Vous êtes sur la page 1sur 449

Juventudes Contemporâneas

Um mosaico de possibilidades
© Juarez Dayrell, Maria Ignez Costa Moreira e Márcia Stengel (Organizadores)
Todos os diretos reservados.
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio
sem autorização escrita da editora.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Grão-Chanceler • Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Reitor • Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Vice-reitora • Patrícia Bernardes
Pró-reitoria de Pesquisa e de Pós-graduação • Sérgio de Morais Hanriot
Editora PUC Minas
Coordenação editorial • Cláudia Teles de Menezes Teixeira
Assistente editorial • Maria Cristina Araújo Rabelo
Revisão • Michel Gannan
Divulgação • Danielle de Freitas Mourão
Comercial • Maria Aparecida dos Santos Mitraud
Projeto gráfico e formatação • www.joseaugustobarros.carbonmade.com
Comissão editorial • João Francisco de Abreu (PUC Minas); Maria Zilda Cury (UFMG); Mário
Neto (Fapemig); Milton do Nascimento (PUC Minas); Oswaldo Bueno Amorim Filho (PUC
Minas); Regina Helena de Freitas Campos (UFMG)

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Simpósio Internacional sobre Juventude Brasileira (4. : 2010. : Belo Horizonte, MG)
S612j Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades / Organizadores:
Juarez Dayrell, Maria Ignez Costa Moreira, Márcia Stengel. Belo Horizonte: Ed. PUC
Minas, 2011.
448p.: il.
ISBN: 978-85-60778-71-3
1. Juventude – Aspectos sociais. 2. Juventude - Brasil. 3. Juventude – Comportamento
sexual. 4. Juventude e violência. I. Dayrell, Juarez. II. Moreira, Maria Ignez Costa. III. Stengel,
Márcia. IV. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
CDU: 362.8

Editora PUC Minas


Rua Dom Lúcio Antunes, 256 - Coração Eucarístico
30535-630 – Belo Horizonte MG Brasil
Tel.: 55 (31) 3319-9904 Fax: 55 (31) 3319-9907
www.pucminas.br/editora
e-mail: editora@pucminas.br
Juventudes Contemporâneas
Um mosaico de possibilidades

Juarez Dayrell
Maria Ignez Costa Moreira
Márcia Stengel
Organizadores

Belo Horizonte, 2011


Sumário

Prefácio . ................................................................................................................................................................... 8

Carta de Belo Horizonte............................................................................................................................ 10

Introdução............................................................................................................................................................ 12

A socialização da juventude
e os espaços institucionais
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias,
tensiones y emergencias ............................................................................................................................. 43
Marcelo Urresti

Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle social.................................... 67


Maria da Graça Jacintho Setton

Juventude e escola ......................................................................................................................................... 81


Mônica Dias Peregrino Ferreira

Entre sonhos e projetos de jovens, a escola... . ............................................................................. 99


Geraldo Leão

Juventude, trabalho e educação:


crônica de uma relação infeliz em quatro atos ........................................................................ 117
Naira Lisboa Franzoi

Participación en proyectos y desarrollo integral


de adolescentes y jóvenes........................................................................................................................ 135
Olga Nirenberg
Juventude, sexualidade, gênero e violência
Visibilidade e invisibilidade do trabalho
de garotos de programa .......................................................................................................................... 163
Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Geraldo Pereira da Silva Junior

O lugar dos homens e das masculinidades


no debate sobre juventude..................................................................................................................... 181
Jorge Lyra

Enigmas do medo – juventude, afetos e violência ............................................................... 209


Glória Diógenes

Casamento forçado e violência. O contexto francês............................................................ 229


Edwige Rude-Antoine

Adolescentes, jovens, direito e família: questionando


saberes sobre proteção a direitos sexuais e reprodutivos.................................................. 251
Mary Garcia Castro
Ingrid Radel Ribeiro

Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar


e o lugar da jovem mulher no ensino médio............................................................................. 273
Wivian Weller
Iraci Pereira da Silva
Nivaldo Moreira Carvalho
Participação juvenil e a dimensão dos direitos
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades
políticas de ser jovem hoje..................................................................................................................... 299
Lucia Rabello de Castro

Notas sobre o passe livre e o poder e fazer de uma juventude...................................... 325


Leo Vinicius Maia Liberato

Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes:


os chamados “movimentos” juvenis circunscrevem
um sujeito político na contemporaneidade?............................................................................. 347
Marco Aurélio Maximo Prado
Juliana Perucchi

Juventude e saúde: concepções e políticas públicas............................................................. 361


Cássia Baldini Soares

Sobre a participação da família no processo socioeducativo......................................... 379


Hebe Signorini Gonçalves

Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente


e as políticas para infância e juventude.......................................................................................... 399
Benedito Rodrigues dos Santos

Juventude, pesquisa e extensão:


interfaces, diálogos e possibilidades ............................................................................................... 427
Sônia M. Gomes Sousa

Sobre os autores ........................................................................................................................................... 444


8

Prefácio

O IV Jubra - Simpósio Internacional sobre Juventude Brasileira: juventu-


des contemporâneas, um mosaico de possibilidades, foi realizado nos dias 16 a 18
de junho de 2010 na PUC Minas com o objetivo de evidenciar a pluralida-
de da juventude e os diversificados olhares do campo das ciências e da so-
ciedade sobre esse segmento, que apresenta múltiplas possibilidades como
sujeitos que contribuem para a transformação social. A sua programação
incluiu três dias de debates, com mesas-redondas, painéis e grupos de traba-
lho em torno de dez eixos temáticos, agregando pesquisadores brasileiros e
estrangeiros, estudantes das mais diversas áreas, como psicologia, educação,
ciências sociais, ciências da saúde e saberes afins; bem como profissionais
dos campos da saúde, assistência social e educação; profissionais de ONGs,
de fundações, de governo nos níveis municipal, estadual e federal e de as-
sociações da sociedade civil; lideranças jovens que estão à frente de grupos
e redes, dentre outros. Nesse sentido, o IV Jubra significou um importante
fórum para a discussão e a circulação de trabalhos de pesquisa e intervenção
no campo das juventudes, além de contribuir para a consolidação do campo
de estudos das juventudes no âmbito da pós-graduação brasileira.
Podemos destacar a exposição e a circulação das produções oriun-
das da pós-graduação através da apresentação das pesquisas resultantes dos
programas de pós-graduação, bem como da publicação desses trabalhos na
forma dos resumos e textos completos e agora na forma desta coletânea, que
divulga boa parte dos artigos apresentados nas mesas-redondas. Ao mesmo
tempo, o Jubra acolheu os trabalhos de iniciação científica e, na sua estrutura
de GT (Grupos de Trabalho), permitiu o contato de bolsistas de iniciação
científica com os alunos da pós-graduação, o que contribui para a promoção
da desejável articulação entre a pós-graduação e a graduação.
9

É importante destacar a participação de aproximadamente 150 jo-


vens inseridos em Projeto de Extensão Universitária da PUC Minas – Jubra
Jovem. Esses jovens, organizados em pequenos grupos, iniciaram em março
de 2010 um trabalho sobre a situação atual dos jovens, promovendo o diálo-
go e a reflexão crítica sobre a diversidade de práticas socio-históricas empre-
endidas por adolescentes e jovens no mundo contemporâneo. Estimulando
o debate em torno das temáticas propostas pelo simpósio, apresentaram no
IV Jubra o resultado de suas reflexões.
Outro aspecto significativo foi o lançamento da Carta de Belo Ho-
rizonte (anexa), um manifesto dos pesquisadores reunidos solicitando o
lançamento pelas agências de fomento à pesquisa de editais para pesquisa
interdisciplinar especificamente voltados para o tema da juventude.
Esperamos que esta coletânea possa contribuir para a disseminação
das reflexões em torno da juventude, fortalecendo o movimento existente
em prol dos direitos desse segmento da população, bem como para a am-
pliação e consolidação das políticas públicas voltadas para os jovens brasi-
leiros.

Os organizadores
10

Carta de Belo Horizonte

O Jubra – Simpósio Internacional sobre Juventude Brasileira é um


evento acadêmico, interinstitucional e interdisciplinar que congrega pesqui-
sadores brasileiros e estrangeiros para a discussão de pesquisas, programas e
projetos sociais referentes à juventude.
O objetivo primordial do evento é potencializar o fluxo de intercâm-
bios e ampliar a rede de cooperação entre pesquisadores brasileiros e estran-
geiros que estudam a temática a partir de diferentes referenciais e campos
de saber.
Além disso, pretende também produzir em curto, médio e longo
prazos impactos na produção de conhecimento e ampliar a troca de experi-
ências acerca das ações públicas e da sociedade civil no sentido de garantia
dos direitos dos adolescentes e jovens.
O Jubra foi realizado pela primeira vez em outubro de 2004, na Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. A iniciativa de realização partiu
do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Ado-
lescência Contemporâneas (Nipiac). Contou com o apoio institucional do
Comitê de Pesquisa Sociológica da Juventude da ISA (International So-
ciological Association), do Observatoire Jeunes et Société – Universidade
de Quebec e do Comitê da Infância e Juventude da IUAES (International
Union of Antropological and Ethnological Sciences).
O Jubra, em sua IV edição, tem como tema central “Juventudes con-
temporâneas: um mosaico de possibilidades”, contando com um público
composto por pesquisadores e estudantes de psicologia, educação, ciências
sociais, ciências da saúde e saberes afins; bem como profissionais dos campos
da saúde, assistência social e educação; profissionais de ONGs, de fundações,
de governo nos níveis municipal, estadual e federal e de associações da socie-
11

dade civil, lideranças jovens que estão à frente de grupos e redes, entre outros,
tendo em média 800 participantes e mais de 500 trabalhos inscritos.
O Jubra tem contado com o apoio das instituições oficiais de fo-
mento CNPq, Capes e das fundações estaduais de amparo à pesquisa. É um
evento que vem se consolidando como um importante espaço para os pes-
quisadores da juventude.
Considerando a importância da temática da juventude no contexto
da realidade brasileira e a relevância da produção de conhecimento cientí-
fico como subsídio para a elaboração de políticas públicas que respondam
às demandas e necessidades das juventudes, os pesquisadores da área, reu-
nidos neste IV Jubra, solicitam ao CNPq que lance um edital de pesquisa
específico sobre a temática da juventude, de caráter interdisciplinar, para po-
tencializar a produção científica na área.

Belo Horizonte, 18 de junho de 2010.


12

Introdução

Esta obra busca compreender a complexidade das juventudes


brasileiras na contemporaneidade, para além dos marcadores etários.
As juventudes são tomadas como uma categoria social transversalizada
pelas categorias de gênero, de classe social, de etnia e de geração, dentre
outras variáveis. Outro ponto que possibilita o diálogo entre os diver-
sos autores é a consideração de que os processos de subjetivação dos
jovens se desenvolvem em contextos socio-históricos nos quais são su-
jeitos ativos capazes de transformar esses contextos e, ao mesmo tempo,
transformarem-se a si mesmos. Os diversos autores afirmam em suas re-
flexões os jovens como sujeitos em construção, mas sujeitos também do
tempo presente e não somente como um “vir-a-ser” adulto. Os jovens
vistos como portadores de direitos e seres políticos capazes de intervir
no espaço coletivo revelam no cotidiano as contradições, os impasses e
os antagonismos nas relações com os próprios pares e com os demais
segmentos sociais, tornando visível, como um iceberg, a complexidade
da sociedade contemporânea.
Os artigos foram organizados em três blocos temáticos. No primeiro,
encontramos os trabalhos cujo eixo de reflexão refere-se à produção social
dos jovens, discutindo os processos de socialização em diferentes espaços
institucionais, como a escola, o trabalho e a mídia, com suas contradições,
possibilidades e limites. O segundo eixo trata da sexualidade, corpo e gêne-
ro e finalmente, no terceiro bloco, os autores se dedicam a compreender a
participação política dos jovens, a relação das políticas públicas de saúde e
de proteção destinadas aos jovens, o contexto de afirmação dos jovens per-
tencentes a um segmento social portador de direitos específicos. É o que
vamos comentar a seguir.
13

A socialização dos jovens e os espaços institucionais

Neste bloco foram agrupados os trabalhos que refletem sobre a pro-


dução social dos jovens, discutindo os processos de socialização em diferen-
tes espaços institucionais, como a escola, o trabalho e a mídia, ou mesmo
a participação em projetos sociais, com suas contradições, possibilidades e
limites.

A socialização da juventude

O texto de Marcelo Urresti, “Adolescentes, jóvenes y socialización:


entre resistencias, tensiones y emergencias”, reflete sobre as mutações exis-
tentes nos processos de socialização da juventude contemporânea, apon-
tando os desafios e impasses existentes. Para o autor, vem ocorrendo um de-
bilitamento das instituições socializadoras, o que aponta para um crescente
processo de autossocialização das novas gerações, cada vez mais autônomas
se as compararmos com as gerações anteriores. Mas, adverte ele, todo esse
processo é contraditório, promovendo também a reprodução da desigual-
dade social em novos termos.
Ao desenvolver o seu argumento, Urresti discute as fases da adoles-
cência e da juventude como momentos específicos de transição para a vida
adulta, marcados pela diversidade do contexto socioeconômico e cultural.
Ao discutir as mutações existentes nos modos de ser jovem, faz uma recupe-
ração histórica, situando a década de 1960 como um marco na construção
contemporânea da juventude na sociedade ocidental. Para Urresti, as expres-
sões das culturas juvenis, às quais dá especial atenção, tendem atualmente a
uma proliferação de formas e de estilos que fragmenta o espaço cultural, no
qual o alternativo, o minoritário e o disperso ganham cada vez mais relevo.
É esse contexto, acrescido das transformações socioeconômicas, que
explica o debilitamento da capacidade de socialização das instituições, den-
tre elas a família e a escola. Diante delas, ganham força os grupos de pares, a
14

indústria cultural, os meios audiovisuais e as tecnologias digitais, dentre ou-


tros, que facilitam o acesso a vozes múltiplas e a construção de mundos pró-
prios e identidades compartilhadas. Nesse contexto, os jovens tendem a se
tornarem independentes da opinião e do parecer dos adultos com os quais
interagem, com uma equiparação nas condições de informação e formação
e com a consequente redução das assimetrias com as gerações adultas. Todo
esse processo interfere nas instituições como a escola, pela falta de interesse
crescente dos jovens, ou o trabalho, no qual a ética da produção vem sendo
substituída pela ética do consumo.
Finalmente, Urresti nos adverte de que estamos diante de novas ex-
pressões da desigualdade social. Segundo o autor, em sociedades nas quais
os recursos materiais, afetivos, didáticos etc. são escassos ou estão desigual-
mente distribuídos, as possibilidades das distintas juventudes inserirem-se
socialmente tenderão a ser tão díspares quanto os suportes com os quais
possam contar, sendo necessário redefinir os sentidos das instituições edu-
cativas.
Com posições semelhantes a Urresti, Maria da Graça Setton reflete
em seu artigo “Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle so-
cial” sobre a dinâmica do campo da socialização e, em decorrência, do cam-
po das sociabilidades na contemporaneidade, discutindo a tensão entre os
agentes sociais e buscando apreender a luta simbólica de valores existente
entre eles.
A autora parte de uma discussão sobre as transformações institucio-
nais e culturais da realidade social contemporânea, evidenciando o ambiente
social no qual o jovem encontra condições de forjar um sistema de referên-
cias que mescla as influências familiar, escolar e midiática, dentre outras. Um
sistema de esquemas coerente, no entanto híbrido e fragmentado. Compre-
ende assim a socialização do jovem e, como decorrência, sua sociabilidade
entre os pares e com as mídias com base em uma perspectiva relacional de
análise e, sobretudo, com o apoio do conceito de fenômeno social total, forja-
do por Marcel Mauss.
15

A autora sustenta a hipótese de que jovens, sociabilidade e consumo


midiático podem encerrar tensas e intensas articulações entre subjetivida-
des e coerção social. Para ela, no caso específico das investigações de ordem
sociológica, a complexidade derivada da diversidade das dimensões estru-
turais e simbólicas do mundo social torna-se por vezes obscura, em função
dos imponderáveis da ação e da criação dos sentidos dos sujeitos sociais.
Isso posto, a sociabilidade jovem através do consumo midiático deveria ser
pensada em sua ambiguidade constitutiva – ora oferecendo margens para a
construção de uma identidade jovem autônoma, ora fortalecendo o contro-
le e a tirania do grupo de pares.

As relações entre juventude e escola

Dois artigos discutem as relações entre juventude e escola, com po-


sições que se complementam. O primeiro deles, de Geraldo Leão, intitulado
“Entre sonhos e projetos de jovens, a escola...” centra sua análise na realidade
do ensino médio brasileiro, evidenciando os limites da escola pública na sua
tarefa de garantir o acesso a uma educação de qualidade como um direito de
todos os jovens.
Ao desenvolver o seu argumento, Leão constata a expansão da esco-
larização, em especial do ensino médio, ocorrida no Brasil a partir dos anos
1990, o que gerou, dentre outras consequências, a entrada de um novo con-
tingente de jovens alunos que antes não tinham acesso a esse nível de ensino.
Passam a trazer para o interior da escola as tensões e contradições de uma
sociedade marcada pela desigualdade. Nesse sentido, evidencia o autor, um
dos desafios da escola pública é reconhecer o jovem existente no aluno, ou
seja, as trajetórias juvenis, suas práticas sociais e culturais, sua relação com o
mundo do trabalho, com os amigos e com o lazer, dentre outras dimensões,
como condição para compreender os sentidos, motivações, atitudes e práti-
cas que desenvolvem na sua inserção em processos educativos, que é muito
diferente dos jovens alunos das gerações anteriores.
16

Ao mesmo tempo, denuncia as contradições existentes nesse pro-


cesso de expansão do ensino médio, no qual persistem os altos índices de
desigualdade social. Esta aparece na precariedade da estrutura física e do
funcionamento das escolas, na precarização da condição docente, dentre
outros fatores que apontam para a existência de uma pedagogia da precarie-
dade. Conclui que a expansão da escolarização no Brasil representou muito
mais um quadro de massificação da educação, de expansão do acesso, do
que um processo real de democratização.
Nesse contexto, passa a analisar a relação dos jovens com a escola, evi-
denciando que as motivações e sentidos em relação à escola parecem resultar
da conjugação entre o quadro mais amplo das relações sociais em que eles se
inserem e aspectos ligados à trajetória individual e familiar. Dependendo dos
suportes a que têm acesso via apoio familiar, redes sociais e institucionais, os
jovens podem tecer diferentes modos de ser estudante, expressando um conti-
nuum diferenciado de posturas na sua relação com a escola. Sobre os projetos
de futuro, constata que os jovens manifestam uma gama diferenciada de de-
sejos e sonhos, uma diversidade de projetos, sentidos e motivações que pode
ser a expressão dos conflitos de uma sociedade que expandiu a escolaridade e
o consumo, mas no contexto de baixas perspectivas de mobilidade social, na
qual persiste a reprodução da desigualdade social.
A escola pública, conclui o autor, parece estar diante de um dilema.
Ela pode continuar prometendo ser um passaporte para um futuro distante,
do qual os jovens desconfiam, tendo em vista que a sua experiência lhes en-
sina que o futuro é incerto nessa sociedade. Por outro lado, ela pode ser uma
referência para os jovens, o lugar de acolher e discutir com eles seus medos,
angústias, dilemas e alternativas. Para isso, um primeiro passo seria reconhe-
cer os jovens alunos nas suas especificidades e identidades.
Em outra perspectiva analítica, o artigo de Mônica Peregrino, “Ju-
ventude e escola: elementos para a construção de duas abordagens”, ao tratar
também da relação dos jovens com a escola, chega a conclusões semelhan-
tes às de Leão, principalmente no que diz respeito à produção das desigual-
17

dades escolares. A autora busca analisar as consequências da expansão da


escolarização ocorrida no Brasil no ponto de vista dos jovens, perguntando-
se sobre os tipos possíveis de escola que surgiram com tal expansão e sobre
as experiências de escolarização que tal instituição passou a proporcionar.
Ao mesmo tempo, pergunta-se em que medida a escola amplia as possibili-
dades de experimentação da condição juvenil.
A análise de Peregrino nos mostra que o processo de expansão es-
colar das últimas décadas é baseado na lógica do “fazer mais com menos”, a
exemplo de Leão, fazendo com que a expansão das vagas pela “aceleração”
dos processos de aprendizagem e do tempo de habitação da escola pelo jo-
vem antes excluído desta não agregue valor aos processos de escolarização.
Dessa forma cria-se, dentro das instituições, uma espécie de “habitação” es-
colar sem escolarização, constatando-se que a expansão da escolarização,
nessa lógica, vem perpetuando a reprodução das desigualdades escolares.
Segundo a autora, uma das formas mais importantes de manifesta-
ção de tais desigualdades refere-se à existência, dentro de um mesmo espaço
institucional, de “modos” diversos de escolarização, seja o modo pleno ou o
precário. Esses modos implicam trajetórias diferentes e desiguais no interior
de uma mesma instituição e possibilidades desiguais de apropriação dos co-
nhecimentos que a escola devia, por princípio, disseminar, de acordo com
o modo de escolarização ao qual se é submetido. Nesse sentido, a escola
estaria instalando uma “nova” forma de desigualdade, indicando possibili-
dades desiguais de enraizamento institucional, e, portanto, disponibilidade
desigual e limitada de incorporação dos jovens por parte da instituição.
A partir daí Peregrino se pergunta pelo lugar que essa escola ocupa
na vida dos jovens. Para a autora, a escola ocupa um lugar importante prin-
cipalmente na sua relação com outras instituições igualmente importantes
nos processos de transição dos jovens para a vida adulta. Constata que a ex-
periência de escolarização, combinada a outras variáveis, a outras modalida-
des institucionais, produz efeitos diversos, mesmo quando se tomam como
referência posições sociais semelhantes.
18

Juventude, trabalho e participação

Outra instância de socialização analisada nesse bloco é o trabalho,


no artigo “Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz
em quatro atos” de Naira Lisboa Franzoi. Nele, a autora busca analisar a rela-
ção entre juventude, trabalho e educação, discutindo a histórica negação das
especificidades do trabalho e do aluno trabalhador pela escola pública, as
complexas relações entre a qualificação profissional e a inserção no mundo
do trabalho, as modalidades de oferta de ações de qualificação profissionais
escolares e não escolares para jovens e as possíveis relações com a escola.
Finalmente, analisa algumas experiências exitosas de educação profissional,
apontando certos elementos para uma formação integral dos jovens na sua
relação com o mundo do trabalho.
Ao longo do texto, a autora reitera as análises de Leão e Peregrino
ao evidenciar que a escola pública, composta em grande parte por alunos
trabalhadores, não leva em conta no seu cotidiano a realidade do trabalho,
muito menos as demandas e necessidades dos jovens alunos, reproduzindo
no seu interior a histórica negação do trabalho na tradição cultural brasileira.
Essa realidade reforça a ausência de sentido da escola para os jovens, que
projetam um futuro melhor através das credenciais escolares, mas não con-
seguem conectá-lo ao presente. Para Franzoi, os jovens alunos trabalhadores
são estrangeiros em uma escola que não fala sua língua.
A falta de opções de uma educação profissional pública de qualida-
de tende a “empurrar” boa parte dos jovens para qualquer curso de qualifi-
cação profissional, grande parte deles de qualidade duvidosa. A autora cons-
tata que, embora busquem a profissão desejada no plano de suas iniciativas
formativas, as condições objetivas não são favoráveis a ponto de permitirem
alcançá-la no plano de sua inserção no mercado de trabalho. Significa dizer
que a relação entre formação e emprego não é linear, e as credenciais e a
formação atuam de modo diferente segundo redes de pertença social, cul-
tural, familiares ou locais, dentre outras variáveis. Para Franzoi, a certificação
19

adquirida nesses espaços se assemelha a “uma senha para uma fila de espera”
que pode não chegar ao seu fim ou que pode apontar em uma direção bas-
tante diferente daquela para a qual o indivíduo se preparou.
Finalmente Franzoi analisa algumas experiências educativas consi-
deradas exitosas, evidenciando que a escola pública pode vir ao encontro
das demandas e anseios dos jovens e que é necessária uma vontade polí-
tica para que o novo possa nascer do velho. Ao descrever algumas dessas
experiências, ela vai pontuando alguns aspectos considerados essenciais.
Em termos mais gerais, lembra a autora, é fundamental um reforço na ofer-
ta de ensino técnico de nível médio e de ensino médio integrado e, nestes,
criar uma rede de suporte aos jovens alunos, por meio de bolsas associadas
a estágios efetivamente supervisionados e/ou outros tipos de auxílio, como
alimentação, transporte, entre outros. Em termos da organização curricular,
ela pontua a necessidade de formar os jovens não apenas para o consumo ou
adaptação de tecnologias, mas também para a sua produção. Nesse sentido,
torna-se necessário educar cidadãos capazes de intervir, em diferentes níveis,
nos rumos dados à sua produção e utilização.
Outro aspecto é a necessidade de superar a visão reduzida de ensino
para articular, de forma orgânica, o ensino e a pesquisa produzida no pró-
prio processo de formação. Acrescenta-se ainda a importância da formação
cultural dos jovens, em uma articulação entre ciência, tecnologia e cultura,
levando para a escola pontos de contato com a identidade juvenil. Conclui
evidenciando a importância de a escola deslocar a ênfase das carências dos
alunos, daquilo que lhes falta, para o que os alunos já trazem, para as suas
experiências socioculturais, ou seja, reforça a posição de Leão ao lembrar a
necessidade de a escola reconhecer o jovem existente no aluno.
Finalmente, o último artigo desse bloco, “Participación en proyectos
y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes”, de Olga Niremberg, trata da
participação dos jovens em projetos sociais, um âmbito muito presente na
socialização dos jovens, principalmente dos mais pobres, trazendo uma rica
reflexão sobre possíveis critérios para sua avaliação.
20

Ao desenvolver seus argumentos, a autora faz uma crítica às formas re-


duzidas de compreensão da juventude como etapa de preparação para a vida
adulta ou a sua patologização, advogando a compreensão dessa fase da vida na
sua diversidade, com ênfase nas suas potencialidades. A autora, ao analisar e ava-
liar projetos sociais na América Latina, ressalta algumas categorias que deveriam
estar presentes nas ações socioeducativas. Uma delas é a resiliência, entendida
como a capacidade humana para enfrentar, superar, aprender, fortalecer-se e
transformar-se a partir das situações mais adversas. Associado a ela, propõe o
enfoque de habilidades para a vida como uma estratégia sinérgica para enfrentar
riscos e adversidades e contribuir para o desenvolvimento integral dos jovens.
Depois de discutir a importância da noção de capital social e capital
humano nos projetos sociais, a autora defende a necessidade de estratégias para
favorecer o empoderamento dos jovens, como meio de alcançar níveis mais
altos de autonomia e liberdade, possibilitando a construção da cidadania pelos
próprios jovens. Para Niremberg, os projetos e programas sociais, ao assumir tais
categorias, poderiam constituir espaços de oportunidade para a inserção social
dos jovens, contribuindo para a tomada de consciência, realização e dissemina-
ção de seus direitos, significando o início de um processo participativo mais geral
e criador de sentido, além de um espaço de exercício de valores e práticas demo-
cráticas. A partir daí a autora discute a importância da participação efetiva dos jo-
vens no cotidiano das ações educativas, descentralizando os núcleos de poder no
interior das instituições e incorporando o olhar e a voz dos jovens, gerando novas
formas de vínculo e envolvimento deles no cotidiano. Finalmente Niremberg le-
vanta vários atributos desejáveis para os programas e projetos voltados para os
jovens, que podem servir como um guia na avaliação de projetos sociais e para o
debate em torno das políticas públicas de juventude.

Sexualidade, gênero e violência


Os textos agrupados nesse bloco tratam da sexualidade, em especial
da masculina, da questão do gênero na sociedade brasileira e finalmente de
algumas manifestações da violência.
21

Como vimos em artigos anteriores desta coletânea, uma ideia fre-


quente sobre juventude é que o sujeito, nessa fase da vida, é um vir-a-ser, pois
ainda não é maduro o suficiente para decidir os seus destinos, nem é respon-
sável para sustentar suas decisões. Dessa forma, ele precisa ser tutelado, seja
pela família, pela escola e/ou pelo Estado.
Nessa visão, a juventude é considerada uma fase de transição, um
momento de preparação para a vida adulta, o que determina representações,
práticas sociais e até políticas públicas direcionadas a esse público. Mas ao
percebermos que os jovens já são sujeitos, quais os impactos e impasses des-
sa representação em seus cotidianos? Como pensar o exercício da sexualida-
de e o uso do corpo que os jovens estabelecem?

A masculinidade entre jovens


Em dois artigos a tônica refere-se à masculinidade entre jovens,
abordados de forma diferenciada. O trabalho de Rubens de Camargo
Ferreira Adorno e Geraldo Pereira da Silva Júnior, “Visibilidade e invi-
sibilidade do trabalho de garotos de programa”, traz a pesquisa realizada
com jovens garotos de programa moradores de bairros periféricos de
São Paulo. Ele mostra que, no espaço das cidades, muitas vezes, os jo-
vens costumam ter visibilidade, apresentando-se como sujeitos ativos,
ora em posições valorizadas socialmente, ora em posições discrimina-
das. Todavia, também há jovens que podem passar despercebidos, in-
visíveis, como são os garotos de programa. Apesar de atualmente haver
um reconhecimento institucional relativo aos profissionais do sexo –
categoria em que os garotos de programa podem ser inseridos – não há
um reconhecimento moral, o que, somado a outros aspectos, contribui
para a invisibilidade desses jovens.
A invisibilidade também ganha contornos nas relações pessoais
dos garotos de programa, na medida em que a família e os amigos desco-
nhecem sua atividade, marcando, mais uma vez, o não reconhecimento
moral da atividade. Finalmente, outro aspecto que parece contribuir para
22

a invisibilidade desses jovens é a dificuldade de classificação de sua sexu-


alidade: eles se consideram, se sentem, se percebem como homossexuais
ou não?
Para os autores, a sexualidade possibilita uma infinidade de formas
de ser vivenciada. Entretanto, não se pode negar que a sociedade valoriza
umas e discrimina outras. A homossexualidade, a separação entre amor e
sexo, a comercialização do corpo e das práticas sexuais são algumas formas
discriminadas. Tudo isso contribui para a invisibilidade daqueles sujeitos
inseridos nessas práticas. Estando no lugar daquele que não é visto, não é
falado, como se tornar sujeito ativo, politizar a intimidade e se fazer presente
na cena pública de forma mais positiva e visível? Esse é um desafio que se
coloca para os diversos atores envolvidos nas variadas práticas dos garotos
de programa.
Já no artigo de Jorge Lyra, “O lugar dos homens e das masculinidades
nos debates sobre juventude”, a questão da invisibilidade também aparece,
agora relacionada à forma como as nomeações são feitas, ou não, e como são
definidos os instrumentos e produzidos dados demográficos. A escolha por
termos, por produção de dados e sua análise engendram um certo discurso
sobre os homens e a masculinidade. Para o autor, esse discurso correspon-
de a um modelo machista, pautado nos processos de socialização masculi-
na tradicional, ou seja, um discurso que reforça a naturalização do modelo
social de maternidade/paternidade. Tal invisibilidade foi constatada na sua
pesquisa de mestrado, na qual deparou-se com a inexistência de dados liga-
dos à sexualidade masculina e à paternidade entre os jovens.
Os títulos dos trabalhos apresentados no IV Jubra são tomados como
um outro exemplo da presença dessa invisibilidade também no meio aca-
dêmico. Por um lado, podemos pensar que quando se fala de forma mais
ampla de juventude, sem generificá-la, a ideia que perpassa é a do mode-
lo hegemônico: homem/masculino, heterossexual, branco, pertencente às
camadas médias/altas da sociedade. Por outro lado, a não demarcação de
a qual juventude se está referindo promove a invisibilidade das diferentes
23

juventudes. Como pensar a questão de gênero a partir dessas nomeações


genéricas?
Como ressalta o autor, o fato de as nomeações se fazerem ausentes
nos títulos não significa que não se fizeram presentes no corpo dos traba-
lhos. Todavia, a ausência nos títulos aponta para a forma como os discursos
vêm sendo construídos, dando visibilidade ou não aos jovens. Se conside-
rarmos que os trabalhos são fruto de pesquisas, políticas públicas, práticas
cotidianas com jovens, há uma indicação no estabelecimento de prioridades
de temas e de construção de conhecimento.
Há que se pensar estratégias e práticas que contribuam para a visibi-
lidade dos homens pela via de trabalhos e pesquisas acadêmicos, de ações
dos movimentos sociais e das políticas públicas. Seria pela nomeação mais
explícita no que tange à questão de gênero, da produção e interpretação de
dados, que pode haver mudança da visibilidade na questão da sexualidade
masculina e da paternidade.

Juventude, afetos e violência

Dois artigos abordam a questão da violência entre a juventude. O de


Gloria Diógenes, “Enigmas do medo: juventudes, afetos e violências”, apon-
ta que uma forma encontrada pelos jovens por reconhecimento e saída da
invisibilidade é através da violência. Segundo a autora, a partir da década de
1990, a violência surge de uma nova geografia urbana, em que o vetor da fi-
xidez, apartação e segregação é deslocado para uma lógica de fluxos de sujei-
tos e de territórios. A violência é dispersa por toda a cidade, havendo a noção
de que o perigo não está mais localizado, mas está em todos os lugares.
Para Diógenes, se o adulto representa o ideal do corpo disciplinado,
docilizado, o jovem representa a imprevisibilidade, a descontinuidade de
uma ilusão da ordem. É um corpo que se movimenta pelos diversos espa-
ços da cidade, que se coloca em locais de visibilidade pública e, dessa forma,
tenta romper com os muros da indiferença. Os jovens trazem à tona espa-
24

ços que pareciam inexistentes, vivendo e se apropriando da cidade de forma


singular. Desse modo, a cidade torna-se um lugar de produção e recriação
de signos. Em outras palavras, os jovens tomam a cidade como local de vi-
sibilidade de si, fazendo-se presentes na cena pública e estabelecendo uma
postura ativa.
A contrapartida vivida pelos jovens em razão da diluição dos vínculos
entre corpo e cidade, entre lugar e pertencimento é uma sensação de solidão
em meio à multidão. Isso faz com que as relações sociais sejam estabelecidas
sob o signo da violência e do medo. Assim, os jovens são motivados e protago-
nizam suas práticas sociais sob a égide de sentimentos de amor e ódio.
A autora constata que amor e ódio transpõem o corpo, ativando
sua potência, que pode ser alcançada quando o jovem constitui uma cor-
poralidade com demarcações próprias, diferenciada daquela de um sujeito
homogêneo da esfera pública. O grupo, tão fundamental na vida de um jo-
vem, pode tornar exequível essa corporalidade, promovendo a inserção dos
jovens em atos de resistência.
Dentre as várias faces que a violência pode ter, Edwige Rude-Antoi-
ne, em seu artigo “Casamento forçado e violência: o contexto francês”, dis-
cute uma prática pouco comum na realidade brasileira atual: o casamento
forçado, que se observa nas comunidades migrantes na França. No contexto
francês estudado pela autora, o casamento forçado é um ato contrário aos
direitos fundamentais – acima de tudo, o direito à livre escolha –, considera-
do como uma violência, seja física, moral, econômica, jurídica ou uma asso-
ciação entre esses vários tipos.
O casamento forçado nem sempre é percebido como uma violência
por aqueles que o vivem, incapazes de perceber sua opressão. A associação ou
não à violência está intimamente relacionada à ponderação pessoal e à vida
psíquica dos envolvidos. o sentido que a violência ganha depende do ponto
de vista subjetivo daquele(a) que é forçado(a) ao casamento, adquirindo uma
realidade palpável no abalo emocional provocado. Entretanto, o casamento
forçado tende a ser vivido como uma violência, sobretudo moral.
25

A denúncia do casamento forçado pode ser uma forma de o jovem


aparecer na cena pública. Contribui para a politização da intimidade, na me-
dida em que coloca em cena a discussão sobre o casamento forçado. Para
a autora, o discurso de que é uma prática social, organizada dentro de de-
terminados costumes sociais, é uma forma de encobrimento da violência e
justificativa dela.

Adolescentes, jovens, direito e família

O artigo de Mary Garcia Castro e Ingrid Radel Ribeiro, intitulado


“Adolescentes, jovens, direitos e família: questionando saberes sobre pro-
teção a direitos sexuais e reprodutivos” indaga a respeito dos saberes sobre
proteção a direitos sexuais e reprodutivos, trazendo a ideia da correspon-
sabilidade da família, escola, comunidade, sociedade e poder público para
com crianças, adolescentes e jovens.
Os direitos dos jovens são codificados na perspectiva dos adultos,
embora a sociedade exija autonomia desses sujeitos. Ainda que se reconhe-
ça que a família é um lugar de amparo quanto às várias necessidades de seus
membros e de afetividade, ela também pode ser um empecilho à autonomia
dos jovens. Tanto por impedir ou dificultar o acesso a uma vida mais au-
tônoma, quanto por impor padrões que podem não servir como modelo
de comportamento e práticas para os jovens, principalmente no âmbito da
sexualidade.
As autoras argumentam que o início da adolescência é um mo-
mento de tensões para o sujeito que o vive, assim como para sua família.
As idealizações de nossa sociedade relativas à juventude contribuem
para a dificuldade dos adultos em lidarem com a sexualidade dos jovens.
Uma delas se refere à “sacralização” da criança e do adolescente, por sua
presumida inocência. Outra é o corpo jovem, símbolo de frescor e, por
isso, considerado como o ideal de consumo sexual no mercado simbó-
lico do desejável.
26

Essas dificuldades e os preconceitos com que a sexualidade é tratada


levam os jovens a engendrarem estratégias para lidar com as repressões e cria-
rem suas respostas. Tal situação impulsiona, muitas vezes, os jovens a correrem
riscos, menos por falta de informação ou de proteção preventiva, mas por não
encontrarem espaços em que sua subjetividade, seus desejos e afetos possam
se manifestar, já que a sexualidade é tratada pelos adultos na perspectiva da
cognição, da racionalidade e do exercício do poder e do controle. Essas são al-
gumas das razões pelas quais a família pode não ser boa intérprete dos direitos
dos jovens se o foco são os direitos sexuais e reprodutivos.
A família é uma das instituições mais afetadas pelas mudanças con-
temporâneas, seja no mundo do trabalho, da cultura ou das relações sociais.
Apesar disso, continua sendo uma instituição de referência na vida dos jo-
vens, considerada como a mais significativa. Por ser um espaço de afeto e de
relações necessárias à socialização dos indivíduos, observamos que há uma
ideia consolidada em nossa sociedade da família como responsável única
por aquilo que se passa na vida dos jovens, especialmente seus “descami-
nhos”. Interessante notar que, nesse sentido, a ideia da corresponsabilidade
por crianças, adolescentes e jovens desaparece, prevalecendo a responsabi-
lidade singular da família. Isso vale tanto para uma gravidez na adolescência,
por exemplo, quanto para delitos cometidos por jovens.
Considerando também o artigo de Adorno e Silva Júnior e o de Ru-
de-Antoine discutidos anteriormente, percebemos que a violência familiar é
muito marcada pela questão de gênero e de orientação sexual. Ainda que os
casamentos forçados não sejam uma imposição só para as filhas, são estas que
sofrem uma pressão maior e são mais vitimadas. Mesmo que os garotos de
programa não explicitem, em geral, sua situação às famílias, a posição de invisi-
bilidade por si só já é um ato de violência. Na pesquisa de Castro e Ribeiro são
mulheres e lésbicas as que mais se queixaram da violência familiar.
Ao se responsabilizar a família pelo exercício de sexualidade por jo-
vens, há que se pensar que família está sendo referida. De um modo geral,
há uma desconsideração pela classe social, modo de organização e funcio-
27

namento familiar, quais os valores e preconceitos presentes na família, se há


capital cultural para que a família possa ensinar, proteger, tutelar sem contro-
lar ou reprimir exercícios de sexualidade pelos jovens. Essa é uma das razões
pelas quais a corresponsabilidade em relação a crianças, adolescentes e jo-
vens, tal como proposta nas leis brasileiras, deve realmente ser estabelecida.
E a escola, como espaço não apenas de aquisição intelectual-cognitiva, mas
também de formação para a vida adulta e de construção de identidade, deve
participar intensivamente dessa corresponsabilidade.

Gênero e sexualidade no meio escolar

O meio escolar parece não estar preparado para enfrentar as ques-


tões relativas a gênero e sexualidade, tal como discutem Wivian Weller, Iraci
Pereira da Silva e Nivaldo Moreira Carvalho no artigo “Discussões de gê-
nero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino
médio”. Através de pesquisas realizadas pelo Geraju no Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade de Brasília, os autores apontam
dificuldades e impasses na discussão de gênero no espaço escolar.
As diferenças de gênero são percebidas por professores e alunos. Os
professores pesquisados afirmam existir formas de tratamento diferenciadas
entre meninos e meninas, tanto por parte deles quanto da direção da escola.
Essas formas ocorrem através de uma vigilância distinta, ordenada em con-
ceitos e estereótipos de comportamentos predeterminados segundo o sexo.
Os autores distinguem três tipos de vigilância sobre as jovens: para que as
meninas não virem “largadonas” e “machonas”; vigilância e confinamento
das jovens como estratégia de não-enfrentamento de valores morais e ma-
chistas; e voltada para a manutenção do corpo supostamente frágil.
Assim como a família se mostra despreparada para discutir o exer-
cício da sexualidade de seus filhos, como apontaram Castro e Ribeiro, a es-
cola, na figura dos professores e do corpo administrativo, também enfrenta
dificuldades. Não há uma ação sistemática e planejada para a discussão do
28

tema e para o enfrentamento das desigualdades de gênero. A escola sequer


percebe as desigualdades de gênero como um problema, mas como se fosse
inerente à sociedade. Há a internalização, por parte do corpo docente e ad-
ministrativo e, consequentemente, do corpo discente, de um modelo que
estabelece limites fixos e obedece à ordem dominante.
Weller, Silva e Carvalho apontam que a falta de entendimento relati-
va às questões de gênero e da sexualidade é uma provável explicação para as
discriminações de gênero no meio escolar. Há que se pensar um paralelo em
relação à família, que também não costuma discutir e enfrentar essas ques-
tões. Um diálogo estabelecido pela escola e pela família com os jovens sobre
essas temáticas poderia auxiliá-los no enfrentamento das discriminações de
gênero e violências sofridas no meio familiar, na escola e na vida cotidiana.
Como esse diálogo é raramente realizado, os jovens têm dificuldade em per-
ceber a lógica das relações de gênero e seu processo de construção.

Participação juvenil e a dimensão dos direitos

Lucia Rabello de Castro intitula o seu texto com a pergunta “Os


jovens podem falar?”, indagação que encontra eco nos trabalhos de Marco
Aurélio Máximo Prado e Juliana Perucchi e de Leo Vinicius Maia Libera-
to. Castro, ao indagar sobre as possibilidades da atuação política dos jovens
no mundo contemporâneo, argumenta que tal atuação é uma construção
histórica complexa de enfrentamento do silenciamento imposto aos jovens.
Segundo a autora, os jovens antes eram falados, mais do que falantes. No
cenário atual a autora constata que as falas dos jovens e as falas em nome dos
jovens têm se embaralhado. O conceito de “fala”, central no artigo, é entendi-
do como a própria ação política que constitui, por sua vez, o sujeito político,
ou seja, aquele capaz da fala pública – ato político – cuja potencialidade in-
flui e transforma a vida coletiva.
Na construção de seu argumento Castro faz uma breve revisão
histórica, assinalando que, desde o século XIX, os jovens eram colocados
29

na situação de aprendizes, como aqueles que nada sabiam e para aprender


sobre si mesmos e sobre o mundo deveriam se submeter aos adultos e des-
tes receber os conhecimentos acumulados pelas gerações anteriores. Nessa
lógica de pensamento encontramos a ideia de jovem como um vir-a-ser,
abordado em outros artigos desta coletânea. Esse modelo de transmissão
cultural visava à formação individual do jovem, ao desenvolvimento de suas
competências e sua preparação para a entrada no mundo adulto, o que não
contribuía para a formação de uma entidade coletiva dos jovens como um
segmento com demandas e questões próprias, capazes de enfrentamentos e
de lutas no espaço político.
Outro obstáculo à ação política dos jovens é o imediatismo da so-
ciedade de consumo do capitalismo tardio. A cultura dominante imagética
transformou os jovens em alvos preferenciais do consumo de bens mate-
riais e simbólicos que prometem felicidade plena, por meio da publicidade,
que afirma a imagem da juventude como época dourada da vida, momento
de intensa experimentação, prazer e beleza. No entanto, há outra imagem
que se sobrepõe à primeira, também amplamente divulgada pela mídia, de
jovens associados à violência, à pobreza, à criminalidade, enfim como pro-
blema social.
Os jovens também têm sido tratados como um grupo portador de
direitos específicos. Encontramos tanto as situações nas quais os direitos dos
jovens são enunciados e defendidos pelos adultos, e nesse sentido os jovens
continuam sendo representados e traduzidos, quanto a entrada na cena pú-
blica dos jovens como postulantes de demandas específicas da sua condição
e defensores de seus próprios direitos.
Já Leo Vinicius Maia Liberato, em seu artigo “Notas sobre o pas-
se livre e o poder e fazer de uma juventude”, analisa a participação política
dos jovens em Florianópolis (SC) no movimento pelo passe livre para os
estudantes no transporte coletivo da cidade. O autor destaca a mudança da
bandeira de luta dos jovens antes pelo passe livre estudantil e agora para a da
tarifa zero para toda a população, tópico incluído na discussão da municipa-
30

lização do transporte. Relaciona tal mudança ao estatuto da transitoriedade


da condição de estudante, uma vez que aqueles que se engajavam nessa luta
deixariam de ser secundaristas e alguns até mesmo estudantes num espaço
de tempo de dois ou três anos.
Esse movimento pelo passe livre provoca em Liberato reflexões
sobre as ações políticas juvenis autônomas. Definindo os termos, Liberato
considera que são autônomas as ações planejadas e executadas pelos pró-
prios jovens. São ações políticas por serem oriundas e destinadas à vida
pública, e juvenis tendo em vista que seus atores são os sujeitos portadores
de uma moratória social. O autor observou que os jovens da cidade tinham
mais facilidade de se engajar em uma luta geral, passe livre para todos, do que
em lutas específicas. Nesse sentido a luta pelo passe livre para os estudantes
diz respeito a um segmento dos jovens – os estudantes – mas não de todos
os jovens.
Liberato considera que esse movimento transmitiu a cultura da
participação política entre os membros da mesma geração, uma vez que os
estudantes das últimas séries do ensino médio influenciaram os iniciantes, e
a disponibilização pela internet de vídeos e documentários do movimento
também foi uma linguagem que fez ressonância e atingiu muitos jovens. O
movimento pelo passe livre pode ser considerado como uma ação coletiva
relacionada ao espaço público e à própria gestão da cidade.
Assim como Castro, Liberato considera a juventude como categoria
social da modernidade frequentemente relacionada a dois fenômenos: o da
escolarização e a cultura de massa. O tempo da escolarização, de preparação
para o futuro é associado à moratória social, embora o autor advirta que esta
é limitada a certos setores sociais e a determinados períodos históricos.
Os movimentos autônomos de característica juvenil expressam a
rebeldia dos jovens contra um mundo que os destitui do controle de suas
atividades, da participação no poder instituinte da sociedade, mas que para-
doxalmente espera desse segmento exatamente os atos de rebeldia. Liberato
considera que, independentemente do motivo específico que leva os jovens
31

a se organizarem, esses movimentos revelam a tentativa de participação so-


cial nos termos próprios dos jovens.
Marco Aurélio Maximo Prado e Juliana Perucchi no texto “Hierar-
quias, sujeitos políticos e juventudes: os chamados ‘movimentos’ juvenis
circunscrevem um sujeito político na contemporaneidade?” discutem que a
ação política dos jovens está relacionada à experiência destes com as hierar-
quias sociais, e mostram que a juventude tem sido compreendida como um
campo ao mesmo tempo regulado/submetido e criativo e capaz de recolo-
car a política em bases mais autônomas.
Os autores debatem que o fato de as experiências dos jovens serem
pensadas a partir da ótica dos adultos, contribui para a naturalização da infe-
riorização social da categoria dos jovens. A naturalização da juventude con-
tribui para que a diferença entre jovens e adultos seja compreendida e vivida
como imutável. Os antagonismos entre jovens e adultos são para Prado e
Perucchi ao mesmo tempo a denúncia da naturalização e da mutabilidade
da diferença. Eles entendem que o desafio maior é compreender como essas
diferenças poderiam se articular em alguma cadeia de equivalências sociais.
Para que os jovens possam desenvolver uma ação coletiva é preciso,
segundo os autores, que assimilem um projeto coletivo contextualizado, o
que significa a apropriação de um espaço de ação, que exige o posiciona-
mento e a circulação por certos territórios, bem como a incorporação de
certas regularidades objetivas dispostas no contexto social.
Essa afirmação é ilustrada por meio do acompanhamento das ações
de grupos de jovens militantes LGBT brasileiros e portugueses, que revelam
processos intersubjetivos, de modo que suas ações não consistem na defesa
dos direitos de identidades dadas a priori, mas é no próprio desenrolar das
ações coletivas que as identidades são produzidas no campo dos conflitos
e das negociações. As identidades assim produzidas não são monolíticas e
estáveis, mas seguem se transformando ao longo de todo o processo.
A participação juvenil nos movimentos sociais se dá no jogo de
antagonismos, da igualdade/diferença, nas relações entre a constituição de
32

um “nós” por oposição a “eles”, no exercício contínuo que produz ações ora
emancipatórias, que são fontes de autonomia dos sujeitos, ora reguladoras
de dominação desses sujeitos.
Essas são reflexões importantes que possibilitam compreender os
jovens como atores na cena política, não só reivindicando os seus direitos
específicos, mas influindo e participando ativamente da vida coletiva, da or-
ganização das cidades e da negociação política.

A dimensão dos direitos

Outro veio de reflexão vai na direção de pensar criticamente o lugar


dos jovens nas políticas públicas e nas práticas de assistência e defesa dos
direitos advindas do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
Cássia Soares Baldini, no seu artigo “Juventude e saúde: concepções
e políticas públicas”, discute como as concepções atribuídas à juventude têm
norteado as práticas da saúde coletiva e da saúde pública, com a intenção de
contribuir para o processo de questionamento crítico das práticas hegemô-
nicas voltadas para a saúde dos jovens.
Baldini considera que as ações da saúde pública têm privilegiado a
gravidez, as doenças sexualmente transmissíveis e a Aids como questões de
saúde dos adolescentes a serem enfrentadas. O consumo de drogas tem sido
tomado também como um problema entre os jovens. Esses problemas são
relacionados à crise própria dessa etapa da vida, o que denota as concepções
universalistas e a-históricas da adolescência e da juventude.
A gravidez na adolescência tende a ser tomada como um problema
universal e não considerada no contexto histórico-social dos adolescentes.
Tem sido tratada como uma disfunção, ou seja, a adolescente grávida não vi-
veria a propalada moratória social, outro conceito tomado de forma univer-
salista. Nesse sentido as práticas da saúde pública têm privilegiado as ações
preventivas e, nessa lógica, a saúde pública toma a juventude como objeto
de intervenção, especialmente os adolescentes.
33

Já no campo da saúde coletiva, as reflexões têm sido guiadas pela cor-


rente marxista, que considera o jovem como um sujeito social, integrando-o
ao conjunto da vida em sociedade. Desse modo, os problemas de saúde dos
jovens são compreendidos como produzidos pelas determinações históri-
cas e sociais mais amplas, e os sujeitos são constituídos nesses contextos e
são capazes de agir para transformá-los. Nessa ótica, diferente da perspectiva
da saúde pública, o jovem não é reduzido a um objeto das práticas da saúde,
mas é visto como sujeito dessas práticas.
Já Hebe Signorini Gonçalves, no seu artigo “Sobre a participação da
família no processo socioeducativo”, tece suas reflexões a partir das experiên-
cias do Projeto Parcerias: Adolescentes em Conflito com a Lei – desenvol-
vido pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em cooperação com o Departamento Geral de Ações Socioeducativas do
Estado (Degase-RJ).
A autora discute que o Estatuto da Criança e do Adolescente ins-
tituiu as medidas socioeducativas para adolescentes que cometeram atos
infracionais, cuja última modalidade é a de internação em instituições. Ela
ressalta os antagonismos presentes no processo, de um lado educativo e de
outro punitivo. Salienta ainda aquele da exclusão dos adolescentes da convi-
vência familiar e comunitária, ao mesmo tempo em que se espera que nesse
tempo de exclusão possam ser produzidas estratégias para a integração fa-
miliar e social desses adolescentes. Ela adverte que o ECA precisa enfrentar
“a face mais perversa” do Estado, que é incapaz de promover a proteção des-
ses adolescentes, fazendo emergir o Estado penal, amplamente divulgado
e incentivado pela mídia que faz circular as demandas por maior punição
dos adolescentes, como bem exemplificam as discussões sazonais sobre a
redução da maioridade penal.
Gonçalves se detém nos impactos produzidos pela internação sobre
as subjetividades dos adolescentes a partir das suas narrativas e de suas fa-
mílias. Os depoimentos coletados pela autora mostram que os adolescentes
que cumprem medida de internação já viviam diversas formas de isolamen-
34

to social anteriores à privação da liberdade. Uma das manifestações desse


isolamento é revelada pelos adolescentes quando se referem à ausência qua-
se absoluta de laços de amizade entre os seus pares. Os adolescentes narram
que entre aqueles que estão vinculados ao tráfico de drogas não haveria rela-
ção de amizade, pois não haveria prática de lealdade.
O projeto Parcerias confirma os dados de outras pesquisas que têm
mostrado que, entre adolescentes de todas as camadas de renda e de todas
as regiões do país, é a família a principal responsável pela garantia de direitos
e do bem-estar dos adolescentes. A maioria dos adolescentes vivia com as
suas famílias na época em que cometeram atos infracionais e receberam a
medida socioeducativa de internação. Esse dado contribui para o questio-
namento do mito de que os adolescentes infratores não têm vínculos fami-
liares e de que a convivência familiar seria em si mesma um fator que evitaria
o mundo da infração. Essas famílias foram historicamente culpabilizadas,
desqualificadas, enfim consideradas incapazes de realizar a socialização dos
seus filhos.
A nova formulação presente no ECA inclui a família na medida so-
cioeducativa, pois envolve o adolescente e a família, tomando-a como cor-
responsável pelo cumprimento da medida e como parceira do Estado na
gerência das ações de proteção dos adolescentes. Aqui encontramos outro
antagonismo: as famílias são tão tuteladas quanto os seus filhos adolescentes,
o que dificulta que elas possam alçar à condição de agentes socializadores
competentes e autônomos. A convivência familiar é a um só tempo tratada
como direito e dever, o que aponta para uma equação de difícil solução.
A autora conclui que, para que os adolescentes possam de fato alcan-
çar plenamente a condição de sujeitos de direitos preconizada pelo ECA, é
necessário que a sociedade e o Estado enfrentem as questões relacionadas
aos direitos sociais da instituição familiar.
Em outra direção, Benedito Rodrigues dos Santos, em seu artigo
“Vinte anos do ECA e as políticas para a infância e juventude”, faz uma retros-
pectiva das condições históricas e políticas nas quais o Estatuto da Criança
35

e do Adolescente foi elaborado e promulgado. O ECA tem sido considera-


do um ordenamento jurídico avançado, que define que crianças (pessoas
entre zero e 12 anos) e adolescentes (13 a 18 anos) são sujeitos portadores
de direitos específicos. As políticas públicas de educação, saúde e assistência
deveriam garantir os direitos específicos preconizados pelo ECA.
O autor refere-se também ao debate realizado pelo Conselho da Ju-
ventude (Conjuv) a respeito da inclusão da faixa etária entre 14 e 18 anos
na categoria juventude, como definida no anteprojeto de lei do Estatuto da
Juventude, que prevê atribuições legais para o estabelecimento de normas
gerais de política para a defesa dos direitos específicos do segmento da ju-
ventude.
Pode-se concluir que o ECA, que definiu crianças e adolescentes
como pessoas portadoras de direitos, abriu a possibilidade da discussão dos
jovens também como pessoas com direitos específicos, o que denota que
essa categoria social passa a ser reconhecida também em termos legais nas
suas particularidades.
Finalmente, Sônia M. Gomes Sousa, em seu artigo “Juventude, pes-
quisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades”, relata a experiência de
formação de profissionais de diversas áreas do conhecimento para o trabalho
com os jovens desenvolvida pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
A formação desses profissionais é realizada nas dimensões da extensão, da
pesquisa e do ensino, propiciando a articulação necessária entre a teoria e a
prática, articulação esta promotora da transformação de ambas.
A autora também enfatiza a relação da PUC Goiás com os demais
setores da sociedade civil organizada e as iniciativas públicas nos níveis mu-
nicipal, estadual e federal que se dedicam às questões da juventude. As rela-
ções da universidade com esses setores estão baseadas no princípio de que o
conhecimento produzido é um bem a ser socializado e compartilhado com
toda a sociedade. Por outro lado, a inserção de estudantes, pesquisadores e
professores da universidade nesses setores possibilita a renovação da própria
universidade. As práticas da PUC Goiás destinadas aos jovens estão alicer-
36

çadas na compreensão de que estes são sujeitos ativos, portadores de direi-


tos e capazes de serem parceiros nas ações propostas, o que significa que o
trabalho é feito com os jovens e não para os jovens.

Considerações finais

Os artigos apresentados nesta coletânea têm como objeto de aná-


lise comum as juventudes contemporâneas, tema do próprio Jubra, apre-
sentando uma diversidade significativa de temáticas analisadas, bem como
enfoques teóricos os mais diversos, expressão da própria complexidade da
questão das juventudes na sociedade brasileira. Como afirmamos anterior-
mente, o IV Jubra significou um importante fórum para a discussão e a cir-
culação de investigações no campo das juventudes e esta coletânea pode ser
vista como expressão das temáticas e abordagens que vêm sendo privilegia-
das pelos pesquisadores brasileiros, contribuindo de alguma forma para a
ampliação do campo de estudos das juventudes no Brasil.
A leitura dos artigos nos possibilita, no contexto da diversidade de te-
máticas e abordagens teóricas, pontuar algumas questões recorrentes, que po-
dem sinalizar tendências comuns da própria realidade juvenil brasileira. Sabe-
mos, de antemão, que esta é apenas uma das várias leituras possíveis de serem
feitas. Não temos a pretensão de esgotá-la ou dar-lhe um caráter conclusivo.
Uma primeira questão, comum a boa parte dos artigos, refere-se à
produção social dos jovens na sociedade contemporânea. Vários autores
observam que as mutações profundas que vêm ocorrendo na sociedade
ocidental interferem na produção social dos indivíduos, nos seus tempos e
espaços, afetando diretamente as instituições e os processos de socialização
das novas gerações. As instituições classicamente responsáveis pela socia-
lização, como a família, a escola e o trabalho, a mídia, dentre outros, vêm
mudando de perfil, estrutura e também de funções, como assinalam vários
destes artigos. Por conseguinte, os jovens da atual geração vêm se formando,
se construindo como atores sociais em configurações muito diferentes das
37

gerações anteriores, numa mudança de tempos e espaços de socialização,


que interfere diretamente nas maneiras como eles vivenciam um determina-
do modo de ser jovem, apontando para novas configurações sociais inclu-
sive nas formas como se expressa a desigualdade social, presença marcante
na sociedade brasileira. Tal constatação vem reforçar a importância de levar-
mos em conta, nas análises sobre as juventudes, o contexto mais amplo no
qual se produzem socialmente, com todas as suas contradições, condição
para uma compreensão mais qualificada desse segmento da população.
Em decorrência, é colocada em questão a própria compreensão da
categoria juventude. Em vários dos artigos aqui apresentados foi muito co-
mum a crítica às representações socialmente construídas sobre a juventude,
seja reduzida a um momento de transição para a vida adulta, seja compre-
endida na ótica do problema ou mesmo limitada a uma faixa etária. Tais re-
presentações, para vários destes autores, terminam por interferir no desenho
de políticas públicas ou na proposta de programas e projetos, além de gerar
posturas equivocadas dos adultos na sua relação com os jovens, enfim, po-
dem enviesar a compreensão dos jovens reais com os quais se lida ou que se
pesquisam. Fica a recomendação básica da antropologia: para compreender é
necessário conhecer!
A partir dessa crítica, foi comum a vários destes autores a constata-
ção da juventude como uma categoria que não se reduz a uma faixa etária,
mas que é socialmente construída e ganha contornos próprios em contextos
históricos, sociais e culturais distintos, marcada pela diversidade nas condi-
ções sociais (origem de classe, por exemplo), culturais (etnias, identidades
religiosas, valores etc.), de gênero e até mesmo geográficas, dentre outros
aspectos. Além de ser marcada pela diversidade, a juventude pode ser enten-
dida como uma categoria dinâmica, transformando-se à medida das muta-
ções sociais que vêm ocorrendo ao longo da história, como vimos. A partir
destas formulações, poderíamos nos arriscar a afirmar que, na realidade, não
há tanto uma juventude e sim jovens, enquanto sujeitos que a experimentam
e sentem, segundo determinado contexto sociocultural onde se inserem.
38

Outro aspecto reiterado por vários destes artigos foi a persistência


de processos de reprodução da desigualdade social no Brasil. Apesar do
reconhecimento dos avanços socioeconômicos significativos ocorridos na
sociedade brasileira nos últimos anos, vários autores denunciam a presença
de mecanismos, seja na escola, na família, no trabalho ou mesmo em pro-
gramas e projetos sociais os mais diversos, de uma lógica baseada no “fazer
mais com menos”, gerando ações “pobres para pobres”, marcadas pela preca-
riedade. Fica evidente que grandes parcelas da juventude brasileira continu-
am sem acesso aos suportes materiais, simbólicos e afetivos necessários para
uma inserção social mais digna, sendo a causa de conflitos e tensões, como
a violência, por exemplo.
As análises que mencionam a questão da violência são um bom
exemplo desse contexto, mas também a realidade de grande parte das fa-
mílias brasileiras que se veem responsabilizadas por garantir a reprodu-
ção dos seus membros, não contando com ações públicas que as possam
“ajudar a se ajudar”. Criticam a visão na qual a família seja a única respon-
sável por aquilo que se passa na vida dos jovens, principalmente os seus
“descaminhos”. Nesse sentido, alguns artigos discutem a importância da
corresponsabilidade da família com outras instituições como a escola,
comunidade e o poder público na socialização dos jovens em todos os
âmbitos da vida. Um bom exemplo é na questão da sexualidade, quan-
do se afirma a necessidade de apoiar as famílias para que possam ensinar,
proteger, tutelar, mas sem controlar ou reprimir os exercícios de sexua-
lidade pelos jovens. Nesse sentido, é importante levar em conta a preo-
cupação com o silêncio da grande maioria das escolas, nas quais não há
uma ação sistemática e planejada para a discussão sobre a sexualidade e
para o enfrentamento das desigualdades de gênero. Essa dimensão da cor-
responsabilidade é fundamental, principalmente se levarmos em conta a
constatação de vários autores da centralidade da família para os jovens,
contrariando a visão de senso comum de que as novas gerações estariam
perdendo os vínculos familiares.
39

Outro aspecto diz respeito à participação sociopolítica dos jovens. Ao


contrário das imagens socialmente produzidas, que retratam os jovens como
apáticos ou hedonistas, alguns dos artigos nos trazem exemplos de mobiliza-
ção e ações coletivas as mais diversas, como a luta pelo passe livre, presente em
várias regiões brasileiras, ou mesmo o movimento LGBT, o qual vem produ-
zindo novas identidades no campo dos conflitos e das negociações. Alguns
dos artigos chamam a atenção para a necessidade de escuta e de envolvimen-
to dos jovens nas ações públicas que lhes dizem respeito. Significa superar a
compreensão da juventude como problema, que gera ações nas quais o jovem
é visto como objeto de intervenção. Ao contrário, torna-se cada vez mais ne-
cessário apreender os jovens como sujeitos, capazes de agir e transformar sua
realidade, tornando-os assim parceiros das ações propostas.
Estas considerações, dentre outras possíveis, apontam para questões
teóricas e políticas importantes que revelam a riqueza dos textos desta co-
letânea. Esperamos que instiguem o leitor a se debruçar sobre os textos e
também produzir suas próprias interpretações. Boa leitura.

Juarez Dayrell
Maria Ignez Costa Moreira
Márcia Stengel
A socialização da juventude
e os espaços institucionais
Adolescentes, jóvenes y socialización:
entre resistencias, tensiones y emergencias
Marcelo Urresti

E n el siguiente trabajo se presentan las líneas centrales de la experien-


cia juvenil –adolescente en su primera fase, propiamente juvenil en la
segunda – y cómo se superponen en ella diversos agentes socializadores,
subjetivadores y educativos que van moldeando a los actores sociales en las
diversas fases de su formación.
La transición adolescente y juvenil se desarrolla en el juego que se
produce entre las instituciones propias del mundo adulto – como la fami-
lia, la escuela, los medios de comunicación – y las instituciones propias del
mundo de los jóvenes – donde se despliegan los grupos de pares, las culturas
juveniles y más recientemente los ámbitos de encuentro e intercambio vir-
tual surgidos de las tecnologías digitales de comunicación.
En nuestros días, muchos de los componentes que estructuran esa
transición se ven alterados por factores novedosos que interfieren en los
procesos de socialización y transmisión: por sólo nombrar algunos de ellos,
un régimen de sexualidad cada vez más abierto y temprano, una cultura so-
mática cada vez más autocentrada y libre, un conjunto de formas familiares
que se alejan definitivamente de la familia tipo tradicional, formas de la au-
toridad adulta más centradas en la negociación que en la imposición, tasas
de escolarización cada más amplias, formación escolar más extendida en el
44 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

tiempo, estabilización tardía de carreras laborales, formación de familias y


filiación a edades mayores.
Estos cambios indican condiciones y estilos de maduración distin-
tos: adolescencias más tempranas, juventudes más extendidas, relaciones
intergeneracionales deslizantes y confusas. Al examen de esas condiciones
cambiantes de la actualidad se dedica el presente artículo.

La gran transición -adolescente y juvenil-


hacia la vida adulta

En las sociedades occidentales contemporáneas el largo período


que lleva desde la infancia hasta la adultez, reconoce como mínimo dos seg-
mentos bien diferenciados: la adolescencia y la juventud. Ambos segmen-
tos distan de ser naturales: son construidos social e históricamente y por lo
tanto, cambian con las diversas circunstancias que registra la vida social. Si
la sociedad que las incluye es relativamente homogénea, la experiencia de
esa transición tenderá a ser similar para todos los miembros de cada gene-
ración, pero si no lo es, por ser muy desigual en términos socioeconómicos
o porque las diferencias regionales o culturales son muy marcadas, habrá
transiciones distintas que de acuerdo con las distancias existentes podrán
ser incomparables entre sí. Esto significa que esos dos grandes períodos re-
lativamente comunes para toda la población, pueden variar en las edades de
entrada, permanencia y salida, pueden registrar ritmos de maduración muy
disímiles y brindar experiencias formativas de muy diversa significación.
La adolescencia es la primera fase de esta transición y aparece en
nuestras sociedades como un período de transición crítico, es decir, como
una fase temporal signada por la desorientación y la búsqueda en el desarro-
llo de la subjetividad. Esta etapa cuenta con un inicio más o menos evidente
fijado por la maduración sexual del cuerpo y un final un poco más borroso
y discutible que se establece a partir de la configuración definitiva de la per-
sonalidad adulta (ERIKSON, 1973, 1987; BLOSS, 1974). Con la pubertad
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 45

se inicia un proceso complejo de construcción de una identidad sexual defi-


nida, una búsqueda de autonomía personal en el terreno de los valores y las
preferencias y el inicio de la asunción de responsabilidades vinculadas con
la reproducción material, la conquista del hogar propio y el establecimiento
de la familia de destino. De modo tal que la adolescencia representa un pe-
ríodo de maduración múltiple en el que se abandonan, no siempre sin dolor,
las certezas y la heteronomía propias de la infancia y se inaugura una crisis
de identidad temporaria – la adolescencia misma – que se resuelve con las
nuevas certezas y obligaciones de la edad adulta. Se trata de una institución
social porque, si bien se inicia con un proceso biológico – la pubertad – no
se agota en él y depende de la influencia de los factores sociales que cambian
con la cultura y las épocas.
Esta etapa a su vez se presenta como conflictiva y problemática en la
medida en que el adolescente está obligado a dejar de ser niño, a crecer y a
construir su espacio de autonomía (ABERASTURY, 1971; DOLTO, 1992).
Muchos adolescentes admiten este mandato social con vocación positiva,
pero hay otros que pueden tardar en madurar, no tener los instrumentos o
el apoyo para encarar la nueva fase o, incluso, negarse a asumir las nuevas
responsabilidades. Esto genera problemas complementarios a los que de
por sí se producen en condiciones normales. En la mayoría de los casos, los
adolescentes advierten importantes cambios en su cuerpo y su sexualidad
y se encuentran desplazados respecto del sistema de coordenadas que los
orientaron durante la niñez. La resolución del conflicto que genera el nuevo
cuerpo, el manejo de las inquietudes que ocasiona la nueva sexualidad y la
necesidad de reubicarse en el seno de la familia y el medio social inmediato,
serán la base de la rearticulación de la personalidad adulta.
Con la adolescencia se abren espacios de conflicto intergeneracio-
nal en el interior de las familias, siempre renovados con la sucesiva entrada
de cada niño en la pubertad. En ese proceso los adolescentes forjan cosmo-
visiones y valoraciones no necesariamente acordes con los mandatos de la
tradición heredada, poniendo en cuestión su validez y su poder de obligar.
46 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Familias y escuelas, ámbitos primordiales de la niñez mayoritaria, comien-


zan a compartir su espacio con otras dimensiones de la vida social en la que
los adolescentes participan, expandiendo las redes de relaciones en las que
actúan. Mientras transcurre el período, los adolescentes construyen tam-
bién espacios “propios” en busca de una mayor independencia respecto de
la mirada de sus mayores, generando mecanismos de identificación en los
que se reconocen.
En este cuadro clásico de familia y escuela existe un factor desequi-
librante que opera en la socialización de los adolescentes de modo diferen-
cial: se trata del grupo de pares, un espacio propio, alejado temporalmente
del control y la vigilancia de las autoridades familiares y escolares, autóno-
mo respecto de prácticas y gustos predeterminados por el mundo adulto.
Esos grupos de pares entonces, con sus preferencias y sus intercambios,
su tendencia a la homogeneización y sus propios mecanismos de control,
funcionan como agencias más o menos duraderas de socialización, alter-
nativas respecto a la familia y la escuela, en ocasiones en competencia, en
otras, en abierta contradicción con aquellas (PARSONS, 1959; WILLIS,
1981; DUBET; MARTUCELLI, 1998). El mundo de vida de los adoles-
centes es entonces un ámbito en el que se traban fuerzas socializadoras y
subjetivadoras en pugna, donde el grupo de pares representa a la especifi-
cidad de los adolescentes en una confrontación con las fuerzas del mundo
adulto. Estos grupos tienen características singulares y pueden orientar a
sus miembros en direcciones muy diferentes según las apetencias y el cli-
ma impuesto en cada uno de ellos, por lo general dependiente de pactos
informales sobre una microesfera de actitudes y valores compartidos que,
al menos por un tiempo, son fielmente defendidos. Estos grupos definen
espacios – territorios –, tiempos – rutinas – y prácticas – cuasi rituales –,
en los que van construyendo un mundo compartido de experiencias que
serán fundamentales para el resguardo de las identificaciones adolescen-
tes más autónomas, distantes de la familia, de la escuela, pero también de
la experiencia típica del desarrollo anterior como niños.
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 47

Los grupos de pares están conformados por lo general con una


presencia marcada de miembros de la misma edad y género, aunque eso
no excluye grupos mixtos o miembros notablemente mayores o menores
siempre de manera poco frecuente. Estos grupos constituyen la primera am-
pliación de la red de relaciones en las que ingresan los adolescentes; son los
grupos de amigos y amigas más cercanos, que se reúnen a pasar el tiempo,
a escuchar música, compartir largas charlas, hacer deportes, planear salidas
o recorrer espacios desconocidos. Se trata de verdaderas redes de conten-
ción afectiva y representan espacios de autonomía, búsqueda de indepen-
dencia y circulación de información fundamental para la vida cercana: allí
tienen lugar primeras conversaciones sobre el sexo, el amor y la amistad, los
problemas con los estudios y la vocación o los conflictos con los padres, los
intereses y los gustos, la música que se adoptará como propia, la forma de
presentarse ante los demás, la vestimenta y el habla y, con esas operaciones,
el descubrimiento progresivo de los otros en tanto que actores sociales di-
ferenciados, lo que posibilita una toma de conciencia sobre el lugar que se
ocupa en la escala social. Es decir que se trata de verdaderos laboratorios de
actividad simbólica en los que se percibe, se evalúa y se practica consciente-
mente la diferenciación social: en ellos se construye el primer “nosotros” con
el que los sujetos se identifican más allá de su familia de origen y los ámbitos
de pertenencia heredados (KRAUSKOPF, 2000; URRESTI 2002).
De este modo, los adolescentes van pasando de la dependencia
familiar, en términos de valores, gustos y preferencias, a una autonomía
personal más amplia. Esto se expresa en crisis personales, crisis familiares
y conflictividad en las instituciones escolares: la adolescencia es la edad
del descubrimiento de la arbitrariedad del mundo social – en definitiva, el
mundo de los adultos – lo que conduce a rechazos, oposiciones e intentos
de renovación, pero también a deserciones, abandonos y silencios prolon-
gados. Esta razón es la que lleva a considerar simultáneamente a la ado-
lescencia como una edad crítica y utópica, casi romántica, pero también
abúlica, desinteresada y ensimismada. En este sentido, los consumos cul-
48 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

turales de los adolescentes suelen enmarcar dichas búsquedas, ofreciendo


repertorios de símbolos que permiten la apropiación personal y la identi-
ficación grupal, pues funcionan como interpeladores activos en el proce-
so de construcción de las identidades. Los estímulos de la época a su vez
impactan en ellos con especial fuerza, en la medida en que, por el hecho de
encontrarse en un mundo nuevo, sin la historia que pesa sobre los adultos,
los adolescentes interpretan el presente con un sentido diferente, con los
ojos abiertos y atentos del recién llegado. Podría decirse incluso que habi-
tan en otro mundo, relativamente alejado del de sus propios padres y las
generaciones que los preceden, lo que constituye su especificidad como
actores históricos: se socializan y se subjetivan en un mundo en el que
ellos mismos, en tanto que proyectos, están aún por realizarse.
A medida que se avanza en este proceso de autonomización, se va
dejando atrás la crisis típicamente adolescente y se va iniciando una nueva
fase que se identifica como juventud y que supone un conjunto de vías por
las que se completa la transición hacia la adultez. La juventud sería entonces
un período de la vida en el que cierto segmento de la población llegado a
la madurez psicosexual, los jóvenes, adoptan progresivamente los atributos
por los que van a ser identificados como adultos. En dicho proceso van des-
cribiendo una serie de secuencias estadísticamente típicas por las cuales van
pasando de los estudios al trabajo, de la dependencia económica familiar a
la autonomía económica, del hogar familiar al hogar propio, del amor ado-
lescente a la constitución de una pareja estable y con el tiempo, de ocupar
la posición de hijos e hijas a ocupar la posición de padres y madres. Como
dijimos, se trata de trayectorias frecuentes, que pueden variar en duración e
intensidad de acuerdo con el sector social y las posibilidades de cada familia
e individuo, pero que describen un panorama más o menos estable en tér-
minos genéricos.
A este proceso se lo conoce como moratoria social (ERIKSON,
1974; BRASLAVSKY, 1989). Con esta categoría se hace alusión a un tiem-
po de mora, juego en sentido genérico, experimentación y aprendizaje para
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 49

la vida futura, en el que se encontraría el segmento de la población conoci-


do como jóvenes, una invención relativamente reciente en el tiempo, que se
remonta a la modernidad consolidada y a niveles de bienestar material sufi-
cientes como para permitir que ese segmento de la población pueda alejarse
por un tiempo de las obligaciones de la reproducción material inmediata
del conjunto. En sociedades como la nuestras, en las que la diversificación
y autonomización de las esferas las vuelve cada vez más complejas, donde
prácticamente se produce la coexistencia de distintas sociedades en el seno
de una misma sociedad, aparecen múltiples posibilidades y ritmos de transi-
ción hacia la vida adulta, lo que va llevando a los partidarios de este planteo
a hablar de juventudes en plural antes que de juventud: concretamente ha-
blando, en sociedades fuertemente divididas en clases, habrá distintos tipos
de maduración social, más o menos aceleradas según las presiones materia-
les que los diversos sectores padezcan, con importantes variaciones en las
vías de transición a la adultez.
Esto nos lleva a un punto de suma importancia: no todos los indivi-
duos que tienen la edad de ser jóvenes se encuentran, socialmente hablando,
en la misma situación. No todos entran en la formación de las familias en la
misma edad, ni tienen la misma presión económica por definirse laboral-
mente. Es decir que no todas las clases gozan de esta ventaja que produce
la vida social actual, hecho que en su desigual distribución hace que haya
clases con jóvenes – las medias y altas- y clases que no los tienen – como
los sectores populares – o que por su corta estadía en la moratoria se tornan
casi invisibles. Es claro que la maternidad y la paternidad adolescente, los
cortes o la intermitente permanencia en el sistema educativo, la necesidad
de trabajar a edades tempranas, producen entre los sectores populares una
reducción evidente de la moratoria social, lo cual plantea el problema de que
casi no hay juventud en los sectores populares o al menos, si se parte de estos
indicadores que son las vías de transición, la juventud propiamente dicha
existe casi exclusivamente en los sectores medios y altos. Es evidente que hay
un modelo dominante de juventud que se recorta sobre las posibilidades y
50 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

la imagen de una clase o de un conjunto de clases que disfruta de privilegios


y que excluye a los miembros de otras clases que no acceden a la moratoria
social y queman rápidamente las etapas que los depositan en la vida adulta.
Pero la juventud, además de un período de moratoria social y pre-
paración para la vida adulta, es un modo de estar en el mundo con una
memoria relativamente más breve que la de un adulto y con la percepción
concomitante de una lejanía mayor con respecto a la muerte. Esta condi-
ción existencial nos habla de un modo de situarse en la vida, en la que ésta
aparece como corta, inaugural y en proceso de desenvolvimiento. En este
sentido, distintas experiencias posibles de moratoria social agotada o no por
las presiones del medio social circundante, tienen como base esta situación
previa vinculada con la temporalidad misma, algo que más allá de las vías de
transición a la adultez definen a la juventud más allá de la clase social.
En este contexto, al que en otro lugar llamamos moratoria vital
(MARGULIS; URRESTI, 1996, 1998), la experiencia juvenil se caracteriza
por una situación temporal de apertura en la que los cursos de vida no están
decididos del todo y las promesas de futuro se insinúan plenas de virtuali-
dad y potencia. Así, la característica que define a la experiencia juvenil en
comparación con la de los adultos es el mayor tiempo disponible de juego
y su correlativo conjunto menor de compromisos asumidos, por lo que su
modo de habitar el presente está menos determinado y condicionado por
las decisiones previas, aún angostas y escasas, situación que se manifiesta en
mayores grados de libertad. Esta condición de la experiencia existencial tan
particular define a la juventud como un momento observable en todas las
clases sociales, más allá de los recursos que se pueda disfrutar. Si bien es cier-
to que estas posibilidades son considerablemente más reducidas entre los
jóvenes de sectores populares que entre los de los sectores medios y altos,
también lo es que en comparación con los adultos y sin importar la clase, son
mayores entre los jóvenes que entre las generaciones anteriores.
La juventud como moratoria vital es una condición fugitiva que
se va agotando con el paso del tiempo y las sucesivas opciones realizadas y
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 51

omitidas y se ramifica en las series que definen cursos de vida y las historias
personales que resultan del plegamiento del espacio social en su devenir, de-
jando como sedimento esa esfera interiorizada de compromisos, disposicio-
nes y memoria en la que con el tiempo reconocemos a la subjetividad adul-
ta. Por eso, la juventud es una condición inestable, llena de promesas, pero
también de incertidumbres y temores, pues el futuro se presenta abierto y
desdibujado. El proceso de maduración hacia la adultez supone, entre otras
cosas, el progresivo paso de las promesas acompañadas de incertidumbre a
la realización de los proyectos, lo que implica un descarte de promesas en
favor de márgenes crecientes de solidez y seguridad. De modo que el adulto
sería en promedio un sujeto que ha eliminado la angustia de la falta de segu-
ridades, a cambio de una objetiva reducción de oportunidades.
La juventud como moratoria vital recupera la idea de la moratoria
social y la complementa en un marco más amplio. Así, la juventud es período
de gracia existencial y social, suspendido temporalmente, en el que comien-
zan a asumirse poco a poco los compromisos duraderos por los que cada
sujeto va entrando en la vida adulta. Esas decisiones, a veces queridas a veces
no, en ocasiones conscientes, en ocasiones inconscientes, tejen las tramas de
contingencias que luego devienen necesidades y que a la larga constituyen
verdaderos condicionamientos para las decisiones futuras. Esa suerte de ca-
denas que con cada decisión tomada en el presente recortan el espacio de lo
posible en el futuro, acotándolo y dándole forma, tienen su grado cero en la
juventud, que es el momento en el que comienzan a realizarse los proyec-
tos. Ese reino ambiguo de incertidumbres y promesas virtualmente infinitas
que supone la apertura y la moratoria vital y social es en parte limitado por
los proyectos que se van realizando, por los logros parciales o exitosos que
recortan la experiencia futura y que van dejando una estela de recuerdos por
detrás. Cuando la memoria se acrecienta y el tiempo de experiencias se acu-
mula, aunque no se completen las vías de acceso a la adultez, la juventud se
achica inexorablemente y el nacimiento va quedando atrás, el mundo social
ya no es tan nuevo y la redundancia se hace presente y esto, nuevamente, sin
52 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

que importe la clase social y las dos moratorias – vital y social – pueden no
coincidir en su maduración, como ocurre en los sectores populares, o pue-
den agotarse simultáneamente, como sucede en los sectores medios y altos.

La transición actual, entre irrupciones y rearticulaciones

Tanto la adolescencia como la juventud entendidas como experien-


cias vitales se encuentran en un proceso de rearticulación significativo, pro-
ducto de las relaciones que plantea la sociedad contemporánea. En efecto, se
registra un conjunto de transformaciones recientes que impactan de manera
directa en la estructuración de estas trayectorias. En primer lugar, el estableci-
miento de los límites – tanto iniciales como finales- en los que se reconoció
a la adolescencia y la juventud pasan por un momento de redefinición: ya
no es tan claro ni fijo el momento inicial de la adolescencia ubicado en una
pubertad más o menos universal: al contrario, tiende a manifestarse cada vez
más precozmente y de manera muy variable según los grupos sociales, pro-
ducto de cambios en la alimentación y en la estimulación visual altamente
sexualizada de los medios masivos actuales y de internet, de modo tal que la
infancia y su período de latencia tienden a finalizar prematuramente, incluso
entre chicos que no han entrado cabalmente en el período de la pubertad.
Por otro lado, en el otro extremo, son cada vez más las voces que
discuten sobre la finalización de la adolescencia, su homogeneidad en el tér-
mino y hasta incluso sobre si tiene un fin (LIPOVETSKY, 1982, 1996; DI
SEGNI, 2004). En nuestros días se reconoce que de la definición normativa
coincidente con el adulto típico, final del trayecto, se pasa a otras figuras más
dispersas, múltiples y variables, como la de los adolescentes tardíos o incluso
los “adultescentes”, con los que se menciona al proceso de estiramiento que
sufre la adolescencia y la juventud normal, atravesadas por la extensión de
los procesos de instrucción formal, la inestabilidad del empleo y de las carre-
ras laborales, las dificultades para lograr la autonomía económica y el acceso
a la vivienda propia, tópicos antes claramente identificables con el final de
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 53

la juventud (FEIXA, 1998; MARGULIS; URRESTI, 1994, 1998). Esto ha


conducido a elevar la edad oficial de término de la adolescencia, como lo
atestigua por ejemplo la OMS colocando el límite en los 25 años.
Este límite desdibujado es producido también por otros factores
como el retraso en la edad de establecer parejas y convivencias más o menos
duraderas, los problemas para admitir la responsabilidad de tener hijos y la
resistencia que ello genera, pues habría un sector creciente de jóvenes y de
adultos que se niegan a perder márgenes de libertad por la asunción de nue-
vos compromisos.
Uno de los grandes cambios culturales que afecta a las sociedades
contemporáneas de los países más opulentos, consiste en la negativa, más
o menos consciente según los casos, a asumir ese carácter cerrado que pre-
senta la vida adulta para la mayoría de la población que se aproxima o ya se
encuentra definitivamente en esa edad. Como vimos, los hijos se presen-
tan como un obstáculo a la posibilidad de moverse y viajar, de cambiar de
vivienda, lugar de residencia y empleo, elecciones que chocan con la idea
de establecerse de manera duradera. La llamada juvenilización de la socie-
dad (MARGULIS; URRESTI, 1998; OBIOLS; DI SEGNI, 1998) se aso-
cia fuertemente con ese lugar vacante del adulto, llamado a desarrollar otro
tipo de rol y de estilo de acción, más vinculado con una estética y una expe-
riencia juvenil: abierta, en cambio, provisoria, en proceso de construcción.
Claro que ello se hace desde las seguridades relativas que otorga una buena
inserción social, más probable en los adultos, y que aleja a los mismos de las
incertidumbres típicas que aquejan al adolescente y al joven. La juveniliza-
ción es un síntoma de la vacuidad que la vida social plantea para cantidades
crecientes de adultos que prefieren mantener la sensación de incompletad,
como modo de experimentar la fuerza vital de la experiencia. De modo que
el antiguo término de la adolescencia y la juventud se presenta más flexible y
en proceso de reconstrucción.
Esto implica un reposicionamiento de los adultos que así tienden a
comportarse según las pautas tradicionales de los adolescentes y los jóvenes,
54 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

hecho que plantea una alteración muy importante respecto a los modos vi-
gentes de plantear la diferencia generacional, la transmisión educativa en tér-
minos de valores y la imposición de la autoridad. Los adultos alcanzados por
la juvenilización se encuentran – al igual que los adolescentes que entran en
relación con ellos – con conflictos desconocidos, con la consecuente des-
orientación que sufren y que generan. Este proceso ha llevado en extremo a
plantear una sociedad de la adolescencia (LIPOVETSKY, 1998; DI SEGNI,
2004), en la que cada vez menos personas estarían dispuestas a asumir el rol
adulto, deslegitimado entre otros factores por la insistencia de una cultura
narcisista empeñada en glorificar al adolescente como modelo de belleza y
de buena vida.
Pero este proceso, supone otras manifestaciones. El proceso de
juvenilización no se centra exclusivamente en el cuerpo y la imagen, sino
que también implica un estilo de vida cambiante e innovador por el cual
los adultos contemporáneos procuran hacer nuevos proyectos allí donde
los adultos del pasado tendían a aceptar como un destino sus decisiones
previas. Los adultos actuales cambian de pareja con más frecuencia, buscan
segundas oportunidades, conforman nuevos hogares. Estas búsquedas que
en el extremo pueden conducir a la ya mencionada “adultescencia”, son un
síntoma de los cambios sociales que alteran los grupos de edad. Este nuevo
adulto no tradicional, reciclado, con ganas de renovarse es minoritario por el
momento, pero se encuentra en crecimiento, especialmente entre los secto-
res urbanos medios y medios altos. Este adulto se aleja definitivamente del
modelo tradicional, más rígido y autoritario, propicio para la oposición ado-
lescente y define un terreno deslizante para los conflictos generacionales, la
transgresión y los desafíos a la autoridad.
Este clima es el resultado exacerbado de una larga tendencia que
se inicia en los años 60. En ese contexto, las nuevas generaciones cuestio-
naban a las anteriores, procurando estilos de vida diferentes y distantes
de aquello que esas sociedades les destinaban. Buena parte de la llamada
cultura juvenil es una reacción estetizada, con base en la música, el cine
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 55

y otras manifestaciones de las industrias culturales, de este conflicto que


los jóvenes le plantean a las generaciones adultas de su momento (ROS-
ZACK, 1973; MAFFI, 1974; MEAD, 1970). Allí, las nuevas camadas re-
sisten entrar en la vida adulta definida por las culturas parentales vigentes,
cuestionan la autoridad de los padres, muy anclada en la tradición y en una
obediencia más o menos automatizada a los mandatos establecidos. Con
esa oposición procuran nuevos caminos en la sexualidad y en el modo de
vivir la corporalidad, en las maneras de presentarse ante los otros, en la
conformación de los vínculos afectivos y las familias y, con el tiempo, en el
modo de criar los hijos. Esto tuvo consecuencias marcadas respecto de la
familia y de la escuela en su rol educativo: ambas fueron cuestionadas y, en
algunos casos, incluso rechazadas por las corrientes más extremas que cir-
culaban por esos años. Las culturas juveniles colocan a esas instituciones
como máquinas autoritarias que se reproducen sin razón (CASULLO,
1983; BELTRÁN FUENTES, 1989). El rock, la poesía, el teatro, el cine
y la literatura de esos años se vuelven muy críticos al respecto en un clima
de antiautoritarismo generalizado en el que las generaciones jóvenes se
lanzan a búsquedas persistentes de autonomía y de opciones creciente-
mente abiertas y alejadas de las heredadas (MONTELEONE, 1993; DE
LA PUENTE, 1996; REGUILLO, 1991; URRESTI, 2000).
Una de las tendencias que se afianzan con ello es la apertura creciente
a la diversidad y tolerancia en materia de convivencia y relación con los otros.
Esta tendencia afecta especialmente la relación que se va a plantear con el tiem-
po entre los nuevos padres surgidos de esas generaciones y sus hijos: los padres
que comienzan a tener hijos en la década del ochenta, son por lo general hijos
de las culturas juveniles de los años sesenta y setenta, lo que significa que ya
han entrado en contradicción con la cultura tradicional de sus propios padres
y han optado por transmitir en su rol de educadores nuevos modelos, menos
autoritarios y rígidos que los del pasado. Así, estos adultos responden a otros
patrones, desarrollados en el marco cultural del proceso de juvenilización y de
la influencia de las culturas juveniles. Por lo tanto, son otros adultos, más flexi-
56 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

bles, más plásticos y tolerantes, reacios al ejercicio duro de la autoridad, espon-


táneamente antiautoritarios y contrarios al castigo. Por lo general, mantienen
sus gustos juveniles en música, en salidas, en estilo de vida, en indumentaria,
con lo cual le plantean a los adolescentes y jóvenes actuales que son sus hijos,
nuevos desafíos para la puesta en escena de la oposición generacional, pues
el espacio que definen, surge de transgresiones previas en las que ha quedado
reducido el margen de maniobra.
En esa situación los gestos de la transgresión juvenil entran en una
suerte de doble vínculo: entre las transgresiones actuales hay hijos que se
colocan en situaciones conservadoras y abreactivas, con incursiones en tra-
diciones y ortodoxias que sus padres no entienden ni comparten: para dar
algunos ejemplos, casos de religiosidad marcada y radical en familias ateas
o agnósticas, constitución de parejas formales y hasta célibes en hogares al-
tamente liberales respecto del sexo, reglas rígidas en el ámbito de la alimen-
tación, la nutrición o el deporte en familias de clima hedonista, embarazos
precoces en familias que presionaron con la anticoncepción y el cuidado,
o adolescentes que hartos del rock y del espíritu libertario de sus padres se
abrazan a cualquier canción comercial o interprete de moda en las radios
masivas. (URRESTI, 2009)
Del mismo modo, en este ambiente de acercamiento difuso, hay
adolescentes que redoblan los gestos rupturistas de las culturas juveniles
pioneras de sus padres, subiendo la apuesta en búsquedas estéticas y esti-
lísticas extremas, con lo que se distinguen de la generación anterior, lo que
en conjunto desemboca en la enorme proliferación de las culturas juveniles
actuales, cada vez más variadas y corriendo aceleradamente en una fuga sin
fin. Esta situación de renovación de rupturas produce la radicalización de
las culturas juveniles, con la proliferación de estilos y una definitiva tribaliza-
ción del conjunto, más allá de las grandes coincidencias que se observan en
las mayorías moderadas. Con esta segunda forma de la transgresión se pro-
duce una explosión de subculturas minoritarias y en constante dispersión
(URRESTI, 2009).
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 57

En términos evolutivos, el período actual describe una curva com-


pletamente heterogénea respecto de la etapa pionera: mientras las antiguas
culturas juveniles tendían a ser generacionales y generalizantes, las actuales
no interpelan al joven en general si no al joven especificado por estilo, con lo
cual tienden a establecerse en nichos singulares. Mientras las antiguas cultu-
ras juveniles tendían a una internacionalización proveniente de la impronta
de los jóvenes – y los mercados – de los países centrales, las actuales surgen
de enmarañados procesos de intercambio en los que se afianzan los flujos de
mensajes y estilos en coordenadas periferia–periferia, periferia–centro y, sin
que desaparezcan, centro–periferia, aunque reconociendo la transforma-
ción de ese centro como un núcleo alternativo y descentrado de su sociedad
de origen. Las nuevas culturas juveniles tienden en conjunto hacia una pro-
liferación de formas y de estilos que fragmenta el espacio cultural y rompe
con la lógica uniformizante de las antiguas: lo alternativo, lo minoritario y lo
disperso tienden a ganar en relieve con mucha mayor fuerza que en épocas
anteriores (POLHEMUS, 1994; URRESTI, 2008, 2009).
En este contexto, las nuevas tecnologías de la comunicación, y especial-
mente, del universo hipertextual de Internet completan el cuadro de la diver-
sidad y la dispersión crecientes. Estas herramientas son vehículos formidables
para la comunicación y la búsqueda de información en las direcciones más in-
sospechadas, lo que acrecienta los apetitos singulares y la pluralidad resultante
en el conjunto de las nuevas culturas juveniles. Estas tecnologías funcionan
como un catalizador eficaz de las microculturas juveniles aludidas, de origen
siempre local y vocación translocalizada. La información que para las culturas
juveniles antiguas era casi imposible de localizar por fuera de los medios masi-
vos de comunicación o del mercado y las industrias culturales, está hoy en día
disponible en cualquier computadora con acceso a la red para cualquiera que
se proponga buscarla. Los foros de los temas más diversos están en desarrollo
permanente y se asemejan a los nichos que hemos descripto. Esos nichos hoy
pueden ser fácilmente globales, aunque se desarrollen en la computadora si-
tuada en la habitación de los adolescentes y jóvenes de las clases medias o en
58 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

la máquina que se alquila por horas en un cibercafé de la periferia. Esto nos


habla de una nueva red de multiplicación de contenidos, donde operan mo-
delos hipertextuales de comunicación, no lineales, complejos y con múltiples
posibilidades, si los comparamos con las formas comunicacionales analógicas
previas, intensas como experiencia aunque rudimentarias e insoslayablemente
monótonas. Las culturas juveniles de la actualidad ganan así en autonomía, en
la medida en que circulan completamente adaptadas a la demanda, arrojando
como resultado un mapa de variedad en crecimiento, puntillismo y fragmen-
tación impensables en el modelo anterior (URRESTI, 2008; BALARDINI,
2004; MORDUCHOWICZ, 2008; SOLÉ BLANCH, 2006).

