afetada: “Tudo, digo, existe em Deus, e tudo o que acontece somente acontece pelas leis da infinita natureza de Deus e resulta (...) da necessidade de sua esséncia’*”, Mas de qual Deus nos fala Espinosa, com efeito? Do Deus “pessoal” judeu? Do Deus extramundanus de Descartes e Leibniz? Nem de um nem de outro, mas de um Deus intramundanus que é imanente e contempora- neo ao mundo desde toda eternidade, ou simplesmente a Natureza (Deus 35. ESPINOSA, B, op. cit. p. 92. 36.1 37. Ibidem. p. 94. 110 sive Natura", vai dizer ele). De fato — escreve Desanti —, segundo 0 testemunho de Tsichirnhaus, o autor da Etica se teria exprimido parado- xalmente nestes termos a respeito de sua filosofia: “Os filésofos comuns comegam pelas criaturas, Descartes pelo espirito, mas eu por Deus’™, E preciso, entretanto, compreender bem o sentido desta formula: dado, como diz Desanti, que em Espinosa 0 ser é constituido de uma substancia infinita e tinica, que o pensamento e a extensdo sao atributos desta subs- tancia, que as idéias e os movimentos sao modos destes atributos, que nada existe fora da substancia infinita, que por conseguinte nada existe fora da relagao destes modos no seio de cada atributo, que por fim esta relacéo exprime a esséncia da substancia, nada existindo num mais além ou num mais aquém dela (a substancia) — é toda a “idéia de que existiria um mundo secreto além do mundo, a idéia de um mundo submetido a onipoténcia de uma vontade estranha A natureza, a idéia de que o indi- viduo humano e a natureza inteira estéo nas maos dessa poténcia, e de que o homem deve esperar seu porvir, temé-la ou desejé-la”, sio todas essas idéias, enfim, que Espinosa condena”, E conclui Desanti: “Nada de vazio na natureza, nada de criacio. Nada de milagre. Deus nao tem outro conteado senao a infinidade da natureza ela propria. ‘Deus sive Natura’. Deus, isto 6, a natureza”®. Formula contraditéria, é preciso dizé-lo, a qual esconde sob a equiva- léncia do sive a oposigio de duas concepgdes de mundo que Espinosa trata de conciliar: a concepcio teolégico-judeu-crista se colocando na fér- mula do lado de Deus, ser infinito, eterno, perfeito; a concepgao cientifica elaborada pela fisica nova, do lado de Natura, uma natureza mecanica e matematizdvel que ele encontra nas obras de Galileu e de Descartes — 0 primeiro, procurando enquadrar a natureza na linguagem do namero, da figura e das linhas; o segundo, procurando oferecer-nos a figura da essentia conforme essa linguagem, a esséncia matemAtico-mecanica ou a pura extensdo e sua figuragéo geométrica. E, segundo Desanti, a época de Espinosa ja existia o conceito que permitia reunir estes dois pdlos contra- ditérios na unidade de um mesmo ser e assim nos oferecer um novo modelo de racionalidade — o ens a se causa sui de Santo Anselmo: “Este conceito existia. Devemos mesmo dizer que a queda do aristotelismo contribuia para isolé-lo em sua pureza. Ele era 0 niicleo ontoldgico da teologia cristé. Tratava-se nao somente da idéia dogmatica do Deus ‘cria- dor do céu e da terra’, mas da idéia capaz num sentido de tornar algo profano o'ser por exceléncia; era a velha nocao de ens quo majus esse non potest, elaborada antes do tomismo, entre outros por Anselmo. Esta era, 38. Apud DESANTI, J. . op. cit. p. 118. 39. DESANTI, J.T. op. cit. p. 103. 40. Tbidem. p. 109-110. 1 por assim dizer, uma nocdo de dupla entrada. De um lado, ela se ab: via da mistica pura: a crenca num ser para além de todos os seres, seria sua fonte, em relagao ao qual nenhum ser nada seria, De outro, se abria a légica, & antiga logica do Ser vinda dos eleatas: a idéia de ser que se basta a si mesmo, que porta em si sua Prépria razao de ser, que, para existir, nao tem necessidade sendo de si mesmo (causa sui); n Gltima entrada ela permitia, de um modo Ppuramente idealista, a elab Sao da idéia de necessidade, e podia adquirir um sentido profano”', Ora, esta Gltima — a via légica — foi a via de Espinosa que, com § Ser causa sui, ndo segue até o fim, evidentemente, o caminho de San Anselmo, para quem “o raciocinio termina em prece, j4 que o homem qu conhece o ens a se permanece numa infinita distancia dele”, mas antes caminho da légica do ser dos eleatas, fazendo do ens quo majus esse n potest ou simplesmente “Deus ou a Natureza” (Deus sive Natura) o prin: cipio absoluto a um tempo da ordem do conhecimento e da ordem do ser, Da ordem do ser, porque o ens a se causa sui permite-lhe conferir “eficién, cia” A conexao causal de uma Natura cuja necessidade ameagava perde! -se na regressdo ao infinito da causa da causa. Da ordem do conhecimen« to, porque o ens a se causa sui permite-lhe conferir “suficiéncia” ao conhe« cimento ao Ihe oferecer sua arché ou ponto de ancoragem dltimo — a um conhecimento que, em razdo da cisdo entre Deus e 0 Mundo, ameagava perder-se na regressao ao infinito do fundamento do fundamento, nig tendo por ponto de apoio sendo os frageis testemunhos dos sentidos ou a solidao do cogito, a experiéncia solitaria do pensamento incapaz de sair de si mesmo e de estender a ponte entre o eu e o mundo. Um bom exemplo desse descaminho que se segue a falta de uma intuicdo firme do Ser causa sui em conseqiiéncia da cisio do eu e do mundo é a obra de Descartes que, apés nos ter prometido uma “fisica dos Principios” e a “moral mais elevada”, no nos ofereceu de fato mais do que uma “physique des tourbillons” e uma “morale par provision” que, sem nenhuma arché a Ihe servir de solo ou suporte, vai perder-se no descaminho da liberdade da vontade e da glandula pineal. Donde se segue que, uma vez encontrado 0 ens ase que da a physis o principio frontal do ser e de sua inteligibilidade — a substancia causa sui, isto 6, Deus ou a Natureza —, tudo 0 que € necessario fazer depois 6 entao teconduzir o mundo do éthos e dos homens a este Principio absoluto — tal é 0 terceiro e diltimo Passo de Espinosa. Esta reducio ocorre ao longo das trés Gltimas partes da Etica, numa ordem de razdes cuja reconstituicdo ¢ déroutante (Caillois), nas quais nos mostra que o homem no passa de 41. DESANTI, J. T. op. cit. p, 223. 42, Ibidem. p. 224, n. 58. 112 um modo da substancia divina: dotado de um corpo, é uma afecccao do atributo extensdo que pertence a ela; dotado de alma, é uma modalidade do atributo pensamento, e igualmente a ela pertence (cf. inicio da segunda parte, onde Espinosa trata da natureza e da origem do espirito: Passo agora a explicar aquelas coisas que deveram seguir-se necessariamente da esséncia de Deus, isto é, do Ente eterno e infinito. Contuda, nao as expli- carei todas; demonstrei, efetivamente, na proposigao 16 da Parte I, que da esséncia de Deus resultavam coisas infinitas em ndmero infinito de mo- dos; mas explicarei apenas aquelas que podem conduzir-nos, como que pela m4o, ao conhecimento da alma humana e da sua beatitude supre- ma”*), Descartes, bem antes de Espinosa, é verdade, ja tinha dito algo pare- cido, Porém, separando a alma do corpo e esvaziando a natureza de toda vis e de toda vida, o homem que ele nos oferecia nio podia servir aos designios de Espinosa. Do lado do corpo, era preciso reencontrar a alma, 0 principio de vida e movimento que o anima. Do Jado da alma, era preciso reencontrar 0 corpo, vale dizer, 0 desejo (apetite) como motor da agao, esvaziado em favor da vontade e das poténcias racionais da alma intelectiva. Ser de natureza, o homem é uma extensao, mas, sem vida e sem alma, a extensdo cartesiana é mais afeta a uma cinética dos choques do que a uma dindmica dos corpos; ser espiritual, o homem é pensamen- to, mas o pensamento em Descartes, atributo principal da alma, é quietu- de e, se pensa, é para raciocinar e nao para agir, e desde logo se presta mais a uma metafisica da alma pensante do que da acdo. Portanto, ambos nao dao conta da esséncia do homem. Qual é entéo a verdadeira esséncia do homem, o qual, como diz Desanti, na segunda parte da Etica, aparece como uma configuracao pe- recivel da natureza, vivendo em conformidade com suas leis e se moven- do ou se desenvolvendo em profundo acordo com ela, e na quinta parte € posto como um ser que caminha na direcao de sua salvacao eterna, que quer libertar-se da escravidao das paix6es e, assim, igualar-se as leis das coisas, subsistindo como autor e sujeito eterno de sua salvacao?“ Sua esséncia nado pode ser evidentemente a do homem natural de que nos falam Platao e Aristételes, que 0 definiram como um “bipede sem penas’ ou um “animal que ri”. Menos ainda a do homem pecaminoso ou a na- tureza pecaminosa do homem da tradigao judeu-cristé, que fica a meio caminho, a um tempo na natureza e fora dela. Sequer a do homem-mé- quina, pensado como corpo esvaziado da alma a imagem do relégio (au- t6émato), tio 4 moda no século. Mas, antes, a do homem moral ou indi- viduo ético tomado na universalidade de sua esséncia: a alma, que nos 43. ESPINOSA, B. op. 44, DESANTI, J. T. op. p. 137. p. 120. 113 vern da tradicio socrdtico-platénica; porém, a exemplo do conceito de natura, repensado como uma natureza mecinica e ontologicamente deter- minada, tendo no conatus (desejo) 0 Principio da agéo e na razdo o métron do agir. Encontrado © objeto — 0 individuo ético —, toda a dificuldade vai consistir em saber como poderiamos estender-lhe a linguagem da figura, dos ntimeros e das linhas do método geométrico e, assim, isolar sua es- séncia na atualidade do agir. Dificuldade perfeitamente contornavel, pois, como diz Desanti, se € verdade que os homens nao obedecem ao principio da inércia e nado permanecem eternamente no mesmo caminho uma vez postos em movimento, nao bastando pois colocd-los na natureza, tudo isso nao constitui problema: “Se néo é possivel pér os homens na nature- za, € preciso ir mais longe e, de alguma maneira, pr a natureza neles, no sentido de saber se, por meio de um dispositivo ainda escondido, a me- cAnica natural prolonga-se no préprio individuo humano, se ela lhe define 0 interior assim como ela o envolve do exterior”®, Segundo Espinosa, este dispositivo interno que governa o homem de dentro € 0 conatus, no qual julga ter descoberta o elo que liga Deus aos homens, nele depositando o destino de toda sua Ftica: de um lado, na sua qualidade de esséncia, 0 conaius autoriza uma ontologia dos principios — a metafisica do conatus — que Ihe vai permitir determinar o Principio de afirmagao do ser na absoluta atualidade do agir e isolar o principio de vida e de movimento que confere ao éthos a necessidade da physis; de outro, na sua qualidade de forca, de forca mensurdvel, o conatus Ihe per- mitira estender a ciéncia do éthos as normas de inteligibilidade da fisica mecanicista — as matemiticas. Com efeito — escreve Dilthey — “a proposicao de Espinosa: mens conatur in suo esse perseverare indefinita quadam duratione et hujus sui conatus est conscia, saiu em linha reta dos principios da escola mecanicista. Salta aos olhos que esta proposicéio subordina ao conceito de inércia, proveni- ente das ciéncias da natureza, tudo o que h de vivo, numa vontade que nao busca senao estender sua empresa. Apoiando-se nestes principios, Espinosa tenta construir uma mecanica dos estados psiquicos totais (affectus). Ele faz apelo a leis, a partir das quais reenvia as suas causas estes estados psiquicos totais, procura estabelecer igualdades e similitudes e, com a ajuda da analogia (sysnpathie), transpée pata a nossa propria vida estados de alma que nos so estranhos. Sem diivida, tal teoria era dema- siado imperfeita. O conceito morto e rigido da conservacao das forcas nao caracteriza suficientemente este esforgo que caracteriza a vida. Se comple- tamos a teoria juntando-lhe a proposicéo segundo a qual os sentimentos 45, DESANTIL, J. T. op. cit. p. 280. 4 sao apenas uma percepgao interna dos estados por que passa nossa von- tade, nao se pode subordinar a esta definigdo senao uma parte de nossos sentimentos; quanto 4 analogia (sympathie), é somente gracas a um sofis- ma falacioso que se pode deduzi-la da conservagao das forgas. Aquilo que conferia 4 teoria de Espinosa um valor extraordindrio era 0 fato de que, em conformidade com o espirito que guiava as grandes descobertas da astronomia e da mecnica, ela tentava subordinar a simples lei da conser- vacao da energia estes estados psiquicos totais que aparentemente nao obedecem a nenhuma regra e pareciam regidos por um puro arbitrario, E © que ocorre quando esta entidade viva, esta modalidade que é 0 homem € que procura manter-se em vida, encontra-se introduzida coma que por uma “penada” no sistema de condigdes que forma seu meio. Pela fato de que, quando se trata de manter sua existéncia, o homem recebe de fora incitagdes e vé-se-lhe opor obstaculos, pelo fato de que os estados afetivos que resultam destas incitacées e destes impedimentos se ordenam em leis fundamentais segundo as quais encadeiam-se os estados psiquicos, dai se segue um esquema de sistema causal dos estados psiquicos. Alguns pon- tos fixos encontram-se determinados, por onde poderdo entrar no sistema mecanicista assim esbogado as diversas experiéncias psiquicas particula- res. Definir um estado total equivaler4 a determinar qual lugar Ihe caberé na construgaéo que é o esquema mecanicista da conservagdo da energia. Nao faltaré mais nada para que se encontrem exteriormente satisfeitas as exigéncias que se espera de toda explicagao, a ndo ser as determinagdes de quantidade”*, Todavia, com a metafisica do conatus, mais do que os estados psiqui- cos totais e uma psicologia total da alma, como quer Dilthey, é¢ toda a problematica da ética e da ontologia dos principios que nos vem da an- tiguidade cldssica que adquire uma nova significagéo, permitindo a Espinosa: 1) estabelecer a identidade da theoria e da préxis em linha direta da escola platénica, reconduzindo-as 4 unidade da poténcia de agir e da poténcia de pensar em Deus; 2) encontrar 0 métron do agir humano, cujo padrao de medida é uma linha ascendente que se eleva da afirmacdo da vida como o principio primeiro e irredutivel da moralidade, até a celebra- cao de Deus como seu apex conceitual e o bem absoluto além do que é- -nos impossivel remontar’; 3) fazer de Deus — 0 bem supremo — o principio de vida e de movimento do mundo do éthos e 0 métron absoluto 46. DILTHEY, W. Introduction & l'étude des sciences hummaines. Paris: PUF, 1942, p. 462-464. 47. Cf. ESPINOSA, B. op. cit. parte 4, proposicao XXII, p. 240: “Nao se pode conceber nenhuma virtude anterior a esta ( isto ¢, a0 esforgo para se conservar a si mesmo)"; propo- sicdo XXIV, p. 241: “ Agir absolutamente por virtude néo é, em nés, outra coisa que agir, viver, conservar o seu ser (estas trés coisas significam os mesmos sob a direcéo da Razdo, segundo © principio da procura da prépria utilidade”; proposicao XXVIII, p. 242: “O bem supremo da alma € 0 conhecimento de Deus, e a suprema virtude da alma é conhecer a Deus)”. 115 do agir, segundo o principio formulado por Platao: “Nada de imperfeito pode ser a medida do que quer que seja”“; 4) por fim, satisfazer a exigén- cla aristotélica, na esteira da critica do bem separado, de encontrar um métron talhado a medida dos homens, que Espinosa Pretende ter encon- trado no conatus, que nao é mais do que a afirmagao da poténcia de agir de Deus no mundo do éthos e dos homens, sendo uma agao avaliada boa ou ma segundo a medida do aumento e da diminuigao da poténcia de afirmacao do ser ou de sua capacidade de agir. Elo que liga 0 éthos & physis eo homem a Deus, a conatus nos permite compreender a celebracio Por Espinosa da “virtude-ciéncia” e da Tibertas independentiae, emprestando ao ideal do homem grego uma significacio absolutamente nova, Com efeito, na auséncia do conceito de vontade ou de livre-arbitrio como faculdade independente e dotada de uma esponta- neidade ativa, o principio do movimento do agir humano é atribufdo por Espinosa ao desejo, em cuja raiz vamos encontrar nao propriamente uma “falta” que opera o homem, de que nos fala uma certa antropologia moderna, mas antes a “positividade” do conaius ou a poténcia da afirma- ga0 do ser na atualidade do agir®. “Positividade” essa que dé& lugar & afirmagao desta “forca inconsciente” que pulsa secretamente no mais re- cOndito de nosso ser e que nos obriga em sua necessidade toda interior a expandir o campo de nossa acdo, a buscar 0 bem e a rejeitar o mal, e de que Espinosa vai fazer a esséncia do homem, isto 6 0 principio de vida e de movimento que 0 governa de dentro em sua absoluta imanéncia, sem © que ele permaneceria inerte e como que encerrado no circulo de ferro da physis *, Ora, dado que o desejo, conforme observa Espinosa®!, é indestrutivel € acompanha como uma sombra a existéncia humana, como poderiamos livrar-nos do império das PaixGes e da escravidao das coisas que nos conduzem, num movimento sem fim, a desejar mais e mais e, ainda que visando ao melhor, a fazer o pior? Ao fundar o éthos no conatus do desejo, Espinosa Ndo teria ao mesmo tempo apagado a liberdade e, em conseqiién- “1a, © espaco préprio da moralidade, que supde exatamente a autonomia do agente, a deliberacao entre meios e fins e Seu engajamento total quanto aos méveis da escolha e aos resultados da agdo? | Socrates id tinha dado a solucio para a primeira questao: “Pelo conhe- cimento”, disse ele, inaugurando assim 0 tema da “virtude-ciéncia” ou da 4B. Apud LIMA VAZ, HL. C. Escrito de filsofia Il. p, $3, 0. 