La tensión entre socialización, subjetivación


e instituciones escolares

En este contexto general el rol de las instituciones socializadoras y


educativas se rearticula radicalmente. En primer lugar con una crisis que se-
gún algunas voces plantea directamente el fin de la transmisión intergenera-
cional (TEDESCO, 2000, 2007; SIMONE, 2000; y con algunas variantes
DI SEGNI, 2004) y por lo tanto el fin de la escuela como institución socia-
lizadora y encargada de distribuir conocimientos comunes. Si partimos del
hecho de que la familia y los adultos se han corrido del lugar tradicional de
autoridad y se encuentran en una cierta paridad respecto de los hijos, que
de este modo han ganado en fuerza y en capacidad de negociación y has-
ta de imposición en ciertas decisiones que los implican directamente, hay
que admitir que la capacidad socializadora de esas instancias se encuentra
seriamente debilitada, especialmente si se las compara con las mismas ins-
tituciones unos años atrás. Asimismo, si la socialización primaria – que es
la educación que imparte la familia – es la base sobre la cual luego se monta
la socialización secundaria – que es la que corresponde a la escuela-, en cir-
cunstancias de debilitamiento de las generaciones mayores, la transmisión
de contenidos tenderá a perder arraigo y eficacia.
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 59

Si la socialización familiar se debilita, la escuela tampoco puede re-


emplazarla, primero porque no es su función, segundo porque si lo hace no
va a tardar en despertar la oposición de padres que rechazaron la socializa-
ción dura y prefirieron otros modelos menos cruentos e impositivos y, ter-
cero, porque la escuela no puede ser en términos de valores más estricta que
la familia, al menos no puede serlo con capacidad de incorporación real y
comprobable. Si una familia es más laxa en el ejercicio de la autoridad que
una escuela, es altamente probable que la escuela se encuentre con un es-
collo importante cuando trate de limitar a un adolescente que fuera de ella
goza de libertades más amplias concedidas por sus padres. Y más aún, no es
improbable que toda la familia entre en conflicto con la institución escolar
si percibe la limitación como algo arbitrario y poco justificado. En el mejor
de los casos puede suceder que conductas que son relativamente aceptables
fuera de la escuela, no pasen sus fronteras y se mantengan al margen, con
la escuela como ámbito “liberado”. En estos casos particulares, como suce-
de con las armas (DUTZCHATSKY; COREA, 2002) o con los celulares
(BACHER, 2009), que son mucho menos ofensivos, hay una aceptación
relativa en ambos lados de la frontera de lo que se puede y no se puede ha-
cer, lo que conviene y no conviene hacer en un ámbito o el otro, pero está
claro que la escuela no puede imponer el punto de vista propio, sus valores o
ideales por fuera de su jurisdicción, en un contexto que la ha superado y que
eventualmente la respeta como si fuera una isla y no una matriz ejemplar de
producción de convivencia y virtud pública. Allí, la competencia del medio,
la cotidianeidad de las familias y las actividades predominantes en un lugar
determinado, tienden a llevar la voz cantante cuando se trata de definir lo
que es lo correcto y conveniente en términos genéricos.
En una situación semejante, con padres y escuelas debilitadas, los gru-
pos de pares y los adolescentes mismos ganan en fuerza y en capacidad de so-
cialización horizontal. Esta condición es la que permite plantear la hipótesis de
una creciente autosocialización por parte de las generaciones jóvenes, cada vez
más autónomas si las comparamos con las de tiempos pasados. Si las indus-
60 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

trias culturales, los medios audiovisuales y las tecnologías digitales de la comu-


nicación facilitan el acceso a voces múltiples, fuentes de información virtual-
mente infinitas, multiplicación creciente de contactos entre pares, grupos de
pertenencia y grupos de referencia cada vez más amplios y ubicuos, también es
claro que el conjunto de los repertorios que permiten construir mundos pro-
pios, identidades compartidas, grupos y colectivos centrados en la generación
a la que se pertenece, pero también una imagen de la realidad y una opinión
general sobre el lugar que como sujeto se tiene en la historia, es evidente que
los adolescentes cuentan cada vez con más elementos que les ayudan a inde-
pendizarse de la opinión y el parecer de los adultos con los que interactúan. Se
trata de la otra cara de la pérdida de autoridad de las generaciones mayores: un
equiparamiento en las condiciones de información/formación, con la conse-
cuente reducción de las asimetrías.
Los medios masivos de comunicación, pero especialmente el univer-
so hipertextual en expansión que es la red de redes, adquieren una presencia
multiplicada entre los canales de transmisión de información y aunque no
sean educativos en el sentido estricto del término, son ampliamente socia-
lizadores y subjetivadores con la eficacia comunicativa y preformativa que
cabe esperar de ellos, lo que representa un caudal de imposición de enorme
capacidad, que no siempre está de acuerdo con lo que las familias o el siste-
ma educativo intentan transmitir (BACHER, 2009; MARTÍN-BARBERO,
2008; URRESTI 2008). De este modo, si pensamos en la fuerza relativa que
adquieren los grupos de pares y el conjunto de apelaciones que suministran
los diversos medios y redes de comunicación, las opciones que tienen las
generaciones menores para elegir sus gustos y preferencias, sus repertorios
de representaciones, retratos y relatos, la autosocialización deja de ser un tó-
pico de la ciencia ficción social o de las profecías más o menos lejanas de
algunos autores como Margaret Mead (1970) para convertirse en una reali-
dad crecientemente palpable en la que se desenvuelven progresivamente los
jóvenes y los adolescentes de nuestra actualidad. Partiendo de esta hipótesis,
la escuela puede terminar funcionando en algunos casos extremos aunque
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 61

perfectamente posibles como un mero contenedor en el que se encuentran


ciertos grupos de pares que tienen la capacidad de articular su mundo de
vida cotidiana más allá y más acá de los límites de la institución. Esos grupos
a su vez, cuando interactúan sobre temas que les interesan, utilizan su tiempo
en búsquedas absolutamente personales o puntuales -si son grupales- fuera
o incluso dentro de la institución a la que le responden con meros formalis-
mos y atención flotante y dispersa, mientras se dedican con intensidad ma-
yor a las cuestiones que los mueven e identifican con fuerza convocante.
Esta pérdida de interés que en muchos casos afecta a la escuela no es
independiente de su reciente debilitamiento en el terreno de garantizar una
inclusión laboral y social mejor, hecho que se ve dolorosamente magnifica-
do cuando ni los que cumplen con ella y sus mandatos logran ascenso social
en todos los casos, ni los que no cumplen en absoluto se quedan necesaria-
mente afuera también en todos los casos. La inclusión y el ascenso social no
están emparentados con una educación más persistente, duradera, intensa o
de calidad superior. En un contexto social en el que se registran números cre-
cientes de trabajos inestables, precarios y de duración inferior a los de épocas
recientes, la escuela no puede salir indemne y sin manchas (FILMUS, 1999;
LÓPEZ, 2005; SALVIA, 2000, 2008; URRESTI, 2000). Que la desarticu-
lación del trabajo protegido y decente tienda a ser la característica central
del mercado laboral y en especial, el que se destina a los jóvenes, conduce a
entender la condición juvenil como una condición precaria y poblada por
incertidumbres que se prolongan en el tiempo, lo cual obliga a estabilizar
cada vez más tarde las trayectorias posibles en este juego. Así, un podero-
so dador de sentido externo a la educación, como fue tradicionalmente el
mundo del trabajo, se difumina con la consiguiente pérdida de sentido de
la institución escolar en sí misma, para las autoridades y los docentes, pero
especialmente para los adolescentes y sus familias, que como vimos pueden
entrar en conflicto con la escuela, una institución en la que se registra una
confianza cada vez menor, algo que se acrecienta especialmente entre los
sectores trabajadores y populares marginados de los circuitos laborales.
62 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

El rol de la escuela y la educación respecto del trabajo ha perdido su


aura como elemento suficiente para impulsar el ascenso social de un sujeto
o una familia y como se sabe, no es por razones educativas, curriculares o pe-
dagógicas, sino por el desarrollo mismo de un mercado laboral que se preca-
riza incluso cuando la economía logra altas tasas de actividad y crecimiento.
(SALVIA et al., 2008) El conjunto de valores tradicionalmente implícitos que
hicieron de la experiencia escolar una preparación para el trabajo, esa cultura
común basada en el esfuerzo, el sacrificio y la inversión, pasan por una rees-
tructuración de la que no se saben todavía sus consecuencias, aunque haya
acuerdos sobre el debilitamiento de su validez. La llamada ética del trabajo se
encuentra en competencia con una estética del consumo (BAUMAN, 1999,
2004; SENNETT, 2000) lo que participa seriamente en el desplazamiento
del capitalismo de producción keynesiano, hacia un capitalismo de consumo
poskeynesiano, en el que el factor trabajo pierde peso a favor del factor consu-
mo. Este cambio rompe con los pactos de disciplinamiento por un lado, pero
también con la obligación mutua de responder a las exigencias del sector tra-
bajo comprometido con el proceso (SENNETT, 2000; CASTEL, 1997); el
consumo en cambio, no tiene requisitos, no necesita capacidades más allá del
poder de compra, no se compromete con una moral específica, ni procura una
disciplina aceptada. El consumo aunque pueda depender en parte del trabajo
– si se lo toma como fuente de ingresos –, también puede reproducirse por
fuera de él y no exige mayores mecanismos de distribución que la estructura
de las oportunidades o la lógica del cazador (MERKLEN, 2005; URRESTI,
2006). En este sentido, puede desligarse del trabajo y el mérito, y replegarse en
la mera oportunidad y su aprovechamiento. Se trata de una dura lección edu-
cativa que la economía despliega todo el tiempo y que educa sin proponérselo.
En este juego, la escuela se ve débil, antigua, meritocrática y disciplinaria, en
un mundo mucho más flexible y cruel, que sin embargo se impone con una
renovada eficacia entre las generaciones más jóvenes, pero también entre sus
padres y las familias en que se encuentran, con lo cual el problema es mayor
(FIZÉ, 2001; MARTÍN-BARBERO, 2008).
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 63

En las sociedades de la periferia continuamos viviendo en un espacio


social en el que el estado se ha corrido del centro, con la entrada fuertemente
conquistadora del mercado, un interpelador que como hemos visto es po-
tente en el caso de las generaciones menores y se afianza con el hiperconsu-
mo. En sociedades donde los recursos son escasos o están distribuidos de
maneras muy desiguales, las posibilidades objetivas de los distintos tipos de
adolescentes y de jóvenes de insertarse en el futuro, tenderán a ser tan disí-
miles como los recursos materiales, afectivos, didácticos y de apoyo exterior
con los que puedan contar. Como se ha comprobado innumerables veces,
un adolescente solo, expuesto a un ambiente violento, recibido por una ins-
titución educativa que lo ignora o que lo subsume con distancia en una ca-
tegoría general e impersonal, transitará por sus nuevas incertidumbres con
la inseguridad que le imprime la vida precaria que le ofrece su medio. Otro
adolescente, protegido, escuchado, con espacios verdes para hacer depor-
tes, alimentado con las mejores ideas e intervenciones pedagógicas de sus
adultos cercanos, tenderá a desarrollar otras competencias para el futuro. En
ese juego, las instituciones educativas segmentan por segunda vez aquello
que el sistema social ha segmentado previamente, lo que coloca el problema
en el terreno de la distribución de los recursos de todo tipo con los que se
edifica una sociedad.
Asimismo, en sociedades que tienden a sustentar su organización
sobre la base estratégica del conocimiento aplicado, la escuela puede ganar
en relieve estratégico en la medida en que es la llave de acceso a ese primer
escalón formativo del que provendrán los otros posteriores en el tiempo. La
mala noticia es que en nuestras sociedades este recurso, las posibilidades de
aprendizajes significativos y eficaces para la inclusión en circuitos producti-
vos de trabajos decentes, se distribuye de manera muy desigual y llega a un
segmento minoritario de la población. Una buena formación de calidad se
logra recién en la universidad y esa meta suele estar muy lejana para la ma-
yoría, especialmente en sociedades segmentadas. Es por ello que hay que re-
pensar el rol del mercado laboral y sus posibilidades, con el fin de recolocar
64 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

las instituciones educativas medias en un contexto en el que recobren parte


de la eficacia perdida como transmisoras. Eso tendrá sin dudas un horizon-
te que es insuperable, el del debilitamiento sin retorno de la autoridad de
los adultos sobre las generaciones menores, pero el mínimo común a lograr
debe ser planteado y evaluado para dotar de nuevo sentido a las instituciones
escolares, que como vimos también están perdiendo fuerza. Si eso sucede, la
adolescencia y la juventud serán el escenario de experiencias formativas ri-
cas, de proyectos reales de inserción futura, probablemente venturosos si se
suman a la potencia autosocializadora de la que los jóvenes gozan en nues-
tros días. Lo que sí es cierto por el momento, es que mientras esos factores
no se distribuyan, si esos apoyos fundamentales para el desarrollo personal,
grupal y generacional se escatiman, para lo cual no se puede pensar en otra
herramienta que la del estado, es altamente improbable que en ese terreno
podamos esperar el éxito.

Referencias
AAVV. Viviendo a toda, jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilidades. Bogotá: Universidad Central /
Diuc/Siglo del Hombre, 1998.
ABERASTURY, Arminda et al. Adolescencia. Buenos Aires: Kargieman, 1971.
ALTAMIRANO, Carlos (Comp.). Términos críticos: Diccionario de términos de sociología de la cultura y
análisis cultural. Buenos Aires: Paidós, 2003.
ARIOVICH, Laura; PARISOW, Javier; VARELA, Alejandro. Juegos en el shopping-center. In: MARGULIS,
Mario et al. La juventud es más que una palabra. Buenos Aires: Biblos, 1996.
ARIZAGA, Cecilia. Ciudad y usos del espacio en los jóvenes. In: WORTMAN, Ana. Pensar las clases medias.
Consumos culturales y estilos de vida urbanos en la Argentina de los noventa. La Crujía, Buenos Aires, 2003.
BACHER, Silvia. Tatuados por los medios. Buenos Aires: Paidós, 2009.
BALARDINI, Sergio. De dejáis y ciberchabones. Subjetividades juveniles y tecnocultura. Jóvenes, Revista
sobre estudios de Juventud, Mexico, Edición 8, n. 20, ene./jun. 2004.
BAUMAN, Zigmunt. Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Barcelona: Gedisa, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. La sociedad sitiada. Buenos Aires: FCE, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidad líquida. Buenos Aires: FCE, 2005.
BELTRÁN FUENTES, Alfredo. La ideología antiautoritaria del rock nacional. Buenos Aires: Ceal, 1989.
BLOSS, Peter. Los comienzos de la adolescencia. Buenos Aires: Amorrortu, 1973.
BRASLAVSKY, Cecilia. La juventud Argentina: informe de situación. Buenos Aires: Ceal, 1989.
BUCKINGHAM, D. Reading audiences: young people and the media. Manchester: Manchester University
Press, 1993.
Adolescentes, jóvenes y socialización: entre resistencias, tensiones y emergencias 65

BURBULES, N.; CALLISTER, T. Educación: riesgos y promesas de las nuevas tecnologías de la información.
Buenos Aires: Granica, 2008.
CASTEL, Robert. La metamorfosis de la cuestión social. Buenos Aires: Paidós, 1997.
CASULLO, Nicolás. Argentina: el rock en la sociedad política. Comunicación y cultura, México, n. 12,
ago.1984.
CATTARUZZA, Alejandro. El mundo por hacer. Una propuesta para el análisis de la cultura juvenil en la
Argentina de los años sesenta. Entrepasados, Buenos Aires, año 6, n. 13, 1997.
DE LA PUENTE, Eduardo; QUINTANA, Darío. Todo vale: antología analizada de la poesía rock argentina
desde 1965. Buenos Aires: Distal, 1996.
DI SEGNI, Silvia. Adultos en crisis, jóvenes a la deriva. Buenos Aires: Noveduc, 2004.
DOLTO, Françoise. La causa de los adolescentes. México: Seix Barral, 1992.
DUBET, F.; MARTUCELLI, D. En la escuela: Sociología de la experiencia escolar. Barcelona: Losada, 1998.
DUTZCAHTSKY, S.; COREA, S. Chicos en banda. Buenos Aires: Paidós, 2002.
ERIKSON, Erik. Identidad, juventud y crisis. Buenos Aires: Paidós, 1974.
ERIKSON, Erik. Sociedad y adolescencia. México: Siglo XXI, 1987.
FEIXA PAMPOLS, Carles. De las culturas juveniles al estilo. Nueva antropología, México, v. 15, n. 50, oct.
1996.
FEIXA PAMPOLS, Carles. De jóvenes, bandas y tribus. Barcelona: Ariel, 1998.
FILMUS, Daniel. Los noventa: Política, sociedad y cultura en América Latina y Argentina de fin de siglo.
Buenos Aires: Eudeba, 1999.
FIZE, Michel. ¿Adolescencia en crisis? Por el derecho al reconocimiento social. México: Siglo XXI, 2001.
HEBDIGE, Dick. Subculture: the meaning of the style. London: Routledge, 1977.
HOBSBAWN, Eric. Historia del Siglo XX. Barcelona: Crítica, 1995.
KRAUSKOPF, Dina. Adolescencia y educación. San José de Costa Rica: Euned, 2000.
LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean Claude (Ed.). Historia de los jóvenes. Madrid: Taurus, 1996.
LIPOVETSKY, Gilles. La era del vacío. Barcelona: Anagrama, 1982.
LIPOVETSKY, Gilles. Tiempos hipermodernos. Barcelona: Anagrama, 1998.
LÓPEZ, Néstor. Equidad educativa y desigualdad social: Desafíos a la educación en el nuevo escenario
latinoamericano. Buenos Aires: IIPE-Unesco, 2005.
MAFFESOLI, Michel. El tiempo de las tribus. Barcelona: Icaria, 1990.
MAFFI, Mario. La cultura underground. Barcelona: Anagrama, 1975.
MARGULIS, M.; URRESTI, M. La construcción social de la noción de juventud. In: AAVV. Viviendo a toda.
Bogotá: Universidad Central/Diuc/Siglo del Hombre, 1998.
MARGULIS, M.; URRESTI, M. La juventud es más que una palabra. In: MARGULIS, Mario et al. La juven-
tud es más que una palabra. Buenos Aires: Biblos, 1996.
MARGULIS, Mario et al. La cultura de la noche: La vida nocturna de los jóvenes en la ciudad de Buenos
Aires. Buenos Aires: Espasa Calpe, 1994.
MARGULIS, Mario. Juventud, cultura y sexualidad: La dimensión cultural de la afectividad y la sexualidad
de los jóvenes de Buenos Aires. Buenos Aires: Biblos, 2003.
MARTÍN BARBERO, Jesús. Jóvenes: des-orden cultural y palimpsestos de identidad. In: AAVV. Viviendo a
toda. Bogotá: Universidad Central/Diuc/Siglo del Hombre, 1998.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Reconfiguraciones de la comunicación entre escuela y sociedad. In: TENTI FAN-
FANI, Emilio (Comp.). Nuevos temas en la agenda de la política educativa. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.
66 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

MEAD, Margaret. Cultura y compromiso. Buenos Aires: Granica, 1970.


MERKLEN, Denis. Pobres ciudadanos: las clases populares en la era democrática (Argentina, 1983-2003).
Buenos Aires: Gorla, 2005.
MONTELEONE, Jorge. Cuerpo constelado. Sobre la poesía del rock argentino. Cuadernos Hispanoameri-
canos, Madrid, n. 517-519, Jul./Sep. 1993.
MORDUCHOWICZ, Roxana. La generación multimedia: Significados, consumos y prácticas culturales de
los jóvenes. Buenos Aires: Paidós, 2008.
OBIOLS, Guillermo; DI SEGNI, Silvia. Adolescencia, posmodernidad y escuela secundaria. Buenos Aires:
Kapelusz, 1998.
PARSONS, Talcott. Class as a social system. Harvard Educational Review, Fall, v. 29, n. 4, 1959.
POLHEMUS, Ted. Street styles. London: Thames and Hudson, 1994.
REGUILLO, Rossana. En la calle otra vez: Las bandas: identidad urbana y usos de la comunicación. Gua-
dalajara: Iteso, 1991.
ROSZACK, Theodor. El nacimiento de una contracultura. Barcelona: Kairós, 1973.
SALVIA, Agustín. Una generación perdida: los jóvenes excluidos en los noventa. Mayo: Revista de estudios
de juventud, Buenos Aires, año 1, n. 1, Buenos Aires, 2000.
SALVIA, Agustín. Jóvenes promesas: Trabajo, educación y exclusión social de jóvenes pobres en la Argentina.
Buenos Aires: Miño y Dávila, 2008.
SENETT, Richard. La corrosión del carácter. Barcelona: Anagrama, 2000.
SIDICARO, Ricardo; TENTI, Emilio (Comp.). La Argentina de los jóvenes: Entre la indiferencia y la indig-
nación. Buenos Aires: Unicef/Losada, 1998.
SIMONE, Raffaele. La tercera fase: Formas de saber que estamos perdiendo. Madrid: Taurus, 2000.
SOLÉ BLANCH, Jordi. Microculturas juveniles y nihilismos virtuales. Revista Textos de la Cibersociedad, n. 9.
Disponível em: http://www.cibersociedad.net/textos/articulo.php?art=98. Acesso em: 25 mar. 2006
TEDESCO, Juan Carlos. Educación y hegemonía en el nuevo capitalismo: algunas notas e hipótesis de traba-
jo. Propuesta Educativa, Buenos Aires, año 12, n. 26, jul. 2003.
TEDESCO, Juan Carlos. Educar en la sociedad del conocimiento. Buenos Aires: FCE, 2009.
TENTI, Emilio. Notas sobre la escuela y los modos de producción de hegemonía. Propuesta Educativa,
Buenos Aires, año 12, n. 26, Julio de 2003.
URRESTI, Marcelo (Ed.). Ciberculturas juveniles: los jóvenes, sus prácticas y sus representaciones en la era
de internet. Buenos Aires: La crujía, 2008.
URRESTI, Marcelo. Adolescentes, consumos culturales y usos de la ciudad. Revista Encrucijadas UBA
2000, Revista de la Universidad de Buenos Aires, Nueva Época, año 2, n. 6, feb. 2002.
URRESTI, Marcelo. Cambio de escenarios sociales, experiencia juvenil urbana y escuela. In: TENTI FANFA-
NI, Emilio (Ed.). Una escuela para los adolescentes. Buenos Aires: Losada, 2000.
URRESTI, Marcelo. Las nuevas culturas juveniles: diversidad, tribalización y nuevas formas de conflicto gene-
racional. In: VITARELLI, Marcelo; CONCA, Adriana Tessio (Comp.). Juventud y educación: Aportes de la
investigación y perspectivas de acción. Córdoba: Editorial de la Universidad Católica de Córdoba, 2009.
URRESTI, Marcelo. Jóvenes de sectores populares: vulnerabilidad, exclusión, reacciones y resistencias. Río
Revuelto, Rosario, n. 1, ene. 2006.
URRESTI, Marcelo. Nuevos procesos culturales, subjetividades adolescentes emergentes y experiencia es-
colar. In: TENTI FANFANI, Emilio (Comp.). Nuevos temas en la agenda de la polítia educativa. Buenos
Aires: Siglo XXI, 2008.
WILLIS, Paul. Learning to Labor. New York: Columbia University Press, 1981.
Sociabilidade juvenil, mídias
e outras formas de controle social
Maria da Graça Jacintho Setton

O trabalho do cientista social é próximo ao do artesão. Demanda tem-


po, abstração e contemplação. A construção dos nexos entre as partes
aparentemente díspares e distantes exige um olhar atento, uma perspectiva
com foco. No caso específico da sociologia, a complexidade derivada da di-
versidade das dimensões estruturais e simbólicas do mundo social torna-se
por vezes obscura em função dos imponderáveis da ação e da criação dos
sentidos dos sujeitos sociais.
Dessa forma, a primeira tarefa que se impõe àquele que se propõe
a dissertar sobre algum aspecto de um fenômeno social, como, por exem-
plo, a sociabilidade do jovem, é tentar tal como um artista sensibilizar seu
receptor por meio de mediações estéticas e conceituais. Isto é, a partir de
inquietações e/ou de estímulos prévios, apropriar-se de conhecimentos já
levantados e através deles reconstruí-los, a fim de torná-los inteligíveis do
ponto de vista da teoria científica.
O compromisso aqui é com a sociologia e a partir dela será desen-
volvida uma narrativa sobre o tema “Culturas e sociabilidades juvenis, mídia
e consumo”. Apoiando-se em uma perspectiva relacional de análise, traba-
lhar-se-á com a intenção de indicar aspectos importantes que a bibliografia
recente vem se debruçando sobre o problema em questão.
68 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Assim, servirão de base algumas noções já concebidas acerca das


instituições socializadoras família e escola, a fim de tecer possíveis desdo-
bramentos, relacionando-as com a importância das mídias no consumo e na
formação da sociabilidade jovem (SETTON, 2002, 2005).
Julga-se que metodologicamente a socialização do jovem e, como
decorrência, sua sociabilidade entre os pares e com as mídias deve ser com-
preendida a partir de uma perspectiva dialética e, notadamente, com o apoio
do conceito forjado por Marcel Mauss – o conceito de fenômeno social total
(SETTON, 2009b). Trabalhando em tempo integral com as relações de in-
terdependência entre as matrizes de cultura, família, religião, escola, mídia e
agora acrescentando as formas de socialização entre os pares, a hipótese de
circunscrever os processos socializadores a partir desse conceito parece ser
a forma mais adequada, pois ele permite ver os processos sociais vividos pe-
los jovens em todas as dimensões, ou seja, a dimensão econômica, política,
religiosa, cultural, moral e estética, entre outras. Além disso, o conceito de
fenômeno social total permite ver o processo socializador como uma nego-
ciação contínua, uma via de mão dupla, em que a participação do jovem e
as instituições sociais mantêm tensas e intensas relações simbólicas de reci-
procidade.
Vale salientar que não se trata de um exercício de erudição acadê-
mica, mas de uma construção reflexiva que ajuda também a circunscrever
as instâncias de socialização numa perspectiva relacional tendo como eixo
central a participação do jovem em seu processo educativo. Mais do que
isso, leva a pensar essas instâncias responsáveis pela formação de um habitus,
sistema de disposições, tal como apontado por Pierre Bourdieu. No entanto,
diferente das colocações desse autor, é realçado o processo de socialização
das formações atuais como sendo um espaço plural de múltiplas referências
identitárias. Ou seja, a modernidade caracteriza-se por oferecer um ambien-
te social em que o jovem encontra condições de forjar um sistema de refe-
rências que mescle as influências familiar, escolar e midiática (entre outras),
um sistema de esquemas coerente, no entanto, híbrido e fragmentado. Em-
Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle social 69

bora se saiba que no contexto moderno cada uma das instâncias formadoras
desenvolva campos específicos de atuação, lógicas, valores éticos e morais
distintos, considera-se ainda que são os próprios jovens e ou os indivídu-
os que tecem as redes de sentido que os unificam em suas experiências de
socialização. É o indivíduo que tem a capacidade de articular as múltiplas
referências propostas ao longo de sua trajetória. É ele o sujeito da unidade
social na qual se podem efetivar diferentes sentidos de ações, estas últimas
derivadas das suas múltiplas esferas de existência. Nele cruzam-se e intera-
gem sentidos particulares e diferentes. Ele não é apenas o único portador
efetivo de sentidos, mas a única sede possível de relações entre eles.1
Assim sendo, opta-se por uma perspectiva sociológica. Ou seja,
busca-se a relação dialética entre indivíduo e sociedade e procura-se
uma forma de interpretar as ações sociais, as práticas coletivas, com base
em uma troca incessante entre as duas faces de uma mesma realidade (o
indivíduo e suas matrizes sociais de cultura). Analisando o processo de
socialização considerando a articulação das ações educativas de várias
instâncias produtoras de bens simbólicos, pretende-se compreender
os jogos da reciprocidade, interação e sociabilidade estabelecidos pe-
los jovens. Em outras palavras, busca-se apreender a dinâmica do cam-
po da socialização e, como decorrência, o campo das sociabilidades na
contemporaneidade, observando a tensão entre agentes sociais, e, dessa
forma, busca-se a apreensão de uma luta simbólica de valores entre eles.
Parte-se metodologicamente da experiência de jovens social, temporal
e culturalmente diferenciados.
Trabalha-se pois com a hipótese da existência de vários modelos de
articulação entre as matrizes de sentido responsáveis pela formação de su-
jeitos sociais singulares. Assim sendo, cabe perguntar, qual o papel de cada
uma dessas instâncias na vida dos jovens? Quais os pontos de ruptura ou
convergência entre elas que ampliariam outras frentes de sociabilidade?
1 As noções de indivíduo, sujeito e agente social são usadas como sinônimos, ainda que se tenha consciência
das distinções teóricas dadas pela sociologia e pela filosofia.
70 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Ao considerar a socialização e suas formas de sociabilidade como


um fato social total, a intenção não é apropriar-se da noção das trocas con-
tratuais, potlach ou kula, comentadas por Mauss (1974) de forma mecâ-
nica e linear. Ao contrário, o interesse é apropriar-se dessas noções como
uma inspiração de análises, inspiração que ajude a pensar a socialização e
as sociabilidades delas decorrentes como fenômenos generalizados, prá-
ticas que implicam necessariamente uma troca, uma reciprocidade, ainda
que tensa e, às vezes, em forma de luta. Fenômenos que envolvem a todos
– indivíduos e instituições – e, para que se realizem, se manifestam nas
dimensões econômica (origem social), política (posição ideológica), reli-
giosa (crença) e estética (gosto) na vida de todos nós. Conforme lembra
Mauss (1974), depois de um tanto forçadamente haver dividido e abstra-
ído sobre algumas das matrizes de cultura, é preciso que os sociólogos se
empenhem em recompor o todo.
Contudo, o fato social total não chega a ser total pela simples reinte-
gração dos aspectos descontínuos: familiar, escolar, religioso, midiático de
cada um deles; é preciso ainda que o fato social total se encarne em uma expe-
riência individual. Ou seja, primeiro em uma história individual que permita
observar o comportamento dos seres totais e não divididos em faculdades;
segundo, a partir de um sistema de interpretação que simultaneamente con-
sidere os múltiplos aspectos (físico, psíquico, sociológico) de todas as con-
dutas.2
O fato social total, apresenta-se, pois, com um caráter tridimensional. Deve
fazer coincidir a dimensão propriamente sociológica com seus múltiplos
aspectos sincrônicos: a dimensão histórica, ou diacrônica; e, finalmente, a
dimensão fisiopsicológica. Ora, é só nos indivíduos que esta tríplice aborda-
gem pode ser feita. (...) A noção de fato social total está em relação direta com
a dupla preocupação, que para nós havia parecido única até agora, de ligar o
social e o individual de um lado, o físico (ou o fisiológico) e o psíquico de
outro. (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 14-15)

2  Para mais detalhes sobre essa discussão, consultar Setton (2009b).


Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle social 71

As instituições de controle social

Embora os estudos sobre a problemática da socialização familiar


e, mais especificamente, sobre o seu papel no escopo das mudanças relati-
vas à sociabilidade jovem sejam extremamente importantes no campo da
sociologia da educação, é possível afirmar que ainda temos pela frente um
universo imenso a explorar. Nessa parte inicial da discussão, apresentam-se
uma reflexão sobre a instituição família, em um contexto societário contem-
porâneo, e os limites que ela encontra no processo de transmissão e controle
dos valores culturais de sociabilidade e de gosto entre seus membros mais
jovens.
Primeiramente é importante ressaltar que, no Brasil e no interior das
Ciências Sociais, a grande maioria dos trabalhos sobre família concentra-
se nos anos de 1980 e de 1990. Contudo, inquietações relativas às trans-
formações em sua organização interna, discussões sobre o papel social de
seus membros, bem como as funções socializadoras que exercem, chamam
a atenção para um período de redefinição de sua importância em alguns as-
pectos relativos às formas de controle social que impõe as novas gerações
(SETTON, 2009a).
Ademais, é forçoso salientar que em recente pesquisa sobre juventu-
de, no banco de teses da Capes (1999-2006), nas áreas das Ciências Sociais,
Educação e Serviço Social, num total de aproximadamente 1.290 trabalhos,
pode-se verificar que apenas 16 delas se ocuparam exclusivamente da insti-
tuição familiar. É como se sua importância há muito assinalada construísse
uma percepção de esgotamento entre os pesquisadores. Mais especialmente
na área da Educação, a maioria dos estudiosos se debruça na realização e na
definição das múltiplas conexões que ela pode desenvolver com sua grande
parceira, a escola (SPOSITO, 2009).
Por outro lado, no mesmo levantamento da Capes, entre os pesqui-
sadores das áreas acima referidas, as mídias passam a espelhar o universo jo-
vem. Com relação ao estado de conhecimento anterior, referente ao período
72 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

de 1984-1998, observamos um crescimento expressivo de trabalhos. Se nos


14 anos anteriores o tema “Juventude e mídias” tinha sido incorporado ao
item “Estudos emergentes”, apresentando apenas 13 trabalhos, o intervalo
atual de sete anos registra o número de 74 dissertações e teses. Isto é, grande
parte dos trabalhos – 27 ao todo – dedica-se a estudar as velhas mídias (TV,
cinema, vídeos); logo à frente, com um número mais significativo, temos o
interesse pelo uso das novas mídias digitais oferecida pelos computadores
em rede – 29 ao todo (SETTON, 2009a).
Mas diferentemente dessas abordagens, as próximas considerações
serão realizadas com base nas inter-relações entre família, escola, mídias e
grupos de pares.
Nesse sentido, vale salientar que até os anos de 1960, a sociologia
se refletiu sobre as instituições família e escola, sobretudo como duas insti-
tuições separadas, não antagônicas, é claro, mas cada instituição tendo uma
função, assumindo papéis complementares no controle e na socialização
dos indivíduos. De um lado, a família como espaço de afeto, espaço privado,
responsável por um patrimônio e uma herança cultural de base. De outro,
a escola como espaço público de formação, educação moral e profissional
dos indivíduos. Instituições de socialização e de controle, coerentes, ambas
investindo em um projeto integrado, voltado para o desenvolvimento do sis-
tema social (DURKHEIM, 1978).
Contudo, em meados do século passado, nos países ocidentais e
desenvolvidos, com o crescimento de um mercado de cultura, pode-se
visualizar uma nova configuração sociocultural. Em poucos anos, a socie-
dade moderna ver-se-ia imersa em uma realidade cultural desconhecida
até então. Surge timidamente, mas aos poucos se consolida um mercado
difusor de informações e de entretenimento com forte caráter socializa-
dor. Ou seja, chama-se a atenção para o surgimento de outra instituição
uma nova matriz de valores que passou a se denominada cultura de massa.
Com toda sua diversidade, aparato tecnológico e capacidade de publicizar
Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle social 73

conselhos e estilos de vida, a cultura de massa difunde uma série de valo-


res societários. O mercado de cultura midiática partilhará, de agora em
diante, junto com a família e a escola, uma responsabilidade socializadora
(MORIN, 1984; SETTON, 2002). Nesse contexto, é forçoso considerar
uma nova articulação entre as agências educativas. Família e escola, tradi-
cionalmente instituições com o monopólio da formação de personalida-
des e do controle social, aos poucos se fragilizam na função de construir
disposições de uma moral cultural, perdendo espaço para as referências
derivadas das mídias.
Dessa forma, seria importante perguntar: quais as implicações na es-
fera da sociabilidade jovem tendo como base a perda do controle parental e
escolar e a emergência de um consumo midiático? Quais os elementos que
ajudariam a formalizar um entendimento sobre a fragilização dos valores
culturais de herança parental e escolar e a sociabilidade jovem?
Crê-se que um dos fatores de fundamental importância se encon-
tra nos aspectos relativos à consolidação de novas autoridades sociais e à
interdependência entre autoridades provenientes de distintas matrizes de
cultura.
Nesse contexto de transformação, a bibliografia autorizada afir-
ma que as maneiras de controle das autoridades familiar e escolar como
formas e respostas a um tipo de tradição vêm sendo questionadas. Assim
sendo, caberia examinar também os alcances e limites de suas formas de
controle. Aliás, os jovens não estando tão intensamente sujeitos às influ-
ências familiares e escolares estariam construindo brechas libertárias em
suas experiências de socialização e sociabilidade, estariam vivendo um
momento historicamente propício para uma autonomia reflexiva?
Partindo desse argumento, julga-se importante avançar de maneira
mais apurada em formas de controle social pouco investigadas, isto é, às re-
lativas aos grupos de pares, aquelas que Dominique Pasquier (2005) deno-
minou tirania da maioria.
74 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Elementos estruturais da nova configuração cultural

Neste particular, valeria fazer uso das contribuições de Anthony


Giddens (1991) acerca das profundas transformações de caráter insti-
tucional vividas nas sociedades contemporâneas. Mais especificamente,
para ele, a separação entre tempo e espaço é crucial para o extremo dinamis-
mo das sociedades, pois ela é responsável pelo deslocamento das relações
sociais de contextos locais de interação. É consenso que tal dinamismo
é proveniente, sobretudo, do avanço da mediação tecnológica em nos-
sa vida material e simbólica. Vivemos em um mundo descontextualizado,
cujos espaços de convivência não se reduzem ao aqui e ao agora. Nesse
cenário, as noções de autoridade e confiança são reformuladas. Para Gid-
dens, a tendência de se ponderar sobre os múltiplos sistemas de referência,
devido ao acesso fácil que temos a eles, é uma questão que se impõe (GI-
DDENS, 1991).
Em síntese, seria possível afirmar que a variedade de instituições
com competência e autoridade distintas, a acentuada circulação de modelos
de conduta, bem como a redução das funções das instituições tradicionais
da educação contribuem para a construção de identidades mais reflexivas.
Ou seja, sendo múltiplas as versões sobre os fenômenos sociais que nos ro-
deiam, o cenário das discussões, críticas e controvérsias se potencializariam.
Para Giddens (1991), o caráter transitório dos conhecimentos, dos
saberes e das autoridades é um elemento-chave para as problematizações
acerca das autoridades e das formas de controle dos valores societários. As
autoridades solidamente construídas passam a ser questionadas. O caráter
transitório dos saberes derivados das distintas instituições deixa espaço para
uma maior liberdade de ação dos indivíduos. Amplia-se o desenvolvimento
da esfera da reflexividade como um importante componente para se pensar
as mediações e as negociações de valores e controle entre as gerações.3
3  A respeito do aumento da capacidade reflexiva no mundo contemporâneo, consultar também
Dubet (1996) e Martuccelli (2002).
Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle social 75

Em outras palavras, não se sanciona uma regra do comportamento,


não se obedece a uma autoridade por ser tradicional. As autoridades, sejam
elas da tradição ou não, só se justificam à luz de sua razoabilidade ou po-
der coercitivo. Assim, o impacto das forças da modernidade contribui para
repensar as relações institucionais, as autoridades e as formas de controle
dos mais velhos e a negociação/autonomia dos mais jovens. Em síntese, a
reestruturação institucional e cultural pela qual passam as agências socializa-
doras força-nos a repensar as relações entre adultos e jovens.
Auxiliando nessa discussão, a contribuição de Dominique Pasquier,
em Cultures lycéennes: la tyrannie de la majorité (2005), é bastante interessan-
te, pois laça uma série de questionamentos relativos à sociabilidade dos jo-
vens e as relações que mantêm com seus pares. Para ela, podemos entender
as relações institucionais familiares e a forma de controle entre as gerações a
partir do consumo das mídias e das práticas de cultura entre os jovens. Pode-
se compreender o jovem em relação ao mundo adulto com base na análise
das maneiras como se relacionam com as novas mídias, como, por exemplo,
o celular, os chats, os blogs etc.
Pasquier é sensível a um conjunto de situações e estratégias na socia-
bilidade jovem em que o grupo ou a força coletiva dos pares passa a ser mais
forte do que os valores transmitidos pela família ou pela escola. Sua discus-
são alimenta reflexões sobre os limites do poder e do controle da autoridade
familiar na transmissão de um capital cultural de herança e a emergência de
outras formas de controle e autoridade social, independente da condição de
classe vivida pelo jovem. Ademais, introduz o leitor a um novo e particular
universo de pesquisas sobre as novas mídias e as novas formas de integração
desse segmento social.
A força dos lazeres realizados pelos grupos de pares, a intensa so-
ciabilidade do segmento, bem como a crescente autonomia dos jovens na
escolha de suas práticas de cultura são também uma tendência apontada
por Olivier Donnat (2003, 2003a) e Philipe Coulangeon (2003a, 2003b,
2007). Para esses autores, os lazeres individualizados, a fragilização das
76 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

normas familiares na constituição do gosto jovem, a importância da escola


como espaço de sociabilidade que reúne cotidianamente esse grupo etário e
a pressão correspondente do grupo de pares em relação a seus membros são
aspectos relevantes para a questão que deve ser pensada relacionalmente.
Perguntando-se sobre as mudanças das práticas de cultura entre os jovens,
Pasquier permite verificar que as relações intrageracionais parecem mais de-
terminantes do que a origem social ou a escolaridade nas determinações de
um gosto cultural estreitamente relacionado com a cultura das mídias. Nes-
se sentido, a transmissão de cultura, as formas de controle cultural passam
por uma série de transformações em que a massificação escolar, as relações
parentais, o poder das mídias, juntamente com a força dos grupos de pares,
são elementos intensamente relacionados.
Como resultado desse conjunto de mudanças, cresce simultanea-
mente a força dos grupos juvenis e a sociabilidade entre eles, ambas envol-
vidas com a cultura das mídias. Todo um novo universo de regras, normas,
valores e marcadores hierárquicos passam a comandar e permear as relações
internas entre os grupos juvenis. Todos sabem como se comportar, como
se vestir, o quê escutar ou assistir, sob pena de se sentirem marginalizados
da cultura jovem. A cultura culta, muitas vezes derivada da família e/ou da
escola, e/ou mesmo a tradição popular podem ser vistas como coisa de bur-
guês, de nerd, intelectual ou pobre. O importante é estar sintonizado com o
grupo.
Para os estudiosos do tema, a cultura culta pode auxiliar no rendimen-
to escolar, mas não na hierarquia de distinção entre os membros do grupo de
pares. Valorizam-se mais as atividades que estabelecem a comunicação e a
sociabilidade entre eles, atividades que pautam a conversa, o último vídeo no
Youtube, a última música, o seriado, a partida de esporte (DONNAT, 2003,
2003a; COULANGEON, 2003a; 2003b, 2007; PASQUIER, 2005).
Nesse sentido, é fácil compreender que o hábito da leitura de livros
perde espaço, pois é uma atividade lenta, isolada, de difícil conexão com os
pares. Observa-se o prestígio da cultura das ruas, a cultura popular do espe-
Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle social 77

táculo, o culto e o uso pelas tecnologias, muito favorecidas pelas mídias e


que remetem a um forte apelo de pertencimento e distinção interna entre
eles. É forçoso observar, portanto, as mudanças de status das autoridades e
as formas de controle das instituições tradicionais de cultura. A escola e a
família parecem apenas tangenciar esse jogo de reciprocidades simbólicas
produzido entre os jovens (SETTON, 2009b).
Em outras palavras, reestruturação institucional e novas autoridades
de cultura surgem construindo uma reorganização nas formas de controle
cultural. Professores e escolas perdem espaço ao assegurar suas forças esta-
tutárias. Fragiliza-se a função socializadora das famílias ao mesmo tempo
em que se reforçam os poderes estatutários das mídias e do grupo de pares.
Como síntese, poderíamos então afirmar que a fragilidade das auto-
ridades tradicionais levaria a uma maior autonomia dos jovens? Ou mesmo
poderíamos considerar que vivemos em tempo de maior liberdade para a
juventude? Ou estariam eles vivenciando outras formas de controle social?
Julga-se que, como todo conceito, a noção de sociabilidade é um ins-
trumento tanto teórico quanto histórico. Isto é, ele deve ser posto à prova.
Seguindo os aconselhamentos de larga tradição sociológica, deveríamos
fazer da teoria uma hipótese a se investigar (BOURDIEU, 1999). Devería-
mos, pois, pôr à prova a definição do conceito e submetê-lo a uma realidade
empírica. Ou seja, todas as formas de sociabilidade deveriam ser vistas como
benéficas e isentas de interesse e controle social? Todos se beneficiariam
igualmente da comunidade de espírito desenvolvida pelos grupos juvenis
ou deveríamos observar o lado sóbrio de uma tirania oculta, imperceptível
e pouco evidente que se tece no interior da sociabilidade jovem atravessada
ou não pela cultura midiática?
Considera-se que a questão é complexa e os limites deste artigo não
permitem que se alongue mais. Segundo esse argumento, a autonomia e a
reflexividade conquistadas em condições de modernidade não são apenas
questões abstratas. Ao contrário, ambas possuem profundas conexões com
o universo das condições de possibilidade historicamente dadas.
78 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

O estudo sistemático de novas condições de socialização na moder-


nidade impõe pensar a circulação de um registro cultural a outro, destacan-
do a pluralidade das matrizes com os quais os jovens têm de compor seu
repertório cultural. Mais do que isso, a sociabilidade jovem na modernidade
impõe pensar um processo amplo de socialização entre pares atravessados
por bens culturais disponibilizados por um mercado de cultura. Não obs-
tante, concordando com Renato Ortiz (1994), a modernidade traz em seu
bojo novas formas de controle, novas hierarquias de gostos e de inclinações
estéticas. A modernidade midiática e o lado sombrio da sociabilidade jovem
– ou a coerção do grupo de pares – podem encerrar difusas formas de poder
entre aqueles que advogam a liberdade e a autonomia.
Abre-se, portanto, o escopo de um amplo leque de investigações so-
bre a sócio-lógica do poder entre os segmentos jovens. Pela experiência de
pesquisa acumulada, seria possível afirmar que as reflexões acerca dos pro-
cessos socializadores conferem um campo que muito pode contribuir para
este debate (SETTON, 2009b).
E, nesse sentido, voltaria ao argumento do início do texto. Isto é, no
caso específico das investigações de ordem sociológica, a complexidade de-
rivada da diversidade das dimensões estruturais e simbólicas do mundo so-
cial torna-se, por vezes, obscura, em função dos imponderáveis da ação e da
criação dos sentidos dos sujeitos sociais. Isso posto, a sociabilidade jovem,
através do consumo midiático, deveria ser pensada em sua ambiguidade
constitutiva – ora oferecendo margens para a construção de uma identidade
jovem autônoma, ora fortalecendo o controle e a tirania do grupo de pares.

Referências
BOURDIEU, Pierre et al. A profissão de sociólogo. Petrópolis: Vozes, 1999.
COULANGEON, Philippe. La stratification sociale des goûts musicaux. Revue Française de Sociologie, Paris, v.
44, n. 1, p. 3-33, 2003a.
COULANGEON, Philippe. Quel est le rôle de l´école dans la démocratisation de l´accès aux équipements
culturels? In: DONNAT, Oliver; TOLILA, Paul. Le(s) public(s) de la culture. Paris: Press de Sciences Po,
2003b.
Sociabilidade juvenil, mídias e outras formas de controle social 79

COULANGEON, Philippe. Lecture e television: les transformations du role culturel de l´école. Revue Fran-
çaise de Sociologie, octobre, decembre, Paris, v. 48, n. 4, p. 657-691, 2007.
DONNAT, Olivier. Regards croisés sur les pratiques culturelles. Paris: La Documentation Française, 2003a.
DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução – A obra de Marcel Mauss. In: Sociologia e antropologia, Marcel Mauss,
v. II. São Paulo: EPU; Edusp, 1974. p.1-37.
MARTUCCELLI, Danilo. Grammaires de l´individu. Paris: Gallimard, 2002.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva, forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, Marcel.
Sociologia e antropologia. v. 2. São Paulo: EPU; Edusp, 1974.
MORIN, Edgar. A integração cultural. In: MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – o espírito do tempo.
1 – Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
PASQUIER, Dominique. Cultures lycéennes: la tyrannie de la majorité. Paris: Autrement, 2005.
SETTON, Maria da Graça J. Família, escola e mídia: um campo com novas configurações. Educação e Pesquisa,
Revista da FE-USP, v. 28, p. 107-116, jan./jun. 2002.
SETTON, Maria da Graça J. A particularidade do processo de socialização no mundo contemporâneo. Revis-
ta Tempo Social, São Paulo, p. 335-350, 2005.
SETTON, Maria da Graça J. Juventude, mídias e TIC. In: SPOSITO, Marília (Org.). O estado da arte sobre
juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006). Belo Horizonte:
Argumentum, 2009a.
SETTON, Maria da Graça J. A socialização como fato social total: um ensaio sobre a teoria do habitus. 2009b.
Tese (Livre-Docência) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.
SIMMEL, Georg. Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal. In: MORAES FILHO, Evaristo
de (Org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais – Sociologia).
SPOSITO, Marília. Estado da arte sobre juventude: uma introdução. In: SPOSITO, Marília (Org.). O estado
da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006). Belo
Horizonte: Argumentum, 2009.
Juventude e escola – elementos para
a construção de duas abordagens
Mônica Peregrino

E m 2006 defendi minha tese de doutorado, que investigava as novas


desigualdades escolares produzidas após a expansão da escolarização
média e a universalização da escolarização fundamental, a partir de meados
da década de 1990 no Brasil.
Investiguei então as desigualdades que marcavam a escolarização
dos jovens pobres, principal grupo atingido no processo de expansão da
instituição. No intuito de melhor compreender a natureza do fenômeno na
atualidade, comparei as trajetórias destes com as daqueles submetidos a pro-
cesso semelhante nas décadas de 1970, 1980 e 1990.
Para melhor compreensão dos contornos da expansão mais recen-
te, busquei estabelecer relações entre os processos de escolarização nos dez
anos que marcaram seu início, mergulhando nas relações entre a escola e seu
território no ano de 2005, assim como em sua dinâmica interna, a partir de
observação de seu viés etnográfico.
As conclusões permitiram aprofundar o conhecimento de um tipo
de instituição que, ao se expandir, amesquinha seu campo de ação junto aos
jovens recém-admitidos em seu interior, sem integrá-los. Ao focalizarmos
a relação entre juventude e escola, nos perguntávamos em que medida a
expansão da escola aos jovens havia ampliado, para eles, o espaço de expe-
82 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

rimentação da condição juvenil. Nos perguntávamos, enfim, que tipo (ou


que tipos) de escola havia(m) “surgido” com a expansão escolar, que experi-
ências de escolarização a instituição proporcionava, e, ainda, se a instituição
oferecida ampliava, para esses jovens, as possibilidades de experimentação
da condição juvenil.
Respondemos às duas primeiras perguntas, mas não à última delas,
porque nossos instrumentos metodológicos e analíticos eram capazes de
captar as mutações institucionais, mas não eram suficientemente eficazes
para captar o peso relativo da escola em suas trajetórias de vida. Não con-
seguimos responder satisfatoriamente a pergunta: a expansão da escola
aos jovens pobres ampliou, para eles, a oportunidade de uso da condição
juvenil?
Este texto tenta levantar elementos para responder as questões pro-
postas acima: as duas primeiras, feitas à escola, à instituição, são respondidas
com base na apresentação sucinta de investigação já concluída. A terceira, feita
aos jovens em suas trajetórias de transição para a vida adulta, será respondida a
partir de dados ainda preliminares de investigação em andamento.

Respondendo às duas primeiras questões:


os efeitos da expansão escolar sobre a escolarização de jovens

Presenciamos, desde a década passada, a expansão da escolarização


para grande parte dos jovens brasileiros. Essa expansão, relativa aos níveis
fundamental e (principalmente) médio dos sistemas públicos de ensino,
vem atingindo basicamente os jovens das camadas populares. Segundo Fan-
fani (2000), temos assistido, no processo de expansão das escolas na Amé-
rica Latina, à massificação dos sistemas de ensino. Ele mostra ainda que há
algo em comum nas “formas” de expansão das escolas nesses países:
Em muitos casos, este crescimento quantitativo não é acompanhado
por um aumento proporcional em recursos públicos investidos no
setor. Muitas vezes ‘teve-se que fazer mais com menos’. É muito pro-
vável que a massificação tenha sido acompanhada de uma diminui-
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 83

ção do gasto per capita, esticando ao máximo o rendimento de


certas dimensões básicas da oferta, tais como recursos humanos,
infraestrutura física, equipamento didático etc. (FANFANI, 2000.
Grifo nosso)

Em nosso caso, a “expansão milagrosa”, que faz “mais com me-


nos”, inicia-se durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso
(1994/2002). Aligeiramento dos conteúdos escolares, da formação de edu-
cadores, da estrutura física institucional, e, finalmente, diminuição do inves-
timento per capita, são os elementos centrais da “equação” que, a partir da
segunda metade da década de 1990, passa a dar sustentação à expansão do
ensino fundamental no Brasil (ALGEBAILE, 2009).
Nesse âmbito, inicia-se um processo, objetivando a “racionaliza-
ção” e a “correção” do setor escolar, com o objetivo de adequar a estrutura
já disponível a um atendimento mais eficaz, buscando para isso tanto a di-
minuição dos índices de retenção (repetência), quanto a ampliação geral da
escolarização da população. O programa de “aceleração da aprendizagem” é
a pedra de toque desse projeto que “produz” vagas pela aceleração de pro-
cessos sem, contudo, criar infraestrutura.
Isso não é surpreendente. Em um país desigual como este, uma insti-
tuição como a escola, que só é considerada legítima quando distribui de ma-
neira desigual o capital simbólico que detém, não se expande, e em particu-
lar não se expande ao acesso e ao tempo de permanência dos pobres – e em
especial dos jovens pobres – sem se modificar profundamente. Os exames
nacionais de avaliação vêm mostrando claramente que uma das dimensões
escolares “sacrificada” no processo de sua expansão tem sido exatamente a
da transmissão de conhecimentos.
Dessa forma, a expansão das vagas pela “aceleração” dos processos
de aprendizagem e do tempo de habitação da escola pelo jovem antes ex-
cluído desta, não vem, aparentemente, agregando valor aos processos de
escolarização, criando, dentro das instituições, uma espécie de “habitação”
escolar sem escolarização.
84 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Nesse contexto, não é de se estranhar que o ensino fundamental


mantenha níveis desiguais de desempenho e conclusão, como afirmou o
estudo sobre “as desigualdades na educação no Brasil” realizado pelo Obser-
vatório da Equidade, a partir de dados coletados no ano de 2005.
De acordo com o estudo, a expansão da escolarização, por aumento
do tempo de “habitação escolar”, não tornou a instituição menos seletiva.
Os dados são bastante conclusivos: se a taxa esperada de conclusão para a 4ª
série era de 89% no país (com 79% no Nordeste e 96% no Sudeste), para a
8ª série os índices apresentaram-se significativamente mais baixos: 54% no
país, sendo 38% no Nordeste e 69,3% no Sudeste.
Por fim, ainda no âmbito da análise dos níveis desiguais de desempe-
nho e conclusão, se tomarmos como causa as condições econômicas e sociais
adversas, veremos que, para o indicador “percentual de alunos de 1ª a 8ª séries
com renda inferior a ½ salário mínimo”, teremos, no país, ingressando na 1ª
série (no ano de 2005) 55,4% de alunos. Para o mesmo indicador, ingressaram
na 8ª série, no mesmo ano, apenas 36,4% dos alunos. Se tomarmos como refe-
rência a região Sudeste, teremos, para esse indicador, 41,2% de ingressantes na
primeira série do ensino fundamental, e apenas 26% de ingressantes na oitava,
demonstrando que, mesmo com estrutura precária, a escola mantém seletivi-
dade significativa para os segmentos mais pobres da sociedade.
Resta-nos perguntar qual tem sido o impacto da “última” expansão
do ensino fundamental sobre as instituições escolares.

Efeitos da expansão sobre a instituição

Destacamos aqui algumas conclusões de uma pesquisa que buscou


compreender as desigualdades novas, marcadas pela expansão da escolari-
zação no Brasil nos tempos que correm, assim como as possíveis atualiza-
ções de antigas formas de produção de lugares diferenciados no âmbito dos
processos de escolarização, tomando como base as décadas de 1970, 1980,
1990, e o ano de 2005.
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 85

O estudo tomou uma escola da cidade do Rio de Janeiro, tratada


como aquilo que Bourdieu nomeia como “caso particular do possível”. Em
outras palavras, é o estudo profundo de um caso específico, nesse caso uma
escola, mas realizado de maneira a desvendar possíveis tendências, formas e
mecanismos passíveis de generalização. Importa nessa formulação menos
as características intrínsecas, “internas” do objeto a ser pesquisado, e mais a
construção, no processo de investigação, das relações que o objeto mantém
com as condições que o determinam.1
A novidade dessa abordagem consiste em captar os impasses vividos
pela instituição a partir dos processos de escolarização dos jovens que nela
habitam. É isso que particulariza o ponto de vista aqui descrito. É a partir dos
percursos dos jovens na escola que as formas de desigualdade, de tempos
passados e presentes, vão sendo analisadas.
A pesquisa de campo, cuja síntese das conclusões apresentamos
aqui, foi realizada a partir de dois âmbitos, complementares em termos de
análise. Em primeiro lugar foi construído um quadro das desigualdades que
marcaram a entrada e presença dos jovens pobres na escola pública durante
as décadas de 1970, 1980 e 1990.
Para isso foi realizado um levantamento de pouco mais de mil fichas
do arquivo morto da escola, recortando as trajetórias percorridas pelos jo-
vens estudantes do ginásio em quatro anos seguidos de escolarização em
cada uma das décadas cobertas pela pesquisa.
A seguir foi realizado um tratamento para os dados que permitiu a
identificação das desigualdades de origem entre os estudantes. Foram usa-
dos como critérios de diferenciação: os locais de moradia (separados de
forma mais ampla entre moradias dentro e fora das favelas) e as profissões
dos pais dos alunos da escola (separados de forma mais ampla em trabalha-
dores manuais e não manuais). Para a década de 1970 foi usado ainda um
terceiro critério: a presença (ou ausência) de atestado de pobreza. Com isso
1 “O caso particular do possível” não se refere, portanto, a qualquer atributo do objeto, mas a uma forma de
construir o objeto durante a pesquisa.
86 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

foi possível “materializar” as desigualdades nas categorias “extremos” e “não


extremos”, permitindo a identificação de desigualdades sociais dentro do
conjunto de estudantes da escola.
Por fim, através do cruzamento dos dados indicativos das desigual-
dades sociais com os dados referentes às faixas etárias e aos percursos (as
turmas e turnos pelos quais passaram) realizados pelos alunos (agora iden-
tificados por suas idades e condição social), foi possível a construção de dia-
gramas que permitiram conclusões importantes.
Primeiramente, as desigualdades estabelecem trajetórias no interior
das instituições. Essas trajetórias percorrem não só turmas como também tur-
nos. Trajetórias desiguais são a expressão de pressões, também desiguais, feitas
sobre os grupos sociais que habitam a escola, sendo os grupos socialmente
mais vulneráveis aqueles mais atingidos pelos processos de seleção escolar.
Além da pressão seletiva sobre os mais vulneráveis, o estudo cons-
tatou ainda uma tendência à segregação dos desiguais (sociais), que desde
a década de 1970 opera numa composição variável, por vezes separando os
desiguais em turnos diferentes, por vezes criando circuitos de turmas dis-
tintas, e num terceiro momento pode realizar-se através da composição de
ambas as estratégias, mas que se reafirma num princípio: pobres e ricos, na
escola brasileira, são praticamente “imiscíveis”. E mais: o estudo constatou
que, em todas as décadas, durante o processo de configuração de turmas e
de turnos, a segregação dos desiguais precedia a seleção.
Se a expansão da escola aos jovens pobres se inicia nos anos 1970, a
década de 1980 traz uma “novidade” em termos de população escolar, que
será determinante para a elaboração e a execução das políticas públicas no
ensino fundamental. É que nessa década aprofunda-se e generaliza-se um
processo de circunscrição da escola pública fundamental aos pobres, com a
saída em massa das classes médias do interior da instituição.
A década de 1990, em especial sua segunda metade, busca caminhos
de atenuação da seleção, sobretudo de seus efeitos, através de processos que,
se não evitam a produção de exclusões por parte da escola, mantêm por
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 87

tempo mais longo os “excluídos” no interior da instituição. Esses “caminhos”


se estendem até os nossos dias.
Portanto, as desigualdades que marcam os processos de escolariza-
ção dos jovens, e em especial os pobres, se multiplicam: primeiramente, pelo
aumento das distâncias entre os sistemas de ensino, estabelecendo circuitos
específicos para as classes sociais. Em segundo lugar, pela diversificação e
complexificação das desigualdades, dentro dos sistemas públicos de ensi-
no, estabelecendo desigualdades entre regiões, entre instituições, e, por fim,
dentro da mesma escola, desigualdades entre turnos e turmas, apontando
algumas vezes para a existência, num mesmo espaço, de mais de um perfil
institucional.2
Há ainda uma segunda dimensão na investigação das trajetórias dos
jovens pobres no interior das escolas públicas, e ela busca responder como
as desigualdades se manifestam no interior da instituição nos dias que cor-
rem. O ano de referência para a coleta dos dados dessa parte da pesquisa foi
2005, com o levantamento das fichas do arquivo de cada um dos 670 alunos
matriculados no segundo segmento do ensino fundamental no período. O
objetivo nessa fase foi o de construir um quadro das desigualdades que se
multiplicam na escola, segmentando e tornando mais complexo aquilo que
vemos como um todo indistinto.
Os resultados da pesquisa de 2005 apontam que uma das formas
mais importantes de manifestação de desigualdades na escola, hoje, refere-
se à existência, dentro de um mesmo espaço institucional, de “modos” di-
versos de escolarização. Nossa pesquisa agrupou as modalidades em dois
tipos característicos.
2 Na pesquisa, esse movimento “interno” de mudança nas formas de selecionar e segregar, mantendo uma
intensa pressão sobre os extremos, ganha sentido na conexão com as mudanças mais amplas pelas quais acon-
tecem as relações sociais, a dinâmica política, as políticas públicas que regulam o campo, a organização e a
valorização/desvalorização dos espaços da cidade. Nesse caso o que se buscou foi mostrar que as mudanças
na escola estão ligadas às mudanças do fluxo da história. É exatamente nesse ponto que o recorte do “caso
particular do possível” ganha mais força, ao buscar “transformar” aquilo que poderia ser o estudo específico
de uma instituição em particular numa singular posição de observação de outras escolas e, quem sabe, das
relações sociais de forma mais ampla.
88 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

O modo pleno de escolarização agrupa aqueles alunos que acumu-


lam: média de anos de escolarização compatível com o número de séries
cursadas; fluxo contínuo pelas séries; sem frequência importante aos pro-
jetos compensatórios de alfabetização ou de aceleração da aprendizagem;
com um número residual de repetências e abandonos escolares durante um
curso ginasial feito em trajetória contínua.
Ao contrário do conjunto acima descrito, o modo precário de esco-
larização abrange alunos: com média de anos de escolarização muito acima
do número de séries cursadas, descontinuidade e fragmentação como mar-
cas de um curso primário entrecortado por repetências, rupturas, ingresso
em projetos inorgânicos entre si e em suas relações com a tradição das séries,
configurando trajetórias que se destacam pela multiplicidade das formas e
pela concatenação inusitada de seriação, ingresso em projetos e repetências.
Essas trajetórias encontram continuidade num curso ginasial feito de repe-
tências múltiplas, coroadas por abandonos.
Processos de escolarização realizados dessa forma implicam: traje-
tórias diferentes e desiguais no interior de uma mesma instituição; possibi-
lidades desiguais de apropriação dos conhecimentos que a escola devia, por
princípio, disseminar, de acordo com o modo de escolarização ao qual se
é submetido. Se nas turmas de trajetória plena, o fluxo contínuo pelas sé-
ries permite a acumulação paulatina de conjuntos de conhecimentos, nos
modos de escolarização precária as repetências e abandonos, entrecortados
pelo ingresso em projetos diferentes e às vezes incomunicáveis de aceleração
da aprendizagem, criam uma situação em que o acúmulo de conhecimentos
torna-se impossível, mesmo numa situação de multiplicação do tempo de
habitação da escola.
Este estudo nos permitiu perceber que a consolidação das táticas
escolares de seleção sem exclusão (ou contando com mecanismos de ate-
nuação da exclusão) vem criando, dentro da escola, modos desiguais de es-
colarização, cuja marca distintiva é a variação, por vezes chocante, do grau de
precariedade que os diferentes modos expressam e incorporam.
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 89

Assim, a forma particular com que a expansão da escola se deu fez


com que a instituição adquirisse um aspecto “misto”, operando, em seu inte-
rior, com “zonas” de “baixa institucionalidade”, onde as “leis escolares” (sejam
as da seleção, sejam as do controle) não são capazes de regular a instituição.
Instalou-se, assim, na escola, uma “nova” forma de desigualdade, que
ao buscar inserir os extremos, as margens, as misérias, acaba criando, no inte-
rior dos espaços institucionais, zonas variáveis e múltiplas de despossessão,
marcadas por mecanismos que não apenas colocam a institucionalidade em
crise, mas também interrogam sua legitimidade e colocam em xeque seus
próprios critérios de regulação.
Por outro lado, qual o impacto de tais modificações nos processos
de escolarização dos jovens pobres?
Pelo que vimos até aqui, há diferenças importantes nos processos de
escolarização dos jovens. Processos desiguais de escolarização representam
desiguais experiências de escolarização. Essas desigualdades (nos processos,
nas experiências) estão marcadas não só pela ocupação de lugares desiguais
no “espaço escolar”, implicando trajetórias também desiguais dentro de um
mesmo espaço institucional, mas também pela multiplicação das segmenta-
ções do espaço escolar, na complexificação das experiências de desigualda-
de escolar numa mesma instituição.
Há, porém, regularidades nessas mudanças: os jovens de origem so-
cial mais vulnerável ocuparam sempre as posições de menor prestígio. Em
contrapartida, aos de melhor posição social ficaram garantidas as melhores
condições de escolarização.
Fragmentação, descontinuidade, ausência de histórico de escolari-
zação (ausência, portanto, da história da escolarização), repetências reniten-
tes, analfabetismo mesmo com anos de escolarização, primários que duram
oito, nove, às vezes dez anos, fracasso e desqualificação, desenraizamento
institucional: esse é o modo com que se escolarizaram, no curso primário,
contingentes maciços das turmas de “pior” rendimento, acumulados num
dos turnos da escola .
90 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Fluxo intermitente por séries sem interrupções, alta frequência de


registros (para os já apontados padrões precários do município), necessida-
de de adesão às vezes acrítica aos valores escolares, disciplina, obediência,
distinção numa instituição precária: esse, um outro modo de escolarização
na mesma instituição. Neles encontramos grande parte dos jovens ocupan-
tes das turmas de melhor rendimento da escola.
Entre os extremos, um sem número de formas intermediárias de es-
colarização, mostrando o quão viva e dinâmica é a fronteira que separa as duas
formas extremas e o quão intensa pode ser a busca de adesão ou as tentativas
de resistência às “formas-limite” de escolarização apontadas neste texto.

Acumulando elementos para responder a terceira questão:


a importância relativa da escola na transição para a vida adulta

Para tratarmos da questão deixada em aberto, trazemos aqui os pri-


meiros resultados de uma pesquisa em andamento desde setembro de 2009,
e que busca compreender as regularidades e as singularidades que marcam
as trajetórias de escolarização e de trabalho dos jovens moradores de uma
cidade periférica do Leste Metropolitano do Rio de Janeiro. Nela tentamos
compreender os possíveis nexos entre os modos de escolarização abertos
no processo de expansão da escola e os modos de inserção no mundo do
trabalho abertos pela expansão da economia local, assim como suas possí-
veis expressões territoriais.
A partir da caracterização da história da cidade e de seus distritos
e do levantamento da distribuição de equipamentos e de bens de consu-
mo coletivo em cada um de seus cinco distritos, conseguimos construir um
mapeamento, que, ainda preliminar, permite-nos comparar as condições de
vida em cada uma das regiões administrativas da cidade.
A partir daí, buscamos junto ao cadastro do programa Projovem
Trabalhador do Município o conjunto de jovens que, moradores da cidade,
saindo do ensino médio e em busca de trabalho e de qualificação profissio-
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 91

nal, constituísse o grupo que nos permitisse acesso às respostas que buscá-
vamos em nossa investigação.
Trataremos aqui de maneira bastante breve apenas dos primeiros
dados levantados pela investigação. As análises aqui apresentadas são fruto
dos dados constantes no cadastro do programa Projovem Trabalhador (que
no caso de São Gonçalo contava com 6473 jovens de ambos os sexos) e
dos resultados da aplicação de questionários fechados a 5% da amostra (e
que obedecia a um plano de aplicação que buscava captar a diversidade de
jovens matriculados a partir da variedade de cursos oferecidos e dos locais
de oferta). Se nossos dados, portanto, ainda não permitem conclusões mais
consistentes, eles abrem caminho, certamente, para a construção de algumas
hipóteses bastante fecundas.

Uma brevíssima caracterização do campo da pesquisa:


a cidade de São Gonçalo
Pouco vigorosa em termos industriais (no quadro das demais cida-
des médias metropolitanas do Rio de Janeiro), São Gonçalo será possivel-
mente beneficiada pela implantação de um polo petroquímico em região
próxima. Sua economia, atualmente, tem importante participação do setor
de serviços, com forte dependência das economias de Niterói e do Rio de
Janeiro. A cidade encontra-se subdividida em cinco distritos: Neves, São
Gonçalo, Sete Pontes, Monjolos e Ipiíba.
A relativa melhoria da situação econômica vivida nos últimos anos
e as promessas de crescimento trazidas pela construção do polo, porém, não
vêm sendo traduzidas na melhoria de seus serviços de infraestrutura urba-
na. Tomando apenas os dados referentes ao abastecimento de água por rede
geral e ao percentual de domicílios ligados à rede geral de esgotamento sani-
tário, vemos que São Gonçalo (assim como os demais municípios do Leste
Metropolitano do Rio de Janeiro, com exceção talvez de Niterói) não tem
sido capaz de transformar seu crescimento econômico em benefícios para a
população habitante.
92 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

O modo de urbanização crescente e polarizada, que implicou ini-


cialmente melhorias concentradas em algumas de suas regiões (em especial
o Distrito de Neves), sem que tivesse havido, contudo, planejamento urba-
no que estendesse os benefícios às demais regiões, indicando um processo
de ocupação por sobreposição de sistemas, com refuncionalização de seus
espaços, sem modificação profunda de sua infraestrutura (FERNANDEZ,
2009), contribuiu para as desigualdades presentes entre seus distritos. Mes-
mo contando com indicadores que apontam para precários serviços de in-
fraestrutura urbana em todos os seus distritos, há concentração destes nos
dois distritos mais equipados (Neves e São Gonçalo) e deficit significativo
em dois outros (Monjolo e Ipiíba). Isso nos permite concluir que se, por um
lado, São Gonçalo é desigual mesmo na distribuição de seus parcos recur-
sos, por outro lado, mesmo nas faixas sociais mais vulneráveis, encontrare-
mos nuances significativas em termos de condições de vida.

Uma breve caracterização dos jovens


matriculados no programa

Do total de jovens matriculados, 69% pertencem ao sexo feminino.


Quanto à cor da pele, as proporções distribuem-se de maneira semelhante
para homens e mulheres: 34% de brancos; 22% de negros e 44% de pardos.
Quanto à escolaridade, 55% dos jovens matriculados têm ensino médio com-
pleto, 20% têm ensino médio incompleto, 10% têm ensino fundamental com-
pleto e 7% tem ensino fundamental incompleto (o grupo com ensino funda-
mental completo e incompleto, como já era de esperar, acumula percentuais
mais altos nas mais baixas faixas de renda – aqueles que acumulam valores de
renda familiar não superiores a um salário mínimo). Os percentuais de jovens
com ensino técnico, e superior incompleto, não são significativos.
Quanto à renda, 11,5% dos jovens encontram-se na faixa de renda
familiar de até meio salário mínimo, 31% estão na faixa que vai de meio a
um salário mínimo, 44,5% estão na faixa entre um e dois salários mínimos,
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 93

9,5% estão na faixa entre dois e cinco salários mínimos e apenas 3,5% estão
na faixa entre cinco e dez salários mínimos. As mulheres estão mais repre-
sentadas nas faixas etárias mais altas cobertas pelo programa (os rapazes são
predominantes nas faixas etárias mais baixas) e têm menor acesso a e-mail
(ao contrário dos rapazes).
Por fim, quando cruzamos os dados sobre a renda familiar com a
variável sexo, percebemos que se a predominância e a importância relativa
da faixa que agrupa aqueles que têm renda familiar de um a dois salários mí-
nimos são semelhantes para os dois sexos, a situação é outra quando com-
paramos os percentuais presentes nas faixas de renda das “extremidades”.
Há maior percentual de mulheres nas mais baixas faixas de renda e menor
percentual de mulheres nas faixas de renda mais altas. O contrário acontece
com os rapazes. Eles estão mais representados nas faixas mais altas e menos
representados nas faixas mais baixas.
Quando relacionamos renda e distrito de moradia, percebemos que,
apesar de operarem com faixas percentuais mais ou menos próximas, os dis-
tritos mais bem equipados (em termos de equipamentos públicos de con-
sumo coletivo), Neves e São Gonçalo, são aqueles que apresentam menores
percentuais das mais baixas faixas de renda e maiores percentuais das mais
altas faixas de rendimento. Essas diferenças ficam ainda mais claras quando
tomamos os dois distritos mais distantes dos dois primeiros distritos em ter-
mos de provimento de equipamentos, os distritos de Monjolos e de Ipiíba.

Primeiras constatações provenientes da leitura


dos questionários

Primeiramente, selecionamos para esta apresentação os questioná-


rios respondidos pelos jovens com ensino médio completo, residentes nos
distritos mais extremos em termos de condições de vida e de provimentos
de equipamentos e bens públicos. De um lado, Neves, o distrito mais antigo,
planejado e provido da cidade, e, de outro, os distritos de Monjolos e de Ipi-
94 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

íba, que, como já sabemos, são aqueles que concentram as condições mais
adversas na cidade.
Constatamos, em primeiro lugar, a impressionante preponderância
das mulheres nesse programa (como já nos mostravam os dados do cadas-
tro, elas perfazem quase 70% dos matriculados). Nesse caso, é possível per-
ceber a presença de mulheres mais velhas, casadas ou solteiras, em busca
de reinserção no mercado de trabalho. É significativo também o número de
mulheres mais velhas e casadas que buscam no programa sua primeira inser-
ção no mercado de trabalho.
Os mais jovens, tanto do sexo feminino quanto do sexo masculino,
também estabelecem um “tipo” no conjunto. Com idades que variam de 18
a 20 anos, e ensino médio completo feito sem reprovações, são jovens que,
apesar de nunca terem trabalhado, ou de o terem feito por períodos mui-
to curtos, acumulam uma infinidade de cursos de preparação/qualificação
para o trabalho,3 e que nos casos mais promissores agregam um conjunto de
funções que caracterizam uma área de formação.
Mesmo trabalhando com um grupo relativamente homogêneo (todos
com ensino médio completo, matriculados em cursos de preparação/ingresso
no mundo do trabalho, moradores de cidade situada na periferia da metrópole
carioca), foi possível a captação de nuances importantes para a investigação.
Como era de se esperar, os jovens das regiões mais providas eram
também aqueles de maior renda, os que frequentavam as escolas públicas
de referência na região, os que conseguiam articular suas poucas e efêmeras
experiências de trabalho com cursos de capacitação que permitiam a confi-
guração de uma “área de atuação”. Estes eram também os jovens “mais no-
vos” e que não apenas afirmavam circular nos núcleos mais dinâmicos das
cidades como Rio de Janeiro e Niterói, mas que indicavam querer ampliar
seu acesso a tais núcleos.

3 Nesses cursos também já é possível perceber “tipos” diferentes. Há os cursos que chamaremos de “básicos”,
como inglês, espanhol, cursos de informática, digitação, e cursos que chamaremos de capacitação para ativi-
dades mais dirigidas.
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 95

Em contrapartida, do conjunto dos jovens matriculados no Projo-


vem Trabalhador de São Gonçalo em 2009, os residentes nas regiões mais
precariamente providas de serviços e equipamentos públicos (os distritos
de Monjolos e Ipiíba) foram também aqueles que acumularam as maiores
frequências de escolarizações noturnas, alguns com históricos de repetên-
cias, em escolas locais (não nucleares) e menos equipadas. As experiências
de trabalho eram reduzidas e restritas, assim como os relatos dos cursos de
qualificação realizados. Nesses distritos também foram mais frequentes os
relatos de trabalhos manuais e domésticos. As experiências de trabalho e de
escolarização eram mais restritas em Ipiíba e mais variadas em Monjolos.
Monjolos e Ipiíba são os dois distritos de menor presença de equi-
pamentos e bens públicos, num município de precária provisão destes. Do
universo de jovens estudado, os moradores desses distritos foram os que
apresentaram maior frequência nas mais baixas faixas de renda. A renda
apresentada era menor em Monjolos e maior em Ipiíba. Em Monjolos a
vida é mais precária do que em Ipiíba. Ipiíba é mais isolado (menos central e
pouco provido em termos de transporte coletivo).
A frequência com que os jovens moradores de Monjolos e Ipiíba
têm acesso aos núcleos centrais do Rio de Janeiro e Niterói, e às vezes até de
São Gonçalo, é baixa (ela é relativamente mais baixa em Ipiíba do que em
Monjolos). Mas no desejo de ampliação de circulação os jovens moradores
dos dois distritos se afastam: esse desejo está presente em Monjolos, mas
não em Ipiíba.

Conclusão

Quando tomamos a escola como eixo de onde partiam as ques-


tões de pesquisa, foi-nos possível perceber com clareza e mesmo com pro-
fundidade o impacto trazido pela expansão da escolarização (pelo tipo de
ampliação realizada) para as trajetórias escolares dos jovens que até pouco
tempo atrás não conseguiam permanecer na escola por muito tempo. To-
96 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

mar a escola, a instituição como objeto da pesquisa, nos permitiu perceber a


complexidade das novas e múltiplas “posições” escolares abertas aos jovens.
Foi possível perceber também as profundas desigualdades que marcam tais
trajetórias.
As trajetórias marcadas por fragmentações e descontinuidades (em
contraponto àquelas onde o fluxo contínuo por séries sem interrupções era
a tônica) implicaram possibilidades desiguais de experimentação e apro-
priação das leis, regras e códigos institucionais, mostrando que as trajetórias
desiguais demarcam a diferença entre “habitar” a escola e “escolarizar-se”.
Por outro lado, se é verdade que trajetórias desiguais de escolariza-
ção implicam experiências de escolarização também desiguais, então, que
efeitos tais desigualdades vêm trazendo para a vida dos jovens? Qual o im-
pacto da extensão da escola, em especial, o acesso ao ensino médio sobre
essas vidas? Ou, perguntando de outra forma, qual a importância relativa
da escola para a geração de jovens pobres recentemente egressa do ensino
médio?
Acumular elementos com vistas a encaminhar essa questão repre-
sentou, para nós, uma mudança na posição de onde observávamos o pro-
blema. Da escola não era possível responder a questão. Era necessário tomar
como ponto de partida as vidas dos jovens para entendermos, por um lado,
a importância relativa da escola nestas, e, por outro, o impacto causado por
um tipo de expansão escolar que tinha trazido efeitos provavelmente tão va-
riados quanto desiguais.
Tomar os jovens como eixo, investigar suas condições de vida, suas
trajetórias escolares, sua experiência de trabalho, seu território de moradia,
seu horizonte de circulação, permitiu-nos algumas constatações. Recortare-
mos aqui apenas aquelas pertinentes à temática deste texto.
De alguma forma, escolas nucleares, equipadas (ou ao menos com
instalações que permitem a reivindicação de equipamentos, tais como labo-
ratórios científicos, quadras de esportes, espaços para apresentações artís-
ticas), relacionavam-se nos dados colhidos a experiências mais complexas
Juventude e escola – elementos para a construção de duas abordagens 97

de inserção no mundo do trabalho compostas de trabalho fugaz e não re-


gistrado no terciário e frequência a cursos de capacitação com a busca de
constituição de uma área de atuação laboral. Os jovens mais frequentemen-
te associados a esse tipo de trajetória eram os mais jovens, com predomínio
dos do sexo masculino, moradores dos distritos mais providos em termos de
equipamentos e serviços em todo o município.
Estudar (especificamente fazer ensino médio) em escolas locais, pe-
quenas, noturnas, pouco equipadas (algumas delas escolas de ensino fun-
damental diurnas “emprestadas” ao ensino médio noturno) relacionava-se
a experiências de trabalhos manuais e domésticos (muitas vezes concomi-
tantes com a escolarização) ou à ausência completa de qualquer experiência
laboral, a poucos ou nenhum curso de capacitação para o trabalho.
Por fim, as experiências diversas relacionam-se, por sua vez, a di-
ferentes horizontes de circulação dos jovens pelos núcleos urbanos mais
próximos, de tal forma que às experiências mais complexas (de escolari-
zação, de trabalho, de constituição de uma área de atuação profissional,
de circulação pelo território de moradia e arredores) corresponde mais
frequentemente a expansão do horizonte de circulação. Ao contrário, a
experiências restritas, aliadas ao isolamento territorial, correspondem res-
tritos horizontes.
A partir de dois pontos de observação, constatamos a possibilidade
de conclusões diversas, ainda que não conflitantes. Tomando a escola como
ponto de observação, foi possível perceber os efeitos de sua “abertura” aos
jovens pobres em termos da variabilidade, complexidade e das desigualda-
des estabelecidas nas trajetórias destes em seu interior. Tomando os jovens
como ponto de observação, percebemos a importância da escola na sua
relação com outras instituições igualmente importantes nos processos de
transição dos jovens para a vida adulta. Percebemos sua importância relati-
va, que, combinada a outras variáveis, a outras modalidades institucionais,
produz efeitos diversos, mesmo quando tomamos como referência posi-
ções sociais semelhantes.
98 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

São essas possibilidades que, mesmo em estudos preliminares, nos


instigam a aprofundar nossas investigações, abrindo, quem sabe, novos flancos
para a pesquisa acerca das relações entre juventude e escola em nosso país.

Referências
ALGEBAILE, Eveline. Escola pública e pobreza no Brasil; a ampliação para menos. Rio de Janeiro: Lamparina;
Faperj, 2009.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand; Difel, 1989.
FANFANI, Emilio Tenti. Culturas jovens e cultura escolar. Documento apresentado no seminário “Escola jo-
vem: um novo olhar sobre o ensino médio”. Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Educação Média
e Tecnológica, Coordenação Geral de Ensino Médio. Brasília, 7 a 9 de junho de 2000.
PEREGRINO, Mônica. Trajetórias desiguais: um estudo sobre os processos de escolarização pública de jovens
pobres. Rio de Janeiro: Garamond; Faperj, 2010.
PEREGRINO, Mônica. Juventude e trabalho em tempos de expansão da escola. Relatório de pesquisa, 2010.
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola…
Geraldo Leão

O tema das relações entre os jovens e os processos educativos em que


estão inseridos, além de mobilizar educadores e pesquisadores em ge-
ral, nos remete hoje a uma grande complexidade. Quando se trata da juven-
tude, todos os especialistas na área são unânimes em afirmar a diversidade
de experiências e práticas sociais que configuram o modo de ser jovem na
contemporaneidade. Os jovens são atores plurais, abertos à experimentação
e propensos a assumir diferentes identidades dependendo do contexto e
das relações sociais em que estão inseridos (MELUCCI, 2004). Da mesma
forma, os processos e espaços educativos dos quais participam também são
variados e extrapolam os muros da escola e o ambiente da família.
Outra consideração inicial a se fazer é que há uma tendência a olhar
negativamente a relação dos jovens contemporâneos com a escola. Quando
conversamos com pais, gestores escolares e professores, tende-se a afirmar
que os jovens não gostam da escola e dos seus professores. Isso se constitui
em uma tese que domina o cenário e ofusca o olhar sobre a relação dos jo-
vens com as instituições educativas.
O pesquisador português Pedro Abrantes (2003, p. 1), falando de
como a questão tem sido vista em seu país, faz a seguinte constatação:
A escola de hoje não ensina os saberes essenciais, nem educa para os valores,
é um antro desregulado onde reinam a desordem, a indisciplina e a violência,
100 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

visto não existir autoridade, onde os professores estão desmotivados e parali-


sados, sem quaisquer condições para lecionar, e onde os alunos “fazem aquilo
que querem”, regendo-se pela “lei do menor esforço”.

Criticando esse olhar alarmante difundido socialmente, esse au-


tor observa que, embora prevaleça esse discurso, “as escolas continuam
em funcionamento, as instalações ainda não arderam, continuam a rea-
lizar aulas e avaliações, muitos dos professores e alunos mantêm-se sau-
dáveis, dedicando-se diariamente ao trabalho escolar” (ABRANTES,
2003, p. 1).
Podemos dizer que a relação entre os jovens e a escola, pelo menos
a um bom tempo, nem sempre foi vista como uma relação tranquila. Fil-
mes como Juventude transviada, dos anos 1950, ou estudos como o de Paul
Willis1 sobre os jovens operários ingleses na década de 1970 abordaram o
tema. Mas o que antes era visto como um “desvio” ou o produto de uma
“subcultura da classe operária” passa a ser tratado cada vez mais como uma
propriedade da juventude contemporânea. É como se todos os jovens, par-
ticularmente os estudantes das camadas populares nas escolas públicas, es-
tivessem contaminados por um vírus antiescolar. Cada vez mais, busca-se,
nos pesquisadores e profissionais da pedagogia e da psicologia, a vacina para
esse “mal” que se propaga. Em geral, os jovens são apontados como os prin-
cipais culpados, uma vez que, absorvidos pela TV e pela internet, domina-
dos pelo consumo e pelo lazer, ou marcados pela pobreza e pela violência, já
não dão o devido valor à educação.
1 Em pesquisa etnográfica realizada entre 1972 e 1975, sobre a transição da escola para o trabalho de jovens
do sexo masculino e da classe operária que cursavam um currículo secundário não acadêmico, este autor se
propõe a compreender o processo pelo qual esses jovens se autoconduzem ou se autocondenam às posições
sociais e profissionais inferiorizadas na sociedade de classes. Para o autor, essa autocondenação é construída no
próprio meio social em que vivem os jovens operários pela adesão a uma cultura contraescolar, produzida no
grupo informal em oposição à zona formal, representada pela instituição com suas regras e valores. A cultura
contraescolar é a experiência dessa autocondenação como um verdadeiro aprendizado, como uma afirmação,
como uma apropriação e como uma forma de resistência. A cultura contraescolar alimenta-se, ainda, segundo
o autor, de uma forte relação entre o local de produção (o chão da fábrica) e os locais de reprodução da força
de trabalho (o lar, a família, a vizinhança, os meios de comunicação e a experiência operária não produtiva em
geral). Assim, a família e o meio social têm um forte impacto na rejeição à escola observada entre os jovens
ingleses pesquisados (Cf. WILLIS, 1991).
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 101

Considero importante tentar compreender essa relação entre os jo-


vens e os processos educativos com base em uma perspectiva que rompa
com essas visões preconcebidas sobre a juventude. É necessário um esforço
para ouvir mais os jovens a partir de sua condição social: o que eles têm a
dizer sobre essa questão? Qual lugar a educação e a escola ocupam em suas
vidas? O que explica o modo como se comportam hoje nas escolas?
Este texto aborda essas questões a partir de alguns aspectos esco-
lhidos entre os dados ainda não conclusivos de uma pesquisa realizada no
estado do Pará, em 2009. Foram criados 12 Grupos de Diálogo, envolvendo
245 jovens nas cidades de Mojú, Santarém e Belém, em 2009. A pesquisa
quis ouvir os jovens sobre seus projetos de vida e sobre a contribuição da
escola para a sua realização.2 Não se trata de uma análise dos resultados do
estudo desenvolvido, o que exigiria uma exposição detalhada de sua meto-
dologia e de outros aspectos não abordados aqui.

Alguns antecedentes: para além de alunos, jovens!

Inicialmente, é importante indicar alguns pressupostos que têm


guiado os estudos no campo das juventudes no Brasil com os quais este
texto compartilha. Em primeiro lugar, não se parte de uma visão homogê-
nea dos jovens brasileiros. A juventude, como categoria de análise, é uma
construção histórica e social na qual se cruzam as diversas posições sociais
ocupadas pelos sujeitos e seu grupo de origem, as representações sociais
dominantes em um dado contexto e as culturas juvenis, as experiências e
as práticas produzidas pelos jovens. Não se pode, portanto, falar de uma ju-
ventude universal, mas em jovens que vivem e compartilham experiências a
partir de contextos sociais específicos. Fala-se em condição juvenil na busca

2 A pesquisa foi realizada como uma das ações do Projeto Diálogo com o Ensino Médio, uma coopera-
ção técnica entre o Observatório da Juventude da UFMG, o Observatório Jovem da UFF e a Secretaria de
Educação Básica do MEC em 2009. O projeto foi coordenado pelo professor doutor Juarez Tarcísio Dayrell
(UFMG) e pelo professor doutor Paulo César Carrano (UFF). No Pará, a equipe foi coordenada pela profes-
sora doutora Jacqueline Cunha da Serra Freire (UFPA).
102 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

de compreender os jovens a partir de sua posição na estrutura social, mas


também a partir dos elementos comuns à experiência juvenil nas sociedades
contemporâneas, do modo como essa sociedade representa e desenvolve
políticas e ações voltadas a eles (DUBET, 1996; DAYRELL, 2001).
Em segundo lugar, não podemos compreender os processos educa-
tivos como restritos às lógicas ligadas às instituições tradicionais de sociali-
zação como a família e a escola. Ou seja, compreender a relação dos jovens
com a escola e com os processos educativos na perspectiva dos sujeitos
exige compreender o não escolar (SPOSITO, 2003). Compreender as tra-
jetórias juvenis, suas práticas sociais e culturais, sua relação com o mundo
do trabalho, com os amigos e com o lazer é fundamental para compreender
sentidos, motivações, atitudes e práticas que desenvolvem na sua inserção
em processos educativos.
Vivemos um contexto em que os processos educativos se diversi-
ficam, atravessando a vida escolar e familiar. A relação dos jovens e suas ex-
periências nesses espaços educativos apresentam uma grande diversidade,
não cabendo mais falar na figura “do aluno”, que incorpora seu “ofício” de
uma forma homogênea e, às vezes, antes de entrar na escola. Apesar de ter
ainda um grande peso pelo tempo que ocupa e pela centralidade atribu-
ída à certificação nas sociedades contemporâneas, o lugar da escola e da
educação escolar na vida dos alunos passa a ser relativo, dependendo de
contextos mais amplos que caracterizam a vida de cada um. O cinema tem
expressado isso de uma forma muito forte. Alguns filmes, como o docu-
mentário Pro dia nascer feliz, do diretor brasileiro João Jardim, ou Elefante
e Paranoid park, do diretor americano Gus Van Sant, mostram como a es-
cola é atravessada por uma condição juvenil que extrapola o controle ins-
titucional. Os jovens criam sentidos e motivações diferenciadas para estar
na escola e investir nos estudos. Nessa perspectiva, nosso grande desafio é
compreender como os jovens constroem seus modos de ser e viver, edu-
cam-se e são educados no contexto de uma sociedade que mudou muito
nas últimas décadas.
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 103

Os jovens entre possibilidades e limites: consumidores,


estudantes e desiguais

Levando em consideração as questões abordadas anteriormente,


cabe perguntar: em qual contexto os jovens vivem e se socializam hoje na
sociedade brasileira? Quais são as marcas da condição juvenil dos jovens
brasileiros? Quais são seus impactos sobre as suas experiências escolares?
Vivemos em um contexto que Mellucci (1997) chamou de socie-
dades complexas. São sociedades caracterizadas por três processos sociais
fundamentais: a) a diferenciação: “os âmbitos das experiências individuais e
sociais se multiplicam” e “cada um desses âmbitos é organizado segundo ló-
gicas, formas de relações, culturas, regras diversas”; b) a variabilidade: refere-
se à “velocidade e à frequência de mudança”, cada vez mais comuns e rápi-
das; c) a excelência cultural: “o alargamento das possibilidades de ação, que
ultrapassam amplamente a capacidade efetiva de ação dos sujeitos”.
Entre tantos exemplos que caracterizam tal sociedade, podemos
citar o fato de que as novas gerações nunca tiveram à sua disposição uma
gama tão grande de bens culturais, sociais e de consumo. Os CDs, MPs, ce-
lulares, roupas e acessórios atendem aos mais diferentes estilos juvenis. Os
jovens acessam diferentes redes sociais na internet como o Orkut, Facebook,
MSN, Twitter etc. Essa diversidade confere às juventudes contemporâneas
uma grande fluidez, uma capacidade de transitar por diferentes espaços e
tempos, uma plasticidade identitária que Melucci chamou de o jogo do eu
(MELLUCCI, 2004).
Essa também é uma geração mais escolarizada que seus pais. No
caso brasileiro, as reformas educacionais promovidas a partir da década de
1990 favoreceram a universalização do ensino fundamental e uma expansão
do ensino médio e superior para famílias cujos pais não tiveram acesso aos
últimos anos do ensino fundamental. No ensino médio, alguns dados indi-
cam que houve um aumento das matrículas entre os anos de 1996 a 2004 de
quase 60%. Após esse período, há uma diminuição, sobretudo para as faixas
104 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

de idade acima de 18 anos, mas, na soma geral, os jovens brasileiros estão


mais escolarizados que gerações passadas (DESAFIOS DA CONJUNTU-
RA, 2008).
Tais reformas, impulsionadas por múltiplos fatores de ordem eco-
nômica, política e social, ancoraram-se no discurso de que a educação
constitui-se em um capital, absolutizando muitas vezes a sua capacidade
para promover o desenvolvimento social. Elas vieram acompanhadas de um
discurso redentor e salvacionista: “a escola como passaporte para o futuro”.
Criou-se um consenso social em torno da centralidade da educação como
garantia de um “futuro melhor” com um forte apelo social.
Na pesquisa desenvolvida no estado do Pará, isso ficou muito evi-
dente. Os jovens, de maneira geral, em diferentes sentidos e a partir da for-
mulação de diferentes estratégias, revelaram planos de prosseguir os estudos.
Havia uma grande idealização de alguns cursos, como Medicina e Direito, e
quase um consenso em torno da exigência da escolarização superior. Muitas
vezes, esse discurso assumia um tom instrumental, o sentido se reduzindo a
“ter o diploma”.
Tal fenômeno da expansão da escolarização para as novas gera-
ções mudou muito a cara da escola e da sala de aula. Jovens das camadas
populares, negros e trabalhadores, frequentemente inseridos em ocupações
precárias e de tempo parcial, passaram a compor o cenário das turmas do
ensino médio brasileiro, prolongando sua estada nos sistemas de ensino.
Essa presença traz para o interior das escolas novos elementos que antes não
estavam presentes. Os professores e a instituição são confrontados com um
novo perfil de alunos, com outras culturas, experiências e práticas sociais.
Muitas vezes, a instituição escolar não consegue dialogar com esses alunos.
Parte-se da ideia de um aluno ideal, motivado para a árdua tarefa de estudar,
marcado pela identidade de estudante, uma pessoa que introjetou o “ofí-
cio de aluno” e sabe lidar adequadamente com regras e normas escolares.
Também em outros níveis, como na educação superior, e em modalidades
de ensino, como na EJA e na educação profissional, podemos ver um fluxo
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 105

muito maior de jovens que, em outros tempos, não tinham a continuidade


dos estudos como horizonte possível. Quem não conhece um jovem que é
o primeiro de sua família a frequentar uma faculdade?
Por outro lado, não podemos deixar de considerar um terceiro as-
pecto da realidade que, tanto no Brasil como na América Latina, tem marca-
do profundamente a vida dos jovens: a persistência de altos níveis de desi-
gualdade social. Se nós temos uma expansão da escolarização para os jovens
em geral, a forma dessa expansão se dá de uma maneira muito desigual. Se,
seguramente, para os jovens de 15 a 17 anos as matrículas no ensino médio
cresceram, nós ainda tínhamos em 2006 mais da metade dos jovens dessa
faixa etária fora da escola (52,3%). Somente para ficar no âmbito da classe
social, entre os 20% mais pobres, apenas 24,9% tiveram acesso ao ensino
médio, enquanto para os 20% mais ricos esse índice era de 76,3%. Na região
Nordeste, apenas um terço (33,1%) dos adolescentes de 15 a 17 anos esta-
vam matriculados, enquanto para a região Sudeste esse índice era de 76,3%.
Se considerarmos a raça, apenas 37,4% dos negros estudavam, contra 58,4%
dos brancos. Quanto ao local de moradia, 27% dos jovens do campo se ma-
tricularam no ensino médio, enquanto para as áreas urbanas esse índice atin-
giu 52% (DESAFIOS DA CONJUNTURA, 2008).
Tal desigualdade não se revela apenas no acesso desigual, mas tam-
bém nas condições de funcionamento das escolas. Uma constatação gene-
ralizada na pesquisa desenvolvida, que expressa o quadro de muitas redes
de ensino no Brasil, é a precariedade da estrutura física e do funcionamento
das escolas. Foram muitos relatos de jovens sobre escolas em que faltavam
as condições básicas de ventilação, de higiene e de lazer. Em alguns casos,
não havia nem mesmo água potável. O lado cruel desse quadro é que, em
algumas escolas, os jovens eram mobilizados a arrecadar recursos que eram
trocados por pontos na avaliação do aluno. Carência de professores, desmo-
tivação dos profissionais, laboratórios e bibliotecas fechados eram outros
problemas citados pelos jovens. Como esperar que eles tenham uma relação
positiva com a escola? Como exigir que valorizem uma escola desvalorizada
106 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

pelo Estado e pelas políticas públicas? Como esperar que sejam “protagonis-
tas” se as experiências de participação estimuladas pela escola indicam uma
visão estreita e limitada como essa?
Outro quadro muito comum nas escolas do Pará era a falta de pro-
fessores. Em algumas disciplinas, havia uma grande carência de docentes.
Os alunos ficavam longos tempos sem aulas ou com aulas improvisadas por
falta de professores contratados para lecionar. Quando não faltavam pro-
fessores, os professores faltavam. Muitos jovens relataram que era comum
ficar esperando o professor, que chegava sempre atrasado ou simplesmente
faltava, deixando os alunos sem qualquer atividade. Tantos outros narraram
que, frequentemente, tinham apenas parte das aulas do dia. Tal situação gera
um quadro de desânimo que, principalmente para os jovens que estudam à
noite, aumenta durante o correr do ano letivo.
Ainda no quadro da precariedade das escolas, temos a situação dos
laboratórios e bibliotecas. Em quase todas as escolas havia laboratórios de
informática e de ciências instalados, mas o seu funcionamento não ocorria
porque não havia um profissional específico ou não havia projetos desen-
volvidos pela escola que utilizassem esses espaços. Muitas vezes, os eles
funcionavam apenas na parte da manhã, deixando os alunos do noturno
prejudicados.
Esse quadro, aliado a outros fatores, gerava uma situação de desi-
gualdade de acesso ao conhecimento proporcionado pela escola. Os dados
oriundos das avaliações sobre a atuação dos sistemas de ensino têm mostra-
do o baixo desempenho das escolas públicas. Essa realidade tem gerado nos
alunos um sentimento de incapacidade para dar continuidade aos estudos.
Muitos jovens revelaram uma grande descrença na sua capacidade para dis-
putar uma vaga nas universidades do Pará em função da “baixa qualidade
do ensino oferecido” nas escolas em que estudavam. Podemos dizer que se
trata de uma pedagogia da precariedade em dois sentidos: primeiro porque
na sua materialidade a escola é precária em si, mas também porque alimenta
entre os jovens estudantes o sentimento de que seus projetos de vida têm
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 107

que ser “curtos”, moldados na provisoriedade e na incerteza, principalmente


entre os jovens com menos recursos econômicos.
Como estimular os jovens para que tenham projetos de vida forte-
mente alicerçados no conhecimento escolar, nesse contexto? Muitas vezes,
os jovens revelaram uma fragilidade ao se expressarem sobre seus projetos de
futuro. Parece que o fato de vivenciarem experiências tão precárias, em que a
escola não dialoga com seus desejos e demandas quanto à inserção futura, não
lhes permitia formular planos que ultrapassassem o tempo presente.
Trata-se de uma nova desigualdade que, segundo José de Souza Mar-
tins (1997), traduz-se por um processo de inserção pela metade. Isso marca
de uma maneira muito forte a experiência social dos jovens brasileiros. A
maioria dos estudantes está se socializando no quadro de uma experiência
de inserção escolar frágil que não lhes atende como um processo amplo de
formação humana e capaz de promover sua inserção social e profissional.
Uma constatação de vários estudos é a de que a expansão da escolari-
zação no Brasil representou muito mais um quadro de massificação da educa-
ção, de expansão do acesso, sem que significasse um processo real de democra-
tização. As reformas educacionais foram capazes de ampliar as matrículas, mas
sem a promoção de condições adequadas que permitissem a permanência e a
vivência de uma educação de melhor qualidade. É a partir desse contexto que
podemos pensar na relação dos jovens brasileiros com a escola.

Os jovens e suas relações com os processos educativos


escolares em contextos de desigualdades

Nesse contexto de contradições sociais, os jovens experimentam o


encontro entre uma gama maior de oportunidades educacionais e sociocul-
turais com um cenário de desigualdades, o que alimenta a distância entre as
suas expectativas e demandas e as condições de sua concretização. As moti-
vações e sentidos em relação à escola parecem resultar da conjugação entre
o quadro mais amplo das relações sociais em que eles se inserem e aspectos
108 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

ligados à trajetória individual e familiar. Dependendo dos suportes a que


têm acesso via apoio familiar, redes sociais e institucionais, os jovens podem
tecer diferentes modos de ser estudante. Além disso, deve-se levar em conta
também o contexto de cada escola, sua história e modo de organização, o
perfil da direção e dos professores e vários outros fatores que demarcam a
sua singularidade.
Podemos dizer que, entre os jovens que ouvimos no Pará, havia uma
grande diversidade do ponto de vista das motivações e sentidos em relação
à escola, compondo um amplo mosaico. Eles manifestaram diferentes mo-
tivações como a retribuição familiar (“quero estudar para dar uma boa vida à
minha família, à minha mãe...”), a garantia como provedor(a) (“dar um futuro
aos meus filhos”) ou a garantia de uma vaga no mercado de trabalho (“conse-
guir um bom emprego”). Outras vezes, apresentavam o discurso da escola
como uma condição para “ser alguém na vida”, um discurso ainda a ser des-
velado quanto ao seu significado. Havia também diferentes sentidos para ir
à escola, entre eles, de maneira mais forte, a ideia de estudar por obrigação, por
uma imposição dos pais ou do mercado de trabalho.
Eles expressaram diferentes projetos de vida e formas de pensar na
sua realização. Jovens que planejavam somente estudar, prevendo uma in-
serção imediata no ensino superior no sistema público ou privado; jovens
que tinham como perspectiva conciliar trabalho e estudo, fazendo cursi-
nhos pré-vestibulares, cursos técnicos ou superiores; jovens que planejavam
primeiro trabalhar para criar as condições de uma futura inserção no ensino
superior, de preferência na área em que estivessem atuando. Havia também,
em número menor, jovens que queriam apenas trabalhar, conseguir um bom
emprego, fazer um concurso público, abrir um empreendimento próprio ou
simplesmente trabalhar e “ficar livre da escola”.
Nesse mosaico, alguns elementos comuns eram compartilhados
por esses jovens com diferentes pesos. Os jovens manifestavam, de maneira
geral, muitas dúvidas sobre os projetos de futuro, oscilando entre a incerteza
quanto às escolhas dos cursos e profissões e a insegurança quanto à possi-
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 109

bilidade de realização das suas expectativas. Isso seria a expressão de uma


baixa capacidade de refletir e elaborar os planos futuros? Seria uma ausên-
cia de tratamento dessas questões nos âmbitos familiar e escolar? Seria uma
expressão de uma cultura juvenil voltada apenas para questões do tempo
presente?
Havia também o reconhecimento dos limites e um esforço de ade-
quação dos sonhos e projetos à realidade. Diferentes estratégias eram indi-
cadas como reformulações e adaptações quanto ao inicialmente idealizado.
Ao mesmo tempo, o discurso do “esforço pessoal” como estratégia para
vencer os obstáculos sobressaía de uma forma muito forte. “Acreditar nos
seus sonhos”, “acreditar que é possível”, “mostrar o seu valor”, foi um discurso
repetido por muitos jovens. Em raríssimos momentos, faziam alguma rela-
ção entre seus projetos pessoais e a grupos ou ações coletivas que pudessem
servir como uma possível estratégia para realizá-los. De maneira geral, a as-
piração por estabilidade e sucesso resumia muitos sentidos relacionados aos
projetos juvenis. “Ter um bom emprego” e “uma profissão ou um emprego
estável” foram depoimentos recorrentes. Ao lado disso, a referência à família,
principalmente à mãe como provedora e como ideal moral, aparecia de uma
maneira muito forte. O sentido de retribuição e o apoio financeiro ou moral
foram muito citados.
Essa diversidade de projetos, sentidos e motivações pode ser a ex-
pressão dos conflitos de uma sociedade que expandiu a escolaridade e o
consumo, mas no contexto de baixas perspectivas de mobilidade social, em
que a distância entre ricos e pobres continua muito grande, até mesmo maior
em alguns casos. Ou seja, os jovens estão mais escolarizados que seus pais,
mas eles vivem suas experiências de escolarização em sua grande maioria
em escolas públicas, muitas vezes em condições insatisfatórias. Eles também
estão mais incluídos no mercado consumidor. Para boa parcela, os shoppings
populares e camelôs, as vendas de porta em porta de “produtos do Paraguai”
são uma alternativa “democratizante”. Eles também estão inseridos na socie-
dade da informação. Ampliou-se o contato com a internet e com a telefonia
110 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

celular. Os jovens estão inseridos em redes sociais via mídia como Orkut,
Twitter, Blog e Facebook. No entanto, a desigualdade quanto ao acesso a
esses bens de consumo e a novas mídias ocorre de uma forma desigual.
O que significa essa experiência social? Quais dilemas e perspectivas
isso traz para a experiência cotidiana nas escolas brasileiras? Uma questão
a ser considerada refere-se à maior possibilidade de distanciamento (refle-
xividade) em relação às suas experiências sociais. Muitos alunos não estão
dispostos a assumir de uma maneira passiva a “autoridade pedagógica” tão
cara à escola republicana. Não se subjetivam como “estudantes” da mesma
forma que antes. Como nos lembram alguns autores como Bernard Charlot
(2000) e François Dubet (1998), o ser aluno é uma construção subjetiva.
Os sujeitos não se tornam alunos apenas por uma imposição externa. Trata-
se hoje, cada vez mais, de uma escolha. Assim, a questão dos sentidos atribu-
ídos à experiência escolar é central.
Ao mesmo tempo, eles se defrontam com um discurso social em
torno do valor da educação que emerge quase que como uma “imposição”,
um discurso regulador das condutas num quadro de crise da mobilidade
social. No campo do mercado de trabalho, mesmo que os empregos se
ampliem, a expansão se dá em atividades precárias ou com um status social
baixo. Como diziam muitos estudantes na pesquisa desenvolvida no Pará:
“Hoje em dia, até para ser gari, tem que ter ensino médio.” Os jovens se veem
coagidos a estudar por exigências sociais (reconhecimento social, acesso a
alguns postos de trabalho etc.), mas sabem de antemão que o retorno do seu
investimento em termos de mobilidade social não está garantido. Estudar é
uma necessidade, mas não uma garantia.
Uma jovem de 19 anos deu o seguinte depoimento:
A gente tem o colégio tão perto da nossa casa e, às vezes, vê pessoas que po-
deriam estar estudando, procurando se formar, procurando ser uma pessoa
melhor. Só Deus sabe pelo que nossos pais passaram, pelo que a gente passa.
Então a gente tem que ver essa situação e pensar: “Não, eu não quero viver o
que meu pai e minha mãe viveram.” Não quero passar pelas mesmas dificul-
dades que eles passaram. Quero ser uma pessoa melhor para dar uma vida
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 111

boa para meus filhos. (...) O mundo hoje está muito difícil. A gente pensa
que é fácil, mas não é. Tá muito difícil. A gente tem que ter esse pensamento...
De ser alguém.

O depoimento dessa jovem nos permite fazer algumas reflexões. Por


que, apesar de terem maiores oportunidades educacionais, eles não querem
estudar? Por que preferem ir à escola, mas sem se envolver com os estudos?
Por que preferem fazer um bico ou perambular pelas ruas com os amigos ou
pela net? O que ela quer dizer com “não passar o que nossos pais passaram”?
Passaram ou passam? Quais as dificuldades do mundo? O que é um mundo
difícil? O que é ser alguém na vida? São questões para as quais não temos
respostas, mas precisamos estar atentos para pensarmos processos educati-
vos que dialoguem com esse contexto.
Um aspecto que me parece muito forte na experiência escolar das
gerações atuais é a ideia de que cada um tem que provar a sua capacidade
individual. Diversos autores têm chamado a atenção para o fenômeno da in-
dividualização nas sociedades contemporâneas (MARTUCCELLI, 2007).
Nessa sociedade, nunca a ideia de liberdade individual esteve tão em voga.
Em contrapartida, em nome de sua liberdade, os sujeitos devem estar dis-
postos a assumir o risco de se produzirem como sujeitos. Pesam sobre as
pessoas uma gama de exigências: “ter projetos”, “ser protagonista”, “ser em-
preendedor”, “ser agente do desenvolvimento social e comunitário”, “fazer a
diferença e ter atitude”, “garantir a sua empregabilidade”.
Segundo Martuccelli (2006), numa sociedade em que as trajetórias
sociais se individualizaram, as pessoas são submetidas a diferentes provas:
escolar, profissional, familiar, amorosa, sexual, da sociabilidade etc. Cada
sucesso ou fracasso nesses diversos âmbitos da vida social é imputado ao
indivíduo. É o fracasso ou sucesso da pessoa. Interessa aqui a questão da
prova escolar. No plano da educação, os sujeitos devem “zelar pela sua edu-
cabilidade”. A educação, nessa perspectiva, para além de ser um direito a ser
garantido pelo Estado ao coletivo de cidadãos de uma nação, para ser uma
propriedade dos indivíduos, uma qualidade individual.
112 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Nesse contexto, o percurso escolar representa o conjunto de sanções


a que a escola submete suas crianças e jovens: aprovações e reprovações, estu-
dos em cursos de prestígio ou cursos de segunda categoria etc. Segundo ele, a
prova escolar é a expressão de uma tensão fundamental entre dois princípios:
“entre o processo da seleção que se opera na escola e a confiança que esta trans-
mite a cada um de nós” (MARTUCCELLI, 2006, p. 115). Ou seja, o sucesso
na prova escolar nos convence e convence aos outros da nossa capacidade e
competência. Da mesma forma, fracassar na escola nos impõe o sentimento e
o reconhecimento social de derrotados, de “vencidos” na competição escolar.
De acordo com o autor, a massificação escolar traz impactos sobre
a ideia de prova escolar. Antes a trajetória estava determinada pela origem.
Para jovens e crianças das camadas populares, o percurso escolar terminava,
geralmente, na quarta série. A partir daí, as pessoas se encaminhavam para o
trabalho. Mesmo que com baixa qualificação, o trabalho era a dimensão em
que o sujeito poderia provar o seu valor como provedor, trabalhador hones-
to e futuro pai de família.
Segundo o autor, em entrevistas com jovens trabalhadores france-
ses, a trajetória escolar tendia a ser vista como uma prova individual: “cada
qual tem que aceitar e reconhecer que é seu próprio fracasso o que dá conta
de sua situação social” (MARTUCCELLI, 2006, p. 116). Havia uma ênfase
no esforço pessoal e uma preocupação com “a reprodução e a transmissão
de uma posição familiar pela escola”: “dar uma vida melhor para meus pais”
e “ir além dos meus pais”. Interromper os estudos não era justificado pelo
pertencimento social ou pela necessidade material. A trajetória escolar, com
suas provas, sai do âmbito do “destino de classe”. Cada um passa a ser respon-
sável pelo seu sucesso ou fracasso.
No caso da nossa pesquisa, havia, entre os jovens, uma combinação
entre o discurso do esforço pessoal e, ao mesmo tempo, a consciência dos li-
mites de se estudar em uma escola pública. Os jovens tenderam a ressaltar o
quanto as condições das escolas e dos docentes impactam na capacidade de
uma experiência bem-sucedida na escola e, consequentemente, na realização
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 113

de seus planos de continuidade dos estudos: “a escola não prepara para o vesti-
bular”, “não dá informação e orientação”, “os professores não se comprometem
com os alunos”, “os alunos também não se envolvem”. Esses jovens parecem
querer dizer: como posso provar minha capacidade nessas condições? Como
provar o meu valor concorrendo em condições tão desiguais?
Martuccelli (2007) nos lembra ainda que a prova escolar sanciona
um sentimento de orgulho, uma sanção positiva sobre si: “eu tenho valor”, “eu
sou capaz”. No contexto da experiência escolar vivida por muitos jovens das
camadas populares no Brasil, a possibilidade de construir uma visão positi-
va sobre si como estudantes é muito pequena. Muitos alunos se queixavam
da falta de confiança que os professores depositavam neles e valorizavam
aqueles que os estimulavam. Eles citavam exemplos de professores que di-
ziam que “aluno de escola pública não passa nas universidades públicas”. Por
outro lado, valorizavam os professores e as escolas que incentivavam e bus-
cavam estratégias de preparação dos jovens para o vestibular.
Isso traz uma séria dificuldade para os jovens que se veem na situ-
ação de dar conta da prova escolar, mas em instituições nas quais não en-
contram sentido para estudar. É comum encontrar jovens que pararam de
estudar e não sabem o porquê. Em uma pesquisa recente sobre a evasão es-
colar no ensino médio, constatou-se que a maior parte dos evadidos parou
de estudar por “falta de interesse” (NERI, 2008). É muito comum a figura do
jovem reincidente, que já se matriculou várias vezes no primeiro ano do en-
sino médio e desiste no meio do caminho. Muitas vezes, a única reação vis-
lumbrada, como diz Dubet (2001), é se retrair, retirando-se do jogo escolar
ou se colocar contra a escola, como alternativas para salvar a sua dignidade.

Considerações finais: o que a escola tem a oferecer?

Não se pode deixar de observar que o texto enfatizou os limites da


escola pública brasileira na sua tarefa de garantir o acesso à educação como
um direito de todo jovem. Como toda análise opera um recorte na realidade,
114 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

vários aspectos que indicariam uma visão mais positiva não foram conside-
rados. O contato com as escolas brasileiras, além de seus problemas, ofere-
ce exemplos de muitos profissionais engajados que, apesar do descaso do
Estado, desenvolvem projetos inovadores e de escolas que são criativas na
sua forma de organização. No entanto, tais ações ainda se constituem como
uma reação à falta de políticas públicas que sustentem atos contínuos e em
condições adequadas para o trabalho com jovens. Nossa escola parece estar
situada diante de um dilema. Ela pode continuar prometendo ser um passa-
porte para um futuro distante, do qual os jovens desconfiam, tendo em vista
que a sua experiência lhes ensina que o futuro é incerto nessa sociedade. Por
outro lado, ela pode ser uma referência para os jovens, o lugar de acolher e
discutir com eles seus medos, angústias, dilemas e alternativas.
Dubet (2004), em um dos seus textos, pergunta-nos: o que é uma
escola justa? Para ele, não é uma escola que desconhece o mérito dos alunos,
o potencial de cada um, mas uma escola que também se compromete com
os vencidos na competição escolar. Não se trata de uma escola redentora da
sociedade, mas que cria mecanismos para que as desigualdades produzidas
em outras esferas (do trabalho, das relações raciais e de gênero etc.) não se
transformem em desigualdades escolares. É também uma escola preocupa-
da em não produzir outras desigualdades.
Talvez a escola pudesse começar se perguntando o que seria uma
escola justa para os jovens das camadas populares no Brasil, esses novos her-
deiros que chegam aos sistemas escolares. Essa escola exigiria uma série de
ações como a concessão de bolsas de estudos, o desenvolvimento de proje-
tos de formação técnico-profissional, a oferta de oportunidades de cumprir
estágios, a elaboração de novas formas de organização escolar e de novos
currículos etc. Mas exigiria, como primeiro passo, reconhecer os jovens nas
suas especificidades e identidades. Talvez ao enxergá-los como jovens possa-
mos construir canais para um diálogo maior em que eles possam ver sentido
em se produzirem como alunos-jovens ou jovens-alunos. Talvez possamos
começar por aí nossa ideia de construir uma escola para todos.
Entre sonhos e projetos de jovens, a escola… 115

Referências
ABRANTES, Pedro. Os sentidos da escola: Identidades juvenis e dinâmicas de escolaridade. Oeiras: Celta,
2003.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.
DAYRELL, Juarez Tarcísio. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude. 2001. Tese
(Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
DESAFIOS da conjuntura: O ensino médio no debate educacional. São Paulo: Observatório da Educação da
Ação Educativa, n. 26, out. 2008.
DUBET, François. Des jeneusses et des sociologies: Le cas français. Sociologie et societé: Les jeunes. Montreal,
v. 28, n. 1, p. 13-22, 1996.
DUBET, François. A formação dos indivíduos: a desinstitucionalização. Contemporaneidade e Educação, n. 3,
p. 27-33, mar. 1998.
DUBET, François. As desigualdades multiplicadas. Rev. Brasileira de Educação, São Paulo, n. 17, p. 5-19, maio/
ago. 2001.
DUBET, François. O que é uma escola justa? Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 123, p. 539-555, set./
dez. 2004.
MARTUCCELLI, Danilo. Cambio de rumbo: la sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM Ediciones,
2007.
MARTUCCELLI, Danilo. Lecciones de sociologia del individuo. Lima: [s.n.], 2006. Mimeo.
MARTINS, José de Souza. A exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.
MELUCCI, Alberto. Movimentos sociais e sociedade complexa. In: MELUCCI, Alberto. Movimentos sociais
na contemporaneidade. São Paulo: Núcleo de Estudos e Pesquisa Sobre Movimentos Sociais/PUC SP, 1997.
p. 11-63.
MELUCCI, Alberto. O jogo do eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2004.
NERI, Marcelo. Motivos da evasão escolar. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008.
SPOSITO, Marília Pontes. Uma perspectiva não escolar no estudo da escola. Revista da USP, São Paulo, n. 57,
p. 210-226, fev. 2003.
WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
Juventude, trabalho e educação:
crônica de uma relação infeliz1 em quatro atos
Naira Lisboa Franzoi

E ste artigo analisa a relação entre jovens, trabalho e educação, res-


saltando a perspectiva do lugar de onde falo: a intersecção entre os
estudos sobre trabalho e educação e política e gestão da educação. Sis-
tematizo algumas reflexões resultantes de pesquisas nas quais tenho me
envolvido diretamente ou mediante o acompanhamento dos trabalhos de
orientandos(as).
Este texto estrutura-se em quatro tópicos: 1) “A luta travada entre a
escola e o trabalho”; 2) “Trajetórias na busca de uma profissão”; 3) “De fren-
te para o trabalho, de costas para a escola”; 4) “Em busca de um final feliz:
possibilidades de mudanças através da escola”.
O título geral e os tópicos são, sobretudo, uma “licença literária”. A
realidade é atravessada por contradições; logo, não há um momento em que
tudo seja infelicidade nem o momento do “final feliz”, pois ele está – desde
já e sempre – em uma permanente construção, sem nunca chegar a ser de-
finitivo e imutável.

1 Parafraseio Guy Jobert sobre a relação entre educação e trabalho (apud CORREIA, 2003). Algumas das
reflexões contidas no presente texto já foram apresentadas em trabalhos anteriores, tais como Franzoi (2009)
e Fischer e Franzoi (2009).
118 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

A luta travada entre a escola e o trabalho

Dois pressupostos norteiam as reflexões sobre juventude e trabalho:


a educação como direito de todos, consagrado na Constituição Federal de
1988 e reafirmado na LDB de 1996, e o trabalho como dimensão central do
humano. Assim, é impossível falar em jovem e trabalho sem que se interpo-
nha o terceiro termo da equação, a escola. Ela é o lugar onde deveriam estar
os jovens e do qual nunca deveriam ter saído. Também o trabalho deveria es-
tar presente naturalmente na escola. No entanto, nossa educação é baseada
na negação do mesmo, o que nos torna menos humanos. Mesmo quando
ele é levado em conta na escola, destina-se exclusivamente aos segmentos
pobres, numa versão reducionista, isto é, compreendida como preparação
para o ingresso e adaptação ao mercado de trabalho.
Por outro lado, a importação da cultura letrada europeia e o estigma
que associava o trabalho ao trabalho escravo, presente no país por um longo
período, fizeram com que o trabalho fosse relegado a uma atividade humana
menor e levaram a uma representação negativa do trabalho (do mesmo).
Além disso, numa ordem econômica que nos atribui o lugar de economia
dependente, os trabalhadores brasileiros são formados para atuarem como
operadores e consumidores de uma tecnologia que já está dada, como se
fosse determinante das relações sociais, e não determinadas por elas tam-
bém, numa relação dialética, como de fato ocorre.
Reflexo da sociedade, a educação reproduz essas distorções. Uma
delas dá origem a dois ramos distintos – educação profissional e ensino aca-
dêmico –, além de fazer com que o trabalho seja negado em todas as etapas
da escolaridade e na escola como um todo – mesmo os docentes levaram
muito tempo a serem reconhecidos e se reconhecerem como trabalhadores.
Essa é a mesma distorção que leva à desconsideração do aluno trabalhador,
ainda que cerca de 80% da população brasileira ocupada comece a trabalhar
antes dos 18 anos. Além disso, pouco mais da metade dos jovens entre 16
e 24 anos das principais regiões metropolitanas do país estão fora da esco-
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 119

la, apenas trabalhando ou procurando trabalho. Na Região Metropolitana


de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, dentre os jovens de 15 a 19 anos,
idade relativamente correspondente ao ensino médio, 48% estudam exclusi-
vamente; 24% estudam e trabalham ou procuram trabalho; e 19% somente
trabalham ou procuram trabalho (DIEESE, 2009). Além disso, em 2008,
no Brasil, 36% das pessoas entre 18 e 24 anos tinham 11 anos de estudo
(DIEESE, 2009). Numa sociedade extremamente desigual, como a brasi-
leira, não é necessário consultar dados estatísticos para saber que tais índices
estão concentrados nas camadas mais pobres da população.
A obrigação de trabalhar desde cedo ocasiona relações descontínu-
as e acidentadas dos jovens com a escola, promovendo uma drástica defasa-
gem idade-série/etapa escolar. Jovens de 15 a 17 anos deveriam frequentar
o ensino médio, contudo esse é um dos maiores gargalos do sistema de en-
sino.
Desde 1996 – ano da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases
(LDB) vigente – até 2003, houve um aumento significativo das matrículas
nesse nível de ensino, em grande parte como consequência da universali-
zação do ensino fundamental e devido à grande procura dos jovens pela
escolaridade, compelidos pelas demandas do mercado de trabalho. No Rio
Grande do Sul, esse aumento foi de 37%.
Parecia que caminhávamos para a universalização do ensino médio,
preceituada na constituição federal e LDB. No entanto, em 2004, houve uma
redução no número de matrículas, que seguem em retração. Possíveis expli-
cações podem estar na evolução do número de concluintes do ensino funda-
mental ou em lacunas nas políticas de oferta de ensino médio público, em es-
pecial referentes à localização das escolas, à oferta por turno de funcionamento
e à carência de programas suplementares de apoio ao acesso e permanência no
ensino médio (FARENZENA, 2006). Isso porque, no período de expansão
do ensino médio, foram justamente setores de baixa renda, que historicamente
não tinham acesso, que são incorporados, exigindo, assim, a ampliação da rede
pública (PERONI; FARENZENA; FRANZOI, 2004). Outra possível expli-
120 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

cação é que o ensino médio, nas condições atuais de oferta – sem medidas de
apoio à permanência do jovem na escola – chegou ao limite de absorção des-
sa população, constrangida pelos imperativos do mundo do trabalho, como
mostram as estatísticas apontadas anteriormente.
O que leva vários autores a utilizar o termo juventudes no plural é que
há uma diferença muito grande entre a relação que os jovens das camadas
pobres e a que os jovens de classes médias e altas estabelecem com o traba-
lho e a escola. Mesmo no ramo propedêutico, distinguem-se: enquanto uns
fazem seu percurso em escolas de qualidade, dedicando-se exclusivamente
ao estudo; outros estudam em escolas pobres, dividindo seu tempo entre o
estudo e o trabalho e frequentam cursos noturnos aos quais chegam com di-
ficuldade, depois de uma jornada de trabalho exaustiva e até há bem pouco
tempo sem direito à merenda. A merenda escolar, obrigatória para o ensino
fundamental, apenas recentemente tornou-se obrigatória no ensino médio.
Entretanto, em muitas escolas, ela não foi implantada por falta de estrutura
adequada – cozinhas, refeitórios e/ou merendeiras.
Uma pesquisa realizada sobre o ensino médio noturno (EMN)
(PERONI; FARENZENA; FRANZOI, 2004)2 mostrou que, apesar de suas
especificidades – que acarreta a necessidade de maior atenção, por atender
basicamente jovens de baixa renda e trabalhadores –, o mesmo não é tópico
específico nos documentos escolares, nas reuniões dos profissionais ou nas
atividades de capacitação dos docentes. Na explicitação da metodologia de
ensino, na oferta de atividades ou programas especiais, não são contempla-
das as necessidades singulares de alunos trabalhadores nem as características
do turno em que acontecem as aulas, assim como das jornadas de trabalho
dos profissionais.
2 Todos os dados sobre EMN aqui apresentados são extraídos da pesquisa sobre o ensino médio noturno da
rede estadual do Rio Grande do Sul. A pesquisa foi realizada em 2003, como parte de estudo desenvolvido em
nível nacional em atendimento à solicitação da Semtec/MEC, com o objetivo de conhecer a realidade do ensi-
no médio noturno, visando subsidiar as políticas públicas nacionais e estaduais. Além de dados secundários
sobre o ensino médio noturno (EMN), a pesquisa abrangeu, em especial, uma investigação qualitativa em dez
escolas públicas estaduais que oferecem ensino médio noturno, as quais foram selecionadas pelo suposto de
oferecerem condições de oferta de um ensino de qualidade (PERONI; FARENZENA; FRANZOI, 2004).
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 121

De outro ângulo, o fato de serem trabalhadores não retira desses


alunos as características do ciclo de vida por que passam. Como todos os
jovens, eles são conectados com seu tempo. Gostam de computadores e in-
ternet, do encontro com os amigos, do namoro, da hora do pátio, de esporte.
A pesquisa confirmou esses dados. Vis-à-vis, os resultados evidenciaram con-
dições bastante adversas para eles.3
De modo geral, a estrutura física e o estado de conservação das es-
colas eram bons. No entanto, algumas instalações não eram ou eram aces-
síveis com restrições aos alunos do EMN. O acesso a computadores e à
internet, por exemplo – reivindicação reiterada por alunos e professores –,
era limitado no turno da noite. Os laboratórios de informática, geralmente,
com quantidade insuficiente de equipamentos, tinham uso muito restrito,
comumente por falta de capacitação dos professores ou de profissionais que
orientassem os alunos. Nas escolas que também ofereciam cursos profissio-
nalizantes, os computadores eram destinados preferencialmente a esses.
Predominantemente, as bibliotecas eram precárias; as obras, antigas;
havia pouca informação atualizada; e a disponibilidade de livros era insufi-
ciente, em quantidade e variedade, para atender a todos os alunos, mesmo
nas tarefas solicitadas pelos professores. Esse é um problema agravado pelo
fato de que a maioria dos alunos tem na escola a principal, senão a única,
oportunidade de acesso à produção bibliográfica, uma vez que o percentual
de alunos de todas as escolas que declarou possuir poucos ou nenhum livros
em casa é elevadíssimo.
Os alunos solicitam também oficinas de danças, esportes, artes, mú-
sica, enfim, atividades às quais normalmente não têm acesso por trabalhar
3 Embora a pesquisa seja de 2003, o quadro no EMN não se alterou significativamente. Ainda que muitos ten-
ham sido os esforços de investimento, em especial no âmbito do Plano de Desenvolvimento da Educação do
governo federal, sabe-se que a extensão do país e das redes de ensino contribui para que as mudanças sejam muito
lentas. Inclusive, no Rio Grande do Sul, houve alguns agravantes. O processo de “enturmação”, promovido pela
Secretaria de Educação do Estado, tratou de aglutinar turmas de ensino médio, consideradas ociosas. De fato,
muitas turmas tinham 35 alunos matriculados, mas com um número muito reduzido de freqüentadores. Ao invés
de buscar as causas para tal situação, a medida tomada foi a de fechar turmas inteiras de ensino médio. Algumas
escolas periféricas deixaram de oferecer esse nível de ensino, tolhendo os jovens desse direito.
122 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

em período integral, estudar à noite e não ter recursos próprios suficientes


para realizá-las fora da escola. A importância da escola é maximizada nos
menores municípios, tendo-se constatado em um deles que apenas um dos
alunos de todo o ensino médio da escola já havia ido ao cinema.
A Educação Física, outra das atividades reivindicada pelos alunos,
não era componente curricular da maioria das escolas, no ensino médio no-
turno. Excepcionalmente, uma das escolas, não tendo espaço adequado para
a prática de Educação Física, alugava uma quadra esportiva da comunidade
para viabilizá-la. No outro extremo, em uma das escolas o uso de seu ginásio
pelos alunos só era possível mediante pagamento da mesma taxa que é co-
brada da comunidade externa.
A escola é, sem dúvida, um espaço privilegiado de relação para os
alunos. Na pesquisa, o pátio foi escolhido pela maioria dos alunos como o
espaço mais utilizado na escola, depois da sala de aula. No entanto, em parte
das escolas, os pátios são pouco iluminados e pouco conservados.4
Em uma das escolas as turmas do EMN ocupam salas de aula muito
mais precarizadas do que as de seus colegas do ensino profissionalizante e
do diurno. São as piores salas da escola: em péssimo estado de conservação,
esteticamente desestimulantes e insalubres (pouca ventilação, iluminação
precária, pé-direito muito baixo e inexistência de ventiladores que as tornam
insuportavelmente quentes durante o verão). Essa é uma escola cujas insta-
lações, na sua grande maioria, são satisfatórias, evidenciando o descaso para
com o EMN.
Assim, pode-se falar de uma segmentação no interior das escolas,
instituindo direitos diferenciados no seu acesso entre os alunos do noturno
e diurno, ou tipos de cursos diferenciados, muito maior do que a dualidade
ente ramo acadêmico e ramo profissionalizante. A escola, pois, reproduz em
seu interior sua condição de classe, que lhes dá acesso a bens de segunda
4 Em outras escolas, esse espaço de encontro e socialização é muito valorizado, com iluminação bastante
adequada e funcionamento de cantina, sobressaindo-se uma instituição na qual há música durante o recreio.
Foi dado destaque ao aspecto negativo, pois é preciso lembrar sempre que a amostra contemplava escolas
consideradas de melhor qualidade.
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 123

categoria, reforçando aquilo a que Kuenzer (2004) chama inclusão exclu-


dente na escola.
A visão de uma sala de aula do turno da noite é muito ilustrativa.
Na quase totalidade das escolas visitadas, elas estavam organizadas com as
carteiras enfileiradas uma atrás da outra. Embora organização e metodologia
tradicionais não sejam exclusividade do período noturno, sua adoção nesse
período é ainda mais preocupante, pelo fato de serem pouco atrativas para
uma população trabalhadora, que em geral já enfrenta maiores obstáculos
para se manter na escola. Às vezes os alunos sentavam-se ao fundo, em pares
de namorados, conversavam o tempo todo. Ou seja, as privações de espaços
de socialização, de atividades condizentes com sua faixa etária, com as quais
se identificam e de que estão privados no restante do tempo, se expressam
em sala de aula.
Os jovens trabalhadores são estrangeiros numa escola que não fala
sua língua, que ignora o que eles sabem, levando-os a sucessivas repetências,
defasagem idade-série, e ao abandono.
Esses jovens guardam com a escola que os expulsou desde muito
cedo e, em muitos casos, repetidas vezes, um misto de fascínio e medo, porque
não a reconhecem como um direito seu (FRANZOI, 2006, p. 79). Questio-
nado sobre o motivo pelo qual frequentava um curso de qualificação de cur-
ta duração, oferecido pelo Planfor, um dos entrevistados afirmou precisar de
conhecimentos básicos para ingressar em um curso técnico de ensino médio.
Tal explicação, em si, não seria plausível, pois o requisito do referido curso téc-
nico é exclusivamente a conclusão do ensino fundamental, sem exigência de
conhecimentos básicos da profissão a ser aprendida durante o curso técnico.
Entretanto, entende-se a motivação do entrevistado quando ele completa:
A gente não tem emprego. Aí a gente não tem um tênis pra se apresentar. Até
o material... Como é que tu vai chegar em uma sala de aula?!... Tem que ter
dinheiro para comprar o material. Não precisa ser uma calça Wrangler, mas
tu tem que ter um básico. Que não chegue lá de barriga cheia, mas que não
chegue lá morrendo de fome. (depoimento de um aluno de um curso do
Planfor em entrevista realizada por Franzoi, 2006, p. 79)
124 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Ou seja, a aprendizagem do “básico” serviria para compensar algu-


mas lacunas que aqueles jovens acreditavam possuir. Assim, saber o básico
poderia diminuir a desvantagem da falta do tênis, da calça apresentável. Essa
é uma das tantas estratégias que traçam para enfrentar essa escola, quando
não a abandonam de vez, como se dissessem “as uvas estão verdes”, reprodu-
zindo a fábula da raposa e as uvas (Esopo, 2007).
Esta atitude em relação à escola expressa, em certa medida, o para-
doxo a que se refere Sposito:
Enfim, há um paradoxo já no início da expansão recente do acesso à esco-
la sob o ponto de vista dos jovens: de um lado o forte reconhecimento de
que a escolaridade é fundamental e, ao mesmo tempo, a ausência de sentido
imediato para essa escola. Ocorre uma espécie de dialética entre o sentido
possível do projeto escolar que se volta para o futuro e a ausência de sentido
do tempo escolar presente. (2008, p. 87)

Ainda assim, esse futuro a que se volta o sentido da escola é muito


restrito. Na pesquisa realizada, constatou-se a falta de perspectivas da maioria
dos alunos em relação à continuidade dos estudos em nível superior ou ao seu
futuro profissional. Muitos alunos manifestaram pouca esperança de realizar
um curso superior ou de vir a exercer uma atividade profissional desejada a
partir de sua passagem pela escola. Para eles, o acesso a instituições privadas
de nível superior é limitado pelo valor das mensalidades e o ingresso em ins-
tituições públicas é dificultado por fatores tais como a distância, a manuten-
ção dos recursos necessários ao estudo e, em especial, as poucas esperanças
de serem aprovados nos processos seletivos. Em contraponto, as expectativas
aumentam quando os alunos dispõem de incentivos. Por exemplo, em um dos
municípios, a prefeitura oferece aos estudantes crédito educativo e transporte
à cidade vizinha onde se localiza uma universidade. Em outro caso, a escola
participa de um programa especial de acesso dos alunos a uma universidade
pública: 30% das vagas são reservadas à seleção de alunos do ensino médio,
por meio de avaliações ao longo do seu percurso escolar.5
5 Presume-se que as políticas afirmativas nas universidades públicas possam já ter ou virem a alterar esse
quadro.
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 125

Considerando a condição ainda precária das relações de trabalho


no país e as adversidades que esses alunos vivenciam, torna-se necessário
criar uma rede de suporte aos alunos, nesse nível de ensino, por meio de
bolsas associadas a estágios efetivamente supervisionados e/ou outros ti-
pos de auxílio, como alimentação, transporte, entre outros.
Para além dessas medidas, é preciso que o ensino médio ganhe
significado para esses jovens. Isso requer, dentre outras coisas, um reforço
na oferta de ensino técnico de nível médio e de ensino médio integrado
– expectativa e necessidade daqueles que não podem esperar a conclusão
da educação básica para entrar no mundo de trabalho. Os jovens entre-
vistados na pesquisa sobre o EMN expressaram unanimemente o desejo
de fazer um curso técnico. Porém, suas vagas eram restritas. A dissertação
de Claudia Klinski (2009) mostra as mazelas do ensino médio e como os
jovens, e também adultos, anseiam por ensino técnico e de qualidade. A
pesquisa com alunos do curso de Proeja de nível médio, no IFSul, Cam-
pus Charqueadas – os quais ingressaram com este nível de ensino já con-
cluído –, mostra que os motivos de ingresso e permanência foram, dentre
outros: o baixo nível do ensino médio que haviam cursado; a necessidade,
que pensam ter, de acumular cursos profissionalizantes para obterem mais
chances no mercado de trabalho; e a oportunidade de frequentar uma es-
cola de qualidade reconhecida.
Búrigo (2004) mostra que há, no Brasil, uma crescente procura pela
educação profissional técnica, à revelia do que sustentam alguns autores.
Para eles, as novas formas de organização da produção estariam colocan-
do a escolaridade superior como a mínima requerida: “Haveria então uma
tendência à extinção do ensino técnico. (...) Contudo, o aumento de 26,9%
das matrículas no país, entre 2003 e 2005, aponta noutra direção” (p. 33).
Trata-se, pois, de não rechaçar a educação profissional e deixar de considerá-
la uma educação pobre para pobres, mas, ao contrário, reafirmá-la como um
direito do trabalhador.
126 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Trajetórias na busca de uma profissão

A falta de opções de uma educação profissional na escola empurra


esses jovens para qualquer curso de qualificação que lhes seja disponibiliza-
do, em busca de uma profissão e do acesso ao mercado de trabalho, no qual
precisam ingressar desde cedo. No geral, são cursos aligeirados, sem muita
qualificação.
Pesquisa realizada com egressos do Plano Nacional de Formação
Profissional (Planfor) mostrou que a realização de cursos de qualificação,
por si só, não repercutiu na situação ocupacional de nenhum dos jovens. Os
casos de Jorge Luis e Fabrício são emblemáticos: a partir dos cursos reali-
zados, ambos acreditaram ter encontrado a profissão que procuravam. Tais
cursos representaram, de certa forma, um ponto de inflexão em suas trajetó-
rias. Os dois jovens desenvolveram gosto pelo que aprenderam no curso e
ainda passaram a acreditar que eram capazes de fazer o que aprenderam:
Não posso dizer que eu sou um “sol-da-dor”, mas eu entendo. [Se] me dá uma
máquina, eu sei fazer. (Jorge Luis)
Me apaixonei [pelo curso de auxiliar de padeiro], aprendi a fazer bolos, pães,
adorei o curso, faria tudo de novo, queria me especializar. Depois, futuramen-
te, quero ser um bom padeiro. (Fabrício)

Embora Fabrício afirme ter aprendido, com o curso, a profissão de


padeiro, isso não se concretizou: continua trabalhando como auxiliar de
pedreiro e procura emprego em um supermercado da vizinhança, no qual
acredita ter mais chances.
Embora Jorge Luis tenha se interessado pela profissão de soldador,
que aprendeu, segue trabalhando em outras áreas. Cabe aqui uma obser-
vação: para Jorge Luis e Fabrício, o interesse pela profissão surge de forma
casual. Os dois casos corroboram os achados de Ferretti (1988): em estudo
sobre as trajetórias ocupacionais de indivíduos das classes subalternas, o au-
tor demonstra que, para esses indivíduos, não há um projeto que anteceda a
carreira seguida.
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 127

Para Jorge Luis, o interesse pela profissão de soldador surgiu quan-


do estudava na escola técnica, a qual ofereceu um curso nessa área; como
estava desempregado, foi chamado para preencher uma vaga no referido
curso. Depois, como ele diz, “começou a se aprofundar nas coisas”. A partir
do curso realizado, passou a se “interessar pela profissão de soldador”, o
que fez com que se inscrevesse no segundo curso de soldador, realizado
no Planfor.
Fabrício se inscreveu no curso de auxiliar de padeiro porque era
o único disponível, o qual representava a quarta de suas opções, quan-
do da inscrição, depois de informática, mecânica e marcenaria. Quando
entrevistado, à época da pesquisa de acompanhamento de egressos, afir-
mou querer participar de um curso de mecânico de automóveis, que o
irmão estava cursando, em uma oficina particular. Como tinha dinheiro
para apenas um, a mãe avaliou que o irmão, que “está sempre mexendo nas
coisas em casa”, era o mais interessado. Quando entrou na escola em que
estudou, que oferecia ensino técnico, também quis ingressar em um curso
de mecânico, mas somente conseguiu vaga para marcenaria. À época da
segunda entrevista, afirmou que “mecânica nem passa mais pela cabeça”.
De fato, para Fabrício, o gosto pela profissão de padeiro surgiu depois das
muitas investidas fracassadas na profissão de mecânico. Pode-se dizer que,
para ele, a própria profissão foi escolhida em um quadro restrito de possi-
bilidades, em que o desejo inicial teve de ser abandonado ainda no âmbito
da formação.
Embora busquem a profissão desejada no plano de suas iniciativas
formativas, as condições objetivas não são favoráveis a ponto de permitirem
alcançá-la no plano de sua inserção no mercado de trabalho. Essa vai se dan-
do, também, de forma casual, de acordo com as oportunidades que surgem,
fazendo com que os projetos iniciais – ser um bom soldador ou um bom
padeiro – tenham de ser adiados ou abandonados. As próprias iniciativas
formativas são revistas, para que se adaptem às flutuações das oportunida-
des de qualificação profissional.
128 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Embora os projetos desses entrevistados apresentem alguma conso-


nância com a trajetória, vêm se mostrando difíceis de concretizar e, por esse
motivo, acabam não passando do nível do desejo ou mesmo do sonho. Isso
porque os trabalhos que conseguem derivam de indicações de parentes.
Fabrício consegue trabalhos na construção civil por indicação do padrasto.
Jorge Luis estava empregado em uma empresa de transporte urbano, onde
o tio trabalhava.
É pertinente entender a qualificação como uma construção social
complexa (NAVILLE, 1956, p. 5). Não bastam os diplomas, sejam escolares
ou de cursos profissionalizantes de qualquer espécie: o acesso ao emprego
pode ser mais bem oportunizado, mas está muito longe de ser garantido. A
relação entre formação e emprego não é linear, e as credenciais e a formação
atuam de modo diferente segundo redes de pertença social, cultural, familia-
res ou locais etc. (TANGUY, 1999).
Além disso, as atividades de trabalho, realizadas enquanto não é
acessado o lugar no mercado de trabalho correspondente à formação reali-
zada, implicam pensar que os cursos se assemelham ao que Tanguy (1999)
chama “uma senha para uma fila de espera” (p. 65), que pode não chegar ao
seu fim, ou que pode apontar em uma direção bastante diferente daquela
para a qual o indivíduo se preparou.

De frente para o trabalho, de costas para a escola

Não é meu objetivo analisar as políticas para a juventude no Bra-


sil, que têm sido foco de estudos de Sposito e Corrochano (2005), Sposito
(2008) e Dayrell, Leão e Reis (2007),6 dentre outros. No entanto, é inte-
ressante analisar tais projetos, os quais podem significar inclusive um afas-
tamento dos jovens em relação à escola. Embora a dissertação de Claude-
6 Para Sposito (2008), “apesar de sua ampliação nos últimos dez anos, não temos, ainda, nenhum conjunto sig-
nificativo de informações, de esforços ou de ações que possibilitem realizar um amplo balanço do que esta rede
de ações educativas realmente tem oferecido aos jovens pobres”. Para Dayrell, Leão e Reis (2007), os programas
educativos, com frequência, são a mera reprodução das práticas escolares em condições mais precárias.
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 129

te Oliveira (2009) sobre a Cadeia Produtiva do Skate (CPS)7 não tivesse


como objetivo avaliar o programa em foco, as constatações a que chega cor-
roboram o que Sposito (2008) afirma sobre esse tipo de iniciativa: as mo-
dalidades de oferta de ações educativas escolares e não escolares não podem
ser analisadas em separado, pois mesmo que ocorram de modo totalmente
paralelo, sem dialogarem – como de fato acontece –, estão sempre em pro-
cesso de interação. Ainda segundo a autora, para os jovens pobres, a frequên-
cia a uma escola degradada é acompanhada da participação obrigatória em
programas educativos não escolares. Há uma retórica de incentivo da frequ-
ência do jovem à escola – formalmente exigida dele para a participação nos
programas – que se choca com o discurso crítico sobre as práticas escolares,
por parte desses mesmos programas.
Outro dos achados de Claudete Oliveira são os significados atribuídos
pelos jovens, integrantes da CPS, ao trabalho. Um deles é a autonomia, ou “an-
dar com as próprias pernas”, como refere uma das participantes da pesquisa:
O trabalho está sendo muito bom, pois estou aprendendo a fazer coisas que
não sabia fazer direito (...) até conhecer o centro sozinha, pois minha mãe
nunca deixou, ela morria de medo, mas agora ela sabe que este é o meu traba-
lho e eu posso andar com as próprias pernas. (Aline, 16 anos)

Outro significado é a articulação da responsabilidade às suas característi-


cas juvenis: “(...) não fique assustada porque eu continuo alegre e brincalhão...”
Também o pertencimento a um grupo é mencionado: “foi lá que eu
conheci bons amigos e os meus futuros colegas de trabalho e sócios, graças
a esse curso, que hoje eu tenho o meu negócio junto com os meus amigos”
(OLIVEIRA, 2009, p. 95).

7 A Cadeia Produtiva do Skate (CPS) foi um projeto derivado do Programa Empreendedorismo Juvenil da
Secretaria Nacional da Juventude, para abarcar e financiar projetos voltados a jovens oriundos das Políticas
Públicas Juvenis que tivessem como objetivo o trabalho associativo. A CPS acolheu 30 jovens egressos do
Consórcio Social da Juventude, contemplando a fabricação pelos jovens de pistas e skates, roupas, acessórios,
serigrafia e calçados, resultando em uma cadeia produtiva de skate, que aglutinou cinco entidades executoras,
cada uma responsável por um item da cadeia. Os dados apresentados aqui são extraídos da dissertação de
mestrado, defendida em 2009, por Claudete S. Oliveira. A metodologia de pesquisa incluía a troca de cartas
entre a pesquisadora e os jovens.
130 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Quanto mais conseguem isso no trabalho, somado ao fato de que


a escola desconhece/não valoriza o que eles fazem fora dela, mais se afas-
tam da escola. Após tentativas de levar o projeto para dentro da escola, sem
sucesso, um dos jovens afirma: “a escola não dá mais pra mim”; “fazer o que
lá?”, “só tem criança”; “não querem nada com nada” (OLIVEIRA, 2009, p.
118). Oliveira menciona ainda outro motivo para o afastamento da escola:
a sobrecarga que o programa acarreta para os jovens, o que reforça o já apon-
tado, de que esses programas configuram para o jovem outra jornada, além
da escolar (SPOSITO, 2008).
O contato com a tecnologia é também um atrativo do trabalho para os
jovens. É interessante o depoimento de uma das alunas do IFSul, Campus Sa-
pucaia, sujeito da pesquisa de mestrado de Anália Martins de Barros (2010).
Bolsista do IF, ela se orgulha do trabalho, que inclui a limpeza da máquina fo-
tocopiadora. Para além da precariedade do trabalho, é preciso refletir sobre o
sentido atribuído à tecnologia e a valorização de trabalhos que oportunizem a
proximidade com a mesma. Evidentemente, isso não significa supervalorizar
um trabalho subalterno. É preciso sempre levar em consideração o patamar de
que partem os sujeitos, para se entender tais sentidos. Os trabalhos pregressos
da aluna em questão eram de empregada doméstica.

Em busca de um final feliz:


possibilidades de mudanças através da escola
É importante remarcar uma questão crucial. Se temos que apontar
as mazelas da escola pública, é necessário também visibilizar experiências
exitosas. Isso porque a denúncia sobre os baixos índices de desempenho
dos alunos de escolas públicas, em comparação com a escola privada, pode
recair como uma condenação sobre a escola pública. A discussão é bastante
complexa e foge aos objetivos deste artigo. O que interessa, por ora, é mos-
trar como a escola pode vir ao encontro dos jovens e que, como dito, o final
feliz nunca acontece, mas mudanças podem ser construídas, pois, nas pala-
vras de Gramsci, o novo nasce do velho.
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 131

Nessa perspectiva, destacam-se, dentre as medidas governamentais


de inclusão de novos contingentes de trabalhadores excluídos da escola, o
Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educa-
ção Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), imple-
mentado na rede federal de educação profissional. A medida tem sido sau-
dada por setores educacionais progressistas e segmentos dos movimentos
sociais como uma conquista dos trabalhadores, ainda que com algumas res-
salvas8 e necessidade de vigilância. O mérito do programa é possibilitar uma
educação profissional aos jovens trabalhadores, que necessitam completar
sua escolaridade básica. Outro ponto que tem sido destacado por Santos
(2010) é que os jovens e adultos que ingressam nas escolas técnicas federais,
uma rede de excelência, representam aí uma “figura de desordem”, fazendo
repensar-se a escola em seu conjunto.
Podem contribuir para esse programa, como para outros de mesma na-
tureza, experiências em que a tecnologia assume concepção e papel novos no
processo de produção do conhecimento. Não cabe formar apenas para o con-
sumo ou adaptação de tecnologias, mas também para a produção das mesmas.
Nesse sentido, torna-se necessário educar cidadãos capazes de intervir, em dife-
rentes níveis, nos rumos dados à sua produção e utilização. Muitos exemplos in-
dicam a viabilidade de tal proposição. A esse respeito, destaco os projetos de pes-
quisa desenvolvidos pelos alunos da Escola Estadual Técnica Agrícola (EETA),
na Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, foco da pesqui-
sa de Maria Clarice Oliveira (2009). Um dos projetos abordou o aproveitamen-
to da fécula de batata-doce em bebidas lácteas. Os alunos que a desenvolveram
são oriundos de uma região de plantio da batata doce, cujo preço de mercado
é muito baixo, e seu objetivo era encontrar alguma forma de agregar-lhe valor.
A pesquisa na escola levou-os a descobrir com extrair-lhe a fécula e, posterior-
mente, utilizá-la em bebidas lácteas. Atualmente, a pesquisa é alvo de interesse de
prefeituras das regiões produtoras (OLIVEIRA, 2009).
8 Uma delas é o fato de o programa ter chegado pronto à rede sem discussão com seus atores; outra é sua
implantação sem a correspondente ampliação do quadro de docentes
132 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

A experiência da Casa Familiar do Mar9 também é exemplar. Seu


ponto alto é o “projeto de vida” dos alunos formandos, defendido em banca
pública por ocasião do término do curso, o qual consiste em um projeto de
inclusão no mercado de trabalho. Por meio dele, o aluno demonstra como
pretende pôr em prática os conhecimentos adquiridos durante o curso. Em
geral, os projetos estão ligados à atividade pesqueira, objeto da formação de-
senvolvida na escola. Entidades governamentais e privadas da comunidade
são convidadas a assistir às apresentações dos projetos, na tentativa de obter
financiamento para os mesmos. Tal processo tem propiciado aos alunos ou-
tra relação com a pesca, antes tida como destino inexorável e pouco promis-
sor, que passa a ser vislumbrada como uma opção de vida viável, ressignifica-
da, porque aponta para a possibilidade de novas relações de trabalho.
Esses exemplos se contrapõem ao que as políticas têm entendido
por jovens protagonistas e agentes do desenvolvimento local (SPOSITO,
2008). Embora eles sejam fundamentais nesse processo, o Poder Público
se faz presente em todas as instâncias. E o jovem é envolvido organica-
mente na produção de tecnologia para o desenvolvimento. Note-se que
o tipo de trabalho proposto articula ensino, pesquisa e extensão. A expe-
riência é exemplo de que o ensino médio, principalmente quando acolhe
jovens trabalhadores, também é lugar de pesquisa. Nela, as pesquisas re-
alizadas somente são possíveis pelo conhecimento que os alunos trazem
das suas comunidades e sobre as relações de trabalho aí implicadas. Se o
saber da experiência é incompleto, assim também é o saber teórico. No
encontro desses dois saberes, abre-se um feixe de possibilidades ao qual
a escola tem que estar atenta. Além disso, conecta-se com as instâncias
de discussão das formulações de políticas de desenvolvimento local e o
contato com os arranjos produtivos locais.
9 A Casa Familiar Rural Santo Isidoro, conhecida como Casa Familiar do Mar (CFM), é uma escola para
filhos de pescadores, no município de São Francisco do Sul, litoral norte de Santa Catarina. Faz parte da As-
sociação das Casas familiares Rurais da Região Sul – Arcafar-Sul – que congrega 67 Casas Familiares Rurais
(CFR), espalhadas pela Região Sul, sendo 36 no Paraná, 27 em Santa Catarina e quatro no Rio Grande do Sul.
Ver: Franzoi, Farenzena e Peroni (2005).
Juventude, trabalho e educação: crônica de uma relação infeliz em quatro atos 133

Os jovens trabalhadores, mais do que privados de seu consumo, são


vítimas das próprias tecnologias. Mais do que formar para o consumo cons-
ciente, nessas experiências, eles são formados para a produção de tecnologias.
Supera-se assim a visão estreita de ensino para articular, de forma orgânica, o
ensino e a pesquisa, sendo esta produzida no próprio processo de formação.
Isso somente acontece se pensarmos nos jovens trabalhadores como copar-
tícipes do processo de ensino e aprendizagem. As experiências mostram tam-
bém que promover um deslizamento da tônica para aquilo que os alunos pos-
suem, e não o que lhes falta, ou seja, deslocar a ênfase nas suas carências para as
suas experiências (CORREIA, 2003), pode dar bons resultados.
Outra experiência, de natureza diferente, é também uma das formas
de dar sentido ao ensino médio. Trata-se da orquestra de câmara “Opus 68”,
formada por alunos do campus Petrolina do IF Sertão-PE, durante o Fórum
Mundial de Educação Profissional e Tecnológica (FMEPT), realizado em no-
vembro de 2009, em Brasília-DF (http://opus68.zip.net/). O desempenho
dos jovens estudantes e o repertório diversificado e uma produção musical
qualificada se distanciam, em muito, das tradicionais propostas pobres para
pobres. É um importante exemplo de articulação entre ciência, tecnologia e
cultura, levando para a escola pontos de contato com a identidade juvenil.

Referências
BARROS, Anália Bescia Martins de. A relação entre os saberes-experiência do trabalho e os saberes escolares, vista por
alunos do Proeja do IFSUL de Sapucaia do Sul. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
BÚRIGO, Elisabete Zardo. A reforma do ensino técnico segundo os professores: adaptações e resistências em
duas escolas técnicas industriais gaúchas. 2004. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-gradua-
ção em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
CORREIA, José Alberto. Formação e trabalho: contributos para uma transformação do modo de pensar
na sua articulação. In: CANÁRIO, Rui (Org.). Formação e situações de trabalho. Porto: Porto Editora, 2003.
p. 13-42.
DAYRELL, Juarez; LEÃO, Geraldo; REIS, Juliana. Juventude, pobreza e ações socioeducativas no Brasil. In:
SPOSITO, Marília Pontes (Coord.). Espaços públicos e tempos juvenis. São Paulo: Global, 2007. p. 47-82.
DIEESE. Anuário dos trabalhadores 2009. São Paulo: DIEESE/MTE, 2009.
ESOPO. A raposa e as uvas. In: ESOPO. Fábulas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007.
134 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

FARENZENA, Nalú. Oferta de educação básica no Rio Grande do Sul: divisão de responsabilidades e financia-
mento. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 1, p. 85-108, jan./jun. 2006.
FERRETTI, Celso João. Opção: trabalho – trajetórias ocupacionais de trabalhadores das classes subalternas.
São Paulo: Cortez, 1998.
FISCHER, Maria Clara Bueno; FRANZOI, Naira Lisboa. Formação humana e educação profissional: diálo-
gos possíveis. Educação, Sociedades & Culturas, Porto, v. 29, n. 1, p. 33-49, jul./dez. 2009.
FRANZOI, Naira Lisboa; HIPOLYTO, Álvaro; FISCHER, Maria Clara; PINO, Mauro Del; SANTOS, Si-
mone Valdete dos. Escola, saberes do trabalho e exclusão: o Proeja no Rio Grande do Sul. Educação & Realida-
de, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 167-186, jan./abr. 2010.
FRANZOI, Naira Lisboa; SANTOS, Simone Valdete dos; GRABOWSKI, Gabriel; RIBEIRO, Jorge Alberto
Rosa. Tensões e possibilidades: o que há de atual nas políticas de educação profissional? Mesa temática V –
Ensino médio e educação profissional da Escola de Inverno da Faculdade de Educação-UFRGS. Porto Alegre:
UFRGS, 2008. Mimeo.
FRANZOI, Naira Lisboa; FARENZENA, Nalú; PERONI, Vera Maria Vidal. Experiências alternativas de eleva-
ção de escolaridade articulada à educação profissional. Porto Alegre: UFRGS, 2005. [Relatório de pesquisa].
FRANZOI, Naira Lisboa. Entre a formação e trabalho: trajetórias e identidades profissionais. Porto Alegre: Edi-
tora UFRGS, 2006.
FRANZOI, Naira Lisboa. Ensino-pesquisa-extensão nos IFs: o “fio da navalha”. I Simpósio dos Institutos Fe-
derais de Educação Ciência e Tecnologia, Brasília. Anais do I Simpósio dos Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia. Brasília: MEC; Setec, 2009. CD Rom.
KLINSKI, Cláudia dos Santos. Ingresso e permanência de alunos com ensino médio concluído no Proeja do
IF Sul Riograndense - campus Charqueadas. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
KUENZER, Acácia Zeneida. Ensino médio: construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. São
Paulo: Cortez, 2004.
NAVILLE, Pierre. Essai sur la qualification du travail. Paris: Rivière, 1956. Tradução de Gisela Lobo Tartuce.
Revisão de Maria Inês Rosa, para circulação restrita. Texto digitado.
OLIVEIRA, Claudete Souza. Escrevo-te estas mal traçadas linhas: a escola e o trabalho nas cartas dos jovens
da cadeia produtiva do skate. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
OLIVEIRA, Maria Clarice Rodrigues. Aprender para um fazer transformador: saberes que formam e transfor-
mam. 2009. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialista em Proeja) - Programa de Pós-graduação em Edu-
cação, Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
OPUS 68. Disponível em: http://opus68.zip.net/. Acesso em: 14 ago. 2010.
PERONI, Vera Maria Vidal; FARENZENA, Nalú; FRANZOI, Naira Lisboa. Ensino médio noturno: rede
estadual do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004. [Relatório de pesquisa].
SANTOS, Simone Valdete dos. Sete lições sobre o Proeja. In: MOLL, Jaqueline (Org.). Educação profissional
e tecnológica no Brasil contemporâneo: desafios, tensões e possibilidades na contemporaneidade. Porto Alegre:
Artes Médicas, 2010.
SPOSITO, Marília Pontes; CORROCHANO, Maria Carla. A face oculta da transferência de renda para jo-
vens no Brasil. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 141-172, nov. 2005.
SPOSITO, Marília Pontes. Juventude e educação: interações entre a educação escolar e a educação não-for-
mal. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 33, n. 2, p. 83-98, jul./ dez. 2008.
TANGUY, Lucie. Do sistema educativo ao emprego. Formação: um bem universal? Educação & Sociedade, São
Paulo, ano 20, n. 67, p. 48-69, Papirus, 1999.
Participación en proyectos y desarrollo integral
de adolescentes y jóvenes
Olga Nirenberg

Antecedentes

Existe un supuesto generalmente aceptado aunque sin bastantes evi-


dencias de respaldo (vg. estudios de seguimiento o investigaciones evalua-
tivas específicas) acerca de la influencia positiva que tiene la participación
de adolescentes y jóvenes1 en proyectos sociales, para su desarrollo integral
y su constitución como actores sociales. La hipótesis generalizada es que
su involucramiento protagónico en los diferentes momentos de la gestión
de proyectos tendrá efectos positivos – inmediatos y de largo plazo – en la
adquisición de hábitos y comportamientos saludables, así como en su “em-
poderamiento” y formación ciudadana. Es en tal sentido que se afirma que
involucrarse en proyectos participativos tiene un carácter promocional.2
Dos importantes antecedentes de esta ponencia son: 1) la tesis de
doctorado de la autora, en Ciencias Sociales de la Universidad Nacional de
1 Dado que los lingüistas no se ponen aún de acuerdo acerca del uso del “o/a” o de la “@” para denotar lo
femenino/masculino, en este documento se da por sentada la orientación hacia el logro de la equidad en
materia de género y se usará sólo el tradicional masculino genérico a efectos de no dificultar la lectura fluida
y comprensiva.
2 Esta afirmación es válida para la población general y no sólo para el segmento de adolescencia o juventud;
sobre todo para aquellos grupos poblacionales que viven en situaciones de pobreza o presentan ciertos grados
de vulnerabilidad social.
136 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Buenos Aires, titulada Avances en la evaluación de procesos y resultados de la par-


ticipación de adolescentes en proyectos sociales, elaborada durante los años 2003
a 2005, y 2) el ulterior libro escrito sobre esa base (NIRENBERG, 2006).
Esa tesis doctoral, entre otros objetivos, se propuso proveer métodos
e instrumentos para evaluar procesos, resultados e impactos del involucra-
miento protagónico de adolescentes / jóvenes en proyectos participativos,
así como corroborar esa hipótesis sobre el carácter promocional de tal invo-
lucramiento. Para eso se diseñaron y aplicaron instrumentos evaluativos que
brindaron evidencias acerca de los efectos positivos, inmediatos y mediatos,
en la formación y el desarrollo de los adolescentes / jóvenes como personas
– ciudadanos – y en la adquisición de valores, actitudes y comportamientos
saludables; asimismo, se evidenciaron efectos positivos en sus familias – las
de origen y las propias que ulteriormente conformaron – así como en los
grupos, organizaciones y comunidades de pertenencia.

Los límites etáreos y las visiones transicionales

Hay discusiones acerca de los límites de edad de la población ado-


lescente y respecto de las fronteras internas de los tramos de la adolescen-
cia y la juventud. Esa es una cuestión importante tanto para identificar los
principales problemas como para diseñar estrategias de intervención. Esos
límites y fronteras son sociales antes que exclusivamente etáreos; se trata de
construcciones sociales que varían histórica y culturalmente. Gran parte de
la literatura considera adolescentes a quienes están comprendidos entre los
10 a 19 años, y jóvenes a los que se encuentran entre los 15 y 24 años, pro-
duciéndose así un visible solapamiento. Por otro lado, pueden diferenciarse
dos grupos en la franja adolescente: el de 10 a 14 y el de 15 a 19 años, los
cuales implican también diferentes perspectivas desde el punto de vista de la
formulación de las políticas o programas.
Suele identificarse a la adolescencia como una espera, transición o
moratoria entre la infancia y la adultez, definida ésta por atributos como la
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 137

autonomía económica, la diferenciación de la familia de origen y la posibili-


dad de conformar una propia, la capacidad de sostenerse responsablemente
a sí mismo y a los hijos, etc. Esa perspectiva transicional ha sido criticada, por
un lado por que no da cuenta de las nuevas formas de constitución de los
grupos familiares o uniones (que se alejan de la tradicional familia nuclear
constituida por madre, padre, hijos), ni de las relaciones afectivas y de poder
internas, vinculadas a la fuente de los ingresos familiares y que se plasman
diferencialmente en los grupos de pobreza. Por otro lado, los cambios cons-
tantes y la rapidez de los progresos técnicos y científicos actuales obligan
también a los adultos (no sólo a los adolescentes) a una formación y aprendi-
zaje permanente para adecuarse en forma eficaz a los contextos cambiantes;
se incluye así en el concepto de ciclo vital la noción de aprendizaje continuo,
de una constante formación de la subjetividad e identidad humanas.
Se objeta que considerar la adolescencia como etapa preparatoria
para la vida adulta constituye una visión reduccionista, que deja de lado los
derechos de los niños y jóvenes, al considerarlos carentes de madurez social
e inexpertos. Eso implica además negarles reconocimiento como sujetos so-
ciales, acentuando y prolongando la dependencia infantil, limitando la par-
ticipación y profundizando la distinción-oposición entre menores y adultos
(KRAUSKOPF, 1999).

La perspectiva de género

Las especificidades de la mujer y del varón adolescente o joven in-


troducen nuevas distinciones conceptuales. Los procesos de socialización
y construcción de la subjetividad, como muchas de sus prácticas, presentan
diferencias entre varones y mujeres.
Aunque los cambios corporales en la adolescencia, con eje en la sexua-
lidad, atraviesan a ambos, es la adolescente la que asume el mayor riesgo de
la temprana procreación. Los dispositivos de control social y familiar que se
ejercen sobre su sexualidad, son todavía diferentes de las que se ejercen en re-
138 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

lación con el varón y están influenciadas, a su vez, por las representaciones de


la sociedad y las familias acerca de los roles de género. El grado de fragilización
y vulnerabilidad de las adolescentes en los sectores pobres queda particular-
mente expuesto en el caso de embarazos tempranos no deseados.
La problemática del embarazo temprano se ha referido hasta ahora
casi exclusivamente a mujeres adolescentes, como si la única particularidad
femenina fuera su capacidad de embarazarse. Las conductas de riesgo de las
adolescentes en las que más se ha reparado han sido las ligadas a la salud
reproductiva, descuidando abordajes anticipatorios que den cuenta de las
otras dimensiones de la salud y el bienestar de las jóvenes, como es el cuida-
do de su cuerpo y, en general, su autoestima (ROJAS; DONAS, 1995).
Por otra parte, los adolescentes varones tienen mayor riesgo de mo-
rir que las mujeres. Los motivos se relacionan principalmente con la violen-
cia, el suicidio, los accidentes y el consumo de drogas, todos vinculados con
su socialización y forma de vida.
Las creencias predominantes acerca de que la sensibilidad y la ex-
presión de los afectos son característicos de la mujer, han influido negati-
vamente en la relación entre los sexos de varias generaciones; un fuerte
mandato social para el varón es que él debiera “saberlo todo”, especialmente
en cuestiones de sexo, y por ende, en la práctica, está más inhabilitado para
preguntar que la mujer; al varón le es más difícil expresar su intimidad, pero
sus dudas y miedos no son menores que los de las mujeres; su actuación
impulsiva, en lo sexual, suele colocarlo en situación de victimario, cuando él
también es víctima de sus limitaciones y de su propia conducta. Esos man-
datos sociales y familiares acerca del modelo de masculinidad deseable con-
lleva altos costos físicos y psíquicos, tales como: una menor relación con los
sentimientos y los afectos, afrontar peligros, demostrar fuerza y responder
en forma agresiva, ganar peleas, estar dispuesto sexualmente etc. Algunos
estudios vinculan esos mandatos con las mayores cifras en los varones de
accidentes de auto, moto, bicicletas, consumo excesivo de alcohol y drogas,
suicidios (GIRARD; RAFFA et al., 2001).
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 139

Los enfoques de derechos y de las fortalezas

En la segunda mitad del siglo pasado surge el enfoque sobre el dere-


cho a la ciudadanía de los niños y adolescentes, que se plasmó en la Conven-
ción de los Derechos del Niño, la que casi todos los países del planeta han
ratificado. Ese enfoque de derechos, superador de la visión puramente transicio-
nal y problemática de la adolescencia, identifica a ese segmento poblacional
como actor estratégico para el desarrollo colectivo y reconoce su valor por
la flexibilidad y apertura a los cambios, como expresión clave de la sociedad
y la cultura global, con capacidades y derechos para intervenir protagónica-
mente en su presente, construir democrática y participativamente su calidad
de vida y aportar al desarrollo social (KRAUSKOPF, 1999).
La adolescencia y juventud es vivida y procesada de maneras dife-
rentes según sea el sector socio-económico de pertenencia y los contextos
culturales que dan sustento a este tramo del ciclo vital; son significativos tan-
to el abandono de la escuela y la incorporación temprana al trabajo, como
los roles preestablecidos, las valoraciones y expectativas diferentes para mu-
jeres y varones. Aunque también debe reconocerse que la constitución de
la subjetividad adolescente, si bien encuadrada en los contextos históricos
y culturales propios que la modelan, comparten, como colectivo, un discur-
so globalizado-mediático que influye significativamente. De tal modo, sin
desconocer las especificidades de los adolescentes y jóvenes que habitan en
zonas rurales, también debe reconocerse que comparten actualmente con
sus pares urbanos un similar discurso mediático, siendo interpelados como
consumidores o abriéndoles nuevos deseos.
Los conceptos de adolescencia y juventud suscitan valoraciones
sociales contrapuestas en la mayor parte de las sociedades occidentales: la
que deviene de la “patologización” de esa etapa de la vida y la convierte en
depositaria o causa de distintas problemáticas y la que las corrientes posmo-
dernas y mediáticas entronizan como modelo corporal, ideal de potencia y
capacidad vital.
140 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Gran parte de esas sociedades miran a los adolescentes y jóvenes


como “peligrosos” y muchos de ellos construyen su identidad desde ese
discurso social que así los define. Sin embargo, a través de diversas expe-
riencias locales que se han desarrollado a finales del milenio anterior y
principios del actual en distintos puntos del planeta, particularmente en
países de la región de América Latina y el Caribe, han habido aprendiza-
jes acerca de las condiciones en que surgen abiertamente sus fortalezas y
potencialidades, que implican habilidades para adecuarse creativamente,
e incluso introducir cambios en sí mismos y en sus entornos (familiares,
institucionales y comunitarios). Entre esas fortalezas y potencialidades se
destacan, entre otras, su capacidad para superar barreras económicas, so-
ciales y psicológicas, la capacidad de emprendimiento, de generar activi-
dades productivas, la adopción de posturas críticas y a la vez propositivas,
la predisposición para promover cambios, la capacidad para intervenir
con protagonismo, la avidez para aprender y aprovechar oportunidades, la
fuerza numérica que aportan, su alta sensibilidad estética, la solidaridad y
lealtad (sobre todo con sus pares).
Las mencionadas experiencias tuvieron como común denomina-
dor, más allá de sus diferentes temáticas, la apertura de espacios donde los
adolescentes podían expresar sus necesidades, expectativas, temores, donde
además se escuchaban sus propuestas y necesidades y se las incorporaba al
trabajo formativo, confiando en su capacidad para comprender situaciones
complejas y para tomar las decisiones adecuadas en conjunto con adultos
referenciales.
Asimismo, se observó que esos espacios privilegiaron las instancias y
dinámicas grupales. Dentro de la estrategia grupal, la interacción entre pares
tiene un peso particular ya que los propios adolescentes suelen convertirse
en agentes multiplicadores que detectan los problemas de sus compañeros
y pueden brindarles apoyo, orientarlos para buscar ayuda y contribuir a la
resolución de sus problemas específicos.3
3 Se denomina a esa modalidad “estrategia de trabajo entre pares”, a la que se aludirá más adelante.
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 141

Resulta aconsejable entonces que el diseño de políticas y programas


contemplen la adolescencia y la juventud como un conjunto poblacional
heterogéneo, si bien con riesgos reconocibles, también con fortalezas y po-
tencialidades, las que podrían constituirse en palancas para sortear los ries-
gos y conducir hacia un desarrollo positivo. La orientación debería ser hacia
la igualación de oportunidades en los puntos de partida, dejando que las in-
evitables diferencias en los resultados o “puntos de llegada” se deban a otras
variables no tan vinculadas con los contextos sociales de origen, sino que
se relacionen más con las diferencias intrínsecas entre los individuos, que
hacen que cada uno sea, justamente, “único”.

Resiliencia, factores protectores y enfoque de habilidades


para la vida

Con base en la premisa de enfatizar los aspectos positivos más que


los problemáticos, surgieron en los últimos quince años del milenio ante-
rior los estudios sobre resiliencia,4 entendiendo por tal la capacidad humana
para enfrentar, superar, aprender, fortalecerse, transformarse, a partir de (o a
pesar de) las situaciones más adversas, como pueden ser las guerras, catás-
trofes naturales, pérdidas de familiares directos, la violencia o maltrato en la
infancia, etc. El término fue utilizado en la psicología, tomando su acepción
en inglés, como aquella capacidad de ciertos organismos o cuerpos para re-
cuperarse, retroceder o reasumir su tamaño y forma original, después de ha-
ber sido comprimido, doblado o estirado; también significa la recuperación
rápida de un estado de cansancio o depresión.
Pueden identificarse distintos factores protectores que favorecen o es-
timulan la resiliencia, los que se clasifican en tres categorías (GROTBERG,
1996):
• Las fortalezas internas desarrolladas (relacionadas con el ser)

4   Véanse al respecto Grotberg (2001); Kotliarenco et al. (1998); Kotliarenco; Mardones; Me-
lillo; Suarez Ojeda (2000).
142 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

• El apoyo externo recibido (relacionadas con el tener)


• Las habilidades sociales y para resolver problemas, adquiridas (re-
lacionadas con el poder hacer)
Los fenómenos de la resiliencia se estudiaron con quienes sobre-
vivieron a los campos de concentración y exterminio del nazismo, aque-
llos que aún llevando marcas visibles en sus cuerpos y espíritus, pudie-
ron luego seguir trayectorias de vida muy creativas y activas en los planos
afectivos y profesionales. Los escritos – filosóficos/literarios – de Primo
Levi, Bruno Bettelheim, Walter Benjamín, Paul Steinberg, son algunos
ejemplos de esa incomparable fortaleza e impulso por vivir de los que pu-
dieron contarlo, para que la memoria de tantos que quedaron sin vida y
sin voz, fuera posible.
El neurólogo y psiquiatra francés Boris Cyrulnik escribió sobre la
resiliencia. Nacido en Burdeos en 1937 en una familia judía, sus padres mu-
rieron en un campo de concentración nazi del que él logró huir a los 6 años.
Vivió después en diversas instituciones de la beneficencia. Tuvo la oportuni-
dad de interactuar con adultos que le inculcaron el amor a la vida y a la litera-
tura y pudo educarse y crecer superando su pasado. Su particular trayectoria
personal es explicada por él en su deseo de dar un sentido a lo incompren-
sible; esa necesidad de dar un sentido a la vida es un aspecto relevante del
proceso de resiliencia. Según él, la resiliencia es un mensaje de esperanza, ya
que hoy día se sabe que un niño maltratado puede sobrevivir sin traumas si
no se le culpabiliza y se le presta bastante apoyo. La historia, enfatiza, explica
el presente pero no necesariamente obtura el futuro. Aclara que el proce-
so de resiliencia no es algo que pueda afrontarse en total soledad, sino que
necesita de un prójimo. Describe a un tutor de resiliencia como una persona
que provoca un renacer del desarrollo psicológico tras el trauma. En general
se refiere a personas adultas que se constituyen en modelos de identidad e
imprimen un giro en la existencia y en el desarrollo de un niño o adolescente
(MELILLO, 2005).
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 143

Asociado con el concepto de resiliencia, el enfoque de habilidades


para la vida constituye una estrategia sinérgica para afrontar riesgos y adver-
sidades y para contribuir al desarrollo saludable de adolescentes y jóvenes,
partiendo de la premisa de que un aspecto clave del desarrollo humano, tan
importante para la supervivencia como el intelecto, es la adquisición de habi-
lidades socio-cognitivas y emocionales para enfrentar y superar problemas.
Ese enfoque incluye una educación basada en la incorporación de habilida-
des en esas esferas, para fortalecer los factores protectores de los adolescen-
tes y jóvenes, promover la competitividad necesaria para lograr un tránsito
saludable hacia la madurez y promover la adopción de conductas positivas
(MANGRULKAR; WHITMAN; POSNER, 2001). Se identifican tres ca-
tegorías claves de habilidades para la vida:
• Habilidades sociales o interpersonales (incluye comunicación, ne-
gociación/ rechazo, confianza, cooperación y empatía)
• Habilidades cognitivas (incluye solución de problemas, toma de
decisiones, comprensión de consecuencias, pensamiento crítico y
auto-evaluación)
• Habilidades para enfrentar emociones (control del estrés y de los
sentimientos, capacidad para el auto-control).
El desarrollo de esas habilidades está estrechamente relacionado
con una pedagogía de aprendizaje activo, incluyendo dinámicas participa-
tivas, tales como la dramatización o actuación, el análisis de situaciones y la
solución grupal e individual de problemas. Las intervenciones sociales que
adoptan este enfoque comprometen en forma activa y protagónica a los jó-
venes en su propio proceso de desarrollo.
Algunas perspectivas teóricas ven estas habilidades para la vida como
un medio para que los adolescentes y jóvenes participen activamente en su
propio proceso de desarrollo y en el proceso de construcción de normas
sociales. Enseñar a los jóvenes cómo pensar en vez de qué pensar, proveerles
herramientas para la solución de problemas, toma de decisiones y control de
144 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

emociones y que participen por medio de metodologías participativas y el


desarrollo de habilidades puede convertirse en un medio para fortalecerlos
y adquirir poder (empoderarlos).

El capital social y el desarrollo de adolescentes y jóvenes

Puede decirse que el capital social de un grupo constituye su capa-


cidad efectiva para movilizar productivamente, y en beneficio del conjunto,
los recursos asociativos que radican en las distintas redes sociales a las que tie-
nen acceso sus miembros (BAGNASCO et al., 2001).
Los recursos asociativos que se consideran para dimensionar el
capital social con que cuenta un grupo o comunidad son las relaciones de
confianza, reciprocidad y cooperación. La confianza es consecuencia de la repe-
tición de interacciones con otras personas que de acuerdo a la experiencia
responderán con un acto de generosidad, fortaleciendo así un vínculo que
combina la aceptación del riesgo con un sentimiento de afecto o identidad
ampliada. La reciprocidad ha sido concebida como el principio rector de
una lógica de interacción ajena a la lógica del mercado, que supone inter-
cambios basados en obsequios (PIZZORNO, 2003). La cooperación es la
acción complementaria orientada al logro de objetivos compartidos de una
actividad en común (DURSTON, 2000).
Existe un estrecho vínculo entre el concepto de capital social y el de
capital humano; este último se centra en los individuos, pero éstos deben
relacionarse con otros para poder desarrollarlo. Si bien la acumulación de
capital humano proporciona beneficios directos a la persona que lo adquie-
re, en forma de mejora de la productividad y de mayores ingresos, tiene tam-
bién un efecto indudable en la sociedad en general.
Cabe destacar, en relación con los adolescentes y jóvenes, el nexo entre
el capital social y el capital humano, ya que tanto el capital social en la familia
como el capital social en la comunidad tienen un papel destacado en la crea-
ción del capital humano en la siguiente generación. El capital social en la fami-
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 145

lia (reflejado en las relaciones entre los miembros de la misma) que da acceso
al capital humano de los adultos, depende de la presencia física de éstos en el
hogar y de la atención que prestan a los niños o adolescentes. La ausencia física
de los adultos puede ser descrita como una deficiencia estructural en el capi-
tal social familiar. Esta ausencia puede darse en hogares monoparentales, pero
también en familias en las que uno o los dos progenitores trabajan excesivas
horas (o por largas temporadas) fuera del hogar, puesto que en este caso falta
el capital social que se recibiría mediante la presencia cotidiana de las personas.
Aún si los adultos están presentes físicamente hay una carencia de capital so-
cial si las relaciones entre padres e hijos no son significativas, sólidas, estrechas
y fluidas. Esas carencias en las relaciones pueden influir para que los hijos se
centren en su grupo de pares y los padres en las relaciones con otros adultos
disminuyendo o anulando el cruce entre generaciones. En estos casos, a pesar
de que los padres dispongan de un gran capital humano los hijos corren el ries-
go de no beneficiarse del mismo debido a la carencia de capital social.
Por lo tanto, el capital social debe ser un aspecto a considerar cuando
se habla de la adquisición y mantenimiento del capital humano, puesto que
una política exclusiva de acumulación de capital humano puede no resultar
efectiva, al menos a largo plazo, debido a que los individuos necesitan que su
capital humano sea valorado y recompensado, no sólo por su propio entor-
no o sus “superiores”, sino por la sociedad en general, lo cual sólo se puede
conseguir cuando existe un cierto grado de capital social. Así pues, el capital
humano puede no resultar útil o, por lo menos, no ser todo lo productivo
que cabría esperar, en situaciones de carencia de capital social.
Pueden identificarse dos estrategias básicas para desarrollar el capital
social de un grupo. La primera es el empoderamiento, o acciones tendientes
a aumentar la capacidad de movilización del grupo mediante la transforma-
ción del liderazgo existente en el grupo, en liderazgo para el grupo. La segun-
da es la asociatividad o acciones orientadas a expandir o fortalecer las redes
en que participan los miembros del grupo, lo que potencia la cooperación
con otros grupos mediante nuevos enlaces de sus redes.
146 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Empoderamiento y ciudadanía; construcción


de actores sociales

Una de las estrategias para la acumulación de capital social en


una comunidad, se dijo recién, es favorecer el “empoderamiento” de sus
integrantes. El término empoderamiento,5 merece una breve atención.
Resulta de utilidad la definición de la Organización Mundial de la Salud
como el “proceso mediante el cual los individuos obtienen control de sus
decisiones y acciones relacionadas con su salud; expresan sus necesidades
y se movilizan para obtener mayor acción política, social y cultural para
responder a sus necesidades, a la vez que se involucran en la toma de de-
cisiones para el mejoramiento de su salud y la de la comunidad” (Organi-
zación Mundial de la Salud, 1998). Extrapolando esa definición más allá
del campo de la salud, puede decirse que se hace referencia al proceso de
autodeterminación por el cual las personas o comunidades ganan control
sobre su propio camino de vida. Se trata de un proceso de toma de con-
ciencia acerca de los factores que influyen sobre la vida de las personas y
las poblaciones y de asunción de poder de decisión sobre el propio des-
tino, pensando y actuando de forma tal de conseguir el máximo control
posible de tales factores. En síntesis, “empoderamiento” implica conseguir
grados más altos de autonomía y libertad.
En este punto interesa introducir la noción de ciudadanía, como la
capacidad de las personas para comportarse como actores sociales, es decir,
para modificar su entorno social de modo de poder realizar proyectos per-
sonales. Se necesitan tres ingredientes para producir un actor social: tener
objetivos personales, capacidad de comunicar y conciencia de ciudadanía
(TOURAINE, 1996). El primero de esos ingredientes es el más difícil de
adquirir para los adolescentes y jóvenes que se encuentran en condiciones
de pobreza o exclusión social, ya que es difícil que logren la transformación
de sus deseos o sueños en proyectos realistas. Esta dificultad es tanto mayor
5 Es un anglicismo, devenido de “empowerment”.
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 147

cuanto la capacidad de pensar (ya no de hacer) proyectos depende mucho


del espacio de protección, seguridad e iniciativa que se haya tenido duran-
te los primeros años de vida. Es en compensación de tales carencias que se
destaca la importancia del papel, que aunque sea en una etapa más tardía,
pueden desempeñar los adultos referentes (educadores, entrenadores de-
portivos, profesionales de la salud), al proveer a los adolescentes y jóvenes
seguridad y confianza que en muchos casos no recibieron de sus padres en
cantidad suficiente ni oportunidad adecuada.
La comunicación con los demás es ante todo un problema de len-
guaje, pero también de información. En eso el papel de la escuela es esencial
aunque no exclusivo. La propia conciencia de ciudadanía es lo que exigi-
ría más netamente de la intervención del Estado (en sus diferentes niveles,
pero sobre todo en el local) ya que, para salir de la apatía, el conformismo
y/o la desconfianza generalizada que tienen respecto de las instituciones y
los políticos, los adolescentes y jóvenes necesitan sentir que influyen en las
decisiones que afectan su vida colectiva, a través del reconocimiento institu-
cionalizado de sus reivindicaciones y propuestas; así, la apertura de espacios
para sus expresiones, críticas y propuestas, requerirían además de respuestas
políticas concretas (TOURAINE, 1996).
La ciudadanía es el espacio de universalización de lazos sociales
igualitarios; es la dimensión humana por excelencia en torno a la cual se
plasman los derechos civiles, sociales y políticos que son adquiridos, algu-
nos sólo por nacer y otros, como los civiles y políticos, se van adquiriendo a
lo largo de la vida. Porque si en la base de la ciudadanía hay una serie de dere-
chos y obligaciones transmitidos implícitamente por la edad, la adolescencia
y la juventud pueden ser vistas como el período en el cual se debiera lograr
la ciudadanía plena, es decir la amplia participación en la sociedad. Es por
ello que el concepto de ciudadanía ofrece un marco más útil y completo que
el de adultez para comprender el producto final deseable de la adolescencia
(KESSLER, 1996) y por ende, para ayudar a definir la orientación y conte-
nidos de las políticas y programas al respecto.
148 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Algunos derechos civiles, como el de trabajar, se alcanzan antes


que la mayoría de edad. Luego aparecen los derechos políticos, como el
derecho a votar. Pero son también relevantes los derechos sociales, que
se sitúan en la esfera de la justicia distributiva, es decir, de la equidad. Es
impensable que se consoliden actitudes de independencia y autonomía
si está vedado el acceso a una educación completa y de calidad, y a un
nivel de ingresos considerado como de básica equidad por la sociedad.
En ese marco, el derecho a la educación básica y media6 adquiere relevan-
cia no sólo axiológica (como valor en sí), sino también estratégica (como
valor para...), dado que numerosos estudios confirman que el bajo nivel
educativo es la variable que más influye en la mayor parte de los resulta-
dos negativos en salud y bienestar: embarazo precoz, consumo de drogas,
violencia, y que mientras más años de inserción en el sistema educativo
formal tengan los/las adolescentes, mayor será la edad en que se inicien
sexualmente y contraigan matrimonio, así como menor será el tamaño de
la familia que posteriormente conformen (MADDALENO, 1998).
La falta de concreción de los derechos sociales, en el caso particular
de la adolescencia pobre, los transforma en adolescentes vulnerables, en una
desventaja que se acumula a medida que el tiempo transcurre; y un adoles-
cente vulnerable es firme candidato a ser un adulto excluido. Son los ado-
lescentes excluidos del mundo escolar y profesional, a quienes Castel llama
dramáticamente “desafiliados”, “inútiles del mundo”, que lo habitan sin perte-
necer realmente a él, como “supernumerarios”, no integrados ni integrables,
en “situación de flotación dentro de una tierra de nadie”, desconectados de
los circuitos de intercambio productivo, fuera del tren de la modernización
y planteando serios problemas sociales (CASTEL, 1997).
La exclusión puede cobrar distintas formas: hay una exclusión to-
tal asimilable a la marginalidad, pero existen exclusiones relativas a esferas
específicas de la vida social, como por ejemplo: exclusión de los servicios
6 En varios países de Latino América el nivel secundario ya es obligatorio, en el marco de las leyes educativas
que imponen la reforma de la escuela media.
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 149

de salud, de la formación profesional, del mercado laboral formal, de la vida


cultural, de ciertos bienes colectivos etc., y si bien cada una puede no des-
encadenar en exclusión total, van conformando acumulativamente peores
condiciones de vida.
Una taxonomía de ciudadanía juvenil que resulta muy útil es la que
sigue (DURSTON, 1999).
• La ciudadanía denegada, por los motivos de exclusión antes men-
cionados (los jóvenes que no estudian ni trabajan, provenientes de
familias disgregadas, que están en riesgo de delinquir o que delin-
quen).
• La ciudadanía de segunda clase por el sólo hecho de ser jóvenes, en el
marco de concepciones adulto-céntricas o gerontocráticas.
• La ciudadanía latente para el caso de los jóvenes que no encontraron
motivación, pero tienen condiciones favorables.
• La ciudadanía construida mediante aprendizaje y puesta en práctica,
donde el rol de la familia, la escuela y otros ámbitos (como proyec-
tos, instituciones, organizaciones sociales orientados a adolescen-
tes) son relevantes.
En los sentidos antes apuntados, es importante situar el ámbito de
las políticas y propuestas para adolescentes en el campo de la ciudadanía
social con proyección a la ciudadanía política. Es presumible que si las polí-
ticas y programas se enfocaran de tal modo, se constituirían en espacios de
oportunidad para el ejercicio de los derechos de los jóvenes y promoverían
el reconocimiento de esos derechos por parte de los “otros” (en el sentido de
ciudadanía construida, de Durston).
De tal modo, cada programa, proyecto, institución o servicio, podría
ser a la vez un espacio de oportunidad para la inserción social de los adoles-
centes y jóvenes, a partir de la contribución que hagan para la toma de con-
ciencia, realización y diseminación de sus derechos, del aporte como puerta
de entrada o como fase de un proceso participativo más general, público y
150 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

creador de sentido y de la formación y ejercicio de valores y prácticas demo-


cráticas de relacionamiento social.

Los fundamentos de la participación

Si bien el concepto de participación posee un carácter emblemáti-


co – dada su carga simbólica – y polisémico – ya que diferentes personas
le otorgan distintos significados de acuerdo a características contextuales,
epocales, sociales, políticas, culturales, económicas, de género, de edad
etc. – sin embargo, parece haber acuerdo entre los especialistas en políti-
cas sociales en que participar es estar involucrado, tomar parte o influenciar
los procesos, las decisiones y las actividades en un contexto o campo de acción en
particular.
Las razones más relevantes para la participación de adolescentes y
jóvenes en la sociedad global y en particular en la gestión de proyectos, son
de tres tipos: en primer lugar las axiológicas o basadas en valores, en segundo
lugar las epistemológicas referidas a la adquisición de conocimiento válido y
las pragmáticas vinculadas con la eficacia de las intervenciones que procuran
transformar situaciones o producir cambios en conocimientos, concepcio-
nes y comportamientos de las personas (NIRENBERG; BRAWERMAN;
RUIZ, 2003).
En cuanto a los motivos axiológicos, la participación es un valor so-
cial deseable, un derecho humano que debería ser respetado y ejercitado,
pues todas las personas, incluidos los adolescentes y jóvenes, deberían gozar
de la posibilidad (voluntaria, no coercitiva) de tomar parte en decisiones so-
bre cuestiones que afectarían su vida actual y/o futura.
Referente a los fundamentos epistemológicos, la participación de
todos los que están involucrados en un determinado contexto permite más
y mejor conocimiento acerca de esa realidad y sobre el modo más efectivo
para intervenir en la misma, para introducir cambios o mejoras; de tal modo
es deseable que las diferentes personas involucradas – los adolescentes y
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 151

jóvenes, así como otros actores implicados7 – puedan expresar sus propios
intereses y preferencias, así como sus conocimientos y puntos de vista acerca
de sus problemáticas y sobre las estrategias más eficaces y recomendables
para solucionarlas.
En cuanto a los fundamentos pragmáticos, se supone que la viabi-
lidad y efectividad de las intervenciones sociales será mayor si las personas
forman parte desde el principio y en todas las etapas de la gestión: desde
el diagnóstico, la detección y priorización de problemas y necesidades, la
toma de decisiones acerca de qué acciones implementar, la ejecución de ac-
tividades, el seguimiento y la evaluación (NIRENBERG; BRAWERMAN;
RUIZ, 2003).
Los proyectos sociales como ámbitos de participación
Un proyecto social es un conjunto interrelacionado de actividades para
resolver un problema social determinado en un espacio territorial y/o poblacional
definido; constituye una intervención planificada con tiempo y recursos acotados
(NIRENBERG; BRAWERMAN; RUIZ, 2003). Desde una perspectiva
amplia, un proyecto puede ser visto además como:
• Un instrumento de cambio insertado en procesos preexistentes y
contextos más amplios;
• Un escenario de interacción entre actores sociales con distintos inte-
reses y perspectivas;
• Un espacio de intercambio de información y articulación entre grupos e
instituciones donde tienen lugar alianzas y negociaciones así como
resistencias y conflictos frente a los cambios que promueve;
• Un ámbito para el aprendizaje social de todos los actores;
• Un proceso de elaboración de diagnósticos y estrategias de acción y de
aplicación, monitoreo y ajuste de dichas estrategias (ROBIROSA;
CARDARELLI; LAPALMA, 1990).
7 Fantova utiliza esa expresión para la traducción del inglés del término stakeholders, para identificar a aquellos
que en forma directa o indirecta tienen algún tipo de vinculación más o menos significativa con la población
objetivo (como puede ser el caso de los maestros o entrenadores deportivos). Véase Fantova, 2005.
152 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Los proyectos (con base territorial) que respondan a problemáticas


específicas priorizadas por los adolescentes y otros actores implicados y que
se planteen su participación activa desde el inicio y durante las diferentes
etapas del ciclo de su gestión, pueden ser vistos como instrumentales para
la construcción de ciudadanía (más allá de sus temáticas o propósitos específi-
cos), bajo la hipótesis que luego pueden reflejar los procedimientos e inte-
racciones igualitarias en otros espacios ampliados de la vida pública, promo-
viendo de tal manera la democratización de la comunidad, al tiempo que
contribuyen a la generación de futuros ciudadanos a partir de la formación
participativa de los adolescentes involucrados.
Un proyecto social permite generar un sistema de solidaridad que
opera sobre la estructura y sobre los valores de un sistema de intereses diver-
sos, resultando un proceso que puede denominarse de “formación de áreas
de igualdad”. Dado que el sistema de intereses es una estructura de desigual-
dades, se conforma un “sistema de solidaridad” que actúa por sobre dicha
estructura, en la medida que en un área de acción, por mínima que sea, las
desigualdades son negadas (o puestas entre paréntesis). La solidaridad se
concreta a partir de la organización como asociación entre “iguales” frente a
objetivos y actividades específicas. Cuando a ese quehacer se lo convierte en
“demanda”, es que se ha tomado conciencia de ello como “derecho” y se ha
transformado el quehacer en una práctica de igualitarismo en el campo de la
política (PIZZORNO, 1976). Por su parte, el siempre vigente Tocqueville
decía que una vez que los humanos han probado y aceptado ser iguales en
algún plano, van a querer igualdad en todos los planos y llamó “revolución
democrática” a esa idea de igualdad (TOCQUEVILLE, 1994).
Los proyectos sociales, en tanto escenarios donde interactúan distintos
actores sociales alrededor de ciertos intereses particulares u objetivos específi-
cos, generan “áreas de igualdad” – en el sentido antedicho – las cuales facilitan
la emergencia y consolidación de los involucrados como actores sociales que
pueden tener presencia y visibilidad en el espacio público, aunque los intereses
y objetivos fundacionales no permanezcan constantes a lo largo del tiempo.
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 153

Hay una tendencia a la reducción progresiva de las áreas de igualdad


iniciales, con la consecuente caída de la participación y la necesidad de reac-
tivarla a lo largo del tiempo y según momentos y circunstancias concretas
por las que atraviesa el grupo u organización en virtud de la formación de
nuevas áreas de igualdad (PIZZORNO, 1976). Esa reactivación de la parti-
cipación es requerida para todo tipo de población pero sobre todo para los
adolescentes y jóvenes, por tener ellos alta rotación, ya que “entran y salen”
de esos espacios con mayor frecuencia que el resto, por lo que las acciones
de convocatoria y reactivación resultan insoslayables.
Para diferenciarla de formas “aparentes” de participación, hay autores
que han denominado “participación protagónica” a la participación social
efectiva de los jóvenes; aclaran que tal modalidad debe superar el “adulto-
centrismo”, tomar en cuenta las diversas situaciones de exclusión, permitir y
escuchar abiertamente la voz de las juventudes de los más diversos ámbitos
(KRAUSKOPF, 1999).
Aunque vale aclarar que no se trata sólo de que exista voluntad o dis-
posición para participar por parte de los adolescentes; también es necesario,
para el desarrollo de procesos participativos, que los contextos y las organi-
zaciones estén dispuestos a – o mejor aún, promuevan – ese protagonismo.
Para ello se requeriría descentralizar los núcleos de poder existentes en el in-
terior de las instituciones con las que los adolescentes se vinculan; se alude,
por ejemplo, a los establecimientos educativos o los de salud, que deberían
incorporar la mirada y la voz de los adolescentes, para generar así nuevas
formas de vinculación entre ellos y sus recursos humanos. No son cuestio-
nes sencillas, ya que esas instituciones sectoriales son muy jerárquicas y sal-
vo contadas excepciones aún no se han abierto a procesos participatorios
por parte de la población general (los adultos); es difícil entonces imaginar
que tales procesos se desencadenen en forma espontánea para una franja
poblacional que gran parte del resto de la sociedad mira con desconfianza
o temor, si no media una fuerte decisión política para que eso se concrete
(NIRENBERG; BRAWERMAN; RUIZ, 2003).
154 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Del análisis de los proyectos que se han llevado a cabo con moda-
lidades participativas de gestión y teniendo en cuenta que los adolescentes,
sobre todo en las edades menores del tramo, atraviesan un período particu-
larmente significativo para su formación y la construcción de su subjetivi-
dad e identidad, surge que la figura y el rol de los agentes externos es relevante
(NIRENBERG; PERRONE; CARDARELLI, 1995). Aunque podría pa-
recer que existe una tensión entre la intervención de adultos tales como los
educadores, los miembros del equipo de salud, los líderes comunitarios, los
entrenadores deportivos y otros, en los proyectos de adolescentes y jóvenes
(habida cuenta de lo antes dicho acerca del riesgo de “adultocentrismo”), lo
cierto es que ello no implica per-se contradicciones insalvables entre jóve-
nes y adultos o entre la participación y la direccionalidad del proceso. Puede
ocurrir, por el contrario, que dicha intervención sea la condición de posibili-
dad para que los adolescentes se acerquen y agrupen en torno a programas y
proyectos socialmente relevantes. Para resolver esa tensión son importantes
y estratégicos los estilos de liderazgos adultos democráticos y transformado-
res, en detrimento de los verticales, jerárquicos o autoritarios (BLEJMAR;
NIRENBERG; PERRONE, 1997).