72 49. Cf. LIMA VAZ, H.C. op. cit. p. 123, n. 196, ui Limit is de Lima Vaz da ética antiga a Tapinces. Age lntamo-nes&etonder as andi 50. Sobre as articulacées entre 0 conatus, 0 desejo e © apetite, IN Parte 3, eseblio da proposigao IX, p. 184. S88 Speiiver EPINOSH og a 51. Cl. ESPINOSA, B. op. cit. parte 4, proposicéo VI, p. 232, 116 “salvacéo pelo conhecimento”, téo caro a ética classica, no qual encontra- mos por assim dizer o grande truque da filosofia grega, que vai converter- -se Na moeda corrente de todos os moralistas de todos os tempos e luga- Tes, a saber: se a raz4o nao tem o poder de eliminar 0 desejo, que é irredutivel, ela pode pelo menos retificd-lo, transformando este desejo ilimitado de todas as coisas, que é a Paixdo, em “desejo de saber”, do “bem” e do “melhor”, condicdo sine qua non da moralidade e do agir virtuoso. Do mesmo modo, Espinosa. Reafirmando a superioridade do desejo nascido da razdo, que nos conduz a Deus, a firmeza da alma e 3 posse estAvel do soberano bem, também ele vai fazer desta prodigiosa invengao do génio grego que foi converter o desejo num desejo de saber (Lima Vaz) e da virtude emancipadora do conhecimento 0 apex conceitual da ciéncia do éthos. A celebragao da “virtude-ciéncia” em Espinosa apare- ce na quinta parte da Etica, na qual vai coroar seus esforcos de reconstru- ¢ao racional com a teoria da salvacio pelo conhecimento ou beatitude ou liberdade (é assim que Espinosa glosa a verdade, a felicidade e o bem), onde se entrecruzam o ideal da vida contemplativa como forma superior de vida e a celebracao da teoria como forma superior de eudaimonia, de origem grega, e a contemplacio religiosa algo intelectualizada e esvaziada da pura mistica (amor intelectual de Deus), de origem gnéstica e judeu- crista, A segunda questao, que € a de saber se ao fundar o éthes no conatus do desejo nao se teria reintroduzido a necessidade “exterior” da physis e assim apagado o espaco proprio da moralidade, que deita rafzes na liber- dade e na autonomia do sujeito da acao, responde o préprio Espinosa na quinta parte da Etica, onde contrapée a libertas indifferentiae, centrada na soberania da vontade, a libertas independentiae, fundada na autodetermina- G40 e no senhorio do sujeito sobre si mesmo, Na origem dessa experiéncia singular da liberdade vamos encontrar, no a pura interioridade da von- tade ou do livre-arbitrio de um sujeito definido pela capacidade de querer ou de nao-querer e pela indiferenga em relagao aos méveis da escolha (Lima Vaz), mas a necessidade interiorizada (conatus) de um sujeito defi- nido pela “poténcia de agir”, de origem grega antes que moderna, cujos fundamentos Espinosa vai buscar no tema socratico da virtude-ciéncia. Tema que lhe vai permitir estabelecer a equacdo da liberdade e da neces. sidade ("a liberdade é a consciéncia da necessidade”, diria Espinosa com Hegel) e afirmar, numa leitura em filigrana, que © mesmo conhecimento que tem a virtude de nos tornar moralmente bons e de querer o bem (virtude moral) tem o poder (virtude=poténcia fisica) de nos autodeterminar e, assim, porque livres da escravidio das paixées, nos assegurar 0 senhorio sobre nés mesmos *, 52. Sobre a concepcio grega da liberdade, ver LIMA VAZ, II. C. op, cit, p, 0:9l, aw Kis, portanto, fechado o circulo: Deus demonstra 0 éthos eo home! porque o homem e o éios demonstram Deus, senda o elo que liga o homem a Deus e peca maior da demonstracdo 0 conatus. Com efeito, ao longo desta imensa série de deducées sistematicas que é a Etica, Deus 6 introduzido no inicio da cadeia de razées como 0 principio que confere a natureza a necessidade de uma esséncia ou de uma ousia. Neste nivel (primeira parte da Etica), como o observa Caillois, o conhecimento perma- necia abstrato. Foi necessdrio Ppassar por um longo desvio para que a definicdo inicial de Deus — ser causa sui — se preenchesse e Deus se explicasse e se exprimisse em toda a realidade de seu set, primeiro na ordem da natureza, por fim no mundo humano. Neste itinerdrio que vai de Deus a Deus, o conhecimento 6 a um tempo um ponto de vista de Deus e a descoberta da virtude prépria do homem: a inteligéncia, a compreen- sao (Caillois). Ora, a inteligéncia, sublinha Caillois, “ama o inteligivel, ela deseja sempre melhor compreender, aumentar a poténcia de pensar, vale dizer, ela ama Deus, que é a inteligibilidade absoluta, com um amor in- telectual. A beatitude é a satisfagao do espirito na fruiggo ou apropriacio do ser, isto é, ainda, a idéia ou a propria alma, na medida em que ela é consciente de si” %*, Tal € 0 desafio de Espinosa ao inscrever a Etica nos quadros de uma metafisica dos princfpios e de um estrito matematismo de inspiragao platénica: oferecer-nos uma ciéncia do éthos que néo faca apelo nem a idéia de contingéncia ou a um principio de indeterminagao inscrito na agao humana, nem a um plano providencial que governaria de fora o mundo do éthos, dltimo reftigio das causas finais em Descartes. Mas a um principio de determinagao que em sua absoluta imanéncia 6 a causa efi- ciente do ser na absoluta atualidade do agir (ser in actu), nos quadros de uma ética do ser que nos vai mostrar: 1) que o éthos est4 dotado de uma entelécheia, vale dizer, porta em si um principio de vida e de movimento, cuja origem absoluta, a exemplo da physis, é Deus; 2) que no mundo do éthos cada existente afirma e persevera no seu ser na atualidade do agir (conatus); 3) que nele cada ser deve fazer e estar em conformidade com o que € (0 ser é o dever-ser); 4) que nele a realidade, porque fundada em Deus, é sempre perfeita, nao encerrando nenhuma insuficiéncia ou defi- ciéncia de ser ("por realidade e perfeicdo eu entendo a mesma coisa”, diz Espinosa na definigio VI da segunda parte); 5) que o entendimento deve apreender a esséncia da coisa tal como ela existe em ato, sem levar em conta sua duragdo no tempo, pois “na verdade, nenhuma coisa singular pode dizer-se mais perfeita por perseverar mais tempo na existéncia”™; 6) que, por fim, o entendimento, ao se colocar sob 0 ponto de vista da eter- “a 53, CAILLOIS, R. “Introduction”. In: SPINOZA, B. op. cit, p. XXXIL 54, ESPINOSA, B. op. cit. p. 229. nidade, deve reconduzir todas as coisas a Deus enquanto sua origem e seu fim, isto é, enquanto a causa eficiente e a razdo pela qual todas elas existem e cujo conhecimento é a maior das virtudes e o maior dos bens que um existente possa aspirar e alcangar (cf. prop. XXVIII da quarta parte: “o bem supremo da alma € 0 conhecimento de Deus, e a suprema virtude da alma é conhecer a Deus”, diz Espinosa). Neste conhecimento que vai de verdade em verdade, se sabe em cada instante como verdade e encontra no interior de si mesmo o index da verdade e 0 métron do agir humano — a Ethica More Geometrico Demonstra- ta —, vamos encontrar algo indistintas todas as aspiracoes do homem grego e judeu-cristao — escreve Caillois: “Liberdade, salvacao, eternidade da alma, beatitude, gl6ria a Deus. Entretanto, uma outra trama ordenava as linhas desta visio de mundo: o sentimento judeu-cristao era repensado com os conceitos advindos do /égos antigo e, nesta forma nova, o homem grego reaparecia. Sobre o contetido cristio reformado, Espinosa edificava uma sabedoria est6ica: era a mesma adesao totalidade organica do Ser, a mesma maneira de instaurar a eternidade no tempo, ou, antes, sobre as tuinas do tempo, a mesma recusa de imaginar algo além e fora deste mundo, a mesma conviccio, enfim, de que o ser é necessariamente 0 que é e que a razao consiste em compreender esta necessidade, compreender que o mundo é um objeto eterno. A liberdade e a satisfagio do espirito nos arrancam da empresa do mundo para nos elevar & consciéncia do espetdculo” da eternidade, cujo teatro é o préprio mundo *. 4. A Exigéncia de Fundamentagao Absoluta Assim, no rastro da ciséo do campo da ciéncia do éthos na sua va- riante platénica e aristotélica na antiguidade classica, & todo © destino da Episteme que se decide e que nos leva a um ponto de n4o-retorno além. do qual nos é impossfvel remontar: ou inscrevemos a ética nos quadros da estratégia aristotélica, que se reporta a contingéncia do éthos e ao principio de indeterminacao do ser, e nos oferece um “saber pratico” (praktike episthéme); ou a inscrevemos nos quadros da estratégia platénica, que se ampara na necessidade do éthos e no principio de determinago do ser, e nos oferece um “saber teorético” (ethiké episthéme). Ainda que o objetivo seja o mesmo: instalar uma “ética do ser”, no que diz respeito ao programa de fundacao do conhecimento sao duas vias que se abrem ao espirito. Na via platénica, uma ontologia dos principios de tipo “forte”, que estabelece a universalidade e a necessidade de seu 55, CAILLOIS, R. “Introduction”. op. cit. p. XXXV. 119 objeto, procurando-o mais perto de onde se encontra —- no mundo das idélas —, ¢ um matematismo de estrita observancia que, nao havendo fraturas absolutas no campo do légos, ao se estender a agdo, se quer uma fundacao “teérica”, na qual é a propria teoria que funda a praxis e nos dé © index da verdade e o métron da agao. Por seu turno, na via aristotélica, uma ontologia dos principios de tipo “fraco”, que concede uma certa descontinuidade na ordem do ser (os fixos, necessdrios e universais; 0 éthos, contingente e singular), e um matematismo igualmente de tipo “fra- co” — 0 logicismo —, que, ao se estender 4 acao, reconhece a existéncia de uma certa fratura no campo do légos (légos teorético e légos pratico), estabelece 0 carter ndo-apoditico da teoria quando aplicada ao éthos (indeterminagao da escolha, imprevisibilidade da ago e telatividade das circunstancias) e instala uma fundagao “pratica”, na qual a praxis e a experiéncia entram em cena toda vez que a teoria falha no seu intento de determinar a coisa e a agao, e desde logo funda a teoria e lhe dé o index da verdade e o métron da acao (“aquilo que somos obrigados a fazer para aprender, s6 o aprendemos fazendo”, diz o Estagirita, formula que, esten- dida ao varao virtuoso, quer dizer que ele, além de preceder & idéia de virtude, deve exercité-la antes de se poder teorizar sobre ela). Ora, 0 primeiro foi o caminho de Espinosa. A exemplo de Platao, 0 filésofo holandés alia uma ontologia dos principios de tipo forte ao mais estrito dos matematismos que, ao se estender ao éthos, cedo se confronta com a exigéncia de uma fundamentacéo que, além de tedrica, se quer absoluta, e nos oferece um discurso de cariz dogmatico —a Ethica More Geometrico Demonstrata —, marcado pelos seguintes tracos fundamentais: 1) procede por definicdes categéricas e essenciais: “O desejo é a essén- cia mesma do homem, enquanto ela é concebida como determinada, por uma afeccgao de si mesma, a fazer qualquer coisa”; “a alegria é a passa- gem no homem de uma menor a uma maior perfeicdo”; “a tristeza é a passagem no homem de maior a uma menor perfeigao” etc.; 2) estabelece deduces sistemiticas: da substancia infere os atributos; dos atributes, os modos; dos modos, as coisas singulares; da alegria e da tristeza enquanto afecc6es primitivas, todo o resto dos sentimentos (“a espe- ranga nao é sendo uma alegria inst4vel, nascida de uma coisa futura ou passada, de cujo resultado duvidamos; 0 medo, ao contrario, é uma tristeza instvel, nascida também da imagem de uma coisa duvidosa. Se se retira a divida dessas afecces, a esperanca transforma-se em seguranca e © medo. em desespero, a saber, a alegria ou a tristeza nascida da imagem de uma coisa que tememos ou esperamos” — ver 0 escélio da proposigao XVIIL, Parte III, que fala ainda do remorso e do contentamento); 3) e, enfim, reane numa mesma ordem de razées a) um saber demons- trativo que “dé raz4o” (“por fim, pelo qual nés fazemos alguma coisa, eu entendo o apetite”; “um sentimento nao pode ser contrariado ou suprimi- do sendo por um sentimento contrario e mais forte”; “o conhecimento do born e do mau nao é outra coisa sendo um sentimento de alegria e de tristeza, enquanto nés estamos conscientes dele” etc.) e b) um saber normativo que “prescteve” aos homens buscar o titil que Ihes € proprio, evitar 0 uso imoderado dos prazeres, viver sob o comando da razdo que quer o bem e rejeita o mal etc. (“tudo que conduz & sociedade comum dos homens, vale dizer, aquilo que faz com que os homens vivam na concér- dia, é Gtil; e, ao contrario, € mau tudo que introduz a discérdia no Esta- do”; “a alegria nao é diretamente m4, mas boa; a tristeza, ao contrério, 6 diretamente md”; “quem vive sob a conduta da Razdo esforga-se, enquan- to isto Ihe é possivel, por compensar pelo amor, vale dizer, pela genero- sidade, 0 ddio, a célera, 0 desprezo de outrem para consigo”; “a piedade num homem que vive sob a conduta da Razao é por si mesma mae indtil”; “a satisfagdo interior pode nascer da Razdo, e apenas esta satisfa- 40 que nasce da RazAo é a maior que possa existir’; “o homem livre pensa em tudo, salvo na morte; e sua sabedoria é uma meditagéo nao sobre a morte, mas sobre a vida” etc.). Com efeito, ao inscrever a ciéncia do éthos nos quadros da estratégia platénica, Espinosa, mais do que ninguém, estava consciente dos rudes sacrificios a fazer para tornar a ética conforme as necessidades da metafisica dos principios e do método geométrico. Antes de mais nada, quem aceita as exigéncias da razao e quer ofere- cer-nos, nao uma moral, mas uma ética, deve reconduzir a diversidade dos éthe empiricos a unidade substancial de uma arché e dobrar 0 espetd- culo das agées singulares a afirmagio deste ser fundamental — a substan- cia causa sui — na atualidade do agir — o conatus. Em seguida, quem aceita as exigéncias da razao e quer instaurar um “discurso mensurante”, onde a raz4o € o proprio métron do agir humano, nao pode conceber este saber fora dos quadros de uma empresa redutora e assim encontrar a comum medida entre 0 légos e a praxis, que é 0 pré- ptio légos: a) a reducdo da coisa a idéia (‘a ordem e a conexio das idéias so as mesmas que a ordem e a conexao das coisas”), b) dos sentimentos a idéia ("os sentimentos sao a idéia da afecgio do corpo”); c) da vontade a razao ("a vontade e o entendimento sao a mesma coisa”); d) da poténcia de agir A poténcia de pensar [ver a demonstragao da proposigao XXVI, Parte [V, que se refere ao conatus do espirito: “O esforgo por se conservar nao é sendo a esséncia da prépria coisa (pela proposicao 7 da parte Ill), a qual, a medida que existe tal como 6, 6 concebida como tendo forga para perseverar na existéncia (pela proposigao 6 da parte Ill), e para fazer aquilo que resulta necessariamente da sua natureza dada (ver definigho do apetite no escdlio da proposigao 9 da parte Ill). Mas a esséncia da tat Razfo nao é outra coisa sendo a nossa alma, enquanto conhece clara e distintamente (ver a sua definicdo no escélio da proposicao 40 da parte I), Logo (pela proposig&o 40 da parte II), “tudo aquilo por que nos esforca- mos pela Razao nao é outra sendo conhecer”]. Enfim, quem aceita as exigéncias da raz4o e quer elevar a ciéncia do éthos 4 dignidade de um saber absoluto néo pode conceber este saber, como o observa Caillois, fora dos quadros de um “sistema”, vale dizer, de um sistema de conhecimentos contempordneo de si mesmo, onde as coi- sas estao dispostas sub specie aeternitatis ou do ponto de vista do absoluto, que € 0 ponto de vista de Deus. De um lado, porque o ser — Deus — é uma totalidade infinita co-presente no sistema de suas determinagées e nas partes que o integram, que sao as coisas singulares. De outro, como ndo ha nada fora do todo, a verdade deve reportar-se ao todo e adquirir a forma de um “conhecimento totalizante” (Caillois). Neste sistema, nado havendo qualquer cisdo entre o eu, Deus e o mundo, é uma tinica e mesma inteligéncia do ser que se instala; nao havendo fraturas absolutas no campo do légos, a alma se dilata para tornar-se como que todas as coisas e arrasta consigo neste movi- mento sem fim 0 prdprio éthos e se submete a “exigéncia de fundamentacéo absoluta que impele esse movimento”™. Evidentemente, ao fim e ao cabo desta empresa redutora que nos da um saber total da realidade total — a Etica —, o mundo, como diz Caillois, “nao desapareceu, nenhuma aparéncia foi abolida (...); ao contrario, o mundo € salvo da morte, é apreendido na necessidade de sua esséncia, vale dizer, na eternidade””. Mas os sacrificios so rudes demais. Em primeiro lugar, hé o sactificio do mundo vivido em favor do mundo pensado. Com efeito, pergunta Caillois, que importa “o sentido vivido do mundo, quando o conhecimento auténtico comega além, pela Tuptura total e definitiva com a aparéncia? O mundo das aparéncias néo € de resto mentiroso, ele é sem interesse: a morte é 0 tipo mesmo do acontecimento mundano de que o sdbio se esquiva, porque este aconteci- mento nao interessa a inteligéncia, isto 6, 4 esséncia do homem. Como as coisas aparecerao, tais como elas so, aquele que se deixa levar por seu olhar sobre o mundo, se clas habitam a eternidade? O ser sé pode ser desvelado depois de a razdo ter definido a coisa na totalidade de sua esséncia. A aparéncia, sem diivida, nao desaparece nunca, mas ela é julgada segundo seu verdadeiro valor, como um esboco pré-cientifico. A ironia (do filésofo — ID) se diverte entéo com o espetaculo do mundo, do qual ela conhece o reverso”®. 56. LIMA VAZ, H.C. ‘op. cit. p. 130. 