Atributos deseables de los proyectos orientados a adolescen-


tes y jóvenes

De las experiencias evaluadas, surge como una primera recomen-


dación que las intervenciones orientadas a población adolescente o juvenil
deben incluir enfoques integrales en lugar de los más usuales, que resultan
fragmentarios o parciales. El enfoque integral debe entenderse al menos desde
las siguientes cuatro acepciones:
• Abordaje con una mirada amplia, superadora de los modelos res-
tringidos que al momento de afrontar la solución de un problema,
ponen el foco en determinados factores, dejando de lado otros; sig-
nifica explicar los fenómenos desde una perspectiva multidimen-
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 155

sional y encarar las estrategias de intervención teniendo en cuenta


ampliamente los factores relevantes – negativos y positivos – que
tienen que ver con la problemática en cuestión.
• Tener en cuenta las características procesuales en la construcción
de los problemas y daños y, en consecuencia, el hecho de que cuanto
antes se los evite mayor será la eficacia en términos de resultados posi-
tivos o saludables, y menor el costo final. Ello implica incluir, en la es-
trategia de solución del problema en cuestión, los diferentes niveles de
la acción: la promoción, la prevención, la asistencia y la rehabilitación.
• Articular entre actividades, programas y/o proyectos que se orien-
tan a una misma población y/o problemática, para no ofrecer un
abanico de acciones fragmentadas entre sí, perdiendo así la oportu-
nidad de aprovechar la sinergia que pueden producirse cuando las
acciones son articuladas, coordinadas o complementarias.
• Incluir en las estrategias de intervención la voz y la acción de todos
aquellos actores implicados en la temática, en este caso principal-
mente el protagonismo de los adolescentes y jóvenes.
En consecuencia, el enfoque integral en adolescencia y juventud
tiene estrecha relación con los conceptos de prevención, participación, mul-
tiactoralidad, multidisciplinalidad y multisectorialidad y, concretamente,
implica para la formulación y gestión de los programas y proyectos:
• Incorporar concepciones y equipos multi o interdisciplinarios.
• Establecer coordinaciones interprogramáticas, interinstitucionales
e intersectoriales.
• Adoptar modalidades de gestión multiactoral y participativa.
• Incorporar la visión de la adolescencia y juventud dentro del “ciclo
de vida”, implicando la consideración de las dimensiones históricas
y de sus proyectos de vida.
• Incluir en los esfuerzos para el logro del desarrollo integral de ado-
lescentes y jóvenes a las organizaciones de la sociedad civil y a las
156 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

empresas del sector privado, junto a las organizaciones, programas y


áreas de los diferentes niveles de gobierno.
• Promover el trabajo entre pares, particularmente entre adolescen-
tes y jóvenes “aventajados” y “desaventajados” (en términos sociales,
educativos, culturales, económicos).
• Para la concreción de un enfoque integral deben asimismo consi-
derarse diversos ámbitos de acción, principalmente los siguientes:
• Las familias, como ámbitos donde se ponen en juego las prácticas
de crianza y de estimulación que darán mayores o menores oportu-
nidades de crecimiento y desarrollo a los niños/as y las/los adoles-
centes.
• Las estructuras gubernamentales de educación, acción social, salud y otros
sectores, de los niveles nacionales, provinciales y municipales.
• La escuela como espacio de promoción de las habilidades para la
vida, un espacio en el cual la infancia, adolescencia y juventud ten-
gan la oportunidad de desarrollar las destrezas cognitivas para apro-
piarse del conocimiento socialmente significativo.
• Los servicios de salud, especialmente los del primer nivel de atención
pero en articulación con los establecimientos del resto del sistema.
• Los espacios comunitarios (clubes, parroquias, casas del joven, etc.)
• Los proyectos locales y las redes sociales que incluyan a adolescentes y
jóvenes en un marco común socializante.

Proyectos que articulan la academia y la comunidad

Es desde el ámbito académico donde esa intención de integralidad


a la que se hizo referencia en el ítem previo, puede hacerse muy sinérgica.
Las prácticas e intervenciones comunitarias de alumnos con sus respecti-
vos docentes de las diferentes carreras y departamentos de las universidades
han mostrado efectos muy positivos tanto para promover el desarrollo de
las propias comunidades (especialmente para los segmentos poblacionales
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 157

adolescentes y juveniles) como para la formación más integral de los futuros


profesionales (en el nivel de pre-grado), así como de aquellos profesionales
jóvenes en sus especializaciones o posgrados. En este caso que nos ocupa, el
trabajo entre pares adquiere una significación especial, por un lado porque
a la vez que instala nuevos escenarios de enseñanza – aprendizaje para los
alumnos (modalidad pedagógica que emerge de la práctica, fuera de las au-
las y los muros de la academia), genera un modo de producir conocimiento
que toma en cuenta el “saber popular”, los intereses y los interrogantes que
emergen de los propios adolescentes y jóvenes. Y por otro lado, porque acer-
ca a los pobladores adolescentes y jóvenes a los claustros universitarios des-
de un protagonismo diferente en la producción de conocimiento.
En otras palabras, el intercambio academia – comunidad enriquece
las aulas de la universidad, además de ayudar a recuperar a la misma como
un espacio abierto para pensar, agregando valor a la investigación, la exten-
sión y la formación de profesionales, adecuándolas a las necesidades y de-
mandas de la sociedad.
En cuanto a la extensión universitaria, la misma se realiza conjugan-
do las tres misiones de la universidad:
• La docencia, que permite formar los agentes necesarios para una
efectiva intervención en el campo social.
• La investigación, que permite diagnosticar, focalizando en las causas
de los problemas sociales.
• La acción social directa, que procura el mejoramiento de las condi-
ciones de vida de los grupos poblacionales.
Los proyectos de extensión son instrumentos de planificación a través
de los cuales los conocimientos y la experiencia de docentes, investigadores,
estudiantes, graduados y no docentes comparten con la comunidad los es-
fuerzos de transformación social y cultural, divulgación científica, desarrollo
tecnológico y desarrollo comunitario que permitan a la sociedad mejorar su
calidad de vida.
158 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

En función de lo antes dicho, los atributos que deberían tener los


proyectos de extensión son, mínimamente:
• Sus objetivos deben considerar aspectos de mejoramiento de cali-
dad de vida poblacionales, de investigación (producción de conoci-
miento) y de docencia.
• Deben ser interdisciplinares (dada la multidimensionalidad de los
fenómenos sociales).
• Deben incluir a docentes, alumnos y graduados.
• Deben ser participativos, o sea los adolescentes y jóvenes de la co-
munidad, además de ser destinatarios deben ser también protagóni-
cos en los diferentes momentos de la gestión.
• Deben procurar influir en la actualización y cambio curricular, pro-
curando por un lado la validación curricular de los conocimientos
que se generan en la práctica extensionista a la vez que incorporan
esos nuevos escenarios de enseñanza y aprendizaje.
Es importante destacar el mayor reconocimiento que deberían te-
ner por parte de la academia quienes hacen extensión universitaria, tanto
docentes como estudiantes y graduados, y entre otros aspectos de tal reco-
nocimiento, debería otorgárseles mayor atribución presupuestaria. Las de-
bilidades en esos aspectos indican la escasa priorización que todavía tienen
las actividades de extensión en la mayoría de las universidades de América
latina, sobre todo si se las compara, por ejemplo, con la de los departamentos
de investigación.

Referencias
BAGNASCO, A. et al. El capital social: instrucciones de uso. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2001. (Colección Popular n. 538).
BLEJMAR, Bernardo; NIRENBERG, Olga; PERRONE Néstor. La juventud y el liderazgo transformador. Was-
hington: Publicación de la Organización Panamericana de la Salud, Programa Regional de Salud de los Ado-
lescentes, 1997.
CASTEL, Robert. La metamorfosis de la cuestión social. Buenos Aires: Paidós, 1997.
Participación en proyectos y desarrollo integral de adolescentes y jóvenes 159

DURSTON, John. ¿Qué es el capital social comunitario? Cepal: División de Desarrollo Social, 2000.
DURSTON, John. Construyendo capital social comunitario. Revista de la Cepal, n. 69, 1999.
FANTOVA AZCOAGA, Fernando. Manual para la gestión de la intervención social. Madrid: CCS, 2005.
GIRARD, G. et al. El adolescente varón. Buenos Aires: Lumen, 2001.
GROTBERG, E. Guía de promoción de la resiliencia en los niños para fortalecer el espíritu humano. Netherlands:
Fundación Bernard Van Leer, 1996.
GROTBERG, E. Tapping your inner strengths: how to find resilience to deal with anything. Oakland: New Har-
binger Publications Inc., 2001.
KESSLER, Gabriel. Adolescencia, pobreza, ciudadanía y exclusión. In: KONTERLLINK, Irene; JACINTO,
Claudia (Comp.). Adolescencia, pobreza, educación y trabajo. Buenos Aires: Unicef, 1996.
KOTLIARENCO, M. A. et al. Estado del arte en resiliencia. Washington: OPS/Kellogg/ASID, 1998.
KOTLIARENCO, M. A. et al. Actualizaciones en resiliencia. Buenos Aires: Fundación Bernard Van Leer, 2000.
KRAUSKOPF, Dina. Participación social y desarrollo en la adolescencia. San José: UNFPA, 1999.
MADDALENO, Matilde. Plan de acción de desarrollo y salud de adolescentes y jóvenes en las Américas: 1998 –
2001. Washington: OPS; OMS, 1998.
MANGRULKAR, L.; WHITMAN, C. V.; POSNER, M. Enfoque de habilidades para la vida para un desarrollo
saludable de niños y adolescentes. Washington: OPS, Asdi, Fundación W.K. Kellogg, 2001.
MELILLO, Aldo. Sobre resiliencia: el pensamiento de Boris Cyrulnik. Revista Perspectivas Sistémicas, Buenos
Aires, n. 85, 2005.
NIRENBERG, O.; PERRONE, N.; CARDARELLI, G. Síntesis del proyecto de salud integral de los jóvenes de San
Pedro: Provincia de Buenos Aires. Buenos Aires: Fundación W. K. Kellogg, 1995.
NIRENBERG, Olga. El rol del Estado para la participación social en la evaluación: el caso del sector salud. In:
CONGRESO DEL CENTRO LATINOAMERICANO DE ADMINISTRACIÓN PARA EL DESA-
RROLLO – CLAD, 8, 2003. Panamá.
NIRENBERG, Olga; BRAWERMAN, Josette; RUIZ, Violeta. Programación y evaluación de proyectos sociales:
aportes para la racionalidad y transparencia. Buenos Aires: Paidós, 2003. (Colección Tramas Sociales, v. 19).
NIRENBERG, Olga. Participación de adolescentes en proyectos sociales: aportes conceptuales y para su evalua-
ción. Buenos Aires: Paidós, 2006. (Colección Tramas Sociales. v. 39).
ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD – OMS. Health promotion glossary. Ginebra: OMS, 1998.
PIZZORNO, Alejandro. Introducción al estudio de la participación política. Buenos Aires: Siap, 1976.
PIZZORNO, Alejandro. ¿Por qué pagamos la nafta? Por una teoría del capital social. In: BAGNASCO, A. et al. El
capital social: instrucciones de uso. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003. (Colección Popular n.
538).
ROBIROSA Mario; CARDARELLI, Graciela; LAPALMA Antonio. Turbulencia y planificación social: lin-
eamientos metodológicos de gestión de proyectos sociales desde el Estado. Buenos Aires: Unicef, 1990.
ROJAS A. L.; DONAS, S. Adolescencia y juventud, aportes para una discusión. In: ORGANIZACIÓN MUN-
DIAL DE LA SALUD. Salud sexual y reproductiva. Washington, OPS/OMS, 1995. (Comunicación para la
Salud n. 8).
TOCQUEVILLE, Alexis de. La democracia en América. México: Fondo de Cultura Económica, 1994.
TOURAINE, Alain. Juventud y democracia en Chile. Revista OIJ (Organización Iberoamericana de la Juven-
tud), n.1, 1996.
Juventude, sexualidade, gênero e violência
Visibilidade e invisibilidade do trabalho
de garotos de programa1
Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Geraldo Pereira da Silva Junior

I nvisíveis no cotidiano, mas com corpos visíveis em espaços e territórios


noturnos, ou anunciados através da internet, “michês ou “garotos de pro-
grama” são, em sua maioria, jovens do sexo masculino que se identificam
nesses espaços como tal. Podendo ser chamados de michês, garotos de
programa, love boys, ou apenas boys (FERREIRA; MADEIRA, 2008; PER-
LONGHER, 1987), assumem sua participação no mercado erótico pelo
uso do corpo visando uma troca financeira. Dessa maneira investem e assu-
mem que o seu corpo e sua performance tem um valor comercial.
Institucionalmente são hoje reconhecidos pelo Ministério do Tra-
balho como “profissionais do sexo” no “Código Brasileiro de Ocupação”
(FERREIRA; MADEIRA, 2008; FERREIRA, 2002). Esse reconhecimento
não significa, entretanto, seu reconhecimento moral, nem significa que pro-
curem aderir formalmente a essa ocupação como meio de reconhecimento
de suas atividades ou fortalecimento e organização desses profissionais atra-
vés de sindicatos visando à luta de seus direitos trabalhistas.

1 Este texto apresenta resultados parciais da pesquisa de campo realizada como parte de tese de doutoramen-
to orientada na linha de pesquisa Saúde Pública, Ciências Sociais e Sociedade Contemporânea do Programa
de Pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP.
164 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Dessa forma, no desenvolvimento deste artigo trataremos da refle-


xão considerando contribuições das ciências humanas e sociais, mais espe-
cificamente de pesquisas etnográficas que buscam um olhar próximo, to-
mando a perspectiva dos sujeitos.
Destacamos neste texto alguns aspectos acerca do trabalho, do
uso do corpo e do mercado erótico acionados pelos “garotos de progra-
ma”, relacionando suas trajetórias e identidades em um contexto local e
articulando com características da sociedade contemporânea. Ao relacio-
nar juventude, corpo e trabalho, que, apesar de reconhecido formalmente,
acaba sendo na prática tratado como um trabalho não legalizado e como
tal não protegido e inseguro, do ponto de vista dos direitos civis. É a partir
desse ponto de vista que discutiremos a situação dos “garotos de progra-
ma” e o campo da saúde pública.

Garotos de programa e territórios do mercado sexual

O território onde está sendo realizada a pesquisa situa-se em Osas-


co, cidade industrial e hoje também polo de serviços, localizada na região
oeste da Grande São Paulo. No mapeamento de território, identificamos
que as trocas eróticas ou a disposição de um mercado erótico se desenro-
lam em diferentes circuitos. Como uma das principais ligações entre São
Paulo e Osasco é feita através do trem metropolitano, identificamos que
nesse trecho o próprio trem e depois as cercanias da estação constituem
um território no qual ocorre a presença de “garotos de programa” durante
o dia, mas a concentração dessa atividade vai ocorrer em período noturno
na Avenida Marechal, que pode ser considerada um “território moral”, lo-
calizada na área central da cidade. A Avenida Marechal, como é conhecida
em Osasco, pode ser identificada como região moral (PERLONGHER,
1987), zona moral urbana (SÍVORI, 2008), ou boca (VILLALOBOS,
1999), compartilhando, em diferentes trechos, travestis, prostitutas e ga-
rotos de programa.
Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 165

Os michês, apesar de atuarem em situações privadas, como festas


em clubes ou sítios, na maioria das vezes realizam suas performances em
espaços urbanos como saunas gays, ruas, praças, bares, isto de acordo com as
configurações de cada território (FERREIRA; MADEIRA, 2008; FRAN-
ÇA, 2006), podendo esses espaços ser considerados também como terri-
tórios do sexo e que não se limitam ou são definidos simplesmente pela sua
configuração física ou geográfico-urbana em si, mas pelos códigos, pelas
relações específicas que aí se dão. Trata-se de espaços cuja construção so-
cial é enunciativa, envolvendo o imaginário e o simbólico (VILLALOBOS,
1999; SILVA, 2000).
Os garotos de programa, dada sua “invisibilidade” maior comparan-
do-se com outros participantes das “zonas morais”, passam a circular em ou-
tros territórios, como os da estação de trem e o próprio trem. Portanto, são,
dessa forma, reconhecidos pelos clientes, que sabem acionar esses circuitos.
No trabalho realizado por esses profissionais, a troca por seus servi-
ços não necessariamente implica dinheiro, pois existem outras “formas de
pagamento”, que pode se tratar de um jantar, uma viagem, presentes, lanche,
cursos, roupas, tênis etc., isto vai depender de cada situação e vínculo esta-
belecido entre ambos (WEILLER, 2004; GUIMARÃES, 2004; SIMÕES,
2008). É o valor da atividade sexual associada à performance presente que
permeia o acordo, performance essa que representa “a masculinidade incul-
ta e autêntica, ‘homens de verdade’” (SIMÕES, 2008).
No contexto do mercado sexual, consideramos “performance”
como o comportamento dos profissionais de sexo que visam seduzir seus
clientes, como formas específicas de se vestir, andar, falar, gesticular, com o
objetivo de instigar o imaginário do cliente. No caso do michê, a performan-
ce valorizada refere-se ao comportamento viril.
Assim, podemos entender que existem “performances” diferen-
ciadas nas relações sociais, de acordo com seus contextos de trabalho,
associados a questões sociais, históricas e culturais, evidentes, por exem-
plo, já no trabalho de Perlongher (1987), quando mostra transformações
166 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

nas formas de se expressar a homossexualidade e nos comportamentos


de michês. Provavelmente, as posturas do corpo de michês passaram por
mudanças, contudo a virilidade ainda está presente como a apresentação
mais atrativa, como forma de seduzir clientes, conforme aponta Villalobos
(1999).
Podemos ainda dizer que, diferentemente das travestis, que evitam
transitar durante o dia (KULICK, 2008), garotos de programa circulam du-
rante o dia, até porque não há nada visivelmente que os identifique, pois cor-
pos “sarados”, uso de anabolizantes e outras características de “boa forma”
não são exclusivos dos mesmos, e vale lembrar ainda que nem todos michês
recorrem a esses recursos corporais.
Pisciteli (2005), ao propor a utilização da noção de “mercado sexu-
al” ao invés de “prostituição”, vai argumentar que, além do sexo comercial
ter se constituído em uma verdadeira indústria, se vê hoje atravessado por
distintas marcas de gênero, performance, diferentes tipos de relações, abar-
cando uma infinidade de dispositivos, desde estabelecimentos comerciais,
linhas telefônicas, internet, tipos específicos de serviços etc.
Também argumenta que essa expressão marca, para além do termo
prostituição, a existência de um mercado, de diversos tipos de desejos que
demandam serviços sexuais. Ainda chama a atenção para os seguintes as-
pectos nesse mercado: a vinculação entre (novas ou velhas) convenções de
erotismo e mercado de consumo, a importância adquirida pela web na disse-
minação dessas convenções de erotismo – ao mesmo tempo amplificando
e disseminando essas formas, acabando também por promover a norma-
lização e a integração de pessoas, simultaneamente recriando hierarquias,
desigualdades e exclusões (PISCITELLI, 2009).
Apesar do crescimento desse mercado, observamos que os territó-
rios em que concentram essas atividades continuam sendo tratados como
“zona moral” e, nesse sentido, alvo de investidas de diferentes atores, seja a
polícia, seja outros grupos que transitam entre a intolerância e a prática de
pequenos delitos.
Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 167

Podemos registrar que, na sociedade contemporânea, o capitalismo


tardio vem sendo regido pela liberalização dos mecanismos de mercado e
de fluxo de capitais, voltado também para uma “ética” de desenvolvimento
dos indivíduos que os proclama a liberar suas capacidades e potencializá-las
para ir além de si. A ideia de “bem-estar” que se inscreveu durante o século
XX na ideia de um estado que propiciasse segurança e dignidade de vida
passa a se traduzir no consumo de situações de “bem-estar”. A despeito da
desregulamentação das forças econômicas, paradoxalmente, assistimos ao
reforço das funções policiais do estado e dos mecanismos de coerção, re-
pressão e controle (HARVEY, 2005; WACQUANT, 2001).

Mesmo território, diferentes modos de justificar a frequência

Percebemos uma heterogeneidade nas vivências dos garotos de progra-


ma da região de Osasco, no que se refere ao entendimento da atividade ou ação
2

como garoto de programa e sua interpretação como uma forma de trabalho:


Ficou oito meses afastado dali, porque estava trabalhando como transpor-
tador de mercadorias de supermercado, ganhava 20 reais por dia, há quatro
meses retornou, mas trabalha ali há dois anos. (Diário de Campo, 9/4/2010,
diálogo entre pesquisadora e OS)
(...) disse que sim, que trabalhava como cozinheiro numa firma que ficava na
mesma rua (na Marechal), mas na outra ponta; e que ele só frequentava ali uma
vez por semana. Já B. dando risada falou que só trabalhava ali (há mais de seis
anos) (Diário de Campo, 30/4/2010, diálogo entre pesquisadora e AL). (...)
Informou que geralmente é após o dia 20 de cada mês, quando o dinheiro
do mês vai embora, que vai para a Marechal no intuito de fazer programa (...)
[Ro não era o primeiro a descrever a atividade de GP como complemento
financeiro] (Diário de Campo, 5/6/2010, diálogo entre pesquisadora e Ro)

Assim como há os que definem trabalhar como “garoto de pro-


grama” uma atividade eventual, durante um tempo ou algum período do
mês ou da semana, caracterizando a atividade como um “bico”, há os que
2 Utilizaremos nesse texto tanto a expressão “garoto de programa” quanto sua abreviação “GP”, a partir da
inscrição de trechos dos diários de campo da etnografia realizada na Avenida Marechal.
168 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

afirmam aí se estabelecerem através de uma atividade mais regular e “pro-


fissional” e interpretam suas vivências com os clientes de trabalho. Rodrigo3
afirmou que trabalhava como GP há 10 anos e iniciou sua carreira aos 15
anos de idade.
Mesmo os que afirmam participar ali de forma eventual, a atividade
é concebida não apenas como trabalho, mas como uma atividade que en-
volve “prazer”:
[Ele riu para mim neste momento e disse]: Outro termo? [Fez como se es-
tivesse pensando muito e em seguida continuou] Prazer remunerado, traba-
lhamos com prazer, é este o nosso trabalho, só que prazer com remuneração.
(Diário de Campo, 30/4/2010, diálogo entre pesquisadora, vários garotos
entre eles: L.)

Essa “ambiguidade” ou essa somatória entre trabalho e prazer pode


ser acrescentada à situação de “invisibilidade” de que grande parte dos nati-
vos que tivemos contato procurava relatar. Assim, a maioria deles procura
justificar a atividade como um complemento financeiro, uma necessidade,
ou como horas extras. Falam também que o que fazem ali é desconhecido
pela família ou pelo círculo de amizade.
Você dobrou a esquina, este mundo não existe mais. Este mundo só existe
das 10 da noite até as duas da manhã; dobrou a esquina para ir embora, isto
daqui não existe mais. (Diário de Campo, 30/4/2010, diálogo entre pesqui-
sadora e vários GPs)
[Olhando para o GP que havia indagado sobre minha área e universidade,
perguntei se ele havia vindo da escola ou de outro trabalho, pois estava com
uma mochila nas costas, respondeu que do “trampo”, perguntei: Ah, você tra-
balha em outro lugar durante o dia? Respondeu que sim, e falou]: Isso aqui
não é trabalho, não. Tem que ter um trampo, isso daqui não sustenta ninguém
e nem dá para viver, não. (Diário de Campo, 30/4/2010, diálogo entre pesqui-
sadora e vários GP)
Quando perguntamos se estava ali trabalhando justificou que não frequenta-
va regularmente aquele lugar e inclusive justificou estar ali por precisar de um
complemento financeiro para investir na criação do filho. (Diário de Campo)

3 Os nomes utilizados são fictícios.


Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 169

Também explicam muitas vezes que chegaram ali de maneira “even-


tual”, como alguém tivesse dito que quem tem atributo físico pode trabalhar
na Marechal e levar algum lucro:
Reinaldo disse que resolveu conhecer e viu que era possível ganhar dinhei-
ro e então se gabou do tamanho de seu pênis e riu… (Diário de Campo,
7/5/2010)
Sua família não sabe que trabalha como garoto de programa, ele não revela
com receio do julgamento familiar e de ser expulso de casa, mora sozinho no
fundo do quintal da casa dos pais. (Diário de Campo, 9/4/2010)
(...) evita passear em Osasco vai para São Paulo e zona leste. Tem receio de
encontrar algum cliente em Osasco, questionei se não era para ser o contrá-
rio, de o cliente ter medo de encontrá-lo, afinal era o cliente que havia pagado
pelo programa, mesmo assim disse que tinha medo do cliente fazer alguma
piada, gritar, expô-lo. Achei interessante essa relação de medo de ser revelada
sua atividade como GP, a ponto de esquivar-se de transitar pela sua cidade.
(Diário de Campo, 14/5/2010)
(...) e eles preferiam ficar no trecho mais escuro, até porque ali era interessante
para os clientes e também para eles (GPs) não serem identificados, reconhe-
cidos com facilidade por algum conhecido. (Diário de Campo, 21/5/2010)

O que se estabelece como ambíguo nas falas de situações registradas


nos diários de campo parecem remeter à própria questão do teor das rela-
ções eróticas que se travam naquele lugar. Ser GP significa estabelecer trocas
eróticas com pessoas do mesmo sexo, o que para esses sujeitos não pare-
ce ser uma condição “assumida”. Ainda que como um ato “performático”,4
destituído de vínculos com os sujeitos, comporta nas falas a relação com
o prazer. Desse modo, a procura para a “invisibilidade” fora da zona moral
significa, talvez, antes de assumir uma troca sexual por dinheiro, assumir a
relação sexual com pessoas do mesmo sexo. Assim podemos considerar que
as evasivas em relação a justificativa de estar ali , muitas vezes, como comple-
mentação para o orçamento mensal é uma forma de negar o envolvimento
em uma relação homossexual.

4 O termo “performático” é central na obra de Butler (2008), que considera a expressão como um ato reit-
erado e que, desse modo, se aplica ao sexo.
170 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Sobre esse aspecto é interessante a interpretação que faz Oliveira


(2009) dos circuitos de trocas homossexuais masculinas em bairro periféri-
co do Rio de Janeiro, utilizando-se da noção de “carreira sexual”.
Como os circuitos homossexuais se colocavam em territórios espe-
cíficos distanciados do cotidiano, os participantes passam a frequentá-los
“clandestinamente”, o que supostamente exige uma “organização que mini-
mize os riscos e maximize a eficácia na ação social” (Pollack apud Oliveira,
2009, p. 57). Essa questão coloca os limites da própria classificação de que
o pesquisador tenha que enfrentar ao tratar da “sexualidade” dos GP, ou seja,
os registros de campo levantam a questão da classificação que os sujeitos
fazem de si. Nesse caso, necessitaríamos aprofundar diálogos, observações e
análise de campo para chegar a uma classificação que possa fazer de si para
além da “clandestinidade” da atividade que ali exercem.
De certa maneira, esse “estilo” não dá conta do raciocínio de que a
expansão e a “normalização” do mercado sexual possam retirá-lo do lugar
de “tolerância” ou do território “moral” a ele destinado. Como veremos, essa
questão é relativa, pois o reconhecimento etnográfico de uma realidade per-
mite mostrar que sujeitos nem sempre estabelecem normas e regras de uma
condição/identidade ou comportamento homogêneo.
Dessa forma, observamos que outros sujeitos interpretam a con-
dição de GP não apenas como complemento de trabalho, mas como uma
atividade profissional e recusam-se a sair sem receber pela prática ali estabe-
lecida e, inclusive, associam-no (o trabalho) ao tempo, pois, segundo alguns,
“trabalho é tempo”:
(...) e se achasse que não havia perigo e aparecesse algum cliente, possivel-
mente ele trabalharia, até porque, pensando como GP, o lema era: Tempo
é dinheiro (ao referir-se a trabalhar ou não na Marechal). (Diário de Campo,
21/5/2010)

Reforça-se essa mentalidade frente aos conflitos entre alguns GP e


clientes que somente pelo fato de ocuparem seus tempos são interpelados
pelos GP solicitando-lhes pagamento.
Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 171

(...) também disse sobre clientes fixos que às vezes passam por ali somente
para bater papo e eles tem que conversar para não perderem o cliente numa
próxima vez. (Diário de Campo, 9/4/2010, diálogo entre pesquisadora e R)
Ele havia entendido que provavelmente esse rapaz havia “dado uma pegada”
(referindo-se a pegar no pênis de Sebastião) e depois quisera cair fora, pois
alguns clientes ou caras a fim de cassação tentam fazer isto e alguns GPs, por
exemplo, Sebastião, não aceitavam e tinham o lema de que só pelo fato de
tirá-los do lugar já tinha que pagar, ou se colocassem a mão tinham que pagar.
(Diário de Campo, 5/6/2010)

Não necessariamente a atividade do GP está vinculada à relação


sexual propriamente dita, esses entendem que pelo fato de disponibiliza-
rem de seus tempos para conversar, passar a mão em seus pênis, tirá-los do
“ponto” em que estavam parados já são consideradas ações de trabalho, de
realização de afeto, curiosidade etc. Por isso, a ocupação do tempo precisa
ser remunerada.
E como profissionais entendem suas atividades como trabalho, ter-
minam criticando outros que frequentam a rua no intuito do “vício”, catego-
ria nativa que é utilizada para se referir àqueles que fazem ponto na mesma
rua e que “transam” sem cobrar ou simplesmente para obter dinheiro para
compra de drogas. Essa indicação estabelece uma divisão entre o caráter
profissional da atividade e outros tipos de trocas sexuais consideradas não
legítimas para os que frequentam profissionalmente aquela zona moral.
Culpabilizam os rapazes do “vício” quando não conseguem um nú-
mero significativo de clientes ou pela “baixa produtividade que a rua atual-
mente oferece”.
Interessante que essa classificação estabelece um limite moral, qual
seja, entre os que fazem uso do espaço apenas por trocas sexuais e que aca-
bariam contaminando “moralmente” o mercado. Essa demarcação, quando
se refere a esses que rapazes trocam “sexo por drogas” ou também, como
dizem, praticam pequenos delitos ou “roubam os clientes”, é sublinhada pelo
termo “vício”, o que significaria um rebaixamento do local em que se realiza
atividades profissionais. Esse fato atrairia a polícia, que normalmente já os
172 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

incomoda, e também afugentaria os clientes. Corroboram de certa forma a


ideia de que ali se trata de um mercado e que um mercado para funcionar
exige determinadas regras.
Também responsabilizaram a presença desses garotos que faziam vício (da
ponta da rua, parte mais escura), pois eles cobravam e esses rapazes não co-
bravam, o que caía a produção deles, também alegaram a presença de rapazes
que roubavam (além desses cariocas que um dia lá estiveram) e a própria vio-
lência. (Diário de Campo, 30/4/2010)

De modo geral, alguns rapazes que se identificam como verdadeiros


garotos de programa pela forma como se posicionam nas ruas, que abordam
os clientes, como se vestem, referindo-se a esses aspectos como típicos de
um profissionalismo e acentuam, é evidente, que qualquer atividade com o
cliente deva ser retribuída financeiramente:
(...) conversamos também sobre aqueles rapazes que terminam tendo re-
lações sexuais para conseguir dinheiro para comprar drogas e S sempre ca-
tegórico afirmava que esses não eram garotos de programa, que não eram
profissionais do sexo, lembrava que um profissional do sexo se preocupava
com seu corpo, com sua imagem, que tinha uma postura que permitia o
cliente sentir-se seguro, saber que não seria roubado, que poderia até levá-lo
à sua casa, entre outras coisas. (Diário de Campo, 31/3/2010, diálogo entre
pesquisadora e S)

Por sua vez, criticam outros rapazes que também atuam na rua e que
não necessariamente correspondem à “performance” considerada por eles
como profissional. Isso porque, muitas vezes, esses outros garotos terminam
aceitando as “pechinchas” dos clientes em virtude de usarem o valor recebi-
do para usarem drogas:
Depois continuamos conversando e percebi que havia uma divisão na rua,
várias vezes eles haviam mencionado que eram profissionais e os que fi-
cavam na parte mais escura da rua não eram profissionais, que não valia
a pena que eu me aproximasse deles, que eram garotos que faziam vícios
(sexo sem cobrar), que usavam drogas, que banalizavam o trabalho deles.
Afirmaram por outro lado que eles eram os garotos luxuosos, cheirosos
e de bom papo e os demais que ficavam depois dos caminhões, na parte
mais escura eram mal arrumados, fedidos, roubavam. (Diário de Campo,
30/4/2010)
Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 173

A categoria “vício” abre na verdade uma chave de interpretação para


os próprios agentes do mercado sexual, pois também encontramos entre as
travestis que consideravam como não profissionais as que passavam a utili-
zar o espaço em que se negociavam “programas sexuais” para obter recursos
para uso de drogas, que eram também chamadas de “noias”, por interpretar-
se que a droga de que faziam uso era o crack. No caso das travestis, essas re-
feriam ser as mais “jovens” as que mais facilmente caiam no “vício”. Também
encontramos essa categoria para descrever aqueles que acabam se envolven-
do com um cliente ou um parceiro e “perdem a cabeça”, deixando de cuidar
do seu “trabalho”, o que denota uma aproximação entre “vício”, “noia”, como
o entendimento nativo para uma compulsão ou obsessividade.
Essa categoria nativa encontrada em diferentes circuitos de rua tem
o sentido de uma categoria “moral” e de alguma forma exemplifica o que
Fonseca (2004) chama de deslocamento das fronteiras morais, que serve
antes para afirmar um determinado investimento na atividade ali realizada,
que, como vimos, envolve uma troca financeira, mas também “prazer”. O “ví-
cio” descaracterizaria essas duas ações.
Uma outra linha divisória em relação aos GP e sua caracterização
nativa refere-se ao corpo, que, como dissemos anteriormente, deve enunciar
aspectos relacionados à virilidade. O que nos chamou a atenção foi o fato de
que não encontrávamos ali uma preocupação exagerada por esses rapazes
em cultuarem-se seus corpos, em malhar ou algo do gênero, no intuito de
melhor agradar seus cientes:
Não tem aparência de modelo ou de rapaz sarado que provoque atração fatal,
aliás, todos os garotos que até então eu conhecera na Marechal não tinham
perfil ou aparência de modelos, de belíssimos, de deuses gregos. Geralmente
tem aparência de rapazes ou homens comuns, que se encontrados durante o
dia jamais induziriam a pensar que fossem ou são garotos de programa. (Di-
ário de Campo, 14/5/2010)

De modo geral, a maioria apresenta-se de forma natural, isto é, não


pareciam praticar atividades de culto ao corpo, como “malhar”, ou ter estere-
ótipo de frequentar espaços como academias. A forma talvez de apresentar o
174 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

aspecto viril naquele terreno era o de usar poucas roupas ou agasalhos (mes-
mo em dias muito frios), isso justificado pela atração que teriam os clientes
pelos corpos que mostrassem mais evidentes algumas partes, como o abdô-
men ou mesmo o pênis.
(...) Perguntei se não estava sentindo frio, pois eu estava com três blusas de lã,
jaqueta de couro, duas meias, ele respondeu que não, que estava acostuma-
do, porque os clientes pediam para eles levantarem a camisa para mostrar o
peito, a barriga, também pediam para eles mostrarem o pênis (...). (Diário de
Campo, 9/4/2010)

A presença de práticas esportivas em seus cotidianos, como jogar


bola, aparece como algo natural no seu dia a dia e que consequentemente
termina contribuindo para uma melhor apresentação corporal, mas des-
cartaram a frequência a academias ou qualquer espaço de construção do
corpo “sarado”.
Um dos relatos revela estratégias cotidianas nas quais também
se mantém o disfarce ou a clandestinidade da frequência à Marechal.
Um dos rapazes nos contava que passava o dia jogando bola, depois se
dirigiam á casa de amigos que moravam mais próximos da zona central
e pediam para tomar banho, dizendo que haviam passado o dia traba-
lhando em um bico, por exemplo, “entregar panfletos em cruzamentos”,
precisando tomar um banho e de empréstimo de roupas para tomarem
a condução e voltarem para casa. Na verdade, se aprontavam para ir à
noite para a Marechal.
Em relação à idade dos rapazes encontrados no trabalho de campo,
registramos menores de 18 anos até garotos próximos aos 35 anos, o que de-
monstra que a atividade ali exercida se caracteriza por um perfil que envolve
desde adolescentes – encontramos quem relatasse ter iniciado a atividade
aos 15 anos –, até o adulto jovem.
A faixa de idade entre 19 e 22 anos é a mais relatada, sugerindo talvez
que esse intervalo etário possibilite aproximar, dentro de um intervalo de
idades mais aceitáveis, aqueles que tenham entre 17 e 18 e aqueles que já
tenham acima de 25 anos.
Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 175

Sobretudo, encontramos, ao conversar com os rapazes, em geral,


uma atitude de bom humor como forma de destacar também a aparência.
Parece haver uma preocupação especial com os dentes e uma aparência que
os distancie da de um rapaz de periferia, território que em geral habitam.
Essa situação pode funcionar como um traço de distinção a seu favor no
território que frequentam.
Nesse momento, ao perguntar sobre a idade da maioria para Regis (que tem
23 anos) ele me informou que ali tinha garotos de todas as idades, até tiozi-
nho, garotos novos, homens mais velhos, muito mais velhos (...). (Diário de
Campo, 30/4/2010)
José contou ter 22 anos, é um rapaz bonito, baixo, magro, bem vestido, perfu-
mado e com um belo sorriso. (Diário de Campo, 14/5/2010)
Descobri que Érico é casado há cinco anos e sua esposa tem 22 anos e ele
falou que possuía 25 anos (...). (Diário de Campo, 21/5/2010)
Ronaldo tem os dentes perfeitos, um lindo sorriso, fala suave, tem uma retó-
rica muito boa, poucos erros de português, tem 26 anos de idade, mas afirma
que aparenta uns 22 anos. (Diário de Campo, 5/6/2010)

Trabalhos, aventuras, prazeres e agenciamentos


A entrada em campo e a possibilidade de observar os rapazes que
se identificam como “garotos de programa” permitem que tracemos várias
possibilidades de discutir essa questão. Neste texto, privilegiamos falar um
pouco dessa atividade como uma “forma de trabalho” que envolvem jovens
e atividades no mercado sexual.
Por outro lado, identificamos que códigos específicos como os do
universo de garotos de programa são típicos de tais vivências e que termi-
nam, de certa forma ,evidenciando-se em outros territórios. Como foi apon-
tado por alguns, eles circulam em outros espaços na região da Grande São
Paulo, como o bairro da Lapa, na região oeste da cidade de São Paulo, o “Au-
torama”, conhecido como um ponto tradicional noturno de encontro gay
da cidade de São Paulo e a região do Largo do Arouche na zona central da
cidade de São Paulo, que é outro reduto gay com várias especializações e
176 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

segmentos de trocas eróticas. O que também os faz pertencer aos espaços


gays da metrópole.
Nos relatos registrados também nos chamou a atenção a trajetória
dos mais jovens, que haviam inclusive se aventurado em viagens ao exte-
rior e diziam ter frequentado circuitos gays e o mercado sexual europeu. O
que talvez seja um denominador comum desses jovens é o fato de serem
moradores de bairros da periferia, que tiveram uma trajetória de estudar e
trabalhar quando adolescentes, contribuindo ou não com suas famílias per-
tencentes a estratos pobres da população.
Como citamos no início deste texto, a lógica do mercado se interpõe
como questão central na sociedade contemporânea, que estimula a autono-
mia, a produção de si, no sentido de buscar diferenciais seja na aparência,
seja na perspectiva de vida.
O que podemos observar é que, a despeito dessas potencialidades e
da possibilidade de maior inserção, porque também existe maior demanda,
e de engajamento no mercado sexual, essa questão não tem levado a mudan-
ças no plano moral. Assim, a perspectiva de trocas eróticas com pessoas do
mesmo sexo e a participação em territórios especializados para essas trocas,
inclusive as afetivas e não monetarizadas, vêm significando a manutenção de
um padrão tradicional de invisibilidade. Talvez até mesmo porque a deman-
da pelos “garotos de programa” implique a manutenção desses papéis ou da
inclusive manutenção no imaginário de que ali se realize uma troca entre um
“gay” ou “homossexual” cliente e um “heterossexual” viril.
Do ponto de vista de posição social, por sua vez, possibilita a par-
ticipação, muitas vezes não apenas circunstancial – há histórias de envolvi-
mentos senão duradouros, transitórios entre GP e clientes – em um outro
mundo social.
Para jovens e adolescentes “travestis” que também encontramos na
Grande São Paulo, a entrada na “prostituição” significa, na fala deles, realmen-
te a possibilidade de sair de um percurso de vida em que se frequentavam
espaços nos quais eram e se sentiam excluídos para, mesmo que de maneira
Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 177

nem sempre segura, poder experimentar espaços socialmente reconhecidos


e valorizados (JIMENEZ; ADORNO, 2009).
Também frisavam que o valor monetário adquirido no mercado
“formal” de trabalho mostrava-se insuficiente para o que passaram a enten-
der ser uma vida relativamente digna. Também viver do trabalho “formal”
em uma fábrica ou em um emprego de construção civil não compensava o
rechaço social e a discriminação a que eram submetidas.
Deve-se nesse caso fazer a ressalva de que as travestis relatam que
em sua trajetória expressavam uma performance “feminina”, o que certa-
mente as colocava em uma situação distinta dos jovens que assumem uma
posição “viril”. Situação que nos coloca mais questões para essa investigação
dos diferentes engajamentos de jovens da periferia das cidades brasileiras no
mercado sexual.
Os jovens e, em particular, os “adolescentes” são tomados pela saúde
pública como um grupo “vulnerável”, independente de que jovem ou que
adolescentes estamos falando, ou seja, a despeito de classe social, cor da pele,
sexo, gênero, origem e local de moradia. Assim sendo, as pesquisas realiza-
das a partir da contribuição teórico-metodológica das ciências sociais têm
buscado compreender as diferentes “socialidades” dos jovens, levando-se
em conta o cenário das sociedades contemporâneas, nome que de alguma
forma procura identificar as transformações do tempo social vivido ou, em
outros termos, dos processos de aceleração da modernidade, encarnada
pelo “capitalismo tardio”.
Entre outros aspectos, ocorre a aceleração do consumo, da circu-
lação de bens e serviços, em um cenário institucional que não necessaria-
mente muda na mesma intensidade e, pelo contrário, apresenta situações
paradoxais de liberalização do mercado e intolerância em relação aos gru-
pos sociais tradicionalmente marginalizados ou colocados sob a ótica da
vigilância.
Ao viver em estruturas sociais mais complexas, o jovem nesse tem-
po histórico “possui uma trajetória dominada pelo aleatório e pela ambi-
178 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

guidade e parece assentar-se numa ética de experimentação” (PAIS, 2003).


Deseja um emprego e, nesse sentido, procura reproduzir a situação da gera-
ção anterior, no entanto percebe que algo mudou nesse modelo, embora a
visibilidade e a extensão das mudanças lhe sejam muito nebulosas e difusas.
Mudanças que são apropriadas aos fragmentos, como flashes, como “clipes
de mídia”, entre essas a existência de um mundo que se mostra como infinito
nas possibilidades de consumo, de identidade, de produção do corpo, que
valoriza mais a astúcia do que a reflexão. Nesse sentido, busca por agenciar
situações disponíveis que possibilitem fissuras no cotidiano e acesso a ou-
tras experiências e territórios.
De certa maneira, imbricados no mundo do consumo, o corpo e
suas performances e o erótico enquanto espectro das relações possíveis en-
tre os corpos aparecem como um dos grandes apelos do consumo ou da co-
lonização do cotidiano. Na esfera do consumo também emerge como gran-
de característica contemporânea à valorização do cotidiano, como campo
de experiências, afetos, relacionamentos (GIDDENS, 1993).
Pensar, por sua vez, o consumo como uma condição homogeneiza-
dora da sociedade é negar o aspecto histórico. A disseminação do consumo
assim como das atividades de serviços e as transações financeiras colocam-
se hoje no centro das atividades do capitalismo tardio; nesse sentido, aca-
bam por ter implicações nacionais e locais. A questão do poder do Estado
liberal mais do que nunca proclama o mercado como o grande regulador
social; entretanto, o estado e seus dispositivos de poder, legais, morais e ins-
titucionais continuam regulando as atividades sociais.
Nesse sentido, tomam-se hoje como questões o efeito que a circu-
lação de bens e serviços e as regulações econômicas acabam tendo em cada
território específico – seja nacional, seja local dentro dos países. Ainda nesse
contexto, as desigualdades sociais e as diferenças assumem diferentes posi-
ções no mundo do consumo.
De certa forma, o consumo acentua a desigualdade e a proclama-
ção global como um grande espectro de “oportunidades” acelera as ações
Visibilidade e invisibilidade do trabalho de garotos de programa 179

no sentido de obter oportunidades rápidas e passar pelas etapas tradicio-


nais de obtenção. Essa condição tem apresentado para os jovens de regi-
ões como a América Latina o agenciamento em atividades como o tráfico
de drogas e o mercado sexual, o que ocorre na esfera cotidiana, respeitan-
do-se inclusive os prazeres e desejos, como mostramos em aspectos da
pesquisa com os GP.
Considerando o campo da saúde pública como de conhecimento
interdisciplinar, que no desenvolvimento histórico da sociedade propôs a
ideia de prevenção da vida e bem-estar social, tendo como aspecto central
a ideia de risco, em nome deste acabou muitas vezes subordinando a com-
preensão da saúde através de um modelo normativo de conduta. Modelo
esse que se distancia das relações sociais e dos modos de vida nos quais as
diferentes formas de agenciamento acabam construindo mecanismos de
autocontrole ou se defronta com situações limites impostas pelas ações nor-
mativas da sociedade.
O que chamamos a atenção nesse aspecto é que, em nome de um
modelo construído e abstrato de corpo de saúde, proclamam-se normas
para a vida que se desenrola muitas vezes em contextos cujos riscos são re-
presentados pela própria ação institucional.
Nas histórias de campo, a investida da polícia, em nome da repressão
ao tráfico, que nas regiões periféricas estende-se também ao uso, é constante
no circuito de trabalho de GP assim como de jovens travestis. A despeito do
crescimento e visibilidade do mercado sexual e da promoção da diversidade
sexual, as “zonas morais” continuam sendo alvo da investida policial ou da
sua ausência, no caso de roubos ou agressões que costumam infligir a esses
jovens.
Nesse sentido, a própria ação de saúde pública deveria ser a de co-
nhecer os modos de vida e as práticas que, de alguma maneira, já desenvol-
vem estratégias de proteção aos riscos impostos pela sociedade. Uma políti-
ca de redução de danos incluiria a questão da própria segurança e proteção
para exercer o trabalho nos “territórios morais”.
180 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Referências
BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre limites materiales y discursivos del “sexo”. 2. ed. Buenos Aires: Paidós,
2008.
JIMENEZ, L; ADORNO, R. C. F. O sexo sem lei, o poder sem rei: sexualidade, gênero e identidade no coti-
diano travesti. Cad. Pagu, Campinas, n. 33, p. 343-367, 2009.
FERREIRA, L. R.; MADEIRA, P. I. A prostituição em hoteis executivos de Porto Alegre. In: SEMINÁRIO
DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM TURISMO, 5, Belo Hori-
zonte, 2008. Anais... Belo Horizonte: [s.n.], 2008.
FERREIRA, R. S. Travestis em perigo ou perigo da Travestis? Notas sobre a insegurança nos territórios prosti-
tucionais dos transgêneros em Belém (PA). Enfoques, Revista eletrônica dos alunos do PPGSA, 2002.
FONSECA, C. A morte de um gigolô: fronteiras da transgressão e sexualidade nos dias atuais. In: PISCITELI,
A.; GREGORI, M. F.; CARRARA, S. (Org.). Sexualidades e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro:
Gramond, 2004.
FRANÇA, I. L. Cada macaco no seu galho? Poder, identidade, segmentação de mercado no movimento ho-
mossexual. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 60, São Paulo, 2006.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas.
São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
GUIMARÃES, C. D. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
HARVEY, D. A brief history of neoliberalism. Oxford: Oxford University Press, 2005.
KULICK, D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.
OLIVEIRA, L. Diversidade sexual e trocas no mercado erótico: gênero, interação e subjetividade em uma
boate na periferia do Rio de Janeiro. In: DIAZ-BENITEZ, M. E.; FÍGARI, C. E. (Org.). Prazeres dissidentes. Rio
de Janeiro: Garamond, 2009.
PAIS, J. M. (Coord.). Traços e riscos de vida. Uma abordagem qualitativa a modos de vida juvenis. 2. ed. Lisboa:
Ambar, 2003.
PERLONGHER, N. O. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
PISCITELI, A. Apresentação: gênero no mercado do sexo. Cad. Pagu, Campinas, n. 25, jul./dez. 2005.
SILVA, J. M. Cultura e territorialidades urbanas – uma abordagem da pequena cidade. Revista de História Re-
gional, v. 5, n. 2, Inverno 2000.
SIMÕES, J. A. O negócio do desejo. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, jul./dez. 2008.
SÍVORI, H. F. Resenha sobre o livro de VALE, Alexandre Fleming Câmaro, 2008. No Escurinho do Cinema:
cenas de um público implícito. Mana, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, 2001.
VANCE, C. A antropologia redescobre a sexualidade. Physis, n. 5, p. 7-32, 1995.
VILLALOBOS, J. U. G. Geografia e sexo: os discursos e práticas no território Brasileiro. Scripta Nova Revista
Eletrônica de Geografia e Ciências Sociales, Barcelona, 1999.
WEILLER, L. G. Homossexualidades e fases da vida. In: RIOS, L. F. et al. Homossexualidade: produção cultural,
cidadania e saúde. Rio de Janeiro: Abia, 2004.
WAQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
O lugar dos homens e das masculinidades
no debate sobre juventude

Jorge Lyra

A proposta deste texto é compartilhar uma síntese das reflexões e


análises produzidas para a mesa-redonda “Juventude, sexualidade,
corpo e gênero” no IV Jubra – Simpósio Internacional sobre Juventu-
de Brasileira, realizado em Belo Horizonte, durante os dias 16 a 18 de
junho de 2010, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC Minas), cujo tema foi Juventudes Contemporâneas: um Mosaico
de Possibilidades.1
Inicio essas reflexões situando de que lugar eu falo sobre ho-
mens, masculinidades e juventude, pois, inspirado em Donna Haraway
(1995), acredito que o conhecimento é localizado. Inclusive a sequên-
cia das palavras tem um sentido, ou seja, falar das masculinidades em um
encontro sobre juventude remete ao olhar sobre a intersecção entre pelo

1 Para mais informações, consulte o site: <http://www.pucminas.br/jubra/index_padrao.php?pagina=3549>.


182 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

menos dois marcadores sociais,2 gênero e geração,3 que fui construindo


nesses últimos anos no trabalho com adolescentes e jovens, principal-
mente do sexo masculino, tanto em minhas pesquisas de mestrado e de
doutorado (LYRA, 1997; 2008) como nas ações sociais, educativas, in-
formativas e políticas no Instituto Papai, uma organização não governa-
mental feminista, sediada em Recife, região Nordeste do Brasil.4

Saúde, direitos reprodutivos, direitos sexuais


e políticas públicas: algumas reflexões

Na nossa perspectiva, a formulação das políticas públicas em saú-


de no Brasil tem tido um olhar parcial para a visibilidade produzida pelas
pesquisas epidemiológicas. Ou seja, a dimensão de gênero, idade, classe e
raça/etnia, fortemente evidente nos dados das pesquisas, é sempre referida
de maneira enfática quando se pensam as políticas públicas em saúde para
a população jovem e pobre, mas as ações estruturais para a transformação
dessa condição social são negligenciadas (LONGHI, 2008a; 2008b). A
perspectiva das políticas públicas para a questão da violência urbana, por
exemplo, adota muito mais um caráter repressivo, com aumento do rigor das
leis, do que ações de prevenção e promoção da saúde, visando a uma crítica
2 Empregamos a noção de marcador social a partir das reflexões de Richard Parker (2002) e Felipe Rios
(2004), baseados em Ervin Goffman (1988), nos estudos deste último autor sobre estigma. Com inspiração
nesses autores, considera-se que seria possível estabelecer uma analogia entre marcador e estigma (marca) que
as pessoas atribuem aos outros em função das categorizações que elas formulam sobre as experiências huma-
nas. Segundo Goffman, estigma é mais que um indicador de desprestígio, é algo que a partir das concepções
socioculturais construídas engendram subjetividades, em outras palavras, são modos de ser e estar no mundo
que vão sendo incorporados (embodiment) e marcados no corpo como algo naturalizado, como caracterís-
ticas intrínsecas às pessoas que detêm essas marcas. Porém, o mais complexo é que essas categorizações, essas
classificações, como aponta Joan Scott (1995), também atribuem desigualdades de acordo com essas marcas
da diferença. Rios (2004) considera que gênero, orientação sexual, classe, raça etc. são indicadores que têm
o caráter de ir além de um mero indicador, pois eles são constitutivos e constituidores – constitui dores – de
desigualdades, porque funcionam concretamente, no senso comum, como marcas (estigma) engendradoras
de pessoas apropriadas para ocupar determinadas posições sociais; um exemplo é como os escravos foram
estigmatizados, e ainda o são os negros e as negras.
3 Voltarei a essa discussão sobre intersecções, hierarquias e subordinação entre marcadores sociais mais adiante.
4 Para mais informações, consulte o site: <http://www.papai.org.br>.
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 183

à cultura machista e à ressignificação das relações de poder (MEDRADO;


LYRA, 2003).
No estudo recente que desenvolvemos para a tese de doutorado in-
titulada Homens, feminismo e direitos reprodutivos no Brasil: uma análise de gêne-
ro no campo das políticas públicas, 2003-2006 (LYRA, 2008), ao analisarmos
os atores/atrizes da política,5 encontramos, no bojo de uma das categorias a
qual denominamos de outros ativistas sociais, o debate crítico sobre os cami-
nhos da construção da legitimidade da agenda de saúde e direitos sexuais e
reprodutivos nas políticas atuais, sejam elas de governo ou do movimento
social. Foram citados o movimento estudantil, a partir do seu foco na dimen-
são intergeracional, e o movimento negro, em sua luta pelo enfretamento do
racismo. De acordo com as entrevistadas, os recortes de idade, ou a luta por
uma educação formal de qualidade, no caso do movimento estudantil, e o
autorreconhecimento da cor ou pertencimento racial, bandeira de luta do
movimento negro, parecem dificultar, no campo dos direitos reprodutivos,
uma compreensão mais ampla de alguns problemas (CARNEIRO, 2005;
ROSEMBERG, 1997a).
Homens e mulheres que fazem parte do movimento estudantil es-
tão inseridos em debates macroestruturais e a questão da saúde muitas vezes
não faz parte de suas pautas de reivindicação, e os direitos sexuais e repro-
dutivos menos ainda. Esses temas são percebidos, segundo algumas inter-
locutoras, como específicos. Gênero é entendido como “coisa de mulher”, e
as referências à condição escolar (sou estudante) ou etária (sou jovem) não
são tomadas em suas particularidades de gênero. Assim, ambos os campos
ainda são, segundo as entrevistadas, dominados pela ordem masculina.
Porém, nossas entrevistadas ressaltam iniciativas mais recentes de
diálogo entre os movimentos sociais. Citam, por exemplo, uma geração de
jovens feministas que vem se consolidando e que conseguiu aprovar, em
5 Os atores de uma política são todas as pessoas, instituições e organizações sociais que contribuem direta ou
indiretamente para a mesma, em todas as fases de seus processos, desde a formulação até a implementação,
considerando-se inclusive o controle social ou ainda os que atuam em oposição à política (ARAUJO JU-
NIOR, 2000).
184 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Conferencia Nacional de Juventude, em 2008, uma pauta em defesa da le-


galização do aborto, com apoio dos rapazes.
No caso do movimento negro, as entrevistadas destacam que a com-
preensão mais ampla é de que, antes de serem homens ou mulheres, eles são
negros. Assim, a valorização do pertencimento racial e o enfrentamento do
racismo têm tido supremacia em relação ao debate de gênero. Aqui, tam-
bém, gênero é visto como assunto e pauta específica das mulheres, apesar
da visibilidade recente dos altos índices de morbimortalidade por conta da
violência entre jovens de periferia urbana, em sua grande maioria homens e
negros (BATISTA, 2005).
O debate sobre o racismo ganhou mais força no campo das políticas
públicas recentemente no Brasil, principalmente na gestão do governo Lula.
Parece-nos que a crença na ideia de democracia racial e de que o problema
da população é antes de qualquer coisa uma questão social, um problema da
pobreza, fundamentam várias das análises e propostas de ação, pois é cons-
tante o embate sobre o significado e a importância dessas discussões dentro
e fora do governo.
Quando observamos esse debate nos movimento sociais, essas ex-
plicações ganham outros contornos. A Conferência Mundial contra Racis-
mo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada
em Durban, na África do Sul, em 2001, se faz presente nos discursos dos
movimentos negros em suas várias expressões, na medida em que defen-
dem ações estruturais para “reparar” os anos de escravidão vivenciados pela
população negra no Brasil.
O movimento de mulheres negras há bastante tempo já reivindica
que é fundamental observar as intersecções de classe, gênero e raça no dese-
nho de políticas; o movimento de juventude negra, de homens e de mulhe-
res, busca melhores condições de estudo e emprego e a diminuição da vio-
lência urbana que afeta diretamente as histórias de homens jovens, negros e
pobres. Nesse contexto, as propostas de políticas afirmativas e de cotas são
permeadas de controvérsias e de suspeição dentro do próprio movimento
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 185

negro e em outros espaços de reflexão e ação.


Para compreender essas e outras questões apresentadas neste texto,
é importante resgatar as reflexões sobre a construção de uma política públi-
ca, apresentadas por Ana L. D’Ávila Viana (1996) em seu artigo de revisão
de literatura. A autora traz as contribuições de John Kingdon (1984) sobre
três tipos de agenda pública:
• sistêmica ou não governamental – que se organiza a partir da
apresentação de um conjunto de assuntos que são há muito tem-
po preocupações do país, sem contudo receber a devida atenção do
governo;
• governamental – que se orienta pelas análises da gestão pública em
relação aos problemas que merecem atenção do governo; e
• de decisão – baseada em análises sobre demanas e necessidades
que exigem tomada de decisão.
Kingdon (1984) ressalta que um assunto pode sair da agenda sis-
têmica para a governamental quando existem eventos dramáticos ou cri-
ses ou quando há influência de um quadro de indicadores ou acúmulo de
informações e experiências. Para compreender essa transição, é necessário
identificar os atores ou participantes ativos – governamentais e não governa-
mentais – e o processo – definido a partir das características dos orgãos, das
instituições e dos aparelhos vinculados à produção de políticas públicas –,
pelo qual algumas alternativas e itens se tornam proeminentes.
Por ora, vale reafirmar aqui nosso pressuposto de que a forma como
são definidos os instrumentos, produzidos os registros e analisados os dados
demográficos e as estatísticas especiais (vitais, educacionais, de saúde, de tra-
balho) não é neutra. Ou seja, ela tanto reflete como participa da construção
social de um fenômeno (problema, questão, demanda, necessidade) que
justifica a necessidade de uma política.
A quantificação, em particular, é ainda um dos instrumentos de
maior poder retórico no contexto discursivo de formulação de políticas
186 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

públicas. O uso que é feito da quantificação (argumentos numéricos) em


debates científicos e/ou no desenho e implementação de políticas públicas
destaca, frequentemente, a precisão e a objetividade dos números em detri-
mento do “achismo” e imprecisão dos argumentos verbais (POTTER; WE-
THERELL, 1991). Entretanto, não se trata apenas de entender o uso que é
feito dos números, mas como um discurso, baseado em números, legitima e
produz realidades e sujeitos (SPINK; MENEGON, 1999).
Do mesmo modo, a invisibilidade ou a falta de informações é tam-
bém indicadora e produtora de verdades. Como afirma Fúlvia Rosemberg
(1997b), as imprecisões conceituais, a ausência de dados ou a superabun-
dância de informações estatísticas participam do processo de construção
social, por exemplo, das categorias negros, mulheres que trabalham fora, meni-
nos de rua, prostituição infanto-juvenil, portadores de deficiência, gravidez na ado-
lescência etc.6
Todavia, os organismos que dão visibilidade a dados demográficos
e estatísticas especiais, no contexto da formulação de políticas públicas, não
são surdos às pressões dos movimentos sociais e da comunidade acadêmica.
Um exemplo marcante, nos últimos anos, é a convocação de representantes
dessas instâncias, pelo IBGE e outros órgãos, para as reuniões de aprimora-
mento de suas pesquisas e dos respectivos instrumentos de coleta.
Pressões de pesquisadores e ativistas sociais, por exemplo, levou a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a partir de 1987,
a coletar, anualmente, informações sobre a cor da população, um dado
complexo e que viveu uma história de entradas e saídas nas pesquisas re-
alizadas pelo IBGE (PIZA; ROSEMBERG, 1999). Também a PNAD, a
partir de 1995, incluiu no tópico sobre educação toda a faixa etária desde
o nascimento, a fim de investigar crianças que frequentam creche, direito
à educação reconhecido desde a Constituição Federal de 1988 (ROSEM-
BERG, 1997b).
6 Encontramos ricas discussões sobre essas categorias demográficas em trabalhos tais como: Bruschini e Ma-
deira (1983); Araújo (1987); Andrade e Rosemberg (1997); Piza e Rosemberg (1999).
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 187

No Brasil, o movimento de mulheres, desde o início de sua mobili-


zação, nos anos 1970, foi outro segmento da sociedade que avaliou, criticou
e propôs mudanças na forma de coletar dados, especialmente aqueles que
se referiam à participação feminina na vida pública ou que evidenciariam
menor adesão ao estereótipo tradicional. Por exemplo, as instruções para
coletar dados sobre chefia de domicílio e participação da mulher no mer-
cado de trabalho foram modificadas (BARROSO, 1982; BRUSCHINI;
MADEIRA, 1983).
Essas modificações acompanharam e contribuíram, certamente,
para as transformações histórico-culturais que ocorreram, nas últimas dé-
cadas, nas relações de gênero, particularmente no que se refere à luta dos
movimentos de mulheres pela maior participação feminina em espaços
antes destinados exclusivamente aos homens: aqueles relacionados à esfera
pública – política e econômica. Contudo, na sociedade contemporânea, a
concepção e a criação de filhos têm ainda se restringido à mulher, não in-
cluindo o homem nessa esfera.
Como problematiza Figueroa-Perea (2004), a medicina e a demogra-
fia – disciplinas que têm investigado a reprodução e alimentado as políticas
públicas que incidem sobre ela –, por um lado, questionam a reprodução
como questão das mulheres, por outro, grande parte dos dados, informa-
ções, estudos e pesquisas, ao focar apenas as mulheres, parece considerar
que a reprodução é um assunto de mulheres, e esse questionável pressuposto
tem validado indicadores com os quais são construídos os conhecimentos
nesta área e vice-versa, ou seja, por sua vez, esses indicadores também vali-
dam o modelo cultural que os legitima (CAVENAGHI, 2006).
Apesar das conquistas dos movimentos de mulheres e de toda uma
variedade de importantes transformações no campo da sexualidade e da
reprodução, ainda hoje se reproduz, nas relações de gênero, familiares e ins-
titucionais, uma delimitação clara de prescrições sociais e modelos. Ao ho-
mem provedor financeiro corresponde uma mulher naturalmente afetiva e
maternal. Assim, a constatação de que, no Brasil, ainda predominam as máxi-
188 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

mas o filho é da mãe e o pai abre a carteira pode ser atestada pelos intentos que
empreendemos para encontrar dados demográficos sobre o pai da criança
brasileira (LYRA, 1997; LYRA; MEDRADO, 2000).
Na pesquisa desenvolvida no mestrado (LYRA, 1997), com o intui-
to inicial de identificar o número de pais adolescentes no Brasil, analisamos
questionários e formulários usados por diferentes instituições que coletam
ou sistematizam informações demográficas, entre as quais: o Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Ministério da Saúde, a Sociedade
Civil Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam) e, em São Paulo, a Fundação
Sistema Estadual de Análise de Dados – Fundação Seade7 (FUNDAÇÃO
SEADE, 1988, 1990, 1992, 1994, 1995).
Entretanto, se o objetivo inicial da nossa investigação era chegar a
uma estimativa da paternidade na adolescência e sua variação percentual
ao longo dos anos, a dificuldade de localizar dados sobre a paternidade, em
todas as faixas etárias, levou-nos a uma mudança de foco. A ausência de in-
formação tornou-se, assim, nosso objeto de interesse e estudo.
Naquele texto, enfatizamos que o cuidado para com os filhos é uma
atividade relacionada à reprodução da existência humana e, portanto, asso-
ciada culturalmente às mulheres e ao feminino (IZQUIERDO, 1994); seja
no espaço da intimidade, seja no espaço público (BEATTY, 1989), essa as-
sociação entre as mulheres e o cuidado para com a criança foi naturalizada.
Essa naturalização de um modelo social gerou uma série de dis-
cursos e práticas institucionalizadas, dando sustentação a certos modelos,
valores e prescrições que impossibilitam o registro de certas informações,
contribuindo para a manutenção do princípio herdado do direito romano
mater semper certa est, pater nunquam,8 que reforça e legitima a ausência pater-
na (FONSECA, 2005; LYRA; MEDRADO, 2000; PERUCCHI, 2008).
Passados dez anos em relação à pesquisa do mestrado (LYRA,
1997), observamos que a ausência de informações ainda é um dos pro-
7 Essas instituições serão daqui em diante grafadas apenas como Seade, IBGE e Bemfam.
8 A mãe é sempre certa, o pai nunca.
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 189

blemas centrais para o desenvolvimento da pesquisa da tese de doutorado


(LYRA, 2008). Discutir, à luz da perspectiva de gênero, a invisibilidade dos
homens nos dados sociodemográficos e epidemiológicos no campo das po-
líticas públicas em direitos reprodutivos possui raízes valorativas e ideológi-
cas (GREENE; BIDDLECOM, 2000; OLAVARRÍA, 2003). Observamos
também essa invisibilidade sobre os homens e as masculinidades nos traba-
lhos apresentados nas quatro últimas edições do Jubra – Simpósio Interna-
cional sobre Juventude Brasileira.9
A ideia de que os homens, via de regra, não se interessam por ques-
tões relativas à sexualidade e à reprodução e de que o planejamento re-
produtivo10 e o cuidado dos filhos são atribuições e responsabilidades das
mulheres está embasada numa visão machista e sexista, que impede às mu-
lheres e aos homens o pleno exercício de seus direitos sexuais e direitos re-
produtivos, em face das limitações impostas por padrões culturais inscritos
em práticas preconceituosas. Com isso, não estamos negando os resultados
de algumas pesquisas que evidenciam a resistência e a negação, por parte de
alguns homens, em participar de experiências da vida reprodutiva (ALAN
GUTTMACHER INSTITUTE, 2003; QUADROS, 1996; 2004).
Assim, se no campo da reprodução faltam informações, no campo da
sexualidade essa matriz de gênero também se faz presente não apenas na invi-
sibilidade de dados, mas na interpretação que se oferece aos mesmos. Dados
sociodemográficos evidenciam, por exemplo, que em 1980 a Aids situava-se na
sétima posição entre as causas de mortalidade entre jovens brasileiros do sexo
masculino, passando em 1995 a ocupar a segunda posição (BRASIL, 2005).
Nos últimos anos, tem-se observado uma tendência à feminização da
epidemia, que é expressa na gradativa diminuição da razão homem/mulher
9 Voltaremos a essa discussão mais adiante.
10 A política do planejamento reprodutivo, que corresponde à anteriormente denominada política de planeja-
mento familiar, vem sendo desenvolvida pelo Ministério da Saúde em parceria com os estados, os municípios
e a sociedade civil organizada, no âmbito da atenção integral à saúde da mulher, do homem e de adolescentes.
Ela está de acordo com os preceitos legais estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e na Lei Federal nº
9.263, de 12 de janeiro de 1996 (BRASIL, 1996), que regulamenta o planejamento reprodutivo.
190 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

no registro do número de casos notificados: de uma razão de 24:1 em 1985,


passou-se para 6:1 em 1988, e tem-se mantido, desde 1997, a proporção de
dois homens para cada mulher infectada (BRASIL, 2005).
Contudo, mesmo registrando-se uma tendência à feminização da
epidemia, em âmbito mundial, e mesmo reconhecendo a grande impor-
tância e necessidade de ações voltadas para as mulheres, as estatísticas mos-
tram ainda maior prevalência de casos entre os homens, nos mais variados
recortes sociodemográficos, tais como: faixa etária, domicílio e na grande
maioria das categorias de exposição ao vírus, principalmente por via sexual
e sanguínea. Dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2005) destacam que,
no Brasil, 67,8% da população infectada pelo HIV é de homens.
É interessante notar que, em 2000, o Programa Conjunto das Na-
ções Unidas sobre HIV/Aids – Unaids (JOINT…, 2000) lançou uma
campanha mundial de prevenção à Aids, intitulada AIDS: Men Make a Diffe-
rence. Esse documento da campanha destaca:
Embora o comportamento dos homens esteja contribuindo de forma sig-
nificativa para a propagação e o impacto do HIV, e os situe precisamente na
primeira linha de risco, esse comportamento pode mudar. Conseguir a par-
ticipação dos homens nos esforços contra a Aids representa o modo mais
seguro de mudar o curso da epidemia. É improvável que se consiga motivar
os homens para que escutem ou modifiquem suas atitudes apontando-os
com o dedo ou culpando-os. Por meio da campanha mundial contra a Aids,
a Unaids e seus associados em todo o mundo trabalhará cada vez mais com
mulheres e homens, assim como com as ONGs, os governos e o sistema das
Nações Unidas, para produzir um novo e muito importante enfoque voltado
aos homens. (JOINT UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/
AIDS, 2000, p. 1, tradução nossa)

Esse discurso da culpabilização dos homens e vitimização das mu-


lheres aparece claramente expresso nos discursos institucionais sobre a
epidemia da Aids, de forma semelhante à concepção “satanizadora”11 dos
homens apontada por Figueroa-Perea (2004). Além disso, a diversidade de

11 Satanização dos homens, ou seja, os homens são o motivo, origem e causa; responsáveis e executores das
desigualdades de gênero, eles são vistos como vitimizadores das mulheres (DIGBY, 1998).
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 191

atos sexuais e a relutância no uso de preservativos aparecem como algo ge-


neralizado e, ao mesmo tempo, como uma opção consciente.
Em síntese, consultando os bancos de dados do Departamento de
Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) e as grandes pesquisas de-
mográficas sobre morbimortalidade da população masculina (LAURENTI
et al., 1998; LAURENTI; MELLO JORGE; GOTLIEB, 2005; REDE IN-
TERAGENCIAL DE INFORMAÇÕES PARA A SAÚDE, 2007), pesqui-
sas sobre saúde reprodutiva (IBGE, 1996a; 1996b; FUNDAÇÃO SEADE,
1988, 1990, 1992, 1994, 1995) e sobre comportamento sexual e infecção
por DST/HIV/Aids (SOCIEDADE CIVIL BEM-ESTAR FAMILIAR
NO BRASIL, 1997; BRASIL, 2000), ficamos com as seguintes perguntas:
que masculinidades estão sendo forjadas pelos discursos de políticas pú-
blicas no campo da Saúde, em nosso país? Que sujeito está sendo consti-
tuído por meio desses dispositivos de saber/poder? Qual(is) lugar(es) se
constrói(em) para os homens e as masculinidades no debate sobre juventu-
de, tomando o Jubra como exemplo?

Qual(is) lugar(es) se constrói(em) para os homens


e as masculinidades no debate sobre juventude, tomando
o Jubra como exemplo?

Para responder a esta última questão, preciso retomar um pou-


co como chego junto ao IV Jubra e as aproximações com o debate sobre
adolescências e juventudes. Fui convidado a participar da mesa redonda
“Juventude, sexualidade, corpo e gênero” pela professora Maria Ignez Costa
Moreira, mais conhecida como Pitucha, que havia realizado sua pesquisa de
doutorado sobre gravidez na adolescência (MOREIRA, 2001) na mesma
época que eu desenvolvia meu trabalho de mestrado sobre pais adolescen-
tes (LYRA, 1997), ou seja, nos conhecemos há muito tempo e fomos con-
temporâneos de tema e de pós-graduação na PUC de São Paulo. Já tinha
ouvido falar muito no Jubra, desde a sua primeira edição no Rio de Janeiro
192 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

em 2004, mas não tinha tido a oportunidade de participar do encontro, em


certa medida porque também coincidiu com a minha dedicação ao proces-
so de doutoramento (2004-2008).
Quando fiquei pensando no que falaria na mesa-redonda, decidi,
como bem aprendi com a minha orientadora de mestrado, Fúlvia Rosem-
berg, a mapear o que já havia sido dito, produzido, o que era o Jubra; resol-
vi então ir a busca dos anais das outras edições do encontro,12 com vistas a
elaborar uma espécie de estado da arte sobre o tema que me toca profun-
damente e que venho trabalhando nesses últimos anos, a saber, o lugar dos
homens e das masculinidades no debate sobre juventude, ou como as relações/
subordinação de idade estão tematizando (ou não!) as questões de gênero,
em particular as experiências reprodutivas dos rapazes.
Nesse meio tempo entre o convite e a realização do encontro,
tive a oportunidade de ter em minhas mãos O estado da arte sobre juven-
tude na pós-graduação brasileira: Educação, Ciências Sociais e Serviço Social
(1999-2006) – v. I e II, o qual foi organizado pela professora Marília
Sposito, com a qual havia estudado em 1996 a disciplina Sociologia da
Juventude, o que me levou a convidá-la a participar da minha banca de
qualificação e defesa do mestrado. Nessa coletânea também tive, por
um lado, a grata surpresa de reencontrar outra contemporânea da épo-
ca do meu mestrado e do seu doutorado, a Marília Carvalho (2009), e
de ler o capítulo “Jovens, sexualidade e gênero” de Marília de Carvalho,
Raquel Souza e Elisabete Oliveira, no qual dialogam com os estudos
que temos desenvolvido, mas apontam, por outro lado, uma constante
histórica que é ainda a ausência de debate focando os homens jovens
nessa revisão da literatura. Em outras palavras, a pergunta inicial a qual
eu gostaria de dialogar no Jubra volta por outros caminhos, então resolvi
insistir nesse desafio que retomarei mais adiante a ele.

12 Aqui vale assinalar e agradecer a pronta resposta das professoras responsáveis pelos Jubras a Lucia Rabello
de Castro da UFRJ (2004), Neuzinha Guareschi da PUCRS (2006), Sônia Margarida Gomes Sousa da PUC
Goiás (2008) e Maria Ignez Costa Moreira da PUC Minas (2010).
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 193

Como havia dito anteriormente, tinha uma segunda parte da mi-


nha pergunta que precisava responder para localizar os/as leitores/as sobre
o meu argumento: quais foram as aproximações com o debate sobre saú-
de, políticas públicas, adolescências e juventudes? Nesses últimos 13 anos,
a equipe do Papai foi ampliada e novas questões e problemas passaram a
compor um projeto mais amplo. Colocamos em prática a proposta de um
programa voltado aos homens jovens que se tornaram pais, em parceria
com serviços públicos de saúde, tendo um leque variado de ações. No de-
senvolvimento da proposta de pesquisa e de ação, conseguimos formular
várias estratégias para a realização das atividades junto aos homens jovens,
mas também nos defrontamos com diversos desafios no campo conceitual
e da formulação de ações públicas (SPINK, 2007) de atenção à saúde da
população jovem e masculina (BRASIL, 2010; 2007a; 2007b).
De um projeto individual à construção de um programa institu-
cional e à fundação de uma organização da sociedade civil, desde 1997,
foi um longo processo de crescimento e de amadurecimento, que remeteu
a uma maior clareza sobre de que “lugar(es)” nós estamos falando e quais
são as possibilidades e os limites desses lugares (LYRA, 2007). Um ponto
a ser destacado nessa trajetória é a preocupação ética e política a respeito
da ação desenvolvida diretamente com jovens pais e das reais condições
de incorporar experiências e aprendizagens de uma ONG à organização
de um serviço de atenção à saúde, integrado ao modelo do Sistema Único
de Saúde (SUS).
Ao longo desses anos, mantivemos como meta central promover
uma revisão do modelo machista e dos processos de socialização masculi-
na em nossa sociedade, incentivando a participação jovem e masculina nos
campos da saúde, da sexualidade e da reprodução. Consideramos que, mes-
mo sendo um trabalho “de formiguinha”, como gosto de dizer (pois traba-
lhamos no plano da cultura, que é uma tarefa vagarosa e difícil), no plano das
políticas públicas, conseguimos alcançar o estágio de formulação de uma
agenda da construção de um lugar para os pais adolescentes. No começo
194 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

dessa trajetória, as pessoas não entendiam nem sequer a expressão “pais


adolescentes”, achavam que nós trabalhávamos com “pais de adolescentes”
(LYRA, 2007).
E quais seriam, então, os melhores resultados em termos de impac-
to de nossas ações? O melhor resultado do Instituto Papai tem sido tornar
visível a paternidade na adolescência. Em 1994, quando iniciamos as pri-
meiras investigações sobre o tema, pouco ou quase nada se falava sobre a
paternidade na adolescência. Hoje, felizmente, esse tema passou a fazer parte
da pauta de diferentes veículos da mídia e a receber atenção de órgãos gover-
namentais e não governamentais. Estamos, pouco a pouco, quebrando esse
verdadeiro “muro de silêncio”.
Hoje em dia, colocamos essa questão na pauta atual da mídia, elabo-
ramos material educativo, campanha de comunicação e amadurecemos um
posicionamento político bastante importante, trabalhando concomitante-
mente em duas direções: uma ação junto às áreas oficiais da saúde e uma
formação política do adolescente em relação a seus direitos e responsabili-
dades.
Junto ao governo federal, elaboramos normas técnicas, inserindo
esse tema na Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, na Área
Técnica de Saúde da Mulher e na Secretaria Especial de Políticas para as Mu-
lheres e, mais recentemente, na Área Técnica de Saúde do Homem (BRA-
SIL, 2009; MEDRADO et al., 2009). Foram desenvolvidas ações de arti-
culação política para a construção da “Política nacional de atenção integral
à saúde de adolescentes e jovens” e da “Oficina de construção de macroes-
tratégias em saúde sexual e saúde reprodutiva de adolescentes e jovens”. Foi
uma ação conjunta do Ministério da Saúde e do Fnuap, com a presença de
adolescentes e jovens (estagiários do Papai) na reunião de trabalho.
Tenho observado que as ações diretas com os gestores e técnicos
dos governos são muito importantes e necessárias, pois nosso lugar de
“especialistas” (de quem tem acúmulo de reflexões e trabalhos realizados)
contribui certamente para a elaboração de diretrizes para políticas públicas.
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 195

Nesse sentido, os documentos formulados na esfera governamental são fru-


to da experiência concreta de trabalho com os jovens pais.
Nesse sentido, também temos desenvolvido trabalho de sensibili-
zação e capacitação junto aos/às profissionais de saúde e, paralelamente,
empregamos estratégias de sensibilização voltadas aos usuários/as dos
serviços de saúde e da sociedade como um todo, considerando que a
educação em direitos reprodutivos dirigida à comunidade contribui para
alimentar nas pessoas a consciência de que elas são cidadãos/cidadãs, que
possuem, portanto, direitos e esses precisam ser preservados. É necessário,
por um lado, “empoderar” os usuários de atenção em saúde para que fa-
çam valer seus direitos, quando busquem serviços e, por outro, incentivá-
los a contribuir para romper as normas sociais que sustentam a restrição
de seus direitos (PATH, 2004).
Continuamos a defender que é preciso fortalecer as bases, ou seja,
investir na formação política do adolescente e do jovem para que se perceba
como o sujeito de direitos. Nesse sentido, o 13º Encontro Nacional de Ado-
lescentes, do Movimento de Adolescentes do Brasil (MAB), em Recife, foi
um exemplo (LYRA et al., 2010). O objetivo maior dessas ações é a formu-
lação de diretrizes de políticas públicas que incluam os homens no campo
da saúde reprodutiva em nível federal, estadual e municipal.
Voltando ao Jubra, tivemos acesso aos materiais produzidos nas qua-
tro edições do encontro (RABELLO DE CASTRO, 2004; DELL’AGLIO;
GUARESCHI; KOLLER, 2006; VALDEZ et al., 2008; MOREIRA et al.,
2010) por meio dos quais fizemos um breve panorama de como esse sim-
pósio veio ganhando uma dimensão importante na constituição de um
campo13 de estudos e de políticas sobre juventude no Brasil; e, mais parti-
cularmente, vou dialogar com os textos das apresentações elaborados pe-
13 Entendemos campo a partir de Pierre Bourdieu (1983, p. 89) como “espaços estruturados de posições
cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das
características de seus ocupantes [...] é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o
jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos
objetos de disputas etc.”.
196 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

las comissões organizadoras de cada simpósio e, mais especificamente, vou


analisar o material do IV Jubra, as nomeações14 sobre os homens e o mascu-
lino a partir dos títulos dos resumos dos trabalhos apresentados. Sei que os
trabalhos apresentados mereceriam uma análise aprofundada de conteúdo,
mas estamos falando em um quantitativo de 403 trabalhos distribuídos em
10 GT (grupos de trabalho), o que foge ao escopo das reflexões a que me
propus e à construção do eixo de análise que estou querendo compartilhar
com os/as leitores/as deste livro.
Gráfico 1 - Histórico de trabalhos inscritos no Jubra
450
400
350
300
250
200
150
100
50

I JUBRA II JUBRA III JUBRA IV JUBRA


Fonte: Elaborado pelo próprio autor

Traçando uma linha histórica, observamos que o Jubra – o Simpósio


Internacional sobre a Juventude Brasileira – inicia o debate com força e com
grande repercussão, pois foram 310 trabalhos inscritos além dos trabalhos
apresentados nas mesas-redondas e outras modalidades de apresentação,
mas ainda sem divisão por eixos ou grupos de trabalho. Teve como sede a
Universidade Federal do Rio de Janeiro, no ano de 2004, com o título Pers-
pectivas e ações em saúde, educação e cidadania, essa temática geral do encontro
nos chama atenção, pois dialoga com dois campos em que as reflexões sobre
juventude e adolescência são muito profícuas.
14 Nomeações foram entendidas neste estudo com base na definição contida no Dicionário eletrônico
Houaiss da Língua Portuguesa, como “ato ou efeito de nomear ou ser nomeado; nomear é o ato de atribuir
qualidade ou característica a (outrem ou a si mesmo); considerar(-se), classificar(-se), chamar(-se)” (NO-
MEAÇÕES, 2001).
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 197

Dois anos depois, em 2006, o Jubra desce para Porto Alegre atra-
vés de uma parceria entre a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
sob o título Ecos na América Latina, é interessante que ao estar localizado na
fronteira, no contexto dos diálogos com o Mercosul, apesar de ter menos
trabalhos inscritos, 108 trabalhos, sem divisão por eixos ou GT, o encontro
dialoga com a América Latina e o material do evento é produzido em portu-
guês e em espanhol, ou seja, Simpósio Internacional sobre a Juventude Bra-
sileira não é internacional apenas pela presença de convidados estrangeiros,
mas em função de ter estabelecido diálogos entre a realidade brasileira e de
países vizinhos.
Em 2008, o simpósio se desloca mais para o centro do país, para a
cidade de Goiânia, sediado na Pontifícia Universidade Católica de Goiás
em parceria com a Universidade Federal de Goiás, e com o título Juventu-
des no mundo contemporâneo: desafios e perspectivas recebe 367 trabalhos que
foram distribuídos em sete eixos de trabalho, são eles: 1) Ações públicas e
intervenções com adolescentes e jovens; 2) Garantia de direito e inclusão
social de adolescentes e jovens; 3) Jovens: sexualidade e gênero; 4) Ju-
ventude, escola e trabalho; 5) Processos de subjetivação de adolescentes
e jovens; 6) Relações internacionais e família; 7) Sociabilidades juvenis,
processos culturais e espaços educativos. É interessante notar que o eixo
“saúde” sai das subtemáticas, mas ganha relevância o debate sobre os espa-
ços públicos de reflexão sobre a adolescência e a juventude, imagino que
influenciada pela proximidade territorial com o governo federal e os ato-
res oriundos dos movimentos sociais de defesa dos direitos das crianças,
dos adolescentes e dos jovens.
Na edição mais recente, em 2010, o simpósio volta para a região Su-
deste, o IV Jubra é realizado em Belo Horizonte, na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas) com o título Juventudes contemporâ-
neas: um mosaico de possibilidade. Observamos um crescimento do encontro
com a inscrição de 403 trabalhos, que foram organizados em 10 grupos de
198 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

trabalho, intitulados: 1) Participação juvenil, movimentos sociais e ações


coletivas; 2) Juventude e saúde; 3) Juventude, sexualidade, corpo e gêne-
ro; 4) Culturas e sociabilidades juvenis, mídia e consumo; 5) Juventude e
trabalho; 6) Juventude e processos educativos; 7) Juventude e família; 8)
Juventude e violência; 9) Juventude e direito; 10) Políticas públicas para a
juventude.
Quadro 1
Distribuição dos trabalhos inscritos no IV Jubra
Grupos de trabalho Trabalhos inscritos
GT 1 - Participação juvenil, movimentos sociais e ações
67
coletivas
GT 2 - Juventude e saúde 28
GT 3 - Juventude, sexualidade, corpo e gênero 32
GT 4 - Culturas e sociabilidades juvenis, mídia e consumo 64
GT 5 - Juventude e trabalho 33
GT 6 - Juventude e processos educativos 82
GT 7 - Juventude e família 15
GT 8 - Juventude e violência 40
GT 9 - Juventude e direito 10
GT 10 - Políticas públicas para a juventude 32
Fonte: Elaborado pelo próprio autor.

Uma novidade nesse simpósio foi a realização do Jubra Jovem, com


a participação efetiva de adolescentes e jovens para além de ser objeto ou
público-alvo das reflexões acadêmicas. Se incluirmos universitários, alunos
de graduação ou pós-graduação, podemos até considerar que sempre tive-
mos pessoas jovens nas outras edições dos Jubras, mas será que nós, pes-
quisadores, pensamos a partir dessa perspectiva ou mesmo que os próprios
estudantes se colocam nesse lugar, falam a partir dessa condição juvenil?
Questões como essa nos remete ao mosaico que se refere o título do even-
to? As diversas e diferentes juventudes e as intersecções entre marcadores
sociais também nos fazem refletir sobre essa juventude contemporânea? Se
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 199

analisarmos o quadro acima, o que significa o contingente de 82, 67 e 64


trabalhos nos GTs sobre “Juventude e processos educativos”, “Participação
juvenil, movimentos sociais e ações coletivas” e “Culturas e sociabilidades
juvenis, mídia e consumo”, respectivamente? Apenas analisando os títulos
dos GTs, percebemos um lócus atribuído à grande parte da população ado-
lescente e jovem; o contexto educacional e os outros subtemas nos levam
a pensar em que medida os jovens estão querendo falar em nome próprio
ou, como bem diz Benedito Medrado (2002) em sua tese de doutorado,
os adolescentes e jovens, através dos processos de governamentalidade, são
instados a “corresponder” pela sua condição de existência e a resolverem
problemas que eles não criaram.

Análise das nomeações dos títulos dos resumos do IV Jubra

Inspirado no modelo de análise que desenvolvemos na tese de


doutorado (LYRA, 2008), iniciamos a aproximação dos documentos do
IV Jubra através do caderno da programação, naquele momento era o que
tínhamos em mãos. Só foi possível ter conhecimento dos resumos depois
do lançamento do CD-ROM do encontro. De qualquer forma, já nos deu
elementos bem interessantes para os nossos propósitos, pois pudemos ob-
servar a estrutura do encontro, a organização dos trabalhos pelos GTs, e o
que desenvolvemos para este texto foi uma análise de conteúdo a partir dos
títulos dos trabalhos inscritos. Fiz leituras flutuantes do conteúdo com a
finalidade de nos familiarizarmos com o assunto e identificar unidades de
análise, à luz da questão de pesquisa, a saber, o lugar do debate sobre homens e
masculinidades nas discussões sobre juventude no Jubra, dando origem às primei-
ras análises referentes às nomeações.15
Para a primeira etapa de análise, fizemos uma busca de expressões
no singular e no plural que faziam referência aos homens ou ao masculino

15 Encontramos esse debate sobre o uso das nomeações e argumentos como categoria teórico-metodológica
na tese de Medrado-Dantas (2002) e na dissertação de Vera Menegon (1998).
200 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

nos títulos dos resumos, usamos como estratégia complementar o artigo “o”
para as expressões genéricas. Algumas das expressões que buscamos foram:
homem(ns), jovem(ns), adolescente(s), aluno(s), rapaz, moço, menino,
pai(s), paternidade, sexo, sexualidade, masculino, masculinidades, gênero,
relações de gênero, entre outras.
Assinalamos aqui que nossa proposta não foi empregar uma das
estratégias da metodologia de análise de conteúdo também concebida por
Bardin (1977), a da quantificação das palavras que aparecem nos discursos.
Em nossa abordagem, pelo contrário, seguindo caminhos qualitativos para
a análise das suas trajetórias, entendemos que as nomeações são elementos
importantes para a compreensão de como as pessoas de modo geral e, em
particular, os textos produzidos para os resumos orientam práticas cotidia-
nas e estabelecem prioridades de temas e de construção de conhecimento.
A compreensão dos significados da nomeação não pode se dar de
modo isolado, observando apenas a palavra, mas no âmbito de um contexto,
no qual a palavra foi usada. De qualquer maneira, chamam a atenção algu-
mas presenças e algumas ausências de nomeações. Isso não significa que os
pesquisadores/as em seus trabalhos inscritos deixaram de falar sobre esses
temas, mas apenas que não os nomearam.
A partir da análise das nomeações, é bastante cara a polissemia de
sentidos que o debate assume a partir da análise dos títulos dos resumos. Po-
rém, verifica-se que essa multiplicidade de sentidos não convive de maneira
tranquila, harmônica; pelo contrário, é um campo marcado por tensões e
disputas semânticas.
Apresentamos, a seguir, alguns exemplos dos resultados da análise
dos dados que se referem às nomeações, aos termos e às expressões utiliza-
dos nos título dos resumos para se referir aos homens e ao masculino.
Quando buscamos os termos “homem”, “masculino”, “masculinida-
de”, “rapaz”, “moço”, “menino” não encontramos nenhum registro. Resolve-
mos então fazer uma nova busca a partir de possíveis temas nos quais os
homens e as masculinidades poderiam ser incluídos, por exemplo, “sexo”,
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 201

“sexualidade” e “homossexualidade”, mas novamente não localizamos essas


expressões.
Quando utilizamos outra estratégia de busca a partir da expressão
“o(s) adolescente(s)”, localizamos as seguintes nomeações: “alunos adoles-
centes”, “filhos adolescentes”, “aos adolescentes autores de ato infracional”,
“adolescentes em conflito com lei”. Seguem os títulos nos quais encontra-
mos as nomeações com vistas a entendermos o contexto no qual estão inse-
ridas as expressões:
• A autoridade docente pela perspectiva dos alunos adolescentes: primeiras
aproximações (pôster);
• O cuidado materno: fundamental no tratamento dos filhos adolescentes com
transtornos mentais.

Ao utilizarmos a expressão “o(s) jovem(ns)”, outras nomeações bem


interessantes surgiram, entre elas: “dos jovens”, “os jovens”, “o jovem jogador
de futebol”, “jovem, negro e rural”, “jovem negro”, “o jovem, a bala e o giz”, “um
jovem encarcerado”, “sujeito jovem cidadão produtivo”. Como podemos ver
nos seguintes exemplos:
• A influência da religião na vida da juventude: a experiência dos jovens do
morro do Papagaio;
• Participação dos jovens na escola: os adultos têm a ver com isso?;
• Ensino de arte e participação dos jovens dentro e fora da escola: um estudo
de caso numa escola da rede municipal de Belo Horizonte-MG;
• Juventude(s) em um “entre-lugar”: uma análise da rurbanidade dos jovens de
projeto de assentamento no estado da Bahia;
• Amor e controle na contemporaneidade: uma cartografia das relações afe-
tivas dos jovens adolescentes;
• Sociabilidade: uma reflexão a partir da experiência dos jovens do litoral de
flecheiras;
• Ciberidentidade: a formação das identidades dos jovens na sociedade em
rede;
• A dupla marca e as celebridades: ideais de consumo dos jovens contempo-
râneos (pôster);
202 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

• Letramento e cotidiano dos jovens Xakriabá;


• As expectativas de futuro dos jovens estudantes do IF-SP diante da formação
técnica;
• A promoção da cultura de paz nas escolas: a ótica dos jovens;
• Juventude/escola: reflexões dos jovens em torno da relação professor/aluno
(pôster);
• O pensar dos jovens rurais sobre o trabalho na agricultura: relações de per-
manência e migração;
• As famílias dos jovens e os jovens formando famílias: suas (im)possibilidades
como um contexto de inter-relações.
Os títulos que contêm a expressão “dos jovens” terminam por in-
cluir, devido à grafia, a expressão “os jovens”.
• Paradigmas do religioso entre os jovens contemporâneos;
• “Fazer o que eu quiser”: pesquisando os sentidos que os jovens cariocas dão
à ideia de liberdade;
• Sexualidade, sexo e pornografia: os jovens e a diversidade de informações
disponíveis na internet no campo da sexualidade;
• “Coisas de mulher”: os jovens e os discursos genderizados no campo afetivo-
sexual em sites da internet;
• As narrativas na soap opera Malhação: que sociabilidades indicam aos jovens?;
• Jovens e tecnologias: recortes de uma aparente inclusão (pôster).