57, CAILLOIS, R. “Introduction”. op. cit. p. XXXIIL 58, Ibidem. p. XLIL 1a Em segundo lugar, o sacrificio da histéria ou do devir em favor da eternidade. Com efeito, que importam a duracao, 0 tempo ilimitado ou o “mau infinito” (“a ma eternidade” vai dizer Caillois), se, ao inscrever a ciéncia do éthos no registro da légica do ser que nos veio dos eleatas, 0 devir nela é denunciado pela sua insuficiéncia ontolégica e o tempo do antes e do depois — 0 tempo dos calendarios — pela sua subjetividade? Para Espinosa — escreve Caillois — “o tempo no qual se fazem e se desfazem as coisas deste mundo tem apenas uma realidade subjetiva. O pensamento verdadeiro recolocou em seu devido lugar o tempo e a sub- jetividade, ele os denunciou um ao outro, evidenciando sua inconsciente cumplicidade. O mundo verdadeiro é sem origem e, nos dois sentidos desta palavra, sem fim. A verdade é eterna, a inteligibilidade absoluta j4 esta portanto (a priori) realizada no pensamento, que é Deus. A razéo eternamente atual contém sempre os resultados que a razio humana atin- ge pouco a pouco. O espirito ganha seu lugar natural, que é a eternidade, por meio de uma conversdo a verdade que anula o mundo temporal onde habitam 0 pecado, o erro e a miséria do subjetivo e do individual. fo individuo que morre, é o pensamento que vive’™. Em terceiro lugar, o sacrificio do homem em favor de Deus. De fato, que importam o homem e a consciéncia pessoal se o verdadeiro conheci- mento comega além do individua, no ponto onde se entrecruzam a pere- nidade da substancia, a necessidade da esséncia e a universalidade da verdade, ou seja: Deus? Assim, como diz Caillois, “é necessario sacrificar igualmente a individualidade e a consciéncia pessoal. O eu, tal como ele se vé, sac de peau jaloux da particularidade de seu carater, prestes a morrer para defender sua identidade pessoal, deve-se esvair no pensamento ra- cional ou antes nele estar subsumido. Nao ha portanto um si, a nao ser em Deus, na consciéncia universal do mundo tal como ele é em si. Assim, a descoberta do si — da natureza que é minha em verdade, isto é, do pen- samento, € ao mesmo tempo a perda da individualidade e de sua agao temporal na histéria. Na esfera transparente do ser, nao pode subsistir a menor lacuna, 0 menor nada de ser, tudo nele é pleno e sem fissura”™, O resultado é uma metafisica objetivista na qual é vdo ou initil pro- curar qualquer trago destas filosofias interioristas que marcaram tao pro- fundamente o destino da modernidade: ao invés de uma “ética do dever” fundada na interioridade da consciéncia e numa vontade soberana, é uma “ética do ser” e um éthos substancial que se desenham 14 no ponto de intersegdo onde se entrecruzam a necessidade da subst4ncia (Deus) e a poténcia de afirmacéo do ser na atualidade do agir (conatus); ao invés de definir o homem a partir da imanéncia absoluta da préxis e de buscar seu 59, Ibidem. p. XLIII-XLIV. 60. Ibidem. p. XLIV. fundamento altimo numa histéria interior ao homem (Marx), € do homem sem histéria que nos fala Espinosa, absorvendo os avatares do tempo “numa verdade transcendente aos acontecimentos temporais” (Caillois) e instalando a morada do homem na eternidade, ndo fora do tempo, mas no tempo, a exemplo de Plotino; ao invés, enfim, de inscrever a metafisica do conatus nos quadros de uma analitica da finitude, que define o homem como um ser de caréncia e de desejo (falta) e um ser para a morte, é a afirmagéo da natureza humana sempiterna e do homem total que a Etica anuncia, ao mesmo tempo que a morte nela é denunciada como um acontecimento mundano sem im- portancia, de que o sdébio deve ter o cuidado de se esquivar e de nao lhe emprestar relevo algum (a sabedoria é uma meditagao no sobre a morte, mas sobre a vida”, diz Espinosa). Por conseqiiéncia, entre a natureza huma- na eterna reportada a Deus e as naturezas humanas singulares abandonadas a si mesmas abre-se um abismo™. Se uma metafisica do homem fica autori- zada, nao é com certeza a metafisica da subjetividade de Descartes, que nos fala do eu cindido do mundo e separado de Deus, mas a metafisica do homem total, reconciliade com Deus e com o mundo. Com efeito, ao cabo de tao grandes sacrificios — mundo da vida, historia, individuo —, podemos reconhecer-nos no mundo espinosano? Alguém poder dizer “talvez” (Caillois). Mas, tudo bem considerado, que importam em realidade 0 individuo, o efémero, o tempo — este senhor absoluto sobre a vida e sobre a morte — se temos diante de nés 0 espe- taculo da eternidade que nos mostra a incorruptibilidade da substancia e a perenidade do Absoluto? No inicio de seu itinerdrio filos6fico, o Tratado da Reforma do Entendi- mento, Espinosa procurava o bem supremo, cuja posse Ihe daria por toda a eternidade a fruicéo de uma alegria suprema e continua. No fim de seu itinerério, a Etica, ele encontrou o supremo bem: Deus, ou, mais precisa- mente, o conhecimento de Deus. E desde entao, dispondo do métron a partir do qual as coisas poderiam ser julgadas segundo seu justo valor, ele podia morrer — nada mais lhe faltava, e tudo pouco lhe importava, mesmo sua prépria morte. "No dia 20 de fevereiro de 1677 — escreve Caillois —, Espinosa pede a vinda de Louis Meyer. Ele queima os papéis, poe em ordem seus ma- nuscritos. Sua Ultima recomendacao: que a Etica seja publicada sem nome de autor. Nao se trata mais de prudéncia, nado nos deixemos enganar. Pouco importa o judeu de Amsterdam que se chamava Baruch de Espinosa, ele vai morrer. Nao emprestemos 4 sua morte mais importancia do que ele préprio lhe conferiu. O individuo est4 morto, o sistema permanece. E apenas o sistema e somente ele que Espinosa queria legar ao futuro”®. 61. CAILLOIS, R. “Introduction”, op. cit. p. XLV. 62. Ibidem. p. XIV, 124. ml A GRAMATICA DE PORT-ROYAL 1. As Palavras e as Coisas Tudo se passa como se a filosofia, em matéria de linguagem, sempre chegasse demasiadamente tarde, lamenta Lichtenberg em fins do século XIX: “A invengao da lingua precedeu a filosofia, e é isto que torna a filosofia dificil, sobretudo quando se quer torné-la acessivel aqueles que nao pensam por si mesmos. A filosofia, quando fala, esté sempre obrigada a falar a lingua da nao-filosofia...”'. Malgrado este desnivel de uma metalingua — a filosofia — que se apéia e deita suas raizes num solo semantico que a antecede e The escapa sempre — as linguas naturais —, desde os tempos mais remotos, a filo- sofia fez da linguagem um dos eixos maiores de suas reflexées, e é certa- mente esta cumplicidade que levou Nietzsche a temer nunca se livrar de Deus e da metafisica por causa da gramitica... Bem antes da caracteristica de Leibniz, da gramatica pura do primeiro Husserl e dos jogos da linguagem do ultimo Wittgenstein, o Cratilo de Platdo e a apofantica de Aristételes nos mostram que a problematica da linguagem e o destino da filosofia sao de alguma forma os mesmos, e que os gregos foram certamente nao apenas os primeiros — depois dos feni- cios — a empregar a escrita alfabética, mas igualmente os primeiros a realizar uma reflexao sistemdtica sobre a linguagem, ainda que sem nos oferecer uma “lingilistica” no sentido moderno do termo. Estes dois fatos, como diz Kristeva, vao juntos. Antes de mais nada, a escrita alfabética, mais do que a ideografica, é testemunha da cisio origindria entre as palavras e as coisas, que estd na raiz da passagem do mito ao /égos, e terminou por impor uma concepgao do elemento signifi- cativo da linguagem como uma idealidade cujo nexus com o referente exterior é conceptual, e nao fisico ou material, a exemplo do mito. Por fim, 1. Apud GUSDORF, G. L’zuinement des sciences humaines au sidele des lumitres, Patis| Payot, 1973. p. 327. 125 ; @ escrita alfabética permitiu-lhes voltar sobre o elemento material da lingua- gem — aquele que mais tarde se chamaré de significante — o instrumento deste mesmo /égos, mostrando que ele nado s6 se encontra separado do refe- tente e do significado, como também est dividido em elementos constituin- tes (fonemas), classificados em duas categorias: vogais e consoantes (Kristeva). Dispondo do método (0 16gos) e da matéria com que operar (0 significante e © significado), estava constitufdo um objeto de conhecimento préprio: a lin- guagem — e ficava instalado um dominio particular do conhecimento: a gramitica, Uma gramética pensada como uma arte de pensar ou légica — afinal, o lugar de onde se fala é o 1égos — e uma linguagem pensada como arte de falar e de persuadir ou retérica — eis 0 objeto e o campo das refle- x6es sobre a linguagem na antiguidade classica. Testemunha da dissociacao origindria entre a linguagem e a realidade (0 légos), nada mais natural que os gregos em suas reflexdes iniciais, ao estenderem sobre a linguagem o instrumento do légos, cedo tivessem posto a questao de saber a natureza do vinculo que liga as palavras as coisas. Ora, a nivel do mito, o nexus nao constitui problema: as palavras séo coisas e as coisas sao palavras, nao ha por que se interrogar sobre ele. Entretanto, a nivel do /égos tudo se passa diferentemente: estando dada a dissociagao palavras/coisas e sendo 0 nexus instituido gracas ao medium do pensamento, é preciso saber qual é a natureza desse nexo ou dessa conexdo: o vinculo se da por natureza ou por convengao? Tal é o proble- ma a que os gregos dedicaram a mais viva das atengées, e trés sao as teorias que eles nos ofereceram no chamado periodo pré-socratico, divi- dindo-se irremediavelmente quanto ao problema do estatuto da lingua- gem e da natureza do signo: 1) a primeira formulacdo vamos encontra-la nos naturalistas, que nos falam que o vinculo se da por “natureza” (signo- -natureza); 2) a segunda, nos convencionalistas, que nos falam que o vin- culo se institui por forga de uma “convengao” (signo-convengao); 3) a terceira, enfim, nos sofistas, que afirmam ser o vinculo simplesmente “arbitrério” (signo-arbitrario). Comecemos pelo signo-natureza. Tanto quanto nos é possivel saber a respeito de fatos cujas origens se apagaram na noite dos tempos, trata-se da primeira via trilhada pelo légos no seu esforco de dobrar a linguagem & razao, e a idéia fundamental € que a conexdo das palavras As coisas se da por natureza, vale dizer, o sentido das palavras é suscitado em dltima anélise pelas coisas mesmas. Nestas condicées, a linguagem é exata ou perfeita porque escapa ao arbitrio dos homens e, no limite, a relagio de significacao é instituida pela acao do préprio referente: a coisa (Abbagnano). Esta idéia aparece no Crétilo de Platao: “Sécrates — E portanto possivel, Hermégenes, que a instituicgao dos nomes ndo seja um negocio mitdo, como tu pensas, nem a obra de pessoas medfocres e de ndo-iniciados. 16 sss Crtilo tem entdo razio de dizer que os nomes das coisas derivam de sua natureza, e que nem todo homem é artifice dos nomes, mas apenas aquele que, com os olhos fixados sobre o nome natural de cada objeto, é capaz de incorporar sua forma nas letras e nas sflabas” *. Segundo Platao, quem est4 na origem desta linhagem é Herdclito de Bfeso. Porém, é nos atomistas que vamos encontrar uma formulagao mais precisa com relagdo & teoria da materialidade do signo lingiiistico. Um bom exemplo é Demécrito que, muito embora nos tenha legado algo como uma teoria convencionalista da linguagem no que diz respeito ao elemen- to do significado, nos mostra, quanto ao elemento do significante, que a linguagem e o pensamento séo uma materialidade (4tomo sutil) e, en- quanto tais, nos reenviam a coisa mesma (influx fisico), sendo seu esta- tuto, pois, da mesma ordem que o da substancia material *. Tal vai ser também, ao que parece, a solucao de Epicuro, que dizia das palavras serem em principio “criadas por convengao; mas é a propria natureza (natureza humana — ID) que, influenciada por certas emog6es e com vistas a certas imagens, nos faz emitir 0 ar de forma apropriada a cada emogio e imagem” (Didgenes L, X, 75-76). Por fim, a solugio de q Lucrécio. Herdeiro dos atomistas gregos, 0 poeta latino concebe a lingua- gem como uma matéria sonora, e afirma que os dtomos sutis do pensa- mento compéem sua natureza interior, do mesmo modo que os 4tomos fisicos constituem a natureza exterior: “Quanto aos diversos sons da lin- guagem, é a natureza que impulsiona os homens a emiti-los, e é a neces- sidade que fez nascer os nomes das coisas” — escreve*. Por sua vez, na teoria convencionalista, a idéia é que a significacéo das palavras é fruto de uma convengio social, de um contrato ou pacto estabelecido pelos homens com o objetivo de se fazerem entender, pacto esse que estaria na raiz da diversidade das linguas e do proprio carater _ 1 arbitrario do signo. Quem a formulou pela primeira vez, segundo Platao, foi Demécrito, valendo-se de trés argumentos fundamentais: 1) um mesmo nome pode designar coisas diversas (polissemia); 2) varios nomes podem designar uma tnica e mesma coisa (sinonimia); 3) os nomes e suas significagdes se modificam no tempo e no espaco (variabilidade). Tudo isso nos sugere que os nomes sao convengoes artificiais e que seu significado nio repousa nem nas coisas nem na natureza humana, 2. PLATAO, Cratyle. Paris: GF Flammarion, 1967, 390d- 391c, p. 403-404. 3. KRISTEVA, J. Le langage, cet inconnu; une initiation a Ja linguistique. Paris: Bd Seuil, 1981, p. 106, 4, Apud KRISTEVA, J. op. cit. p. 122. mas num pacto estabelecido pelos homens com 0 objetivo de facilitar a comunicagao. Neste sentido, o vinculo que liga as palavras As coisas nio resulta de uma agao causal a nivel das coisas mesmas, mas de uma con- vengao social em cujas origens encontramos o homem e suas instituicdes. — a sociedade, Nao obstante 0 coeficiente de arbitrariedade da linguagem, a tese convencionalista esté longe de nos sugerir que os signos lingiiisticos se- jam destituidos de objetividade, porque subjetivos e artificiais. Ao contré- tio do que pode parecer, ter-se-ia um nexo objetivo que ligaria as palavras as coisas, e este nexo é exatamente a convencao. Em conseqiiéncia, a di- ferenca da teoria naturalista, se a linguagem é exata e perfeita, nao é com certeza porque instituida pela natureza e escapa ao arbitrio dos homens, mas exatamente porque arbitrdria e instituida voluntariamente pelos ho- mens, através de um pacto que faz vincular, como que estabelecendo uma correspondéncia biunivoca, o corpus das palavras (e seus significados) as coisas mesmas. Assim, embora a origem da linguagem seja atribuida a fontes diver- sas — 4 natureza, segundo uma teoria; a cultura, segundo a outra —, 0 resultado das teses naturalista e convencionalista é fundamentalmente o mesmo: para a primeira, a linguagem € perfeita porque se funda na na- tureza e escapa ao arbitrio dos homens; para a ultima, a linguagem é exata porque escapa 4 natureza e é instituida arbitrariamente pelos homens (Abbagnano). Desta forma, se hd diferencas — e, com efeito, as ha —, elas dizem respeito apenas ao cardter do nexo que liga a Palavra a coisa. Se Por convengao ou por natureza, néo importa tanto sabé-lo ao certo, pois ambas as teorias admitem um nexus objetivo imediato a vincular as pala- vras as coisas. E a rigor as dificuldades a serem enfrentadas por ambas as teorias vao ser as mesmas: como explicar as mudancas de sentido, sem que se modifique seu referente? se a palavra se vincula diretamente a coisa, seja por convenco seja por natureza, como explicar 0 erro? como explicar que ocorram na linguagem juizos falsos?> B aqui que aparecem, com 0 objetivo de superar essas dificuldades, as investigacdes dos sofistas, que propdem a teoria da arbitrariedade do sig- no lingitistico. Antes de mais nada, aprofundando a tese convencionalista, os sofistas terminam por separar as palavras das coisas, rompem o nexo objetivo da convencao para acentuar o lado arbitrdrio do signo lingiifstico, e fazem das palavras simples nomes arbitrariamente instituidos pelos homens com 5. Cf. o verbete “linguagem” dos diciondrios de Abbagnano e Ferrater Mora, que segui- ‘mos de perto em nossa abordagem do signo lingiiistico na antigitidade cléssica, 128 © objetivo de se fazerem entender’. B o que nos sugere Gorgias: “A lingua gem — sentencia Gérgias — nao expressa as coisas existentes, da mesma forma que nenhuma coisa existente manifesta sua natureza em nenhuma outra coisa existente”. Por fim, os sofistas abandonam a questao da origem da linguagem (conven¢éo? natureza?) em favor da do uso, pondo em relevo o uso da linguagem como instrumento da comunicagao. (No caso, para efeito das necessidades da comunicagio, pouco importa chamarmos grande de “gran- de” e pequeno de “pequeno”. O fato de os chamarmos assim, e nao de outro nome, é fruto de uma convencao arbitréria, instituida pelos homens com o objetivo de se fazerem entender. Poderiamos até mesmo chamar grande de “pequeno” e pequeno de “grande”, sem que isso afetasse a comunicacao, desde que os homens se pusessem de acordo e fizessem um uso conforme a nova significagao arbitrariamente institufda). Tal foi o principal resultado a que chegaram os sofistas, e tal foi, segundo Cassirer, a sua grande descoberta, a saber, o fato de terem iso- lado a funcdo pragmatica da linguagem, sobretudo no plano da retérica: ao cabo da ruptura de todo nexo objetivo que ligava as palavras as coisas, sua fungao nao é mais semantica, mas pragmitica, vale dizer, a fungio do signo lingiiistico nado consiste mais em designar coisas, mas em provocar emogées, nao consiste mais em exprimir as idéias ou os pensamentos, mas em provocar sentimentos, em induzir os homens a certos comportamen- tos ea certas decisSes. Descoberta que, no lugar de ter esvaziado a lingua- gem, como muitos acreditam, pois com os sofistas passamos dos limites do puro convencionalismo aos de um nominalismo puro, significa de fato © reconhecimento de seu poder, o qual se mede e se mostra a luz do dia nao no mundo das coisas, conforme se pensava antes (sua capacidade de exprimir as coisas mesmas ou de se ligar a elas), mas no mundo dos homens, onde se instala sua morada: a origem arbitraria de sua instituicéo correspondendo seu poder de conformar comportamentos, sua capacida- de de provocar emogGes, sua infinita poténcia de desencadear decisdes no comércio dos homens’. Assim, tendo em conta a contribuigao dos sofistas, 4 questao de saber qual é 0 estatuto da linguagem e a natureza do nexus que liga as palavras as coisas, sdo trés as solugées oferecidas pelos gregos no chamado perfodo pré-socratico, e nao duas, como se acredita: 1) a linguagem-natureza e 0 signo-natural (tese naturalista); 2) a linguagem-convengio e o signo de 6, CASSIRER, B. Essai sur homme. Paris: Ed. de Minuit, 1975, p. 165. 