O que mais chama a atenção nessas nomeações é o uso das expres-


sões de forma genérica, ou seja, não se sabe se está se falando de meninos ou
de meninas, mesmo quando essa expressão vem acompanhada de outro mar-
cador social, que é a questão da raça. Por outro lado, ao observarmos alguns
títulos em que o masculino esteja marcado, há uma associação ao que tradicio-
nalmente consideramos como desse gênero: futebol, violência e a produção
(leia-se talvez o campo do trabalho). Vejamos os exemplos, a seguir:
• “Jovem, negro e rural: estas três coisas”: um olhar sobre a experiência de edu-
cação popular do Mojac (Movimento de Jovens de Antônio Cardoso);
• Ações afirmativas no combate ao racismo e desigualdades: as cotas raciais e
o acesso do jovem negro ao ensino superior (pôster);
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 203

• O jovem jogador de futebol: entre o trabalho, a formação e o espetáculo;


• O jovem, a bala e o giz: a juventude contemporânea entre a violência na es-
cola a violência da escola;
• História de vida de um jovem encarcerado: sentidos da violência e do crime;
• O estabelecimento sociassistencial e as condições de execução de medidas
socioeducativas aos adolescentes autores de ato infracional;
• Adolescentes em conflito com lei: cartografias de uma primeira aproximação do
sistema socioeducativo;
• O guia de políticas públicas de juventude: a produção do sujeito jovem cida-
dão produtivo (pôster).

Por fim, é interessante observar como a (in)visibilidade de experiên-


cias humanas vai construindo, ou não, discursos, sujeitos, políticas e espaços.
Já está claro que o exercício analítico proposto nessas breves linhas busca
fugir das lógicas binárias e polarizadas das relações de gênero entre mascu-
lino e feminino, ao incluir as reflexões sobre as hierarquias intragênero e um
olhar para as intersecções com outros marcadores sociais (PARKER, 2002;
RIOS, 2004; ROSEMBERG, 1997a; STOLCKE, 1992, 2006). Faz-se ne-
cessário considerar, por exemplo, as categorias de raça/etnia, idade, sexuali-
dade e condição socioeconômica.
Fúlvia Rosemberg (1997a, 2001, 2002), em suas pesquisas sobre
educação infantil, trabalha as dimensões gênero, raça e idade com o objetivo
de construir um modelo teórico que não associe essas três dimensões da
sociedade como adjetivas ou associativas. Ela tem usado o conceito de he-
terocronia ou de não sincronia dessas dimensões, além de concebê-las como
relações de hierarquia, de subordinação. Gênero, raça e idade, do ponto de
vista da história social e do ponto de vista do ciclo de vida, da trajetória pes-
soal, não atuam no mesmo momento e na mesma direção na vida das pes-
soas, é fundamental complexificar este olhar.
No artigo recente de Rosemberg e Andrade (2008) encontramos
uma formulação mais explícita e clara do que eles estão problematizando
em relação à intersecção ou não sincronia. Nas palavras desses autores:
204 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Considero que o conceito de não sincronia proposto por Hicks (1981)


possibilita apreender melhor o jogo de conflitos, tensões e contradições
inter e intrainstitucionais: “indivíduos (ou grupos) em suas relações com
os sistemas político e econômico não compartilham da mesma consciência
ou das mesmas necessidades no mesmo momento” (HICKS, 1981, p. 221).
Isso significa que a interseção dessas relações pode levar a interrupções, des-
continuidades, alterações ou incremento do impacto original das dinâmicas
de raça, classe, gênero ou idade em dado contexto social ou institucional.
Nem as pessoas individualmente nem os movimentos sociais desenvolvem
em perfeita sincronia consciência de classe, gênero, raça e idade. (ROSEM-
BERG; ANDRADE, 2008, p. 434)

Essa complexidade é exigida ao adotarmos a dimensão relacional de


gênero, evitando, assim, uma leitura marcada pela dicotomia e permitindo,
inclusive, a emergência de outros objetos de pesquisa, a partir da abordagem
de gênero por uma perspectiva feminista, que tem o poder como dimen-
são central de análise (MEDRADO; LYRA, 2008). Esperamos que essas
reflexões tenham contribuído com a produção de informações e de conhe-
cimentos sobre juventude(s) em que o Jubra se insere e, mais que isso, que
possamos ver em 2012, na quinta edição do Jubra, que será em Recife-PE,
reflexos dessas rápidas e mal traçadas linhas.

Referências
ALAN GUTTMACHER INSTITUTE. Their own right: addressing the sexual and reproductive health needs
of men worldwide. New York: Alan Guttmacher Institute, 2003.
ANDRADE, Leandro F.; ROSEMBERG, Fulvia. Ruthless Rhetoric: child and youth prostitution in the Bra-
zilian media. In: URBAN CHILDHOOD. Book of Abstracts: Trondheim. Programme. Dragvoll: The Norwe-
gian Centre for Child Research, 1997. v. 1, p. 131-131.
ARAÚJO JUNIOR, José Luiz A. C. Health sector reform in Brazil, 1995-1998: an health policy analysis of a
developing health system. 2000. Thesis (PhD in Health Services Studies) - The University of Leeds, Leeds.
ARAÚJO, Thereza C. N. A classificação de cor nas pesquisas do IBGE: notas para uma discussão. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, n. 63, p. 14-16, nov. 1987.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
BARROSO, Carmem. Mulher, sociedade e Estado no Brasil. São Paulo: Unicef; Brasiliense, 1982.
BATISTA, Luís Eduardo. Masculinidade, raça/cor e saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1,
p. 71-80, jan./mar. 2005.
BEATTY, Barbara. A vocation from on high: kindergartning as an occupation for American women. In: WAR-
REN, Donald (Ed.). American teachers: histories of a profession at work. New York: Macmillan, 1989. p. 65-97.
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 205

BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.


BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estra-
tégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação
da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estra-
tégicas. Área Técnica de Saúde do Homem. Política nacional de atenção integral à saúde do homem: princípios e
diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde, 2009a. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/
pdf/politica_nacional_homem.pdf. Acesso em: 24 mar. 2010.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estraté-
gicas. Área Técnica de Saúde do Homem. Plano de Ação Nacional (2009-2011). Brasília: Ministério da Saúde,
2009b. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/plano_saude_homem.pdf. Acesso
em: 24 mar. 2010.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estraté-
gicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Relatório de gestão 2003 a 2006: Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da Mulher. Brasília, 2007a.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde integral de adolescentes e jovens: orientações
para a organização de serviços de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2007b.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estraté-
gicas. Marco teórico e referencial: saúde sexual e saúde reprodutiva de adolescentes e jovens. Brasília: Ministério
da Saúde, 2007c.
BRASIL. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Boletim Epidemiológico - Aids
e DST, Brasília, ano 2, n. 1, 2005.
BRASIL. Ministério da Saúde. Comportamento sexual da população brasileira e percepções do HIV/AIDS. Brasília:
Ministério da Saúde, 2000.
BRASIL. Lei n. 9.263, de 12 de janeiro 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do
planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. 1996.
BRUSCHINI, Cristina; MADEIRA, Felícia. A família, a estrutura social e as formas de participação na produ-
ção social. Cadernos Ceru, São Paulo, n. 18, p. 147-186, 1983.
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Edu-
cação) - Universidade de São Paulo, São Paulo.
CARVALHO, Marília P.; SOUZA, Raquel; OLIVEIRA, Elisabete R. B. Jovens, sexualidade e gênero. In:
SPOSITO, Marilia P. (Coord.). Estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências so-
ciais e serviço social (1999-2006). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. v. 1, p. 179-229.
CAVENAGHI, Suzana (Org.). Indicadores municipais de saúde sexual e reprodutiva. Rio de Janeiro: Abep; Bra-
sília: UNFPA, 2006.
DELL’AGLIO, Débora D.; GUARESCHI, Neuza; KOLLER, Silvia (Org.). Simpósio Internacional sobre a
Juventude Brasileira: Ecos da América Latina – Jubra, 2. 2006, Porto Alegre. Anais… Porto Alegre: PUC/RS;
UFRGS, 2006.
DIGBY, Tom (Ed.). Men doing feminism. Londres: Routledge, 1998.
DYE, Thomas R. Understanding public policy. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1995.
FIGUEROA-PEREA, Juan Guillermo. La representación social de los varones en estudios sobre masculini-
dades y reproducción: un muestrario de reflexiones. In: MEDRADO, Benedito (Org.). et al. Homens: tempos,
práticas e vozes. Recife: Instituto PAPAI, 2004. p. 22-34.
FONSECA, Claudia L. W. Paternidade brasileira na era do DNA: a certeza que pariu a dúvida. Quaderns-e,
Barcelona, v. 4, n. b, 2005.
206 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

FUNDAÇÃO SEADE. Nascer aqui: análise de uma nova fonte de dados sobre nascimentos. São Paulo: Seade,
1995. (Informe Demográfico n. 29).
FUNDAÇÃO SEADE. Pesquisa de condições de vida – PCV: manual do entrevistador. São Paulo: Seade, 1994.
FUNDAÇÃO SEADE. Coleção pesquisa de condições de vida na Região Metropolitana de São Paulo - PCV 1992:
Análises especiais: crianças e adolescentes. São Paulo: Seade, 1992.
FUNDAÇÃO SEADE. Pesquisa de condições de vida – PCV: Manual do entrevistador. São Paulo: Seade,
1990.
FUNDAÇÃO SEADE. O jovem na grande São Paulo. São Paulo: Seade, 1988. (Coleção Realidade Paulista,
2).
GOFFMAN, Ervin. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guana-
bara, 1988.
GREENE, Margaret; BIDDLECOM, Anne. Absent and problematic men: demographic accounts of male
reproductive roles. Population and Development Review, v. 26, n. 1, p. 81-115, 2000.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva
parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995.
HICKS, Emily. Cultural Marxism: nonsynchrony and Feminist Practice. In: SARGENT, Lydia (Org.). Women
and revolution. Boston: Southend Press, 1981. p. 219-237.
HOUAISS, Antonio. Nomeações. In: HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CD Rom.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Contagem da População – 1996.
Brasília: IBGE, 1996a. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem/
default.shtm>. Acesso em: 1 jun. 2008.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios - PNAD. Brasília: IBGE, 1996b.
IZQUIERDO, Maria Jesús. Uso y abuso del concepto de género. In: VILANOVA, Mercedes (Org.). Pensar
las diferencias. Barcelona: Promociones y Publicaciones Universitarias, 1994. p. 31-53.
JOINT UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS. AIDS: Men make a difference. Geneva:
JUNPH, 2000.
KINGDON, John W. Agendas, alternatives, and public policies. Boston: Little, Brown and Company, 1984.
LAURENTI, Ruy et al. Perfil epidemiológico da saúde masculina na região das Américas: uma contribuição para o enfo-
que de gênero. São Paulo: Centro Colaborador da OMS para a Classificação de Doenças em Português, 1998.
LAURENTI, Ruy; MELLO JORGE, Maria Helena P.; GOTLIEB, Sabina L. D. Perfil epidemiológico da
morbi-mortalidade masculina. Ciência e Saúde Coletiva, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 35-46, jan./mar. 2005.
LONGHI, Márcia R. Viajando em seu cenário: reconhecimento e consideração a partir de trajetórias de rapazes
de grupos populares do Recife. 2008a. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal de Per-
nambuco, Recife.
LONGHI, Márcia R. Viajando em seu cenário: reconhecimento e consideração a partir de trajetórias de rapazes
de grupos populares do Recife. Recife: UFPE, 2008b.
LYRA, Jorge. Homens, feminismo e direitos reprodutivos no Brasil: uma análise de gênero no campo das políticas
públicas (2003-2006). 2008. 262 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Departamento de Saúde Coletiva,
Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife.
LYRA, Jorge. Homens, política e saúde reprodutiva. In: GHANEN, Elie (Org.). Influir em políticas públicas e
provocar mudanças sociais: experiências a partir da sociedade civil brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2007. p. 111-125.
O lugar dos homens e das masculinidades no debate sobre juventude 207

LYRA, Jorge. Paternidade adolescente: uma proposta de intervenção. 1997. Dissertação (Mestrado em Psicolo-
gia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
LYRA, Jorge; MEDRADO, Benedito. Gênero e paternidade nas pesquisas demográficas: o viés científico.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 145-158, 2000.
LYRA, Jorge et al (Org.). Juventude, mobilização social e saúde: interlocuções com políticas públicas. 2. ed. Reci-
fe: Instituto Papai, 2010.
MEDRADO-DANTAS, Benedito. Tempo ao tempo: a gestão da vida em idade. 2002. Tese (Doutorado em
Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Por uma matriz feminista de gênero para os estudos sobre homens e
masculinidades. Revista Estudos Feministas, v. 16, p. 20-35, 2008.
MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Produzindo sentidos sobre o masculino: da hegemonia à ética da di-
versidade. In: ADELMAN, Mirian; SILVESTRIN, Celsi (Org.). Coletânea gênero plural. Curitiba: UFPR, 2002.
p. 63-76.
MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge; AZEVEDO, Mariana; GRANJA, Edna; VIEIRA Sirley. Princípios, dire-
trizes e recomendações para uma atenção integral aos homens na saúde. Recife: Instituto Papai, 2009. Disponível em:
http://www.feminismo.org.br Acesso em: 23 mar. 2010.
MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Nos homens a violência. In: BRASIL. Secretaria Especial de Políticas
para a Mulher. Diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas. Programa de Pre-
venção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para a
Mulher, 2003.
MENEGON, Vera. Menopausa: imaginário social e conversas do cotidiano. 2008. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
MOREIRA, Maria I. C.; STENGEL, Márcia; VALE, Maria Julia A. (Org.). Simpósio Internacional sobre a
Juventude Brasileira - Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades - 4. Belo Horizonte. Anais...
Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2010.
MOREIRA, Maria I. C. Gravidez na adolescência: análise das significações construídas ao longo de gerações
de mulheres. 2001. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
OLAVARRÍA, José. Derechos sexuales y reproductivos y los hombres. In: OLAVARRÍA, José. Diálogo na-
cional: promoción de la salud sexual y reproductiva en la reforma del sector salud, Santiago de Chile, 2003.
Santiago: [s.n], 2003. Disponível em: <http://www.flacso.cl/flacso/biblos.php?code=619>. Acesso em: 14
jan. 2008.
PARKER, Richard. Abaixo do Equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no
Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002.
PATH. Enfoque de la salud reproductiva basado en los derechos. OutLook, Washington, v. 20, n. 4, 2004.
PERUCCHI, Juliana. Mater semper certa est pater nunquan: o discurso jurídico como dispositivo de produção
de paternidades. 2008. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianó-
polis.
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Color in the Brazilian census. In: REICHMANN, Rebeca (Ed.). Race in
contemporary Brazil: from indifference to inequality. University Park: The Pennsylvania State University Press,
1999. p. 37-52.
POTTER, Jonathan; WETHERELL, Margaret. Analyzing discourse. In: BRYMAN, Alan; BURGESS, Rob-
ert (Ed.). Analyzing qualitative data. London: Routledge, 1991. p. 1-33.
QUADROS, Marion T. Homens e a contracepção: práticas, ideias e valores masculinos na periferia do Recife.
2004. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
208 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

QUADROS, Marion T. Construindo uma nova paternidade? As representações masculinas de pais de alunos
de uma escola alternativa do Recife. 1996. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal
de Pernambuco, Recife.
RABELLO DE CASTRO, Lucia (Org.). Simpósio Internacional sobre a Juventude Brasileira: perspectivas e
ações em saúde, educação e cidadania – 1. 2004, Rio de Janeiro. Anais/ resumos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
REDE INTERAGENCIAL DE INFORMAÇÕES PARA A SAÚDE. IDB 2006 BRASIL: indicadores e da-
dos básicos. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2006/
matriz.htm>. Acesso em: 20 out. 2007.
RIOS, Luis Felipe. O feitiço de Exu: um estudo comparativo sobre parcerias e práticas homossexuais entre
homens jovens candomblesistas e/ou integrantes da comunidade entendida do Rio de Janeiro. 2004. Tese
(Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
ROSEMBERG, Fúlvia. Avaliação de programas, indicadores e projetos em educação infantil. Revista Brasileira
de Educação, n. 16, p. 19-26, jan./abr., 2001.
ROSEMBERG, Fúlvia. Organizações multilaterais, Estado e políticas de educação infantil. Cadernos de Pesqui-
sa, São Paulo, n. 115, p. 25-64, 2002.
ROSEMBERG, Fúlvia. Teorias de gênero e subordinação de idade: um ensaio. Pro-posições, Campinas, v. 7, n.
3, p. 17-23, 1997a.
ROSEMBERG, Fúlvia. Educación infantil, género y raza. In: INTERNATIONAL CONGRESS OF LATIN
AMERICAN STUDIES ASSOCIATION, 20, 1997b, Guadalajara, México. Anais… Guadalajara: [s.n.],
1997b.
ROSEMBERG, Fúlvia; ANDRADE, Leandro F. Ação afirmativa no ensino superior brasileiro: a tensão entre
raça/etnia e gênero. Cadernos Pagu, v. 31, p. 419-437, jul./dez. 2008.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20,
n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
SOCIEDADE CIVIL BEM-ESTAR FAMILIAR NO BRASIL. DST/AIDS e a Pesquisa Nacional sobre Demo-
grafia e Saúde: uma análise do nível de conhecimento e comportamentos de vulnerabilização. Rio de Janeiro:
Bemfam, 1997c.
SPINK, Mary Jane; MENEGON, Vera M. A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores meto-
dológicos. In: SPINK, Mary Jane (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações
teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.
SPINK, Peter. Processos organizativos e ação pública: as possibilidades emancipatórias do lugar. In: JACÓ-VILE-
LA, Ana Maria; SATO, Leny (Orgs.). Diálogos em Psicologia Social. Porto Alegre: Evangraf, 2007. p. 315-328.
SPINK, Peter. Análise de documentos de domínio público. In: SPINK, Mary Jane (Org.). Práticas discursivas e
produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.
SPOSITO, Marília (Coord.). O estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências so-
ciais e serviço social (1999-2006). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. 2 v.
STOLCKE, Verena. O enigma das interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade: a formação dos impérios tran-
satlânticos do século XVI ao XIX. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 15-42, 2006.
STOLCKE, Verena. ¿El sexo es para el género como la raza es para la etnicidad? Mientras Tanto, Barcelona, n.
48, p. 87-111, ene./feb. 1992.
VALDEZ, Diane; SOUZA, Elizabeth C. L. L.; GUIMARÃES, Maria Teresa C.; Sousa, Sônia M. G. (Org.).
Simpósio Internacional sobre a Juventude Brasileira – 3: Juventudes no mundo contemporâneo: desafios e
perspectivas. Anais... Goiânia: UCG, UFG, 2008.
VIANA, Ana L. D’Ávila. Abordagens metodológicas em políticas públicas. Revista de Administração Pública, v.
30, n. 2, p. 5-43, mar./abr. 1996.
Enigmas do medo – juventude,
afetos e violência
Glória Diógenes

Morreu com treze balas, quando uma só bastava (...). Esta é a lei. Mas há al-
guma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança,
no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me
cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de
horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo-primeiro
digo em espanto o nome de Deus, no décimo-segundo chamo meu irmão. O
décimo-terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero
ser o outro. (LISPECTOR, 1978)

O brado de Clarice Lispector nos coloca diante do epicentro dos recor-


rentes espetáculos da violência. Pode-se dizer que a violência, e seu
correlato, a segurança pública, têm sido a tônica das discussões no campo
das políticas públicas, da mídia e da vida cotidiana nos umbrais do século
XXI. Nunca se falou tanto em violência e, provavelmente, afora os ciclos de
guerras, nunca se alardeou tanto seus impactos negativos no âmbito das ci-
dades e das relações sociais.
Mesmo condensando a ideia de um contrassentido, da negação do
que se dispõe como ordem, a violência passa a ocupar o palco das discus-
sões contemporâneas no mundo ocidental, seja no campo das políticas pú-
blicas, seja no âmbito da economia, seja no plano das relações cotidianas.
Como afirma Norbert Elias, “um processo de civilização pode ser adquirido,
até acompanhado, por avanços de direção oposta, pelo processo de descivi-
210 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

lização” (1994, p. 75). A violência é a única garantia de que se tem lançado


mão para que se efetivem fronteiras e divisas entre ricos e pobres, entre os
que precisam proteger os que possuem e os despossuídos. Ela opera inter-
venções, aciona aparatos de segurança, produz uma infinidade de escudos
imaginários e concretos que acabam armando toda a ordem social. A violên-
cia ultrapassa o ato e faz de todos nós coautores do décimo-terceiro tiro que
matou Mineirinho e mantenedores da arma que continua apontada para
todos aqueles considerados perigosos.
Pode-se afirmar que a violência surge, de forma recorrente, até a dé-
cada de 1990 no Brasil, associada a outros fenômenos sociais, quase sempre
abordada em nível de análises de conjuntura, e no campo das reflexões socio-
lógicas orquestradas por duplas variáveis conceituais: pobreza e violência, po-
der e violência, segurança e violência, drogas e violência, dentre outras. Como
a violência foi pouco a pouco no Brasil tornando-se um fenômeno pensado,
falado e analisado dentro de seus próprios contornos? O sinal mais contun-
dente desse processo de autonomização da categoria violência é o surgimento
dos programas policiais, primordialmente durante a década de 1990.1
No Brasil, o telejornalismo de cunho sensacionalista e espetacularesco, tam-
bém conhecido como mundo cão, ganhou visibilidade com o surgimento do
telejornal Aqui Agora, que foi ao ar em 1991, apresentado por Gil Gomes, e O
homem do sapato branco, apresentado por Jacinto Figueira Júnior, ambos vei-
culados pelo Sistema Brasileiro de Televisão – SBT, sendo que o Aqui Agora
é considerado o programa precursor do telejornalismo policial na televisão.
Com o foco voltado para as notícias sobre violência o telejornal chocou o
país em 1993 com a exibição ao vivo de um suicídio de uma adolescente.
(DUARTE OLIVEIRA, 2007, p. 1)

1 Fato destacado desse fenômeno é o surgimento dos programas policiais e dos jornais com forte apelo para
questões relativas ao crime e enfrentamentos entre polícia, “bandidos” e traficantes. Os meios de comuni-
cação mais destacados, no Brasil, nesse quesito são: os jornais populares como O Dia e O Povo do Rio, no
Rio de Janeiro, Na Polícia e nas Ruas, do Distrito Federal e Agora e Jornal da Tarde em São Paulo, além dos
extintos Luta Democrática e Notícias Populares. Na televisão, destacam-se os programas A Hora da Verdade
(TV Jornal) Cidade Alerta (Rede Record), Brasil Urgente (TV Bandeirantes), Repórter Cidadão (RedeTV!),
Linha Direta (TV Globo) e Cadeia (CNT). Para entender melhor o tema: Jornalismo policial na televisão:
gênero e modo de endereçamento dos programas Cidade Alerta, Brasil Urgente e Linha Direta. In: http://
www.poscom.ufba.br/arquivos/Poscom-Producao_Cientifica-annilo_Duarte_Oliveira.pdf
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 211

Pode-se afirmar que até a década de 1970, antes do ápice dos pro-
cessos de metropolização, da intensificação da migração campo-cidade, da
integração dos mercados e a ampliação de novas tecnologias da comunica-
ção, a violência assumia no Brasil traços e dinâmicas diferenciadas. Tratava-
se de uma geografia que até então inspirava o planejamento urbano das ci-
dades e ativava seus fluxos. Tentativas de zoneamento pretendiam definir
usos e ocupações do espaço e acabavam produzindo cidades partidas e desi-
guais, compondo o mesmo cenário. A segregação espacial, a separação entre
o lugar dos ricos e os espaços reservados para o confinamento da pobreza,
subsistiu por décadas no Brasil. Em quase todas as grandes metrópoles bra-
sileiras, podia-se identificar facilmente os limites dessas fronteiras.
É por tal razão que os estudos sociológicos que marcaram a década
de 1970 no Brasil tinham como tônica as temáticas voltadas para os pro-
cessos de “favelização”, “marginalidade urbana”, “crescimento desordenado”,
dentre outros. As favelas representavam ampliados enclaves urbanos, com
dinâmicas e modos de sociabilidade bem delimitados. Quem nunca atraves-
sasse as linhas imaginárias entre pobreza e riqueza poderia crescer na con-
vivência com seus pares sem ser nunca sobressaltado pelo encontro com
o outro. Georges Duby (1998) escreveu um livro instigante denominado
Ano 1000 ano 2000 – na pista dos nossos medos. Ele assinala cinco: o medo
da miséria, o medo do outro, o medo das epidemias, o medo da violência, o
medo do além. O medo do outro facilitou a construção de um discurso jus-
tificador da lógica da guerra e do enfrentamento da violência que balizaram
e estreitaram o campo de identificações entre política urbana e estratégias de
segurança pública no Brasil.
Perlongher (1993, p. 138) ressalta que o imaginário antropológico
se conduziu através da ideia do “outro” e inspirado no referente “identida-
de contrastiva”: “A aplicação da noção de identidade contrastiva baseia-se
numa circunstância política e histórica: a conquista e a colonização. Os
outros – sobre os quais se vai falar – são os primitivos, ou como diríamos
modernamente, os oprimidos”. Observa-se que os outros transmudam seus
212 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

traços contrastivos tanto no que tange aos marcos de localização no espaço,


como aos signos de expressão das diferenças que se desenham ao longo do
tempo.
A “era dos direitos”, deflagrada com as greves do ABC paulista no fi-
nal dos anos 1970 e que eclode através da mobilização de múltiplos sujeitos,
movimenta, dá visibilidade e esmaece as fronteiras da segregação urbana.
Os outros se diversificam e assumem lugares e modos diversos de expressão.
Rompem-se as barreiras e os denominados pobres proclamam em voz alta
suas demandas, desfilam suas desvalias e exibem suas revoltas em praça pú-
blica. Foi o que ressaltou Eder Sader, no livro cujo título marcou o espírito
dessa década: Novos personagens entram em cena (1988). Com o acirramen-
to das zonas de indiferença, da falta de acesso a direitos sociais básicos, do
desemprego, do sentimento de não pertencimento à cidade, verifica-se um
deslocamento de homens, mulheres, crianças e adolescentes, que passam a
vagar, a pedir esmolas, a afrontar a ordem pública, a roubar, e a trabalhar, in-
formalmente, em pontos estratégicos do lado rico da cidade. Esboça-se uma
nova geografia urbana, deslocando o vetor da fixidez e da segregação para
uma lógica dos fluxos de sujeitos e de territórios.2 A pergunta de ordem se
desloca de “onde se localiza o outro?” para “por onde se movimenta o outro?”.
A lógica das diferenças, dos contrastes que opera, tendo como indi-
cativa a variável geográfica, a inserção do outro dentro de pontos fixos da pai-
sagem urbana, passa a prescindir de outro plano de identificação. Dissemi-
na-se a noção de que o perigo espreita todos os lugares e de que os perigosos
trafegam por todos os lados. O medo não tem mais lugar para ficar, o outro
lado é o mesmo. Todos estão imersos na angústia de não ter um refúgio se-
guro, sendo mobilizados pela necessidade de se proteger e/ou de se armar.
Ricos e pobres compartilham feixes diversificados de insegurança simbólica
e situam-se no cerne dos descompassos da segurança pública. Seguindo as
2 Para entender a categoria “territórios em movimento” ver Itinerários de corpus juvenis, 2003. “Há uma possibi-
lidade de transmudação permanente do espaço em território, de um movimento turbilhonar absoluto. Porque
o corpo é que define o território, ele é que realiza através de um programa, errante ou sedentário, a circulação
de imagens capazes de traduzir o espaço em território” (p. 174).
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 213

pistas dos medos, pode-se dizer que o “medo do outro” nos tornou presa
fácil para outro temor avizinhado do primeiro: o da violência. Como bem
expressou Calvino (1991), nas suas Cidades invisíveis, é possível compreen-
der as razões e vocações de uma cidade através das linhas que aproximam e
afastam o contato com os diferentes e as diferenças.
A violência vai sendo utilizada, paradoxalmente, como elemento
acionado para a segurança, como alerta para o risco de não misturar-se, do
armar-se contra a possibilidade latente de aniquilamento e diluição das fron-
teiras ocasionada pelo temor do diferente. A violência torna-se o motivo e o
dínamo da construção do ideário da segurança pública. Movemo-nos atra-
vés do medo. Como bem afirma Khoury (2004, p. 5), “o medo do outro pa-
rece enclausurar o sujeito, sobretudo de classe média, que tem dificuldades
de relacionamento e sentimento de solidão amplificado”. Chegamos assim
no ponto inquietante dessa costura entre cidade e medo: qual o lugar da ju-
ventude nessa encenação alardeada da violência?

Juventude – quem tem medo de quem?

Parte significativa do repúdio à presença inesperada dos jovens


em espaços públicos frequentados por moradores de nível de renda mais
elevado vai ocorrer devido a ações de uso intensivo do espaço: a cidade
torna-se o principal palco de atuação e, paradoxalmente, cenário de en-
frentamentos e de agressões, depredações e pichações. Signos da violên-
cia, práticas do espaço e estratégias de expressão e visibilidade pública
tornam-se argamassas centrais e ambivalentes na construção e ampliação
de práticas de inserção social.
Ultrapassa-se a direta correlação entre cidadania e inserção no mun-
do do trabalho. A crescente situação de desemprego, os salários que mais
parecem degradar que valorizar os trabalhadores, apontam novos signos de
reconhecimento social. A expansão das demandas de consumo sem uma
correspondência proporcional ao poder de compra parece lançar uma so-
214 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

ciedade que se constrói sob esses referentes numa condição generalizada de


desesperança e medo. Partindo do pressuposto de que os jovens se projetam
como termômetro e vitrine que parece tornar públicas e visíveis as tensões
sociais, são eles os primeiros a tentar romper ou simplesmente se rebelar
contra uma ordem que fala através deles e, concomitantemente, os exclui.
É a juventude “pobre” de periferia que mais passa a protagonizar
cenas coletivas de recusa, formação de turmas constituídas sob a lógica da
depredação de patrimônios públicos e negação e enfrentamento violento
da polícia e dos demais sujeitos que corporificam a lei e a autoridade. De
modo geral as políticas públicas voltadas para a juventude, principalmente
aquelas signatárias dos anos 1990, se constituem sob a égide da necessida-
de de ressocialização, reintegração. A pergunta é: que integração? Como diz
Lapassade (1968, p. 34) – no texto clássico Os rebeldes sem causa – o jovem
descobre o mundo como destino do homem. “Entrar na vida é descobrir
que não se pode deixar de dar resposta ao fato de estar situado numa cultura,
num sexo, num sistema social”. A violência juvenil, paradoxalmente, muitas
vezes representa uma resposta.
O que significa tomar a violência como contraponto à ordem e aos
acontecimentos considerados mais estáveis? Como seria pensar a violência
para além do binômio ordem/desordem, ultrapassando as barreiras norma-
tivas do pensamento que exclui o conflito e as diferenças? Velho (1996, p.
11) afirma, desde muito antes dos impasses que se desenham no cenário
atual, que:
longe de a vida social constituir-se em um processo homogêneo em que a
sociedade como unidade circunscreve e produz atores linearmente, explicito
uma visão de que a negociação da realidade, a partir das diferenças, é conse-
quência do sistema de interação social sempre heterogêneo e com potencial
de conflito.

A expressão das diferenças “deslocaliza-se” no que tange à produção


de contrastes de situações duais, facilmente identificáveis e mimetiza-se aos
locais de fluxos e de passagens em lugares estratégicos nos mapas das cidades.
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 215

Obviamente que as práticas de violência explicitam a não-aceitação de “um


outro”, de certas regras sociais, da violação direta à ideia de Lei. Nesse sentido,
a violência seria, por princípio, o campo de negação das diferenças. Porém,
em certas circunstâncias, a violência pode chegar até mesmo a atuar como
força propulsora das diferenças. A violência pode atuar como uma espécie de
força dispersiva, voltada para a manutenção das diferenças, em contraponto à
homogeneização que a centralidade dos poderes procura instaurar. (RIFIO-
TIS, 1996, p. 5)

Essas “forças dispersivas” promovem curiosas esferas de contrastes


e confrontos. A polícia passa a simbolizar, principalmente para a juventude
que ocupa as periferias, o outro, e que, como no âmbito dos jogos, possibi-
lita a expressão das diferenças (ELIAS, 1992). Para além dos planos de ho-
mogeneização da cidade, dos lugares definidos para usos e práticas, da visão
funcional do zoneamento do espaço sob a égide do trabalho, da produção e
do consumo, a juventude, e suas práticas excessivas, expõem o desalinhamen-
to, o furor da agitação contra a ordem. Se o urbano, no seu funcionamento
previsível e homogêneo dos percursos casa-trabalho-consumo, revela-se
como lugar de mera passagem, reforça a face oficial da cidade, essas experiên-
cias juvenis fazem emergir espaços que pareciam não existir, fazem eclodir
formas singulares de vivência e apropriação da cidade.
Os jovens parecem reeditar nas grandes metrópoles a dinâmica do
espetáculo, do cortejo, do desfile, da cor, da música e da fantasia como forma
de acionar uma comunicação urbana, um modo de ser e de se fazer cidade.
“A etimologia da palavra ‘pólis’ mostra que significa ‘aglomeração’, ‘multidão’,
‘fluir’, ‘cheio’, muitos. Está relacionada a palavras tais como ‘plenus’, ‘plerus’,
‘plebs’, ‘palus’, ‘plus’ (ou superabundância, sempre mais) (HILLMAN, 1993,
p. 75).
É desse modo que as festas, a música, as torcidas organizadas, os jo-
gos em geral parecem mobilizar, concentrar e fazer explodir energias disper-
sadas, contidas e silenciadas nos espaços padronizados de conduta pública.
É possível ler juventude ao seguir pegadas das múltiplas vias e vidas que os
jovens experimentam na cidade. Eles produzem imagens que fazem ver cida-
216 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

de, nem que seja pelo confronto ou pela via da depredação, pichação, pelas
tretas3 incessantes com a polícia.
Eles precisam andar, movimentar-se para exibir signos de estilos e
filiações juvenis muitas vezes sombreados no mundo invisível das periferias.
A dimensão tradicional de cidade, baseada na geografia física, tem como
referente o caráter de materialidade, de lugar fixo e concreto assumido por
suas paisagens. De outro modo, as cidades modernas têm como estatuto de
existência o conjunto de imagens que são capazes de acionar através de sig-
nos que circulam e produzem linguagem.

O temor das misturas e a ameaça da diferença

Podemos perceber de forma mais nítida a intrincada correlação en-


tre ocupação urbana, medo e violência. Outro foco de conflito, relegado a
um plano menos visível e sutil, situa-se na paisagem árida da indiferença.
Paga-se um preço alto para que os lugares invisíveis da indiferença possam
transformar-se em experiências de destaque de público. A juventude mo-
vimenta-se na cidade, aviva sua exposição em locais de intensa visibilidade
pública e tenta, desse modo, romper os muros da indiferença. Os corpos
juvenis produzem signos urbanos que ultrapassam os limites geográficos in-
terpostos entre centro e periferia, entre ordem e desordem, entre segurança
e medo. A cidade torna-se um lugar de produção e recriação de signos. Não
basta morar em um bairro, pertencer a uma turma, seguir uma tendência
cultural, integrar-se à torcida de um time, é preciso mais que isso, vale evi-
denciar e fazer desfilar pela cidade todos os símbolos que representam um
leque diversificado de escolhas.
A cidade produz um sentido, uma significação nomeada e apro-
priada por cada sujeito a partir do conjunto de imagens que acumula: uma
constelação de signos urbanos. Não se faz isso sem o corpo, não se faz isso

3 Gíria usada pelas gangues e galeras em Fortaleza para definir brigas, confrontos que acontecem no cenário
das ruas.
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 217

sem movimento, sem experimentação. São os jovens que parecem, mais do


que qualquer outro personagem urbano, perceber o caráter imagético da
existência na cidade e do corpo como artífice dessa cultura da comunicação
visual (CANEVACCI, 2001). Os lugares da cidade transmudam-se através
do conjunto de imagens acionadas nas passagens dos corpos juvenis. Ser jo-
vem tem significado efetuar uma representação, uma marcação, a produção
de um estilo, de uma filiação, de um modo de ser, ou seja: projeção de uma
imagem ou de um repertório delas. “A comunicação visual tornou-se tão
recorrente que é como se as palavras funcionassem apenas como âncoras
para que o corpo-linguagem pudesse exibir-se, para que os sinais pudessem
explicitar os jogos de identidades” (DIÓGENES, 1998, p. 162).
Eles passam, carregam signos-cidade e com essas andanças procla-
mam uma dupla existência: a deles e a da cidade propriamente dita. Em cada
lugar que experimentam, que aportam, fincam marcos territoriais, produ-
zem e consomem imagens. Promovem um estatuto singular de suas exis-
tências e acreditam, muitas vezes, que têm de definir, dominar e defender
esses territórios. É nesse campo específico da necessidade de se fazer ver, de
alardear suas presenças, de intensificar movimentos e estabelecer táticas de
ocupação do espaço que se configuram a insegurança e o medo. Vale assi-
nalar que o medo que assola de forma coletiva esse início de século não re-
presenta uma prerrogativa de quem, deliberada ou acidentalmente, provoca
o terror. O medo se constitui num ampliado chão que abriga e confronta os
desiguais e os diferentes.
O medo justifica o esvaziamento dos espaços públicos, a busca res-
trita do encontro entre pares, as redes fechadas de solidariedade. Sennett,
quando trata do “declínio do homem público”, exemplificando o final do sé-
culo XIX, destaca a noção “de que estranhos não tinham o direito de falar, de
que todo homem possuía um escudo invisível, um direito de ser deixado em
paz” (1988, p. 43). Obviamente, essa tendência se aguça no início do século
XXI e a juventude, paradoxalmente, experimenta polos opostos dessa ten-
são; alardeia sua presença no âmbito da cidade e provoca assim sua inserção
218 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

e filiação em grupos fechados. A palavra de ordem é se mostrar, mesmo que


o preço a ser pago pela superexposição redunde na necessidade de armadu-
ras, de blindagens dentro de um coletivo bem delimitado.4
A juventude incorpora os apelos da contemporaneidade. É neces-
sário ocupar a cidade com o movimento multiplicado de corpos: galeras,
turmas, grupos, gangues. O impacto do coletivo, do grupo, ultrapassa a
inexistência dos corpos individuais e produz um imaginário de força entre
os que pactuam do mesmo imperativo. Fazer ruídos, promover impactos,
propositalmente, em algumas circunstâncias, intensificar emoções até que o
medo seja acionado. O jogo social empreendido através da movimentação
de turmas juvenis, em movimentos inusitados pela cidade, provoca tensões
e retroalimenta o medo. Norbert Elias (1992, p. 79) destaca a importância
da excitação nos jogos e torneios:
Movimentar, estimular emoções, evocar tensões sob a forma de uma exci-
tação controlada e bem equilibrada, sem riscos e tensões habitualmente
relacionados com o excitamento de outras situações da vida, uma excita-
ção mimética que pode ser apreciada e que pode ter um efeito libertador,
catártico, mesmo se a ressonância emocional ligada ao desígnio imaginário
contiver, como habitualmente acontece, elementos de ansiedade, medo ou
desespero.

A excitação e a ansiedade liberadas nos jogos, a necessidade de adre-


nalina tão apregoada pela juventude, provavelmente tem ultrapassado o mo-
mento específico dos confrontos no âmbito dos torneios. A violência torna-
se um ampliado jogo social, deslocando os enfrentamentos para qualquer
lugar e qualquer ocasião da vida. Uma rica discussão efetuada por Márcia
Regina da Costa (1999, p. 4) frente a algumas ideias de Freire Costa (1989)
assinala:
Em muitos casos, a prática da violência pelos jovens potencializa a excitação,
os níveis de adrenalina que corre pelo corpo, mas, principalmente, abre cami-
nho para que eles também possam participar do espetáculo montado pela

4 Juarez Dayrell, no seu livro sobre o rap e o funk na socialização da juventude, destaca que “as trajetórias
desses jovens mostram que, nos limites dos recursos a que têm acesso, eles vivenciam processos riquíssimos
de socialização” (2005, p. 179).
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 219

mídia e ser notados pela sociedade. Neste contexto, a violência, segundo o


autor, seria fruto não do arcaísmo, mas de uma hipermodernidade na qual
todos almejam a fama, mesma que ela dure alguns segundos.

A necessidade de visibilidade pública vai ocorrer nos campos de


enfrentamento de cidades marcadas por “enclaves fortificados” (CAL-
DEIRA, 2000). Cada vez mais os espaços são privatizados, segmentados,
monitorados e destinados a usos específicos e de acessos públicos bem
delimitados. Circular torna-se um modo de transgressão, de ameaça à
ordem e, paradoxalmente, uma tática de poder traçar percursos diferen-
ciados na companhia de grupos de referência.5 O medo é o da mistura,
de que os meios capazes de produzir diferenças, individualidades emba-
racem a visão e dificultem o delineamento das fronteiras e divisas entre
estabelecidos e outsiders (ELIAS, 2000). Os processos de civilização pro-
duzem a necessidade de que cada corpo represente uma trincheira, um
lugar de blindagem. Pessoas civilizadas, como destaca Caldeira (2000, p.
372), também no diálogo com Elias, “aprenderam a encerrar seus corpos,
controlar seus fluidos, evitar a mistura com outros ou com o exterior e
controlar sua agressividade. A pessoa civilizada é um indivíduo autocon-
tido, circunscrito”.
É no rastro dessas iluminações que parte da juventude emerge como
ator sintagmático do início deste milênio. Ela não apenas ultrapassa muitas
das fronteiras da segregação urbana; mistura-se, transcende sua condição de
corpo restrito, assim como acaba exaltando a emergência de um ameaçador
corpo coletivo. De certo modo, a “aparição” do segmento juventude, tão alar-
deada pela mídia, tão exaltada através das campanhas publicitárias, desloca
da cena pública a figura emblemática do adulto, trabalhador, protagonista
das decisões políticas e elemento central no âmbito das relações públicas
e privadas. O adulto representa o ideal do corpo disciplinado, docilizado
(FOUCAULT, 1977), pressupondo-se já ter sido alcançado nessa fase da
5 José Machado Pais, discutindo o fenômeno das “tribos urbanas”, destaca que “a subversão está também
estritamente ligada à conversão (...) e a ruptura dos limites são desafios que proporcionam uma sensação de
liberdade” (2004, p. 17).
220 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

vida o controle das funções corporais e terem sido traçados os contornos do


individualismo.
Como bem destaca Sennett, queremos aqui, no escopo desta
discussão, afirmar que juventude e violência não podem ser apreciados
isolados das conexões entre corpo e cidade, qual seja entre “carne” e
“pedra” (2001). Ele indaga, ao referir-se à Nova York moderna, a uma
cidade multicultural, povoada de estrangeiros desenraizados: “Há al-
guma chance de existirem pontos de contato, mais do que trincheiras
recuadas, entre povos racial, étnica e sexualmente diferentes? (...) Pode
a diversidade urbana refrear as forças do individualismo? Essas questões
começam na carne”.
Esse medo do outro faz com que a juventude, primordialmente
aquela que representa as periferias das grandes metrópoles, simbolize a ame-
aça da dissolvência das fronteiras de espaços e modos de vida. Os termos
que têm nomeado tais apreensões e experimentações, agregando todos es-
ses percursos fora da ordem, resumem-se a um nítido campo de reflexão e
intervenção: o da violência juvenil.
A juventude cristaliza o temor do imprevisível, a irrupção da
descontinuidade no lastro da ilusão da ordem. Tanto seduz, por sim-
bolizar em nível imaginário o movimento incessante da vida e aquilo
que nunca envelhece, como atemoriza, por condensar o referente do in-
controlável, do sub-reptício. Medo e juventude, excitação (adrenalina) e
juventude quase sempre aparecem de forma consorciada. A diluição dos
vínculos entre corpo e cidade, entre lugar e sensação de pertencimento,
tem provocado entre os jovens a ampliação da sensação de solidão em
meio à multidão. Khoury (2003, p. 6) também evoca o vácuo de valores
que possibilita estabelecer liames identitários e “desta forma, pulveriza-
dos e questionados no seu potencial de pertença, parecem colocar-se
no social de forma frágil e transitória, ampliando a solidão dos sujeitos
e amplificando o imaginário social do outro como concorrente, como
inimigo ou estranho”.
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 221

Tudo isso acaba contribuindo para que relações sociais se cons-


tituam sob o signo da violência e do medo. Sentimentos de amor e ódio
passam, primordialmente entre os jovens, a motivar e protagonizar a
tônica das práticas sociais. A paixão pelo time, por exemplo, tem demar-
cado enfrentamentos e disputas entre torcidas organizadas de futebol.
Como enfatiza Bataille (1988, p. 19), “o que designa a paixão é um halo
da morte”. Um objeto fora do sujeito passa a balizar suas ações e seus de-
sejos. “Se for necessário, posso dizer do erotismo: EU perco-me” (1988,
p. 27). Esse perder-se, misturar-se é o que tem mobilizado o corpo dos
jovens a lançar-se por sobre a cidade, seus bairros, seus times, suas prefe-
rências. Onde poderia haver na extensiva paisagem urbana possibilida-
de de engate entre o significante corpo dos jovens e os significados da
cidade? O risco da homogeneização ameaça a própria existência social
dos corpos juvenis remetidos às sombras das periferias. A definição do
inimigo, do outro, é o que permite acalorar e tentar manter o jogo das
diferenças.
Na perspectiva das gangues, não há diferenças entre a ação dos seus
integrantes e os atos de violência cometidos pela polícia. Desse modo,
a maior violência acionada pela polícia, segundo os componentes das
gangues, é não efetuar a diferença, é assemelhar-se a toda uma dinâmica
da violência ensejada e produzida pelas próprias gangues. (DIÓGENES,
1998, p. 206)

Uma prática de excessos, de produção de excitação, cujo mote


consiste em ameaçar e atemorizar tudo que se circunscreve dentro do
mesmo jogo da violência. A violência atinge zonas mais subjetivas e aca-
ba enclausurando o próprio sujeito em limites restritos de sociabilidade
e vida urbana. A obsessão pelos sentimentos provocados através da ex-
periência do medo, da sensação iminente do perigo altera processos de
mudança, define relacionamentos, conduz o traçado das ruas e modifica
a arquitetura das cidades. Sentimentos intensos embalam e dinamizam as
práticas juvenis na cidade.
222 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

E por que não falar de amor e ódio? Os excessos dos corpos

Durante o tempo em que atuei como coordenadora do projeto


Enxame e gestora responsável pela coordenação de políticas públicas para
crianças e adolescentes na Cidade de Fortaleza,6 escutei muitos jovens
construírem suas falas e opiniões ancorados em palavras de amor e ódio.
Os sentimentos intensos fluíam de forma espontânea e natural e entremea-
vam-se ao conjunto das palavras enunciadas. Eram comuns frases do tipo:
“Eu odeio a polícia”, “Eu amo o Ceará” (time local), “Eu odeio a professora
X”, “Eu amo andar de skate”, “Eu vou matar fulano”, dentre muitas outras. As
palavras expressavam, quase sempre, intensidades, idolatrias e o gosto pelo
excessivo que tanto tem balizado a condição juvenil nos marcos da contem-
poraneidade. Retomando Bataille, podemos nos indagar que lugar ocupa a
explosão de sentimentos excessivos, de paixões desenfreadas no compasso
das situações de violência?
No domínio de nossa vida, o excesso manifesta-se na medida em que a
violência domina a razão. O trabalho exige um comportamento em que o
cálculo do esforço ligado à eficácia produtiva é constante. Exige um compor-
tamento racional em que os movimentos tumultuosos que se libertam nas
festas ou, geralmente, no jogo não são admitidos. (1988, p. 36)

Já destacamos o lugar que ocupam os corpos juvenis, essencialmen-


te entre moradores de periferia, no ampliado cenário das grandes metrópo-
les.7 Os ritos do individualismo moderno, a necessidade da eficácia produtiva,
do bom desempenho no mundo do trabalho, produzem corpos cindidos,
corpos-armadura, em contraponto aos movimentos tumultuosos. Por isso, mo-
ver-se em turmas, entrar na galera, pode representar o ganho de uma nova
enunciação, um diferenciado estatuto do corpo. Provavelmente, a noção de
oposição, de rivalidade construída de fora para dentro da galera é o que tem
6 Essa experiência de criação e coordenação da ONG Enxame, como projeto de extensão da Universidade
Federal do Ceará, ocorreu de 2000 até 2004, no Morro Santa Terezinha, em Fortaleza, através de uma bolsa
da Fundação MacArthur. Fui também presidente da Fundação da Criança e da Família Cidadã da Prefeitura
Municipal de Fortaleza, de 2005 a 2009.
7 Camila Holanda desenvolveu um texto elucidativo acerca de “Redes afetivas e culturas juvenis”, 2009.
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 223

possibilitado representar no interior do grupo um lema recorrente: todos por


um, um por todos. O corpo aí se dissolve da condição de ator individualizado
e homogêneo da esfera pública ampliada e constitui outra corporalidade,
com dispositivos próprios de demarcação e signos diferenciais.
Amor e ódio são sentimentos que traspassam o corpo, ativam a sua
potência. Um clamor silencioso sinaliza um sentimento comum entre uma
juventude que carrega o legado de se manter produtiva, adaptável para um
alerta, que pode ser assim traduzido – o corpo não aguenta mais. “Primeiro
ele não aguenta mais aquilo a que o submetemos do exterior, formas que
agem do exterior. Essas formas são, evidentemente, as do adestramento e da
disciplina” (LAPOUJADE, 2002, p. 85). O “eu não aguento mais” não expri-
me, portanto, o signo de uma fraqueza da energia corporal, mas exprime, ao
contrário, a potência de resistir do corpo. Zoar na cidade, enfrentar tretas entre
galeras rivais nos terminais, aparecer em grupo de forma ruidosa e fazer en-
xame8 em áreas nobres da cidade, provocar os cana9, todas essas atitudes podem,
também, ser consideradas atos de resistência. O sentido comum de estar de galera
é o requisito para que se possa pactuar outro corpo, que assim se refaz, por
não aguentar mais. Essa desmesura de um corpo que se ultrapassa tanto pode
experimentar, em determinadas situações, a excitação do ódio, como outros
sentimentos exacerbados de aliança, de dissolvência na conjunção com ou-
tros corpos. Pode-se mesmo comparar ao compasso da dança esse movi-
mento turbilhonar das galeras na cidade, essas experimentações de excesso,
de mistura entre corpos dentro de uma mesma rítmica. “A dança exprimiria,
pois, a impossibilidade de reduzir o corpo a uma géstica (...) a dança é jus-
tamente a zombaria dos signos” (GIL, 1995, p. 233). É nesses momentos
intensos que o corpo não apenas se refaz, zomba dos signos da normatização
e disciplinamento dos espaços urbanos, como também enseja outras formas
de associação e de encontro.
8 Fazer enxame – gíria utilizada pelas gangues e galeras de Fortaleza cujo significado é: impactar, provocar
temor, alardear sua presença no espaço público.
9 O mesmo que polícia.
224 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

O amor aqui simboliza a possibilidade de conectividade com a qual os


jovens tentam romper a “blindagem de corpos fechados à visitação dos afetos”,
de corpos esvaziados de sensações de alta potência. Esse nomadismo juvenil
na cidade, essa necessidade de alardear sua presença, de chocar, de atemorizar,
põe em xeque os escudos dos corpos, deflagra as fragilidades dos limites do
corpo individual. É nesse sentido que os afetos possibilitam uma ocupação ex-
tensiva dos corpos das galeras no espaço homogêneo das cidades:
Quando um certo número de corpos da mesma ou de diversas grandezas
são constrangidos pela acção dos outros corpos a aplicar-se um sobre os ou-
tros; ou, se eles se movem como o mesmo grau de rapidez, de tal maneira
que comunicam seus movimentos entre si segundo uma relação constante,
diremos que estes corpos estão unidos entre si e que, em conjunto, formam
todos os corpos, isto é, um indivíduo que se distingue dos outros por meio
dessa união. (ESPINOSA, 1962, p. 30)

Afeto usado na perspectiva de causar emoções, de sentir-se afetado.


Não seriam os ritos da violência juvenil, controvertidamente, um modo de
produção de crenças na união de corpos entre si? Um modo paradoxal de ex-
pressar a necessidade de existir, ser visto, destacar-se, possuir uma filiação
grupal, provocar reações e sentir-se afetado por outrem? É estranho que
quando a mídia noticia um caso de violência, um acidente de grandes pro-
porções, uma morte resultante de assaltos e furtos, muitos costumam afir-
mar: “Ainda bem que eu não conhecia, que bom que não foi com os meus!”
Esses corpos separados, individualizados, rompidos dos fios que formam
corpos coletivos perderam a possibilidade de se sentirem afetados pelos ti-
ros que ceifaram a vida de um “Mineirinho”. Aqui, retomamos o apelo de
Clarice Lispector:
Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem.
Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a
matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou
o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro
tiro e que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não
nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai
não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o
olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos.
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 225

Seria esse acordo resultante da percepção de que o nosso dilatado


erro, ao interpretar a violência juvenil tão alardeada pela mídia, seja a ideia
de que os crimes, o medo, o ódio estão fora da imagem refletida em nossos
espelhos? O risco de intuirmos, no olhar dos Mineirinhos de todos os dias,
que esse outro somos nós também, provocaria o risco de nos entendermos?
Falar de amor se tornou prerrogativa de romances, folhetins, novelas, reli-
giões e movimentos em nome da paz. Como seria percorrer as trilhas de
um discurso amoroso quando o tema é juventude e violência? Como não
dormir, conservar os olhos bem abertos e poder traduzir palavras que se en-
tendem mesmo sob os estampidos ensurdecedores de tantos tiros?
Este texto, construído a partir de um rico debate no Jubra 2010 com
Luiz Eduardo Soares, pretende ultrapassar as imagens de violência comu-
mente desenhadas sob os reflexos de tantos espelhos. A imagem relativa ao
outro não tem lugar no repertório das paisagens costumeiras, emolduradas
por valores que tomam cada um de nós como personagem e parâmetro do
que significam ordem e desordem. Coincidentemente, buscando pistas para
preparar a palestra, encontrei esta passagem de uma entrevista concedida
por Luiz Eduardo Soares:
P. Então, estaríamos falando de políticas de valorização que objeti-
vam, entre outras coisas, fazer o jovem amar-se?10
R. Se eu não tivesse a minha idade e os livros que escrevi, eu nunca
ousaria falar disso. Acho que hoje ninguém diria: o Luiz Eduardo é um idiota
completo. Pelo menos, idiota completo eu não sou! Mas poderiam dizer: o
Luiz Eduardo é um romântico que está ficando velho e se perdeu na inge-
nuidade e romantismo. Mas eu acho que tenho algum crédito para ousar
e posso dizer que o amor e o afeto jogam um papel fundamental, mesmo
correndo o risco de ser mal interpretado como ingênuo. Então o que você
oferece a este jovem que está em uma crise de falta de amor, sentindo-se re-
jeitado pelos seus semelhantes? O que se pode oferecer a ele é seu alimento
fundamental, o amor para que lutem pelos outros todos.
10 http://www.comcausa.org.br/entrevistas/luizeduardo_entrevista.htm
226 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

A perplexidade provocada pela violência e seus enigmas, no marco


da atualidade, deixa um deserto tão despovoado de respostas, Luiz Eduardo,
que posso quase te assegurar que não seremos chamados de idiotas por falar
de amor. O medo do outro apenas é capaz de cruzar cancelas se os signos
que bradam as violências puderem ser enunciados, decodificados e recon-
duzidos para estratégias de escuta e reconhecimento. Os jovens têm emiti-
do sinais, têm recorrido a formas drásticas para se fazer ver e ouvir. O amor
e seus códigos tornam-se um campo possível e acessível de entendimento,
ou será mais cômodo continuarmos erguendo muros, multiplicando cercas
elétricas, ampliando o contingente policial, armas, viaturas e nossos opacos
espelhos?

Referências
BATAILLE, Georges. O erotismo. Lisboa: Antígona, 1988.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros; crime, segurança e cidadania em São Paulo. São Paulo:
Edusp; Ed. 34, 2000.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CANEVACCI, Mássimo. Antropologia da comunicação visual. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
COSTA, J. F. Narcisismo em tempos sombrios. In: FERNANDES, H. R. (Org.). Tempo do desejo: sociologia e
psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 109-136.
DA COSTA, Márcia Regina. A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? In: São Paulo em
Perspectiva, v. 13, n. 4. São Paulo, out. dez. 1999.
DAYRELL, Juarez. A música entra em cena. Belo Horizonte: Humanitas, 2005.
DE CERTEAU, Michel et al. A invenção do cotidiano; artes de fazer. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura e da violência; gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo:
Annablume, 1998.
DIÓGENES, Glória. Itinerários de corpos juvenis; a festa, o jogo e o tatame. São Paulo: Annablume, 2003.
DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000; na pista de nossos medos. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
ELIAS, NORBERT. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
ELIAS, NORBERT. O processo civilizador; uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
ELIAS, NORBERT. Estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
ESPINOSA, Bento. Ética. Coimbra: Atlântida, 1962.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
GIL, José. Corpo. In: Soma/psique – corpo, v. 32. Lisboa: Enciclopédia Einaudi; Imprensa Nacional Casa da
Moeda, 1995.
HILMANN, James. A cidade & alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
Enigmas do medo – juventude, afetos e violência 227

HOLANDA, Camila. Redes afetivas e culturas juvenis: perambulando com os jovens moradores de rua.
Anais... da II Reunião Equatorial de Antropologia e XI Reunião de Antropólogos do Norte - Nordeste. 19 a 22
de agosto 2009. Natal, RN.
KHOURY, Mauro. Cultura da violência e o medo do outro: observações sobre medos, violência e juventude
no Brasil atual. In: Revista de Antropologia Experimental, n. 4, 2004.
LAPASSADE, Georges. Os rebeldes sem causa. In: Sociologia da juventude III. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
LAPOUJADE, David. O corpo que não aguenta mais. In: LINS, Daniel (Org.). O que pode o corpo? Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2002.
LISPECTOR, Clarice. O mineirinho. In: Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1978.
OLIVEIRA, Danilo Duarte. Jornalismo policial na televisão: gênero e modo de endereçamento dos programas
Cidade Alerta, Brasil Urgente e Linha Direta. Disponível em: http://www.poscom.ufba.br/arquivos/Pos-
com-Producao_Cientifica-dannilo_Duarte_Oliveira.pdf
PAIS, José Machado. Introdução. In: PAIS, José Machado; BLASS, Leila Maria da Silva. Tribos urbanas; produ-
ção artística e identidades. São Paulo: AnnaBlume, 2004.
PERLONGHER, Nestor. Antropologia das sociedades complexas. In: Revista Brasileira de Ciências, n. 22, ano
8, 1993, São Paulo.
RIFIOTIS, Theophilos. Nos campos da violência: diferença e positividade. Florianópolis, 1997. Mimeo.
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público; as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
SENNETT, Richard. Carne e pedra; o corpo e a cidade na civilização ocidental. São Paulo: Record, 2001.
SOARES, Luiz Eduardo. Com causa, cultura de direitos. Disponível em: http://www.comcausa.org.br/entre-
vistas/luizeduardo_entrevista.htm
VELHO, Gilberto. Violência, reciprocidade e desigualdade. In: VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos. Cidada-
nia e violência. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Ed. FGV, 1996.
Casamento forçado e violência.
O contexto francês
Edwige Rude-Antoine1

O casamento é “o mais velho costume da humanidade e o estado da


maioria dos indivíduos adultos”, escrevia Jean Carbonnier (1979,
p. 26), explicando que o legislador francês não o definira no Código Civil
e com razão, já que cada um saberia como entendê-lo. Essa posição não é
partilhada por todos. Basta ler outros autores para perceber que essa mes-
ma palavra engloba situações muito diferentes: “Embora o casamento seja
à primeira vista um fenômeno perfeitamente definido e específico, seus
parâmetros e suas ramificações tornam-se estranhamente fluidos quando
examinados de perto. Além disso, o casamento, tal como reconhecido por
uma sociedade, escapa a toda definição precisa” (BOSWEL, 1996, p. 23).
Pacto de família ou primazia do casal, apelo ao divino ou compromisso
secular, o casamento abrange, assim, situações muito diferentes2 e se en-
contra na encruzilhada de vários sistemas normativos. O laço conjugal é
apreendido não somente pelo direito positivo dos Estados, mas também
pelas regras dos costumes. Para algumas sociedades, o casamento é domi-

1 Diretora de Pesquisa do CNRS Cerses/ Universidade Paris Descartes/CNRS/UMR 8137.


2 J. Gaudemet (1987, p. 14); ver Cl. Bontems (1987, p. 14), que reúne as comunicações feitas no colóquio
internacional sobre os modelos de casamento (ocidentais, africanos, asiáticos, judeu-islâmicos).
230 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

nado pelo princípio da liberdade matrimonial: um lugar é dado à vontade


dos futuros esposos no que se refere à sua escolha matrimonial. Para ou-
tras, o casamento subordina-se a imperativos superiores à vontade pessoal
dos esposos, que se manifestam por controles familiais e por verdadeiras
proibições de certas uniões por razões sociais. As considerações de lugar,
de tempo, de meio social são aqui de grande importância. A história e a
antropologia confirmam que a diversidade das formas, dos ritos e dos fins
do casamento é grande. O casamento forçado não é uma prática limitada a
uma região do mundo, mesmo que se refira principalmente às populações
pobres do globo. Na Europa, os países associam essas uniões aos fluxos
migratórios. O casamento forçado refere-se a crianças, moças e moços
prometidos ou dados em casamento contra sua vontade, a uma pessoa
conhecida ou desconhecida, sem que tenham o direito de recusar. É con-
siderado como um ato contrário aos direitos fundamentais da pessoa. É
reconhecido como uma violência.
Certamente uma violência física quando à imposição do casa-
mento se acrescentam atos que atingem a integridade do corpo, como o
sequestro, os ferimentos corporais e os atos sexuais. Uma violência des-
truidora no sentido em que as coações físicas e morais dizem respeito às
raízes da identidade humana. Uma violência assassina quando, para lavar a
honra, um irmão ou um pai matam. Uma violência econômica no sentido
em que a pessoa submetida a um casamento forçado é frequentemente
obrigada a romper com sua família e se acha numa situação social precá-
ria. Uma violência jurídica quando a pessoa casada contra a sua vontade se
acha encerrada num impasse jurídico. Os que sofrem um casamento for-
çado podem perceber essas violências. Mas podem também submeter-se
a elas por serem incapazes de conceber sua opressão. Pois a violência não
se deixa apreender facilmente. Nem relativa, nem absoluta, ela não é um
objeto que podemos avaliar com a ajuda de instrumentos de medida. Ela
é uma subjetividade encarnada que depende de uma apreciação pessoal e
da vida psíquica de cada um.
Casamento forçado e violência. O contexto francês 231

As questões que se podem levantar são numerosas e complexas,


tanto mais que o casamento forçado não tem a mesma configuração nos
diferentes contextos geoculturais. Neste artigo não tratarei do casamento
forçado em termos de conflitos de cultura, embora essa seja frequentemente
a representação que se faz dele. Mostrarei, a partir de decisões judiciais de
anulação de casamentos, que a violência no quadro dos casamentos forçados
não se pensa unicamente através das coações físicas às pessoas, mas também
através da coação moral. Analisarei os danos de ordem psicológica gerados
por esses casamentos que, frequentemente, trazem pesadas consequências,
pois a pessoa casada contra a sua vontade pode sentir vergonha, humilha-
ção, ser atingida no seu lugar de sujeito. Se no seu emprego em filosofia o
conceito de sujeito implica certo valor moral no sentido em que o sujeito
desfruta de direitos, mas em contrapartida é obrigado a cumprir deveres, a
reflexão tem como objeto as preferências e os desejos individuais confron-
tados com os do grupo familiar ou da comunidade. Ela tem como objeto a
capacidade do sujeito de se pensar e fazer escolhas. Eu me perguntarei sobre
o papel e a eficácia do Estado para lutar contra os casamentos forçados e
mais particularmente sobre a significação de uma infração específica para o
casamento forçado.

Decisões judiciais, coação moral e coação física

O direito francês confere uma importância fundamental à liberda-


de do consentimento no casamento. A vontade de contrair um matrimô-
nio deve ser livre, sem que nenhuma coação seja exercida sobre a pessoa.
Apoiando-me nas decisões judiciais relativas às anulações de casamento, eu
gostaria de mostrar que, no casamento forçado, a violência moral pode estar
intimamente associada à violência física, mas pode igualmente afirmar-se de
maneira autônoma. As decisões confirmam a ideia de que a violência ganha
todo um sentido através do ponto de vista subjetivo da pessoa que sofre um
casamento forçado, e que essa violência adquire sua realidade tangível no
232 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

abalo emocional que ela provoca. Digamos de imediato que é difícil con-
ceber a falta de liberdade do consentimento dos esposos que resultaria de
pressões físicas no momento da cerimônia do casamento. Como a expres-
são da vontade deve ser verbal, não é possível a uma pessoa exprimir sob o
efeito de uma coação direta uma vontade que não seja a sua. No casamento
civil, no momento de consentir e de pronunciar o “sim”, a ausência de von-
tade só pode resultar, portanto, de uma coação moral: o indivíduo dá seu
consentimento para evitar um mal maior. A pessoa escolhe o mal menor. A
violência, se não é aplicada usualmente, também não é rara. As decisões ju-
diciais revelam violências físicas anteriores, deixando subsistir no momento
da celebração uma coação moral.3 Os tribunais puderam acolher demandas
de anulação de casamento com base em argumentos diversos: o consenti-
mento fora obtido a pauladas,4 por imposição hierárquica e paterna.5
Assim, esses casos evidenciam a pluralidade de experiências de co-
ação moral no momento da celebração do casamento e documentam toda
uma filosofia da prática de casamentos forçados. Os juízes fazem o seguinte
raciocínio: uma coação foi exercida com o objetivo de levar a pessoa a con-
trair casamento? Essa coação era suficientemente caracterizada para viciar
seu consentimento? Existia no momento da celebração? Os juízes pesqui-
sam se essa coação consiste em meios injustos (ameaças verbais, pressões
reconhecidas e insuperáveis). Eles introduzem uma distinção entre coação
física e coação moral. No primeiro caso, trata-se de uma coação física direta,
que eles retêm apoiando-se em considerações materiais. No segundo caso,
a coação pode ser física, mas indireta. Os juízes a reconhecem baseando-
se em considerações psicológicas (a influência, o estado mental interno dos
esposos, o efeito à distância e no tempo). A análise das decisões mostra que
vários critérios são considerados pelos juízes para identificar uma coação no
momento do casamento.
3 Ver Cass. Civ., 4 de novembro de 1822, S., 1823, 1, 219; CA Alger, 14 de junho de 1890, DP., 1891, 2, 153.
4 T. C. Tarbes, 28 de agosto de 1822, D., 1891. 2. 153; S., 1893. 2. 4.
5 .C. Montpellier, 16 de julho de 1946, G. P., 1946. 2. 183.
Casamento forçado e violência. O contexto francês 233

Pode-se notar uma sentença da corte de cassação de 17 de março


de 19596 que cassou a sentença da corte de apelação. O marido alegava
que seu consentimento no casamento fora viciado pelas ameaças de que
fora objeto da parte dos pais da jovem, que o consideravam como o autor
da gravidez desta, com quem o obrigaram a casar-se. Os juízes da corte de
apelação rejeitaram essa ação de anulação de casamento, afirmando, de
um lado, que o desejo dos pais de fazer o demandante assumir a paterni-
dade da criança era “essencialmente legítimo” e, de outro lado, que a única
restrição que acompanhava o consentimento dele, a saber a ausência de
oposição da moça a um divórcio ulterior, implicava o reconhecimento
dessa paternidade. Os juízes da corte de cassação consideraram que o es-
poso não tivera a intenção prévia de consentir no seu casamento e que ele
agira unicamente sob coação moral.
Mais recentemente, sublinhemos uma sentença do Tribunal de Col-
mar de 28 de abril de 20057 relativa a um casamento celebrado em 22 de se-
tembro de 2001 entre uma jovem francesa e um jovem argelino. Nesse caso,
o pai admitira ter exercido pressões sobre sua filha, pressões reconhecidas
por vários membros da família e pela mãe da jovem. O tribunal avaliou que
“o fato de a mulher ter ido se refugiar na casa de seu tio alguns dias após a ce-
lebração do casamento confirmava suficientemente que ela nunca desejara
real e livremente essa união”. Os juízes consideraram aqui um argumento
comportamental para pronunciar a anulação – a fuga da moça para a casa de
seu tio poucos dias depois do casamento – isto é, a expressão explícita, por
uma atitude física não agressiva, de que a esposa não podia ter consentido
em seu casamento.

6 Civ. 1re, 17 de março de 1959, D., 1959, 540; Bull. civ. I, nº 162; RTD civ. 1960. 86, Obs. H. Desbois. Cassant
Bastia 25 de março de 1957. Ver também CA Paris, 20 de março de 1872, DP., 1872, 2, 109: Antigamente, era
quase sempre os pais da jovem grávida ou simplesmente apaixonada que intimidavam o sedutor volúvel para
incitá-lo ao casamento. Civ. 1re, 17 de dezembro de 1968, D., 1969, 410; RTD civ., 1970, 154, Obs. Nerson;
Bull. civ. I, nº 325, agora Bastia, 13 de dezembro de 1966 (nessa última espécie, as ameaças foram julgadas
insuficientes para constituir um vício do consentimento).
7 CA Colmar 28 de abril de 2005, Dr. Fam. 1006, nº 1, obs. V. Larribau-Terneyre.
234 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Da mesma forma, numa sentença do Tribunal de Bordeaux de 21 de


fevereiro de 2006, 8 os juízes pronunciaram a anulação do casamento celebrado
entre uma francesa e um marroquino por ausência de consentimento livre no
casamento. O tribunal notou que a moça tinha somente 15 anos quando foi
dada em casamento a um desconhecido. Estimou que diferentes testemunhas
permitiam dar crédito às afirmações da jovem quanto à coação permanente
exercida por sua família, seu marido, seu pai e sua própria mãe, as relações sexu-
ais forçadas, assim como as violências sofridas de seu pai. O tribunal sublinhou
que as cartas escritas pela mulher antes do casamento confirmavam que ela
fora obrigada a se casar com um primo que ela não conhecia. Pretendeu-se
argumentar que os juízes não levam em conta teorias filosóficas segundo as
quais sempre consentimos nas relações que mantemos, mesmo quando so-
mos reduzidos à escravidão. Os juízes deliberam com base em razões de fato
(relações sexuais forçadas, violências físicas, o desconhecimento do seu espo-
so) para reconhecer que a jovem esposa não pudera consentir.
Ameaças de morte, ameaças verbais, violências verbais, pressões ver-
bais, pressões físicas, pauladas, socos, violências físicas anteriores à celebra-
ção da qual um dos esposos é ameaçado em sua pessoa, essas são as situações
consideradas ou interpretadas pelos juízes para reconhecer o consentimen-
to viciado e pronunciar a nulidade do casamento. Os desenvolvimentos pre-
cedentes levam assim a concluir que o conceito de consentimento viciado
foi modificado para adaptar-se à nossa época. A título de exemplo, podemos
citar o caso do temor reverencial. Se sempre se admitiu que o temor reveren-
cial pudesse ser castigado quando acompanhado de violências, no passado,
as decisões judiciais nem sempre eram desprovidas de ambiguidade. Note-
mos duas decisões: a primeira de 25 de abril de 1979,9 em que os juízes de
primeira instância admitiram a nulidade do casamento. No seu discurso de
defesa, o marido sustentava ter dado seu consentimento sob o efeito de uma
8 CA Bordeaux, 21 de fevereiro de 2006, Juris-Data, nº 2006-329876; Dr. Fam. 2007, nº 121, obs. V. Larribau-
Terneyre.
9 TGI Versailles, 25 de abril de 1979, Gaz. Pal., 1979, 2, p. 532.
Casamento forçado e violência. O contexto francês 235

violência injusta e contrária aos bons costumes. Ele tivera conhecimento, na


véspera de seu casamento, de uma ligação de sua futura esposa. Entretanto,
num estado de depressão reconhecido, ele deixara desenrolar-se a cerimô-
nia unicamente pela insistência de seu pai e pelo cuidado em não prejudi-
car a reputação de sua família, que convidara cerca de 700 pessoas, entre as
quais personalidades importantes, cuja vinda seria impossível cancelar. Na
segunda decisão, da corte de apelações de Rouen de 25 de maio de 1992,10
os juízes se negaram a pronunciar a nulidade com base unicamente no te-
mor reverencial, na ausência de violência exercida.
O artigo 5 da lei de 4 de abril de 2006 dissipa esse mal-entendido,
pois, doravante, o consentimento dos esposos ou de um deles dado por te-
mor reverencial para com um ascendente é reconhecido como um vício do
consentimento no casamento e constitui um caso de nulidade.
O casamento forçado surge assim através da coação moral e física. Se-
gundo a análise das demandas de anulação de casamento, o termo “coação” é
usado quando o exercício da liberdade de consentir no casamento é limitado,
ou quando uma união está no centro de um conflito entre os interesses fami-
liares e as preferências e desejos individuais. Vemos assim que o que pode pa-
recer bom para a família pode tornar-se uma afronta à liberdade dos esposos.
Frequentemente, a coação é obra dos pais de um dos futuros esposos. Ela é
raramente exercida pelo futuro cônjuge.11 A coação moral existe quando os es-
posos trazem a prova de que sua decisão de se casar não repousa num acordo
real ou de que suas motivações, que vão, antes, no sentido de uma inclinação a
não se casar, trazem à baila novamente a autenticidade de sua decisão.
A coação pode ter sua origem em acontecimentos exteriores.12 A fal-
ta de liberdade no consentimento supõe, assim, um mal do qual ao menos
um dos esposos seria ameaçado em sua pessoa. Não é necessário que o mal
10 CA Rouen, 25 de maio de 1992, Gaz. Pal., 1994, 2, 594.
11 Ver CA Aix-en-Provence, 14 de maio de 1857, DP 1857, 2, 148.
12 T. civ. Grenoble, 11 de julho de 1923, Gaz. Pal. Tabelas 1925-1930, Vº Casamento, nº 37. Os juízes anu-
laram por violência moral a união contraída por uma francesa com um cidadão americano na Turquia, dadas
as circunstâncias de guerra e o sério risco de prisão.
236 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

esteja presente. Basta que exista, para o futuro esposo, o temor de um mal
cuja realização estaria, a seus olhos, relativamente próxima. Também não se
exige que o mal seja considerável, que ele tenha uma gravidade objetiva em
relação a uma pessoa particularmente corajosa. Basta que ele seja de nature-
za a alterar a vontade daquele que o sofre. A gravidade do mal se reduz a uma
apreciação pelo juiz da determinação do consentimento.13
Nesta etapa da análise, é importante sublinhar que o exercício da au-
tonomia nunca é abstrato, mas se insere sempre no interior de um contexto
específico. Segundo as famílias, pode-se observar significações diferentes do
que seria o parceiro ideal e da forma que uma relação deve tomar. As ex-
pectativas que os futuros esposos depositam em seu casamento explicam a
emergência de dificuldades que essas pessoas encontram enquanto sujeitos
quando seus ideais se chocam com a maneira pela qual os pais percebem a
união. Pode-se desde já sugerir que esses casamentos provocam para aque-
les que os sofrem um sentimento de vergonha, um sentimento de humilha-
ção e uma afronta à subjetivação. Pergunta-se se esses casamentos forçados
podem ser fundadores para o sujeito.

A confrontação das diversas figuras de ideal

A leitura dos casos jurídicos evidenciou que os casamentos forçados


se encontram frequentemente no cruzamento de diversas figuras de ideal do
que seria a vida boa, no cruzamento entre um ideal de autonomia pessoal,
expressão de uma ideologia individualista, e um ideal de construção familiar
e de paz social que repousa sobre a ideologia da partilha no interior do gru-
po familiar. A questão do casamento forçado tem suas raízes num contexto
familiar, cultural, religioso, em que as pessoas casadas contra a sua vontade
lutam com conflitos de valores, de lealdade e de legitimidade. Percebe-se
que essas pessoas sofrem violências de natureza moral e simbólica da mes-

13 CA Aix-en-Provence, 29 de novembro de 1932, DH 1933, Somm. 19: CA Lyon, 21 de março de 1949, S.


tabelas 1949, Vº Casamento, nº 1.
Casamento forçado e violência. O contexto francês 237

ma forma que podem infligir essas violências a seus pais ou sua comunidade.
Quais argumentos (RUDE-ANTOINE, 2005, p. 31) as famílias usam para
perenizar esses casamentos? São eles justificados por princípios sólidos?
O argumento mais recorrente é a proteção da família, que repousa
numa cultura patriarcal e que implica o respeito pela palavra do pai, a impor-
tância de manter a honra da família e a preocupação em preservar a virgindade
da jovem. Mas outros argumentos ligados à sua migração são também usados
pelos pais: seu desejo de reafirmar a identidade de origem, que se cristaliza
mais particularmente na educação de suas filhas, sua vontade de evitar que as
crianças percam suas tradições e seus códigos culturais e se tornem muito “eu-
ropeizadas”; a importância dada ao fato de pagar sua dívida, isto é, de retribuir
os serviços econômicos recebidos. Quando uma família emigra para a França,
a família no país pode, com efeito, oferecer sua ajuda visando a assegurar os in-
teresses econômicos e/ou guardar os bens adquiridos na imigração para a fa-
mília. Essas razões econômicas explicam, aliás, a preferência dada ao casamento
endogâmico entre primos para permitir a transmissão dos bens da família. Um
terceiro argumento, não menos importante, é a preocupação com a proteção
social: as famílias pensam que serão mais bem protegidas e cuidadas, quando
atingirem a terceira idade, por um esposo escolhido no quadro familiar. Um
outro argumento normativo é a crise do casamento e da sexualidade vivida
por certas comunidades e a dificuldade de ir conquistar o outro sexo. É patente
que, para muitos pais, escolher um parceiro num outro grupo religioso pode
representar uma iniciativa oposta à tradição. Os pais argumentam que esses ca-
samentos correm o risco de gerar dificuldades para as crianças. Entretanto, essa
norma de endogamia religiosa perde sua importância quando o casamento
permite adquirir um status social mais elevado. A norma de endogamia social
prevalece então sobre a norma de endogamia religiosa. O casamento é assim
percebido pelos pais como podendo contribuir para o poder, o crescimento e
a perpetuação do grupo, pois as crianças a nascer pertencerão a ele. Em outras
palavras, os pais avaliam que os casados ganharão direitos e terão um status pri-
vilegiado segundo sua cultura.
238 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Uma das questões centrais é, portanto, a de saber se esse ideal familiar


que as crianças não escolheram deve prevalecer sobre o ideal das crianças ou
se esse ideal familiar deve ser considerado em função do ideal das crianças e
segundo uma ordem de importância que repousa sobre sua escolha refletida.
Numa sociedade democrática e pluralista, nenhuma figura de ideal pode pa-
recer mais (ou menos) coerente que outra. Isso justificaria analisar a prática do
casamento forçado considerando-se as diversidades da instituição, as expec-
tativas em relação ao laço matrimonial, as maneiras de se casar e as inscrições
simbólicas usadas no mundo de hoje. Podemos admitir que a liberdade dos
pais seria reprimida se nossa sociedade não permitisse às famílias preservar seu
modo de vida tradicional, como, por exemplo, perpetrar casamentos arranja-
dos que teriam sido aceitos com toda franqueza pelos esposos. Ao contrário,
não podemos abstrair o conflito de normas e de valores encontrado pelas pes-
soas casadas contra a sua vontade, que em geral cresceram numa sociedade
baseada em princípios individualistas. Se a liberdade de decidir se casar é im-
portante, o exercício equilibrado dessa liberdade deve ser protegido e prioriza-
do, em vez de se ver negado pela prioridade atribuída a práticas tradicionais. É
injusto que jovens homens e mulheres não sejam livres para se casar segundo
seu próprio ideal. É injusto que as pessoas não possam decidir por si mesmas
a que tipo de família desejam aderir. Certamente, não é fácil decidir entre duas
figuras de ideal contraditórias. A solução seria considerar o casamento forçado
unicamente sob o ponto de vista dos danos que ele pode causar a um ou aos
dois esposos. Ou, então, interrogar sobre os eventuais benefícios psicológicos
e morais que tal ato traria para os esposos. Mas sempre há a hipótese de que o
casamento forçado prejudica a pessoa que o sofre.

O sentimento de vergonha e a afronta à subjetivação

Segundo o tesouro da língua francesa, a vergonha é “um fato de


opróbio gerado por um fato, uma ação que transgride uma norma ética ou
uma conveniência (de um grupo social, de uma sociedade) ou por uma ação
Casamento forçado e violência. O contexto francês 239

considerada aviltante em relação a uma norma (de um grupo social, de uma


sociedade). Mas é também um sentimento de dolorosa humilhação que se
experimenta ao se tomar consciência de sua inferioridade, de sua imperfei-
ção diante de alguém ou de alguma coisa”. Nesse primeiro passo que sub-
mete uma pessoa a um casamento que ela não escolheu, há esse sentimento
de vergonha experimentado, esse momento em que a pessoa esconde sua
situação, que considera como um mal. Há uma insatisfação acompanhada
de todas as repreensões mais ou menos justificadas que a pessoa faz a si mes-
ma por ter-se deixado casar contra a sua vontade. Há esse sentimento de
humilhação quando a pessoa percebe esse casamento como a preparação
para a perda de seu status moral e social. Pois, mesmo quando as práticas
matrimoniais forçadas não são cercadas de violências físicas e se limitam à
chantagem, os casados contra sua vontade são atingidos na raiz mesma de
sua identidade. Os esposos podem sentir vergonha por considerarem esse
casamento forçado como humilhante.
Vincent de Gaulejac (1996, p. 63-68), que analisou as dimensões
da vivência da vergonha, mostra que esta é frequentemente acompanhada
de um sentimento de ilegitimidade, de um sentimento de inferioridade, que
ela faz desmoronar a imagem parental idealizada e conduz à experiência da
dor de enfrentar identificações necessárias mas impossíveis. Essas quatro di-
mensões podem ser encontradas na vivência dos casamentos forçados.
Serge Tisseron (1992, p. 33-45) interpreta a vergonha como uma
ruptura de investimentos experimentada pelo sujeito. Ele distingue três ti-
pos de ruptura de investimento, a ruptura de investimento de vínculo, a de
objeto e finalmente a narcísica. Assim, a ruptura de investimento de vínculo
faz a pessoa casada contra a sua vontade correr o risco de ser excluída de
seu grupo de pertencimento. Esse investimento repousaria sobre a necessi-
dade que todo ser humano tem de se desenvolver num meio ambiente so-
cial. Essa necessidade do vínculo pode, além disso, levar a pessoa a preferir
um casamento insatisfatório à ausência de relação com sua família. Mas a
vergonha da pessoa casada contra a sua vontade pode levar também a uma
240 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

“ruptura de investimento de objeto”, ou seja, à perda dos objetos de amor ou


ainda a uma “ruptura de investimento narcísica”, isto é, a um desacordo com
seus próprios valores, figuras de Ideal. A vergonha pode aqui ser interpretada
como a experiência subjetiva de rupturas de investimento. Ela vem assinalar
à pessoa casada contra a sua vontade um perigo relativo à continuidade de
seus investimentos psíquicos, mergulhando-a num momento de angústia
e de confusão.14 A vergonha abala o sujeito, fragiliza-o em suas referências
identitárias.
Vemos, assim, que o casamento forçado engendra uma discordância
entre a imagem de si que a pessoa deseja oferecer e a imagem que a esfera
familiar envia, fazendo vacilar o sentido de si do sujeito, sua experiência de
valor próprio, sua humanidade e às vezes até mesmo sua dignidade. A fun-
ção significante e a regulação narcísica podem então se tornar rígidas, num
processo mortífero em que o sujeito se rebaixa à condição de objeto, atingi-
do nos fundamentos de todo o seu ser.
Podemos também pensar que essa vergonha exteriorizada deve ser
ligada com toda a violência da humilhação, toda a violência do arcaico, com
toda a vergonha da história familiar, desses pais e mães imigrados. Quando
o sujeito é reduzido a um estado de passividade na vergonha, quando ele só
se vê como objeto de desprezo, ele é privado do valor moral de sua condição
que o impedia de ser reduzido ao estado de objeto. O sujeito é então amea-
çado na sua aptidão para se pensar. Ele não pode mais se definir em relação
ao outro, em relação a seus laços com os objetos de amor e a seu grupo.
A subjetivação é, assim, esse trabalho psíquico de ascender à posição
de sujeito, que implica a construção de uma distância em relação ao que é
imposto do interior (busca de conformidade a um Ideal), assim como do
exterior (conformidade a normas, respeito às regras, deveres, submissão a
14 Para Serge Tisseron, a vergonha não é um sentimento, mas, antes, uma angústia: “É uma angústia e
uma das piores que existem. Ela é a angústia de ser abandonado a uma solidão definitiva e sem salvação,
condenado a uma errância sem fim, e mesmo a uma exclusão do gênero humano (...). Toda vez que o
pensamento corre o risco de se aproximar, ela se apavora. A vítima é tomada de angústia ou de confusão”
(TISSERON, 1998, p. 34-36).
Casamento forçado e violência. O contexto francês 241

interditos). Não há certamente uma intenção consciente dos pais de pro-


vocar a vergonha na filha ou filho. Também não há na pessoa que aceita o
casamento arranjado por seus pais uma consciência de que ela corre o risco
de sentir vergonha pelo fato de ter preferido se conformar ao código social
de seu grupo em vez de agir como sujeito autônomo. Entretanto, se o pro-
cesso da vergonha pode dar lugar a uma afronta mais ou menos acentuada à
subjetivação, pode também oferecer uma modalidade particular de expres-
são do sujeito.

Uma violência fundadora...

Contudo, o que se observa pelos testemunhos de pessoas casadas


contra a sua vontade é que o casamento forçado pode ser uma violência fun-
dadora. Quando as associações, as mobilizações diversas ocupam o espaço
das reivindicações em termos de direitos, de ações sociais, a esperança reen-
contrada por essas pessoas casadas à força fecha o espaço da violência.
O casamento forçado e as violências que o cercam podem, com
efeito, constituir um momento decisivo na formação do sujeito. O percur-
so kantiano (indo no sentido da saída da servidão para a emancipação) da
violência encontra aqui toda a sua expressão. Essa lógica do raciocínio pare-
ce particularmente verdadeira toda vez que o sujeito, para se constituir, tem
de se arrancar de uma situação alienante ou de dominação extrema que lhe
impedia todo acesso à escolha de sua vida e à capacidade de orientar a sua
existência. Frantz Fanon aborda muito bem esse efeito fundador da violên-
cia, especialmente no seu livro Les damnés de la terre (1961, p. 3), onde ele
explica que, no universo maniqueísta da colonização, o colonizado deve se
constituir de não homem em homem, o que passa pela violência. O sujeito é
uma categoria abstrata que pode encontrar sua realização concreta na ação.
O risco de ser casado à força pôde despertar em certos indivíduos
uma tomada de consciência de sua alienação. Eles fizeram novos amigos,
constituíram redes, participaram da vida de uma associação. O casamento
242 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

forçado pôde ter um efeito decisivo. Ele pode igualmente permitir a uma
pessoa desembaraçar-se da alienação familiar e assim emergir enquanto su-
jeito. O casamento forçado pode também representar, durante certo tempo,
a possibilidade de uma ruptura, a derrubada de um estigma, a possibilidade
da libertação; ele pode definir um momento que se revele necessário à sub-
jetivação. Se o casamento forçado não tem efeito fundador para o sujeito é
porque ele não autoriza o indivíduo a assegurar uma correspondência entre
sentido e ação.
O casamento forçado surge longe da fórmula matrimonial moder-
na, em que a relação íntima entre os casados é o fundamento do acordo con-
jugal, sobre o qual toda influência do exterior é heteronômica. O casamento
forçado é percebido como algo que atenta contra os interesses das pessoas
que o vivenciam. Qual é o papel do Estado, sabendo que, numa sociedade
liberal, ele deve guardar uma neutralidade em relação às diferentes concep-
ções do bem, assegurando a liberdade matrimonial, que é uma liberdade
fundamental, e protegendo os indivíduos contra toda espécie de entrave
que venha limitá-la?

Contra a violência, instrumentos jurídicos internacionais

Os debates públicos tenderam a insistir na importância da ação


legislativa para resolver os casamentos forçados. As leis relativas ao casa-
mento afirmam muito claramente que a validade de qualquer união su-
bordina-se ao consentimento livre dos esposos, dado com vistas a uma
comunidade de vida afetiva e material, ao longo de uma cerimônia pú-
blica diante do juiz de paz ou do agente diplomático ou consular. Assim,
é possível anular qualquer casamento por ausência de consentimento ou
por vício do consentimento. Mas essas leis da família não são as únicas a
reger o casamento. Instrumentos jurídicos internacionais lembram que a
liberdade do casamento é um direito fundamental da pessoa humana e
que toda união forçada é uma violência.
Casamento forçado e violência. O contexto francês 243

É assim que, em 30 de abril de 2002, o Comitê dos Ministros dos


Estados-membros do Conselho da Europa adota uma recomendação so-
bre a proteção das mulheres contra a violência (Rec (2002)5), menciona os
casamentos forçados entre os atos de violência e incita os Estados a tomar
todas as medidas para proibir essas uniões concluídas sem o consentimento
das pessoas envolvidas.
Da mesma forma, em 5 de outubro de 2005, a Assembleia Parla-
mentar do Conselho da Europa adota a Resolução 1468 e a Recomenda-
ção 1723 (2005) “Casamentos forçados e casamentos de crianças” e incita
novamente os Estados-membros a tomar medidas legislativas para melhor
regulamentar o direito ao casamento e prevenir as uniões impostas: fixar a
idade legal do casamento aos 18 anos, tornar obrigatória a declaração de
qualquer casamento, verificar o consentimento dos esposos e facilitar a anu-
lação dos casamentos forçados.
Mais tarde, essa mesma Assembleia Parlamentar sublinha sua pre-
ocupação diante dessas “violências graves e repetidas” contra os direitos do
homem e da criança que constituem os casamentos forçados e os casamen-
tos de crianças e lembra que ela considera como estupros as relações sexuais
impostas às pessoas casadas à força. Ela recomenda aos Estados-membros
do Conselho da Europa modificar sua legislação penal. Da mesma forma, a
Resolução 843 (IX), de 17 de dezembro de 1954 da Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas menciona que certos costumes relativos
ao casamento são incompatíveis com os princípios enunciados na Carta das
Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Final-
mente, a Assembleia Parlamentar faz suas as considerações da Convenção
de 7 de novembro de 1962 relativa ao consentimento no casamento, à idade
mínima e ao registro do casamento; ela menciona igualmente o artigo 12 da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que reconhece o direito ao
casamento e prevê que esse direito seja exercido segundo as leis nacionais.
Mas tudo ainda não está resolvido, pois a Assembleia Parlamentar
do Conselho da Europa adota, em 3 de outubro de 2008, a Resolução 1635
244 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

(2008) e a Recomendação 1847 (2008).15 O primeiro texto contribui para


uma melhor tomada de consciência sobre a violência doméstica contra as mu-
lheres e lembra que se trata de uma violação inaceitável dos direitos da pessoa
humana; o segundo texto insiste na necessidade de integrar a dimensão do
gênero na luta contra as violências, entre as quais os casamentos forçados, os
crimes contra a honra, as agressões sexuais (incluindo o estupro marital).
Mas o Conselho da Europa não será o único a se preocupar com
o casamento forçado. Em diversos países, leis regulamentam os casamen-
tos forçados muito mais estritamente que se poderia pensar, amalgamando
quase sempre os casamentos forçados com os casamentos de complacência.
Outras leis ainda criminalizam os casamentos forçados, englobando em sua
definição as violências, as privações de liberdade, as ameaças e as pressões,
ou seja, atos que, por outro lado, são repreensíveis em seu direito penal. En-
tretanto, se medidas são tomadas para prevenir ou reprimir esses casamen-
tos forçados, eles nem por isso desapareceram.

Uma infração específica para o casamento forçado...