7, Sobre este ponto, vér CASSIRER, E. op. cit. p. 165-166, que soube como ninguém revalorizar as reflexdes lingiifsticas dos sofistas, pondo em relevo a descoberta da fungdo ptagmética da linguagem. 129 instituigio (tese convencionalista); 3) a linguagem-pragmitica e o signo arbitrério (tese dos sofistas). Ora, estas trés solugSes séo recusadas, uma a uma, por Platéo. De um lado, 0 autor do Crétilo contrapée aos signos natureza, convencio e arbi- trario o signo-representacdo, e opde as teses da naturalidade, da convencionalidade e da arbitrariedade, a tese da instrumentalidade ou da linguagem-instrumento. De outro, rejeita in limine todo e qualquer vinculo direto entre as palavras e as coisas, e nos mostra que o nexo se d4 as custas de um rodeio: a representacio (idéia). Marca nao da coisa, mas do pensamento, 0 signo é um instrumento de que se serve o espirito para conhecer as coisas, e sua eficdcia vai depender do escopo e do préprio instrumento com que opera, a exemplo do teceléo que, ao tecer uma manta, sabe que da qualidade da matéria-prima empregada e do préprio instru- mento utilizado depende a exceléncia do produto e seu uso conforme a seu fim*, Tomemos o Crdtilo, Embora nao encontremos uma exposicdo sistema- tica a respeito da natureza da linguagem, pois Sécrates insiste em fazer longas digressdes etimolégicas relativas aos nomes dos deuses, pouco ocupando-se de gramatica e de sintaxe, e terminando seu didlogo com Hermégenes e Cratilo abruptamente, sem chegar a uma conclusio firme e cabal quanto ao estatuto do signo, podemos num esforco de interpreta- ao restituir sua ordem de razées, A luz do conjunto de sua obra e de certos temas que o nosso autor toca de passagem, porém sem fazer uma teoria dos mesmos. Segundo Plato, a alternativa entre a linguagem-natu- teza e a linguagem-convengao é um falso dilema, pois encerraria uma aporia insolavel (Ferrater Mora): 1) Linguagem-Natureza: se se aceita a tese segundo a qual os nomes se encontram naturalmente ligados as coisas, tem-se as seguintes implica- des: a) cada nome designa uma coisa e hé tantos nomes quantas coisas existam,; b) na hipétese de os nomes se modificarem, das duas uma: ou sao outros nomes que designam outras coisas, ou nao s4o nomes e nado designam nada; c) 0 sentido é o proprio referente (se o nome nao possui um referente, é destituido de sentido: nao se poderia falar por exemplo “a quadratura do circulo”). Ora, se examinarmos as linguas dos barbaros e as dos helenos civilizados, logo vamos ver que a relagao entre as palavras € as coisas esta longe de autorizar essa correspondéncia biunfvoca. a’) as. linguas naturais se compdem de particulas (conjungdes, preposigées etc.) que nao sao nomes, isto é, nao designam coisas. Das duas uma: ou se aceita que estas particulas tem sentido apesar de nao terem referente e que seu significado depende da estrutura da linguagem, ou se admite que 4, Sobre a linguagem-instrumento, ver PLATAO, op. cit. 387d- 390b, p. 397-402. 180 nao encerram sentido sincategorematico (gramatical) — 0 que ¢ um ab» surdo, pois implicaria encontrar uma linguagem toda ela constitufda de nomes justapostos, e assim nao se poderia falar; b’) o significado de gran+ de parte dos nomes se modifica sem que se modifique seu referente, o que nos sugere que o sentido de certa forma se descola do referente; c’) as palavras sem referente nao sao de todo destituidas de sentido (por exem- plo, a expressao “quadratura do circulo”: apesar de nao ter um referente, nao é de todo destituida de sentido, pois nos remete a dois significados bem estabelecidos — “quadrado” e “circulo”. De sorte que da unido des- tes dois significados nao nasce um referente, por causa da contradictio in adjecto, mas pode nascer com efeito uma proposicao dotada de algum sentido, por mais abstruso que isso nos possa parecer). Dai concluir Platéo que 0 significado das palavras nao decola das coisas mesmas ou de seu referente, mas depende do sistema dos signos lingiiisticos (estrutura) e do contexto em que a palavra é empregada — 0 que o leva a recusar a tese naturalista, mostrando-nos que a producio do sentido nao se da a nivel da coisa, mas no interior do pensamento e da linguagem. 2) Linguagem-convengao: se se aceita a tese da convencionalidade, tém-se as seguintes implicagées: a) cada nome pode em principio designar uma série infinita de coisas e os nomes podem modificar-se 4 vontade, sem que isto afete o significado de seu referente; b) hé em principio uma série infinita de nomes para designar uma sé e mesma coisa. Platéo recusa igualmente esssas implicag6es: a’) do fato de o nome designar uma multiplicidade de coisas, nao se segue que as palavras possam modificar- -se 4 vontade, sem que isto afete seu significado; b’) a linguagem nao se constitui a partir de uma série finita ou infinita de nomes; ao contrario, trata-se de um sistema articulado, onde o sentido das palavras depende do contexto ou do uso que se faz delas (exemplo: a palavra “circulo” néo pode significar ao mesmo tempo “quadrado” e “circulo”; nao podemos empregé-la num sentido ou noutro indistintamente; 0 seu significado depende do contexto em que é empregada e dos marcos do discurso; e “circulo” pode designar um “circulo de giz”, a “circunferéncia do sol” ou o “movimento circular de uma estrela”). Daf concluir Platéo que o signi- ficado das palavras nao depende nem da coisa nem da convengao, mas do sistema de signos em que elas sao empregadas, 0 qual impde regras coer- citivas ao uso que se faz delas. Por fim, Platéo admite com os sofistas a cisdo originéria entre as palavras ¢ as coisas, mas, 4 diferenca deles, este hiato est4 longe de nos sugerir a absoluta arbitrariedade dos signos lingitisticos. Com efeito, hé um hiatus entre o sentido ¢ o referente; por isso, o vinculo entre as palas vras e as coisas nado pode ser direto ou imediato, mas antes indireto & mediato, instituido gracas a um rodeio, a um termo médio — a repre> i #entagio. Sendo assim, o nexus que liga as palavras As coisas nao se di nem por natureza, sequer por convencao, menos ainda através de uma convencéo “arbitréria”, mas por representacao, a que ele chama de idéia, mostrando- “fos que o signo lingiifstico em sua imediatidade é a marca nao da coisa, porém da idéia, na sua qualidade de elemento préprio do pensamento. Vefculo do pensamento e nao mais espelho do mundo, o estatuto da linguagem passa a ser o de uma representagéo, o de uma representagao duplicada: de um lado, 0 pensamento é uma representagio e, enquanto tal, conta como marca da coisa (representacéo da coisa); de outro, ela mesma é uma repre- sentagao e vale como marca do pensamento (representacaéo da representa- ho). E 0 que acontece com a palavra “igual” por exemplo: pode designar dois pedacos de madeira, mas no limite evoca a “idéia” do igual em si, ou seja, um referente que nao reside na coisa, mas alhures: na idéia’, As conseqiiéncias desta triplice recusa sao profundas: 1) Mais preocu- pado com a estrutura da linguagem do que com sua origem, Platao instala um recuo da palavra em relagao a coisa: veiculo do légos, sua fungao é representar a esséncia da coisa (idéia) e sua eficdcia depende do seu es- copo (fim a que se aplica) e do seu préprio instrumento: o signo-represen- tagao. Mas este recuo est longe de nos sugerir que a linguagem em sua estrutura é arbitréria: de um lado, porque a representacao na sua condi- cao de elemento do pensamento assegura 0 nexo objetivo entre as pala- vras e as coisas; de outro, porque a linguagem € como o jogo de xadrez: o uso das pecas (palavras) depende de regras bem estabelecidas e estas tegras impdem restrigées ao movimento das pecas (Abbagnano). 2) Ao fazer da linguagem o veiculo do /égos, Platao est4 longe de ter homogeneizado, tornando-os co-extensivos, 0 pensamento e a linguagem. Ora, da mesma forma que a imagem (representagao) nao é o seu referente, mas a sua marca ou cépia'", h4 um hiato entre o signo e a idéia", e é este duplo hiato — 1° da representacio ao referente; 2° do signo a representa- Gao — que explica a falibilidade da linguagem, na qual se inscreve a possibilidade do erro, impens4vel nas teses naturalista e convencionalista. 9. Sobre o signo-representacdo e a natureza do liame que liga a palavra a coisa, ver PLATAO. op. cit. 422d-423e, p. 447- 448. Apés ter concedido que a exatiddo de um nome consiste em fazer ver a natureza propria de cada ser, Sécrates distingue a arte de nomear da arte de imitar, mostrando-nos que o legislador primitivo nao procede 4 maneira das pessoas que imitam os sons dos galos e dos carneiros, mas simplesmente fixa a imagem da esséncia das coisas por meio das letras e das sflabas. 10. Cf. PLATA, op. cit. 342d, p. 460, onde Socrates se dirige a Cratilo, perguntando: “Nido sentes até que ponto as imagens esto longe de encerrar os mesmos elementos que os originais que elas imitam?” 11. Cf, PLATAO. op. cit. 434c, p. 463, onde Sécrates pergunta, dirigindo-se a Crétilo: “Ora, tu sabes que para exprimir a mesma coisa (ou, antes, a mesma “nogdo”, segundo a tradugio espanhola da Aguilar, p. 547), nés dizemos sklérotis (rudeza) e 0s povos de Eretria dizem skiérotér?” 3) Por isso, nao residindo no elemento da verdade, a linguagem nfo | exata ou perfeita em sua natureza e tampouco esté destinada, nao se sabe por que fatalidade, a revelar a estrutura do ser. Mas enquanto instrum to ela pode reunir os meios e vir a ser exata: tudo depende da qualidad de suas ferramentas, e estas podem ser mais ou menos eficazes, mais Ot menos conformes a seus fins ou ao seu escopo. Na raiz da falibilidade da linguagem, est4 a prépria condicéo huma- na — dir4 Platéo. Afinal, somos mortais e miserdveis; s6 os deuses nid necessitam do conhecimento e residem no elemento de uma verdade abso= lutamente transparente a si mesma. Somos como que prisioneiros de no corpo, as coisas s4o opacas e s6 nos elevamos a verdade a duras penas, para © que s6 contamos com as imagens das esséncias ou formas do ser: as id E aqui que irrompe a linguagem com suas promessas ¢ limites. Vefculo do) légos, o discurso nasce da unio reciproca, da articulagao das idéias. efeito, nem todas as idéias estado originariamente unidas ou desunidas, tratar de articulé-las, isto é, de reuni-las ou de separé-las, dando-lhes not e estabelecendo toda sorte de conexdes e disjungGes. Ora, é aqui, a nivel idéias, que se definem os limites e as possibilidades da linguagem: enquant veiculo do discurso, seu contetido vem de fora, das idéias (representagdes sua qualidade de elemento do pensamento), dentre as quais algumas po ser juntadas e outras nao; enquanto instrumento de conhecimento, a p bilidade de combinagao das idéias depende nao da linguagem mesma, da unido/separacdo das esséncias inscritas na ordem do ser (Idéias) funcionam como arquétipo do discurso (representagdes na sua qualidade “notas” do ser). Tal € o estatuto da linguagem em Platao. Veiculo do ldgos, e ndo espelho do mundo, embora nao seja homogénea a coisa, o autor do CI confere-lhe o status de instrumento do pensamento e Ihe concede eficdcia prépria na sua fung3o de notar as idéias (representagGes) que interpéem entre nés outros e as coisas mesmas, com a dnica restrigA@ e isto é tudo — de que seus resultados, por mais excelentes que sejam nunca vao poder competir em poder e dignidade com as exceléi cla if perfeigdes das idéias-arquétipo a que ela, a linguagem, se refere, no! do-as e articulando-as no pensamento discursivo. Tudo isto, senten Platao, por causa de seu estatuto de simulacro, de representagdo da re sentacdo, de cépia da cépia. Dai, solidério de seu status de instrumet de cépia, 0 campo de suas possibilidades e de seus limites: vefeu pensamento, a linguagem é uma espécie de excrescéncia do légos, @ ao fim e ao cabo funciona apesar de ou contra a linguagem com 0 Ob} de melhor subordin4-la ou adequé-la a seus fins. E o que acontece ——————————————E-=«*""-:—srstst matemiticas e a filosofia, onde as injungdes do pensamento abstrato im- péem-nos uma dura ascese e uma atenta vigilancia contra a eterna ameaga de suas recaidas no sensivel. 2. O Modelo Légico-Metafisico da Linguagem Com Aristételes, por sua vez, temos um novo deslocamento na pro- blemitica do signo lingiifstico: além de reduzir a gramitica a légica, reenvia a linguagem a metafisica, apagando o duplo hiatus que em Platéo separa- va as palavras das representacdes e das coisas mesmas. Para tanto, o Estagirita afasta as teorias naturalista e convencionalista, » recusa a tese do signo arbitrério dos sofistas, e enfim rejeita a tese platé- nica da instrumentalidade. Mas de Platao ele retoma a idéia da linguagem como expressio da idéia — representagao — e a redefine ao sabor de suas necessidades de légico e de metafisico, emprestando-lhe um outro alcance. e um outro significado. Sendo, vejamos: 1) A exemplo de Platdo, Aristételes interpoe entre as palavras e as coisas a representagio e faz da linguagem uma representacao, a represen- tagdo de uma representacao. Mas, a diferenga de Plato, a linguagem esta colada no pensamento e na coisa mesma: de um lado, a linguagem nao é um instrumento heterogéneo A matéria a que se aplica — representagao — em sua qualidade de expressao sensfvel-extra-sensivel — signo —, mas 0 veiculo (forma) do pensamento ou o seu duplo homogéneo; de outro, a linguagem é uma representagao, nao uma representagao no sentido pla- ténico, com fundamento ante re (idéia), mas com fundamento in re ou na coisa mesma ("A linguagem é a linguagem do ser”, diz Aristételes com. Antistenes). 2) Ea representacdo assim entendida que Ihe permite afastar as teses da naturalidade e da convencionalidade e, por fim, a tese da arbitrarieda- de dos signos dos sofistas: a) contra os naturalistas, afirma que “nenhum. dos nomes é tal por natureza, mas somente quando se tornou um simbo- lo” (Da Interp., 26-28); b) com os convencionalistas, afirma que “o nome é uma voz semantica segundo convencao” (Da Interp., 2, 16a18); c) e inter- poe entre o signo-convengao e a coisa a representagao, quando chega a seguinte conclusdo a respeito das relagées entre as palavras, as represen- tagdes e as coisas: 1* as coisas sao as mesmas para todos; 2? as represen- tagdes sd as mesmas para todos; 3* as palavras, porquanto convengées, no sio as mesmas para todos (Da Interp., 1, 6a 3-8). Daj o estatuto a um tempo natural e convencional do signo lingitistico: enquanto a relacdo palavra-representacao & convencional, a relagéo representagao-coisa ¢ natural, Dat o duplo valor da representacao: num pélo, ela funciona como natureza; noutro, como convengio (Abbagnano). Resultado: a linguagem é uma convengéo, mas uma convengao com fundamento in re (coisa), € 0 laco que vincula a palavra 4 coisa e confere a convencdo objetividade e necessidade é a representagdo na sua qualidade de “nota” do ser ou da coisa mesma. Entretanto, pode a representagao funcionar ao mesmo tempo como natureza e como convengéo, sem que isto afete seu estatuto? Longe de quebrar sua unidade, o que Aristoteles nos mostra € que a relacao pala- vra-representacao, por ser arbitraria e convencional, pode modificar-se 4 vontade, sem que isto afete a relacao representagéo-coisa, que é natural e necessdria. Em conseqiéncia, a estrutura da linguagem nao depende pro- priamente da convencionalidade dos sinais, mas do modo como eles se juntam e se separam, isto é, do modo como eles se articulam, se coorde- nam e se subordinam uns aos outros no seu esforco de dar a forma ade- quada as representacGes — 0 que nos reenvia A ordem do ser, a qual vai the emprestar seu objeto ou arquétipo: a coisa mesma. Dai o privilégio da légica apofantica: é ela que permite determinar o valor-verdade das pro- posigdes conforme a unido/separacéo dos sinais reproduza ou nao a unido/ separacdo das coisas. Aristételes também se ocupa da linguagem nao- -apofantica na retérica e na poética, mas nao so estas que definem o ser da linguagem. Em sua esséncia, ela nao é nada arbitraria: suas estruturas sdo andlogas as estruturas do pensamento, e estas, por sua vez, sao ana- logas as estruturas do ser. Com isto, a linguagem como que é homogénea ao pensamento e a coisa, 0 légos se logiciza e a apofantica se resolve numa metafisica. Tudo isso traz profundas conseqiiéncias. Antes de mais nada, fica autorizado algo como uma “gramatologia”, uma gramAtica que antes de ser empirica e normativa é légica e metafisica. Por fim, o modelo com a ajuda do qual se instala esta gramatologia e se pensam as conexdes entre as palavras, as representacées e as coisas, ¢ 0 modelo légico-metafisico da linguagem, nascido dela e que volta sobre ela seu instrumento. O pressuposto fundamental de dito modelo é que a conexao entre 0 ser e 0 conceito nao se da pelo lado do signo tomado isoladamente, na sua condic¢do de elemento de um sistema lingiifstico, mas pelo lado da estrus tura da linguagem, cuja unidade de sentido minima ou inrredutivel é proposigaéo. f aqui que aparece toda a vocagao légica e metafisica graméatica, que vai privilegiar as conexées sintaticas das proposigées, quais nos reenviam as estruturas formais do pensamento e as formas: flexdes do ser. Resultado: se o signo lingiiistico, tomado isoladament convencional e arbitrario, como querem os sofistas, suas conexdes € culagdes nao sao nada arbitrérias, mas naturais e necessdrias. DupI necessérias, com efeito: de um lado, porque repousam nos lacos det sidade “légica” que ligam as representacées entre si no interior do pen samento discursivo; de outro, porque nos reenviam aos modos de articu- lagio do ser a nivel das coisas mesmas. Em realidade, a teoria da linguagem em Aristételes nio podia ser diferente. Toda sua armadura conceptual jé estava decidida alhures: tra- tava-se dos imperativos de tornd-la coerente com sua légica e sua metafisica, onde a categoria de substancia ocupava toda a cena, comandando todo 0 campo semAntico do légos, Ora, o mesmo se dava em relagao a linguagem, entendida como veiculo e forma desse Idgos. E a linguagem das categorias, das substancias, dos acidentes, das qualidades e das relag6es. Para torna- -la homogénea e transparente ao pensamento e as coisas, nao lhe restava outro caminho sendo, em primeiro lugar, fazé-la ancorar numa represen- tagao homogénea & palavra e 4 coisa — uma, por natureza; outra, por convengéo. Em seguida, era necessdrio remontar a representagdo ao substrato comum 4 palavra e a coisa: a substancia; e a substancia por exceléncia é a forma. Enfim, dar o ultimo passo e identificar a linguagem, © pensamento e a coisa mesma. Ora, na camada mais profunda de seu ser, linguagem, pensamento e coisa nao sao senao “formas” (bem entendido, “formas” do ser), tm a mesma estrutura e encerram a mesma substancia. Dai 0 isomorfismo estrutural: a gramatica é soliddria da légica, assim como a légica é soliddria da metafisica. Foi o que fez Aristételes, dando nascimento a metafisica da substancia, 4 logica da identidade e 4 grama- tica do nome e do verbo, tio caras ao pensamento ocidental. E, portanto, com a ajuda deste modelo que Aristételes pensa a lingua- gem e nos propoe algo como uma gramatologia, uma gramatica co-exten- siva a légica e 4 metafisica, cujos parametros podem ser esquematizados como se segue, para 0 que nos vamos apoiar nas andlises de M. Foucault a respeito das conexGes entre a gramitica e a légica na Grammaire de Port- -Royal, mas estendendo-as 4 metafisica: Signo (1) — Idéia (t) — Coisa (0) onde: 1) 0 signo envolve dois elementos: a) a coisa-significada; b) a idéia- significante; 2) a relagéo da representagao ao referente (t’-r e r-o) é de substituicao. O pressuposto de dito esquema é que todas as categorias da metafisica, da légica e da gramatica podem ser deduzidas, sem nenhuma fratura, de um mesmo niicleo comum: a representagdo. Sendo assim, teriamos dois princfpios gerais para especificar as diferentes classes de palavras: 1) um, afeto ds relagées do signo com a idéia; 2) outro, as relacdes da idéia com a coisa. 16 . Comecemos pela relacao signo-idéia. A maneira pela qual os homens significam seus pensamentos varia: o nome (énoma) designa os objetos do pensamento (coisas); o verbo (réma) € 0 que o pensamento diz ou afirma das coisas, atribuindo-lhes qualidades (verbos-meios) ou agées (verbos- -agées). Quanto a relacdo idéia-coisa, temos duas possibilidades: as coisas podem consistir seja em substancias (que serdo designadas por nomes substantivos), seja em acidentes ou afeccées do ser (nomes adjetivos). De fato, no que concerne 4 relagdo idéia-coisa, existem ainda outras maneiras de representar o objeto: por exemplo, uma idéia pode representar um s6 objeto (nome préprio) ou varios objetos semelhantes (nome comum). Por sua vez, no que diz respeito A relacdo signo-idéia, ha ainda a forma pela qual uma palavra representa uma idéia determinada ou indeterminada — dai os artigos definidos e os indefinidos; e enfim as particulas, tais como as preposigées e as conjungdes. Vamos deixar de lado todas estas especificagdes da linguagem para retermos somente o par nome-verbo, de um lado, e substantivo-adjetivo, de outro. Suponhamos agora a proposigao “o homem é mortal”, bem como todas as proposicées redutiveis 4 forma “S é P”. Aqui nés temos: a) a nivel da gramitica, o substantivo (homem), o verbo (6) € 0 adjetivo (mortal); b) no nivel da légica, o sujeito (homem), a c6pula (6) e 0 predicado ou atributo (mortal); c) enfim, no nivel da metafisica, a substaéncia (homem), a c6pula (é) e o acidente (mortal), a cépula designando uma relagio de ineréncia de uma qualidade que nao existe em si e por si (0 acidente “mortal”), mas num outro que lhe serve de suporte e que existe em si e por si (a substancia “homem”). Isto posto, podemos tragar um quadro onde se léem as relagSes gra- mitica-l6gica-metafisica segundo um eixo que vai do signo ao objeto, passando pela respectiva idéia na ordem das categorias: Gramiatica Légica Metafisica (signo) (idéia) (coisa) substantivo sujeito substancia verbo cépula cépula adjetivo predicado acidente O que é digno de nota neste quadro é que a deducao categorial se faz toda ela a partir do funcionamento do signo-representagao no interior de uma mesma proposicao ("0 homem é mortal”), numa linha sem fraturas que vai do signo a coisa mesma: a relagao gramatical substantivo-adjetivo repete analogicamente, a nivel da proposicao, a relago sujeito-predicado a nivel da légica e a relacdo substancia-acidente a nivel da metafisica. Ressalte-se ainda que as conexées entre a gramatica, a ldgica e a metafisica 137 Bho pensadas a partir das articulagées entre o signo, a idéia e a coisa, cujo liame 6 a representacao — a metafisica nos oferecendo uma teoria ontoldgica da coisa (objeto); a légica, as conexées das idéias (pensamento); @ gramitica, as articulacées dos signos (linguagem). Por fim, comandando todo 0 campo semAntico, vamos encontrar a categoria de substancia na sua dupla condigéo de principio frontal do ser (coisa) e de sua inteligibi- lidade (idéia) — correspondendo 4 total heteronomia dos predicados, dos adjetivos e dos acidentes na ordem das categorias a autonomia absoluta dos substantivos, dos sujeitos e das substancias na ordem do ser. E este modelo légico-metafisico da linguagem que vai armar a Episteme na sua via essencialista por mais de dois mil anos, extrapolando de longe 0s quadros de uma simples gramitica, e que autoriza o projeto de uma gramatologia em Aristételes, bem como destas gramaticas gerais e filosd- ficas dos séculos XVII e XVIII, conforme teremos ocasiao de mostrar. Uma gramética que se quer metafisica, pois que armada em torno de uma ontologia dos principios que procura dar as ilagdes da gramatica a neces- sidade da conexao da coisa: principios de subsisténcia, de ineréncia etc. Uma gramatica que se quer Idgica, na medida em que as andlises dos fatos gramaticais ndo sao feitas, como diz Kristeva, do ponto de vista das ocorréncias da linguagem, mas das nocées e das definices légicas: “Sé ha qiiididade das coisas cuja enunciagao é uma definigao” afirma Aristételes na Metafisica (Z, 3, 1030a7); ow ainda: “A definicéo sendo uma enunciacio, e toda enunciagao tendo partes; por outro lado, a enunciagdo estando para a coisa na mesma relagéo em que.a parte da enunciacao est4 para a parte da coisa, a questéo que se pie é a de saber entdo se a enunciacdo das partes deve estar presente ou nao na enunciagio do todo” (Z, 10, 1034b20); e enfim: “Uma enunciagao falsa é aquela que, enquanto falsa, expressa o que nao é” (Z,29,102Ab26). De modo que, em Aristételes, mesmo as linguagens nao- -apofanticas como a poética e a retdrica estao marcadas por este logocentrismo, pois, tudo bem considerado — dizia o Estagirita — “pertence ao pensamento tudo aquilo que deve ser estabelecido pela linguagem”". As categorias légico-metafisicas a partir das quais Aristételes pensa as articulagdes entre as palavras, as representagOes e as coisas, e organiza sua gramatica sio dez:{) substancia (o homem ou o cavalo); 2) quantidade (2 ou 3 metros); 3) qualidade (branco); 4) relagao (duplo, metade, maior); 5) lugar (no liceu, na dgora); 6) tempo (ontem); 7) situagdo ou postura (sen- tado); 8) posse ou condicéo (armado); 9) agao (cortar, falar); 10) paixio (cortado) (cf. Categorias, IV, 1b26 e ss). Segundo Benveniste, as categorias lingiifsticas correspondentes pode- tiam ser distribuidas em dois grandes grupos — as 6 primeiras referindo- 12, ARISTOTELES. Apud KRISTEVA, J. op. cit p. 115; Poétion. 1456b. se As formas nominais e as 4 ultimas as formas verbais, onde cada cate goria légica é seguida de seu equivalente gramatical, como se segui " substancia: substantivo; 2) quantidade e 3) qualidade: adjetivos derivados de pronomes a exemplo dos latinos qualis e quantus; 4) relacao: adjetivos. comparativos; 5) lugar e 6) tempo: advérbios de lugar e de tempo; 7) situagdo ou postura: verbos meios; 8) posse ou condigao: verbos perfeitos; 9) aco: voz ativa; 10) paixéo: voz passiva’. Com efeito, sendo 0 que elas sao: categorias de pensamento e de realidade, nada mais natural que Aristételes as fizesse coextensivas & l6= gica e as reenviasse 4 metafisica, pois no final das contas umas e outras categorias designam formas e flexdes do ser, conforme no-lo sugere Gomperz: “Aristételes imagina um homem em pé diante dele, no Liceuw por exemplo, e passa em revista sucessivamente as questdes e as respostas que poderiamos elaborar a seu respeito. Todos os predicados que lhe podem ser atribufdos enquadram-se numa ou noutra das dez chaves, desde a questéo suprema: qual é o objeto percebido aqui?, até questées” subalternas relativas 4 pura aparéncia exterior, tais como: que porta ele com efeito, calgados ou armas?... A enumeragdo é concebida de forma comportar o maximo de predicados que podem ser designados a w coisa ou a um ser...”". Dai a importancia da categoria substéncia e de seu correlativo grama= i tical (substantivo): ao fim e ao cabo, ela nos reenvia a um solo” extragramatical e mesmo extralégico, onde irrompe o ser no limiar do pensamento e da linguagem e onde encontramos a arché da coisa — & ousia — na sua qualidade de principio frontal do ser e de sua inteligibl« lidade. E dai também toda a vocacao metaffsica do verbo ser, que vi oferecer-nos a ligacio dos atributos (acidentes) ao ser (substancia), ni qual vamos encontrar um aspecto singular da lingua grega e de outrai do grupo indo-europeu, e ndo verdadeiramente uma marca ou condi do pensamento em sua universalidade. No hebraico, por exemplo, 0 bo ser 6 reservado a Deus, e nao s4o poucas as linguas em que ele est todo ausente, sem que saibamos ao certo se suas fungGes foram reassumit por outros verbos ou por outras categorias gramaticais, a exemplo dt grupos lingiifsticos falados no Togo (ewe), de que nos fala Benveniste, “O grego — escreve — nao somente possui um verbo ‘ser’ (o que € de modo algum uma necessidade de toda lingua), mas faz deste empregos absolutamente singulares. Ele 0 encarregou de uma légica, a de cépula (0 préprio Aristdteles j4 tinha observado que | 13. Cf, BENVENISTE, E, Problémes de linguistique générale. Pacis: Gallimard, 1966, ¥. I 65-70. 14. Apud BENVENISTE. E. op. cit. p. 68. fungio © verbo nao significa propriamente nada, pois ele opera simples- mente uma sintese), e por causa deste fato este verbo recebeu uma exten- 840 mais ampla que os demais. Além disso, ‘ser’ pode converter-se, gracas a0 artigo, numa nogao nominal, tratada como coisa; ele da lugar a outras variagées, por exemplo seu participio presente, ele proprio substantivado e em varias espécies (to 61, hoi ontes, ta onta); ele pode servir de predicado a si mesmo como na locugao fo ti én éinai, designando a esséncia conceptual de uma coisa, para nao falar da espantosa diversidade dos predicados particulares com os quais ele pode construir-se por meio das formas cau- sais e das preposigdes... Nao poderiamos terminar o inventario desta ri- queza de empregos, mas trata-se de dados de lingua, de sintaxe, de de- rivagdo. Sublinhemo-lo, pois é numa situaco lingiifstica assim caracteri- zada que puderam nascer e se desenvolver toda a metafisica grega do ‘ser’, as magnificas imagens do poema de Parménides, bem como a dialética do sofista. A lingua evidentemente nao orientou a definigao metafisica do ‘ser, cada pensador grego tem a sua, mas ela permitiu fazer do ‘ser’ uma nogao objetivavel, que a reflexdo filoséfica podia manipular, analisar, si- tuar como nao importa qual outro conceito”. Um tanto alheios a este modelo, os gramaticos da Biblioteca de Alexandria preferiram oferecer-nos uma gramdtica bem mais pragmatica e empiricista — lembra-nos Gusdorf. Em fins da idade média, 0 préprio Ockham estende sua “navalha” 4 linguagem e afirma contra o Estagirita que na frase “o homem corre”, quem corre nao é a palavra nem a subs- tancia (”o homem”), mas a pessoa concreta individual. Todavia, Aristéte- les havia aberto o caminho. E os espiritos, mais tarde, j4 “mordidos” pela metafisica e “possuidos” pelo mesmo ddimon logocéntrico, de novo se puseram na esteira do modelo légico-metafisico da linguagem do Estagirita e de novo nos propéem algo como uma gramatologia, para além de uma gramatica simplesmente empirica e normativa: a Gramatica Geral e Filo- s6fica. Como os solitarios de Port-Royal, dois mil anos depois. 3. A Gramatica Geral de Port-Royal Com efeito, se se tém em conta os “enjeux” da idade mecdnica e as “contraintes” do modelo légico-metafisico da linguagem, sdo duas as condigées para se pensar a gramatica no século XVIL: 1) ela deve atender as exigéncias do mecanicismo, e nos falar de uma linguagem-mAéquina; 2) ela deve atender as exigéncias do matematismo, e nos falar de uma lin- guagem-matemiatica. 15, BENVENISTE, E. op. cit. p. 71. este légica aplicada, e desde entdo fica aquém do matematismo. Mas tao logo abramos as primeiras paginas da Grammaire de Port -Royal, veremos que ela nao satisfaz nem a primeira nem a segunda xi» géncia. Por um lado, prefere as esséncias ideais do pensamento as dispo« sigdes mecnicas da linguagem, e fica portanto aquém do mecanicisma, Por outro lado, pensa a gramatica como uma extensdo da l6gica, uma Daf encontrarmos na Grammaire Générale et Raisonnée nado uma axiomAtica de tipo matemitico-platénico, mas de tipo légico-aristotélico, a qual, a despeito de ser menos moderna do que a de Condillac, estava destinada a ter um papel de maior relevo na modernidade, comandando as investigagdes sobre a linguagem por quase dois séculos. Portanto, esta restrigdo nao significa propriamente uma “censura”, pois, para dizer a verdade, a fusdo da lingitistica com as matematicas é bem mais tardia {obra de um Chomsky, por exemplo); ao longo da modernidade o que temos de fato sao diferentes sortes de “gramatologias” (mesmo Beauzée nao escapa a essa regra; em Condillac o uso das matemiticas é tépico ¢ exterior), A excegdo apenas da lingiiistica histérico-comparada, que val buscar seus c4nones na histéria. Dai também a necessidade de se introduzir a idéia de variante de uma Episteme, para além da idéia de estratégia discursiva, pois se é verdade que a via dos solitdrios de Port-Royal é a via da redugo as esséncias, como a de Espinosa, nao obstante a axiomética néo é a mesma: em. Espinosa, uma axiomética de tipo platénico, resultante da fusdéo da ontologia dos principios com um matematismo de estrita observancia; em Arnauld e Lancelot, uma axiomatica de tipo aristotélico, também organi- zada em torno de uma ontologia dos principios, mas sem que o logicismo. tenha dado lugar a um matematismo de estrita observancia. Com efeito, que é a gramitica e qual é o seu objeto? — perguntam os MM de Port-Royal. “A Gramitica é a arte de falar” — escrevem — @ “falar é explicar seus pensamentos por meio de signos que os homens inventaram com este intento”. Seu estudo esté fundado na consideragio de duas coisas intimamente associadas: “A primeira: 0 que eles sio por natureza, vale dizer, enquanto sons e caracteres” — que ser4 0 objeto da primeira parte; “a segunda: sua significacao, isto é, a maneira pela qual 08 homens se servem deles para significar seus pensamentos” — objeto da segunda™, No entanto, hé um desequilfbrio na Gramdtica Geral de Port-Royal tratamento destas duas matérias: longe de atribuir um peso igual as di dimensées da linguagem — uma, que considera 0 som em sua pi 16. ARNAULD, A. et LANCELOT, C. Grammaire générale et raisonnée. Paris: Republicati Paulet, 1969, p. 7-8. materialidade, na sua positividade de substancia sonora; outra, que o toma em sua pura espiritualidade, na idealidade das relagées de signifi- eagdo — 0 acento recai sobre esta ultima, ocupando trés quartos de uma obra que nao conta com mais de uma centena de paginas. E desde entao a heterogeneidade de motivago que animou suas duas partes salta & vista: a primeira ndo contém senado uma mistura de empirismo e de bom , um conjunto de observagées inteligentes em seu espirito (devem- alfabetizar as pessoas ndo por meio de letras, mas pelos sons), mas perficiais quanto ao seu suporte analitico; ao passo que a investigacao sobre os principios € reservada a segunda, mas restringindo-os a signifi- cacao das palavras. Este desequilibrio se explica pela estrutura mesma da linguagem. Como © faz notar Foucault, aos olhos de Arnauld e Lancelot os diferentes siste- mas lingiiisticos se dispéem numa superficie constituida por duas cama- das superpostas: mais acima, a camada manifesta, constituida pelas fra- ses, palavras, usos e tudo aquilo que conforma o corpo visivel da lingua- gem; mais embaixo, a camada profunda, constituida pela zona dos prin- cipios que “dao razao” ao corpo visivel e explicam as diversas formas de significagao das palavras. Recorte que nos reenvia A Propria natureza do homem, que cabe a uma certa antropologia elucidar: a primeira camada se abrindo 4 zona opaca e arbitraria dos capriches de uma natureza hu- mana na sua condigao de ser de artificio e de invencdo; a segunda, 4 zona fixa e eterna de uma natureza humana na sua qualidade de ser de natu- teza e de razao. A chave da linguagem encontrando-se onde se encontra, na segunda camada, nada mais natural que a Gramética Geral de Port- -Royal tenha privilegiado a segunda dimensao. Para levar a bom termo Sua empresa — escreve Foucault — ela simplesmente “deixa de lado as velhas questdes concernentes origem natural ou artificial das palavras, os valores da etimologia, a realidade dos universais e vé esbocar-se diante de si uma tarefa inédita: investigar a razao dos usos””. Para tanto, postula que existe nas linguas uma ordem profunda que podemos