Sublinhemos desde já que na França não existe infração específica


para o casamento forçado. Essa prática é tratada com sanções por intermé-
dio de outras infrações que proíbem comportamentos repreensíveis próxi-
mos a ela: estupro entre esposos, rapto, sequestro, violência, tráfico de seres
humanos para exploração sexual. Lembremos que, durante muito tempo,
admitiu-se que o marido podia obrigar sua esposa a ter relações sexuais, por-
que a acusação de estupro não era aplicável entre esposos, já que a coação
não era considerada ilegítima, salvo em circunstâncias particulares.16 Mas,
no fim dos anos 1990, a câmara criminal admitiu a repressão ao estupro en-
tre esposos, mesmo quando as relações sexuais impostas com ou sem vio-
15 Resolução 1635 (2008) e Recomendação 1847 (2008) “Combater a violência contra mulheres: por uma
Convenção do Conselho da Europa, 36ª sessão”.
16 No caso de uma violência na presença de um terceiro. Cf. T. Grenoble, 4 de junho de 1980, D. 1981, IR,
151.
Casamento forçado e violência. O contexto francês 245

lências não são contrárias à natureza, e facilitou essa qualificação, decidindo


que “a presunção de consentimento dos esposos aos atos sexuais realizados
na intimidade da vida conjugal só valia até prova em contrário”.17
Por uma sentença emitida em 27 de novembro de 1996, a Corte Eu-
ropeia dos Direitos do Homem validou a noção de estupro entre esposos,
referindo-se ao “caráter por essência aviltante do estupro”, bem como a uma
concepção civilizada do casamento.18
O artigo 222-22 do código penal, modificado pela lei de 4 de abril de
2006, que reforça a prevenção e a repressão das violências no seio do casal ou
cometidas contra os menores, introduzindo no dispositivo penal a incrimina-
ção expressa do estupro no seio do casal, não faz senão consagrar, portanto,
essa jurisprudência antiga e dá uma definição do estupro que privilegia a au-
sência de consentimento da vítima, fazendo-se abstração da natureza do laço
que a une ao autor da infração. De resto, a lei penal francesa exclui toda noção
de consentimento qualquer que seja a idade do autor se a vítima tiver menos
de 15 anos. O artigo 222-24, 11º do código penal prevê que o fato de o estupro
ser cometido pelo cônjuge ou companheiro constitui uma circunstância agra-
vante do estupro, cuja pena é de vinte anos de reclusão. As relações sexuais no
casamento implicam o consentimento de cada esposo e não podem, portanto,
ser objeto de coação. Lembremos que o dever conjugal repousa sobre o respei-
to mútuo. Não se pode mais basear-se unicamente no consentimento dado no
momento da celebração do casamento. O consentimento deve ser reiterado,
para que as relações sexuais entre esposos escapem da incriminação.
Em outras palavras, as relações sexuais no quadro de um casamento
forçado são consideradas como um estupro entre esposos. Os pais de uma
menor são considerados como cúmplices desse estupro. O juiz encontra-se,
assim, numa posição delicada, devendo sugerir uma forma de moral sexual en-
tre os esposos. Pois a lei mantém uma parte de sombra entre o consentimento
17 Sobre essa questão, ler M. Iacub (2002); ver especialmente Crim. 11 de jun. 1992, D. 1993, 117, nota
M.-L. Rassat; JCP 1993. II. 22043, nota Th. Garé; Cour EDH 22 de nov. 1995, RTD civ. 1996. 512.
18 Rev. sc. crim., 1996, 473, Obs. R. Koering-Joulin.
246 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

e o estupro. Não haveria, com efeito, um paradoxo entre a manutenção de lege


ferenda em matéria civil do dever conjugal e essa entrada simbólica no código
penal do estupro conjugal? Como bem escreve Anne-Marie Leroyer, “a pro-
teção do consentimento dos esposos ao ato sexual coaduna-se mal com essa
obrigação pessoal, cuja manutenção confere à instituição matrimonial uma
abordagem que a fragiliza” (2006, p.402). Protegidos pelo direito penal (que
delimita os contornos de uma ordem pública de proteção em matéria ma-
trimonial) contra qualquer coação nas relações sexuais e, portanto, no cum-
primento do dever conjugal, os esposos ainda têm a obrigação de respeitar
esse dever conjugal?, interrogaram-se os civilistas (LAMARCHE; LEMOU-
LAND, 2009). Qual é o sentido da noção civil de comunidade de vida? O que
define esse living together? (CRÉPEAU, 1997, p. 487).
A aplicação dessa legislação sobre o estupro entre esposos para im-
por sanções aos casamentos forçados não surge com uma evidência absolu-
ta. Para que haja reconhecimento de um estupro, é preciso que se constitu-
am ao mesmo tempo o elemento material, isto é, o fato sexual, e o elemento
intencional, isto é, que um parceiro teve a intenção de manter relações se-
xuais sem o consentimento do outro parceiro. O que dizer então do esposo
que se casou sob pressões familiares à revelia do outro esposo? Como saber
se o esposo ou esposa exprimiu ou não seu desacordo por ocasião da relação
sexual? Que elementos podem permitir afirmar que este ou aquele esposo
podia perceber que o outro esposo não queria essa relação sexual? Qual é
a efetividade de uma legislação sobre o estupro quando ambos os esposos
se casaram contra a sua vontade ou quando duas pessoas casadas à força
decidem de comum acordo não terem relação sexual? O que se observa nos
fatos é que as pessoas casadas à força não vão ao tribunal penal, entram so-
mente com um processo civil para obter a anulação de seu casamento.
Deve-se então prever uma infração específica de casamento força-
do? Em certos países, os casamentos forçados foram enquadrados pela lei.
Na Noruega, “quem quer que force alguém a consumar um casamento re-
correndo à violência, à privação de liberdade, a pressões indevidas ou as-
Casamento forçado e violência. O contexto francês 247

sumindo um outro comportamento ilícito ou ameaçando assumir um tal


comportamento é condenado por casamento forçado. O casamento força-
do é punido com pena que pode chegar a seis anos de prisão. Um cúmplice
incorre na mesma pena”.19
Essa disposição penal insere-se num programa de ação contra os ca-
samentos forçados, iniciado pelo governo norueguês. Trata-se de lutar con-
tra os casamentos forçados e de oferecer uma ajuda e um apoio às pessoas
expostas a essas uniões. O casamento forçado seria, segundo esse artigo do
código penal norueguês, todo comportamento ilícito destinado a obrigar
uma pessoa a contrair um casamento. É, portanto, o dolo especial, o objeti-
vo particular a atingir que caracteriza o casamento forçado e o afasta, assim,
das infrações de direito comum. O texto é amplo, pois engloba na definição
de casamento forçado as violências, as privações de liberdade, as ameaças
e as pressões, isto é, atos já repreensíveis pelo direito penal norueguês. As-
sim também na Alemanha, a emenda do § 240, sub-seção 4,-2 nº 1 do códi-
go penal,20 pela lei nº 37, que entrou em vigor em 19 de fevereiro de 2005,
modificando o código penal, classifica expressamente o casamento forçado
como um exemplo de caso de coação particularmente sério nestes termos:
“forçado a entrar no casamento”; a pena mínima é de seis meses de reclusão,
podendo chegar a cinco anos. Quando há tráfico de seres humanos para
exploração sexual, uma pena mais consequente é possível.21
Como nesses dois países, dever-se-ia propor uma infração específi-
ca do casamento forçado? Essa é a questão que eu gostaria de debater aqui.
Para não criar uma infração específica, podemos evocar argumentos relati-
vos à noção de liberdade e insistir no fato de que as imposições físicas, psico-
lógicas e sociais nunca são de tal envergadura que possam impedir a ação da
pessoa que, mesmo numa situação considerada de vulnerabilidade, perma-
nece responsável por seu casamento forçado, e não outra pessoa. Podemos
19 Art. 222, alínea 2 do código penal norueguês.
20 Strafgesetzbuch, StGB.
21 § 232 StGB.
248 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

acrescentar que o Estado deve permanecer neutro diante dos ideais da vida
boa, entre os ideais individualistas e os tradicionalistas, e que ele não tem de
privilegiar um em detrimento do outro. Podemos também considerar o ca-
ráter reversível do casamento forçado, já que a pessoa casada a contragosto
tem sempre a possibilidade de requerer a anulação de seu casamento ou o
divórcio, portanto a possibilidade de sair dessa união.
Mas não é essa via que seguirei, pois muitos outros argumentos vêm
reforçar a ideia da necessidade de uma infração específica. Com base no pen-
samento kantiano, podemos dizer que aqueles que forçam uma pessoa a se
casar não a tomam como um fim, mas como um meio. Os pais, fazendo um
acordo com outra família, instrumentalizam seu filho(a). A pessoa casada a
contragosto é um meio para os pais realizarem seus próprios objetivos, e não
os de seu filho(a). Da mesma forma, se nos apoiarmos no princípio do não
prejuízo formulado por John Stuart Mill, que “quer que os homens só sejam
autorizados, individualmente ou coletivamente, a inibir a liberdade de ação
de quem quer que seja quando para impedi-lo de prejudicar a outros” (1990,
p. 74), pode parecer perfeitamente legítimo, dado que o casamento forçado
prejudica os esposos, que o Estado intervenha para prevenir esses atos e ulte-
riormente impor sanções aos que os cometeram ou foram cúmplices deles.
Os esposos não são livres, porque seus pais lhes impuseram o casamento.
Os esposos não têm livre-arbítrio, seja porque não têm suficiente maturi-
dade por causa de sua idade no caso de casamento de criança, seja porque
estão sob o efeito de um temor reverencial. Os esposos não são livres por-
que vivem num quadro social em que a escravização é total. Podemos ainda
sustentar que o casamento forçado é uma afronta ao direito fundamental do
respeito à vida privada e familiar. A escolha do parceiro, a escolha de se casar
são ações fundamentalmente privadas. A liberdade do casamento deve ter
prioridade quando ela entra em conflito com outros valores, uma prioridade
fundada na importância de decidir a escolha de seu cônjuge, o momento de
seu casamento e sua sexualidade. Podemos entretanto nos interrogar sobre
a questão da autonomia no caso particular do casamento arranjado, em que
Casamento forçado e violência. O contexto francês 249

os esposos participam da negociação de sua união. No estado atual do nosso


direito e da filosofia política que inspiram nossas democracias, parece difícil,
nessas situações de casamento arranjado, decidir no lugar dessas pessoas se
elas são livres ou não. Isso não significaria defender a liberdade dessas pesso-
as desejosas de aceitar um casamento arranjado privando-as da liberdade de
fazê-lo? A democracia comporta o risco de ver pessoas aceitarem um casa-
mento arranjado que pode prejudicá-las.
Com base nesta análise, pode-se considerar que o direito deve prote-
ger as pessoas reconhecidamente casadas à força. Para dizê-lo de maneira mais
precisa, sugere-se criar uma infração específica de casamento forçado que leva-
ria em conta que certas ofensas nesses casamentos são mais graves que outras.
Poder-se-ia tomar como orientação uma concepção ampla do casamento for-
çado, que possa incluir os diferentes graus do ato (as violências, as privações de
liberdade, as ameaças, as pressões, a utilização de objetos), o status das pessoas
em questão (vítima menor ou não, membro da família, vínculo mais ou menos
próximo e de independência entre o autor do ato e a vítima), e prever sanções
mais ou menos agravantes segundo as circunstâncias.

Referências
BOSWEL, J. Les unions du même sexe dans l’Europe antique et médiévale. Paris: Fayard, 1996.
CARBONNIER, Jean. Droit civil, t. 2. Paris: PUF, 1979.
CRÉPEAU, P.-A. Mélanges. Québec: Université Mc Gill; éd. Y. Blais, 1997.
FANON, Frantz. Les damnés de la terre. Paris: Maspéro, 1961.
GAUDEMET, J. Le mariage en occident. Paris: Cerf, 1987. p. 14.
GAULEJAC, Vincent. Les sources de la honte: sociologie clinique. Paris: Desclée de Brouwer, 1996.
IACUB, M. Le crime était presque sexuel et autres essais de casuistique juridique. Paris: Flammarion, 2002.
LAMARCHE, Marie; LEMOULAND, Jean-Jacques. Répertoire de droit civil. Paris: Dalloz, 2009.
LEROYER, A.-M. Regard civiliste sur la loi relative aux violences au sein du couple. Paris: RTD. civ., 2006.
MILL, John Stuart. De la liberté (1859), trad. P. Bouretz. Paris: Gallimard, 1990.
RUDE-ANTOINE, Edwige. Les mariages forcés dans les Etats membres du Conseil de l’Europe: législation compa-
rée et actions politiques. Strasbourg: Comité directeur pour l’égalité entre les hommes et les femmes (CDEG),
Direction générale des Droits de l’Homme, Conseil de l’Europe, 2005.
TISSERON, Serge. La honte: psychanalyse d’un lien social. Paris: Dunod, 1992.
TISSERON, Serge. Du bon usage de la honte. Paris: Ramsay, 1998.
Adolescentes, jovens, direito e família
Questionando saberes sobre proteção
a direitos sexuais e reprodutivos1
Mary Garcia Castro
Ingrid Radel Ribeiro

Premissas para o debate

Neste texto que combina ensaio com referências a pesquisa biblio-


gráfica e com jovens, defendemos a tese de que a juventude, em particular as
de classes populares, mas não somente essas, vem experimentando drásticas
e aceleradas mudanças em relação a gerações anteriores, e aos que cuidam
tanto de sua proteção e controle, legitimados por saberes/poderes institu-
cionalizados, como a família, a escola e o direito, em especial no campo da
sexualidade.
Também defendemos que cada vez mais é maior a diversificação do
que se entende por adolescente e jovem, em termos de experiências de vida
e imaginário, o que põe em questão a propriedade de princípios absolutos e
normas rígidas, por melhor que seja a intenção de saberes e agências, como
as citadas, na codificação da proteção e de direitos de adolescentes e jovens.

1 Adaptado de versão apresentada no IV Jubra – Simpósio Internacional de Juventude, PUC Minas, Belo
Horizonte, 16 a 18 de junho de 2010.
252 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Também de acordo com literatura sobre família vem se ampliando a diver-


sidade de tipos de grupos domésticos em que se situam os jovens no Brasil
(ver, entre outros, BORGES; CASTRO 2007; HEILBORN, 2004; ABRA-
MOVAY; CASTRO, 2006).
O jovem, a jovem, o adolescente e a adolescente são levados em consi-
deração nas leis pela perspectiva de sujeitos de direitos – contudo tais direitos
são codificados por compreensão de um mundo adulto sobre seus sentidos, já
que o jovem, se menor de 14 anos, em algumas situações, e de 18 anos, em ou-
tras, estaria sob a tutela da família e caberia ao Estado colaborar para que essa
instituição realize bem tal tarefa. Nesse ponto algumas questões se impõem:
• Como vem operando o princípio de corresponsabilidade família,
Estado e sociedade, no Brasil em relação a adolescentes e jovens?
(ver na Tabela 1, em anexo, indicador da fragilidade desse princípio,
em particular quanto a trabalho e segurança, já que jovens entre 15 a
29 anos entrevistados em 2004 consideram que estão pior que seus
pais em relação a tais itens);
• Em que medida a família é a melhor instituição para interpretar
os direitos dos adolescentes e jovens, se o foco são os direitos sexu-
ais e reprodutivos, em especial se se considera que tais direitos se
estruturam culturalmente por linhas de gênero e que então valeria
pontuar direitos de jovens homens, de jovens mulheres e daqueles
que se orientam por outras sexualidades que não as codificadas pela
heteronormatividade?
• Note-se que um dos direitos que os adolescentes e jovens mais
defendem quando têm oportunidade de serem interpelados ou se
apresentarem com suas próprias vozes é o direito à autonomia em
dimensões como circulação, lazer e sexualidade2 e o direito à pro-
teção em áreas dominadas pelo mercado, ou seja, uma rede de se-
2 Segundo a Tabela 1 em anexo, os jovens consideram que estão melhor que seus pais quanto a sexualidade,
lazer e possibilidade de participação política, o que sugere que avaliam que em tais dimensões não teriam
necessidade de tutela.
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 253

gurança social, como dispor de abrigo, educação, saúde e acesso a


cultura. Como se contempla o direito à autonomia dos adolescentes
e jovens, no campo dos direitos sexuais e reprodutivos?
• E como fica o jovem, a jovem, o adolescente e a adolescente como
sujeitos de desejo? Ou seja, o que querem os jovens como direitos
no plano da sexualidade e da reprodução, isto é, como sujeitos com
o direito a criar direitos próprios?
Questionamos a idealização dos adolescentes e jovens, o que não
se confunde com a desconsideração sobre a importância de implementar
o que se vem conseguindo contra violências sexuais. Ratifica-se a chamada
para a diversidade, ênfase comum em correntes compreensivo-reflexivas em
ciências humanas (ver MELUCCI, 2005; BOURDIEU; CHAMBORE-
DON; PASSERON, 2002, entre outros), que apelam por reflexão construí-
da na relação sujeitos de conhecimento e práticas de vida, o que desestabili-
za a perspectiva genérica ou absoluta sobre direitos humanos, adolescência,
juventude e sexualidade.

Jovens como sujeitos de direitos: a adolescência


e sua construção cultural

Segundo Castro (2001, p. 29), “um sujeito de direitos só o é na medida


em que sua ação é a priori considerada válida, e, manifestação singular do seu
ser, em que pesem as diferenças entre os diversos agentes”; contudo, adoles-
cência e até juventude são rotuladas como fases de transição para o mundo
adulto, de preparação para tal mundo, ou seja, o adolescente não é considerado
como um outro, um ser pleno, mas um projeto, um vir a ser que, por sua imatu-
ridade presumida, precisa ser tutelado, em especial se o tema é sexualidade.
Bozon (2006, p. 120) chama a atenção para o fato de vivermos em
sociedades que ao mesmo tempo que exigem autonomia dos indivíduos,
esses continuariam sujeitos a distintos tipos de controle, “julgamentos so-
ciais estritos que diferem segundo sua idade e gênero”. Tal linha é comum
254 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

em textos de distintos saberes, no que é apresentado pela mídia e pelo senso


comum, ainda que se reconheça que a atividade sexual não se realiza mais
exclusivamente quando há relações de afeto ou nas uniões de tipo família e
que cada vez mais os adolescentes se iniciam sexualmente em idades mais
novas, ou seja, que “as biografias sexuais se desenrolam cada vez menos line-
armente em função da idade” (BOZON, 2006, p. 137)
A ótica de combinar sentido de responsabilidade individual com
controle social leva a que se prescreva em manuais de saberes competentes
no trato com adolescentes, diálogo entre pais e filhos e entre professores e
alunos e imposição de limites, mesmo que se reconheça que, não somente
para os jovens, a cultura que exalta o dever de ter prazer, de ser feliz inclusive
pelo consumo de coisas, pessoas e afetos, também apela para um ideal de
juventude erotizada, que contagia a todos – todos querem ser jovens.
O corpo jovem é símbolo de uma sexualidade perdida, de pureza,
de frescura, que fascina pela simbologia de transgressão, por desafio pela
rebeldia. Ser jovem é não ter limites e dialogar de acordo com seu dialeto,
comumente estranho aos que não são da tribo. Que diálogo pode haver
entre jovens e adultos quando as relações se dão por tipificações ideais ou
idealizadas? Ou que o/a outro(a) não é compreendido(a), mas tolerado(a)
como um(a) diferente?
Na adolescência e na juventude se sublinham apelos de tempos
de individuação, próprios da modernidade tardia, de buscas, afirmação de
autonomia, privacidade, questionamentos do legado do pai, da lei, do pa-
triarca. Já para os adultos a adolescência é fase temida, ainda que invejada e,
em nome da proteção, valeria traduzir diálogo por imposição de autoridade,
repressões, proibições.
A sexualidade de adultos e jovens é vivida em uma sociedade que
estimula a vontade de correr riscos, sentir adrenalina principalmente se é jo-
vem ou se quer parecer jovem. O jovem conta com uma diversidade de fon-
tes de formação, mais legítimas no imaginário do jovem que dos pais, como
a internet, a mídia e os pares. Ser adolescente em tempos de TIC (Tecno-
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 255

logia da Informação Computacional), individuação, inseguranças e, como


ressalta Kehl (2004), em tempos de desencantos e falta de projetos coletivos
é bem diferente do que ter sido adolescente em gerações anteriores, o que
não capacita adultos a se intitularem formadores pelo vivido, pela idade ou
até pelo afeto e vontade de proteção dos mais jovens.
Em trabalhos sobre adolescência, de fato, é comum se chamar a
atenção para o espanto que essa fase pode ser não somente para os jovens,
mas também para os adultos. Alerta-se para singularidades na demarcação
da entrada e vivência da adolescência, como insegurança em relação à se-
xualidade e às transformações do corpo, que se dariam mais precocemen-
te entre as mulheres, sendo que em muitos casos a primeira menstruação
(menarca) ocorreria aos 11 ou 12 anos; enquanto nos rapazes considera-
se que, por volta dos 14 anos, se daria o crescimento do pênis e a primeira
ejaculação. Mas os limites etários para a conformação biológica que negue
a criança, como a aptidão para a reprodução e principalmente para a “adul-
tice” cultural, ou a representação do e da adolescente em corpos desejados
e desejáveis, de acordo com produções culturais, variariam, como indicam,
entre outros, os trabalhos do Comitê sobre Adolescência do Grupo para o
Adiantamento da Psiquiatria (1994), dos Estados Unidos.
Reconhece-se que os limites etários são arbitrários não apenas para
caracterização biológica de adolescente, já que a vivência da adolescência,
em termos sistêmicos, ou envolvendo perfilhações psicossociais, que, por
sua vez, condicionam a erótica-sexual, dependeria de como se reage a dis-
tintas ambiências de classe e gênero, entre outras.
A associação entre processo biológico e psicológico de formatação
da adolescência e diferenciação em relação ao ser adulto não seria linear,
uma vez que cada cultura tem suas demarcações sobre o que se considera
como estado adulto, chamando-se a atenção para certo grau de arbitrarie-
dade histórica nas convenções sobre “adultice”, o que desestabiliza noções
ou pré-noções sobre maturidade e ser adulto construídas a partir de nossas
normas e nossas experiências, geralmente codificadas por formas de contro-
256 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

le da sexualidade e da agressividade (Comitê sobre Adolescência do Grupo


para o Adiantamento da Psiquiatria, 1994).
Na cultura ocidental contemporânea, existiria uma variedade e certa
confusão entre o que é ser adulto no que diz respeito às normas legais, reco-
nhecimento social ou status e responsabilidades, ou funções sociais.
Em 2003 estimava-se em 200 mil por ano o número de pais adoles-
centes, tendo sido registrados então 31.857 partos em jovens com menos de
14 anos (TRINDADE; BRUNS, 2003, p. 17), mas com a maior probabili-
dade muitos desses e dessas adolescentes não vivenciariam uma “adultice”,
como contar com autonomia financeira, desligamento da família original e
responsabilidade com sua prole, por exemplo.
Pesquisadores sobre sexualidade e adolescência alertam para os pre-
conceitos com que a sexualidade é tratada (HEILBORN et al., 2006; CAS-
TRO; ABRAMOVAY; SILVA, 2004), o que mais encoraja aos adolescentes
a inventarem suas estratégias para driblar repressões e formatar suas respos-
tas, considerando-se informados e poderosos para resistir a investidas que
redundem em violências sexuais e resvalar para outros riscos, como uma
gravidez não desejada ou contaminação por DST/Aids. Tais riscos seriam
condicionados menos por exposição ao exercício da sexualidade e mais por
falta de proteção preventiva ou de se contar com conhecimentos que valo-
rizem a subjetividade, o simbólico, os desejos e o afetivo, dimensões mais
identificadas com culturas juvenis que o cognitivo, racional e para o exercí-
cio do poder/controle.

A idealização sobre o adolescente na modernidade


contemporânea
A idealização de adolescentes e jovens como imaturos, inocentes,
não sedutores, mas facilmente seduzidos, e não aptos tanto para a reprodu-
ção como para o prazer sexual é relativamente recente na história da civili-
zação ocidental, assim como é o conceito de adolescência como entre-fases,
um limbo entre a infância e o ser adulto, datando do século XVIII e mais
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 257

relacionada ao advento da burguesia (TRINDADE; BRUNS, 2003), con-


dicionada à ideia de transmissão de herança, formação para o cuidado com
as propriedades de raiz e as uniões instrumentais, com fins de garantia da
riqueza, do nome e relacionada à criação da escola.
Correntes da psiquiatria interpretam a “sacralização” da criança e do
adolescente, pela presumida inocência, por transferências de frustrações dos
pais com a sua perda de inocência sexual.
Mario Fleig (2010), filósofo e psicanalista com vários trabalhos so-
bre perversão e pedofilia, em entrevista recente utiliza a expressão freudiana
de “sua majestade o bebê”:
Fleig demonstra como é insuportável aos pais perceber quaisquer falhas
em seus filhos, o que “revelaria seu próprio fracasso como filhos. A cena da
criança pura e inocente à mercê do repugnante pedófilo formaria um enco-
brimento justo para o insuportável desejo de uso deste bebê dentro da eco-
nomia psíquica dos pais”.3

A proteção no âmbito legal, assim como o interdito das relações se-


xuais em se tratando dos mais jovens que 14 anos, por exemplo, seria uma
3 Na entrevista a IUH On line, Fleig adverte sobre a importância de somar o saber psicanalítico para melhor
entender a personalidade do pedófilo, nos seguintes termos: “O pedófilo parece estar convencido do que seja
o verdadeiro amor paterno e, por isso, é alguém que sinceramente se dedica a querer fazer o bem da criança
por meio de relações sensuais, amorosas e sexuais. Mostra-se, geralmente, o melhor educador, contrapondo-
se aos costumes rígidos e frios da família, difundindo uma paixão que exige reciprocidade ao propor uma
função paterna e educativa fundada na idealização da pulsão, mais do que na idealização do desejo. Enfim, o
pedófilo acredita que a iniciação da criança no gozo é de importância capital. A diferenciação da pedofilia de
outras formas de perversão não é difícil de ser feita. Basta termos claro qual é o objeto escolhido da perversão
pedófila. A criança poderia ocupar o lugar do fetiche e, assim, a pedofilia se assemelharia ao fetichismo. Mas
não parece ser uma aproximação justa, pois não permitiria estabelecer uma diferença entre o pedófilo e o ho-
mossexual pederasta (que busca a criança pré-púbere) ou a prostituição infantil. A condição necessária para
despertar o interesse do pedófilo é a criança em seu estatuto de anjo, ou seja, a criança que ainda não se definiu
quanto a seu sexo. Em outras palavras, a criança em seu estado de pura inocência quanto às coisas do sexo.
Isso não é condição indispensável na prostituição infantil ou na pederastia, e parece que nem se coloca, visto
que a criança ou o púbere em geral estão cientes do significado sexual da aproximação do adulto. A criança
aparentemente assexuada, no caso do pedófilo, encarnaria a recusa (Verleugnung) contraposta ao reconheci-
mento da diferença dos sexos e, ao mesmo tempo, descortinaria a promessa de uma sexualidade completa, a
ser alcançada por meio da iniciação ao gozo, aqui identificado com a Lei. A criança inocente e ignorante de
sua sexualidade seria então introduzida na verdade da Lei perversa, que se caracteriza por pretender reduzir o
desejo ao gozo supremo, contemplando a estrutura comum das perversões que assim efetiva a radical recusa
da castração, ou seja, da diferença sexual”. Ver também Fleig (2008).
258 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

resposta social fácil encontrada pelas instituições para a ambivalente conju-


gação entre a difusa mensagem de erotização do corpo jovem, produzido
como ideal de consumo sexual no mercado simbólico do desejável, e o fato
do mundo adulto não saber lidar com as experiências quanto à sexualidade
dos e das adolescentes em relações sociais concretas e com a sua própria ou
construções dessa.
De fato, a repressão, a proibição pura e simples, se associa ao des-
preparo de instituições como a família, a escola e a Lei para responder ou
se adiantar a questões muitas vezes não formuladas sobre sexualidade e im-
pulsos sentidos pelos adolescentes e para compreender, sem moralismos,
ou falsos moralismos e pré-conceitos, os códigos que criam os adolescentes
para se comunicarem entre si, seus ritos de passagem ou de pertença à tur-
ma, processo inclusive legitimado para suportar o “luto da infância”, ou seja,
indicar que se está deixando a infância para traz, o que historicamente se faz
presente em tantas culturas.

Outros limites do princípio sobre o dever da sociedade,


da família e do Estado à proteção de crianças, adolescentes
e agora jovens

O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos


de direitos, a serem protegidos pelo Estado, pela sociedade e pela fa-
mília com prioridade absoluta, como expresso no artigo 227, da Cons-
tituição Federal, implica a compreensão de que a expressão de todo o
seu potencial quando pessoas adultas, maduras, tem como precondição
absoluta o atendimento de suas necessidades enquanto pessoas “em de-
senvolvimento”, tem-se como parâmetro, portanto, um tipo ideal, como
já discutido.
Note-se que após intensa mobilização de jovens desde 2003, o
Senado aprovou no dia 7 de julho de 2010, com 52 votos favoráveis e em
regime especial de tramitação, a proposta de emenda à Constituição (PEC
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 259

42/2008)4 que altera a denominação do Capítulo VII do Título VIII da


Carta para atender os interesses da juventude. Esse capítulo, que trata atual-
mente dos interesses da família, da criança, do adolescente e do idoso, pas-
sa a incluir também o jovem, conforme a chamada “PEC da Juventude”. A
proposta, que vai à promulgação pelo Congresso Nacional, modifica ainda
o artigo 227 da Constituição, com o mesmo objetivo de incluir menção ao
jovem. Pela proposta, esse artigo passa a ter a seguinte redação:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescen-
te e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão. (‘PEC da Juventude’. Disponível em: <www:juventude-gov.br>.
Acesso em: 8 jul. 2010)

Qualquer descumprimento dessas prerrogativas legais, omissão


ou falhas na sua implementação revelaria o descumprimento de direitos
fundamentais. Se em termos de intenções a doutrina de proteção integral
se pauta por orientação positiva, amparada pela noção de direitos hu-
manos de acordo com necessidades específicas de cada população, por
outro lado, sua aplicação choca-se com a lógica de algumas ciências hu-
manas, em particular a sociologia e a antropologia, quando esses saberes
insistem que os conceitos devem decolar da dialética entre materialidades
das condições de vida e de projeções, representações, condicionadas por
produções sociais ou, como diria o poeta Fernando Pessoa, combinando
“intenções e gestos”.

4 Aprovada por unanimidade nos dois turnos a PEC da Juventude tramita no Congresso desde 2003. A
luta pela sua aprovação, no entanto, ganhou força com a realização da 1ª Conferência Nacional de Juventude,
encerrada em abril de 2008. O encontro envolveu 400 mil jovens em todos os estados do país e elegeu a PEC
da Juventude como símbolo da luta pela ampliação das políticas públicas de juventude. Nos últimos dias a
campanha pela aprovação da PEC da Juventude foi intensificada e conquistou o apoio de parlamentares e
artistas. Utilizando o site de microblog Twitter para eliminar as dificuldades da mobilização presencial, o Con-
selho Nacional de Juventude (Conjuve), e outras entidades do movimento juvenil convidaram jovens de todo
o país a falar com seus representantes no Senado e exigir a aprovação da proposta”, Catherine Fátima Alves
“Vitória da Juventude”. Disponível em: <www.juventude.gov.br>, última modificação 8/7/2010, 17h51min.
260 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Ao se delegar à instituição família, o dever de proteção haveria que


disccutir a que tipos de família se está fazendo referência, qual a sua classe
social. Importa considerar que condições tem essa instituição para exercer
tal responsabilidade. Considerando-se a complexidade cultural da sexuali-
dade, seus múltiplos sentidos e interações, haveria que mais investigar, caso
a caso, o capital cultural da instituição família para a mesma tutelar, ensinar,
proteger sem controlar e castrar iniciações e aprendizagens pelos jovens.
O conceito de família que se trabalha na área do direito atualmente
no Brasil tende a privilegiar cada vez mais o afeto e a proteção, e não neces-
sariamente a consanguinidade e o parentesco, haja vista a legitimidade da
figura da adoção, o que é de fato um avanço. Mas persiste explícita e impli-
citamente o princípio de hierarquia e de autoridade nas relações entre pais
e filhos menores de 18 anos, que não responderiam, segundo a lei, por seus
próprios atos.
Contudo a realidade brasileira vem indicando o aumento crescente
da “emancipação” dos filhos ou envolvimento em atividades que não con-
tam com a anuência dos pais, de caráter delitivo ou não.
São muitas as mudanças de abordagem também no campo da so-
ciologia e da antropologia sobre a modelagem da família na sociedade e seu
significado para seus membros. Não ao acaso os estudos feministas e sobre
gênero se aproximam com cuidado da unidade família, insistindo em que
há que adentrar nessa e discutir relações entre gerações e entre membros de
diferentes posições quanto a sexo/gênero (BORGES; CASTRO, 2007).
A família como expressão da vida privada é lugar da intimidade,
construção de sentidos e expressão de sentimentos, em que se exterioriza o
sofrimento psíquico que a vida de todos nós põe e repõe. É percebida como
nicho afetivo e de relações necessárias à socialização dos indivíduos, que as-
sim desenvolvem o sentido de pertença a um campo relacional iniciador de
relações excludentes na própria vida em sociedade.
Ao longo dos tempos percebem-se transformações nos modelos
das famílias, geradas por fatores como, por exemplo, a inserção da mulher
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 261

no mercado de trabalho, dividindo com o homem o papel de provedora


de bens e educadora dos filhos. Com isso, surgiram nas relações familiares
inúmeros conflitos entre o modelo de autoridade patriarcal e os mais igua-
litários ou liberais, o que viria acentuando-se em várias sociedades contem-
porâneas (THERBORN, 2006).
A família nuclear em que os pais atuam por consenso e de forma har-
mônica, sem assimetria de poderes, é um modelo idealizado e reproduzido
culturalmente, mas que está passando há longo tempo por questionamentos
(ver, entre outros, SAFFIOTI, 2004; HEILBORN, 2004). Choca-se com
processos de individuação, assertiva de direitos das mulheres, objetificação
das relações entre pessoas via orientação por consumo, novas tecnologias
e outros fatores que modificam as relações de trabalho, as relações sociais
molares e moleculares e entre essas as relações familiares.
O que se observa não é exatamente o enfraquecimento da institui-
ção familiar e sim o surgimento dos novos modelos familiares, que, mesmo
que não sejam aceitos por todos saberes ou disciplinas como famílias, são
reivindicados como tais pelos que as experimentam, o que comprova, como
observa Roudinesco (2003), que nunca se falou tanto em morte da família,
nem nunca essa instituição teve tanto prestigio, sendo objeto de desejo sim-
bólico – o que não significa necessariamente de poder, quer nas relações de
gênero ou entre gerações que coabitam.
A família é o primeiro local de socialização das crianças, onde se
constrói a referência psicológica, afetiva, material e social. Porém, é também
uma das instituições mais afetadas pelo ritmo da modernidade, pelas trans-
formações do mundo do trabalho, da cultura, das relações sociais e de afir-
mação de identidade/individuação, bem como pelas mazelas da economia
política – em particular no caso das classes médias e populares –, o que afeta
os processos de parentalidade, por ambiguidades nas definições de papéis:
ser adulto, ter autoridade, ser pai, ser mãe (SARTI, 1996).
No plano do saber de senso comum, a ideia de autoridade e contro-
le dos pais é também referendada, sendo corriqueira a culpabilizaçao da fa-
262 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

mília quando os adolescentes e jovens não se enquadram em parâmetros de


“normalidade”, o que não necessariamente corresponde a práticas de vida,
sendo comum no noticiário nacional casos de pais recorrendo à lei, à polí-
cia, a correntes no sentido de proteger seus filhos de uma dependência de
drogas ou perseguição pelo trafico e pela própria polícia.

A importância do princípio da corresponsabilidade


na garantia dos direitos de adolescentes e jovens

No âmbito legal da infância e juventude, a responsabilidade pelo


desenvolvimento e pela garantia dos direitos fundamentais da criança e do
adolescente está expressa no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA), ao estabelecer como
... dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e Poder Público
assegurar com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e co-
munitária. (Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069 de 13.7.1999.
Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L 8069htm. Acesso
em: 15 jun. 2010)

Trata-se da doutrina da proteção integral que, através do ECA, disci-


plina os princípios fundamentais das relações jurídicas que envolvam crian-
ças e adolescentes no âmbito da família, da sociedade e do Estado, abraçada
também pela Constituição Federal, no artigo 227, como já visto. Dos dis-
positivos mencionados, extrai-se o conceito de corresponsabilidade pelos
jovens, ou seja, é dever de todos (família, comunidade, sociedade e poder
público) assegurarem os direitos da criança, do adolescente e do jovem.
Contudo, quer ao nível do saber de senso comum, quer do saber
constituído pelo acervo jurídico, considerando jurisprudências ou interpre-
tações da lei, o que mais se verifica é a ideia consolidada acerca da respon-
sabilização unicamente da família pelo “descaminho” dos jovens brasileiros.
Como a família é a instituição que está em contato direto com o jovem,
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 263

costuma-se atribuir a ela a responsabilidade pela má-criação, pelo desvirtua-


mento, marginalização, drogadição e outras mazelas constatadas na realida-
de juvenil. Se um adolescente trafica drogas, a culpa é da família, que não o
orientou corretamente. Mas como garantir que essas famílias acompanhem
seus filhos de perto se o Estado não dá condições para que ela se sustente
com o mínimo de dignidade? A responsabilidade deve recair também so-
bre a figura do Estado, que, pelo princípio da co-responsabilidade, tem papel
fundamental na formação das crianças, dos adolescentes e dos jovens e de-
veria colaborar para a constituição de famílias que possam funcionar como
redes de proteção social.
Segundo o Princípio da Prioridade Absoluta, inserido na Constitui-
ção Federal, a criança e o adolescente devem figurar entre as prioridades das
autoridades públicas, apesar do mencionado princípio contrariar a realida-
de constatada no Brasil. De acordo com o parágrafo único do artigo 4º do
ECA, a garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção
e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos
serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na
execução das políticas sociais públicas; e d) destinação privilegiada de recur-
sos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Caso esses dispositivos sejam descumpridos, os órgãos incumbidos de zelar
pela proteção dos direitos da criança e do adolescente (como o Ministério
Público e a Defensoria Pública) devem escolher a via judicial como uma das
alternativas para forçar o Estado a cumprir suas obrigações.
Na prática, o que ocorre não é bem isso, a atuação do Ministério
Público e da Defensoria Pública não tem sido satisfatória, pois milhares
de crianças e adolescentes continuam inseridos num contexto de carência
de direitos básicos, tais como educação, lazer e saúde. As políticas públicas
destinadas aos jovens ainda são insuficientes para dirimir esses problemas, e
o Estado não vem sendo responsabilizado de forma devida. É notório que,
somente através de uma responsabilização eficaz, a figura estatal irá cumprir
o dever de garantir a prioridade dos direitos da criança e do adolescente.
264 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Conclui-se que o princípio da co-responsabilidade deve ser imple-


mentado para que os direitos e garantias fundamentais das crianças, dos
adolescentes e dos jovens brasileiros sejam preservados.
Mas se em dimensões de segurança social advoga-se a importância
do lugar da família na proteção de crianças e adolescentes e o princípio da
co-responsabilidade, por políticas públicas orientadas para o mínimo exis-
tencial já em se tratando de sexualidade relativiza-se tal tese. Sexualidade
combina subjetividade, trajetórias de vida e cultura de forma complexa. E
mais delicado e polêmico reivindicar a autoridade da família na proteção da
população jovem, considerando inclusive que a sexualidade dos adultos ou
da geração dos pais também não é modela. Os pais tendem a impor padrões
que podem não necessariamente proteger, mas castrar processos de autono-
mia e de criatividade em termos de formatação de direitos próprios.

Os jovens em movimentos sociais, referindo-se a família

É importante em contexto de mudanças nos modelos de famílias e


afirmação de vontades e autonomia por adolescentes e jovens saber o que os
jovens pensam sobre a família e a sua importância em relação a seus direitos
sexuais.
Nesta seção a referência é o estudo construído por técnicas quanti-
tativas (cerca de 2.000 questionários) e qualitativas (realização de 30 grupos
focais com jovens de diferentes tipos de organizações, que inclui a percep-
ção que os jovens têm quanto à instituição familiar). Trata-se de um tipo sin-
gular de juventude, engajada em movimentos sociais, organizações de várias
ordens, com interesses em políticas de juventude. A pesquisa foi realizada no
ano de 2008 em Brasília na 1ª Conferência Nacional de Políticas Públicas
para a Juventude (CASTRO; ABRAMOVAY, 2009).
A família é considerada a principal referência na vida dos jovens para
a maioria dos participantes (63%), principalmente entre os de menos de 18
anos (cerca de 70%). Ao serem perguntados sobre “a instituição em que mais
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 265

confiam”, também a família se destaca no elenco apresentado. De fato, a tese


de que a família é a instituição social mais importante é parte de um léxico
de valores da cultura mediterrânea e ocidental, reproduzida em particular
quando a referência são crianças, adolescentes e jovens. Note-se que, ao se
perguntar sobre “a instituição em que menos confia”, a família aparece com
menos de 1% de indicações.
Mas, como toda generalização é questionável, quando as práticas de
relações sociais são investigadas, há várias referências e críticas em grupos
focais com relação à família, inclusive registrando violências por força de
alinhamento a normas culturais restritivas, como as discriminatórias con-
tra grupos que não seguem o script heterossexual, além de indicações sobre
violências sexuais.
É também lugar-comum na sociedade a ideia de que os “problemas”
dos jovens estariam relacionados à perda de visibilidade social, de exercício
de controle, de educação para valores pela família. No entanto, encontra-se
entre os jovens e na literatura sobre essa população a discussão de que famí-
lia pode vir a ser um empecilho à autonomia dos jovens, principalmente no
plano da sexualidade, ainda que se reconheça seu lugar de amparo quanto à
afetividade e a várias necessidades.
No caso seguinte transcrito, não somente a jovem ressalta a dificul-
dade de diálogo na família, como sua impossibilidade, por sua falta de poder,
para apelar para o sistema legal, apesar de conhecê-lo e saber como fazer:
O meu receio é sempre esse, fala-se tanto sobre a liberdade, direitos sexuais
reprodutivos, orientação sexual, mas dentro da minha casa eu não tenho um
diálogo aberto com a minha mãe e o meu pai, sou sempre reprimida e eu falo
“não, mas a gente tem direito, legalização do aborto e tal”. E minha mãe fala,
“é bonito lá, mas aqui dentro eu não quero”. Então esse é meu medo, o meu
receio. Eu falo, “não, eu tenho a Maria da Penha”, tenho isso, tenho aquilo, mas
eu já fui agredida pelo meu namorado e não fiz nada [nem minha família] e aí
é bem complicado. (CASTRO; ABRAMOVAY, 2009, p. 62)

São as jovens do Grupo Focal de Jovens Feministas e aqueles que inte-


graram o Grupo Focal de Jovens com Jovens de Movimentos LGBT (lésbicas,
266 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais) que mais ressaltam os di-


versos tipos de violências vividas e sentidas, inclusive por parte das famílias.
As violências de distintas ordens “assujeitam” o outro, sem ser ne-
cessariamente explícitas, mas, nos depoimentos, chama a atenção também a
violência física, desde bater para que se mude de orientação sexual, até casos
de violências sexuais.
Os jovens ligados ao movimento LGBT analisam vivências e difi-
culdades de circular em uma sociedade preconceituosa e homofóbica como
a brasileira. A sexualidade é discutida através de uma série de valores, crenças
e vivências, muitas vezes baseados na consideração de que alguns são su-
periores e outros inferiores, principalmente de um ponto de vista religioso
e moral. As/os jovens que pertencem ao movimento LGBT referem-se a
vários tipos de violências homofóbicas na esfera doméstica, na escola e na
sociedade em geral, inclusive abusos sexuais sem que tivessem contado com
uma proteção familiar ou legal:
Essa juventude hoje sofre, principalmente a juventude LGBT, que são os
gays, as lésbicas, os travestis, os bi, os transgêneros. Sofrem a partir do mo-
mento que dentro de casa, na família, quando começam a ter sua orientação
sexual definida. Quando um homem ou um gay começa a se travestir de mu-
lher então, a mãe, os pais ficam sempre numa preocupação por influência da
sociedade. (...) isso é uma coisa nova para alguns pais. Não se pode às vezes
culpar os pais, mas geralmente o jovem é posto fora de casa. Muitas vezes é
violentado às vezes por um tio, por um primo, perde a sua identificação de ser
homossexual (...) (CASTRO; ABRAMOVAY, 2009, p. 85)

De fato, apesar de a família ser considerada a principal referência


para os jovens, os grupos LGBT relatam muitas experiências negativas, con-
flitos e problemas com as suas famílias, em especial jovens lésbicas.
O processo de construção da autonomia para o exercício da orienta-
ção sexual passaria não necessariamente por negar a família, afastando-se do
seu convívio. Insiste-se que os significados da família para adolescentes e jo-
vens são ambivalentes, estruturando-se por afetos, mesmo que mesclados a
violências e por proteções contra hostilidades sociais da esfera pública. Mas
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 267

o que fica patente por alguns depoimentos é a importância dos jovens não
dependerem economicamente de seus pais e não serem tutelados por esses
no plano da sexualidade, o que para muitos vai contra seu direito humano à
privacidade.

Notas considerando cautela sobre saberes relacionados


a direitos sexuais de adolescentes e jovens

Reiteramos a linha já defendida em outros artigos, como o elaborado


para a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores em 2008 (CAS-
TRO; RIBEIRO; BUSSON, 2010) sobre o cuidado de pensar sexualidade,
adolescências e juventudes na cultura e na história, considerando que são
distintas as formas como crianças, adolescentes e jovens são codificados em
saberes e instituições várias quanto à sexualidade, mesmo quando prevale-
ce a intenção da proteção. O que em alguns casos camufla reproduções de
estereótipos e preconceitos em nome de uma normalidade sexual imposta.
Se não se qualifica que tipo de proteção, essa se choca com buscas por indi-
viduação, formas de aprender e viver a sexualidade.
Insiste-se na propriedade do conhecimento de cunho reflexivo-com-
preensivo que pede a colaboração interdisciplinar na análise e ingerência de
dimensões que afetam o humano e, portanto, decolam de relações sociais,
materialidades vividas e construções culturais (BOURDIEU; CHAMBO-
REDON; PASSERON, 2002; MELUCCI, 2005, entre outros).
A sugestão em termos de normativa jurídica e avaliações sociais é
que há que se cuidar de parâmetros rígidos, se estiverem em jogo vontades
de adolescentes e jovens e combinar certa flexibilidade de julgamentos, o
que, havendo insistência, pede colaboração interdisciplinar. A rigidez na de-
fesa de “direitos” construídos por outros pode ocultar violências, imposições
e abusos de poder.
Concorda-se com a tônica da lei de evitar e punir violências que vão
contra os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes, mas há que tomar
268 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

cuidados para não castrar experiências, riscos próprios de um processo for-


mativo mais criativo.
Outra epistemologia sobre saberes que versam sobre direitos huma-
nos e, em particular, sobre direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes e
jovens evitaria os extremos de conhecimentos no absoluto, sem referências
materiais a diversidades de situações, desigualdades sociais e trajetórias sub-
jetivadas. Claro que sem cair no extremo da relatividade cultural que, em
nome da diversidade, pulveriza princípios, diluindo a ética de convivência
nas relações. Ética que sugere que há que discutir sexualidade de forma re-
lacionada a gênero, ou seja o reconhecimento do parceiro como sujeito de
desejo, um outro, uma outra.
O reconhecimento de direitos à diferença e reparação em relação a
desigualdades estaria na base dos movimentos sociais pró-direitos sexuais e
reprodutivos. Contudo, alguns impasses se dão entre o saber jurídico e aqueles
que ressaltam a força de outras esferas da cultura, como pela realização de clas-
se, gênero e geração na contemporaneidade brasileira, e, mais particularmente,
o lugar dos adolescentes e de juventudes de diversas orientações sexuais.
Não ao acaso são principalmente os e as jovens do movimento so-
cial LGBT que mais são críticos ao lugar da família para o exercício de sua
sexualidade, autonomia e o direito de viver uma vida sem preconceitos.
O direito brasileiro tende ao protecionismo da criança e do ado-
lescente e à punibilidade do “adulto” e a delegar à família uma autoridade
por proteção dos direitos sexuais e reprodutivos dessa população, quando
ela não está preparada sequer para lidar com sua sexualidade e tende a se
orientar por estereótipos, estigmas e preconceitos na codificação de tipos
de sexualidade legítimos, o que pode vir a ferir o processo de construção
de autonomia. Processo que, claro, envolve riscos e até violências, a serem
normatizadas, evitadas. Mas há que cuidar para não produzir outras violên-
cias contra direitos como privacidade e autonomia, em especial contra ado-
lescentes e jovens que transgridem os parâmetros do que a família impõe
como sexualidade normal.
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 269

Defende-se que se deve pensar o jovem e o adolescente tanto como


sujeito de direitos como de vontades, e compreender que são sujeitos de de-
sejo, o que não significa orientação por voluntarismo, mas compreender que
tais desejos e vontades decolam de condicionamentos e materialidades vi-
vidas, assim como podem vir a ser expressões de formas de ser ou de querer
ser que não necessariamente têm em instituições como a família e a escola
compreensão e lugar para diálogos próximos aos códigos das adolescências
e juventudes.
Adolescentes e jovens, por outro lado, estão inseridos em uma cultu-
ra globalizada e informatizada, o que os tornam mais “antenados” com o que
ocorre ao seu redor e mais sujeitos a outras fontes de formação que não as de
socialização primária. Por outro lado, há que se considerar o sistema de gênero
que vulnerabiliza as mulheres jovens e aqueles e aquelas que não se enqua-
dram em modelos de heteronormatividade, ou no ideal da família e da escola,
por exemplo, e que também tendem a não contar com o amparo e a proteção
de tais instituições, sendo arriscado que o Estado e a sociedade deleguem às
famílias a tutelagem do desejo dos jovens, a ordenação da vida desses adoles-
centes e jovens que possivelmente serão tratados como não sujeitos.
O direito ao desenvolvimento sexual da criança e do adolescente é
um tema que deve ser encarado através de um novo prisma, sem deixar de
lado a proteção que estes jovens merecem e têm como garantia por serem
ainda vulnerabilizados para a prática de alguns atos da vida civil, mas é pre-
ciso que tabus sejam quebrados e a diversidade de situações vividas levadas
em considerações quando se interpretam doutrinas de forma totalizante,
com codificações rígidas sobre o certo e o errado.
É evidente que o perfil do jovem do século XXI mudou, ele e ela
estão mais engajados, as crianças aprendem as coisas muito mais cedo e,
portanto, há que proteger mais, sem idealizar imagens de pureza e inocência,
e sim relativizá-las, tendo a história trajetórias como parâmetros de avaliação.
Não há critérios absolutos ou baseados em idades cronológicas para a iden-
tificação de adultice ou de maturidade.
270 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

É de suma importância que os julgamentos de casos que envolvam


direitos sexuais de adolescentes sejam embasados na flexibilização da figura
do(a) adolescente, em que se faça uma minuciosa análise de fatores compor-
tamentais, sociopsíquicos, que constituem a realidade do(a) jovem em ques-
tão. Cada caso deve ser examinado de acordo com trajetórias, desprovido de
preconceitos e pré-julgamentos considerando, sim, contextos sociais. Mais do
que crianças, adolescentes e jovens vulneráveis, há situações sociais, relações
em vários ambientes, como na família e na escola que os vulnerabilizam, e é
em relação a tais processos e contra violências que os adolescentes e jovens
necessitam, pedem proteção e/ou apoio, para poderem alçar voos próprios.

Anexo
Tabela 1
Distribuição da população jovem (15 a 29 anos) segundo indicação
se os jovens hoje estão melhor ou pior comparados com seus pais,
segundo algumas dimensões, Brasil - 2004.
Possibilidade de estudar:
Melhor 37.779.681 79,0 %
Pior 8.891.802 18,6 %
Possibilidade de trabalhar:
Melhor 19.445.952 40,7 %
Pior 26.422.643 55,2 %
Possibilidade de diversão:
Melhor 33.221.434 69,5 %
Pior 12.824.034 26,8 %
Condições quanto a segurança:
Melhor 12.001.334 25,1 %
Pior 33.953.186 71,1 %
Quanto à participação na vida política:
Melhor 26.383.131 55,2 %
Pior 17.210.664 36,0 %
Quanto à liberdade sexual:
Melhor 34.429.447 72,0 %
Pior 11.539.385 24,1 %
Fonte: Tabela elaborada a partir de dados da Pesquisa “Juventude, juventudes: o que une e o que separa”. Unes-
co/Ibope (coordenação Miriam Abramovay e Mary Castro, 2006)
Adolescentes, jovens, direito e família. Questionando saberes sobre proteção a direitos sexuais... 271

Referências
ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary (Org.). Juventude, juventudes, o que une e o que separa. Brasília: Unes-
co; Ibope, 2006.
ALVES, Catherine Fátima. Vitória da juventude. Disponível em: <http://www.juventude.gov.br>. Acesso em: 8
jul 2010.
BORGES, Ângela; CASTRO, Mary Garcia (Org.). Família, gênero e gerações: desafios para as políticas sociais.
São Paulo: Paulinas, 2007.
BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J. C.; PASSERON, J. C. Ofício de sociólogo. Petrópolis: Vozes, 2002.
BOZON, Michel. A nova normatividade das condutas sexuais ou a dificuldade de dar coerência às experi-
ências íntimas. In: HEILBORN, Maria Luiza (Org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias
sociais de jovens brasileiros. São Paulo: Garamond, 2006. p. 119-150.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
1998.
BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente: Lei n° 8.069/2000. Fortaleza: CEDCA, 2000.
CASTRO, Lucia Rabello de (Org.). Subjetividade e cidadania: um estudo com crianças e jovens em três cidades
brasileiras. Rio de Janeiro: Faperj; 7 Letras, 2001.
CASTRO, Mary Garcia; RIBEIRO, Ingrid; BUSSON, Shayana. Norma e cultura: diversificação das infân-
cias e adolescências na sociedade brasileira contemporânea. Debates sobre direitos sexuais e reprodutivos. In:
ABMP. Congresso da ABMP 2008. São Paulo: Associação Brasileira de Magistrados e Promotores, 2010.
CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam; SILVA, Loreta Bernadete da. Juventudes e sexualidade. Bra-
sília: Unesco, 2004.
CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam. Quebrando mitos. Juventude, participação e políticas: perfil,
percepções e recomendações dos participantes da 1ª Conferencia Nacional de Políticas Publicas para a Juven-
tude. Brasília: Conselho Nacional de Juventude, 2009.
COMITÊ SOBRE ADOLESCÊNCIA DO GRUPO PARA O ADIANTAMENTO DA PSIQUIATRIA
(EUA). 4. ed. Dinâmica da adolescência: aspectos biológicos, culturais e psicológicos. São Paulo: Cultrix, 1994.
FLEIG, Mario. O pedófilo: vítima de seu desejo e perversão: entrevista especial com Mario Fleig 5/4/2010.
Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe
&id=31773>. Acesso em: 27 abr. 2010.
FLEIG, Mario O desejo perverso. Porto Alegre: CMC, 2008.
GOMES, Roseane dos Santos. Evolução do Direito de Família e a mudança de paradigma das entidades familiares.
Disponível em: http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=1006. Acesso em: 25 fev. 2010.
HEILBORN, Maria Luiza; AQUINO, Estela M. L.; BOZON, Michel; KNAUTH, Daniela Riva (Org.). O
aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. São Paulo: Garamond, 2006.
HEILBORN, Maria Luiza. Família e sexualidade. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.
KEHL, Maria Rita. A juventude como sintoma da cultura. In: NOVAES, Regina; VANNUCHI, Paulo. Juventude e
sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 89-114.
MELUCCI, Alberto. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005.
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
SARTI, Cynthia. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: Autores Associados,
1996.
272 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Soares, Josué Ebenézer de Sousa. A família e a crise de autoridade. Disponível em: <http://www.webar-
tigos.com/articles/810/1/Familia-6---A-Familia-E-A-Crise-De- Autoridade/pagina1.html.> Acesso em: 20
fev. 2010.
THERBORN, Goran. Sexo e poder: a família no mundo 1900-2000. São Paulo: Contexto, 2006.
TRINDADE, Ellika; BRUNS, Maria Alves de Toledo. Sexualidade de jovens em tempos de Aids. Campinas: Átomo,
2003.
Discussões de gênero e sexualidade
no meio escolar e o lugar da jovem mulher
no ensino médio
Wivian Weller
Iraci Pereira da Silva
Nivaldo Moreira Carvalho

A escola tem uma tarefa bastante importante e difícil. Ela precisa se equilibrar
sobre um fio muito tênue: de um lado, incentivar a sexualidade “normal” e, de
outro, simultaneamente contê-la. (LOURO, 2001, p. 26)

Q uestões de gênero, raça e sexualidade ainda representem um foco


de análise pouco explorado no âmbito dos estudos sobre juventu-
de e escola (cf. CARVALHO; SOUZA; OLIVEIRA, 2009). Nos estudos
que buscam estabelecer uma relação entre educação, gênero e juventude,
observa-se que a inclusão da categoria “gênero” ocorre principalmente
em pesquisas empíricas com jovens do sexo feminino, cuja “invisibilida-
de” nas ciências sociais e na educação era recorrente até meados dos anos
1990 (cf. WELLER, 2005). Nos estudos que empregam as categorias gê-
nero, raça e educação observa-se que o foco está voltado, sobretudo, para
o acesso e a permanência de jovens negros na universidade. Esse eixo de
pesquisa pode ser visto como um desdobramento das políticas de ações
afirmativas, especialmente a de cotas para estudantes negros e estudantes
oriundos de escolas públicas nas universidades federais e estaduais, que
não estão destinadas exclusivamente ao público jovem, mas que contem-
274 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

plam principalmente estudantes egressos do ensino médio que se encon-


tram na faixa etária entre 17 e 24 anos.
Pesquisas sobre juventudes empregando as categorias gênero e se-
xualidade começaram a surgir a partir da segunda metade dos anos 2000.
Nesse grupo destacam-se, por um lado, os estudos sobre gravidez na adoles-
cência – um dos principais temas no campo dos estudos sobre juventudes
e sexualidade no contexto brasileiro – e, por outro, os estudos sobre jovens
gays, educação sexual e homofobia na escola que vêm sendo realizados em
programas de pós-graduação de diferentes regiões do país (cf. WELLER,
2008). No entanto, o eixo juventude, gênero, sexualidade e educação carece
de maiores investimentos, com novas pesquisas articuladas a partir de um
recorte empírico e referencial teórico que possibilitem uma compreensão
mais ampla das relações de gênero na escola, de problemas como a gravidez
na adolescência, a construção das identidades sexuais e a intolerância juvenil
frente à homossexualidade.
No presente artigo traremos algumas reflexões a partir de dados
coletados na pesquisa “Juventude, gênero e educação”1 e em três pesquisas
de mestrado defendidas por integrantes do Geraju2 no Programa de Pós-
graduação em Educação na Universidade de Brasília sobre discussões de
gênero no meio escolar.
O primeiro estudo, desenvolvido por Dirce Margareth Grösz
(2008),3 se deteve a analisar as representações de gênero no cotidiano de
professores/as que participaram no ano de 2007 da experiência piloto do
1 Trata-se de uma pesquisa realizada em 2005 e 2006 que contou com recursos do Programa de Iniciação
Científica do CNPq (concessão de bolsas) e do Edital Funpe/UnB.
2 O Geraju é um grupo de estudos e pesquisas em Educação e políticas públicas: gênero, raça/etnia e juven-
tude coordenado pelas professoras Wivian Weller e Denise Botelho da Faculdade de Educação da UnB. Para
mais informações, acesse: <www.fe.unb.br/geraju>.
3 Alguns meses após a defesa de dissertação de mestrado, Dirce Margarete Grösz faleceu, em 22 de julho de
2008, deixando saudades, mas também nos inspirando a seguir trabalhando. Na epígrafe de sua dissertação
deixou-nos a seguinte mensagem: “Pelo amor que ultrapassa o tempo e com ele invade a eternidade. Pela
aprendizagem de uma sensibilidade que me impulsiona a amar de muitos jeitos e formas, mulheres e homens
que se encontram na fronteira, sempre de partida para qualquer lugar em busca de múltiplos desejos e praz-
eres.” (in memorian)
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 275

curso “Gênero e diversidade na escola”.4 Durante a pesquisa de campo, a


autora realizou grupos de discussão5 com profissionais de distintas áreas
do conhecimento com o objetivo de compreender, entre outros aspectos,
como são percebidas as assimetrias de gênero ou situações de discriminação
no âmbito da escola e como a temática de gênero e sexualidade é trabalhada
no cotidiano das práticas pedagógicas da escola. A relevância de estudos e
pesquisas sobre esse tema assim como a utilização dos grupos de discussão
que durante o processo de pesquisa envolve os/as professores/as em um
processo de reflexão sobre suas práticas justifica-se, entre outros, pelos se-
guintes argumentos:
Os professores precisam estar cientes de como suas práticas constroem pos-
sibilidade e espaços para a produção de identidade de jovens em contextos
escolares e, nesse contexto, de como sua própria prática constrói identidade
em relação ao sexual [...] Se estamos preocupados com as culturas e identida-
des de jovens, temos que tratá-los como sujeitos e não objetos. (EPSTEIN;
JOHNSON, 2009, p. 91)

O ensino médio representa uma fase de formação não apenas in-


telectual-cognitiva, mas também de preparação para a vida adulta, um mo-
mento de construção de identidades e de pertencimentos a coletivos distin-
tos. É uma fase de ruptura, de re-construção. Os/as jovens, nesse período,
não estão apenas aprendendo matemática, geografia, física, entre outras dis-
ciplinas. Não é apenas um saber externo, objetivo, sistemático, que importa
nesse momento. É também um período de constituição de um saber sobre
si, de busca de significados do ser homem ou ser mulher, de construção da
identidade sexual. Pesquisas sobre alunos/as do ensino médio devem, por-
tanto, abranger não somente aspectos relativos aos conteúdos considerados
necessários para a formação geral ou para a preparação de suas futuras esco-
4 O curso foi realizado pelo governo federal em com a parceria da Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres (SPM), Ministério da Educação (MEC), Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igual-
dade Racial (Seppir), Conselho Britânico e Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.
Para mais detalhes, ver Pereira e Rohden (2007). Disponível em: <http://www.sepm.gov.br/publicacoes/
publ_genero_diversidade>.
5 Para mais informações sobre os grupos de discussão, cf. Weller (2006).
276 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

lhas profissionais. É preciso desenvolver uma escuta atenta e observação cui-


dadosa de questões identitárias que refletem sobre a vida desses estudantes
e que certamente terão impacto em suas decisões futuras, tanto na trajetória
pessoal como profissional. De acordo com Epstein e Johnson,
esse modelo de conhecimento como interpretação e compreensão que tenta
atravessar grandes diferenças sociais tem que abrir seu caminho em uma cultu-
ra em que os jovens caracteristicamente não são ouvidos e são tratados como
fontes de problemas e perigos, como vítimas ou ameaças, como portadores/as
de patologias de diferentes tipos. (EPSTEIN; JOHNSON, 2009, p. 91)

Nesse sentido, Iraci Pereira da Silva (2006 e 2010) conduziu gru-


pos de discussão com jovens do ensino médio em duas escolas públicas no
Distrito Federal (nas regiões de Planaltina e Taguatinga), e Nivaldo Moreira
Carvalho (2010) realizou sua pesquisa com jovens do terceiro ano do en-
sino médio integrado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnolo-
gia Baiano (Campus Guanambi) dos cursos Agropecuária e Agroindústria.
Buscou-se analisar nesses trabalhos, entre outros aspectos, as formas como
se constituem as relações cotidianas entre jovens do sexo feminino e mascu-
lino no âmbito da escola, as distinções estabelecidas por professores/as em
relação aos/às alunos/as assim como as percepções dos/as jovens estudan-
tes sobre os papéis atribuídos aos homens e às mulheres na sociedade.

O lugar da jovem mulher na escola: vigilância e tratamento


diferenciado por parte dos/as professores/as

No contexto da pesquisa realizada por Grösz (2008), alguns profes-


sores/as declararam existir formas de tratamento diferenciado por parte da
direção, da coordenação pedagógica e dos/as próprios professores/as ao se
dirigiram aos alunos/as. Entre outros aspectos, existe uma espécie de cobrança
ou ainda uma vigilância diferenciada para as alunas e alunos, pautada em este-
reótipos e conceitos sobre formas de comportamento predeterminados para
as pessoas segundo o sexo. Destacaremos a seguir alguns tipos de vigilância
identificados nas falas de professores/as e de alunos/as do ensino médio.
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 277

a) Vigilância para que não as meninas não virem “largadonas” e “ma-


chonas”
Durante os grupos de discussão realizados com professores e pro-
fessoras, Grösz (2008) observa que existe entre eles/as a clareza de que o
modus operandi de suas práticas profissionais e do agir cotidiano no âmbito
da escola está permeado por “concepções predeterminadas para comporta-
mentos e vestimentas diferenciadas para o masculino e feminino e que existe
um padrão na sociedade considerado ideal, correto. Quem ousar desviar-se
desse padrão é considerado estranho, diferente e anormal”.
Ao mesmo tempo que os/as professores/as apresentam a consciên-
cia de que estão permeados/as por estes “conceitos padrões” de significados
e que fazem uma crítica de que são portadores/as da reprodução, eles/as
reafirmam que, na verdade, esse padrão estabelecido na sociedade sobre fe-
minino e masculino é o que deve prevalecer. Quando o comportamento da
menina não obedece à ordem estabelecida para comportamentos “dignos”
de mulher, ela é considerada lésbica, “machona”, compreendendo o com-
portamento da mulher lésbica como masculinizado, como se ela deixasse
de ser feminina (p. 69-70). Vejamos um exemplo6 (Grupo Andiroba; passa-
gem: práticas pedagógicas):7
Cf: E às vezes eu também vejo assim que existe uma certa diferença às vezes
até na maneira como um diretor vai tratar uma diretora uma coordenação até
um professor que fala aí mas isso aí é coisa de menino olha aí que coisa feia

6   Utilizamos um sistema de transcrição – denominado TiQ Talk in Qualitative Research que busca desta-
car a entonação do discurso assim como pausas e outros elementos da fala. O modelo foi desenvolvido e
utilizado em pesquisas coordenadas por Ralf Bohnsack da Universidade Livre de Berlim, guardando algumas
semelhanças com sistemas de transcrição adotados na Análise da Conversação (cf. WELLER, 2006). O leitor
deverá observar que a pontuação nas citações de entrevistas não segue as normas gramaticais, mas a entona-
ção da voz. Somente as falas que iniciam após a conclusão de uma pergunta ou comentário dos interlocutores
iniciam com letra maiúscula. Os códigos de transcrição utilizados encontram-se no final deste artigo.
7   Este grupo de discussão (GD) foi realizado em maio de 2006 e contou com a participação de três pro-
fessores/as: Am (masculino), 43 anos e professor de matemática há 12 anos, Bf (feminino), 34 anos e profes-
sora de educação artística há 9 anos, Cf (feminino), 37 anos e professora de história há 12 anos. Optamos
por não indicar o local/cidade em que foi realizado o GD para garantir o anonimato dos/as professores/as
que participaram da experiência piloto do curso Gênero e Diversidade na Escola. Para informações sobre o
trabalho de campo, ver: Grösz (2008, p. 37-47).
278 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

você tem que se comportar como uma moça você né [...] uma moça bonita
e tal e (ficam com aqueles tipos de comportamento) então as falas da gente
muita ve – muitas vezes também a gente (...) a gente existe um tratamento
diferente quando você vai falar com meninos você fala de um jeito e quando
vai se falar com as meninas sempre tá colocando
Y: Hum
Cf: o exemplo ó meninas tem que ser comportadas (menina é isso) sem-
pre na escola tem isso
Am: Até o jeito de sentar às vezes você fala: Ó isso é jeito de sentar me-
nina?
?f: É na roupa que (é cobrado)
Am: O menino senta lá escancarado a menina não pode sentar com as
perna aberta por que
Y: Hum
Am: tudo bem se ela tiver saia tudo mais mas e se ela tiver de calça com-
prida
Y: Hum
Am: aí: pô isso é jeito de sentar? A mãe faz isso com a filha: isso é modo
de sentar menina?
Y: Hum
Am: quer dizer que ela não pode sentar à vontade
?f: Porque porque a sociedade cobra isso
Am: Exatamente
?f: Isso é
Am: Porque se se a menina sentar tudo largadona é machona
?: (.)
Am: Ééé isso aí é machão isso aí eu tô fora...

Chama-nos a atenção o fato de que os/as professores/as, ao serem


convidados a refletir sobre as práticas discriminatórias na escola, destacam
primeiramente os superiores na hierarquia, ou seja, a direção e a coordena-
ção como responsáveis pelo tipo de juízos de valor disseminados na escola,
para, em seguida, argumentar que “até um professor” estabelece normas de
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 279

comportamento diferenciadas para meninas e meninos.8 A manutenção e


disseminação desse modelo de vigilância partilhado pelo conjunto dos/as
professores é justificado com o argumento de que também “a mãe faz isso
com a filha”, e, nessa lógica, a escola apenas corrobora com o modelo de so-
cialização partilhado pelos responsáveis diretos pela educação daqueles que
perante a lei ainda não podem fazer suas próprias escolhas. Argumenta-se
ainda que é “a sociedade” quem cobra esse tipo de vigilância exercida por
pais/mães e professores/as. Dessa forma, desloca-se a responsabilidade
pelo modelo de vigilância instituído para um ente “abstrato” que nos obriga
a atuar dessa forma.
É interessante observar a eficácia desse modelo de vigilância na me-
dida em que algumas alunas do ensino médio se encarregam de reproduzir
os discursos elaborados pelas gerações mais velhas. No caso a seguir, a preo-
cupação não recai sobre o medo de que as estudantes possam virar “macho-
nas”, mas sobre o tipo de vestimenta adotado por algumas jovens da escola
que – na opinião das entrevistadas – remete a um modelo ou julgamento
moral, que ao mesmo tempo que é definido como “vulgar” também é inter-
pretado como um tipo de exposição do corpo feminino que “todo homem
gosta” (Grupo Feminino, 3º ano vespertino, Taguatinga-DF):9
Ef: Tem menina tudo que vem com blusinha aqui aquelas marquinha na cin-
tura, short tudo apertado e quer que imponha respeito
Df: Elas os meninos mexe mesmo e se elas derem bola os meninos chama
de puta, piranha mesmo aí (...) elas ficam reclamando e elas não em direito
nenhum de reclamar não
Y: Por quê?
Bf: São pessoas vulgares assim, pra mim pessoa vulgar não tem direito al-
gum
Cf: de reclamar.

8 Veja também análises relativas a esse fragmento realizadas por Grösz (2008, p. 68-70).
9 Esse grupo de discussão (GD) foi realizado em março de 2009 e contou com a participação de cinco
jovens: Af 17 anos, Bf 17 anos, Cf 16 anos, Df 17 anos e Ef 16 anos. Para informações sobre o grupo, ver: Silva
(2010, p. 90-92).
280 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Ef: É que nem dizem se você quer respeito você tem que se dá o respeito
Y: Se ela colocar uma roupa que ela gosta ela não dá o respeito?
Ef: Olha o ambiente que ela tá
Df: Na escola (...) na escola é uniforme, é calça jeans. Sendo que você vem
pra escola com uma roupinha curtinha toda insinuante você não vai querer
que os meninos mexam com você?
Ef: Ainda acha ruim Como é que não vão mexer com você se tá trajada como
todo homem gosta, né? Com uma blusinha curtinha aquela menina que vem
bem bronzeada com aquelas marquinha short apertado com a calcinha, nos-
sa não sei nem onde é que vai

As jovens partilham da concepção de que a vigilância do corpo pas-


sa a ser de responsabilidade das mulheres e que o respeito a que tem direi-
to passará a ser medido ou julgado pelas roupas que vestem. Em um outro
momento do grupo de discussão, algumas das participantes remetem essa
responsabilidade também aos professores e equipe dirigente, alegando que
o não uso do uniforme é um problema que deve ser resolvido pela escola.
Na visão das jovens, a escola como instituição de ensino deve auxiliar na
compreensão dos cuidados necessários para com o corpo.

b) Vigilância e confinamento das jovens como estratégia de não enfren-


tamento de valores morais e machistas
Outro tipo de vigilância identificado na pesquisa realizada por Car-
valho (2010, p. 55-61) diz respeito ao fantasma em torno da sexualidade
que passou a ser um problema para a escola na qual foi feito o estudo. Trata-
se de uma escola agrotécnica federal (atualmente Instituto Federal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia – IF), localizada a cerca de 15 km do centro da
cidade de Guanambi-BA, na qual parte dos alunos provenientes de outras
localidades residem nos alojamentos oferecidos pela instituição. No ano de
2006 foi criado um alojamento para as estudantes do sexo feminino que,
apesar de representar um avanço no sentido de que muitas jovens da região
receberam a oportunidade de continuar seus estudos em nível médio alia-
do à formação profissional, foi implementado de forma a não perturbar a
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 281

ordem existente e assim como os espaços até então ocupados somente por
jovens do sexo masculino, como observado a seguir (Grupo Esperança, 3º
ano Agropecuária, Guanambi-BA):10
Bf: Agora uma coisa também que a escola pode melhorar se:: os administra-
dores quiserem sei lá eu num sei eu acho se já tem na questão de de (2)
internato feminino é isso gente porque duas casinha pra porque o número de
meninas tá aumentando todo mundo tá percebendo que cabou aquele ne-
gócio de antes que homem só era maioria; ainda é maioria mais o número de
mulher o número de meninas tá crescendo bastante aqui tá vindo pra cá en-
tão acho que nós as meninas as meninas [...] elas merecem eh também mais
oportunidade de morar na escola [...] então tem que aumentar o número de
vagas no internato tem que fazer outras outros prédios outras eh ampliar o
internato feminino pra dá mais oportunidade pras outras meninas
Cf: Outra coisa porque que os meninos podem estudar aqui à noite e a gente
não pode? É com medo de algum casal se encontrar aumento o número de
segurança aqui na escola
Ef: (2)
Ff: Ou então faz um local lá pra gente estudar lá; pronto (1) a gente não pre-
cisa vim pra cá muitas vezes a gente já pediu as salas da=da=da agroindústria
pra gente estudar lá a gente pegava autorização estudava e depois devolvia a
chave; em vez disso porque que não deixam uma sala específica pra gente
estudar lá uma menina responsável pela sala ou coisa do tipo eu acho que
tinha como implantar sim tem o local pra implantar e sinceramente a escola
precisa pensar nisso

Como relatado, a escola parece ainda não reconhecer que “[a]ca-


bou aquele negócio de antes que homem só era maioria”, ou seja, que, a
partir da criação do internato feminino – mesmo que elas ainda represen-
tem uma minoria –, o interior da escola precisa ser pensado para ambos os
sexos. No entanto, ao invés de uma redefinição dos espaços escolares e do
acompanhamento pedagógico dos/as estudantes nos horários em que não
se encontram em sala de aula, a forma encontrada até o momento consis-
te no impedimento das jovens de frequentarem determinados espaços no
10 Este grupo de discussão (GD) foi realizado em novembro de 2008 e contou com a participação de seis
jovens: Af 18 anos, Bf 20 anos, Cf 19 anos, Df 19 anos, Ef 18 anos e Ff 16 anos. Para informações sobre o grupo,
ver: Carvalho (2010, p. 48-49).
282 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

horário noturno. Ainda que as jovens apresentem soluções como “pegar


autorização” (o que pode ser entendido como obter autorização dos pais
ou responsáveis) e “aumentar o número de seguranças”, já que este último
argumento parece constituir o problema ou pelo menos a justificativa para
o impedimento da circulação feminina nos locais ocupados pelos jovens do
sexo masculino no horário noturno, suas reivindicações permanecem sem
ouvidos. Nesse sentido, o grupo de discussão tornou-se um momento de
desabafo para as jovens:
Bf: E eu não sei por que que os homens podem ficar até mais de meia noite
aqui na escola e mulher o guarda já tá seis e meia vambora=vambora quer
dizer que homem pode
Df: Por que que os homens não vão pra o internato e as mulheres não fi-
cam?
Ff: Por que que os homens não sobem sete e meia lá pra cima e meninas não
ficam aqui na hora da escola?
Bf: É por que o número de homens aqui é maior; vai ver é isso não é? Então
eles tão eh a prior- prioridade é pra homens e a culpa fica como se fosse só da
mulher; a mulher tem que descer sete e meia porque aqui tem homens e eles
vão se encontrar e vão querer namorar.

As jovens se mostram indignadas com a situação, sobretudo porque


não partilham das justificativas subentendidas nos procedimentos adotados
pela instituição: “É porque o número de homens aqui é maior”; “prioridade
é pra homens e a culpa fica como se fosse só da mulher”. Nesse sentido, a
indignação das jovens se da não só pelo fato de existir um tratamento desi-
gual por parte do corpo docente e administrativo da escola, mas por serem
culpabilizadas pelo “desejo” dos homens quererem se encontrar e namorar
caso estiverem circulando livremente pelos espaços físicos da escola em ho-
rários contrários às aulas.
A restrição imposta às jovens, principalmente às internas, é vista
como absurda. O fato de não poderem fazer uma ligação depois de sete e
meia da noite demonstra que não há uma proposta de negociação por parte
da administração. Fica claro que a decisão de que elas não podem sair do
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 283

internato durante a noite é radical, não sendo permitida nenhuma exceção.


Por outro lado, a indignação se agrava ainda mais porque elas sabem que a
mesma regra não se aplica ao sexo oposto:
Ff: Eu acho assim a gente=a gente estuda o dia inteiro a gente fica nesta escola
confinado o dia inteiro e quando dá vontade de ir num orelhão a gente tem que
olhar pra hora para saber se a gente pode ir ou não? Sinceramente eu acho
Cf: E se a pessoa que você for comunicar só pode te atender oito horas?
Ff: Oito horas sinceramente sinceramente isso é uma:: questão que tem que ser
olhada tem que parar pra saber o que deve fazer se é pra colocar um orelhão lá
Bf: Tem que colocar um ramal alguma coisa
Ff: Ou se é para liberar pra gente alguma coisa do tipo porque é:: um absurdo
Cf: A verdade é essa homem pode quase tudo nessa escola mulher quase
nada

Os papéis atribuídos às mulheres na instituição estão associados ao


modelo socializador que evidencia a fragilidade feminina e fortalece a supe-
rioridade masculina. As regras impostas às jovens diferenciando a condição
de alunos e alunas na escola acabam por desenhar dois mundos discrepantes
dentro de um mesmo ambiente. Por um lado, o universo masculino, onde se
pode tudo, como colocado por uma das jovens: “a verdade é essa homem
pode quase tudo nessa escola mulher quase nada”. Por outro, o ínfimo uni-
verso feminino, que se resume a simplesmente estudar o dia inteiro, ou seja,
ficar “confinado o dia inteiro” e, durante a noite, presas no internato.
A dificuldade dos/as professores/as em discutir a sexualidade foi identi-
ficada no estudo realizado por Grösz (2008) e também pode ser observada entre
o corpo docente e administrativo da escola pesquisada por Carvalho (2010).11
Regras implícitas como o “toque de recolher” ao cair da noite para as jovens mu-
lheres parecem haver sido instituídas como uma forma de lidar com o “fantasma
da sexualidade”. O incômodo sentido pelos jovens internos do sexo masculino

11 Dificuldades semelhantes também foram observadas pela equipe do Geraju, que durante o ano de 2009
ministrou o curso Gênero e Diversidade na Escola para professores/as do Distrito Federal. Para detalhes so-
bre o curso e equipe, ver: <www.fe.unb.br/geraju>.
284 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

com relação ao tema,12 a indignação das estudantes do internato, o silêncio dos


administradores (dentre os quais também estão as mulheres professoras, secre-
tárias e faxineiras), e, especialmente, a tranquilidade das famílias descansam na
dupla legalidade e valor moral implicados nessa questão que envolve apenas a
sexualidade que pode gerar uma criança, já que a homossexualidade masculina e
feminina poderiam acontecer sem empecilhos em ambos alojamentos. Em ou-
tras palavras: o que precisa permanecer sob controle e por isso em permanente
vigilância é a possibilidade de reprodução biológica que tornaria visível a exis-
tência de práticas afetivo-sexuais no âmbito da escola. Em se tratando de jovens
que ainda não atingiram a maioridade legal e que estão sob a proteção da escola,
opta-se por uma estratégia de confinamento e controle do que se constitui como
ameaça, ou seja, as jovens mulheres.13

c) A vigilância voltada para a manutenção do corpo supostamente frá-


gil: uma “porcelana que não pode quebrar”
Um terceiro tipo de vigilância identificado em nossas pesquisas e
também relacionado à tentativa de coibir a participação feminina nas profis-
sões “tradicionalmente” masculinas é exercido no âmbito da própria família,
que recorre ao imaginário da mulher como sexo frágil a fim de manter a “fi-
neza” ou “delicadeza” atribuída ao feminino (“uma porcelana”) e, ao mesmo
tempo, de cercear a autonomia e escolha profissional da própria filha (Gru-
po Feminino, 3º ano vespertino, Taguatinga-DF):
Y: E assim vocês já tiveram discriminação por ser mulher?
Af: Eu gosto muito de jogar bola gosto muito de jogar bola adoro jogar bola
futebol às vezes me saio melhor que os meninos e eles não aceitam já se exal-
ta quando entro no campo aí não sai daqui você é mulher aí quando me vê
jogar (.) aí pô você joga bem pra caramba não sei o quê Não sabe nem o
que vai fazer antes de ficar falando

12 Nos grupos de discussão realizados com jovens do sexo masculino esse tema também foi abordado (cf.
CARVALHO, 2010, p. 96).
13 Gostaríamos de agradecer aos comentários de Silvia Yannoulas que durante a defesa da dissertação de
Carvalho (2010) chamou a atenção para esse aspecto.
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 285

Df: Eu era disciplinada pra fazer jiu-jítsu (.) eu era a única menina que fazia
jiu-jítsu lá na academia
Bf: Sempre as pessoas têm discriminação porque (2) que nem na família eu
sou a caçula sou aquele visorzinho aquela porcelana que não pode quebrar Aí
vou invento de fazer esse curso técnico lá de técnico de segurança no trabalho
e meu pai ele trabalha em uma empresa que mexe com obra essas coisas. Meu
pai disse eu nunca que eu vou sustentar uma mulher técnica de segurança e que
não sei o quê (.) Então discriminação vem de casa também desde pequeno já

No que diz respeito ao ingresso de jovens mulheres nas modalidades


esportivas “tipicamente” masculinas, tais como futebol e jiu-jítsu, parece ainda
existir uma certa estranheza, mas aos poucos a atuação feminina começa a ser
comparada (“às vezes me saio melhor que os meninos”) e até elogiada: “pô
você joga bem pra caramba”. Nota-se que no espaço do lazer a participação
feminina não constitui uma ameaça à virilidade masculina. No entanto, na
busca por profissionalização e inserção no mercado de trabalho em espaços
ocupados majoritariamente por profissionais do sexo masculino, a participa-
ção feminina incomoda, na medida em que coloca os atributivos relacionados
ao feminino e masculino em cheque. Nesse sentido, a fim de que a jovem não
ouse romper com o imaginário da fragilidade que lhe foi imputada, ela passa
a ser o “visorsinho” da família. O incômodo sentido pelo pai está relacionado
ainda ao fato da filha haver escolhido justamente a mesma profissão exercida
por ele, o que certamente seria motivo de orgulho e se a opção houvesse sido
realizada por um de seus filhos e não pela sua filha caçula, a “porcelana” da casa.
Tal escolha ao invés de causar motivo de alegria e satisfação é colocada como
inadmissível; e se a jovem insistir na sua escolha ela corre o risco de sofrer pres-
sões ainda maiores, tais como o corte do apoio financeiro por parte da família:
“nunca que eu vou sustentar uma mulher técnica de segurança [...].”

Gênero no cotidiano das práticas pedagógicas escolares: uma


alternativa à vigilância?
Ao analisar de que forma a escola trabalha a temática de gênero,
Grösz constatou que:
286 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Gênero ainda é uma categoria que não está presente no cotidiano da esco-
la. Por mais que nas reflexões dos/as professores/as seja possível identificar
que eles e elas percebem a desigualdade de gênero instalada no cotidiano da
mesma. Sobretudo, percebem a desigualdade de gênero nas atitudes dos/
as alunos/as. No entanto, as práticas dos profissionais da educação não de-
monstram nenhuma ação sistemática, planejada e refletida para o enfrenta-
mento das desigualdades. Essas desigualdades, sobretudo as de gênero, não
se constituem em um “problema” para a escola, algo que deva ser “resolvido”
imediatamente. Ela parece estar tão naturalizada, assimilada e internalizada
nos/as professores/as, no cotidiano da escola, na organização e normas esta-
belecidas, que mesmo sendo percebida em alguma faceta, ela não está “inco-
modando” o status quo da escola. (2008, p. 138)14

Questionados pela autora que estava interessada em saber se a es-


cola assume uma posição ativa no sentido de discutir temas como divisão
de papéis e visões sobre o masculino e o feminino na sociedade, surgiram
reações diversas, principalmente no que diz respeito ao posicionamento do
corpo docente e administrativo em relação ao tema (GRÖSZ, 2008, p. 107).
Grösz destaca ainda que alguns grupos apresentaram uma certa resistência
ao serem convidados a refletir sobre suas práticas pedagógicas, direcionan-
do, por exemplo, o tema da discussão para assuntos como festinhas que são
realizadas na escola nas quais existe uma divisão de tarefas que delega, por
exemplo, aos meninos a responsabilidade pela organização das bebidas e
às meninas o provimento dos alimentos que serão consumidos na festa (p.
109-110). Essa dificuldade para se discutir ou se refletir sobre a própria prá-
tica pode estar associada ao fato de que esses temas, na verdade, não são in-
corporados no cotidiano escolar. Quando perguntados, os/as professores/
as argumentam que não se sentem suficientemente informados ou que não
receberam formação específica para atuar nessas temáticas. Quando existe
algum trabalho nessa direção ele acontece de forma pontual, como relatado
a seguir (Grupo Andiroba; passagem: trabalho da escola):
Am: A escola sinceramente (se não é num projeto) não trabalha não trabalha
ó contra o racismo a gente até que trabalha geralmente faz uns trabalinhos

14 Para mais informações, ver Grösz (2008, p. 107-134).


Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 287

Y: Hum
Am: Mas com ((trecho inaudível)) você não vê falar dificilmente a não ser
que seja um trabalho voltado um projeto voltado só pra isso
Y: Hum
Am: Aí discute-se uma palestra e tal. Fora isso (dificilmente você vê) no dia
da consciência negra você vê realmente os os representantes vão a escolas
dão palestra e tal você não vê eh a classe. Na verdade você não vê os os (ho-
mossexuais) fazendo uma palestra sobre os direitos deles os deveres
[...]
Am: Então na verdade eles também se escondem. E a escola não abre pra
esse tipo de coisa. Não que eu ache acho que a escola deveria no papel dela
de deixar a pessoa demonstrar o seu lado.
Y: Hum
Am: Que realmente é opção dele. Mas eu não vejo sinceramente
(Bf): (A gente vê) alguns casos isolados
Am: Bem isolados mesmo
(Bf): De um professor com um projeto e tal
Am: Exatamente
(Bf): (Agora) na escola em si eu nunca vi
CF: Também trabalhando sobre essa questão de de diferenças de papeis en-
tre homem e mulher eu nunca vi isso aí ser trabalhado né eu já fui em tantas
feiras de ciências em tantas escolas diferentes eu nunca nem nem em projeto
de feira de conhecimento
Y: Hum
Cf: Eu nunca nunca vi (trabalhado)

Segundo os professores e as professoras entrevistadas por Grösz, na


prática pedagógica das escolas, raça, etnia e sexualidade são as preocupações
maiores dos/as professores/as onde um recorte evidente da temática de gê-
nero não é efetivado. Eventualmente a escola realiza um trabalho pontual,
aproveitando-se de ocasiões corriqueiras de acontecimentos e “brincadei-
ras” entre alunos para tratar das temáticas de raça, etnia, sexualidade e vez
por outra gênero. Existe ainda a lembrança vaga de que já aconteceram algu-
288 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

mas palestras e projetos pontuais de iniciativa de algum professor/a, mas em


nenhum momento é citado como um tema que é discutido de forma mais
ampla, ou seja, pelo corpo docente como um todo. Sequer datas comemo-
rativas que lembram as lutas das mulheres ao longo da história, como o 8 de
março, dia internacional da mulher, ou o 25 de novembro, dia internacional
pela não violência contra a mulher, são citadas como momentos em que es-
sas temáticas poderiam desencadear ação mais concretas, passando a fazer
parte das atividades do calendário escolar (GRÖSZ , 2008, p. 112-113).
A ausência de discussões de gênero no meio escolar e o relativo de-
sinteresse do corpo docente e administrativo – constituído em sua maioria
por mulheres – pela implementação de pelo menos algumas atividades pon-
tuais que valorizassem a história das mulheres e as conquistas do movimen-
to feministas podem ser claramente percebidos nos discursos das estudantes
do ensino médio, que revelam total falta de conhecimento e de informações
sobre o que se entende por feminismo e por movimento feminista. No gru-
po de discussão constituído por jovens do terceiro ano do ensino médio de
uma escola localizada em Taguatinga-DF, observa-se uma verdadeira rejei-
ção ao tema e uma interpretação que reflete uma visão de senso comum, ou
seja, de que “[no] movimento feminista a mulher quer ser praticamente ser o
homem” (Grupo Feminino, 3º ano vespertino, Taguatinga-DF):
Y: Mudando assim um pouquinho vocês já ouviram falar do movimento
feminista?
Bf: Já vi falar mais não curto muito não
Df: Já esqueci
Ef: Movimento feminista a mulher quer ser praticamente ser o homem quer
mandar e quer mulher uma mandando na outra. Acho que cada um tem que
ter seu limite
Y: Mais assim já ouviram falar um pouco do feminismo alguma coisa sobre?
Af: É tudo igual tipo tudo do mesmo jeito assim
Cf: Às vezes tem até mais
Bf: Sempre acostumado assim tipo tudo igual os professores porque lá em
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 289

casa quem manda é minha mãe. Então (2) somos separados (.) eu moro com
a minha avó (2) eles são separados mais fazem lá em casa eles fazem cara de
apaixonados Minha mãe tipo (2) meu pai nunca levantou a mão pra ela.
Af: A minha mãe espancou meu pai (.) lá em casa é tudo o contrário minha
mãe é chefe da casa meu pai ela ta falando ele abaixa a cabeça.

Ainda que não tenham conhecimento sobre o tema, uma das jovens
busca marcar de imediato uma posição contrária – “não curto muito não” –,
demonstrando o intuito de bloquear a discussão sobre o assunto. Em segui-
da inicia-se uma discussão que remete à ideia de que qualquer simpatia pelo
movimento pode ser interpretada como uma ultrapassagem de limites, e, na
fala de uma das jovens, “cada um tem que ter seu limite”. No entanto, as jo-
vens não questionam como são colocados esses limites e quem – por assim
dizer – os colocou. Na perspectiva do grupo, existem limites instituídos a
priori para homens e mulheres. Nesse sentido, não podem ser questionados
nem contestados como tenta fazer o movimento feminista. A interpretação
do movimento feminista realizada pelas jovens se reduz a definição de “mu-
lher quer[er] ser praticamente ser o homem” e de mulheres que querem ficar
“mandando na outra”. Em outras palavras: se reduz a uma proposta que elas
rejeitam, na medida em que já internalizaram um modelo que estabelece li-
mites fixos e que está em conformidade com a ordem dominante na qual se
sentem contempladas. No entanto, as jovens não percebem a contradição
existente no próprio discurso, uma vez que elas atestam que suas mães ultra-
passaram os limites instituídos e inverteram os papéis, passando a “espancar”
e fazendo com que os maridos “abaixem a cabeça” enquanto estão falando.
No exemplo a seguir, oriundo de um grupo de discussão realizado com
jovens do primeiro ano do ensino médio que estudam em uma outra escola no
período noturno, também é possível perceber a ausência de informações sobre o
tema, mas, ao mesmo tempo, uma abertura e interesse em querer conhecer me-
lhor o assunto (Grupo Feminino, 1º ano EM noturno, Planaltina-DF):15
15 Este grupo de discussão (GD) foi realizado em junho de 2006 e contou com a participação de cinco
jovens: Af 15 anos, Bf 15 anos, Cf 15 anos, Df 15 anos e Ef 16 anos. Para mais informações sobre o grupo, ver:
Silva (2006, p. 26-34).
290 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Y: O que vocês pensam sobre o feminismo?


Df: Feminismo?
Af: Como assim um grupo?
Df: Não, não sei o que é isso não
Y: Vocês conhecem ou já ouviram falar sobre o movimento feminista?
Cf: Não
Bf: É aquele movimento com as mulheres?
Df: É. Que as mulheres ficam reivindicando
Bf: Porque as mulheres querem ter direitos iguais, né? Igual ao dos homens e
não tem, ainda tem essa barreira
Af: Agora já ta mudando, né? Antigamente era mais
Bf: Então tá mudando por causa disso Porque as mulheres tão lutando tão
indo em busca ( )
Cf: Você veja as mulheres não podiam trabalhar só podiam ficar cuidando da
casa e hoje em dia isso tá bem diferente já tá bem igual
Af: É legal mas hoje infelizmente ainda tem muito homem machista o meu pai
Df: Pensa que mulher é=pra=ficar=dentro=de=casa,=pra=criar=filho=lavar
=roupa
Ef: Ainda bem que meu pai não é assim
Df: Não quer que a mulher faça nada

Embora as jovens tenham pouco conhecimento sobre o tema,


nota-se uma visão distinta e significativa em relação ao grupo anterior que
frequenta o turno vespertino. Inicialmente elas tentam recuperar coletiva-
mente as parcas informações sobre o tema demonstrando interesse em dar
continuidade à discussão. No primeiro grupo as jovens definem as integran-
tes do movimento feminista como mulheres que querem “ser” homens e
“mandar” nas outras mulheres (provavelmente as não feministas). Já nesse
grupo observa-se que, após alguns minutos de reflexão sobre o tema, as jo-
vens concluem que se trata de um grupo de mulheres que fica “reivindican-
do” direitos iguais para homens e mulheres. Ou seja: “reivindicar” direitos
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 291

iguais para homens e mulheres constitui uma leitura e interpretação com-


pletamente distinta da ideia de “ser homem” e “mandar em outras mulheres”.
Dessa forma, as jovens reconhecem e atribuem uma valoração positiva ao
movimento feminista na medida em que percebem as mudanças que ocor-
reram na sociedade em função das lutas travadas pelas mulheres: “hoje em
dia isso tá bem diferente”. Mas as jovens também reconhecem que ainda há
um longo caminho a ser trilhado na proporção em que “infelizmente ainda
tem muito homem machista” e que essa realidade está muito presente em
suas próprias vidas, sobretudo por meio da figura paterna. Esse caminho
certamente seria menos penoso para as jovens se professores/as realizassem
algum trabalho que as auxiliasse no enfrentamento das discriminações de
gênero e violências sofridas no meio familiar e na própria escola.
Por último apresentamos um fragmento de uma discussão realizada
com jovens que se encontram no terceiro ano do ensino médio (período
noturno), que revela o reconhecimento não só do movimento feminista,
mas também do feminismo, que além de garantir direitos trabalhistas trouxe
a possibilidade de jovens mulheres poderem sonhar com posições sociais e
carreiras profissionais que extrapolam os “limites” sugeridos pelo primeiro
grupo e ampliam o espectro da discussão para o que elas definem como um
“direito nosso” que não foi concedido, mas “conquistado” (Grupo Feminino,
3º ano noturno, Planaltina-DF):16
Y: O que vocês pensam sobre o feminismo? Vocês conhecem ou já ouviram
falar sobre o movimento feminista?
Df: Eu acho que o movimento feminista foi o modo da mulher tentar se expor
mediante a sociedade, porque antigamente tinha muito preconceito a mulher
não votava, então digamos que foi essas feministas que tomaram a frente e fala-
ram: Não, chega. Chegou a um ponto de vamos todos ser iguais e vamos fazer
isso e vamos fazer aquilo. Por isso eu acho que o feminismo começou de talvez
de uma forma pra ajudar hoje em dia a mulher, porque talvez se não fossem
pessoas feministas hoje em dia nós não teríamos direito de trabalhar.

16 Este grupo de discussão (GD) foi realizado em maio de 2006 e contou com a participação de seis jovens:
Af 29 anos, Bf 16 anos, Cf 21 anos, Df 17 anos, Ef 17 anos e Ff 20 anos. Para mais informações sobre o grupo,
ver: Silva (2006, p. 26-34).
292 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Cf: Até mesmo hoje em dia tem o direito de qualquer uma de nós aqui um
dia estar na Presidência da República esse é de direito nosso isso foi conquis-
tado não no século XXI e assim há muito tempo atrás.

Considerações finais: mudar as práticas pedagógicas e os


padrões sociais instituídos ou continuar vigiando e punindo?

O silenciamento e a tabuização em torno das questões de gênero


e sexualidade pode ser visto como uma das possíveis explicações para que
as discriminações que ocorrem no ambiente escolar. Entretanto, é neces-
sário ressaltar que os/as professores/as assim como os/as gestores/as não
recebem uma formação adequada para lidar com conflitos relacionados às
questões de gênero e sexualidade no cotidiano escolar. Ainda são poucas as
iniciativas nessa direção, tanto na formação inicial como na formação conti-
nuada. Romper com o silenciamento e ampliar a formação dos profissionais
da educação no que diz respeito às questões de gênero e sexualidade, pode
contribuir significativamente para uma maior conscientização e minimiza-
ção dos problemas advindos de uma sociedade machista, sexista e homo-
fóbica, em que situações de discriminação são reforçadas, inclusive em am-
bientes que deveriam combatê-las – a escola.
Enfrentar esses problemas não constitui uma tarefa fácil, uma vez
que o preconceito e a discriminação estão arraigados na história e na cultura
e, como observado nos grupos de discussão discutidos acima, são perpetu-
ados pelos pais e pelas mães, pelos docentes e servidores em geral. A proxi-
midade de idade existente entre pais e professores/as que participam – nos
termos de Karl Mannheim (1993) – de uma mesma posição geracional
gera, por um lado, uma proximidade de perspectivas entre os mesmos e, por
outro, uma distância e muitas vezes total desconhecimento da perspectiva
e visões de mundo dos/as alunos/as. Nesse sentido, as formas punitivas e
vigilantes inserem um componente agravante dessas relações, caracterizado
pela falta de entendimento entre as gerações e tentativa de resolução de con-
flitos por meio do diálogo. Para além da função formadora, a escola precisa
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 293

retomar sua função mediadora e capacitar os profissionais que nela atuam


para a construção de uma sociedade menos sexista e discriminatória:
Entre acordos, tensões e conflitos, a escola é também um espaço de
construção de novas práticas sociais, de revisão crítica das injustiças sociais,
e de valores discriminatórios. Inserir a escola no debate sobre gênero é co-
locar-se diante do desafio de escutar os silêncios, o não dito ou negado pela
organização escolar, é pensar a escola como uma espaço de construção de
novos olhares sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre homens e mulheres e
sobre as relações entre estes. (BASSALO, 2010, p. 137)

Referências
BASSALO, Lucélia M. B. Relações de gênero e o papel da escola. In: STEVENS, Cristina et al. (Org.). Gênero e
feminismos: convergências (in)disciplinares. Brasília: Ex Libris, 2010. p. 137-151.
CARVALHO, Marília P.; SOUZA, Raquel; OLIVEIRA, Elisabete R. B. Jovens, sexualidade e gênero. In: SPO-
SITO, Marilia P. O estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço
social (1999-2006). Belo Horizonte: Argumentum, 2009. p. 229-274.
CARVALHO, Nivaldo M. Ensino médio integrado, representações de gênero e perspectivas profissionais: um estudo
com jovens dos cursos Agropecuária e Agroindústria em Guanambi, BA. 2010. Dissertação (Mestrado em
Educação), Universidade de Brasília, Brasília.
EPSTEIN, Debbie; JOHNSON, Richard. Jovens produzindo identidades sexuais. Revista Brasileira de Educa-
ção, 2009, v. 14, n. 40, p. 83-92.
GRÖSZ, Dirce Margarete. Representações de gênero no cotidiano de professoras e professores. 2008. Dissertação
(Mestrado em Educação), Universidade de Brasília, Brasília.
LOURO, Guacira L. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira L. (Org.). O corpo educado: pedagogias
da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7-34.
MANNHEIM, Karl. El problema de las generaciones. Tradução Ignacio Sánchez de la Yncera. REIS - Revista
española de investigaciones sociológicas, n. 62, p. 193-242, abr./jun. 1993.
PEREIRA, Maria Elisabete; ROHDEN, Fabíola et al. (Org.). Gênero e diversidade na escola: formação de pro-
fessoras/es em Gênero, Sexualidade, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Brasília: SPM; Cepesc,
2007.
SILVA, Iraci P. Escola e relações de gênero: visões de mundo de jovens do Ensino Médio em Taguatinga, DF.
2010. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade de Brasília, Brasília.
SILVA, Iraci P. Relações de gênero, sexualidade e violência: experiências de jovens-mulheres do Ensino Médio em
Planaltina/DF. 2006. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia), Universidade de Brasília,
Brasília.
WELLER, Wivian. A presença feminina nas (sub)culturas juvenis: a arte de se tornar visível. Revista Estudos Fe-
ministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 107-126, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v13n1/
a08v13n1.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2010.
WELLER, Wivian. Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens: aportes teórico-metodológi-
294 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

cos e análise de uma experiência com o método. Educação e Pesquisa. Revista de Educação da USP. São Paulo, v.
32, n. 2, p. 241-260, maio/ago. 2006 Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a03v32n2.pdf>.
Acesso em: 2 mar. 2010.
WELLER, Wivian. Juventude e diversidade: articulando gênero, raça e sexualidade. In: COLOQUIO LUSO-
BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO: Família, Escola e Juventude: olhares cruzados Brasil/
Portugal, 1, 2008, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 2008. p. 1-16.