reconstituir com toda clareza, desde que consideremos seus Principios gerais indepen- dentemente da prépria lingua em toda a complexidade de seus usos e de suas formas (Foucault); estes princfpios sio a razao, e a tarefa da grama- tica 6 dar razdo ao uso. Donde se segue um saber discursivo que “da razdo” (aos usos) e normativo que “prescreve” (as regras do bom uso) — a Gramdtica Geral e Racional. Uma gramética que em sua generalidade e racionalidade procu- ta 1) isolar os princfpios gerais validos para todas as linguas possiveis, Para além do diverso dos usos e de suas diferentes formas histéricas 17, FOUCAULT, M. “Introduction”, In: ARNAULD, A. e LANCELOT, C. op. cit. p. VII, 142, particulares de concrecéo — dai seu cardter discursivo e o termo “geral’; 2) deduzir destes principios as regras do uso (no caso, do bom uso) — dai seu cardter normativo e o termo “racional”. Tal é 0 objetivo que se pro- poem Armauld e Lancelot, sentencia Foucault: redigir uma gramatica ge- ral que em sua generalidade nao diz respeito a um dominio lingiifstico Particular, mas a arte de falar no que ela tem de mais universal; escrever uma gramatica racional, e néo simplesmente empfrica e normativa, que para dar razéo aos usos vai recuar em telagéo a uma ou duas linguas dadas e, nesta distancia, remontar dos usos particulares aos principios universais nelas realizados. A dificuldade a vencer é a de saber “qual instancia garante esta passagem e como podemos estar seguros de que atingimos a partir de um fato singular uma forma absolutamente geral?”, e esta instancia é a Razdo". Daf a reciprocidade entre o cardter gerale o carater racional da andlise. Daf também por que durante quase um século e meio estes dois termos estarao intimamente associados — conclui. Ou seja: “Quanto mais a gramatica de uma lingua ser racional, tanto mais ela se aproximaré de uma gramatica geral; quanto mais uma gramiatica serd geral, tanto mais ela valeré como uma gramitica racional de uma lingua qualquer. No limite, podemos construir uma gramatica a partir de uma tnica lingua, assim como podemos descobrir as razées de uma lin- gua determinada a partir da gramatica geral’”. E neste quadro que a proximidade da gramética em relacdo a légica se ilumina, bem como o seu recuo. Com efeito, 0 objetivo da gramatica é o de definir a ordem imanente de uma lingua qualquer. Mas, bem enten- dido, definir a ordem nao de uma lingua ideal, nem de seu melhor uso, nem 0 limite que o bom gosto nao saberia ultrapassar, sendo “a forma e a lei interior que Ihe permitem ser simplesmente a lingua que ela 6”. Por isso, o sentido da palavra gramatica é duplo: de um lado, existe uma gramatica que é a ordem imanente a arte natural de falar em sua espon- taneidade; de outro, uma gramiatica que é a descricéo, a andlise e a expli- cacao — a teoria — desta ordem natural, Ora, um tal desdobramento nao se da na légica: a légica consiste numa reflexdo sobre a natureza do espirito que em relaco A arte natural de pensar nao explica por que nés pensamos tal como nés pensamos; ela mostra simplesmente 0 que 60 Ppensamento e o que € o pensamento verdadeiro”. E mais: atendo-se ao valor-verdade das proposigées, as condicées de sua validade e as regras de sua aplicacio, na légica regras e fundamentos coincidem, sdo uma 86 e mesma coisa. Jé na gramitica se inscreve um hiato que é simplesmente 18. FOUCAULT, M, “Introduction”. In: ARNAULD, A. e LANCELOT, C. op. cit. ps IX. 19. Ibidem, p. X-X1. 20. Ibidem. p. XII. 21, Ibidem. p. XIV. 22. Ibidem. p. XIV-XV. 143 6 Iiatua que separa a necessidade do pensamento do arbitrario da lingua- gem — A forga coercitiva da razao que nos obriga a todos a pensar segun- do as leis de sua natureza, correspondendo o arbitrario das regras de que fos servimos para instituir a linguagem e seu elemento proprio: o signo (aqui declinagoes, 14 preposigdes; aqui dois géneros, la trés etc). E desde entio, como diz Foucault, vé-se o quanto seria falso caracterizar a grama- tica cléssica por uma assimilagao apressada 4 l6gica ou como lhe sendo totalmente co-extensiva: a légica é a arte de pensar iluminando-se a si mesma no exercicio do pensamento e seu solo é 0 pensamento puro inde- pendentemente da linguagem, ao passo que a gramitica é a arte de falar na qual o pensamento se vé acrescido da forma especifica da linguagem, e seu objetivo nao é o de estabelecer o valor-verdade das proposigées, mas um “calculo do sentido” a partir do jogo das palavras em suas relacées de significagdo (as determinagdes do nome, os regimes do verbo, o papel das particulas etc.). Diferenca essa que se explica pela natureza mesma da lin- guagem e de suas duas camadas — o corpo visivel e a estrutura profunda, consistindo a tarefa da gramatica em explicar a primeira pela segunda. Sendo assim, as relagdes entre a gramética e a légica sao mais hori- zontais do que verticais: ainda que operem sobre 0 mesmo elemento — a idéia-representacaéo —, a gramitica geral procura e encontra seu solo nas relagdes das idéias com os signos; a légica, nas relagées das idéias com as idéias, tais como elas se dao no exercicio do pensamento em sua univer- salidade. Com efeito — dizem os MM de Port-Royal —, falar é explicar os pensamentos por meio de signos que os homens inventaram com este fim, e no seu estudo devemos considerar duas coisas: a primeira, a natureza material dos signos ou os sons {a abertura da boca, a duragéo do som, as consoantes, as vogais, as combinac6es das silabas etc.); a segunda, as di- versas maneiras de as palavras significarem (nomes, verbos, preposicdes etc.). Mas na Grammaire h4 um siléncio sintomatico, observa Foucault: “O que se passa sob siléncio é a teoria da significacio e da palavra enquanto portadora da significac4o”®. Siléncio tanto mais sintomatico que a teoria do signo vai ser estabelecida nao na Gramatica, como era de esperar, mas alhures, na Légica, redigida um pouco mais tarde, 0 que nos sugere algo de mais forte do que um simples esquecimento ou acaso. Que estabelece com efeito a Légica a este respeito? Simplesmente, como diz Foucault, que “as idéias e seus signos devem ser analisados de um sé golpe — porque as coisas nao se apresentam ao nosso espirito senao com as palavras com que nos habituamos a revesti-las ao falarmos a outrem, necessrio na l6gica considerar as idéias juntamente com as palavras e 48 palavras em conjunto com as idéias’”™. E mais: “Fi dito que as reflexes 23, FOUCAULT, M. op. cit. p. XVI. 1A, Ibidem. p. XV. lat sobre as idéias podem reduzir-se a cinco chaves: sua natureza e sua orie gem, seu objeto, sua simplicidade ou sua composicao, sua extensdo, sua clareza ou sua obscuridade”®. Por fim, quanto ao signo, é dito que “ele encerra duas idéias, uma da coisa que ele representa, outra da coisa repre- sentada, e sua natureza consiste em excitar a segunda pela primeira’™. Resultado: funcéo do representante e do representado, antes de ser do significante e do significado o signo é uma Tepresentacéo, uma represen- taco de uma representacao; a relagao do signo com a idéia, a exemplo da idéia com a coisa, é de substituigaéo, como de resto toda representagao (algo que fica no lugar de algo), ficando no lugar da idéia significante, enquanto seu duplo homogéneo, ¢ no lugar do objeto significado, enquan- to seu equivalente ou simulacro. Aparentemente, ao fazer do signo uma representacao de uma repre- sentacdo, a Gramética e a Légica de Port-Royal seriam um eco tardio da apofantica de Aristételes. Mas ha diferengas notdveis entre ambas. Por um lado, uma légica das idéias, dos signos e dos juizos fundada no elemento do pensamento puro — a representagao — substitui uma l6gica dos con- ceitos, das categorias e dos raciocinios, para 0 que se atém ao ndcleo representativo, sem estabelecer uma ontologia a priori da coisa mesma: para os MM de Port-Royal — escreve Foucault — “a tarefa do conheci- mento nao é mais classificar os objetos possiveis em grandes tipos defini- dos de antemao; mas de multiplicar na medida do possivel as formas e os niveis da representagéo de um objeto, de maneira a poder analisd-lo, decompé-lo, combiné-lo, ordend-lo””. Por outro lado, o préprio regime dos signos impede uma apofantica de tipo aristotélico de estrita observan- cia; embora a andlise das palavras seja correlativa da andlise das idéias e esta tenha o poder de representar todas as possibilidades do objeto, as coisas sao estudadas segundo a maneira pela qual o espirito as concebe, eas diferencas pertinentes para os gramaticos nao concernem apenas as coisas significadas pelas palavras, mas também e fundamentalmente ao modo segundo o qual elas os significam’. Nao obstante, a exemplo de Aristételes, a representacao é 0 medium pelo qual se fixa e se coordena a conexao entre as palavras e as coisas, € é a partir do nticleo comum da representacao que os solitarios de Port- -Royal deduzem todas as categorias da gramética, numa linha sem fratu- ras que nos leva do signo as idéias e as coisas mesmas, como no esquema proposto por Foucault, jé mencionado por nés a respeito do modelo légi- co-metafisico da linguagem no Estagirita: 25. Ibidem. P. VII. 26. ARNAULD, A. e NICOLE, P. La logique ou Wart de penserParis: Flammarion, 1970, 1, 4. 27, FOUCAULT, M. “Introduction”. In: Grammaire générale... p. XVIII. 28. Ibidem. p. XX. Signo (1) — Idéia (2) — Coisa (3) Assim, se tomamos o signo como ponto de partida, temos dois prin- cipios gerais situados em dois niveis distintos para especificar as diferen- tes categorias de palavras: 1) um primeiro, que diz respeito as relagdes entre 0 signo e a idéia; 2) um segundo, as relagGes entre a idéia e a coisa. Comecemos pelo elemento intermediario: a idéia. Esta pode consistir seja em concepgées, seja em afirmacées: as palavras que desigam concep- ges so nomes; as que representam afirmagées sdo verbos. Quanto 4s relagGes da idéia com a coisa, temos duas possibilidades: as coisas podem ser seja substancias (designadas por nomes substantivos), seja acidentes (nomes adjetivos). Ha ainda outras maneiras para a idéia representar um tnico objeto ou varios objetos semelhantes: 0 nome pré- Prio designa o primeiro; 0 nome comum, o segundo”. Quanto as relagées entre o signo e a idéia, a forma pela qual a palavra representa a idéia varia: ela pode representar uma s6 ou varias idéias do mesmo tipo — dai a diferenca entre singular e plural; ou ainda uma idéia determinada ou indeterminada — dai a distingao entre artigos definidos e indefinidos®, Devem-se acrescentar enfim as preposigées que, segundo Foucault, nao séo senao “maneiras de significar as relagdes entre os obje- tos”, Isto posto, podemos elaborar um quadro onde se léem as relacdes entre a légica e a gramatica segundo um eixo que vai do signo A coisa, onde as diferentes categorias de palavras se especificam e se dispdem segundo os niveis ai recortados, quadro esse que para as necessidades de nossa exposigéo poderia receber algumas modificagGes e se reduzir ao que se segue: Nivel Diferenciagao Categorias Signo 1 natureza do signo artigos def/indefinidos extensao do signo singular/ plural Idéia 2 natureza da idéia nomes/verbos extensdo da idéia nomes préprios/comuns Coisa 3 natureza do objeto substantivos/adjetivos relacdo entre objetos preposigoes 29, FOUCAULT, M. op. cit. p. XXIL. 30, Ibidem. p. XXIL 34, Ibidem. p. XXII Evidentemente, conforme o observa Foucault, este quadro nio cobre a totalidade do dominio gramatical, mas o organiza pelo menos no seu essencial, sendo os demais fatos da gramiatica modificagdes obtidas a partir dessa primeira diferenciagio 4 maneira de uma figura. Como isto se dé com efeito? Ou por analogia ou por economia, vias em que irrompe toda a forca da linguagem com seu infinito poder de criagéo e sua imensa liberdade no uso de figuras, de derivagdes e de abreviagées: 1) Analogiay Existem antes de mais nada as analogias que transferem certas disting6ea ou certas relagdes de um nivel a outro ou de uma parte do quadro a outra, Assim, a distingdo entre nomes e verbos reaparece na distingdo entre nomes substantivos e nomes adjetivos, do mesmo modo que na diferenca entre 0 verbo ser e os outros verbos: por exemplo “eu canto” vale como “eu sou cantante”, contando o primeiro como substantivo, o iltimo como adjetl: vo”. 2) Economia: “O desejo de abreviar os enunciados provoca igual. mente certas modificagées: seja que se queira evitar a repeticao de um nome (estes s4o os elementos pronominais); seja que se queira reunip varias maneiras de significar no interior de um mesmo nome (o nome Telativo desempenha o papel a um tempo de Pronome e de conjuncio)”™, Ora, uma vez isoladas as formas elementares da sintaxe (0 par nome- -verbo) e suas formas derivadas (as preposigdes, as conjuncées, os advérs bios etc.), podemos esbocar as conexées entre a légica e a gramitica, com: binando os diferentes nfveis recortados em estratos que envolvem as ré= lagdes entre o signo, a idéia e a coisa, Para 0 que nos vamos servir do esquema proposto por Foucault: 1) Um primeiro estrato compreendendo as diferenciacdes maiores (niveis 2 ¢ 3) e encerrando as categorias sem ddvida mais importantes da gramatica: substantivos, verbos, adjetivos, as quais seriam suficientes para construir diferentes formas de proposigdes do tipo “S 6 P”, estrato em que a gramitica coincide com a légica. 2) Um segundo estrato que se constitui a partir da combinagio dos outros ele= mentos: nomes préprios, nomes comuns, artigos, preposigées (parte doa niveis 1, 2e 3). Esta camada “permite falar, e 0 edificio de uma linguagem. suficiente poderia muito bem se deter ai; a correlagao entre a gramitica @ a logica nao é ainda interrompida, mas nao se trata mais de uma adequas sho: as categorias de generalidade, de singularidade, de particularidade, de complexidade, de simplicidade estao presentes a um tempo na l6gica e na gramitica, mas 14 e cd sob formas diferentes”™, 3) Um terceiro estrato se constitui a partir do jogo dos dois primeiros, compreendendo “os pro- nomes pessoais e relativos, os advérbios, os verbos outros que o verbo ser”, Nao sendo mais do que a transformacao dos elementos dos estratos _ 32, FOUCALT, M. op. cit. p. XXV. 33. Ibidem. p. XXII-XXV. Tbidem. p. XXV. 34, 38. Ibidem. p. XXV, anteriores, 6 a camada das figuras, e como tal redutivel aos primeiros, os quais formam a camada dedutivel e absolutamente indispensdvel da gra- mitica, enquanto este iiltimo representa seu aperfeicoamento™. Neste dl- timo estrato, a linguagem adquire autonomia, a gramatica se separa da légica, e encontra um espago de racionalidade que pertence a ela e que se instala gracas a ela, com sua infinita “souplesse” e sua infinita capacidade de criar, mais além da forma canénica “S é P’. A anlise de Foucault seria perfeita, e poderiamos muito bem inter- romper nossa enquete aqui, se ele tivesse acrescentado ao par gramatica- -légica uma segunda conexao com cuja ajuda se instala a Grammaire Générale et Raisonnée: 0 par gramatica-metafisica. Por um lado, as relagdes da vox com a ratio sao pensadas no sentido de conferir as formas gramaticais a necessidade “Iégica” do pensamento. Ora, as idéias sao esséncias, essén- cias ideais do pensamento; portanto, as relages dos signos com as idéias sao essenciais (veiculo das esséncias), ¢ nao simplesmente nominais. Por outro, as relacdes da vox com a ratio so pensadas no sentido de conferir as formas gramaticais e as ilagdes do pensamento a necessidade da coisa; em conseqiéncia, as relagdes do signo com a coisa nao sao simplesmente légicas e gramaticais, mas metafisicas e substanciais: correspondendo ao par gramatical nome substantivo /nome adjetivo o par metafisico substan- cia/acidente, para nao falar do verbo ser, encarregado de fazer a ligagéo (sintese) da primeira (substancia) ao segundo (acidente). Ainda que a homologia nao seja estrita, pois que as categorias metafisicas véem-se enriquecidas de qualidades que nao reaparecem na gramitica (0 ser em sua forma nominal é definido segundo os principios de ineréncia, de subsisténcia, de incorruptibilidade etc., e, actescido dos atributos da interioridade e da espontaneidade, torna-se “sujeito” — ao passo que em gramatica é um simples nome ao lado de outros, é a metaffsica que co- manda a légica e a gramatica. E desde logo confere a forma “S é P” um alcance ontolégico, como nas proposicées de “eterna verdade” do tipo “Deus é infinito”, “o corpo é divisivel”, “o todo é maior que sua parte” etc,, nas quais o espirito se limita a fazer a cOpula do atributo a substancia, sem nenhuma relagéo com o tempo e a diversidade de pessoas. A exem- plo de Aristételes, 4 luz do modelo da funcao proposicional, na forma “S é P” gramitica, l6gica e metafisica coincidem. Demais, faltou A andlise foucauldiana explorar um segundo aspecto, sem 0 qual a Grammaire é l6gica e nao gramitica: além de discursiva, a exemplo da Etica de Espinosa, a gramitica geral se quer também um saber normativo. Um saber demonstrativo que “d4 razdo” ao uso: “Os nomes designam os objetos do pensamento; os verbos designam as maneiras do 36. FOUCAULT, M. op. cit. p. XXV. 48 pensamento” etc. Um saber normativo que “prescreve” as regras do bom ‘uso (0 uso conforme a razio): “A distingao de dois némeros, singular e plural, exige o acordo do substantivo com o adjetivo em namero, vale dizer, por um no singular ou no plural quando 0 outro af esta (...): homines docti, hommes doctes”; “a distingio do feminino e do masculino obrigou da mesma forma a por no mesmo género o substantivo e o adjetivo, ou um € outro algumas vezes no neutro, nas linguas que o tem, pois foi para isto que se inventaram os géneros”; “os verbos, do mesmo modo, devem estabelecer 0 acordo dos nimeros e das pessoas com os nomes e os pronomes” etc.” Por fim, faltou caracterizar o tipo de discurso que a gramitica geral visa instalar, definido ndo tanto pela sua abrangéncia epistemolégica (dar conta dos principios gerais validos para todas as linguas possiveis), mas como uma metafisica, aliando uma ontologia dos principios de tipo pla- tdnico (ou, antes, cartesiano) a um logicismo de tipo aristotélico, pensados como metafisica do espirito, que reconduz a diversidade das linguas a unidade das operagdes do pensamento e suas “esséncias” (querer, desejar, conceber, julgar, raciocinar etc.): “E assim a distingéo maior do que se passa no nosso espirito consiste em dizer que nele podemos considerar 0 objeto de nosso pensamento, e a forma ou maneira de nosso pensamento, cuja principal é o jufizo: mas devemos remontar a esse fundo as conjun- goes, as disjuncdes, e outras operagdes semelhantes do espirito, e todos os outros movimentos de nossa alma, como os desejos, a ordem (preceito — 1D), a interrogagao etc. Donde se segue que, como os homens tém neces- sidade de signos para marcar tudo que se passa no seu espirito, & preciso que o mais geral dos pensamentos e a forma e a maneira dos pensamen- tos, ainda que freqitentemente nao o signifiquem isoladamente, mas sé com o objeto (assim o marquem — ID), como o mostraremos. As palavras da primeira espécie sio as que chamamos nomes, artigos, pronomes, parti- cépios, preposigées e advérbios; as da segunda s4o os verbos, as conjungdes e as interjeigoes; que sdo tiradas, numa seqiéncia necesséria, da maneira natural pela qual nds exprimimos nossos pensamentos (4% O resultado é um saber absoluto que, no seu esforgo de dobrar o diverso do uso A unidade da raz4o (espirito), nao hesitou em suprimir 0 tempo e as marcas da historicidade, a exemplo da Etica de Espinosa, e cujos efcitos na significagao das palavras sao tidos como exteriores a lin- guagem e, enquanto tais, como fatos extragramaticais (corrupgao do uso). De um lado, porque a significagao das palavras é por si mesma fixa; é sua extenséo que é varidvel, segundo tomemos um nome “ou por toda a espécie, ou por uma parte certa ou incerta”®. De outro, 0 tempo em si 37. ARNAULD, A. e LANCELOT, C. Grammaire générale ... p. 104, 38. Tbidem. p. 24, 39. Ibidem. p. 58. megmo ndo é mais do que uma flexdo ou caso do verbo: “(...) ao conside- rar-se simplesmente o que é essencial ao verbo, sua tinica e verdadeira definigio & vox significans affirmationem; uma palavra que significa a afir- magao. Pois nao se poderia encontrar outra palavra que marque a afirma- Gdo que nao seja o verbo; nem um verbo que nao sirva para marcé-la, pelo menos no indicativo. E indubitével que, se se inventasse uma palavra, como seria 0 caso de é, que marcasse sempre a afirmagao, sem ter nenhu- ma diferenga nem de pessoa nem de tempo, de sorte que a diversidade das pessoas fosse marcada somente pelos nomes e pelos pronomes, e a diversidade dos tempos pelos advérbios, ela néo deixaria de ser um ver- dadeiro verbo. Como, com efeito, nas proposicées que os filésofos cha- mam de eterna verdade, do tipo: Deus é infinito; todo corpo é divisivel; 0 todo é maior do que sua parte; a palavra é significa apenas a afirmacao simples, sem nenhuma relagéo com o tempo; porque isto é verdadeiro em todos os tempos, e sem que nosso espirito se detenha em nenhuma diversidade de pessoas. Assim, 0 verbo, naquilo que Ihe é essencial, 6 uma palavra que significa a afirmagao. Mas se se quer acrescentar, na definigio do verbo, seus principais acidentes, poder-se-A defini-lo assim: Vox significans affirmationem, cum designationem personae, numeri et temporis: Uma palavra que significa a afirmagio, com a designagéo da pessoa, do niimero e do tempo; 0 que convém propriamente ao verbo substantivo’. Com efeito, nio vamos encontrar na Gramdtica de Port-Royal uma grande originalidade ou inovagées revolucionarias. Muitas de suas andli- ses se dao em linha direta da tradigdo greco-latina e dos renascentistas: 0 mesmo relevo da vocacao metafisica do verbo ser e da categoria substan- cia; a mesma falta de atencgao em relagao & fonética (apenas uma meia dizia de paginas) e a sintaxe ou a “construcdo das palavras em seu con- junto” (trés paginas); e ainda uma mesma “gramatologia”, cuja axiomatica se funda em definicSes “légicas (0 verbo é a vox significans affirmationem”) e em regras (I6gicas) constritivas que se aplicam a todos os falantes toma- dos em sua universalidade (em francés deve-se dizer “cette ville que le commerce a rendu puissante”; e nao rendue puissante; porque rendu rege puissante e assim é gertindio)"'. E mais: filha, embora, da idade mecanica, a Gramitica de Port-Royal se furta aos “enjeux” do século. Armada em torno do modelo légico-metafisico da linguagem, a metafisica dos princi- pios ndo da lugar ao mecanicismo: prefere as esséncias ideais do pensa- mento aos dispositivos mecanicos da linguagem, e fica aquém de De Brosses, que nos ofereceu um Tratado da Formacio Mecénica dos Idiomas. Por sua vez, o logicismo nao dé lugar ao matematismo, e fica aquém de um Condillac, que nos fala de uma linguagem dos cdlculos e busca seus 40, ARNAULD, A. e LANCELOT, C. op. cit. p. 70-71. 41, Ibidem. p. 98. 150 . cdnones nas matemiaticas. Entretanto, mais do que as obras de De Broi e de Condillac, foi a Gramdtica de Port-Royal que comandou os estude lingiiisticos na modernidade, por quase dois séculos. Como explicar forca do seu impacto? Como explicar, malgrado todas estas restriqdes, & fato de ela ter selado o destino da modernidade e de encontrar ecos al tardios num Saussure e num Chomsky? As respostas que nos dio Foucault e Chomsky so a rigor as mesi isto se deve a distincio, mais admitida 4 sombra do que explicitada 4 de uma ordem de razGes claramente enunciada, entre a superficie visi das linguas e a estrutura profunda comum a todas elas. Essa disting autoriza uma gramatica geral que em sua generalidade nao substitul | gramAticas particulares que se ocupariam dos “universais lingiifstieon” realizados na primeira camada — afirma Chomsky. Esta distingaéo aute riza uma gramiatica racional que, ao cabo da reducéo da linguagem at espirito (pensamento), poderé “dar raz4o” aos usos e explicar a ocorréneli de cada fato da linguagem, reenviando-a a sua estrutura profunda | Razao) — tal é a figura epistemoldgica que a obra de Lancelot e Arnauld nos oferece na segunda metade do século XVII, afirma Foucault. Daia forga de seu impacto. A tal ponto que mesmo no campo de uma outra formagio discursiva — o da lingitistica historica —, a distingde entre estrutura profunda e camada manifesta da lingua segue vigendo com a nica ressalva de que esta estrutura 6 agora gramatical, e légica, a exemplo da “forma interior” de Humboldt. A forga de seu im pacto foi tao forte — escreve Foucault — que o projeto da gramAtica gett s6 pode desaparecer da constelacdo do saber no século XIX, deixando Mi seu lugar uma lingiifstica histérica, quando se abandonou o signo-repit sentacdo e buscou o elemento do gramatical puro na positividade sono} do significante, dando origem a “toda uma transformagao cujos process ultrapassaram, e largamente, os limites de uma simples gramiatica ral”, 4. A Gramatica Geral e o Principio da Fundamentagao Suficiente: O Hiato Uso/Razio WW Armada em torno do modelo légico-metafisico da linguagem, @ mitica geral procura tornar coerentes duas exigéncias um tanto contt torias: as exigéncias do logicismo, que querem que a verdade do diseu nasca do jogo dos conceitos no interior do discurso em sua discursivida e assim construir algo como uma axiomatica do pensamento puts, ¢ 42. FOUCAULT, M. op. cit. p. XVII. 1 prdem de raz6es repousa nos dados (internos) do espirito, e somente eles (desejar, querer, conceber, julgar, raciocinar, ordenar, interrogar etc); as exigéncias da ontologia dos principios, que querem que a verdade do discurso seja a verdade da coisa, e assim dar As ilagSes do pensamento € js formas gramaticais a necessidade da coisa mesma. Atendidas estas exigéncias, poder-se-4 dizer que a axiomatica é “suficiente” e sem lacunas, assim como é “consistente” e completa a determinacao da coisa — eis 0 principio da fundamentacao suficiente do conhecimento estendido 4 gra- miatica geral. Operando sobre o elemento do signo (0 signo-representacao), a gra- mética geral s6 poders satisfazer a estas exigéncias, ao cabo de uma dupla redugao: a redug’o da coisa ao pensamento (representag4o), pela qual a representagao fica no lugar da coisa, absorvendo um a um seus atributos (as notas da substancia, dos acidentes etc.); a redugdo da linguagem ao ensamento, pela qual se mostra que sao co-extensivos e que nenhum hiato os separa (a forma “S é P” da légica reaparece na gramatica, sendo equivalentes as nogées de sujeito, verbo-cépula e predicado). Tudo se passa como se ambas as redugées nao constituissem proble- ma; porém, cedo a gramatica geral vai deparar-se com a dificuldade rela- tiva ao proprio arbitrério da linguagem, visto que ela nado observa por toda parte as mesmas regras de expresso do pensamento, sequer as mesmas regras de significacao da coisa. Certo, admitem os MM de Port- ‘Royal, Beauzée e Condillac, no diverso das linguas vivas ha diferencas notaveis quanto 4 maneira de exprimir as idéias (aqui, a ordem é simples e direta, como a do pensamento; 14, a ordem é invertida), diferengas in- criveis quanto a forma de significar as coisas (aqui, dois géneros; la trés), diferencas extraordindrias quanto ao génio das linguas (algumas sao ana- \iticas; outras, sao transpositivas) etc. Mas, nem por isso, estamos perdi- dos em nosso esforco de axiomatizacao. Com efeito, seo elemento sobre o qual opera a linguagem € o signo, a unidade elementar de sentido é a proposigéo — admite-se. E mais: a forma légica “S é P” da proposicao esté para a gramatica, assim como 05 juizos de atribuico estao para a metafisica. Por fim, deve-se reconduzir (reduzir) as formas derivadas e desviantes & forma padrao elementar, tida como “subentendida”. 1° passo: trata-se de mostrar que a ordem analitica do pensamento é a ordem natural da linguagem e de sua unidade de sentido elementar: a proposigao ("Sem este protétipo original e invaridvel — escreve Beau- zée —, nao poderia existir nenhuma comunicagao entre os homens das diferentes idades do mundo, entre os povos das diversas regiGes da terra, nem mesmo entre dois individuos quaisquer, porque eles nao teriam um 182. termo imut4vel de comparacao, para remontar seus procedimentos ret pectivos. A sucesso analitica das idéias é o fundamento tnico e invaria: vel em todas as linguas imagindveis. Aniquilada a ordem analitica, a8 regras da sintaxe sdo por toda parte sem razio, sem apoio, e cedo elas = sero sem consisténcia, sem autoridade, sem efeito; as palavras, sem relas c&o entre si, ndo produzem mais sentido; a linguagem nao seré mais que um vao ruido”*). 2? passo: trata-se de reduzir a ordem transpositiva a ordem analitica, i tomando-a como um “desvio” da ordem natural do pensamento (como 0 grego, o alemio e o latim, linguas em que temos uma marcha livre na disposigio das palavras, sem observar necessariamente a ordem natural da sucesso das idéias). 3° passo: trata-se de mostrar que a ordem simples é a ordem natural da linguagem, porque ela segue a ordem natural do pensamento e a maneira pela qual a natureza dispée as coisas (como se sabe, 0 apelo aos ptincfpios de economia e de simplicidade é um lugar comum em fisica, assim como em gramética: a exemplo da natureza, que opera de uma forma simples e econdmica no mundo das coisas, percorrendo a menor distancia entre dois pontos, que é a linha reta etc., a linguagem pauta-se pela lei do menor esforgo, e prefere a construgao simples e direta a com- plexa e.invertida...) 4° passo: trata-se de reduzir a ordem figurada a ordem simples, mos trando que os tropos néo sio anomalias, mas desvios das construgées simples que nelas estao subentendidas ou pressupostas ("as figuras sio maneiras de falar afastadas daquelas que sao naturais € normais”— escre= ve Du Marsais; entretanto, “nao ha nada mais natural, mais normal e mais comum do que as figuras na linguagem dos homens”), Por que isto? Por que 0 desvio é tao natural quanto a construgio simples e direta e a ordem analitica? Porque, tudo bem considerado, 0 qué estd na raiz dos desvios é algo “natural” — as perturbationes animi de uma natureza humana que se vé a todo momento diante da vivacidade da imaginacio, da agilidade ou rapidez do pensamento, da acéo das idélas acess6rias, da injuncéo do gosto ou do estilo, etc. — que nos forgam B- abandonar as construgdes da razao em favor das estruturas correlati das paixdes, das emogoes e do gosto. £ 0 que nos mostra Du Marsal seu Traité des Tropes, no qual afirma que os tropos dao mais energia nossas expressdes, ornamentam 0 discurso, tornando-o mais nobre, vem para suavizar ou disfarcar as idéias duras, desagradaveis, tristes: 43, Apud GUSDORE, G. L’avinement des sciences humaines ... p. 312. 44, Apud GUSDORF, G. op. cit. p. 317. eontrarias A modéstia, e por isso mesmo enriquecem uma lingua ao mul- tipliear o uso de uma mesma palavra‘ — e, enquanto tais, fazem parte mais da psicologia dos afetos do que da gramética pura. Entretanto, no rastro do hiatus uso/razao e signo/idéia atestado pelas gramiticas particulares, cedo se introduz um conjunto de perturbacées que vao acabar por comprometer todo o projeto da gramitica geral e por levar a ruina o principio da fundamentacio suficiente do conhecimento. De um lado, as gramiticas particulares nos mostram, como diz Dauzat, que “nao hd mais légica na construcio francesa que pée 0 verbo entre o sujeito e o complemento do que nas construcGes alemas que reenviam 0 verbo ao fim da frase, ou nas formulas interrogativas que colocam o su- jeito depois do verbo, ou na frase turca que introduz o complemento antes do verbo”. Tais ocorréncias nado passam de uma questdo de uso, nas quais vamos encontrar, nao as leis a priori de uma razao legisladora de direito anterior a todas as linguas,. mas antes uma interdependéncia e mesmo um hiato entre o pensamento e a linguagem. Criado a servigo do pensamento, © signo retroage sobre ele e tende a ter um valor proprio, sem que uma forma fixa Ihe possa ser atribuida, acrescentando a idéia representada e 4 forma canénica "S é P” uma nogéo de sexo, de pessoa, de nimero, de tempo, de modo etc., estranhas a elas — as vezes em duplo, em triplo, em quddruplo. Em conseqiiéncia, nao ha uma equivalén- cia exata entre a palavra e a idéia; nao sendo o veiculo, ela nao passa de um instrumento sempre imperfeito, que permite a significacdo e a trans- missao das idéias’”. De outro lado, mais ainda que no dominio da sintaxe, é no nivel da semantica que o hiato uso/razdo e signo/idéia leva o projeto da gramatica geral 4 ruina, impedindo uma formalizacao estrita de sua axiomatica, com base num cAlculo a priori do significado (signo) a partir da sintaxe do juizo (idéia). E 0 caso do francés “reprise” de que nos fala Dauzat, termo que “evocara uma idéia diferente num dramaturgo, num pianista, num esgrimis- ta, num notério, num tatico, num cambista ou numa doméstica”*. E 0 caso também da palavra “saber” em francés (savoir), que guarda sempre o sentido abstrato de “conhecer” e que em latim (sapere) encerra uma dupla acep¢ao: “conhecer” (sentido abstrato) e “sabor” (sentido concreto de ter o sabor, sentir um sabor)”. E enfim da palavra “Deus”, que no inicio, em varios grupos lingiiisticos, significava “o brilhante”, designando 0 “céu luminoso” 45. Apud GUSDORE, G. op. cit. p. 317. 46. DAUZAT, A. La philosophie du langage. Paris: Flammarion, 1917, p. 13-14. 47. Ibidem. p. 22. 48. Ibidem. p. 19. 49, Ibidem. p. 21. e nos sugerindo algo como a “divinizagao dos céus”™, e mais tarde, sob 0 impacto do cristianismo, significaré um ser todo-poderoso, onisciente e ab- solutamente bom, significagao 4 qual se acrescentam na modernidade, ao fiat e a lex do demiurgo legislador da tradigio judeu-crista, os atributos do geémetra, do arquiteto e mesmo do grande relojoeiro dos teistas do século XVIIL Estando o campo semantico destas palavras balizado por fatores his- t6rico-culturais, fatores eles mesmos varidveis, é rigorosamente impossivel uma formalizacio plena da axiomitica: nem é completa a determinagéo da coisa, sequer é sem lacuna a proposicio. Assim, de perturbagao em perturbacio, a gramitica geral vé-se levada a circunscrever seu objeto nos quadros-de uma metalingua universal (a azo) que em sua idealidade se encontra dissociada das linguas concretas vivas e protegida da acao contingente e extrinseca de fatores que, embora nao sejam propriamente lingitisticos, agem sobre ele. Isto, num sentido muito préximo de Leibniz que, na sua Characteristica, queria expurgar todos os verbos, salvo 0 verbo ser, e nos oferecer um espaco ideal onde, livre das perturbag6es da empiria, a forma légica “sujeito-copula-atribu- to” (’S é P”) seria absolutamente valida (Brugman). Ora, foi justamente em nome desta metalingua universal (a razao), a procura da forma “subentendida” “S é P”, na qual a gramatica coincide com a légica, que os gramaticos modernos, segundo Dauzat, torturaram de tal maneira a linguagem que nos é impossivel reconhecer uma lingua no sentido forte, qualquer que seja ela: “Conhecemos os estranhos racio- cinios que consistem em dizer que ‘je marche’ esté para ‘je suis marchant’ e que levam a descobrir — a inventar — as proposigdes cujos termos essenciais esto subentendidos”, como na frase “une brise faisait frissonner les arbres au bord de la route”, onde “as cinco tltimas palavras séo ana- lisadas assim: proposicao incidente explicativa eliptica — sujeito: qui (su- bentendido); verbo: étaient (subentendido); atributo: situés (subentendido), completado por: au bord de la route”. Assim, no fim da anélise ldgica, aquelas palavras se transformaréo em “les arbres qui étaient situés au bord de la route” (!), do mesmo modo que “je chante” torna-se “je suis chantant” na Gramdtica de Port-Royal". Tal é portanto o resultado ao qual chega a gramitica geral: um metadiscurso constituido de um corpus de significado sem significante, pleno de elipses, de desvios e de subentendidos, porém reconduzidos a forma intangivel sujeito-verbo-atributo, que no seu esforgo de vencer 0 hiatus uso/raz4o e signo/idéia nao hesitou em sacrificar o pr6prio refe- rente, para se encerrar no céu platénico da razdo. 