Códigos de transcrição utilizados

Y: Abreviação para entrevistador (quando realizada por mais de um


entrevistador, utilizam-se Y1 e Y2)
Am/Bf: Abreviação para entrevistado/entrevistada. Utiliza-se “m” para entre-
vistados do sexo masculino e “f ” para pessoas do sexo feminino. Num grupo de
discussão com duas mulheres e dois homens, por exemplo, utilizam-se: Af, Bf,
Cm, Dm, e dá-se um nome fictício ao grupo. Na realização de uma entrevista
narrativa-biográfica com um integrante do grupo entrevistado anteriormente,
costuma-se usar um nome fictício que inicie com a letra que a pessoa recebeu
na codificação anterior (por exemplo: Cm passa a ser Carlos)
?m ou ?f: Utiliza-se quando não houve possibilidade de identificar a
pessoa que falou (acontece algumas vezes nos grupos de discussão quando
mais pessoas falam ao mesmo tempo)
(.) Um ponto entre parêntesis expressa uma pausa inferior a um segun-
do
(2) O número entre parêntesis expressa o tempo de duração de uma
pausa (em segundos)
; ponto e vírgula: leve diminuição do tom da voz
. ponto: forte diminuição do tom da voz
, vírgula: leve aumento do tom da voz
? ponto de interrogação: forte aumento do tom da voz
Discussões de gênero e sexualidade no meio escolar e o lugar da jovem mulher no ensino médio 295

exem- palavra pronunciada pela metade


exe:::mplo pronúncia da palavra foi esticada (a quantidade de ::: equi-
vale o tempo da pronúncia de determinada letra)
assim=assim palavras pronunciadas de forma emendada
exemplo palavra ou frase pronunciada de forma enfática
°exemplo° palavra ou frase pronunciada em voz baixa
exemplo palavra ou frase pronunciadas em voz alta
(exemplo) palavra ou frase que não foi compreendidas totalmente
( ) parêntesis vazios: omissão de uma palavra ou frase que não foi com-
preendida (o tamanho do espaço vazio entre parêntesis varia de acordo com
o tamanho da palavra ou frase)
@exemplo@ palavras ou frases pronunciadas entre risos são colocadas
entre sinais de arroba ou smiles
@(2)@ ou (2) número entre sinais de arroba ou smiles expressa a
du­ração de risos assim como a interrupção da fala
((bocejo)) expressões não verbais ou comentários sobre acontecimen-
tos externos, por exemplo: ((pessoa acende cigarro)), ((pessoa entra na sala
e a entrevista é brevemente interrompida))
Participação juvenil e a dimensão dos direitos
Os jovens podem falar?
Sobre as possibilidades políticas
de ser jovem hoje
Lucia Rabello de Castro

O título desta conferência evoca o artigo da indiana Gayatri Spivak


(1987), escrito há mais de duas décadas, que se iniciava com a per-
gunta “Os subalternos podem falar?”. Provocativamente, a autora indagava
sobre como e se as condições de opressão podem vir a se transformar dando
lugar a expressões políticas de fala, esta compreendida não exatamente no
seu sentido mundano, mas na potência de articular narrativas não captura-
das pelos sentidos e compreensões dominantes. Retomo aqui a pergunta
“Os jovens podem falar?”, que pode soar impertinente, neste momento de
euforia pelo trabalho terminado, pelos conhecimentos compartilhados e
pela partida iminente, quando problematizo a possibilidade mesma de que
os jovens possam falar, introduzindo assim quase uma disforia frente ao in-
tenso investimento que fizemos nestes dias sobre a juventude.
Mas gostaria de provocar, estrategicamente, neste momento de des-
pedida algum estranhamento, necessário para poder pensar a situação dos
jovens no cenário contemporâneo, no que diz respeito às suas possibilidades
de atuação política. Compreendo tais possibilidades como um processo de
significação – produção e articulação de narrativas – que pode subverter e
transformar o silenciamento sistemático dos jovens na vida coletiva. Portan-
300 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

to, por meio da pergunta “Os jovens podem falar?”, faço alusão às oposições
fala/silenciamento, igualdade/opressão, política/servidão, fundamentais
para poder compreender as vicissitudes e as contradições desse processo di-
fícil e penoso de emancipação, quando se luta para transformar as condições
de opressão.
Parto, então, da premissa de que os jovens têm sido objeto do dis-
curso do outro – seja o da autoridade conferida à geração mais velha, seja
o dos saberes disciplinares – e que, portanto, silenciados e enredados nas
estruturas de dominação as quais eles mesmos desconhecem, continuam
a se subjetivar como tutelados, invisíveis e “não falantes”. No entanto, al-
gumas mudanças recentes produziram uma situação de muito maior vi-
sibilidade para a juventude, inclusive por meio da demanda para que a ju-
ventude “fale”, como aquela que aparece, por exemplo, no slogan “Levante
suas bandeiras!!”. Então se verifica, aqui e ali, uma resposta da juventude
que busca se tornar um pouco mais visível na vida social. Nessa suposta
passagem a uma posicionalidade de fala e ação, me interessa questionar,
voltando à minha pergunta-título: “Os jovens podem efetivamente falar?”.
Como analisar essas falas que aparecem diante da demanda de um outro
para que os jovens falem?
Minha reflexão se propõe a analisar que discursos juvenis são esses
que têm aparecido no cenário atual e se eles concorrem para o devir político
dos jovens, ou seja, se essas falas denunciam situações de opressão e injusti-
ça, sofridas pelos próprios jovens, mas que, ao mesmo tempo, nos fazem ver
e querer ampliar os sentidos da igualdade e da justiça entre nós. Neste sen-
tido, as falas juvenis promoveriam, desse ponto singular em que os jovens
estão, deslocamentos contra-hegemônicos, pelo fato de articularem novas
linguagens para a verificação da igualdade e da justiça. Em outras palavras,
os jovens falam (enquanto sujeitos políticos) na condição de, a partir de seu
lugar singular na sociedade, poderem dizer/falar de alguma injustiça que,
mesmo sofrida mais por eles do que pelos outros, nos concerne a todos, ain-
da que nem todos a experienciem em igual intensidade.
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 301

Para dar uma ideia geral do meu argumento, vou rastrear modos e
posições de fala dos jovens produzidos ao longo do século XX, sem que,
contudo, queira atribuir uma cronologia a essas posições. E, como veremos
no final, essas posições não são etapas que se vencem e que são deixadas para
trás, mas estruturas que se superpõem e se alternam. Pretendo, então, examinar a
situação bastante complexa em que a posição de silenciamento dos jovens,
que, necessariamente, implica se ver falado e traduzido por um outro, vem
se alterando a partir de uma nova conjuntura sob a qual as falas dos jovens
e as falas em nome dos jovens se embaralham, dificultando que os próprios
jovens possam desvendar o enigma da opressão que os atinge.
Gostaria, antes de tudo, de esclarecer o uso do termo “fala” no con-
texto deste trabalho, que significa a articulação pública de um discurso por
parte de um sujeito coletivo, diferentemente de usar “fala” como um dizer no
espaço privado. Esta “fala” no espaço público implica constituir-se enquanto
um sujeito que pode dizer, que tem o que dizer e tem a quem dizer. Portanto, a
“fala” na qualidade de ação política constitui o sujeito político neste mesmo
ato. Mesmo que os jovens tenham podido falar, como sujeitos humanos do-
tados da capacidade de comunicação, não quer dizer que tenham podido
constituir-se como sujeitos políticos, ou seja, sujeitos capazes de uma fala
pública potente para influir no curso e no destino da vida coletiva. É isto que
me proponho a examinar aqui com vocês.

No período da modernidade sociológica, sob a vigência dos esta-


dos nacionais que instituem novos controles normativos sobre os cidadãos,
desenha-se no imaginário social a vocação dos jovens, assim como a nor-
matividade da demanda social sobre eles: como jovens, eles devem se pre-
parar para seu lugar ulterior de homens e mulheres adultos. A introdução
da escola compulsória por lei em 1880, na França, introduziu gradualmente
os dispositivos necessários para tirar das ruas os jovens e as crianças das fa-
302 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

mílias trabalhadoras e instaurar regimes de governo para além das famílias


(VONÈCHE, 1987). A publicação do Grande dicionário universal do século
XIX de Pierre Larousse traz a definição do jovem adolescente como o “rapaz
de quatorze a vinte cinco anos, cuja higiene e educação devem prepará-lo
e fundar a saúde física e moral do homem” (CARON, 1996). Estes são os
jovens privilegiados, que naquele momento podiam ir além do aprendizado
dos rudimentos básicos da vida social, encarnando o ideário iluminista que
via na educação o progresso societário e a civilização. Seja na França, na Ale-
manha ou na Inglaterra do século XIX, a reclusão dos jovens em instituições
escolares serviu à reprodução social das elites, apostando na preparação in-
telectual, moral e emocional daqueles jovens que ocupariam lugares-chaves
nas sociedades burguesas emergentes baseadas no esforço, mérito, concor-
rência e cultivo de si.
Em consonância com outros contextos históricos, também no Bra-
sil, os jovens estiveram reclusos nos espaços privados (e pré-políticos) do lar
e da escola de forma que se assegurasse a reprodução das famílias e dos luga-
res sociais na estrutura societária. A escola obrigatória do estado republicano
se desenvolveu como um mundo à parte, cujo objetivo era moldar, educar e
desenvolver as capacidades intelectuais dos jovens bem nascidos de modo a
prepará-los para o exercício ulterior de posições de mando. A formação des-
ses jovens, isolados nas escolas, distanciou-se das questões mais amplas da
sociedade, das discussões sobre o que era importante para todos e, portanto,
das questões públicas. No privado do lar e da escola se pretendeu edificar
a estabilidade da ordem social em que a “justa” posição de cada um corres-
ponderia à “competência” adquirida nos longos anos de formação.
Dois aspectos se destacam: primeiro, a formação nas escolas inter-
pelou os jovens como aprendizes, como aqueles que não sabiam nem de si,
nem do mundo, e, como tal, deveriam se mostrar submissos às referências
simbólicas das gerações anteriores. Segundo, a formação se constituiu como
dispositivo avesso aos conflitos e às questões mais amplas da convivência.
Apoiou-se, prioritariamente, num modelo de transmissão cultural visando
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 303

ao desenvolvimento de uma forma pura, unívoca e universal de razão des-


vinculada das emoções, da singularidade e dos antagonismos.
O processo de formação dos jovens se fundamentou sobre uma
perspectiva de formação individualizada em que cada um tem que dar conta
de si, do seu potencial, do seu desenvolvimento, o que não favoreceu articu-
lar conhecimento e luta, teoria e práxis, self e alteridade. A preparação desses
jovens, tendo em vista principalmente o desenvolvimento de suas compe-
tências, forcluiu a base viva de lutas e antagonismos, fazendo com que o co-
nhecimento se apresentasse como algo universal e inquestionável.
No Brasil, a privatização do lugar social dos jovens se realizou de dis-
tintas maneiras. Em primeiro lugar, os ideais de progresso social e individual
moldaram uma forma de ser jovem tendo em vista aqueles que podiam, sob
a guarda de suas famílias e a chancela dos educadores, se subjetivar com refe-
rência à agenda de aperfeiçoamento das capacidades individuais. Os jovens
bem nascidos das classes médias e altas puderam aderir ao trabalho escolar
e à convocação de se preparar para o futuro segundo suas competências. Por
outro lado, outros tantos jovens, à mercê das contradições do modelo repu-
blicano brasileiro (que não conseguiu promover a modernidade de ponto
de vista da repartição equânime dos bens culturais – Carvalho, 1990) e sem
o amparo da filiação parental, ficaram à margem do processo de formação
escolar, recebendo tão somente parcos rudimentos para o provimento de
recursos humanos para as ocupações subalternas. Os jovens pobres, os des-
providos, os abandonados, os que deambulam nas ruas se visibilizaram no
espaço público, mas em seu próprio detrimento, pois a eles se atribuiu o es-
tigma de “problema social”.
Então, o que gostaria de marcar como ponto importante é que a pri-
vatização do lugar da juventude ao longo do século XX, no Brasil e alhures,
foi resultado dos novos regimes de institucionalização do percurso da vida
humana, centrados em torno do adestramento e da capacitação para o tra-
balho, em que as sequências de idade foram normatizadas diferencialmente
de acordo com uma determinada estrutura de oportunidades e recursos.
304 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

No caso dos jovens, como também poderíamos mencionar aqui as crianças,


seu lugar na sociedade apoiou-se univocamente na aquisição de compe-
tências para a ocupação ulterior no mundo do trabalho, e não em qualquer
outra possibilidade de “ser” criança ou jovem. Assim, esse lugar deveria ser
operacionalizado, em princípio, no âmbito de uma carreira na escola, o que
significou, desde então, a subordinação dos jovens, como também das crian-
ças, a uma identidade social fundada em uma completude ulterior e na pre-
paração para a vida futura. Por isso, nem os grupos de jovens posicionados
em lugares sociais privilegiados, nem tampouco aqueles posicionados em
lugares desassistidos pelo poder parental ou governamental, encontraram
condições de uma participação social mais ampla e de construção de uma
subjetividade pública: os primeiros, em virtude do longo processo de prepa-
ração individual nos espaços privados da família e da escola, foram levados
a se identificar com o desempenho escolar individual e a sobrevivência pes-
soal, subjetivando-se para uma vida pública relativamente empobrecida e
limitada ao exercício político do voto. Os segundos, os jovens pobres, foram
submetidos a procedimentos violentos de contenção e sistematicamente
impossibilitados de se constituirem, subjetiva e coletivamente, como uma
força contrapública.
Num de seus raros textos sobre a relação entre a constituição dos
espaços públicos na modernidade e a subjetividade necessária para operar
nesses espaços, Habermas et al. (1987) afirmam que a razão comunicacional
necessária à consolidação de uma esfera pública em regimes democráticos
se fundamenta em um “processo gradual de aquisição de competências inte-
lectuais”, no qual deve emergir uma identidade descentrada cognitivamente,
psicologicamente independente do ambiente e do outro e capaz de objeti-
var seu próprio ponto de vista pela perspectiva de um terceiro. Esse proces-
so gradual de que nos fala Habermas et al. trata justamente da trajetória de
capacitação individual assumida modernamente pela escola, que privatizou
o lugar social dos jovens tendo em vista sua participação ulterior no mundo públi-
co. Assim, a preparação escolar deveria visar ao alcance de um determinado
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 305

perfil subjetivo – ostentado pelo ideal de autonomia, racionalidade e obje-


tividade –, fazendo com que outras tantas formas de se subjetivar fossem
suprimidas.
Em outras palavras, a emancipação prometida pelo ideário ilumi-
nista fez com que, em primeiro lugar, os jovens devessem se submeter ao
processo de capacitação para eventualmente estarem aptos a poder articular
falas, ações e, portanto, interesses no domínio público; em segundo lugar,
esse modelo “distribuiu” a capacitação segundo o critério de mérito pessoal
que, no Brasil, apenas artificialmente se fez valer, pois foram as ordenações
dadas pela origem social que se sobrepuseram para determinar o mérito no
domínio da educação formal.
O lugar social dos jovens ficou restrito ao âmbito do privado, e,
consequentemente, suas ações ficaram desautorizadas de qualquer alcance
coletivo e público que pudesse colaborar para reformar a ordem social. A
contribuição juvenil ficou aguardada para o momento oficial da maioridade
quando se legitimava, então, a assunção do cidadão portador de direitos polí-
ticos plenos. É claro que não posso deixar de notar que mesmo sob tais con-
dições vozes de alguns jovens puderam ser manifestas, aqui e ali, aglutinadas
principalmente em torno dos movimentos operários (diluídas aqui como
vozes juvenis…) e dos movimentos estudantis (aqui mais presentes…).
Martinez, o jovem anarquista espanhol de 21 anos morto na greve geral de
1917 em São Paulo, assim como Edson Luiz, de 18 anos, na manifestação
do restaurante Calabouço, em 1968, no Rio de Janeiro, permanecem ícones
das lutas por uma sociedade mais justa.1 Lutas não juvenis, mas operárias, no
primeiro caso, e estudantis, no segundo.
Assim, a posição de silenciamento permaneceu como a estrutu-
ra dominante do lugar dos jovens, mesmo que oportunamente alguns te-
1 “Mataram um estudante, poderia ser seu filho!”, expressão que denunciou a morte do jovem Edson Luiz, ao
indicar a infâmia deste assassinato, o faz apelando para a posição do jovem na ordem geracional – ser filho – e
pelo que isso poderia repercutir na geração dos adultos. Nesse sentido, deixa de apelar para o valor intrínseco
da vida do jovem, enquanto jovem, para ressaltar seu valor como perda irreparável, a de um filho, para a gera-
ção mais velha.
306 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

nham podido romper esse silêncio. Ianni (1968) nota, a esse respeito, que
a radicalidade daqueles jovens que contestam o sistema vigente quando se
dão conta de suas contradições nem sempre os conduz a uma apreensão
totalizadora da situação de opressão produzida pelo capitalismo. Por mais
que a imaturidade, segundo esse mesmo autor, possa favorecer a condição
subjetiva de arroubos e inconformismos, estes nem sempre vão servir para
denunciar as contradições do sistema, porque, frequentemente, os jovens
têm que se subordinar às pautas e normas vigentes e adequar suas expectati-
vas às do seu papel social de adulto e às recompensas que isso lhe trará. Mas
será que é a partir da radicalidade, tal como compreendida por Ianni, que a
posição de silenciamento pode ser rompida? Afinal, a radicalidade do jovem
constitui um recurso efêmero, pois, como coloca o autor, logo o jovem de-
sejará se inserir na ordem social como adulto, abdicando de sua posição de
contestação.
Se o inconformismo e a radicalidade puderam ser pensadas como dis-
positivos, mesmo que temporários e insuficientes para uma ação política efê-
mera, quais são as possibilidades de rompimento do silêncio nos nossos dias?

II

Se ao longo do século XX, no Brasil, as falas juvenis estiveram estru-


turalmente silenciadas, ainda que tenham podido se manifestar, apesar da
contenção violenta ou sutil, o cenário que se descortina ao final do século traz
elementos novos ao tentarmos responder à pergunta: Os jovens podem falar?
A produção hegemônica do capitalismo transformou as dominantes
culturais e, com elas, os modos de produção de subjetividades. Como diria
Fredric Jameson (1996), as linguagens que antes davam conta de nossa ma-
neira de viver e de sentir hoje parecem impotentes para nomear a experiência
individual e coletiva no mundo contemporâneo, regido pela internacionaliza-
ção dos mercados e capitais, pelas novas formas de organização empresarial
acompanhada do desenvolvimento tecnológico (das mídias, dos sistemas de
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 307

informação, transporte e automação), como também pela crise geral do traba-


lho. Muito mais do que apenas mudanças nos modos de produção, agora se
trata de um sistema totalizador e coeso em que o monopólio do capital pene-
tra totalmente nos modos de vida e nas relações culturais.
A cultura contemporânea de consumo resume essa dominante cultu-
ral que, como uma indústria cultural para as massas, intervém de forma incisiva
nos modos de subjetivação. Tal lógica cultural dominante, advertiram Theo-
dor Adorno, Herbert Marcuse e outros, coloniza nossos afetos, o inconsciente,
nossa estrutura de hábitos e valores, colocando-nos o desafio de recuperar uma
cultura política que nos permita compreender hoje nosso lugar neste sistema
global e, além disso, recuperar nossa capacidade de agir e lutar.
Mas o que nos interessa examinar aqui é como tal lógica cultural vai
atingir a juventude nos seus modos de subjetivação e como essa dominante
cultural produz dialeticamente o embate que se trava entre a fala e o silencia-
mento da juventude, entre sua maior opressão e/ou maior agência pessoal
e coletiva.
A demanda desvairada pela renovação incessante das mercadorias
exige a contrapartida no modo de funcionamento dos sujeitos, ou seja, a
abundância de mercadorias requer uma subjetividade desejante, em que
não pesem os limites da interdição e do adiamento pulsional. Consumir no
contemporâneo re-dimensiona nossa experiência com as coisas e os objetos
que, de entes no mundo como nós, se tornaram extensões narcísicas do nosso desejo
insaciável. Se nos momentos anteriores do capitalismo havia, ainda, uma va-
lorização do esforço, da concentração e do investimento a longo prazo, agora
os modos de subjetivação na lógica cultural do capitalismo tardio convocam
ao prazer ilimitado, à dispersão e ao engolfamento subjetivo na intensidade
do presente.
Retomando Adorno (ADORNO; HORKHEIMER, 1986), que já
afirmava, antes mesmo de poder vivenciar nossos dilemas atuais, como a ex-
periência hodierna do prazer – através da diversão, do entretenimento – corres-
ponde à resignação de que nos seja oferecido um gozo qualquer, contanto que
308 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

acreditemos que ele, o gozo, estará sempre ali, ao nosso alcance, onde quer que
estejamos, ou seja, que nos tornemos seus “eternos consumidores”. A diversão
consiste então em “estar de acordo”, como diz Adorno, e o sentido de tal afir-
mação aponta para a necessidade de se desacostumar da própria subjetividade,
isto é, de abdicar do próprio pensamento enquanto possibilidade de negação e
de resistência. Nesse contexto, transforma-se por completo a sintaxe subjetiva
de como se vive e como se busca a felicidade hoje.
O que significa ser feliz? A resposta de um jovem a essa pergunta
pode nos ajudar: “ter tudo o que não tenho, e não ter o que pensar, não ter
obrigações a fazer (…)”. A esse jovem Adorno retrucaria que, ao acreditar
que seu prazer e felicidade possam estar encerrados nas coisas mesmas que
ele não tem, ele se tornaria o fiel consumidor de gozos que ele é incessante-
mente instado a acreditar como sua felicidade. Uma felicidade que se resu-
me a não ter o que pensar, não ter o que fazer, e que, dessa forma, o dispensa
de resistir, de pensar, de se não conformar. Por outro lado, essa estrutura sen-
timental – tal como expressa nas palavras do jovem – parece extremamente
distante da maneira como a felicidade foi há não muito tempo experimenta-
da na sua dimensão de “promessa rompida” e, por que não dizer, de renúncia.
Nesses termos, a felicidade é possível aqui e agora, mas só como o entrever
do que não existe ainda, no ter esperança a respeito de uma realidade que
ainda e talvez jamais se possa alcançar.
Assim, na dominante cultural do capitalismo de consumo se efetuam
transformações radicais em relação ao que somos convocados a crer e a viver
– a própria noção de felicidade, por exemplo, se transforma. Nosso consumo
atual de felicidade – como diversão e reconciliação – é feito sob a forma textu-
alizada das imagens produzidas industrialmente pelas novas tecnologias que,
como mostrou Debord (1967) nos idos anos 1960, têm a pretensão de abar-
car e dar o sentido à vida social. Dessa forma, diz Debord, o “espetáculo é o mo-
mento em que a mercadoria ocupa a vida social” e nos devolve uma imagem
reificada de nós mesmos, uma vez que nossas referências simbólicas do que
somos e do que queremos ser estão cada dia mais sujeitas a serem esculpidas
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 309

não por nós mesmos ou por nossas ações no cotidiano, pelos conflitos e pelas
lutas que travamos, mas pela autonomização de um sistema financeiro avassa-
lador que nos impõe modelos, ideais e modos de ser.
Como dominante cultural, o processo de estetização e espetaculari-
zação impôs a visibilidade como requisito de subjetivação: aparecer para ser
e aquele que aparece logram ser muito mais daquele que não é percebido.
A cultura da imagem traz para o instante da percepção – o vívido presente
imagético – uma chave única com a qual temos que nos haver para desven-
dar os sentidos da realidade em nossa volta. Assim, reduz-se drasticamente a
historicidade possível dos acontecimentos e das relações sociais àquilo que
é presenciado, sentido e vivido no momento.
Queria então trazer essas reflexões para pensar especificamente seus
efeitos de subjetivação na juventude hoje, além de analisar como o cenário
atual contribui ou, pelo contrário, mina, implode, arrefece a luta pela eman-
cipação e que vai contra o silenciamento e a opressão dos jovens.
Os jovens se tornaram alvos preferenciais da cultura de consumo
que, por meio da publicidade, textualiza a juventude nas imagens de potên-
cia, felicidade e bem-estar, num jogo que embaralha fragmentos textuais
com vistas à manutenção da lógica cultural do capitalismo. A imagem hege-
mônica da “juventude” hoje enreda-se na cadeia de significantes em torno
do prazer, do desfrute, da experimentação e da intensidade. Por meio dessa
construção da juventude se formata um estilo de vida que serve e se torna co-
optado pela renovação econômica ilimitada de produtos. Dessa forma, esse ideal
cultural atrelado a um estilo jovem de ser se dissemina como forma cultural
dominante convocando quem quer que seja a se incluir como protagonista.
Não que tal construção textual sobre a juventude exclua outras, mas essa
promove um modo de subjetivação de acordo com a dominante cultural. É
importante observar que outros “textos” sobre a juventude também existem
e dão conta de interesses mais específicos dentro dessa mesma lógica domi-
nante que vão de encontro à manutenção hegemônica da repartição desigual
das riquezas. São textos que retratam a juventude de outro modo, por exem-
310 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

plo, com violência, pobreza, criminalidade e problema social; ou ainda que


a retrate com angústia, desorientação, depressão e transgressão. Tais ensaios,
longe de dizer da juventude como potência e desfrute, a inscrevem como
irrecuperavelmente sobrante dentro deste admirável mundo novo em que
apenas alguns conseguem ou merecem vencer. Ou seja, para alguns apenas
se aplica, de fato, a possibilidade real do desfrute e da potência, enquanto
para os outros existe somente a crença de que um dia poderão desfrutar tan-
to como os outros.
O que se nota, no entanto, na enunciação textual que retrata os jovens
sob a imagem do desfrute e da experimentação incessante é que este ensaio
constitui um recurso identificatório poderoso para todos os jovens, levando-os a crer
na possibilidade do gozo sem limites. Os jovens seriam estes personagens que,
respondendo à demanda da dominante cultural, deveriam dramatizar a cena
imaginária do gozar como, quanto e quando se quer, cena essa que representa
o sintoma de nossa cultura contemporânea, como observa Kehl (2004).
Nesse cenário, em que o ato cultural se torna parte da engrenagem
reprodutiva do capital, parece importante pensar como as resistências e a fala
contra-hegemônica podem se articular. Principalmente no caso dos jovens,
que, frequentemente pela via da cultura, seja pela criação de identidades cul-
turais, seja pela utilização de recursos estéticos, pretendem fazer valer seu
lugar singular na sociedade e de suas demandas. Daí a pergunta: “Os jovens
podem falar?”. Como os jovens poderiam falar de si quando tantas “falas” se
impõem sobre ele e tornam-no refém de uma cultura colonizada pelo capi-
tal? Concordamos com Jameson quando afirma que hoje a “distância críti-
ca”, fórmula que a esquerda usou para salvar a cultura do “ser massivo do ca-
pital” para deste ponto atacá-lo, não é mais possível. Nem mais a cultura, ou a
arte, fornece atualmente a base territorial segura de onde se poderia articular
alguma resistência em um sistema que tudo coopta e tudo engole para dele
fazer parte. Carecemos ainda de cartografias, dentro do espaço mundial do
capitalismo internacional, que possam representá-lo e, assim, nos ajudar a
apreender nossa posição como sujeitos individuais e coletivos.
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 311

Em tal posição de desorientação fica difícil lutar, se contrapor e agir. Como


os jovens podem agir e desvendar as opressões sutis que os atingem? Qualquer ação
se sustenta pela narrativa que conta, organiza e torna inteligível nossa posição
no mundo. Para agirmos precisamos de uma construção narrativa de futuro
– vislumbrarmos para onde vamos e, sobretudo, para onde queremos ir, na
perspectiva de um projeto coletivo em que alguma agência humana seja pos-
sível. Senão, estaremos apenas indo para o futuro à mercê das catástrofes, ou
submetidos ao destino inexorável urdido pelos deuses ou pelo capital. Como
nos lembra H. Arendt (1986), a ação e a fala (o discurso, a narrativa) estão
indissociavelmente associadas e dizem respeito, exatamente, às alternativas de
construção do que já está posto. Para Arendt, a ação é o elemento da vita activa
que se relaciona especificamente com a política, ou seja, com a condição hu-
mana da convivência plural em que homens e mulheres têm que negociar seu
destino comum. Todavia, nas condições de desorientação social e espacial em
que nos encontramos, o agir se torna problemático, ainda mais se levarmos em
conta a posição específica dos jovens.
É interessante exemplificar esse argumento com alguns estudos que
têm se debruçado sobre a questão do agir dos jovens no contemporâneo, e
como esse agir convalesce frente aos imperativos da dominante cultural. Em
um projeto de pesquisa-intervenção realizado com cerca de 1.300 jovens de
19 bairros populares da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (CASTRO
et al., 2005), tivemos a oportunidade de lhes perguntar sobre as figuras do
mundo público com quem se identificam. De forma significativamente pre-
ponderante, os jovens se identificaram com figuras midiáticas, como can-
tores, apresentadores de TV, líderes esportivos, que encarnam as imagens
de sucesso pessoal, fama, riqueza, mas também, nas palavras dos próprios
jovens, são “tudo de bom”, figuras que se tornam idealizadas, quase que míti-
cas no imaginário juvenil. Essas figuras expressam o ômega de uma trajetória
de vida bem-sucedida. No entanto, nesse itinerário dos que se dão bem, os
jovens não conseguem discriminar o que leva tais pessoas ao sucesso, ou
seja, para eles há uma condensação do que essas figuras são, com o que elas
312 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

fizeram para chegar até lá. É como se a afirmação “eles, os bem-sucedidos,


estão lá porque fizeram bem” e a afirmação “eles fazem bem porque estão lá”
fossem intercambiáveis. Ou seja, estar lá significa, de pronto, ser bom. Pou-
cos conseguem falar sobre quais ações levariam às situações de gratificação
e sucesso desfrutadas por seus ídolos.
O que nos diz esse processo identificatório? Parece que as identi-
ficações com figuras midiáticas, idealizadas, não fornecem pistas para que
os jovens possam se apropriar simbolicamente dos meios/das ações para se
chegar onde desejam. Longe disso, elas propiciam somente “miragens”, “de-
vaneios” de sucesso e bem-estar que não potencializam a ação de jovens que
se identificam com essas figuras. Este e outros estudos, como o de Cristiana
Carneiro (2002), Viviane Girotto (2007) e de pesquisadoras do Nipiac, têm
constatado como a identificação com determinados pontos de chegada não
sustenta as ações dos jovens em direção aos objetivos que querem alcançar,
pois faltam recursos simbólicos que orientem justamente o processo – por
exemplo: o que se faz para alcançar os objetivos?; que ações são necessárias
para se chegar a tal lugar? Assim, as identificações com os ídolos que dizem
dos pontos onde muitos jovens querem chegar não estão amparadas por
experiências significativas que os capacitem para o agir ao longo de etapas
sucessivas frente aos objetivos. Vale dizer que tal dificuldade em relação ao
agir não é atributo apenas de jovens pobres urbanos, cuja “falta de oportuni-
dades” empobreceu a amplitude de seus recursos simbólicos, mas também
de jovens de classes médias, que, por outras razões, se sentem completamen-
te incapazes de construir planos de ação em relação ao que desejam.
Portanto, parece que muitas dificuldades cercam o agir dos jovens
hoje. A construção de um plano de futuro, tanto na vida pessoal como tam-
bém na vida pública, esbarra na desconfiança e na dúvida dos sujeitos quan-
to a poder transformar o curso dos eventos. (Quantos e quantos jovens –
muitas pesquisas o mostram – gostariam de participar de ações coletivas,
de participar de grupos de jovens, de se engajar em ações cidadãs, mas não o
fazem…) Nesse sentido, muitos percalços impedem que a ação individual e
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 313

coletiva, como possibilidade de agência, possa instaurar processos de trans-


formação social contra-hegemônicos e resistência ao que está posto.
Voltemos à pergunta “Os jovens podem falar?”. Ou ainda “Os jovens
podem agir?”. Que falas e que ações juvenis põem em questão a injustiça e a
opressão de que eles próprios padecem e, nesse sentido, põem em questão a
nossa – de todos – maneira de viver? Em outras palavras, quais as condições
de possibilidade de que os jovens, hoje, possam aparecer como porta-vozes
de um processo emancipatório em que demandas e lutas específicas, no caso
juvenis, verificam, na sua particularidade, o ideal “universal” da igualdade?

III

Até aqui, neste sobrevoo esquemático, argumentamos que a con-


dição estrutural de silenciamento que se impôs aos jovens no período da
modernidade sociológica circunscreveu-os aos espaços privados da esco-
la e da família, cuja subjetividade, qualificada pela ausência ou pelo déficit
de características humanas plenas, deveria se credenciar e se preparar para
a ação no mundo público. Deslocamentos neste paradigma de modos de
subjetivação foram trazidos pelas transformações do contemporâneo, prin-
cipalmente com o acirramento do modelo capitalístico internacional e
sua lógica cultural dominante, a partir da segunda metade do século XX.
Problematizamos a visibilidade juvenil que, se, por um lado, alça os jovens
à condição de atores no espaço público, os embaralha com textos e “falas”
recortados pelos interesses hegemônicos da reprodução capitalística. Nesse
sentido, as condições contemporâneas, como nos ensina Marx, devem ser
pensadas dialeticamente na sua forma positiva e negativa ao mesmo tempo.
Por isso, acreditamos poder afirmar que a cultura de consumo tanto produ-
ziu uma visibilidade libertária da condição juvenil, já que a desamarrou de sua
ancoragem adultocêntrica, como, por outro lado, a capturou como protago-
nista principal do paroxismo neoliberal da busca individualizada do prazer,
da diversão e da experimentação.
314 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Nesta altura do argumento, gostaria de agregar outros elementos


de análise tendo em vista a pergunta “Os jovens podem falar?”. Dizendo
de outro modo: quais as possibilidades políticas de ser jovem e de que
forma as falas juvenis podem ter efeito nos destinos que traçamos para a
vida coletiva? Como subjetivar-se politicamente frente ao desgaste da re-
sistência e da militância? E, enfim, como participar social e politicamente
da sociedade?
O liberalismo não poderia ter sido mais eficiente se não tivesse
colonizado a subjetividade, como o fez por meio da crença na autonomia
individual e da concepção de liberdade pessoal como recusa à ingerência
externa (a liberdade negativa, segundo Isaiah Berlin, 2001). O individualis-
mo, como modo de subjetivação prevalente, trouxe a consciência de uma
disjunção a ser realizada entre o “eu” e o “nós”, em que se torna obrigatória
a construção de uma distância entre a herança identitária de cada um (sua
história familiar, a história do seu grupo cultural e de classe) e o indivíduo
por ele mesmo. Não é à toa que a teorização sociológica contemporânea se
volta para o indivíduo como instância que poderia dar conta de uma “reser-
va de si”, na expressão de François de Singly (2006), que tomando distância
das injunções de seus papeis sociais pode expressar sua “singularidade irre-
dutível”, ou seja, pode agir a partir de um patamar subjetivo que não está
reduzido e contido pelas determinações de seu processo de socialização.
François Dubet (1994) coloca, a esse respeito, que a socialização nunca é
total e, por isso mesmo, a “subjetividade” é capaz de agregar renovação à vida
social por meio da construção de espaços de autonomia que se conquistam,
cujas expressões de si são mostradas nos espaços públicos. O que chama a
atenção nestas colocações é a atribuição à individualização, entendida como
processo de autoconstrução que desamarra o indivíduo em relação às suas
identificações primárias de pertencimento, como o “momento de verdade”
da subjetivação – ou seja, passa a depender da subjetividade a possibilidade
de superar e ir além do que está previamente determinado, do que está pos-
to, enfim, a subjetividade passa a ser o dispositivo mesmo de transformação
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 315

social. É por meio da conquista da própria autonomia, quando o indivíduo


pode se autorizar a falar e a agir em seu próprio nome, que a ordem social
pode ser renovada. (É claro que temos de ressaltar: nem toda renovação vai
de encontro às possibilidades de maior justiça e igualdade.)
Mas o que significa falar e agir em seu próprio nome? Para o jovem
significa ganhar distância em relação às suas identificações iniciais, com a
ajuda dos discursos sociais que o coloca como um indivíduo distinto, pecu-
liar, com necessidades, demandas e, como não poderia deixar de ser, “direi-
tos” específicos. Nesse sentido, os discursos sociais produzem hoje modos
de subjetivação que conduzem ao primado do “ser você mesmo”, processo
que Axel Honneth (2003) denomina como “a virada do reconhecimen-
to”. Reconhecimento que se ampara tanto na busca identitária “contra” as
pertenças originais, quanto abrange a demanda de ocupar um lugar social
investido positivamente. O processo de individualização e o que lhe é su-
cedâneo, o de reconhecimento, nos interessam porque ajudam a entender
o surgimento de “novas identidades” no contemporâneo. A “identidade ju-
venil” seria uma dessas identidades construídas como uma determinada es-
pecificidade nos modos de ser e/ou como uma condição histórica de exis-
tência culturalmente peculiar. No entanto, resta indagar: em que medida os
discursos sociais se constituem como recursos para que os “silenciados”, os
“oprimidos”, os “injustiçados”, os jovens possam falar?
A postulação de que os jovens as e crianças são sujeitos de direitos
fornece uma entrada para examinar tais questões. Recentemente, os discur-
sos sobre direitos específicos desses grupos têm alavancado as demandas
em torno da especificidade de ser jovem. Sobretudo, os discursos sobre di-
reitos têm fornecido a munição para que os jovens entrem na cena públi-
ca como identidades que postulam demandas específicas, diria, demandas
identitárias, referidas ao que é, supostamente, específico de ser jovem. Gos-
taria de me deter sobre essas possibilidades que se anunciam para os jovens
e analisá-las sob a perspectiva de como esses discursos podem subsidiar uma
aventura política para os jovens.
316 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Os idiomas dos direitos e da cidadania têm se constituído como o


dispositivo pelo qual muitos grupos de jovens têm podido articular deman-
das e fazer essa travessia dos espaços privados e silenciados na direção dos
espaços públicos de contestação e reivindicação. São inúmeros e diversos
os grupos juvenis emergentes que estão conseguindo aglutinar demandas
acerca do que consideram que lhes é devido – pela sociedade –, em virtude
da sua condição específica de ser jovem. Não seria o caso aqui de descrever
a extensão desse fenômeno. Importa, na linha de argumentação que estou
tomando, observar que o idioma dos direitos, no caso da juventude, opera
através de distintos centros de enunciação, além daqueles aglutinados inci-
pientemente nos grupos juvenis. Alguns deles são: os governos (desde 1989
com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), as or-
ganizações da sociedade civil, principalmente ONGs, as fundações privadas
nacionais e internacionais, alguns partidos políticos, os movimentos sociais
e, também, pesquisadores e profissionais da juventude. Isso significa que a
chave de compreensão do que vem a constituir os tais “direitos juvenis” está
longe de estar prevalentemente nas mãos e na ação dos jovens, mas concer-
nem enunciações de determinados setores da sociedade que agregam seus
interesses específicos às lutas juvenis e em nome delas. Então tem-se uma
certa plurivocidade de enunciações sobre direitos, nem sempre convergen-
tes e, tampouco, condizentes com os interesses do grupo em questão.
Para dar um exemplo: em torno dos direitos das crianças objetiva-
dos nos termos do ECA de que essas são “sujeitos em desenvolvimento”, se
definiu, no meu entender, mais um ponto de vista adultocêntrico sobre as
crianças e se manteve intacta determinada visão sobre as crianças, ao invés
de realmente se coibir as injustiças contra elas devido à sua condição pecu-
liar de existência. Do mesmo modo, a enunciação de direitos dos jovens que
hoje se faz em nome de suas “necessidades singulares de experimentação”,
em função da moratória social em que se encontram, mais concorre para
cooptar a juventude nos termos de uma dominante cultural do capitalismo
de consumo, ao se promoverem inadvertentemente deslizamentos entre
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 317

experimentação e desfrute, experimentação e gozo, experimentação e po-


tência, do que em colaborar para o devir político dos jovens na construção
de equivalências entre a opressão que sofrem e aquela sofrida por outros
grupos sociais.
Assim, é na tensão entre textos diversos que competem entre si e
pretendem dar conta do que os jovens têm direito; que os próprios jovens,
eles mesmos, têm que se haver para definir o que, neste momento histórico,
deve lhes ser garantido.
O que parece estar em jogo nessas disputas é o valor agregado cha-
mado “juventude” que se adiciona à pauta de governos, à ação e à captação
de recursos por parte de ONGs, à recuperação da boa imagem por parte de
empresas ou a tantas outras motivações que infestam o campo de ações pro-
gramáticas para e pela juventude edificadas sobre a legitimidade da expres-
são “sujeito de direitos”. No entanto, permanece a questão do que consiste
a especificidade do “ser jovem” e do que isso deve assegurar em termos de
direitos e de deveres de outros para com eles.
Como pesquisadora nesse campo há mais de 30 anos, tenho presen-
ciado inflexões interessantes e que me fazem pensar como a busca de espe-
cificidades, em outras palavras, a busca por diferenças específicas no curso
da trajetória de vida, tem obliterado a reflexão e o debate conceituais. Estes
têm se deixado moldar pela sedução do impacto que pode ser exercido na
definição de obrigações por parte dos estados – nas chamadas políticas pú-
blicas, que legitimam “realidades” da noite para o dia, simplesmente pelo fato
de se lhe aportarem recursos. Nesse sentido, quanto mais diferenças forem
criadas, mais a possibilidade de direitos específicos, e mais possibilidades de
políticas com recursos a elas destinados. Portanto, as diferenças geram direi-
tos específicos, e estes têm proliferado: hoje temos as especificidades (e di-
reitos) da primeira infância, em oposição às da infância; as especificidades (e
direitos dos bebês), em oposição às da primeira infância; as especificidades
(e direitos) dos jovens, em oposição às dos adolescentes; as especificidades
dos adolescentes, em oposição às das crianças. Isso para não falar nos da ter-
318 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

ceira idade, e assim por diante. O que significa tal concentração de esforços
para definir especificidades e diferenças que delimitam fronteiras identitá-
rias? Sem dúvida, tal esforço de fazer surgir identidades deságua nas possibi-
lidades de que essas possam valer na cena pública enquanto demandas legí-
timas por parte desses novos atores. Esse esforço se respalda na descoberta
recente de que qualquer nova identidade pode valer em termos de validar
reivindicações por direitos, recursos e/ou reconhecimento.
Nessa linha, vale a pena questionar em que sentido e sob que condi-
ções a diferença pode inaugurar lutas políticas e, no nosso caso, em que con-
dições a diferença de ser jovem, por exemplo, pode ser o mote “para que o
jovem fale”, tal como nos perguntamos de início, “Os jovens podem falar?”
O desvelamento da opressão se dá no processo histórico cujos em-
bates permitem que os sujeitos re-signifiquem sua posição frente a outros
e se re-posicionem, assim como se expanda a consciência coletiva sobre as
formas de opressão, até então naturalizadas e não desveladas. Nesse sentido,
o desvelamento das formas de opressão se constitui sempre como luta polí-
tica empenhada em “verificar o princípio da igualdade entre homens e mu-
lheres”, na expressão de J. Rancière (1996, 1995). O discurso sobre “direitos”
pode fornecer hoje uma condição de subjetivação política para aqueles que,
tendo na prática seus direitos negados, sejam interpelados a se indignar e a
lutar. Chantal Mouffe (1987) chama esse processo de “interpelação contra-
ditória”, justamente porque posições subjetivas contraditórias – ter direitos,
em princípio, e não tê-los, de fato – potencializam antagonismos e lutas polí-
ticas. Assim como o discurso sobre direitos, outros discursos podem exercer
o mesmo efeito, como, por exemplo, o discurso sobre a igualdade, a noção
de democracia e a ideia ou o sentimento de justiça. Mas é o discurso sobre
direitos que se constitui um discurso social hegemônico nos nossos dias.
No entanto, com qual idioma o discurso sobre direitos tem se coloca-
do e tem sido apropriado? Prevalentemente, o discurso sobre os direitos tem
propugnado a diferença como seu idioma default (padrão) – a do jovem, a do
idoso, a do negro etc. Contudo, as lutas que têm como bandeira a diferença
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 319

conduzem a diversificar, mais do que a equivaler, demandas de justiça e igual-


dade, e consequentemente, se desvinculam, política e eticamente, da resistência à
produção hegemônica de todas essas opressões, optando por trilhar o caminho no qual
a diferença de uns levará a antagonizar a dos outros. Com Mouffe, pensamos que,
somente se equivalências puderem ser construídas entre lutas tão diferentes,
poderemos criar uma força democrática capaz de fazer face ao inimigo co-
mum e às inúmeras formas de desigualdade da sociedade atual.
Isso não quer dizer que a luta pelo reconhecimento de diferenças
não seja importante, mas justamente que o valor da diferença possa cons-
tituir um poder particularizador – isto é, dar substrato cultural e histórico
– às lutas pela condição universal da igualdade que deixam para trás o parti-
cularismo das identidades para poder construir, de fato, esse universal sem-
pre precária, e insuficientemente definido. J. Rancière (1998) é quem nos
auxilia aqui, ao afirmar que é necessário quebrar a lógica do mais um, ou
seja, a que objetiva incorporar a demanda de mais uma minoria, de mais
um grupo identitário e do “seu” reconhecimento e dos seus direitos, para
dar lugar, na luta política, a outras visões e ordenamentos da realidade. De
outro modo, estaremos fazendo o jogo da própria lógica homogeneizante e
des-territorializante do capital que demanda constantes re-territorializações
identitárias para aí ancorar a reprodução mercantilista de novos produtos,
novos serviços, novas publicidades, novos lazeres e novas experimentações.
A aventura política dos jovens não pode, a meu ver, resvalar e se re-
sumir na “fala domesticada” e prêt à porter dos “direitos” pela diferença, que,
como nos ensina Pierucci (1999), se autorreproduz em milhares de subes-
pécies. Ela gera cada vez mais diferença e oblitera qualquer “processo de sin-
gularização universalizável” (BADIOU, 2007, p. 12).
Gostaria de esclarecer essa análise mais teórica com uma ilustração
do que quero dizer. Tomo como exemplo a própria “fala” dos jovens para
daí problematizar sua condição de silenciamento e sua possibilidade de fala
e ação política. O exemplo é tirado da Conferência Nacional da Juventude,
realizada em abril de 2008, que foi o cume de um longo processo de mo-
320 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

bilização de jovens em todo o país. Nesse processo, tomo este aspecto, que
parece anódino e insignificante, mas para mim se traduziu em uma lição.
A temática trazida nesta conferência pelos jovens de todo o país que mais
aglutinou adesões, totalizando cerca de 1.087 propostas, foi a referente à
educação, número que representa o dobro de adesões à segunda proposta,
referente à temática trabalho.
Queria enfatizar, aqui, a importância que a temática educação rece-
beu como “interesse coletivamente acordado” pelos jovens. Esse interesse se
definiu, no texto da própria conferência, como a formação do jovem desde
o ensino fundamental, até o superior. A demanda por educação pública e
de qualidade para todos foi a demanda que se sobressaiu na conferência;
ela é também a que tem sido reiterada em vários outros estudos com jovens
brasileiros realizados por grupos distintos de pesquisadores. Embora a de-
manda por educação não seja a única que os jovens encampem – muitas
pesquisas têm apontado a diversidade de demandas, muitas delas contem-
plando outras especificidades da condição juvenil, gostaria de tecer algumas
considerações sobre o que essa demanda por educação sinaliza.
Em primeiro lugar, a demanda por educação transversaliza reivin-
dicações que não seriam apenas dos jovens, mas também das crianças e de
todos aqueles fazem parte da “geração mais nova”. O alcance dessa demanda,
do ponto de vista político, a meu ver, é duplo: primeiro, ela consegue justa-
mente articular, a partir de situações específicas de desigualdade, equivalên-
cias entre tais situações, todas elas advindas das mesmas condições de opres-
são; segundo, essa demanda se insere em uma agenda ampla, qual seja, a que
questiona a reprodução geracional e seus destinos, em que a geração mais
nova reivindica a dívida simbólica que a geração mais velha tem na transmis-
são do legado cultural. A demanda por educação não significa tão somente
algo que a geração mais nova demanda aos mais velhos como seu direito. O
metatexto dessa demanda inscreve esta dívida, no cenário contemporâneo,
no âmbito da politização da transmissão cultural, ou seja, ele representa o
prenúncio da politização da relação entre mais novos e mais velhos.
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 321

Estou finalizando meu argumento e esse término se projeta numa


longa discussão da qual não darei conta. Mas gostaria de esboçar alguns
encaminhamentos para poder também voltar à minha pergunta inicial: “Os
jovens podem falar?”
A educação das crianças e dos jovens esteve vinculada aos espaços
privados da família e da escola, pois dizia respeito à liberdade de cada um
poder dar à sua prole a formação que entendesse. Por outro lado, a nova ge-
ração deveria ser poupada dos “negócios do mundo”, ainda não totalmente
pronta, segundo o modelo de subjetivação do indivíduo racional das socie-
dades liberais imantadas pelo progresso. Mesmo a escola, que sempre abar-
cou uma vida social mais plural que a família, não era considerada como
domínio do espaço público, pois, como argumentou H. Arendt (1972), ela
está marcada por relações entre desiguais, estabelecidas por uma hierarquia
natural entre adulto e jovem. Embora o tema da educação tenha gerado de-
bates públicos no nosso país, pelo fato de constar da pauta de consolidação
dos estados nacionais e seus projetos a longo prazo, o cuidado com a nova
geração permaneceu sempre fronteiriço às grandes questões nacionais. Na
verdade, os que se beneficiavam da educação pública, como política do es-
tado, não detinham poder político para cobrar o que supostamente lhes era
devido, concedido quase como um favor.
A demanda pela educação reivindicada hoje pelos jovens se coloca
em um cenário completamente distinto. Em primeiro lugar, ela traz para o
espaço público novos atores que problematizam a extemporaneidade do
processo de transmissão geracional: a institucionalidade inadequada que a
sustenta, os efeitos pífios que alcança e os objetivos autoritários que traça.
Tudo isso é questionado do ponto de vista daqueles que sofrem o processo e podem
falar de si e da sua experiência como estudantes que são, ou que não conseguiram
ser. Nesse sentido, não é pelo estudante, nem tampouco pelo filho/filha,
ambas posições marcadas pela subordinação, que entram em cena novas
demandas pela educação, mas por alguém que ao questionar o sentido, a
institucionalidade e os objetivos do projeto educacional no país se coloca
322 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

como um igual na discussão desse aspecto específico do destino nacional e


das relações geracionais. Ao se colocar como um igual, este novo ator pro-
blematiza a prerrogativa absoluta dos adultos no processo de transmissão
cultural, questionando seu poder de dispor de cima para baixo o formato
do que é importante hoje e do que será amanhã em relação a que mundo se
quer viver e construir.
Portanto, a demanda de educação instaura um campo de antagonis-
mos porque se politizam as relações antes contidas pela desigualdade natu-
ralizada entre adultos e jovens, e se politizam questões antes tomadas como
prerrogativas exclusivas de um grupo social.
No entanto, temo que, ao se designar por “jovens” esse novo ator so-
cial, estejamos fixando identitariamente o movimento contra-hegemônico
mais amplo da demanda por educação, em cima de uma noção que denota
uma experiência social concreta, por exemplo, aqueles que têm entre 15 e 25
anos. Nesse sentido, vejo uma redução e esquematização da luta política e
sua sustentação por meio de uma demanda identitária.
Por outro lado, se a noção “jovens” for tomada como um significante
vazio, na acepção de Zizek (2000), que pode compreender uma variedade
de experiências particulares, um “universal”, por assim dizer, pode-se vislum-
brar o potencial contra-hegemônico das lutas juvenis, e das possibilidades
políticas de suas falas. Por “jovens”, estaríamos então equivalendo o que a
noção de “proletariado” efetuou no século XIX, quando foi ela que possibili-
tou a articulação de lutas diversas pela transformação social.
Temo que as lutas ideológicas por hegemonização – a revolução
passiva, de que fala Gramsci (em SASSOON, 1982) – possam se apo-
derar de noções apolíticas, como jovens ou juventude, por exemplo, para
promover concessões a novas identidades desmantelando as lutas contra-
hegemônicas. Aí, sem dúvida, os jovens serão novamente silenciados e
perderão essa oportunidade histórica de se experimentarem como atores
políticos.
Os jovens podem falar? Sobre as possibilidades políticas de ser jovem hoje 323

Referências
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
BADIOU, A. Saint Paul, la fondation de l’universalisme. Paris: Puf, 2007.
BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: BERLIN, I. et al. (Org.). Estudos sobre a humanidade: uma antologia
de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 226-271.
CARNEIRO, C. Tempo e destino no contemporâneo: uma leitura do sujeito através da adolescência. 2002. Tese
(Doutorado) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
CARON, J. C. Os jovens na escola: alunos de colégio e liceus na França e na Europa (fim do século XVIII
– fim do século XIX). In: LEVI, G.; SCHIMITT, J. C. (Org.). História dos jovens, a época contemporânea. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996. v. 2.
CARVALHO, J. M. C. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
CASTRO, L. R.; KOSMINSKY, E. Childhood and its régimes of visibility in Brazil: an analysis of the contri-
bution of the social sciences. Current Sociology 58, 2 (1), 206-231, 2010.
CASTRO, L. R. et al. Mostrando a real: um retrato da juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nau/
Faperj, 2005.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1967.
DUBET, F. Sociologie de l’expérience. Paris: Seuil, 1994.
GIROTTO, V. O valor do trabalho e o trabalho como valor: jovens pobres e inserção profissional. 2007. Tese
(Doutorado) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
HABERMAS, J. et al. The development of the self. In: BROUGHTON, J. (Ed.). Critical theories of psychological
development. Londres: Plenum, 1987. p. 275-299.
HONNETH, A. Redistribution as recognition: a response to Nancy Fraser. In: HONNETH, A.; FRASER,
N. (Ed.). Redistribution or recognition - a political philosophical exchange. Londres: Verso, 2003. p. 110-197.
IANNI, O. O jovem radical. In: BRITTO, S. (Org.). Sociologia da juventude I: da Europa de Marx à América
Latina de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
JAMESON, F. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
KEHL, M. R. A juventude como sintoma da cultura. In: NOVAES, R.; VANNUCHI, P. (Org.). Juventude
e sociedade; trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Instituto da Cidadania/Fundação Perseu
Abramo, 2004. p. 89-114
MOUFFE, C. Hegemony and new political subjects: toward a new concept of democracy. In: NELSON, C.;
GROSSBERG, L. (Ed.). Marxism and the interpretation of culture. Chicago: University of Illinois Press, 1987. p.
89-104.
PIERUCCI, A. F. As ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999.
RANCIÈRE, J. La mésentente. Politique et philosophie. Paris:Galilée, 1995.
RANCIÈRE, J. O dissenso. In: NOVAES, A. (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
p. 367-382.
RANCIÈRE, J. Aux bords du politique. Paris: La Fabrique, 1998.
SASSOON, A. (Ed.). Approaches to Gramsci. Londres: Writers and Readers, 1982.
324 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

SINGLY, F. Les disparitions de l’individu singulier en sociologie. In: CORCUFF, P.; ION, J.; SINGLY, F. Poli-
tiques de l’individualisme. Paris: Textuel, 2006. p. 53-86.
SPIVAK, G. Can the subaltern speak. In: NELSON, C.; GROSSBERG, L. (Ed.). Marxism and the interpretation
of culture. Chicago: University of Illinois Press, 1987. p. 271-316
VONÈCHE, J. The difficulty of being a child in French-speaking countries. In: BROUGHTON, J. (Ed.). Criti-
cal theories of psychological development. Londres: Plenum, 1987. p. 61-86.
ZIZEK, S. The ticklish subject. Londres: Verso, 2000.
Notas sobre o passe livre
e o poder e o fazer de uma juventude
Leo Vinicius Maia Liberato

A s reflexões que seguem são resultado de interesse e foco no que po-


deríamos chamar de ações políticas juvenis autônomas. Autônomas
por serem realizadas segundo os próprios termos daqueles que participam e
executam as ações. Políticas por dizerem respeito à instituição da sociedade,
à vida pública. Juvenis por serem fundamentalmente constituídas por um
sujeito portador de uma moratória social que fez emergir historicamente o
juvenil (MARGULIS; URRESTI, 2000).
Na primeira parte deste artigo, procuramos levantar algumas hipóte-
ses e caminhos de investigação sobre a dinâmica de reprodução e mudança
de um movimento em específico: o Movimento Passe Livre em Florianó-
polis, que se confunde com as ações anuais contra os aumentos das tarifas
de ônibus nessa cidade. Tendo em conta que o passe livre se constituiu em
um ator político e movimento social de primeira ordem em Florianópolis
e que, em 2010, fala-se até de uma tradição de protestos contra as tarifas do
transporte público em meio à juventude da cidade, nosso intuito é apresen-
tar inicialmente o que pode ser entendido como uma pesquisa exploratória,
que levanta questões com base no acompanhamento das manifestações que
ocorreram em maio e junho de 2010, com adesão que há cinco anos não se
via na cidade.
326 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Movimento Passe Livre e Juventude de Florianópolis, preponde-


rantemente de classe média, que tem saído às ruas ano após ano, atraindo
contra si um enorme contingente policial, e que como outros movimentos
e ações coletivas no Brasil e mundo afora nas últimas décadas, é constituído
fundamentalmente por uma juventude de tendência contestatória e orga-
nizada nos seus próprios termos. É sobre o sentido histórico que pode ser
atribuído aos movimentos e ações dessa juventude que nos dedicamos num
segundo momento deste artigo. Para tanto, buscamos explicitar as fontes do
poder constituinte dessa juventude, tentando com isso trazer uma interpre-
tação que insere esses movimentos, seu poder e seu fazer, num quadro mais
amplo, histórico e social, do antagonismo social na sociedade moderna.

“Passe Livre” na virada da década

O ano é 2010 e, numa escola em um bairro de São José – município


vizinho de Florianópolis, o segundo mais populoso da região metropolitana
–, a professora de sociologia pergunta “o que é política”, de modo a saber a
compreensão dos alunos sobre o tema. Um deles responde que política não
tinha a ver com políticos e eleições, estaria relacionada a agir, com base nas
demandas das pessoas, como, por exemplo, segundo o aluno, o “Passe Livre”
fazia. O “Passe Livre”, como movimento ou ação coletiva, aparecia como re-
ferência política e referência de política para aquele estudante. Certamente
não o único na região.
Há dez anos a Campanha pelo Passe Livre foi iniciada em Florianó-
polis por alguns jovens militantes, então no PT, visando mobilizar a juventu-
de em torno da reivindicação pelo passe livre para estudantes no transporte
coletivo da cidade. Em 2004, em parte como resultado do acúmulo dessa
militância de mobilização estudantil e de discussão do transporte público
e, em parte, como resultado de condições objetivas ligadas a aumentos de
tarifas muito superiores à inflação e à piora do sistema de transporte, Floria-
nópolis viveu duas semanas de intensos protestos que fizeram a prefeitura
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 327

retornar as tarifas ao patamar de preço anterior. O acontecimento ficou co-


nhecido como Revolta da Catraca. No ano seguinte, novo aumento, nova
revolta, protagonizada principalmente e mais uma vez por estudantes, par-
ticularmente secundaristas. Depois de mais de três semanas de protestos e
muita repressão policial e judicial, o então novo prefeito reduziu as tarifas ao
patamar anterior.1
Nos anos seguintes – 2006, 2007, 2008 e 2009 –, houve manifes-
tações contra os aumentos das tarifas de ônibus, mas sem a adesão e fôlego
para chegar perto de uma “vitória” como em 2004 e 2005. A isso contribuiu
certamente, como fator objetivo, uma relativa pequena melhoria do sistema
de transporte e a entrada em vigor de uma espécie de “tarifa única”, além da
maioria dos aumentos passarem a ser programados para o período de férias
escolares – natal e mês de janeiro –, de modo a evitar a mobilização dos
estudantes.
A partir de 2005 a Campanha pelo Passe Livre, que era um grupo
informal, constituído basicamente por estudantes secundaristas e universi-
tários que se reuniam semanalmente e realizavam atividades coletivamente,
passou a se denominar Movimento Passe Livre (MPL). Embora não hou-
vesse limites formais que separassem quem fazia parte ou não do MPL, ou
anteriormente da Campanha pelo Passe Livre, tratava-se de um grupo com
certa organicidade, que se reunia periodicamente, que durante algum tempo
possuía uma sede e que produzia em conjunto ao longo dos anos. Nesse
sentido, o MPL era uma organização definida, cujos membros eram assim
reconhecidos pela sua participação nas reuniões e nas atividades encami-
nhadas.
Em 2006, o MPL em Florianópolis passa a ter como bandeira prin-
cipal não mais o passe livre estudantil, mas a “tarifa zero”, isto é, o passe livre
para todos. Bandeira que caminhava junto com a discussão sobre a munici-
palização dos transportes. O fato é que a juventude da cidade, ou os estudan-
1 Sobre o início e desenvolvimento da Campanha pelo Passe Livre em Florianópolis e das Revoltas da Catra-
ca, cf. Vinicius (2005; 2006) e Liberato (2008).
328 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

tes da cidade, se engajavam mais facilmente em uma luta geral, ou seja, em


que eles não reivindicavam algo enquanto grupo social específico, como o
barateamento das tarifas ou o próprio fim das tarifas, do que numa luta mais
restrita, como a luta pelo passe livre estudantil.
Pode-se dizer também que a partir de 2006 o MPL em Florianó-
polis passou a ter cada vez mais dificuldade de continuar existindo como
grupo organizado e atuante, deixando de realizar o chamado “trabalho
de base” em escolas ou comunidades, e, mais recentemente, entre 2009
e 2010, até mesmo não mais organizando suas reuniões semanais ou pe-
riódicas. Dificuldade essa que em parte se relacionava à de trazer novos
militantes, à medida que outros iam se afastando ou se tornando menos
ativos. A transitoriedade dessa juventude era algo bastante nítido: em dois
ou três anos não se era mais secundarista ou mesmo estudante e as prio-
ridades de vida se modificavam. Dar continuidade à organização/movi-
mento parecia um desafio difícil de ser superado diante da transitoriedade
específica dessa juventude e da efemeridade de projetos pessoais típica
dos nossos dias.
Porém, em 2010, quando o MPL em Florianópolis já, bem dizer, care-
cia de organicidade (sem reuniões ou um coletivo propriamente dito que pu-
desse caracterizar uma organicidade), o “Passe Livre” já havia se transformado
em referência de ação política para estudantes que muito provavelmente nun-
ca tiveram contato com um membro orgânico do MPL. Tornara-se também
uma significação no imaginário da cidade2 e principalmente das juventudes
– e de uma juventude majoritariamente de classe média em especial.
Em maio de 2010, com mais um aumento de tarifa, estudantes se
organizaram e saíram às ruas novamente, com número e fôlego3 que não
2 Poder-se-ia ouvir, por exemplo, membros de uma torcida organizada de um time de futebol da cidade discu-
tindo se deveriam ter pagado ou não a passagem do ônibus, fazendo referência ao “Passe Livre” como aqueles
que têm a coragem de pular catracas, e cantando versos criados seis anos atrás em meio à revolta de 2004, os
quais eram constantemente ouvidos em manifestações contra aumentos de tarifas em anos seguintes.
3 As manifestações duraram mais de quatro semanas. A maior delas teve cerca de cinco mil pessoas, para um
município de 423 mil pessoas, segundo estimativa do IBGE.
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 329

se via desde 2005, porém sem adesão de um espectro mais amplo da po-
pulação como naquele ano. Através dessas manifestações, pôde-se apre-
ender o “Passe Livre” como significação no imaginário dessa juventude
e o processo de formação – ou pelo menos o potencial de formação – de
uma cultura ou tradição de protestos em torno da questão do transpor-
te público em meio a uma juventude. À primeira vista, a percepção era
de que, em sua grande maioria, os participantes em 2010 não haviam
estado presentes nas revoltas de 2004 ou na de 2005, porém, de alguma
forma, sua ação política no presente poderia ser considerada o mais sig-
nificativo e importante resultado daquelas jornadas de lutas. Em grande
parte, eram outros participantes, mas ainda eram os mesmos, isto é, os
estudantes. Esse “de alguma forma” é na verdade quase tudo que impor-
ta do ponto de vista sociológico, apontando um amplo e interessante
caminho de investigações: como se deu a transmissão de memória, de
conhecimento, do que ocorreu em anos anteriores? Quais foram e estão
sendo os mecanismos e caminhos de difusão de ideias, de significações
e de bandeira política?4
As formas dessa transmissão e os caminhos que levaram ao engaja-
mento e à participação certamente são múltiplos e diferenciados, conforme
a história de cada participante, as quais levam provavelmente a diversos fato-
res. A própria anualidade das manifestações contra os aumentos das tarifas
certamente é um deles, que, mesmo sem tanta adesão em alguns anos, pro-
porcionou visibilidade, continuidade ao longo do tempo e alguma experi-
ência de contato. No Colégio de Aplicação da UFSC,5 como exemplo de

4   Talvez a principal dificuldade que venha se apresentar à investigação dos meios e formas que
têm levado à transmissão de memória, à formação desse imaginário, à participação em manifesta-
ções contra os aumentos de tarifas de ônibus e à aparente constituição de uma tradição política
dessa juventude de Florianópolis, seja a relativa fugacidade e fluidez do objeto, ele se torna particu-
larmente visível e concreto apenas nos ciclos de protestos contra os aumentos. Fora deles, torna-se
relativamente difícil identificar e discriminar o jovem ou estudante “manifestante” dos demais.
5   Os estudantes do Colégio Aplicação foram os primeiros a saírem às ruas em 2004, e formavam a princi-
pal base das lutas de 2004 e 2005, em termos de quantidade e engajamento.
330 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

um fator diverso, como relata um professor, os mais novos viam em 2004


e 2005 os mais velhos saírem do colégio para as manifestações, e isso teria
sido fonte de transmissão de um comportamento, de modo que em 2010
parte deles, por sua vez, saísse às ruas.
Há que se levantar também a hipótese da importância da internet e
de vídeos e documentários feitos sobre as revoltas de 2004 e de 2005 para a
transmissão da memória, conhecimento e ao consequente engajamento. Se
em 2004, por exemplo, o Youtube sequer existia, a banda larga era menos
difundida e a Campanha pelo Passe Livre tinha que passar de escola em es-
cola exibindo o documentário A Revolta do Buzú6 em VHS com o intuito de
preparar uma mobilização para quando as tarifas aumentassem; em 2010
certamente grande parte dos estudantes tinha vasto acesso à informação,
à memória das revoltas, a vídeos, através da internet. Um indicativo disso,
a fim de ilustração, é o slogan “Amanhã vai ser maior” ser gritado também
pelos manifestantes de 2010, que foi ouvido durante a revolta de 2005 e tor-
nado nome de um documentário-denúncia sobre a repressão naqueles dias
que deu notoriedade ao slogan.

Passe Livre como instituição no imaginário

A Campanha pelo Passe Livre não era a única organização ou grupo


a tentar levantar a discussão sobre o transporte público em Florianópolis,
mas era a que em 2004, ano da primeira revolta, tinha a maior visibilidade,
fruto de quatro anos de campanha e de inúmeras atividades e manifestações
pelo passe livre estudantil nos anos anteriores. Também o fato de ela ter pre-
parado e incentivado o chamado para as manifestações contra o aumento
das tarifas naquele ano, além da composição preponderantemente juvenil/
estudantil da revolta, fez com que a sociedade em geral, e a grande imprensa
e as autoridades em particular, relacionassem as revoltas de 2004 e 2005 ao

6 Documentário produzido por Carlos Pronzato sobre os protestos estudantis que irromperam em Salvador
durante agosto de 2003 após um aumento das tarifas de ônibus.
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 331

nome “Passe Livre”.7 Desse modo, “Passe Livre” foi ganhando também a sig-
nificação de manifestação contra aumentos das tarifas do transporte coletivo. Tal
significação transparece, por exemplo, quando, para conter as manifestações
em 2007, a Polícia Militar de Santa Catarina levou a cabo o que denominou
por “Operação Passe Livre”, ou quando, em maio de 2010, um emo8 que es-
tava num bar no centro de Florianópolis sugeriu aos amigos passarem lá no
“Passe Livre”, referindo-se com isso à concentração em frente ao Terminal
do Centro, de onde partiam as manifestações. Pode-se observar jovens que,
embora nunca terem participado de uma reunião do MPL, se colocam em
suas falas como integrantes do mesmo, por participarem das manifestações
contra o aumento das tarifas de ônibus, reproduzindo assim uma identidade
total entre MPL e manifestações com o aumento.
Se em 2004 e 2005 os membros da Campanha pelo Passe Livre/
MPL não puxavam gritos de guerra e slogans pelo “passe livre” em meio às
manifestações contra aumentos das tarifas, por considerarem ser uma rei-
vindicação diferente daquela específica da manifestação, já em 2010, duran-
te as manifestações contra o aumento, pôde-se observar que estudantes, que
não eram e nunca foram orgânicos do MPL, puxavam o coro “Passe, Passe,
Passe Livre Já”, tradicional das manifestações pelo passe livre estudantil or-
ganizadas pela Campanha pelo Passe Livre na primeira metade da década.
Ou até mesmo, quando cercados pela polícia, que os impedia de passar, can-
tavam/gritavam: “Sai da frente, que o Passe Livre é muita gente”. Mais uma
vez, tal comportamento indica que havia uma forte identidade em meio aos

7 Episódio que ilustra bem a identificação que autoridades faziam entre as revoltas e o “Passe Livre” se deu em
30 de novembro de 2005, dia em que foi convocada uma manifestação pelo MPL contra a suspensão da Lei
do Passe Livre estudantil pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, lei que havia sido aprovada e sancionada
em 2004. O chamado para essa manifestação foi motivo para que, em uma decisão inédita, o presidente do
TJSC suspendesse o expediente às 16h e o TJSC fechasse as portas com medo da manifestação que estava
marcada para as 17h. Um enorme contingente policial se encontrava na porta do TJSC e nas ruas do centro
de Florianópolis nesse dia. Mas a manifestação atraiu apenas 300 pessoas, como era mais ou menos esperado
pelo MPL, sendo a grande maioria estudantes.
8 Emo é o nome dado a um estilo ou subcultura juvenil, caracterizada hoje em dia por um determinado tipo
de roupa, corte de cabelo e rock melódico com letras emotivas.
332 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

próprios manifestantes em 2010 entre o significante “Passe Livre” e o mo-


vimento formado nas ruas contra aumentos de tarifa. Mais que isso, indica
que eles se consideravam, portanto, parte do “Passe Livre”.
Apesar da tentativa em 2005 de tornar o “Passe Livre” um movimen-
to relativamente estruturado, formalizado e articulado nacionalmente, o que
podemos dizer que prevaleceu, cinco anos passados, foi a criação social de
uma significação ou de significações de “Passe Livre” que o tornaram um
ponto de convergência de um imaginário coletivo na cidade, uma ação cole-
tiva juvenil relacionada ao transporte público e sua gratuidade, ultrapassan-
do as fronteiras de um movimento ou organização formal.
A falta de distanciamento temporal não nos permite dizer se essa ge-
ração das revoltas em Florianópolis corresponderá a uma geração política ou
a uma unidade de geração (MANNHEIM, 1982), ou seja, não nos permite
saber se os efeitos da experiência das revoltas serão duráveis no comporta-
mento político da juventude que as vivenciou. No entanto, outro elemento
do conceito de unidade de geração desenvolvido por Mannheim (1982)
está relativamente nítido em relação à juventude que tem se manifestado
desde 2004 contra os aumentos das tarifas do transporte público em Floria-
nópolis: a presença do evento raro gerador de uma identidade coletiva entre
os participantes. Pode-se dizer que as revoltas de 2004 e de 2005 foram ge-
radoras de uma identidade coletiva entre uma juventude, sustentando uma
potencial tradição de protesto na cidade.

O poder e o fazer

O “Passe Livre” enquanto movimento social, ou as manifestações


contra os aumentos de tarifas de ônibus em Florianópolis enquanto ações
coletivas, pode ser considerado forma de expressão autônoma de uma ju-
ventude que visa à participação na instituição da sociedade, isto é, que al-
meja poder, questionando instituições, normas e leis. São expressão de um
poder ao mesmo tempo que exprimem uma busca em ter poder de decisão
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 333

nos rumos da sociedade e da vida cotidiana. Nesse sentido, exprimem uma


ação política, até mesmo no significado mais clássico de política, no caso
mais especifico desses movimentos ou ações coletivas centradas na questão
do transporte público municipal: política como ação relacionada à gestão da
cidade e ao que é público.
Deixando de lado a preocupação sociológica com a dinâmica pró-
pria de constituição, mudança e reprodução desses movimentos e ações co-
letivas, e focando na questão do poder que eles exprimem e no significado
e na indicação histórica e social deles, em termos de conflito social e sua re-
solução com vistas à ampliação de liberdade e igualdade na sociedade – que
é também objetivo geral dos que constituem tais movimentos juvenis autô-
nomos –, podemos nos perguntar então: existe um poder dessa juventude
capaz de se opor e visar suprimir um poder constituído? No que se baseia o
poder dessa juventude?9 Qual o poder constituinte dessa juventude como
grupo/forma social particular?
Para traçarmos um caminho que possa ajudar a responder tais ques-
tões, é conveniente abordarmos inicialmente, embora de forma bastante
breve, os condicionantes históricos e sociais que levaram à constituição da
categoria juventude, como a que conhecemos hoje.
Na literatura que versa sobre o tema, a formação da juventude como
categoria social da modernidade tem sido frequentemente relacionada a
dois fenômenos: a escolarização e a cultura de massa. A exaustão com que tal
conclusão aparece em trabalhos acadêmicos com interface na sociologia da
juventude serve de conselho para não nos alongarmos e repetirmos dema-
siado a explicação dessa relação. O trabalho de Ariès (1984), por exemplo,
tem sido referência na arguição de que a cristalização social das idades da
vida emergiu com a escolarização. Quanto à cultura de massa, podemos se-
guir a argumentação de Martin-Barbero (1997) de que o massivo não é um

9 Aqui nos referimos não especificamente à juventude participante do “Passe Livre” e de protestos contra
aumentos de tarifas, mas à juventude que constitui movimentos sociais e ações coletivas de forma autônoma,
isto é, autodeterminada, em geral.
334 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

simples aspecto da nossa sociedade, mas uma nova forma de sociabilidade.


A massificação seria estrutural dessa sociedade: o sistema educativo é de
massa, assim como as formas de representação e de participação política ins-
titucional, os modelos de consumo, os usos do espaço etc. Quando a cultura
popular tendia a se converter em cultura de classe, essa cultura seria minada
por dentro e transformada em cultura de massa. Passaria a se converter em
espaço estratégico da hegemonia, passando a mediar, a cobrir as diferenças e
a reconciliar grupos e gostos (MARTIN-BARBERO, 1997).
Assim, a (trans)formação da categoria social da juventude na socie-
dade capitalista, que é ao mesmo tempo sociedade de massa, se dá, logo de
início, pelo próprio caráter massivo, dito universalista, que ganha o sistema
escolar. Fenômeno que ocorre principalmente no século XX e de forma
mais restrita e mais recente nos países periféricos.
A juventude como representação e categoria produzida pela cultura
e educação de massa, por sua vez, também dissipa e encobre as diferenças
sociais – enquanto representação social ela não está ligada mais à burguesia
ou à aristocracia, mas também não está aos trabalhadores. Parte do esforço
dos sociólogos que estudam a juventude se dá em trazer à tona as diferenças
sociais que a representação social da juventude encobre – descortinando
juventudes por trás da juventude como representação social (MARGULIS,
2001; ARCE, 1999).
Para além da condição ligada a uma característica biológica, a “mora-
tória vital” (MARGULIS; URRESTI, 2000), o estado de “fermentação bioló-
gica” do jovem (MANNHEIM, 1978), o “ímpeto de viver intensiva e abun-
dantemente” (MATZA, 1968, p. 111) e o aspecto propriamente histórico e
cultural que carrega o significante juventude se relacionam à moratória social
(MARGULIS, 2001; MARGULIS; URRESTI, 2000). Essa moratória, um es-
paço de possibilidades aberto a certos setores sociais e limitado a determinados
períodos históricos, se vincula ao tempo de escolarização – um tempo consi-
derado legítimo e valorizado socialmente para que os jovens se dediquem ao
estudo e à capacitação, até mesmo à experimentação, postergando o matrimô-
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 335

nio, a inserção no mundo do trabalho10 e a aquisição de responsabilidades que


seriam próprias da vida adulta (MARGULIS; URRESTI, 2000). Período em
que o jovem goza de certa tolerância por parte da sociedade e da família.11
Com maior intensidade nos países capitalistas centrais e entre as ca-
madas médias12 e altas, mas de qualquer modo tendencialmente numa so-
ciedade de massas, se forja em meados do século XX uma juventude que se
relaciona a um tempo privilegiado, de permissividade e de relativa liberdade.
Essa maior independência ou autonomia, em alguns casos, em relação à fa-
mília e ao imperativo econômico, teria favorecido uma subjetividade avessa
à disciplina fabril, ao trabalho subordinado e a uma sociedade tecnocrática.
Hardt e Negri seguem também essa perspectiva:
Particularmente nos países capitalistas dominantes, onde a margem de li-
berdade proporcionada e obtida pelos trabalhadores era maior, a recusa do
regime disciplinar da fábrica social13 foi acompanhada de uma reavaliação
de todo conjunto social de atividades produtivas. O regime disciplinar cla-
ramente já não conseguia conter as necessidades e os desejos dos jovens
(...). A recusa em massa do regime disciplinar, que assumiu uma variedade
de formas, foi não só uma expansão negativa, mas também um momento de
criação (...). O jovem que recusava a repetição mortal da sociedade-fábrica
inventou novas formas de mobilidade e flexibilidade, novos estilos de vida.
(HARDT; NEGRI, 2001, p. 294-295)

Das escolas de pensamento marxista, pode-se dizer que o pós-ope-


raísmo, que tem suas raízes no operaísmo italiano nos anos 1960, e cujo au-
10 Mesmo que o jovem trabalhe, deve-se levar em consideração o sentido desse trabalho, que pode ser difer-
ente do sentido e importância para o adulto. Se as responsabilidades próprias da vida adulta estão mais dis-
tantes, o trabalho para o jovem terá muitas vezes um significado na sua vida diferente do trabalho para o adulto,
e sua margem de liberdade ou de permissividade será potencialmente maior, mesmo trabalhando.
11 Essa moratória social tende a se realizar mais plenamente – tanto em duração quanto em possibilidades
abertas – nas camadas médias e altas, e nos jovens de gênero masculino. As diferenças com que a moratória se
apresenta dependendo de gênero e da camada social é o que daria forma a diferentes juventudes (MARGU-
LIS; URRESTI, 2000).
12 Importante notar que, no pós-guerra, segmentos cada vez maiores de trabalhadores passaram a ter uma
situação de garantia de direitos e de poder de consumo de modo que ser trabalhador e ao mesmo tempo ser
da classe média começava a se tornar mais que factível.
13 O conceito de fábrica social abrange as tarefas e os locais normalmente concebidos como de reprodução
(escola, lar etc.), e não de produção.
336 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

tor mais conhecido é Antonio Negri, é aquela que por excelência incorporou
dentro de uma teoria de dinâmica social baseada no antagonismo de classes os
movimentos estudantis, contraculturais e de juventude que emergiram a par-
tir da década de 1960. Mais do que isso, esses movimentos e comportamentos
de juventude foram fundamentais e estiveram na base da própria formulação
de conceitos e das teorias pós-operaístas. A título de exemplo, os movimentos
e contraculturas emergentes nos anos 1960 teriam, segundo eles, acentuado
o valor social da cooperação e da comunicação e as formas de experimenta-
ção cultural: e a valorização de uma dinâmica de criatividade mais flexível e
de formas de produção imateriais, teria tido, para Hardt e Negri (2001), assim
como para demais pós-operaístas, efeito político e econômico profundo, em-
bora tenha sido considerada pela esquerda mais tradicional como um desvio
ou distração das lutas políticas e econômicas “verdadeiras” e efetivas.
Tomando proletariado na definição de Hardt e Negri (2001), isto é,
“uma vasta categoria que inclui todo trabalhador cujo trabalho é direta ou in-
diretamente explorado por normas capitalistas de produção e reprodução, e
a elas subjugado” (p. 71), para além de uma representação e categoria social,
podemos postular que a juventude se tornou também um modo de existên-
cia do proletariado (mas não só dele), com o processo de massificação ocorri-
do no século XX. Deve-se ter claro também que o conceito de trabalho para
os pós-operaístas como Michael Hardt e Antonio Negri é amplo, incluindo
atividades e fazeres que normalmente são postos na esfera da cultura, da re-
produção, do tempo fora do trabalho.
Seguindo o raciocínio dos pós-operaístas, a reação do capital a essa
nova produção de subjetividade do proletariado – diríamos de uma juven-
tude – teria tido como resultado o regime pós-fordista.14 O pós-fordismo se
14 Para os pós-operaístas a luta dos trabalhadores e as novas subjetividades emergentes na classe trabalhadora
levariam a uma recomposição do capital, na sua busca de desfazer essa composição de classe. A recusa ao trabalho,
expressa no absenteísmo, nas sabotagens e no conteúdo das greves em massa dos operários das fábricas fordistas,
assim como no êxodo da chamada contracultura nos anos 1960 e 1970, teria sido o impulsionador do desenvol-
vimento do capitalismo pós-fordista. Respondendo a essa militância e a essa subjetividade, a empresa se reorga-
niza, o lócus da produção é descentralizado da fábrica industrial e disperso ao conjunto da sociedade (o superde-
senvolvimento do terciário e da terceirização seria um aspecto espetacular, mais perceptível, dessa mudança).
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 337

serviria assim dos mesmos pressupostos subjetivos e culturais da contracul-


tura e dos movimentos que ganharam grande visibilidade nos anos 1960.
Também nesse sentido, Hardt e Negri (2001) postulam que a hegemonia
norte-americana foi sustentada pelo poder antagônico do seu proletariado:
a criatividade e o antagonismo do proletariado norte-americano residiriam
principalmente fora das fábricas, em especial através do repúdio ativo ao
trabalho e de experimentações comunicativas e culturais que receberam o
nome de contracultura. Essa perspectiva dos pós-operaístas se relaciona a
uma concepção fundamental, a de que o poder do proletariado não reside
nas suas instituições representativas, mas no antagonismo e na autonomia
dos próprios proletários (HARDT; NEGRI, 2001).
Ainda dentro da abordagem pós-operaísta, Lazzarato e Negri (2001)
relacionam o protagonismo estudantil emergente a partir de 1968 a uma nova
realidade da composição de classe, a qual os estudantes representariam de for-
ma mais clara. Além disso, o desenvolvimento subjetivo dos estudantes ainda
não estaria preso às articulações do poder, e “a autonomia relativa em relação
ao capital” determinaria “nos estudantes – entendidos como grupo social que
representa o trabalho vivo em estado virtual – a capacidade de designar o novo
terreno do antagonismo” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 32).
De modo semelhante, Sousa (1999) indica que, sendo o mercado
a determinar o sentido ontológico para o ser social na medida da expansão
do capital como forma de relação social, e uma vez que a condição transitó-
ria da juventude lhe proporciona uma relativa autonomia às instituições, in-
cluindo ao mercado, ela pode identificar-se com a indeterminação histórica,
que por sua vez pode assumir no caminho um conteúdo de ruptura.
O poder constituinte da juventude, ou da forma-juventude que ga-
nha também o proletariado na sociedade de massas, viria portanto da capa-
cidade de potencializar sua condição transitória, sua moratória vital e sua
moratória social, fonte de sua autonomia. Esse seu poder, frequentemente,
aparece como o poder de preencher o tempo de não trabalho – o “tempo
de vida”, o tempo fora do trabalho – com projetos autônomos, alternativos,
338 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

com ativismo, militância e campanhas políticas em sentido amplo, além do


desenvolvimento e criação de estilos de vida.
Se tais experiências e ações coletivas enfrentam enormes obstáculos
e limitações para podermos visualizar a configuração de um grande desafio
a poderes constituídos a partir delas, devido também ao próprio imediatis-
mo e à própria condição transitória da juventude, no entanto pode-se inter-
pretá-las como portadoras de um sentido histórico ou de uma tendência.
Se o antagonismo de classes tem levado historicamente a uma dupla fuga,
fuga da insubordinação do trabalhador por parte do capital e fuga da subor-
dinação ao capital por parte do trabalhador (HOLLOWAY, 2003), a forma-
juventude e a autonomia relativa15 que lhe constitui pode e deveria ser vista
como consequência histórica dessa dupla fuga. Tanto o capital busca se ver
livre do trabalho e do trabalhador quanto o trabalhador busca se ver livre do
capital e da subordinação a que ele o submete. A margem de liberdade da
moratória social que constitui o juvenil, redução do tempo de subordinação
direta ao capital no ciclo de vida, seria assim resultado dessa fuga, ou parte de
uma recusa histórica do trabalho.
O poder constituinte dessa juventude é o poder do seu fazer, da
sua produção, exercido no tempo de não trabalho, no tempo liberto de um
mando capitalista ou tecnocrático, liberto de uma autoridade, organizado
em grande parte nos seus próprios termos. E isso não apenas em termos de
ação política, mas em grande medida também em termos de constituição
econômica, isto é, de um fazer que é integrado dentro do ciclo de produção
de valor. Ainda mais quando a criação cultural, de formas e estilos de vida e
de comunicação, a produção de subjetividade, se torna cada vez mais central
à produção de valor. A prática de coolhunting é indicativa dessa produção ou
inovação simbólica, e que ocorre basicamente em meios juvenis, a qual bus-
ca ser apreendida para fins econômicos. A constituição de redes sociais vir-

15 Necessário frisar que aqui falamos de autonomia relativa de uma categoria ou grupo social em relação a
dispositivos de controle e subordinação social, e não de autonomia individual em relação à família, ao Estado,
ao patrão, a outro indivíduo etc.
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 339

tuais exploradas economicamente, os empreendimentos que extraem valor


de uma rede social pré-constituída e não remunerada – como o caso do Pro-
jeto Fox estudado por Arvidsson (2007) ou da produção cultural apropria-
da pela economia digital analisada por Terranova (2000) – são exemplos de
como atividades processadas num tempo de não trabalho, não subordinado,
estão sendo integradas num ciclo de produção de valor.16
Há até mesmo os casos que evidenciam que a própria ação políti-
ca, ou o protesto, é também produção econômica. Nas periferias francesas,
em meio às semanas de revolta protagonizadas pela juventude local entre
outubro e novembro de 2005, mais lembradas pelos milhares de carros in-
cendiados, os próprios jovens filmavam e gravavam os acontecimentos, cria-
vam equipes de segurança para os jornalistas circularem e agências de en-
trevistas onde colocavam em contato o jornalista e o perfil que este buscava
para entrevistar. Tudo cobrado, evidentemente.17 Uma histórica tomada de
consciência de que sua rebeldia e suas práticas produzem valor? Na década
de 1960, o Provos18 – um movimento de juventude holandês de influên-
cia anarquista e situacionista – cobrava para dar entrevista à imprensa, até
mesmo forjando atividades com esse propósito. Jogavam com as regras da
sociedade do espetáculo e pareciam ter plena consciência do valor que pro-
duziam. Produção econômica que, sem superestimá-la, também se mostrou
presente em alguma medida no MPL, através de sua própria atividade polí-
tica. O espaço que lhe foi dado na mídia local e, particularmente, o que lhe
foi dado após a suspensão da Lei do Passe Livre no caderno AN Capital do
jornal A Notícia,19 torna plausível a hipótese de que em Florianópolis, uma

16 Se se quiser manter um quadro teórico marxista em que apareça o conceito de mais-valia, proponho o
conceito de mais-valia difusa a esses casos. São casos que não se enquadram nas características de intensidade
e controle do trabalho dos regimes de mais-valia relativa e de mais-valia absoluta.
17 Ver “Jovens tiram proveito de distúrbio”, Estado de S. Paulo, 11 nov. 2005, p. A18.
18 Sobre o Provos, cf. Guarnaccia (2001).
19  Em 2004 uma lei concedendo a gratuidade no transporte coletivo foi aprovada e sancionada na Câmara
de Vereadores de Florianópolis, fruto da atividade e pressão da Campanha pelo Passe Livre na cidade. Em
2005 o Tribunal de Justiça de Santa Catarina suspendeu a lei, antes mesmo de ela se tornar efetiva.
340 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

cidade em que a “produção de fatos” é bastante escassa, o poder do MPL não


era apenas imediatamente político, mas também existia como poder econô-
mico, que se revertia por sua vez também em poder político. Em Brasília, um
jornalista afirmara durante uma manifestação do MPL do Distrito Federal,
ocorrida em agosto de 2005, que não era do interesse deles prejudicar o mo-
vimento porque, afinal, ele fazia vender muitos jornais. O relato foi feito por
um militante, com as seguintes palavras:
O J.P. e o L. tinham acabado de ser presos, e tínhamos, consciente e tati-
camente, ido com o bloco de estudantes pra delegacia mais próxima (...).
Quando chegamos à delegacia tava cheio de repórteres lá. Fizemos uma
assembleia pra decidir o que fazer. Aí eles ficaram filmando e tirando fotos.
Então chegamos pra eles e dissemos – não filma o rosto das pessoas, nem tira
fotos da galera agora. Aí ele disse: “ok, ok”. E nós ficamos pressionando eles.
Até que o cara, meio que de supetão, falou: “olha, eu não vou sacanear vocês.
Quanto mais manifestações vocês fizerem mais dinheiro nós ganhamos ven-
dendo jornais”.20

Nova geração de direitos

Em termos comparativos, embora o movimento operário histórico


tivesse como uma de suas principais bandeiras a redução da jornada de tra-
balho – visando ao tempo para o repouso e o lazer assim como para a ins-
trução –, e embora no tempo de não-trabalho tenham constituído práticas
culturais, escolas, associações etc., o poder operário era o poder que os ope-
rários possuíam a partir do tempo de trabalho, isto é, na fábrica capitalista.
Os direitos/benefícios sociais até hoje em vigor são resultado da valorização
do trabalho (produtivo) e da afirmação da dignidade do trabalhador pela
rebeldia dos operários contra seu estatuto de exclusão, ou seja, resultado da
valorização da fonte de seu próprio poder de oposição e supressão do capi-
tal; valorização do seu fazer. Como resultado, os benefícios e direitos sociais

20 Pode-se questionar evidentemente se não se tratou antes de tudo da tentativa de persuasão por parte do
jornalista para conseguir realizar seu trabalho. De todo modo, a plausibilidade do argumento, recebendo acei-
tação, é por si só um fato relevante.
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 341

conquistados ficaram vinculados em grande parte à posse de emprego, a ter


carteira assinada, a ser reconhecido como trabalhador pelo Estado.
Segue que o poder constituinte dessa juventude em rebeldia,
cujo “Passe Livre” é apenas um exemplo ou expressão, na medida que
aponta ou que apontar a uma valorização da própria fonte ou base desse
poder, tende a corresponder a uma outra e nova relação de direitos e be-
nefícios sociais. Uma valorização do fazer que se processa fora da fábri-
ca, do tempo de trabalho, fora da subordinação a um mando capitalista
ou autoridade, fora do emprego, corresponderia consequentemente à
emergência de garantias e direitos sociais desvinculados da posse, per-
da ou busca de um emprego. Esse é um sentido histórico que pode ser
apreendido da constituição de movimentos de contestação autônomos
da juventude, e que é relativo à ampliação de liberdade em relação ao
capital, diminuindo a subordinação direta dos sujeitos a ele. Na fuga do
capital em relação ao trabalho, ou à insubordinação do trabalhador, ele
deixa hoje em dia como rastro o desemprego massivo, a precarização,
a flexibilização laboral e um regime de “produção” no qual o conceito
marxiano de exército industrial de reserva passa a ser aplicável a pratica-
mente toda a força de trabalho.21 A condição juvenil em geral é percebida
como de relativa liberdade; a de precarização das relações de trabalho e
de desemprego é em geral percebida como de opressão e sofrimento,
porém ambas resultam de uma determinada configuração das relações
de dominação, se as entendermos como resultado da dupla fuga da re-
lação de subordinação-insubordinação no antagonismo de classe. E a
elas deve, idealmente, corresponder uma emergência de novos direitos
sociais que signifiquem um avanço na fuga da relação de subordinação,
ao invés de se buscar reatar uma relação de subordinação passada com o
capital, desejo que frequentemente pode-se captar do discurso de enti-
dades trabalhistas, partidos e intelectuais de esquerda.
21 Sobre como toda a força de trabalho hoje, empregada ou desempregada, se enquadra no conceito de
exército industrial de reserva, cf. Virno (2003b).
342 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

A ideia de uma renda básica universal, que sem pressão popular – e


talvez por isso mesmo não tenha sofrido muita oposição – se tornou lei no
Brasil em 2004 (Lei nº 10.835), fornece um exemplo de um direito social e
de renda desvinculado de uma relação trabalhista. Nela o estatuto de cida-
dão se desvincula do estatuto de trabalhador.22
O poder constituinte que se expressa através dos movimentos autô-
nomos dessa juventude também está ainda para romper com um imaginário
cada vez mais deslocado no contexto do capitalismo contemporâneo; ima-
ginário que ainda relaciona criação de riqueza e de valor com subordinação
a um patrão e a um mando capitalista ou tecnocrático.23 A utilidade se des-
prendeu há muito da produção capitalista, mas ainda é necessário tirar todas
as consequências disso, e o fazer dessa juventude soma-se a essa percepção.
Se a distinção entre atividade laboral e atividade não laboral que reparte o
cotidiano das pessoas tende a desaparecer, tendo-se como referência o valor
e as habilidades envolvidas (cada vez mais os trabalhos são constituídos por
habilidades políticas, comunicativas e relacionais),24 significa que o empre-
go e o trabalho ganham faticidade cada vez mais como controle político e
social e menos como atividade ou forma propriamente produtiva.
Nos primeiros dias de manifestações contra os aumentos das tarifas
em 2004, um comentarista de um canal de TV de Florianópolis, em tom
22 A reivindicação de uma renda básica universal, além de responder a uma urgência material flagrante para
grande parte da população, poderia corresponder a uma valorização das atividades concretas das pessoas, o
que inclui o tempo fora do trabalho, os fazeres e as atividades do “tempo da vida”, aparecendo assim como pos-
sível elemento de um processo de afirmação e valorização da própria juventude e dos precarizados em geral.
23 Usando os conceitos utilizados pelos pós-operaístas se poderia dizer que tal identificação da produção de
riqueza e valor com a subordinação a um patrão ou a um mando capitalista deriva de uma época em que a
separação analítica entre capital variável e capital fixo era possível, isto é, não levantava dúvidas e incoerências.
Na realidade pós-fordista, o capital fixo se encontraria também no que antes era considerado capital variável.
Os meios de produção (capital fixo) não seriam apenas “propriedade” do capitalista. Por exemplo, enquanto
general intellect, ou melhor, enquanto intelectualidade de massa; ou ainda quando os objetos de consumo
são ao mesmo tempo meios de produção (microcomputadores são o exemplo mais óbvio nesse caso). De
onde decorre a produção fora da subordinação ao mando capitalista ou hierárquico nesse atual contexto pós-
fordista, no qual a empresa capitalista consistirá muitas vezes em capturá-la.
24 Sobre a indiferenciação entre atividade laboral e não laboral, ver Virno (2003a, 2003b). No pós-fordismo,
como ele diria, “a vida é posta a trabalhar”. O que existiria é uma vida remunerada e uma vida não remunerada.
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 343

de reprovação, repetia perguntas e afirmações como: “essa gente que fica


sentada dois dias no chão não trabalha não?” e “essas crianças deviam estar
na escola”. Um incômodo parecido ao que a imprensa e os conservadores
ingleses demonstravam diante do fato dos “ecoguerreiros” que participavam
do movimento antiestradas na década de 1990, ocupando árvores, casas
que seriam demolidas e os locais por onde passariam as estradas, não terem
de trabalhar e viverem em grande parte do dole, uma espécie de salário-
desemprego (AUFHEBEN, 1998). Era também comum ouvir de um ou
outro popular com uma aversão a protestos, ao passar diante de uma mani-
festação do MPL em Florianópolis, “mandarem” quase silenciosamente os
manifestantes irem “trabalhar”. Evidentemente, tanto para esses transeuntes
quanto para os jornalistas antipáticos aos protestos, a questão não era que
os jovens manifestantes não estivessem “trabalhando”, mas sim que não es-
tavam sendo controlados – por patrão, chefe ou professor –; estavam reali-
zando uma atividade autônoma, nos seus próprios termos, autogerida e não
subordinada. Em um dia de manifestações contra os aumentos das tarifas de
ônibus em 2010, em Florianópolis, um policial disfarçado – e descoberto
– no meio da manifestação, grita para uma garota, caloura na universidade,
com seus 17 ou 18 anos, que ela deveria estar com o pai dela, e não ali no
protesto. O fato é que, ao contrário do que o policial poderia esperar, o pai
dela também participava da manifestação... Mas o que importa perceber é
que ao lado da família e da escola, também se espera do trabalho a função de
controle político e social.
Com toda fragilidade e limites que os movimentos autônomos de
característica juvenil possam ter, a dinâmica social por trás deles não é me-
nos real que outras. Eles expressam em formas claras e em ideário a rebel-
dia contra um mundo que lhes destitui do controle de suas atividades, da
participação no poder instituinte da sociedade; expressam a insubordinação
contra um processo de redução e conformação. Para além das bandeiras, es-
ses próprios movimentos e ações são uma tentativa de (re)constituir esse
controle e participação: uma atividade conduzida nos próprios termos de
344 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

quem a produz. A dinâmica social da autonomia dessa juventude – vincu-


lada às suas moratórias – levou a essa autoafirmação e autoorganização que,
embora frágeis quanto à continuidade e amplitude, se revelam ao longo das
últimas décadas, sob determinadas circunstâncias, um importante impulsio-
nador de lutas sociais e de vitórias pontuais em algumas delas. Não por aca-
so, movimentos como o MST buscam se ligar a movimentos de juventude
nos centros urbanos.25
Se se trata de afirmar e reforçar o poder de antagonismo dessa ju-
ventude, trata-se de valorizar, afirmar e reforçar a sua fonte: o fazer dela e a
autonomia que o condiciona.