50. DAUZAT, A. op. cit. p. 28. 51. Ibidem. p. 317, n. 1. 155 No entanto, este néo era 0 tinico caminho possivel para a gramatica geral; mais além desta apofantica de linhagem platénica, que reduz a linguagem ao pensamento, ha ainda a possibilidade de uma apofantica de tipo aristotélico, que reduz a linguagem coisa mesma, como vao fazer mais tarde Bertrand Russell e o primeiro Wittgenstein, falando-nos de uma correspondéncia termo a termo das palavras as coisas. Todavia, vao reaparecer as mesmas dificuldades: determinativos de sentido sem refe- rente, 0 rodeio dos tropos, as ambigtidades, as polissemias... Ora, nos dois casos, com tantos desvios, subentendidos e excecdes, acompanhando a reducao da linguagem 8 razéo toda sorte de perturba- c6es (hiato signo-idéia; hiato sentido-referente etc.) e terminando as pala- yras, como dizem Descartes e Platao, por estorvar 0 pensamento e se dissociar das coisas mesmas, nao seria com efeito mais eficaz, com Swift, eliminar de uma vez por todas as palavras do comércio dos homens e por num saco as coisas mesmas, terminando assim com as intermindveis dis- putas acerca da verdade das palavras e da imprecisao da linguagem? Pois, assim, reportando-se diretamente as coisas, sem passar pelo rodeio das representacdes, o pensamento nao correria o risco de tantas incompreensées e mal-entendidos: bastaria colocar num saco as coisas mesmas. IV CONCLUSAO: A ESTRATEGIA ESSENCIALISTA E O PRINCIPIO DA FUNDAMENTAGAO SUFICIENTE O século XVII é 0 tempo em que a idéia de método exerceu um fas- cinio sobre os espiritos como em nenhuma outra época. E é também o tempo em que, na esteira dos discursos sobre 0 método e dos tratados sobre o entendimento humano, os Elementos de Euclides foram celebrados como 0 verdadeiro método em sua mais alta exceléncia, qualquer que seja © dominio a que se aplique, dos seres de raz4o das matemiaticas as exis- téncias reais do mundo das coisas e dos homens. A exemplo do Iégos, 0 método geométrico segue sendo um méthodos, um caminho para a verdade, mas dele se espera algo de diferente: um método de descoberta antes de ser de prova, um método que ao instalar a verdade nos d4 também o index de sua certeza, oferecendo-nos sua caugdo ou garantia. Com esta inflexdo, ficam associados método de descoberta e de pro- va, por um lado, verdade e certeza, por outro. “Podemos ter trés objetos principais no estudo da verdade — escreve Pascal: um, 0 de descobri-la, quando a procuramos; outro, o de demonstré-la, quando a possuimos; 0 ‘iltimo, 0 de discerni-la do falso, quando a examinamos”. Para levar a bom termo esta operacéo que se passa toda ela no interior do espirito, nao temos outro caminho sendo tomar como ponto de apoio as definigées e as demonstracées: 0 verdadeiro método em sua mais alta exceléncia — con- tinua — consiste “em definir todos os termos e em demonstrar todas as proposicées”. Entretanto, a diferenca de Descartes, Pascal ndo acredita que esta exceléncia se possa realizar em dominio de conhecimento algum, qual- quer que seja ele, de modo que a verdade, na impossibilidade de tudo definir e de tudo demonstrar, deve encontrar seu index alhures, na intui- cao, onde é a propria “natureza” que a sustenta, na falta do discurso!. A ,__ 1. LALANDE, A. Les théories de Vinduction et de lU'expérimentation. Paris: Boivin & Cie Editeurs,1929, p. 265, n. 1. 187 ‘esta conclustio Pascal parece ter chegado ao examinar as Regulae Ingenii, obra em que Descartes afirma que sao duas as vias para se instalar a verdade: a intuiggo e a dedugdo — oferecendo-nos a intuigao os elos (as naturezas simples); a dedugao, a cadeia de razées, cujo ponto de apoio so as definigdes e as demonstragées. Porém, como o faz notar Lalande, Pascal af é vftima de um equivoco profundo. Ele supunha, malgrado Descartes, que “o discurso, a definigao e a demonstragao encerravam por si mesmos alguma virtude intrinseca de verdade!, como se eles nao fossem instru- mentos, remédios contra a confusao das idéias ou a incerteza das propo- sigdes, meios de transporte, como tinha visto tao bem Descartes, veiculan- do a clareza ou a necessidade!”*, Ao ligar intimamente a verdade e a prova e por conseguinte a definigao e a demonstragao, Descartes tinha razao, sob este aspecto, sobre Pascal, estima Lalande: “Nao ha outro método para alcangar-se a certeza sendo suspender provisoriamente nos- sos pensamentos e aceitar em seguida, um a um, os que nao oferecam nenhuma raz4o especial para ser considerados suspeitos”, consistindo a clareza e a distingao, pois, no index ou na credencial da verdade’. Coisa estranha o destino das opinides, dizia Hume a respeito da idéia de causa eficiente em Descartes e Newton e da teoria das causas ocasio- nais em Malebranche: “Descartes insinuou essa doutrina da eficacia uni- versal e anica da Divindade, sem insistir nela. Malebranche e outros cartesianos a tomaram por fundamento de toda a sua Filosofia. Na Ingla- terra, porém, ela néo gozou de nenhuma autoridade. Locke, Clarcke e Cudworth nem sequer tomam conhecimento dela, mas supdem sempre que a matéria tem um poder real, se bem que subordinado e derivado. Como foi que essa opiniao veio a prevalecer de tal modo entre os nossos metafisicos modernos?”*. Algo semelhante aconteceu com o método geométrico. A despeito das reservas de Descartes, que toma as definigGes e as demontragdes como instrumentos ou remédios contra as debilidades do espirito, que em va- rias ocasiées reafirma a superioridade da intuicgio sobre o pensamento discursivo e que enfim se recusa a encerrar a providéncia divina nas “prises de la raison”, falando-nos de seus mistérios e designios insondé- veis — cedo a idéia de demonstrac4o absoluta assentada na exigéncia de tudo definir e de tudo demonstrar, de que nos fala Pascal, vai comandar a Episteme. Um bom exemplo disso, vimo-lo, € 0 racionalismo absoluto de Espinosa, onde n4o ha mais lugar para os mistérios, as opacidades e as indeterminagées do ser, tudo devendo dobrar-se — do mundo das 2. LALANDE, A. op. cit. p. 255-256. 3. Ibidem. p. 255. 4, HUME, D. “Investigacéo sobre o entendimento humano”. In: — Berkeley/Hume. S50 Paulo; Abril Cultural, 1973. p 158, n. 15. coisas ao mundo dos homens — 4 transparéncia da razdo e sua expopigal more geometrico. O resultado é um discurso absoluto que vai buscar seus cAnones em principios fundamentais: 1) o principio da completude ou da sufiel ldgica das proposig6es; 2) o principio da determinagao completa da @ Operando com definigées essenciais (pois 0 espirito tem em vista coisa) e dedugées sistemdticas (reduzida a coisa a idéia, o espfrito por percorrer cada um de seus elos, sem a necessidade de sair de si e recor a um arquétipo externo ou a uma instancia extradiscursiva), é a prép demonstrac4o que instala a verdade, constitui a prova e instaura a cert za. Nestas condicées, uma axiomitica é dita completa e o conhecimen absoluto e sem lacunas — sublinha Blanché — “quando, de duas p! menos uma nao pode ser demonstrada. Se tal sistema é, além disso, sistente, vé-se entao, para todo par formado, no interior do sistema, att vés de uma proposicéo qualquer e sua negacéo, que se pode semp demonstrar uma, e somente uma. Ou em outras palavras: diante de proposicao qualquer do sistema, pode-se demonstré-la ou refutéd-la, dir por conseguinte quanto a sua verdade ou 4 sua falsidade em relat ao sistema de postulados. De um tal sistema diz-se que ele é decidf Toda a dificuldade de uma axiomitica assim entendida consiste pt em estabelecer como chegar aos primeiros principios que deflagra a cha discursiva e como dar aos principios de pensamento o valor de t principio de realidade, sem o que nao é possfvel assimilar a verdad material das proposic6es 4 verdade formal de seu encadeamento légle e, assim, instalar a prova junto com sua certeza. Ora, para Descartes, nao é necessdrio que o ponto de partida do d curso possua por si mesmo uma certeza apoditica; basta que ele seja’ gicamente consistente e que 0 conjunto das proposicées consideradas dele deduzido necessariamente. No limite, podemos até mesmo adi hipdteses falsas como ponto de partida, sem que sua falsidade afel marcha especulativa do espfrito. Demais, nas Regulae Ingenii, ele estal ce que o ponto de partida pode ser obtido seja por intuicdo, seja dedugdo, ao cabo de uma reducgao analitica que, embora nao tao seg quanto a intuigéo, pode todavia nos levar até ele. Por fim, conclui q intuigéo nos da a posse da verdade, a deducio os titulos de sua cert e as credenciais da prova: a demonstraqao. Aos olhos de Descartes, a exceléncia da intuigao, e mesmo sua rioridade sobre a deducdo, conforme o observou Gilson no seu 5. BLANCHE, R. L’axiomatique. Paris: PUF, 1958, p. 42-43. 6. GILSON, EB, (In D TES, R. Discours de la méthode). estudo, se funda nas trés propriedades que a definem: “a) a de ser um ato do pensamento puro (por oposigao a percepcao sensivel)”; 2) “a de ser infalivel, na medida em que é mais simples ainda que a dedugo, a qual nao é outra coisa senao a progressdo espontanea da luz natural”, proce- dendo em geral através de longas cadeias de inferéncias e raciocinios; 3) “q de se aplicar a nao importa qual objeto que caia sob os atos simples do espirito, vale dizer: em primeiro lugar, os juizos, tais como “eu penso’, ‘eu existo’, ‘o triangulo tem trés angulos’ etc; em segundo lugar, as relagdes entre os juizos, tais como ‘2+2=3+1 e outros semelhantes’”*. Ea intuicéo que vai oferecer-nos 0 corpus dos principios primeiros da axiomatica — os postulados — eles préprios indemonstraveis — o que, longe de ser o signo de uma insuficiéncia, é antes a marca de sua solidez, a tal ponto que podemos introduzi-los no inicio da cadeia de razées e, por causa de sua evidéncia, fazer deles uma sorte de alavanca, um instrumento capaz de comunicar sua certeza a todo o resto da malha dedutiva. Esta capacidade é tanto mais forte que intuigao e evidéncia fazem parte do mesmo campo semantico (cf. intuitio, de intueri=olhar; e evidentia, de videre=ver, ver cla- ro); e desde entao a idéia de clareza intelectual (evidéncia) vai acompa- nhar a intui¢do cartesiana ¢ 0 corpus de postulados que ela nos oferece de uma forma firme e inabalavel. Mas nao nos deixemos enganar quanto ao seu papel e ao seu alcance na economia do discurso, pois Descartes sabia como ninguém que a intuicao por si s6 nao basta para fundar 0 juizo; este requer ainda os conceitos, que sdo produzidos pelo entendimento, com a ajuda das representagoes. A ala- vanca que dispée as representagdes em ordem é a deducao. Porém, 0 pro- blema da dedugao é que ela procede através de longas cadeias de racioci- nios, e a luz da sua evidéncia nem sempre acompanha cada um de seus elos, fatigando 0 espirito em seu esforgo de restituir os seus lacos. Ainda que sua luz seja débil, ela é um precioso instrumento de conhecimento e permite a progresséo do espirito 14 onde a intuigéo esta ausente. Uma marcha por vezes claudicante e instalando provas nem sempre probantes e por vezes falaciosas, 6 verdade, mas ainda assim é o menor dos males, pois sem ela o espirito poderia pouco conhecer, pertencendo a intui¢&o total e completa, que dispensa toda dedugdo a Deus, nao aos homens... Em contrapartida, em Espinosa 0 papel da intuigéo e da dedugao no 6 o mesmo, e delas se espera e se exige bem mais: da intuigdo, uma intuigao (total) do todo e nao dos elementos (as naturae simplices de Des- cartes); da dedugio, nado 0 remédio contra as debilidades do espirito ou um simples instrumento de conhecimento, mas 0 veiculo do saber abso- juto, Para instalar a verdade e instaurar a prova, o autor da Etica aperta 6, Texte et commentaire par E, Gilson, Paris: Vrin, 1947. p. 197. 160 ainda mais os lagos entre a intuico e a dedugao e apaga toda tensiioentie a intuitio e o discurso, oferecendo-se o ver originario nem num aquém de pensamento discursivo, a exemplo de Descartes, nem num além do dis- curso, como de certo modo na ascensao dialética de Plato, mas no inte: vior do préprio discurso em sua pura discursividade (“o olho do espirite sao as demonstragées”, diré Espinosa). Ja dotada dos atributos da intuigéo, e com a luz de sua evidénela acompanhando cada um dos elos da cadeia de razées, cedo a dedugia converte-se no tinico érgio do saber absoluto, como em Hegel. Na esteina desta inflexo, 0 espirito péde imaginar algo como uma axiomitica do Pensamento puro, tendo por ponto de apoio a definigio e a demonstra: S40, e somente elas. A sua condigao, como ja tinha visto Espinosa, era simplesmente a reducao da coisa 4 idéia, com 0 que o espirito poderia ater-se as notas intrinsecas da idéia, e a partir do jogo destas notas instalar a verdade junto com o index de sua certeza: a demonstracao. ‘ Leibniz e Kant, antes de Hegel, tinham tentado algo parecido, mas substituindo a intuicdo intelectual pela experiéncia ou intuicdo sensfvel, um elemento estranho ao pensamento puro, portanto. Um caminho ser as inconveniéncias da intuicdo intelectual e da intuigao sensfvel, vimo-lo, foi o dos “solitaires” de Port-Royal, que em sua Gramadtica se apdiam tio ~86 na definicéo e na demonstracao, mas 0 hiatus uso/razio e signo/idéia impediam a plena formalizagio do discurso 4 maneira de uma axiomética do pensamento puro. ___Restava pois percorrer 0 caminho da pura deducio e leva-lo até o fim, instalando algo como uma via de mao dupla: um movimento progressive (derivagao) que vai de verdade em verdade e encontra em si mesmo @ index da verdade ou sua medida; um movimento regressivo (reducio) que nos reconduz a um ponto de ancoragem tiltimo além do qual nos é im- possivel remontar — o princfpio. Dispondo de regras de derivacio estrl- tas, bem como de redugdo, uma axiomatica é dita completa e sem lacunas, quando sao consistentes seu corpus de enunciados e suficientes as notas do objeto fixadas na proposigao (determinacéo completa da coisa). Man pode esse ideal ser cumprido? saa Impossivel, dird Pascal, que nos mostra que este ideal néo pode ser levado a bom termo nem mesmo num dominio que aparentemente lhe & de todo favoravel — a geometria: “Esta judiciosa ciéncia — escreve = longe de definir as palavras primitivas: espago, tempo, movimento, maig- tia, diminuigao, todo, e outras que as pessoas compreendem por si Mei mas”, do mesmo modo que, ao chegar as primeiras verdades conhecldas, ela se limita a deter-se nelas e a nos pedir “para colocé-las em acordo, nao tendo nada de mais claro para prova-las”. Resultado: na impossiblidade de tudo definir e de tudo demonstrar, é a intuicio que sustém estas ver- dades e estes termos primitivos, e nao o discurso. Imposstvel, dira também Hume, que rompe 0 nexus dos juizos de atribuigdo com base na pura deducdo (necessidade l6gica): todas as nos- sas percepcées sao existéncias distintas; o problema & que a experiéncia nos oferece apenas 4tomos separados — as impressdes —, jamais a cone- xo real que liga uns aos outros. Ora, se a percepgao é uma existéncia separada, nenhuma substancia é necessdria para ancord-la; e com efeito, porque sao existéncias separadas, nao ha nenhuma impressao — nem de sensagdo nem de reflexéo — que nos permita ligé-las umas as outras. E aqui que reside toda a dificuldade: como se poderia fazer 0 nexus se nao se tem nem uma substancia a remontar (intuigdo intelectual), nem uma impressio de relagdo a reportar (dedugao)? Daf a impresséo de que o programa de fundagao do conhecimento ndo pode ser cumprido nem no campo dos seres de razdo das matemati- cas, nem no dominio das existéncias reais do mundo das coisas e dos homens. Isto, por causa da dificuldade de tornar coerentes os dois orgaos da via essencialista: a intuigéo e a dedugdo. De um lado, todo sistema axiomatico assenta-se sobre um “dado” anterior ao discurso, que nao é nem redutivel 4 légica e nem assimildvel 4 deducao: a intuic¢ao. De outro, todo sistema axiomitico instala um liame entre as idéias (conceitos), cujo nexo nao é nem “necessdrio” (ndo hé uma impressao de relagao que nos permita ligar as idéias entre si, diz Hume) e nem “evidente”: a deducao. Daf a impossibilidade de tracar um limite a regressdo formalizadora e formalizar a propria formalizagao: se se faz apelo a intuigdo, esta é “ex: terior” ao discurso; se se faz apelo & dedugao, as idéias sao “exteriores” a seus termos e nao hd nenhum vinculo de necessidade a ligar umas as outras. A vista destas dificuldades (levar a cabo a demonstragao com base na pura dedugao e eliminar de vez a jntuigao), Schopenhauer — escreve Blanché — vai julgar simplesmente absurdo o método de Euclides e esta mania de substituir a intuicio pelo discurso: “E como se um homem cortasse suas pernas a fim de melhor andar com muletas’— dird. Do mesmo mod6, fica justificada — continua —a célebre invectiva de Russell a respeito do formalismo: “A matemiatica é uma ciéncia onde nao se sabe jamais de que se fala nem se o que se diz é verdadeiro”’. Assim, sem a deducio a reportar e sem a intuicdo a remontar, 0 espirito vai buscar seus pontos de apoio na indugdo e ma experiéncia sensivel. E o que vamos mostrar em seguida, na andlise da estratégia fenomenista. 7. Cf. BLANCHE, R. op. cit. p. 17-18, 162 Segunda Parte ESTRATEGIA FeNOMENISTA_

Vous aimerez peut-être aussi