Referências
ARCE, José M. V. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1984.
ARVIDSSON, Adam. Creative class or administrative class? On advertising and the ‘underground’. Ephem-
era, v. 7, n. 1, Feb. 2007, p. 8-23. Disponível em: <http://www.ephemeraweb.org/journal/7-1/7-1ephemera-
feb07.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2007.
AUFHEBEN. The politics of anti-road struggle and the struggles of anti-road politics: the case of the n. M11
link road Campaign. In: McKAY, George (Org.). DIY culture. Londres: Verso, 1998.
CHERKI, Eddy; WLEVIORKA, Michel. Autoreduction movements in Turin. In: LOTRINGER, Sylvere;
MARAZZI, Christian (Ed.). Autonomia: post political politics. New York: Semiotext, 1980.
GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad, 2001.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Viramundo, 2003.
LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LIBERATO, L. V. M. Movimento passe livre, revoltas e simulações. In: GROPPO, L. A.; MACHADO, O. L.;
ZAIDAN FILHO, M. (Org.). Movimentos juvenis na contemporaneidade. Recife: UFPE, 2008.
MANNHEIM, Karl. Funções das gerações novas. In: FORACCHI, M.; PEREIRA, L. (Org.). Educação e socie-
dade. 9. ed. São Paulo: Nacional, 1978.

25 Como, por exemplo, João Pedro Stédile deixa claro em entrevista à revista Carta Capital de 21 de setembro
de 2005: “Parte das nossas energias se destina a construir essa unidade com os outros. Na nossa avaliação, hoje
o alvo principal é a juventude das grandes cidades. Não mais o operariado industrial, que está debilitado e
destruído política e ideologicamente. É possível que daqui por diante se construam novos movimentos. Por
exemplo, dos jovens desempregados... (...). E essas manifestações que houve em Florianópolis, Vitória, de ju-
ventude de segundo grau fazendo movimento de massa contra as tarifas de ônibus. São muito emblemáticas.
Não houve partido por trás, a garotada foi pra rua. Um movimento que está ampliando e se massificando é o
hip-hop (...). E nós temos interlocução com eles” (p. 31).
Notas sobre o passe livre e o poder e o fazer de uma juventude 345

MANNHEIM, Karl. O problema sociológico das gerações. In: MANNHEIM. Sociologia. São Paulo: Ática,
1982.
MARGULIS, Mario. Juventud: una aproximación conceptual. In: BURAK, Solum D. (Org.). Adolescencia y
juventud en América Latina. Cartago: Libro Universitario Regional, 2001.
MARGULIS, Mario; URRESTI, Marcelo. La juventud es más que una palabra. In: MARGULIS, M. (Org.). La
juventud es más que una palabra. Buenos Aires: Biblos, 2000.
MARTIN-BARBERO, Jesus. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonia. 4. ed. Mexi-
co: G. Gili, 1997.
MATZA, David. As tradições ocultas da juventude. In: BRITO, Sulamita de. Sociologia da juventude III: a vida
coletiva juvenil. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
SOUSA, Janice Tirelli Ponte de. Reinvenções da utopia: a militância política de
jovens dos anos 90. São Paulo: Hacker; Fapesp, 1999.
TERRANOVA. Tiziana. Free labor: producing culture for the digital economy. Social Text, v. 63, n. 18. Duke:
Duke University Press, 2000.
VINICIUS, Leo. A guerra da tarifa. São Paulo: Faísca, 2005.
VINICIUS, Leo. Guerra da tarifa 2005: uma visão de dentro do Movimento Passe-Livre em Floripa. São Pau-
lo: Faísca, 2006.
VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud: para un análisis de las formas de vida contemporáneas. Madrid: Tra-
ficante de Sueños, 2003a.
VIRNO, Paolo. Virtuosismo y revolución: la acción política en la era del desencanto. Madrid: Traficante de Sue-
ños, 2003b.
Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes:
os chamados “movimentos” juvenis
circunscrevem um sujeito político
na contemporaneidade?
Marco Aurélio Maximo Prado
Juliana Perucchi

A s formas de criação e manutenção das hierarquias sociais brasileiras


têm sido objeto de análise no âmbito da psicologia política, sobretudo
as que evidenciam desigualdades não somente econômicas, mas também as
consequentes inovações que engendram a participação política a partir das
concepções de identidade e de sujeitos políticos. Nesse sentido, o presen-
te texto se propõe a problematizar duas questões bastante atuais: o que são
as hierarquias sociais e os seus mecanismos de reprodução e manutenção
das desigualdades e subordinações; e qual a possibilidade de emergência de
sujeitos políticos, a partir da noção de Rancière (1996), que tributa a esta
emergência uma mudança na partilha das hierarquias de subordinação, ou
seja, uma transformação na própria racionalidade da política.
Uma primeira tentativa de análise sobre tais questões consiste em
argumentar sobre a relação da experiência da juventude com as hierarquias
sociais e, por consequência, em refletir sobre possíveis razões para que a
experiência da juventude tenha se tornado um campo, ao mesmo tempo,
tão regulado e tão redentor na política contemporânea. E uma segunda ten-
348 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

tativa seria de definir os mecanismos de manutenção das hierarquias para


interpelar se os movimentos de juventude contemporâneos seriam a emer-
gência de sujeitos políticos, ou seja, do distanciamento do ator social. Sujeito
político aqui entendido como um ato precário de distanciamento do pacto
social possível (RANCIÈRE, 1996).
Para argumentar essas perspectivas, as proposições de dois autores
colaboram na problematização do tema das hierarquias, da política e dos
sujeitos: Chantal Mouffe (2000) e Jacques Rancière (1996). Suas proposi-
ções teóricas permitem-nos indagar sobre qual sujeito político circunscreve
sob o termo juventudes E, ao mesmo tempo, possibilitam entender por que
as ciências e o Estado se interessam tanto pela juventude no mundo con-
temporâneo.
As hierarquias sociais são construídas principalmente através de
duas lógicas: a da classificação social, particularmente fomentada e realizada
pelo Estado e pelas ciências, e a lógica da inferiorização social, que possui
mecanismos ideológicos e cognitivos para sua materialização.
São lógicas distintas, no entanto complementares, e têm sido utili-
zadas historicamente na manutenção de desigualdades e no acirramento de
exclusões sociais que ocorrem de formas variadas, passando desde o aniqui-
lamento humano e a violência social até formas de inclusão subalternizadas,
evidenciando assim o quão pernóstico e severo podem ser esses processos
de subordinação que afligem uma sociedade como um todo e não apenas
determinados grupos sociais (PRADO; MACHADO, 2008).
Mas se a classificação e a inferiorização social são parentes próximas,
elas incidem lógicas distintas ainda que intrinsecamente vinculadas. Na clas-
sificação está presente a condição da subordinação, diferentemente da con-
dição de opressão, encontrada no sustentáculo das inferiorizações sociais. A
relação subordinada estabelece uma funcionalidade entre os atores sociais,
ou seja, elas se institui como o funcionamento de determinadas organiza-
ções sociais, baseando-se muitas vezes em discriminações históricas; no
entanto, por aparecer como uma relação entre funções sociais e legítimas, é
Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes: os chamados “movimentos” juvenis circunscrevem... 349

potencialmente uma relação de opressão ainda não politizada, isto é, ainda


não reconhecida pelos sujeitos como uma forma de injustiça e inferiorização
social. Nas relações subordinadas, nas palavras de Chantal Mouffe (2000),
não existem antagonismos, pois para tal seria de importância colocarmos
as relações de poder em uma perspectiva histórica para interpelação das
hierarquias sociais, assim as identidades em condições de subordinação são
experienciadas como reciprocidade positivas e funcionais que sustentam as
hierarquias de poder.
Diferentemente dessa posição, nas relações de opressão, os sujeitos
políticos, subordinados anteriormente, reconhecem na inferiorização social
uma injustiça historicamente construída, tomando a ordem social como ob-
jeto de questionamento, reflexão e interpelação. Aqui se faz necessário não
só a comparação como a inovação histórica, ou seja, a continuidade e a rup-
tura histórica. Pode-se reconhecer que nessa forma de relação o exercício da
desconstrução de significados cristalizados e rígidos e das classificações e
inferiorizações, o enfrentamento político na arena pública e a configuração
de uma identidade coletiva como categoria analítica do processo de cons-
tituição de um nós, um sujeito coletivo, são de extremada importância. No
seio das relações de opressão está o anúncio dos limites da objetividade e da
inteligibilidade do social.
Assim, a hierarquia pode ser reconhecida como uma relação de opres-
são, desde que para isso ela seja tomada e reconhecida como uma relação que
oprime um dos atores em jogo. Seria necessário então falar de um processo
que busca retirar qualquer funcionalidade e naturalidade das hierarquias, des-
naturalizar as classificações e os valores que se estruturam na manutenção da
inferioridade de determinados grupos sociais na história de uma sociedade.
Nesse sentido, as formas de inferiorização que possuem essa dinâmica, ainda
que se apresentem como variáveis, estão imbuídas pela lógica da opressão, já
que se configuram como formas de negação da equivalência dos direitos. Nes-
sa perspectiva, vale pensar sobre o que implicaria considerar a hierarquia gera-
cional como uma naturalidade classificatória a ser desconstruída.
350 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

É nesse jogo entre hierarquizações e inferiorizações que mecanis-


mos importantes como a naturalização social e o preconceito atuam, pois
eles são parte fundamental do elemento perceptivo-cognitivo da política
que impedem sujeitos políticos de criarem algum litígio, pela perspectiva
apresentada por Rancière (1996). Eles são utilizados para conservação e
extensão dos processos de dominação social, o que significa tomar então
o preconceito como um regulador das interações entre os atores e grupos
sociais, mas com uma finalidade própria: não permitir que relações subor-
dinadas se transformem em política, ou seja, em relações de opressão. Ora,
mas qual a relação desses mecanismos com a experiência da juventude?
A prática tão comum entre os cientistas e os gestores das políticas
públicas de considerar que as características da experiência dos jovens de-
vem ser pensadas a partir do universo dos adultos tem contribuído bastante
para naturalizar uma escala de inferiorização social sem precedentes. Mas a
inferiorização e a classificação (em muito se atribui características aos jovens
que, ao classificá-los, esconde-se o elemento de inferiorização, como se na
identidade dos jovens existissem características próprias por serem jovens e
não em contraposição a outras formações identitárias) são sustentáculos da
manutenção das hierarquias sociais.
Inclusive, o avanço histórico de considerar que jovens possuem di-
reitos sociais, ainda que os insira no universo da governança institucional,
está distante de lidar com o jovem como sujeito político, como este texto
destaca mais adiante. Mas já é pertinente apontar, de início, que o argumen-
to aqui defendido é acerca do funcionamento das hierarquias e da lógica da
cognição do sujeito político. Portanto insiste-se na reflexão em que a expe-
riência da juventude é entendida e problematizada como sendo alicerçada
na lógica da classificação e da inferiorização, podendo assim ser vivida, com-
preendida e ter alguma inteligibilidade social, exatamente porque, a partir
dessas lógicas, ela será entendida como uma experiência subordinada: ou
seja, experiência pela qual a diferença é vivida como imutável, não histórica
e funcional na perspectiva das gerações.
Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes: os chamados “movimentos” juvenis circunscrevem... 351

Não seria pouco então imaginar que essa visão exige alguma inteligibi-
lidade social da ação. Mas, então, qual a relação dessa experiência subordinada
com a constituição de um campo de intervenções científicas que parece a cada
dia tornar-se um campo privilegiado de regulação? Por que “juventude” passa a
ser uma experiência privilegiada como específica para o conhecimento das ciên-
cias atuais? Hoje, escutamos um dialeto próprio sobre essa experiência: projetos
de jovens para jovens, protagonismos juvenis, juventude, as juventudes, política
pública para jovens, sociabilidades juvenis, culturas juvenis, condição e situação
juvenil, ou seja, há algo de tão específico nessa experiência do momento atual
que a ciência e a gestão dos corpos se interessariam tanto? A questão principal é:
como as ciências constroem hoje uma inteligibilidade social dessa experiência,
definindo e impondo uma rede de legitimidade sobre o social e apontando os
parâmetros do que poderá aparecer e do que não poderá ser tornar visível na es-
fera do social. A norma converte um campo social em inteligibilidade e, portanto,
busca normalizá-lo no seio das hierarquias (RUBÍN, 1993).
Assim seria pertinente desconfiar que a juventude não reserva ne-
nhuma relação com a especificidade de ser jovem hoje, mas sim com um
complexo institucional e social que busca representar a falácia de sustentação
das hierarquias sociais quando se converte em um campo de intervenção. E,
atentando para a história, frequentemente, quando se dá a constituição de
um campo com grande capacidade de desenvolvimento de uma tecnologia
do poder científico, é revelador de que esse campo só aparece como regula-
ção a partir da revelação do seu próprio distúrbio! Aqui pode-se fazer coro
com a afirmativa de vários estudiosos de que juventude é apenas uma pala-
vra que esconde situações e inserções desigualmente distintas. Isso significa
então dizer que a constituição desse campo científico e toda a emblemática
classificatório-científica são o sintoma principal de que a experiência juvenil
interpela uma hierarquia que ora é subordinada, portanto diferencialmente
imutável, e a coloca no centro da história, ou seja, a reintroduz como limi-
te do social, rompendo assim as malhas da classificação e da inferiorização
quando emerge como sujeito político.
352 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

O que se pode perceber é que juventude, nas últimas décadas, mi-


grou do campo visionado pela centralidade da experiência adulta, o que pa-
rece ter um significado próprio. Ou seja, migrou da noção essencial para se
constituir como um ponto nodal. Essa migração, fruto de inúmeros proces-
sos articulatórios – e não de características intrínsecas a ela mesma –, tenta
fixar significados e ser um ponto central que sintetiza muitas outras experi-
ências subalternizadas, como as de classe, de sexualidades e de raça e etnia.
Isso significaria que a experiência da juventude foi alçada a um modelo de
identidade, mas não necessariamente de sujeito político, motivo pelo qual
tem sido objeto de intervenção das tecnologias do poder.
O mais interessante de se observar é que essa transição ou migra-
ção, se, por um lado, tem grande sentido no campo dos direitos sociais –
os jovens agora são alvo de algum discurso público por parte do Estado –,
por outro, constitui-se num nódulo que sintetiza outras experiências. E aqui
parece residir o problema das ciências e das políticas públicas como tecno-
logias do poder, que é reconhecer os direitos sociais dos jovens, mas não
implicar-se na subversão das hierarquias sociais. Ora, se esse argumento é
válido, qual seria então a consequência dos jovens emergirem como sujei-
tos políticos? Quais antagonismos revelariam a emergência de um sujeito
político nessas experiências? Qual seria a consequência de aumentar nossas
lentes para enxergar ao invés do desinteresse dos jovens pela política con-
vencional, a desconfiança? (AUGUSTO, 2008).
Para tal consideração, os conceitos de sujeitos políticos e de antago-
nismos fazem-se fundamentais. Como apontaram Laclau e Mouffe (1996),
antagonismos são diferenças, são estruturação de limites no seio de um dis-
curso hegemônico. São articulados por posições de sujeitos que buscam
subverter o discurso hegemônico, ao denunciarem os limites da objetivida-
de e da inteligibilidade do social. São relações de subordinação naturaliza-
das e articuladas como relações de opressão e de dominação construídas
socialmente. Assim, antagonismos são, ao mesmo tempo, a denúncia da mu-
tabilidade da diferença e o limite da inteligibilidade do social. Sendo o anta-
Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes: os chamados “movimentos” juvenis circunscrevem... 353

gonismo uma diferença, o desafio maior é como essas diferenças poderiam


se articular em alguma cadeia de equivalências sociais. Esse é talvez o ponto
mais nevrálgico da problemática acerca de como a experiência da juventude
mobiliza lógicas de equivalências no mundo público atual.
A articulação de jovens em torno de debates atuais como os que, por
exemplo, contemplam as lutas de alguns movimentos sociais pode ilustrar
como as experiências juvenis no âmbito das ações coletivas traduzem pro-
cessos de interação, negociação, reciprocidade e conflito pelos quais a iden-
tidade coletiva e a identidade social de cada participante (ambas sempre em
processo) são, ao mesmo tempo, (re)afirmadas e tensionadas. As relações
intersubjetivas que se processam no interior de um movimento social não
significam, como já explicou Touraine (1991), a defesa de interesses par-
ticulares ou a expressão de motivações pessoais apenas. A articulação de
diferentes posições de sujeito transcende a individualidade de cada pessoa
para constituir um “nós” inteligível, provisório, porém suficientemente arti-
culado, ao ponto de mediar a produção tanto do processo coletivo quanto
das subjetividades inerentes à coletividade. Tais relações intersubjetivas re-
presentam “uma vontade de construir ou reconstruir a sociedade em seu
conjunto, de maneira favorável aos interesses de um grupo” (TOURAINE,
1991, p. 33).
A participação em uma ação coletiva exige por parte do sujeito a as-
similação de um projeto coletivo contextualizado e situado. Portanto, passa
pela apropriação de um espaço de ação, exigindo o posicionamento e a cir-
culação por certos territórios, bem como a incorporação de certas regulari-
dades objetivas dispostas no contexto social.
Acompanhando as ações de grupos de jovens militantes LGBT,1
pode-se avaliar como processos intersubjetivos que constituem as ações
coletivas desenvolvidas por jovens têm, em sua formação, certo grau de ar-
ticulação entre diferentes posições de sujeito e contemplam três dimensões
1 Como as desenvolvidas pelo Grupo Universitário em Defesa da Diversidade Sexual (GUDDS!), no Brasil,
e as do Grupo de Jovens LGBT da Rede Exaequo, em Portugal.
354 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

complexamente integradas: a definição do ator social, do seu adversário e


do campo de conflito/negociação entre esses atores (TOURAINE, 1991).
Aproximando os pressupostos de Touraine às discussões de Laclau e Mou-
ffe, tem-se a proposição de que a constituição dos sujeitos nos processos co-
letivos da juventude LGBT brasileira e portuguesa, por exemplo, se dá pela
relação desses indivíduos com outros no interior e fora do movimento so-
cial. Atores sociais e conflitos antagônicos definem – por meio de processos
intersubjetivos – o sujeito que constitui e é constituído pela ação coletiva,
num complexo modo de construção da experiência juvenil, contextualizada
e provisória, atravessada pela historicidade e pela contingência.
Nas palavras de Laclau (1986, p. 43), “não há nenhuma posição
de sujeito cujas conexões com as outras posições possam ser permanen-
temente asseguradas; e, por consequência, não há nenhuma identidade
social integralmente adquirida que não esteja sujeita, em maior ou menor
escala, à ação de práticas articulatórias”. Assim, o conflito, como afirma
Touraine (1991), se dá entre os atores/sujeitos enquanto tais, e essa cons-
tatação é um dado imprescindível para se compreender as potencialidades
de emergência dos sujeitos políticos, ao invés da captura das identidades
fixadas pelas tecnologias do poder. A relevância dessa verificação se des-
dobra em algumas evidências: a determinação da identidade dos agentes
se dá por processos que envolvem não apenas elementos referentes à es-
trutura social, como classe social, por exemplo, mas também a elementos
de ordem simbólica, afetiva e territorial; o tipo de conflito é caracterizado
por diferentes e complexas conjunturas que não podem ser reduzidas nem
ao nível individual, nem a um social abstrato; e a pluralidade de espaços
do conflito entre diferentes atores sociais exige a circulação dos agentes
em variadas “posições de sujeito”.
Nesse sentido, um ponto inexorável que aparece à compreensão na
contemporaneidade parece ser a necessidade de reconhecer o antagonismo
e seu caráter inerradicável nos processos de produção das identidades coleti-
vas juvenis. Não se trata, portanto, de tentar eliminar o antagonismo da cena
Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes: os chamados “movimentos” juvenis circunscrevem... 355

social na qual esses jovens promovem suas ações coletivas, procurando es-
tabelecer um consenso racional que neutralizaria o conflito. Trata-se efetiva-
mente de contemplar a dimensão do antagonismo como própria do caráter
político e cultural dos movimentos sociais, entendendo seu papel crucial na
formação das identidades coletivas e, por conseguinte, na identidade social
dos atores que constituem tais movimentos.
É importante reconhecer que a relação entre identidade e reconhe-
cimento, que caracteriza as tensões constitutivas das ações coletivas e dos
movimentos sociais que envolvem a juventude, configura momentos de
expressão política de reivindicações coletivas, culturalmente diversas. Com-
põem o que Pierucci (1999) define como a proeminência “das diferenças
de grupo, antes que individuais, no centro mesmo da ação coletiva, visando
ao reconhecimento (ou à denegação) de direitos a indivíduos que partilham
situações ou características” (PIERUCCI, 1999, p. 107). Assim, a prática po-
lítica das ações coletivas desses grupos de jovens brasileiros e portugueses,
por exemplo, não consiste na defesa dos direitos de identidades (sociais e
coletivas) constituídas a priori, mas antes na própria produção dessas identi-
dades, num terreno tenso, precário e sempre vulnerável.
Conforme afirma Prado (2001), “não há nas ações coletivas ne-
nhum caráter emancipador que possa ser predeterminado antes do pro-
cesso que se instaura na constituição da identidade coletiva”. Nesse sen-
tido, o caráter emancipatório das ações coletivas e, portanto, de qualquer
movimento social dependerá fundamentalmente do modo que o pro-
cesso de articulação grupal se configurará em relação ao contexto. Dito
de outra forma, seu grau de emancipação ou de regulação dependerá de
como um “nós” articula sua ação perante um “eles”, na forma e na estra-
tégia conforme a ação coletiva se volta para aquilo que Mouffe (2000)
define de “referência externa”. É nesse jogo de antagonismos, da igualda-
de/diferença, que a participação juvenil, em algum movimento social, se
configura como emancipatória e/ou reguladora, na qualidade de fonte de
autonomia e/ou de dominação destes sujeitos.
356 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Vale destacar que a juventude aparece na história brasileira na qua-


lidade de sujeito político na ditadura militar, ali, com um estado de exceção,
o jovem emerge enquanto sujeito de fala pública articulado com outros
movimentos políticos. Parece que, naquele momento, algum antagonismo
era possível mais pelo adversário do que propriamente pela reinvenção do
cotidiano.
Rancière (1996) foi quem melhor compreendeu a emergência dos
sujeitos políticos da atualidade. Para o autor, o sujeito político pode ser defi-
nido como um ato de precariedade, ou seja, é um ato que coloca em risco a
lógica criada pelos consentimentos, a base mesma dos consensos. O sujeito
político, nessa perspectiva, é a crise do pactuado, é a crítica aos fundamentos
da regra recíproca daquilo que conhecemos como sendo a experiência do
pacto da sociedade democrática hoje e das lógicas de dominação que se re-
produzem seja por gerações, por classes sociais ou por outras formas de hie-
rarquizações sociais. Aqui, os sujeitos políticos são atos de desclassificação.
Mas, para compreender a emergência dos sujeitos políticos, é necessário
descrever a diferenciação que Rancière (1996) faz entre política e polícia.
O autor chama de polícia “o conjunto de processos pelos quais se operam a
agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes
e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os siste-
mas de legitimação dessa distribuição”. Diz o autor:
(…) proponho então dar a esse conjunto de processos outro nome. Pro-
ponho chamá-lo de polícia, ampliando portanto o sentido habitual dessa
noção, dando-lhe também um sentido neutro, não pejorativo, ao conside-
rar que as funções de vigilância e de repressão habitualmente associadas a
essas palavras como formas particulares de uma ordem muito mais geral
que é a da distribuição sensível dos corpos em comunidade. (RANCIÈRE,
1996, p. 372)

Os sujeitos políticos, portanto, são a precariedade dos atos que co-


locam, como anuncia o filósofo francês, em litígio a inteligibilidade do so-
cial. Podemos aproximar essa concepção da noção de hegemonia de Laclau,
conforme diz o autor:
Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes: os chamados “movimentos” juvenis circunscrevem... 357

… por formação hegemônica eu entendo um conjunto de formas sociais


relativamente estáveis, a materialização de uma articulação social na qual di-
ferentes relações sociais reagem reciprocamente ou para prover uma a outra
com uma mútua condição de existência ou para no mínimo neutralizar a po-
tencialidade destrutiva dos efeitos de certas relações sociais na reprodução de
tais relações. (LACLAU, 1986, p. 42)

Portanto, os sujeitos políticos deveriam criar fissuras litigiosas no


que se chama bem comum, nesse conjunto de formas sociais relativamente
estáveis, entendidas aqui como hegemônicas. Na perspectiva de Ranciè-
re, os sujeitos políticos são emergentes do litígio, são enunciados dos não
contados, são discursos em que só se escutara ruídos, são vozes em que an-
teriormente só se ouviam barulhos. Sendo assim, os sujeitos políticos são
aqueles que colocam o consenso em litígio, ou seja, que colocam em risco a
própria política e as bases do seu consentimento. Eles são a perturbação das
hierarquias pactuadas, da funcionalidade da subordinação, produzem mo-
dificação naquilo que é visível, dizível e contável. Logo, não são os sujeitos
de direitos simplesmente, mas interpelam a base mesma dos direitos sociais.
Indubitavelmente, pode-se concluir que a emergência dos sujeitos políticos
aponta para a crise da inteligibilidade da ação social, e como crise decorre
consequentemente da crítica, pode-se verificar que então a juventude como
sujeito político revela-se enquanto crise do pactuado das hierarquias funcio-
nais e critica a lógica de dominação que se reproduz pelas gerações como
lógicas naturalizadoras e classificadoras.
Aqui, então, a noção de sujeitos políticos, portanto, se distancia to-
talmente daquele que prevê os sujeitos no mundo da política como agentes
sociais racionais. Nesse sentido, o perigo, diz o autor, é que a política se faça
dissipar pela sua agregação ao corpo social, ou seja, ao mundo da polícia.
O perigo está em que a emergência do sujeito político se configure apenas
como uma identidade, muitas vezes articulado pelo próprio Estado, para fa-
zer parte do corpo social. Diz o autor:
Assim, os sujeitos políticos são entendidos como – sujeitos em ato, como ca-
pacidades pontuais e locais de construir, em sua universalidade virtual, aque-
358 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

les mundos polêmicos que desfazem a ordem policial. Portanto são sempre
precários, sempre suscetíveis de se confundir de novo com simples parcelas
do corpo social que pedem apenas a otimização da sua parte. (RANCIÈRE,
1996, p. 378)

Indubitavelmente, apresenta-se o risco de confundirmos os sujeitos


políticos com parte da política pública! Ou seja, o risco de que a precarieda-
de dos sujeitos políticos se transforme na fixação das identidades, que ape-
nas “pedem a otimização da sua parte”, mas não criam o litígio do mundo
do sensível, a desclassificação. Os sujeitos políticos, que são capazes de uma
universalidade virtual, podem imaginar um mundo que não existe; podem,
portanto, criar nomes para o não nomeado, criar território para o ainda im-
pensável, ação fundamental de enfrentamento das hierarquias sociais.
Pensar a juventude como sujeito político nessa acepção e as lógicas
da classificação e da inferiorização que sustentam os mecanismos hierárqui-
cos seria colocar o que postulamos como direitos em litígio, considerando a
experiência da juventude como o presente e não como o futuro da socieda-
de. Não o “ainda a ser vivido”, mas a vivência ela mesma, a qual poderia inter-
pelar o quanto as classificações científicas transformaram vozes em ruídos
não audíveis, transformou a desconfiança do aparato político institucional
em desinteresse pela política. Seria imaginar se os movimentos da juventude
são sujeitos políticos em interpelação de hierarquias ou se são parte do cor-
po da polícia, solicitando a divisão do que já foi dado como bem comum.
Como seriam os adultos, a imaginar a vida em sociedade, colocan-
do em risco as hierarquias geracionais que os definem como posições de
sujeito e de poder ao considerar a igualdade entre todos os falantes? Quais
inteligibilidades do social estariam sendo escritas pela subversão dessas hie-
rarquias?
Essas questões, que merecem o desenvolvimento de pesquisas, po-
dem favorecer que se coloque mais em risco as certezas preestabelecidas e
as lógicas de inferiorização e se considere o risco de viver em democracia,
ou seja, aquela experiência que quando radicalizada poder-se-ia facilitar
Hierarquias, sujeitos políticos e juventudes: os chamados “movimentos” juvenis circunscrevem... 359

uma articulação ainda não prevista dos valores de igualdade e liberdade e


que através dessa fossem possíveis as emergências de sujeitos políticos em
várias esferas da vida social. As juventudes então, desse ponto de vista, são
potencialmente, tais quais outras experiências da contemporaneidade, pos-
síveis sínteses da precariedade do sujeito político. Restaria apenas trocar as
lentes que têm sido utilizadas, para vê-las interpelando nossas próprias hie-
rarquias. Mas fica a questão: quem toparia viver o risco democrático na sua
radicalidade?

Referências
AUGUSTO, N. M. A juventude e a(s) política(s): desinstitucionalização e individualização. Revista Crítica de
Ciências Sociais, n. 81, p. 155-177, jun. 2008.
LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London:
Verso, 1996.
LACLAU, E. Novos movimentos-sociais e a pluralidade do social. Revista Brasileira de Ciências, v. 1, n. 2, p.
41-47, 1986.
MOUFFE, C. The democratic paradox. London: Verso, 2000.
PIERUCCI, A. F. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999.
PRADO, M. A. M. Psicologia política e ação coletiva: notas e reflexões acerca da compreensão do processo de
formação identitária do “nós”. Revista Psicologia Política, v. 1, n. 1, p. 149-172, 2001.
PRADO, M. A.; MACHADO, F. V. A hierarquia da invisibilidade: preconceito contra homossexualidades. São
Paulo: Cortez, 2008.
RANCIÈRE, J. O dissenso. In: NOVAES, A. (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
RUBÍN, G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: VANCE, C. (Org.). Pleasure
and dangers: exploring female sexuality. New York: Paul & Co Pub Consor, 1993. p. 267-319.
TOURAINE, A. A sociologia da ação: uma abordagem teórica dos movimentos sociais. In: PERALVA, An-
gelina T.; SPOSITO, Marília P.; JACOBI, Pedro (Ed.). O retorno do ator: movimentos sociais em perspectiva.
São Paulo: FE/USP, 1991.
Juventude e saúde:
concepções e políticas públicas
Cássia Baldini Soares

C omo as demais concepções, aquelas atribuídas à juventude emer-


gem a partir da sua elaboração por sujeitos, no movimento histórico
das relações sociais nas diferentes formações sociais e diferentes realidades
que nelas vão se configurando em função das contradições inerentes a es-
sas formações e dos conflitos sociais que daí decorrem. Essas concepções
são formuladas por sujeitos concretos que fazem parte de classes sociais – e
frações de classe – que ocupam diferentes lugares na reprodução da vida
social – condições concretas de estrutura de funcionamento do modo de
produção – e, portanto, na divisão social e técnica do trabalho, o que lhes
confere possibilidades, experiências e interesses diversos para compreender
a realidade. (VIANA, 2008).
O ponto de partida para a construção de conceitos é a visão de mundo
do sujeito, que corresponde a sua forma e a de seu grupo social de perceber e
explicar a natureza humana, sua essência e a realidade social da qual faz parte.
Esta reflexão sobre juventude e saúde se fundamenta na vertente
das ciências sociais de cunho marxista, sob a qual se estruturou o campo
da saúde coletiva, responsável pela construção de conhecimentos e práti-
cas críticos aos da saúde pública. O compromisso com a visão de mundo
marxista possibilitou à saúde coletiva responder à necessidade de explicar
362 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

as crescentes e perversas desigualdades em saúde – dimensão teórica – bem


como dar respostas sociais condizentes com essas explicações – dimensão
política (SOARES, 2007).
A perspectiva marxista centraliza a essência humana no trabalho,
entendido como atividade instaurada por uma ação consciente no interior
da realidade social, de modo a responder às necessidades vitais do homem.
Daí decorre a compreensão de que a consciência só existe no ser consciente,
que é social e que, portanto, se realiza nas práticas sociais – práxis –; nessa
direção, consciência (subjetividade) e prática (objetividade) existem como
faces de uma mesma moeda.
O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue
dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua von-
tade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma
determinidade (...) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital
consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Jus-
tamente [e] só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser cons-
ciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser
genérico. Eis porque a sua atividade é atividade livre. (MARX, 2008, p. 84)

Como abordagem científica, o marxismo é crítico em relação aos


encaminhamentos da ciência hegemônica. É propositivo, pois integra or-
ganicamente o projeto de construção do conhecimento ao de construção
de uma sociedade capaz de incorporar plenamente as realizações humanas,
sempre possíveis quando a práxis se transforma na articulação entre ideia e
ação, entre teoria e prática. Dessa perspectiva, concebe-se que as diferentes
práxis sociais podem apoiar os indivíduos no processo de compreensão da
realidade ou, ao contrário, mantê-los ideologicamente presos a explicações
dominantes, mesmo diante de situações materiais concretas que encami-
nham a compreender os problemas em direções opostas àquelas predomi-
nantemente instituídas (SOARES, 2007).
O conhecimento científico emerge da interação entre as práticas sociais da ci-
ência – o trabalho social e historicamente localizado, ou o trabalho cognitivo,
que acompanha a produção de conhecimento – e o mundo material, que existe
independentemente da cognição humana. A historicidade do conhecimento
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 363

para Marx é sempre uma relação dialética, sempre mutável, com a objetivida-
de do mundo material: um toma-lá-da-cá constante entre nossas categorias de
pensamento historicamente localizadas e o mundo que existe independente-
mente dessas categorias e continuamente transforma as mesmas, submetendo-
as ao teste do experimento científico e ancorando-as, com uma exatidão cres-
cente, nos objetos do mundo material. (NANDA, 1999, p. 89).

As concepções dominantes são ensinadas e interiorizadas na edu-


cação formal e prevalecem, portanto, nos meios acadêmicos, em que o
conhecimento não só se produz, mas também se reproduz. Porém, isso é
apenas parte da verdade. Gramsci ensina que o processo de formação das
concepções dominantes não se resume aos espaços educacionais formais:
para além da escola, outros elementos jogam papel de destaque.
Mészáros (2005) chama a atenção para a contribuição de Gramsci,
ao discutir a educação para além do capital, quando afirma que a contribui-
ção que cada ser humano dá pode cair nas categorias contrastantes da “manuten-
ção” e da “mudança”, sem que necessariamente haja exclusividade da contri-
buição de uma ou outra categoria. Como já insistimos acima, a dominância
depende da forma como as forças sociais conflitantes se confrontam, de modo
que o domínio da educação formal não reina absoluto em favor do capital.
Diante dessas considerações de natureza epistemológica, partimos
do entendimento que as concepções sobre juventude que fundamentam as
práticas hegemônicas na área da saúde não constituem a única maneira de
pensar e agir sobre os problemas que a ela se relacionam. Existem outras
possibilidades que levam em conta a realidade material dos jovens cultiva-
das tanto nos meios acadêmicos como no interior dos serviços, cujas práxis
buscam superar os limites que se encerram nas concepções sobre juventude
que prevalecem na área da saúde.
Este texto pretende contribuir para o processo de questionamento
crítico às concepções que orientam as práticas hegemônicas voltadas para a
saúde dos jovens e, ao confrontá-las, propor o adensamento de concepções
e práticas de mudança, a partir dos fundamentos epistemológicos que ampa-
ram a construção do campo da saúde coletiva.
364 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

A perspectiva da saúde pública: adolescência como fase


do ciclo vital e políticas que apelam para estilos de vida
saudáveis

As ações de saúde pública se voltam fundamentalmente para os cha-


mados problemas de saúde da adolescência, fenômeno por ela compreendi-
do como uma fase do ciclo vital. E que problemas são esses? Notadamente
a gravidez – “de risco” – e as doenças sexualmente transmissíveis (DST) e
Aids, ambas referentes à chamada saúde sexual e reprodutiva, entendidas
como “condições em que os hormônios estão exacerbados”. Afinal, o ado-
lescente é definido como uma “bomba universal de hormônios”. Ironias à
parte, a violência e os problemas relacionados ao consumo de drogas por
jovens também são objeto das ações em saúde (AMARANTE; SOARES,
2007), a exemplo do que ocorre com outros setores da sociedade, que se
responsabilizam pela tarefa de implementar políticas, para conter os chama-
dos problemas sociais relacionados à chamada juventude excluída e que inco-
modam as classes dominantes.
Assim sendo, as concepções que orientam as práticas dirigidas aos
jovens definem essa fase da vida como peculiar do ponto de vista biológi-
co, de tal forma que transformações físicas da puberdade, explicadas por
mudanças hormonais características do chamado crescimento e desenvol-
vimento normal, se encontrariam na raiz dos problemas dos adolescentes
(SOARES, 2009).
A visão de mundo positivista – que sustenta o campo da saúde pú-
blica – recorta o objeto da adolescência pelo fenômeno da puberdade e
pressupõe a universalidade dessa condição que se estende até o desenvolvi-
mento completo do corpo: adotam-se limites etários fixos e estabelecem-se
diferenças entre homens e mulheres. Nesse sentido, além das mudanças fí-
sicas, idade e sexo assumiriam o papel de categorias biologicamente funcio-
nais, resultando um conceito de adolescência cristalizado, que se propõe a
explicar a natureza funcional do organismo a partir de leis e regularidades de
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 365

algumas categorias biológicas que seguem naturalizadas (SOARES, 2009).


Por seu turno, quando os ensinamentos da psicologia são incorpora-
dos à compreensão da adolescência, a partir da visão de mundo fenomeno-
lógica – que toma como centro a personalidade e complexifica a perspectiva
das ciências biológicas –, elementos de caráter emocional passam a explicar
uma certa crise que as transformações físicas e afetivas provocariam nessa
fase da vida (SOARES, 2009). Porém, ainda assim, o caráter universalista
da adolescência não é desmistificado, de forma que todos os jovens (dos
que vendem balas nos semáforos aos que frequentam as mais monitoradas
baladas) apresentariam as mesmas características essenciais, pois que, para a
fenomenologia, a essência é sempre idêntica a si mesma e por isso não importa o
contexto em que se manifesta (VIANA, 2008).
Dessa forma, a despeito da posição de classe do adolescente, ele es-
taria sujeito à crise própria dessa etapa da vida, independente de sua condi-
ção social. Assim, ainda que a contribuição da fenomenologia pudesse ter
avançado no sentido de ampliar a compreensão da adolescência, prevale-
ce o princípio de que condições intrínsecas ao sujeito responderiam pela
determinação de seus problemas tal qual nos marcos positivistas. No caso
do positivismo, porque as diferenças são consideradas naturais e, no caso da
fenomenologia, porque as diferenças estão nas diversas potencialidades que
os homens têm por conta da maneira como assimilam e interpretam suas
experiências (SOARES, 2007).
Sob tais orientações epistemológicas, existiria uma “adolescência
normal”, que no extremo chegaria à caricata “síndrome da adolescência
normal”, cujos problemas se expandiriam do âmbito biológico para o com-
portamental, considerando-se, no melhor dos casos, os chamados “fatores
sociais” como elementos estáticos e fragmentados, que compõem o “palco”
para o desenrolar dos problemas, e não são de fato tomados em considera-
ção como essenciais. As categorias da totalidade e da classe social são nega-
das pela saúde pública ou, por vezes, acionadas na condição de mais um fa-
tor que se encontra envolvido na temática em discussão (SOARES, 2007).
366 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

As práticas de saúde, hegemonicamente, se resumem a enfocar esses


problemas. Dessa maneira, se comporta a atenção básica tradicional e, dessa
maneira, se comporta também a “inovadora” estratégia saúde da família. Po-
rém, num caso e noutro há superações a depender das práxis dos trabalha-
dores envolvidos e de mais uma série de condições objetivas.
Tome-se o exemplo da gravidez na adolescência, fenômeno que,
pela envergadura, parece impressionar a sociedade contemporânea. Embo-
ra se conforme como um objeto complexo, cuja análise remete à totalidade
social, ele segue sendo tratado de maneira fragmentada pelas várias disci-
plinas. A gravidez, todos concordam, é objeto de interesse da saúde públi-
ca, assim como o preparo para o trabalho é um fenômeno de interesse da
educação, assim como o desemprego é um fenômeno de interesse da eco-
nomia e assim como os valores são de interesse da psicologia. Isso é dessa
forma porque cada disciplina recorta seu objeto da realidade social a partir
da perspectiva fragmentada oferecida pela visão de mundo positivista, que
inaugura a ciência em sua fase iluminista e é dominante até os nossos dias,
ainda que tenha sofrido diversas inflexões a ponto de hoje se falar em inter-
disciplinaridade de maneira bastante alardeada, às vezes mais como modis-
mo e menos como um novo critério para construir conhecimento que tenta
reintegrar as partes que foram fragmentadas pelas divisões disciplinares da
ciência (FAZENDA, 2008).
Nessa direção, a clínica terá recursos para monitorar a gravidez, defi-
nindo se é normal ou de risco, ainda que a gravidez seja sintoma de um fenô-
meno social plural e complexo; a escola deve ser capaz de ministrar cursos
que qualificam para o trabalho, ainda que não haja trabalho qualificado; e os
economistas devem calcular quantos jovens estão fora do mercado de traba-
lho, ou melhor, a taxa de desemprego, e mostrar que eles devem se distribuir
pelas áreas de atividade que mais empregam. Os psicólogos devem discutir
a crise de valores morais e propor que a família e a escola retomem o ensino
dos bons valores, e assim por diante, na infinita fragmentação das disciplinas
e dos processos de trabalho em saúde.
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 367

Bem, mas voltando à gravidez na adolescência, vale a pena ava-


liar como é que esse fenômeno é tratado pelas políticas públicas de saúde,
seja na atenção básica, seja nos demais níveis de referência que a diretriz
da integralidade comportaria? Que respostas são dadas pelo setor saúde?
Como a saúde pública interpreta o fenômeno? Que teoria explica a exis-
tência de jovens que engravidam tão cedo quando a norma da sociedade
é que primeiro terminem a escolarização e depois constituam família, e
assim por diante?
Ora, a perspectiva funcionalista, subsidiada pela visão de mundo
positivista, é tomada como concepção preponderante, de forma que esse
fenômeno é tratado na sua condição disfuncional, fora da norma. A adoles-
cente não aprendeu a fazer contracepção de maneira adequada, deixou-se
levar pelo embalo, a família é desestruturada e, portanto, não ofereceu for-
mação, o problema é do preconceito, visto que adultos demonstram difi-
culdade para entender que existe sexualidade na adolescência,1 e assim por
diante. As agências de socialização não socializaram de maneira plena. Há
um desvio, constitui um problema! Sob tal enfoque conceitual, defende-se
o estabelecimento da ordem, das relações regulares.
A perspectiva das políticas então é de prevenir a gravidez, disponi-
bilizando um conjunto de insumos – preservativos e métodos anticoncep-
cionais –, regras disciplinares e informações científicas sobre como evitá-la.
Regras disciplinares devem dar conta da socialização plena da adolescente
que está um pouco “perdida em relação ao que é bom e ruim para si e para a
sociedade”, bastando então resgatar o mapa do comportamento adequado
sobre como exercer a sexualidade. As informações e aparatos tecnológicos
devem ser disponibilizados para que, em posse de toda essa sabedoria e re-
cursos, as jovens possam dar conta de reduzir os danos causados pelo exer-
1 A coordenadora de Saúde do Adolescente e do Jovem do Ministério da Saúde (...) avalia que o sistema
público está cada vez mais preparado para receber adolescentes e dar orientações sobre a saúde sexual deles.
Mesmo assim, o planejamento familiar nessa faixa etária ainda enfrenta resistência por causa de preconceito.
“Até hoje, alguns adultos têm dificuldade de compreender que o adolescente é um indivíduo sexuado e, em seu
processo de crescimento, ele vai descobrir e ter relações afetivas”, destaca.
368 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

cício de sua “sexualidade desregrada”.2 Não obstante a ironia, divulga-se que


os índices estão caindo. Pergunto-me como? Pode-se afirmar que às custas
de muito condicionamento, o que oferece à sociedade, em curto prazo, uma
certa tranquilidade de que os problemas estão contidos e não vão gerar con-
flitos sociais maiores. Contudo, certamente, não oferece aos jovens alicerces
formativos que os conduza aos mais altos patamares de compreensão da re-
alidade. E, lamento dizer, é possível que muitos jovens estejam interiorizan-
do a ideologia de que, na pobreza, não se deve ter filhos…
Podemos também tomar como exemplo o consumo de drogas.
Dada a magnitude e perversidade do problema, a sociedade está preocupa-
da, da mesma forma que no caso da gravidez na adolescência, especialmente
com o consumo entre os jovens. Como se trata de um fenômeno generaliza-
do, paira uma falsa impressão de que todos os jovens se idiotizaram comple-
tamente, aceitando ser influenciados pelos demais para fazer uma atividade
que lhes prejudica, especialmente porque resultados de estudos bastante di-
fundidos nos diversos meios sociais mostram que entre as motivações para
o consumo tem destaque a famosa influência dos amigos. E não param por
aí: mostram ainda que a família está desestruturada e não consegue ensinar
o que é bom e o que é ruim, não consegue promover a socialização, e assim
por diante.
A ironia continua se mergulharmos no tratamento historicamente
dado ao problema no âmbito das políticas públicas de saúde. Num passado
bem recente, os jovens usuários eram comparados a jumentos, ameaçados
de terem seus cérebros fritos e de ver sua vida se afundar literalmente pelo
esgoto. A droga é tomada como ser vivente, dotada de vontade própria, ca-
paz de levar o sujeito a atos de maldade e de degradação humana. Possuí-
2 Atualmente, o Programa Saúde na Escola (PSE) é uma das ferramentas de conscientização dos estudantes de
ensino médio para prevenir DST e evitar gravidez indesejada. Mais de oito milhões de alunos de 54 mil escolas
já foram orientados. Dessas, quase dez mil distribuem preservativos. (...) o Ministério da Saúde (MS) come-
çou a produzir as Cadernetas de Saúde do Adolescente no ano passado. A cartilha contém informações sobre
temas essenciais para os mais jovens, como alimentação, saúde sexual e reprodutiva e uso de drogas. Dispo-
nível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_
area=124&CO_NOTICIA=11137>.
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 369

do pela droga, trata-se então de exorcizar o jovem e isso deve ser feito com
métodos adequados que se valem da inculcação ideológica, seja trocando-se
a dependência das drogas por outras, como a da religião ou do esporte, seja
pela imposição do ato físico de subtrair o mal substituindo-o pelo trabalho
pesado e árduo.
Dessa visão, decorre a recomendação de que o certo mesmo é pre-
venir! Em assim sendo, no caso da gravidez, na medida em que fica reco-
nhecida como uma disfunção, um desvio, o certo mesmo é impedir que se
saia do padrão normatizado pelos técnicos, maciçamente transmissores de
valores pequeno-burgueses. Assim conduzidos, os programas de prevenção
conseguem reunir todas as contraindicações para se obter resultados favo-
ráveis ao fortalecimento dos jovens (SOARES, 1997), fundamentados que
estão no enfoque predominante nos serviços de saúde (STOTZ, 2007).
Nessa perspectiva, viver em si já é considerado um comportamento de risco.
Assim, sob os auspícios da velha saúde pública, eram e ainda são utilizados
métodos behavioristas baseados no amedrontamento e na repetição.
De outro lado, sob os auspícios na moderna saúde pública, representa-
da na atenção básica pela estratégia saúde da família, prevalecem outros méto-
dos, como o da escolha informada e o do desenvolvimento pessoal. Transfere-se
a responsabilidade sobre a saúde, da sociedade para o sujeito, que seria então
capaz de fazer sua eleição informada, como se a possibilidade de escolha entre
o prazer proporcionado pela droga e o proporcionado pela arte, ou pela ati-
vidade lúdica de lazer, fosse passível de ser concretizada por todos os jovens,
independentemente de sua condição de classe (STOTZ, 2007).
As propostas de intervenção tomam como referência os chamados níveis
de prevenção que daí derivam (primária, secundária e terciária), cuja lógica
é a de que o desenvolvimento no tempo da doença (o consumo de drogas
considerado agravo ou doença) pode levar a níveis patológicos mais e mais
debilitantes. Nesse caso, o que se pretende é intervir precocemente sobre os
fatores de risco, inibindo o desenvolvimento do problema em foco e/ou tor-
nando sua progressão mais lenta sem tocar, contudo, nas bases estruturais da
sociedade onde estariam localizados os determinantes do processo saúde-
doença. (SOARES, 2007, p. 7)
370 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Essa tendência que hegemoniza o pensamento contemporâneo so-


bre saúde é cunhada por Ortega (2004) de biossociabilidade.
Nela, criam-se modelos ideais de sujeito baseados na performance física e esta-
belecem-se novos parâmetros de mérito e reconhecimento, novos valores com
base em regras higiênicas e regimes de ocupação de tempo. As ações individu-
ais passam a serem dirigidas com o objetivo de obter melhor forma física, mais
longevidade, prolongamento da juventude etc. (ORTEGA, 2004, p. 4)

A realidade é que a saúde pública toma a juventude como objeto, pre-


ponderantemente pelo recorte da adolescência, tendo por referência as bases
biológicas e emocionais atribuídas a essa fase do ciclo vital. Ampara-se, do pon-
to de vista epistemológico, na visão de mundo positivista e, em consequência,
utiliza quadros teórico-metodológicos funcionalistas, sendo as investigações e
as práticas realizadas sob o arcabouço teórico-metodológico multifatorial do
processo saúde-doença. Risco constitui uma importante categoria de análise,
mas que apenas substitui a identificação da causa por estimativas probabilísti-
cas e contribui para o estabelecimento de práticas em saúde que apelam para
mudanças individuais de hábitos (CZERESNIA; ALBUQUERQUE, 1995).
O adolescente que tem pais alcoolistas tem mais chance de ser alcoolista?
A adolescente que é filha de mãe que engravidou na adolescência tem mais
chance de ser mãe precocemente? A brincadeira com os números segue infi-
nitas possibilidades de correlações, a ponto de considerar-se razoáveis achados
absurdos que vão se configurando a depender do desenho da pesquisa e dos
interesses em jogo. Os dados alardeados passam a constituir verdades científi-
cas que obscurecem a leitura da realidade, no lugar de iluminá-la.
Nessa perspectiva, as práticas de saúde voltadas para os adolescentes
tentam responsabilizá-los por adotarem comportamentos saudáveis, ainda
que as causas estejam localizadas em profundas contradições sociais, que
ensejam condições de trabalho e vida desgastantes. A pressuposição é a de
que esses hábitos mais saudáveis seriam alcançados a partir do esforço in-
dividual de adesão àquilo que as pesquisas indicam como saudáveis – um
toma-lá-dá-cá entre a margarina e a manteiga, entre a cafeína e a endorfina,
entre a caminhada e a corrida, e assim por diante.
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 371

Sob tal orientação, valoriza-se a imagem ideal que preconiza que,


para se ter saúde e ser aceito socialmente, é necessário alimentar-se corre-
tamente, beber pouco, ter práticas sexuais seguras, não fumar, fazer exercí-
cios, entre tantas regras, que assumem mesmo um caráter moral de tal forma
que aquele que não as cumpre é tomado como uma pessoa menor. De fato,
configura-se na contemporaneidade todo tipo de sentimento negativo em
relação aos obesos, aos sedentários, aos chamados viciados, entre tantos.
Tal forma de intervir é inadequada, marginaliza os aspectos mais re-
levantes dos problemas vivenciados cotidianamente pelos jovens, diante da
complexidade que assume a gravidez na adolescência ou o consumo de dro-
gas e outras formas de compulsão contemporâneas que acometem também os
jovens, sem contar os problemas decorrentes do desgaste dos jovens que têm
que estudar e trabalhar concomitantemente (LACHTIM; SOARES, 2009),
entre tantos outros sofrimentos por eles vividos na contemporaneidade.
O fato é que as práticas de saúde pública fazem parte de um projeto
mais amplo, pois que, embora o Brasil conte com uma legislação bastante
favorável ao projeto da saúde como direito, o Estado brasileiro acompanhou
os passos da tendência mundial de implementação do neoliberalismo, in-
troduzindo políticas compensatórias para os adolescentes e jovens excluídos,
conferindo plena liberdade ao mercado para explorar direitos sociais como
os de saúde e educação, e incentivando os que podem pagar a acessar esses
serviços através do mercado (SOARES, 2007).
Nota-se que as iniciativas de desenvolvimento de práticas voltadas
para os jovens nas unidades básicas de saúde são quase sempre realizadas
esporadicamente, por iniciativa de trabalhadores isolados que, sem forma-
ção específica, se aventuram de “boa vontade” a “fazer alguma coisa” (AMA-
RANTE; SOARES, 2009).
Da mesma forma, em outras áreas que desenvolvem políticas para a
juventude, as ações voltadas para os jovens encontram-se pulverizadas em
diferentes instituições, com projetos que têm como finalidade disciplinar
e ocupar o tempo classificado como ocioso dos jovens, que se encontram
372 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

nos chamados grupos de risco, transmitindo-lhes valores individualistas e


de competitividade (PASQUIM, 2010).

Perspectiva da saúde coletiva: juventude como sujeito social


e políticas públicascomo expressão dos direitos sociais

O campo da saúde coletiva opta pelo conceito de juventude que fala


em nome de um sujeito social, afastando-se da preponderante carga bioló-
gica e comportamental que a adolescência expressa, e integrando-a no con-
junto da vida em sociedade. Os reducionismos difundidos pelos conceitos
e práticas advindos da perspectiva biomédica, que fundamenta a saúde pú-
blica, são criticados (SOARES, 2007).
Juventude é compreendida como uma construção histórica e social
que vai emergindo a partir das contradições inerentes à organização e ao
funcionamento do modo de produção. A juventude torna-se uma categoria
social porque sua expressão não se circunscreve a um certo grupo de jovens.
Para a saúde coletiva “juventude pode ser conceituada como uma categoria
que deposita na vida social um sujeito histórico capaz de oferecer respostas
coletivas diferentes daquelas formatadas pelos padrões dominantes” (SOA-
RES, 2009).
Sob esse enfoque, as juventudes são múltiplas, diferenciando-se pela
condição de classe e tendo em comum uma condição geracional. Assim, as
diferenças de reprodução social são determinantes para caracterizar as dife-
rentes formas de viver o período que o desenvolvimento humano possibilta
aos jovens. A condição geracional não deve encobrir as diferenças de classe e
sua análise deve estar a elas subsumida sob pena de se negar que a realidade
das desigualdades no capitalismo confere aos jovens diversificadas e caracte-
rísticas formas de viver o período da juventude (SOARES, 2007).
A preparação para o processo de imputação de responsabilidades sociais sig-
nifica que o jovem ainda não está no mercado de trabalho, mas já é prepara-
do para ele, que não possui o dever de cuidar de uma família (é, na verdade,
um protegido de uma família) mas que deve se preparar para tal e assim por
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 373

diante. Isto ocorre através da escola, da família, dos meios de comunicação de


massas, etc. A idade em que isso ocorre varia dependendo da classe social a
que se pertence, pois o trabalho começa mais cedo para quem é proveniente
das classes exploradas, assim como o casamento também. Sendo assim, po-
demos perceber que a juventude não pode ser definida por critérios biológi-
cos e cronológicos, pois sua constituição é social. (VIANA, 2004, p. 32)

Pesquisa realizada recentemente em município da Região Metropo-


litana de São Paulo mostra diferenças importantes entre as várias juventu-
des. Para os jovens moradores de regiões do município, identificadas com o
maior acesso dos jovens a bens e serviços (YONEKURA et al., 2010), viver
o período da juventude significa viver uma fase de menor responsabilidade
frente àquela da vida adulta. Na medida em que nos aproximamos das regi-
ões mais periféricas, percebe-se que os jovens amenizam as diferenças en-
tre ser jovem e ser adulto, geralmente enquadrando-se cada vez mais como
adultos, pois reconhecem que assumem responsabilidades desde muito
cedo e, em função disso, não se consideram jovens, mesmo encontrando-se
na faixa etária definida internacionalmente como juventude e até mesmo
adolescência (LACHTIM, 2010).
Como então a saúde coletiva explica os problemas de saúde dos
jovens?
O conceito-eixo da saúde coletiva é a teoria da determinação social
do processo saúde-doença, que encara os problemas de saúde como resul-
tantes de determinantes históricos e estruturais que moldam a vida dos dife-
rentes grupos sociais nas várias configurações que as formações sociais vão
assumindo ao longo das transformações históricas. Nessa perspectiva, outra
feição é conferida ao recorte do objeto da saúde que pressupõe reconhecer
as formas de reprodução social presentes numa dada formação social, iden-
tificando as diversas possibilidades de inserção no trabalho e na vida que a
realidade apresenta (SOARES, 2007).
A saúde coletiva faz então valer o reconhecimento de que a socie-
dade não constitui um todo harmônico; ao contrário, ela é plena de contra-
dições, a começar pela maior delas, que é a exploração do homem pelo ho-
374 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

mem. O processo saúde-doença não se explica como disfunção, mas como


resposta ao desgaste das formas de trabalhar e de viver, e, dessa forma, as
necessidades de saúde dos jovens encontram-se socialmente referidas e não
decorrem de disfunções hormonais ou de aprendizado.
Seguindo essa orientação, pesquisa que analisou necessidades de
saúde de adolescentes numa região perifèrica do município de São Paulo
permitiu reconhecer diferenças de reprodução social entre as famílias, pos-
sibilitando descrever a existência de três diferentes situações: famílias pro-
tegidas da expansão da precarização do trabalho e da inacessibilidade ao
uso do espaço geossocial; famílias que oscilavam entre padrões adequados
e inadequados de inserção no trabalho e na vida; famílias atingidas mais os-
tensivamente pelos efeitos perversos das mudanças no mundo do trabalho.
Foi possível correlacionar a essas diferentes formas de reprodução social,
diferentes necessidades de saúde, manifestas pelos adolescentes como di-
ferentes necessidades de proteção por parte da família, da escola e do bairro
(SOARES; ÁVILA; SALVETTI, 2000).
Voltemos então à gravidez. Como explicar a gravidez de jovens
que se antecipa ao chamado “ciclo social normal de desenvolvimento”?
Que políticas e ações de saúde seriam dirigidas para esse grupo, diante
dessas explicações?
Recente revisão bibliográfica sobre o tema mostra quão complexo
é o fenômeno da gravidez na adolescência, e quão reduzido seria encará-
la com uma disfunção (DIAS; TEIXEIRA, 2010). Para muitas jovens, a
gravidez tem um sentido positivo e não negativo ou disfuncional como
pretendido pela saúde pública, podendo: responder a um desejo e não ser
consequência de um erro; constituir-se numa experiência gratificante; re-
presentar a busca por reconhecimento e concretização de um projeto de
vida, especialmente para as jovens de frações de classe mais empobrecidas;
significar um projeto, diante de uma vida muito empobrecida de alternati-
vas de implementação de outros projetos de vida, da ausência de futuro e
de carências emocionais; constituir alternativa viável para lidar com uma
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 375

série de problemas e situações desfavoráveis presentes no contexto socio-


afetivo; representar satisfação pessoal; possibilitar às adolescentes, com
experiência de vida nas ruas, uma oportunidade de realização pessoal,
sendo o filho percebido como uma pessoa que pode acabar com a solidão
e o sentimento de abandono, pois a jovem poderia de forma genuína dar
amor a este filho e dele receber amor. A maternidade estaria vinculada em
alguns casos ao “poder de ser mulher” e à construção da própria família,
necessárias à própria valorização e ao reconhecimento social da jovem
mãe (DIAS; TEIXEIRA, 2010).
A leitura do fenômeno incorporou nesses estudos a situação social
das jovens, não apenas como mero pano de fundo, mas como categoria cen-
tral para explicar a gravidez na adolescência, sendo analisadas diferenças de
classe e frações de classe.
Voltemos agora à questão do consumo de drogas. Nosso segundo
exemplo.
Apesar de serem raros os estudos epidemiológicos sobre o consumo
de drogas e que tomam a classe como categoria de análise, diferentes leituras
de pesquisas empíricas com outros recortes mostram que a totalidade social
está implicada no consumo de drogas, com mediações que vão ficando cada
vez mais claras para explicar as diferenças entre as drogas que são consumi-
das, os contextos que envolvem sua obtenção e os desfechos implicados no
consumo (SOARES; CAMPOS, 2009).
A experimentação de drogas pode se dar de maneira muito tran-
quila e transitória para os jovens que se encontram socialmente protegidos,
enquanto que para os menos protegidos,pode acarretar sérios problemas
sociais, inclusive de saúde.
Tal realidade exige explicações teóricas coerentes. Trata-se então de
compreender que, no capitalismo, a droga passa à condição de mercadoria,
e seu consumo condiz em muitos sentidos com o mal-estar e os valores da
contemporaneidade associados a bem-estar e resolução de problemas: tem
efeito rápido, trazendo satisfação e/ou desempenho imediato; aliena de so-
376 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

frimentos mentais intensos; contraria as regras ditadas pelo mundo adulto


(SOARES; CAMPOS, 2009).
Trata-se de uma prática compulsiva, como são as de comer para
além da necessidade de saciar a fome, a de comprar para além das necessi-
dades necessárias, e assim por diante. Dadas as necessidades do capital de
se reproduzir, forjam-se necessidades alienadas que nada têm a ver com os
processos de humanização (SOARES; CAMPOS, 2009).
Dessa forma, as ações não podem ser reduzidas a estratégias preven-
tivas, levadas a efeito através de métodos aligeirados e repetitivos de con-
dicionamento, mas devem colocar em evidência as raízes estruturais dos
problemas dos jovens, o que chama por métodos participativos, dialógicos
e de reflexão. Em posse desses elementos, que são sociais e não individuais,
formas de enfrentamento podem ser encontradas pelos jovens em conjunto
com o setor saúde e outros setores sociais (SOARES et al., 2009).

Para fazer o enfrentamento: práticas de mudança

Quais seriam as políticas e as ações em saúde coletiva que incidi-


riam sobre a questão da gravidez entre adolescentes e sobre a questão do
consumo prejudicial de drogas entre jovens, dada a complexidade desses
fenômenos, aqui tomados como exemplos?
A resposta não é simples, de modo que várias tarefas se apresentam.
Em primeiro lugar, é importante se manter alerta em relação à trans-
formação da saúde em mercadoria, questionando a alocação de tão poucos
recursos ao financiamento do sistema da saúde, a eficiência do sistema de
referência, a limitação das ações a um cardápio mínimo, a preponderância
do planejamento de resultados, que decorre da invasão no espaço público
da lógica privada, entre tantas outras contradições que vivenciamos como
trabalhadores dos serviços de saúde ou pesquisadores da área.
Outra tarefa importante diz respeito à produção do conhecimento,
o que seria possível a partir de iniciativas com esta, do Jubra, de formação
Juventude e saúde: concepções e políticas públicas 377

de grupos de pesquisa amplos e interdisciplinares, bem como o desenho de


pesquisas que possibilitem metodologicamente a apreensão das diferenças
sociais entre os jovens.
O que se apresenta também como tarefa é a implementação de prá-
ticas inovadoras de atenção à saúde, desenvolvendo tecnologias que possi-
bilitem momentos de contrainteriorização dos saberes e práticas dominantes,
questionando o aprofundamento da divisão social do trabalho, arraigado
também no setor público e na academia (BUJDOSO et al., 2007).
Ao lado disso, é preciso formar trabalhadores de instituições de saú-
de e educação e de outras que lidam com jovens, no sentido de que compre-
endam o sujeito social juventude e disponham de elementos para trabalhar
com os jovens e transformar sua práxis, revertendo a tendência à reprodução
de condutas fundamentadas nos métodos tradicionais advindos da saúde
pública (SOARES et al., 2009).
Um instrumento potente para isso é a educação em saúde emancipa-
tória, que pode proporcionar espaços de retomada da essência humana que
coloquem em evidência os sujeitos do processo educativo, tendo agentes e
coprodutores participando, com a finalidade de desinternalizar ou contrainte-
riorizar valores de legitimação dos interesses dominantes, contribuindo para
a consolidação de práxis sociais criativas e libertadoras, buscando superar a
dicotomia entre teoria e prática (SOARES et al., 2009).

Referências
AMARANTE, A. G. M.; SOARES, C. B. Adolescência no SUS: uma revisão bibliográfica. Revista Brasileira de
crescimento e desenvolvimento humano, v. 17, n. 3, p. 154-159, 2007.
AMARANTE, A. G. M.; SOARES, C. B. Políticas públicas de saúde voltadas à adolescência e à juventude
no Brasil. In: BORGES, A. L. V.; FUJIMORI, E. (Org.). Enfermagem e a saúde do adolescente na atenção básica.
Barueri: Manole, 2009. p. 42-60.
BUJDOSO, Y. L. V.; TRAPÉ, C. A.; PEREIRA, E. G.; SOARES, C. B. A academia e a divisão social do trabalho
na enfermagem no setor público: aprofundamento ou superação? Ciência e saúde coletiva, v. 12, n. 5, p. 1363-
1374, 2007.
CZERESNIA, D.; ALBUQUERQUE M.F.M. Modelos de inferência causal: análise crítica da utilização da
estatística na epidemiologia. Rev Saúde Pública. v. 29, n. 5, p.415-23, 1995.
378 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

DIAS, A. C. G.; TEIXEIRA, M. A. P. Gravidez na adolescência: um olhar sobre um fenômeno complexo.


Paidéia, v. 20, n. 45, p. 123-131, 2010.
LACHTIM, S. A. F.; SOARES, C. B. Trabalho de jovens estudantes de uma escola pública: fortalecimento ou
desgaste? Revista Brasileira de Enfermagem, v. 62, n. 2, p. 179-186, 2009.
LACHTIM, S. A. F. Jovens de Santo André, SP, Brasil: um estudo sobre valores em diferentes grupos sociais.
2010. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
NANDA, M. Contra a destruição/desconstrução da ciência: histórias cautelares do terceiro mundo. In:
WOOD, E. M.; FOSTER, L. B. (Org.). Em defesa da história: Marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro:
Zahar, 1999. p. 84-106.
ORTEGA, F. Biopolíticas da saúde: reflexões a partir de Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt.
Interface – Comunicação, Saúde e Educação, v. 8, n.14, p. 9-20, 2004.
PASQUIM, H. M. Instituições sociais e operacionalização de políticas públicas: análise crítica das ações voltadas
para jovens no município de Santo André, SP. 2010. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem, Univer-
sidade de São Paulo, São Paulo.
SOARES, C. B.; ÁVILA, L. K.; SALVETTI, M. G. Necessidades (de saúde) de adolescentes do D. A. Raposo
Tavares, SP, referidas à família, escola e bairro. Revista brasileira de crescimento e desenvolvimento humano, v. 10, n.
2, p. 19-34, 2000.
SOARES, C. B. et al. Juventude e consumo de drogas: oficinas de instrumentalização de trabalhadores de
instituições sociais, na perspectiva da saúde coletiva. Interface - Comunicação, Saúde e Educação, v. 13, n. 28, p.
189-199, 2009.
SOARES, C. B. Mais que uma etapa do ciclo vital: a adolescência como um construto social. In: BORGES,
A. L. V.; FUJIMORI, E. (Org.). Enfermagem e a saúde do adolescente na atenção básica. Barueri: Manole, 2009.
p. 3-22.
SOARES, C. B.; CAMPOS, C. M. S. Consumo de drogas. In: BORGES, A. L. V.; FUJIMORI, E. (Org.). Enfer-
magem e a saúde do adolescente na atenção básica. Barueri: Manole, 2009. p. 436-468.
SOARES, C. B. Adolescentes, drogas e AIDS: avaliando a prevenção e levantando necessidades. 1997. Tese
(Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
SOARES, C. B. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da Saúde
Coletiva. 2007. Tese (Livre-docência) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo.
STOTZ, E. N. A evolução histórica da educação e saúde, seus fundamentos e as mudanças individuais e cole-
tivas analisadas a partir de um olhar do autor sobre o valor social da saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde.
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de
educação popular e saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. p. 46-57.
VIANA, N. A dinâmica da violência juvenil. Rio de Janeiro: Booklink, 2004.
VIANA, N. Senso comum, representações sociais e representações cotidianas. Bauru: Edusc, 2008.
YONEKURA, T. et al. Mapa das juventudes de Santo André, Brasil: instrumento de leitura das desigualdades
sociais. Revista de Saúde Pública, v. 44, n. 1, p. 4
Sobre a participação da família
no processo socioeducativo
Hebe Signorini Gonçalves

Não havia mais a mão querida para acalentar-me o primeiro sono, nem a ora-
ção, tão longe nesse momento, que me protegia à noite como um dossel de
amor; o abandono apenas das crianças sem lar que os asilos da miséria reco-
lhem. A convicção do meu triste infortúnio lentamente, suavemente, aniquilou-
me num conforto de prostração e eu dormi. (POMPÉIA, 1888/1991, p. 18)

A solidão dos internatos atravessa os séculos. No romance de Raul


Pompéia, ela mora nas instituições que guardavam os filhos da elite nacional
emergente, tributária da crença segundo a qual a educação exige distância
do espaço público onde circulam os desvalidos. Se as últimas décadas des-
cartaram os internatos educacionais, preservaram no entanto o isolamen-
to como medida punitiva: o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/1990) envia às unidades de internação os adolescentes autores de
ato infracional ao qual se credita maior gravidade.1 Ali, o isolamento não fala
mais de uma escolha familiar, mas de uma medida judicial que se impõe à
vontade tanto do adolescente quanto da família, e onde a solidão decorre do
cerceamento jurídico da liberdade.
A mesma lei, no entanto, traz a noção de integração familiar e social
como elemento central e como propósito último do processo socioeduca-
1 Nos termos do artigo 122, a medida de internação só poderá ser aplicada quando tratar-se de ato infracional
cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; por reiteração no cometimento de outras infrações
graves; ou por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
380 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

tivo. Anunciando exclusão e reintegração como termos conexos, o Estatuto


movimenta um antagonismo central: excluir para reinserir.
No horizonte, essas questões contemplam a lógica punitiva, extensa-
mente discutidas por Michel Foucault, Löic Wacquant e Eugenio Raúl Zaffaroni,
entre outros. Tomando como referência esse cenário teórico e suas implicações
sobre a realidade nacional, quero aqui me deter nos impactos da internação sobre
as subjetividades dos adolescentes, levando em conta que a lógica punitiva traz o
diferencial de debruçar-se sobre sujeitos ainda não titulares plenos dos direitos ci-
vis, nem plenamente responsáveis do ponto de vista penal, o que traz a família ao
centro do processo socioeducativo. Trato portanto do cotidiano da internação,
colhido no olhar dos adolescentes e de seus familiares, na tentativa de extrair daí
elementos de análise do sistema socioeducativo e das concepções que o regem
sobretudo no tocante à participação da família.
Aquilo que o Estatuto chama de proteção integral tem esteio em seu
artigo 4º2 e no artigo 2273 da Constituição Federal: o conjunto das ações
deve agregar a família, a sociedade e o Estado, todos convocados como par-
tícipes do processo que visa assegurar direitos à criança e ao adolescente.
Trata-se então de construir uma rede solidária entre esses atores, desenho
que traduz um horizonte político diverso de tudo quanto já se havia pro-
posto no país em termos de políticas públicas para a infância: uma ousadia
e um desafio. Ousadia porque confronta séculos de tratamento repressivo e
tutelar, convidando ao reexame nem sempre fácil das práticas, dos hábitos
e das concepções arraigadas; desafio porque, apresentado num cenário em
que predominam o desmonte do Estado e a retração dos setores públicos,
exige a presença daquilo mesmo que outros dispositivos desconstroem.
2 Lei 8069/80, art. 4º: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegu-
rar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
3 Constituição Federal, art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adoles-
cente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionaliza-
ção, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 381

No que diz respeito ao adolescente em conflito com a lei, o Estatuto


precisa enfrentar a face mais perversa da falência do Estado de proteção: a
emergência do Estado penal e a disseminação midiática de uma demanda
por mais e mais punição, as crenças fabricadas de que a adolescência repre-
senta a fatia estratégica do combate à criminalidade e à insegurança nacional.
Não é sem razão, por isso, que se diz que a “questão do jovem em conflito
com a lei e do sistema socioeducativo é o coração do conflito entre a dou-
trina de proteção e os restos da doutrina de situação irregular” (ZAMORA,
2008, p. 8), ou que o fracasso de seu enfrentamento conjuga a força do crime
organizado à herança repressiva, atualizada nos projetos de lei que querem a
redução da imputabilidade penal (FALEIROS, 2005).
São muitos os embates na implementação das propostas do Esta-
tuto, mas no sistema socioeducativo eles têm sido de fato mais acirrados.
Em certo sentido porque essa luta foi adiada; as práticas nas varas de jus-
tiça logo tiveram de se adequar aos ditames do Estatuto, pois tratava-se
ali de incorporar dispositivos mandatórios: o princípio do contraditório,
o regramento na aplicação das medidas, a reforma da processualística ju-
rídica, ajustando-a ao que havia de novo na lei. A lógica institucional, no
entanto, custou a ser enfrentada; poucos programas foram criados para
atendimento em meio aberto, ignorou-se a necessidade tanto de descen-
tralização quanto de redimensionamento das unidades de internação,
questões apontadas como centrais em todos os diagnósticos do sistema,
realizados apenas nos primeiros anos desta década (SILVA; GUERESI,
2003; HUMAN…, 2004, 2005; CFP/OAB, 2006); o próprio Sinase, que
incorpora grande parte das propostas listadas nesses diagnósticos, só foi
apresentado em 2006, 16 anos após a promulgação do Estatuto.
Esse atraso no processo de discussão contribuiu certamente para
que perdurasse, no sistema socioeducativo, a ótica tutelar-repressiva: onde
as mudanças ocorreram elas foram pontuais, pondo em risco a organicidade
institucional em que radica a proposta do Estatuto. Nos anos recentes, a pro-
dução acadêmica tem trazido contribuições importantes para a mudança
382 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

desse cenário, mas ainda estamos longe de vislumbrar reflexos nas práticas
institucionais e na percepção social da questão.
Os dados apresentados aqui têm origem em projeto de extensão –
o Projeto Parcerias: Adolescentes em Conflito com a Lei – desenvolvido
pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
cooperação com o Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Es-
tado (Degase-RJ).4 No Rio, o Degase – vinculado à Secretaria Estadual de
Educação – é o responsável pela gestão do sistema e a ele se associam as
unidades que executam programas de privação e de restrição de liberdade,
algumas localizadas na capital e outras no interior do estado. Os dados deste
trabalho foram coletados em unidade de internação da capital, em oficinas
temáticas de discussão, das quais participaram adolescentes, e em oficinas
de discussão junto a seus familiares.
O projeto vale-se do dispositivo grupal para apreender a dinâmica
da aplicação da medida de internação: as estratégias através das quais os
operadores do direito buscam sua eficácia, mas também os efeitos de subje-
tivação que a medida produz sobre os adolescentes e sobre seus familiares.
Penso, com base nas observações de campo e nas publicações recentes, que
a noção de socioeducação que sustenta a execução das medidas socioedu-
cativas está longe de ser adequadamente compreendida. Dada essa dificul-
dade é que me proponho aqui a um exercício de aproximação que não visa
dar conta da totalidade da questão, mas, ao recortar um aspecto dela, atender
à urgência que ela coloca para os adolescentes, para seus familiares e para a
sociedade.
Os depoimentos de adolescentes que cumprem medida de inter-
nação remetem a formas de isolamento social que antecedem e excedem a
privação de liberdade. Circula entre eles uma certa unanimidade quanto à
ausência quase absoluta de laços de amizade. Numa das discussões acerca
do tema “amizade”, um jovem nomeou como seu único aliado um colega do
tráfico; imediatamente contestado pelos demais presentes, recua do próprio
4 Apoio: Programa Pibex/Pró-Reitoria de Extensão/UFRJ e CNPq/PIBIC.
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 383

argumento para alinhar-se à posição, que logo se fez hegemônica no grupo,


segundo a qual amigos dignos desse nome só existem na família.
João5 começou a falar sobre a dificuldade de confiar nas pessoas porque tem
muitos “inimigos”, a polícia, a milícia. A partir daí começaram a discutir sobre
o tráfico, Mateus dizia ser possível fazer amigos no tráfico, outros discorda-
vam – estes diziam que se divertiam, saíam juntos, mas que se precisarem
matar “eles te matam”. (...) A conversa sobre confiança então foi retomada.
Disseram que só confiam na mãe. Sobre amigos, muitos disseram não ter.
Tiago disse que tinha [amigos] antes de sua internação, mas que após foi
“abandonado” e percebeu que não eram amigos de verdade. (...) Perguntados
se eles tinham amigos fora daqui quase todos responderam que não. (...) De
forma geral, eles colocaram a família em primeiro lugar sendo as únicas pes-
soas em que realmente confiam: mães, irmãs, avós, primos (Projeto Parcerias,
extratos dos Diários de campo)

No desenrolar dessa citação, logo o tema “família” se superpõe ao


tema “amizade”, entrelaça o tempo presente àquele que antecede a interna-
ção e domina a discussão. As falas dão conta de que o dia a dia na instituição
rege-se segundo uma dinâmica que remete à família em termos concretos
– porque a visita familiar significa acesso a algumas regalias6 –, mas sobre-
tudo em termos simbólicos: salta aos olhos de todo observador o alvoroço
provocado pela expectativa da visita familiar, tanto quanto a frustração que
a não visita elicia. O contato com os familiares representa a possibilidade de
ruptura do isolamento imposto pela internação e abre para o adolescente a
perspectiva de informar-se e, assim, manter-se como protagonista das his-
tórias que seguem sendo vividas pelos irmãos, sobrinhos, às vezes filhos e
esposas: um contato, ainda que tênue, com o mundo extramuros.
O lugar destacado que a instituição familiar ocupa nessa faixa etária é
sabido. Dados de 2002 mostram que, entre adolescentes de todas as camadas
de renda e de todas as regiões do país, a família tem sido apontada como a
principal responsável pela garantia de direitos e do bem-estar de adolescen-

5 Todos os nomes, tanto dos adolescentes quanto dos familiares, são fictícios.
6 Refiro-me aqui aos doces, refrigerantes e artigos de higiene com que as famílias presenteiam os adolescentes
por ocasião da visita.
384 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

tes, acima de instituições como a escola, a igreja, a comunidade, o governo, a


polícia e os partidos políticos (SILVA; GUERESI, 2003). Em 2003, uma pes-
quisa de cobertura nacional confirma a família como a instituição em que os
jovens mais confiam e da qual dependem por períodos cada vez mais longos,
num anúncio de que, “cada vez mais, jovens vivenciam certos elementos de
‘transição para a vida adulta’ sem realizar a independência da família de ori-
gem” (ABRAMO, 2005, p. 47). Mais especificamente entre os adolescentes
em conflito com a lei, tem sido observado que nem mesmo o reconhecimento
de conflitos e de violência nas relações familiares impede os jovens de tomar
a família como espaço de referência e lugar de comprometimento coletivo e
troca de experiências (SANTOS; OLIVEIRA, 2005).
Longe da aposta de que a família possa voltar a ocupar o lugar idí-
lico desenhado pelo higienismo nas primeiras décadas do século passado
no Brasil, essa centralidade cobra um preço: ela fala de uma destituição po-
lítica que precisa ser enfrentada (GONÇALVES, 2005), em particular nos
territórios em que ganha contornos singulares – caso dos adolescentes em
conflito com a lei –, pois aí se trata de convocar a família como coadjuvante
da re-integração de membros que vivem estados de exclusão, com todos os
complicadores implicados no processo.
Para Castel (2000), alguns processos de exclusão resultam de situa-
ções de vulnerabilidade, estas por sua vez decorrentes da crise da sociedade
salarial e da não inserção em estruturas de sociabilidade sociais e familiares.
O que o autor chama de desfiliação pode ser traduzido como a fragilidade
extrema dos laços nesses dois eixos. Sem acesso ao trabalho e sem acesso a
redes de sociabilidade, o sujeito fica como que à deriva, sem perspectivas de
se vincular a quaisquer dessas vias de filiação. Do ponto de vista da juven-
tude, a desfiliação adquire contornos drásticos, porque esse é o período em
que a inserção começa(ria) a se construir e é preciso angariar recursos para
enfrentar as primeiras barreiras do déficit de lugares ocupáveis.
No centro da análise de Castel (2000, p. 610) está a perspectiva segun-
do a qual a individualidade não pode ser carregada como uma cruz. No que nos
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 385

diz respeito em particular, Castel (2000) salienta que a sociedade pós-salarial


promove um outro individualismo, um individualismo por falta de referências,
cujo enfrentamento depende em certa medida da família (a partir da qual se
edificam os laços de uma sociabilidade primária),7 mas fundamentalmente do
Estado (única instância capaz de fazer frente à fragmentação do social contida
nessa modalidade de individualismo). Podemos afirmar que essa é a mesma
tese abraçada pelo Estatuto: criança e adolescente, sujeitos de direitos, postos
como alvo da família, da sociedade e do Estado, em ações conjugadas. No Bra-
sil, essa tese vem para fazer frente a um Estado historicamente tido como “um
doador que define hierarquicamente a organização do espaço público sob con-
cepções de favor, e não de direito” (SHEINVAR, 2009, p. 61), o que termina
exigindo que as teses do Estatuto sejam a todo tempo confrontadas também
com a política do compadrio. O trabalho de Sheinvar (2009), mais detido no
dispositivo escola, mostra bem o nível de dificuldades na formulação das po-
líticas públicas quando se quer aliar sociedade e Estado para assegurar direitos
sociais amplamente reconhecidos; mesmo ali, a autora clama pela necessidade
de remexer os hábitos, as tradições e os códigos que ainda posicionam o Esta-
do como uma instituição que presta favores, não que assegura direitos. É quase
supérfluo dizer que a política do favor implica risco maior de desassistência
para aqueles que são considerados indignos de favor.
Retomo Castel (2000): posta como um dos eixos de filiação, a ins-
tituição familiar convive, por sua vez, com dois registros de vulnerabilidade.
De um lado e como efeito da legislação civil universalista, ela é convocada a
comportar-se como uma estrutura cada vez mais “democrática” (as aspas são
do autor), fundada numa relação de igualdade entre os membros; de outro,
as famílias com frágil status social e grande precariedade econômica (aque-
las de que trato aqui), colocadas sob a tutela de programas sociais, sofrem a
fragilização própria dessa relação de caráter tutelar. A difícil conjugação entre

7 “(…) os sistemas de regras que ligam diretamente os membros de um grupo a partir de seu pertencimento
familiar, da vizinhança, do trabalho e que tecem redes de interdependência sem a mediação de instituições
específicas” (CASTEL, 2000, p. 48).
386 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

a democracia no espaço privado e a submissão ao plano público caracteriza


o drama da família moderna, crítico no caso brasileiro se levarmos em conta
a análise de Sheinvar (2009).
No curso do trabalho do Projeto Parcerias, ao longo de dois meses,
investimos na constituição de oficinas junto aos familiares dos adolescentes
que cumpriam medida de internação. No Rio de Janeiro, a única unidade
destinada ao cumprimento dessa medida está sediada na capital e recebe
adolescentes encaminhados pelas diversas comarcas, da capital e do interior.
O contato entre os adolescentes e seus familiares acontece numa visita se-
manal, aos sábados, ou nas ocasiões em que esses familiares são convocados
pela equipe técnica, durante a semana, para tratar de assuntos relativos a seus
filhos e ao processo judicial. Essa dinâmica não se restringe ao Rio de Janei-
ro; ao contrário, domina o sistema socioeducativo em todo o país. Segundo
Silva e Guaresi (2003, p. 53), “a maioria [das unidades] entende como incen-
tivo à participação familiar apenas o cumprimento do direito à visita, cuja
periodicidade é semanal em 89% dos casos (...), havendo exceções quinze-
nais (3%) ou de maior frequência”. Além disso, as mesmas autoras chamam
a atenção para o fato de que “apenas 56% das unidades brasileiras oferecem
algum tipo de apoio ao deslocamento dos familiares, variando de 79%, na re-
gião Sudeste, a 29%, na Centro-Oeste, quando 66% dos adolescentes priva-
dos de liberdade na data do mapeamento provinham de famílias com renda
máxima de dois salários mínimos” (SILVA; GUARESI, 2003, p. 54); nesse
cenário, a periodicidade dos contatos entre os adolescentes e seus familiares
pode ficar ainda mais restrita, como decorrência da limitação financeira.
Isso não foi diferente no caso das famílias com as quais pudemos
estabelecer contato, entre as quais a periodicidade semanal da visita termina
sendo apenas uma oferta impossível de ser aceita:
[a mãe] ficou indignada quando o juiz disse a ela que se ela tivesse que pas-
sar necessidade para poder visitar o menino que assim fosse. Ela ressalta que
tem mais cinco filhas além de Lucas e que elas também precisam de atenção.
(...) Disse que trabalha em casa de família e que precisa sustentar suas filhas
também. (...) Disse que no início sempre visitava ele. Todo final de semana,
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 387

largava tudo, passava necessidade para estar com Lucas e nada aconteceu,
não ocorreu nenhuma mudança. Ela acredita que a mudança tem que partir
essencialmente dele [e] acrescenta que agora não tem como ela fazer as mes-
mas coisas que fazia antes. Diz que não vai abandonar, mas que ele também
tem que “se virar sozinho” e assim ela diz que faz visita de duas em duas se-
manas. Diz que só ela está com ele sempre e que Deus vai dar um jeito nisso.
(Projeto Parcerias, extrato dos Diários de Campo)

A fala transcrita acima está atravessada por muitos significados. Em


primeiro plano, ela traduz a solidão social da família que se dispõe a ser par-
tícipe do processo. Cobrada como coadjuvante num processo em que não
desvenda parcerias possíveis, hierarquicamente instada a participar e, por
isso, ela própria tutelada, reproduz a mesma lógica na relação com o filho:
sozinha, trabalhando para sustentar as filhas que dela ainda dependem, sub-
mete todos ao sacrifício em prol de Lucas sem ver nele “nenhuma mudança”;
parece-lhe natural então restringir o apoio e esperar que “ele se vire sozinho”,
acreditando que “a mudança depende dele” tanto quanto a assistência e o
suporte “dependem dela”. Em outras palavras, sua fala ilustra a qualidade da
relação com os mecanismos de Estado e deixa entrever modos de produção
e reprodução de relações de assujeitamento.
Há outros reflexos dessa solidão. Para algumas famílias, a seguran-
ça é central. Alguns adolescentes correm risco de vida nas comunidades,
ameaçados que estão pelas milícias ou pelo tráfico; outros encontrarão,
no retorno à família, os mesmos grupos com os quais conviviam, o que
do ponto de vista dos pais coloca no horizonte o receio de retomarem as
práticas infracionais que os levaram à internação. Essa é uma preocupação
legítima, derivada de um risco reconhecido e verbalizado pelos educado-
res, pelos familiares e pelos próprios adolescentes. Como mostra Zamora
(2008), mesmo os jovens que cumpram a medida e “pretendam mudar
de vida”, sabem que frequentemente os aguardam, lá fora, as ameaças de
morte de policiais, de grupos de extermínio e de grupos rivais, o desem-
prego agravado pela discriminação de sua condição de egresso ou mesmo
os “atrativos do ganho fácil”.
388 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Pedro tem uma namorada grávida de gêmeos e diz querer sair do tráfico, mas
que para tanto precisaria quitar uma “dívida pequena” (...). Mas, ao mesmo
tempo em que dizia tudo isso, dizia também que era difícil que mudasse de
vida, pois os seus amigos, de onde morava, estavam todos lá no tráfico. Ele
pareceu permanecer nessas ambigüidades. (Projeto Parcerias, extrato dos
Diários de Campo)

Na tentativa de minimizar esses riscos, as famílias optam por mudar


de bairro e às vezes de cidade; escolhem abandonar o trabalho conquistado
para buscar um outro; decidem deixar a casa e as relações de convivência
comunitária já construídas.
Maria também se apresentou e logo nos contou que era mãe do Mateus. (...)
Disse que ele tinha sido pego 10 vezes e que era uma vida muito difícil para
ela e os outros filhos também. Disse que ele está ameaçado de morte e que
ela também é ameaçada todos os dias. (...) Disse que perdeu o emprego e
que precisa sair de lá o quanto antes. Como não tem emprego fixo e a vida
no Rio é muito cara, ela não sabe o que fazer. (Projeto Parcerias, extrato dos
Diários de Campo)
Ela contou também que está com dificuldade para conseguir emprego até
para ela mesma, que todos na família estão sem emprego, dependendo da
filha e do genro; quando se mudaram de cidade, para receber Tiago em outro
lugar que não aquele onde ele já “estava comprometido”, deixaram para trás
os trabalhos que tinham. Ela também não sabe direito onde estão as escolas,
para matricular Tiago. (Projeto Parcerias, extrato dos Diários de Campo)

Entre as famílias pobres, a inserção no mundo do trabalho guarda


relação muito estreita com as redes de proteção próxima: o trabalho, em ge-
ral, precário e temporário é alcançado a partir de indicação de familiares e de
vizinhos (SARTI, 2003). Mudar, por isso, implica desarticular essa rede, vital
na sustentação das relações que condicionam a possibilidade do sustento
familiar. Como afirma Castel (2000, p. 51): “Há risco de desfiliação quando
o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir
de sua inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é
insuficiente para reproduzir sua existência e para assegurar sua proteção.”
As famílias de que falamos, certamente com conhecimento disso,
escolhem enfrentar o risco em nome da proteção dos filhos: assumem um
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 389

estado de nomadismo que desarticula suas redes de pertencimento local, a


partir das quais a própria assistência se organiza (CASTEL, 2000), estratégia
esta que persiste, mesmo quando as primeiras tentativas fracassam. Não dis-
põem de mecanismos outros para promover a segurança familiar e sequer
se apercebem da extensão em que essas iniciativas, estritamente individuais,
põem em risco a re-integração que pretendem articular para os filhos, nem
tampouco o quanto essa atitude indaga as políticas públicas de inserção do
adolescente em conflito com a lei.
Ao discutir a execução de medidas restritivas de liberdade, Brito
(2007, p. 136) afirma que os familiares deveriam ser tomados como apoio
no processo socioeducativo dos adolescentes em conflito com a lei, toman-
do ciência dos programas das unidades e acompanhando o cotidiano dos
filhos, encaminhamento que, certamente, é distinto da atribuição de culpa à família
pelo ato que o adolescente praticou. Por que a autora alude à culpa?
Os dados coletados por Silva e Guaresi (2003) indicam que 81%
dos adolescentes viviam com a família à época em que praticaram o delito
que gerou a aplicação da medida socioeducativa – um dado que pode com-
portar interpretações antagônicas. Para as autoras, essa informação derruba o
mito de que adolescentes infratores são “meninos de rua” abandonados pela
família, assim como deixa claro que a ausência de convivência familiar não
é fator determinante do ingresso no mundo infracional. Espíndula e Santos
(2004), no entanto, registram depoimentos de profissionais que entendem
que a presença da família junto ao adolescente no período do cometimento
da infração pode ser tomada como signo de que a família não é via de solu-
ção, mas termo do problema:
A descrença quanto a sua recuperação é justificada através da ideia de uma fa-
mília desestruturada. Família que não segue o modelo nuclear, e termina tam-
bém por ser a causa da infração do adolescente (...) os ADSs se questionam
sobre a competência dessa família em oferecer as condições necessárias à
reintegração do jovem. Daí decorre a sua descrença em um trabalho educati-
vo, uma vez que estes jovens irão retornar para um lar desestruturado, que não
tem muito a oferecer. (ESPÍNDULA; SANTOS, 2004, p. 366)
390 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Esses relatos, colhidos em Recife-PE, refletem uma percepção que não


destoa daquela que circula em outras unidades da federação. No Rio de Ja-
neiro, por exemplo, há uma expressão corrente entre os agentes educacionais
ou de disciplina – a “mamãe-zada”8– que traduz bem a perspectiva segundo a
qual a família tende a ser excessivamente protetiva e que esse excesso leva a um
risco para o adolescente. Essas crenças são uma boa ilustração da permanência
do modelo repressivo que imperou por décadas nas políticas voltadas para a
infância no Brasil e que ainda resiste ao confronto com a realidade.
Alves (2003) registra um conjunto de depoimentos, dados pelas
mães de adolescentes internos, dando conta de que elas não recusam a ne-
cessidade de que seus filhos se submetam à ordem legal, o que não as im-
pede de lidarem com uma certa tolerância (expressão da autora) quando se
trata de lidar com o ato infracional cometido pelos próprios filhos. Na inter-
pretação da autora, essa tolerância deriva de uma ambiguidade: embora ao
longo das vidas as mães tenham elaborado um conceito negativo de infra-
ção, o envolvimento afetivo atenua essa mesma atribuição de valor. Como
afirma Zeitoune (2010, p. 32), “as posições discursivas dos pais evidenciam
as suas próprias fragilidades simbólicas no exercício da transmissão da lei,
sendo possível observar, muitas vezes, uma certa tolerância em relação aos
delitos dos filhos, representada ora através da negação da gravidade do ato
cometido, ora pela incapacidade de reconhecê-lo como autor e responsável
pelo dano causado a si mesmo (...) e à sociedade”.
Entre os adolescentes, a manifestação de arrependimento pela infra-
ção cometida usualmente se conecta à culpa por haver decepcionado a mãe
(ZAMORA, 2008). Esse mesmo sentimento é externado pelos jovens que
participaram do Projeto Parcerias:
…sobre qual foi a maior chance que teve, respondeu que foi ter sido chama-
do pela irmã (...) para ir morar com ela em São Paulo e ele recusou. (...) Disse
que (...) odiava receber a visita da mãe porque era uma humilhação para ela
8 “[os agentes de disciplina] diziam que não eram ‘babás’. Achavam que alguns ‘garotos’ precisavam de ‘uma
correção’ e que a equipe técnica ficava de ‘mamãe-zada’, passando a mão na cabeça dos garotos e tratando-os
como vítima” (ZEITOUNE, 2010, p. 154).
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 391

visitar um filho ali; que ela tanto avisou e que ele não quis ouvir. Disse que
não gosta de depender de ninguém e que agora tinha que depender dela ir de
longe e que já pediu para ela não ir mais e que mesmo assim ela ia. Eu pergun-
tei o que isso significava e ele respondeu que “mãe é mãe”. (Projeto Parcerias,
extrato dos Diários de campo)

Durante pelo menos o último século, a família que enfrentava o


drama de ver seu filho envolvido com atos infracionais era, além de tudo,
culpada pelo Estado, pois entendia-se que ela seria, no mínimo, por omissão
partícipe desse processo. A formulação trazida pelo Estatuto incorpora uma
concepção outra, porque envolve o adolescente e a família não a partir da
ótica da culpabilização, mas tomando a família como parte da engrenagem
centralizada na gerência do Estado.
A ambivalência, presente entre os familiares e entre os autores do
ato infracional, parece sinalizar para a possibilidade de que a família venha
a ocupar o lugar de continente, de operar a transmissão e situar-se como
autoridade. Os elementos simbólicos que impedem o exercício dessa fun-
ção parecem situar-se tanto entre os profissionais – que ainda não lograram
desconstruir os parâmetros repressivos e hierárquicos que por muito tempo
regeram a socioeducação – quanto entre os próprios familiares, incapazes
de reconhecer e de significar a contento seu lugar de autoridade, a partir do
qual podem iniciar os processos de re-integração; ambas as questões care-
cem de suporte e ambas demandam a ação (material e simbólica) do Estado,
através de políticas públicas. Deslocar a culpa e trazer a responsabilidade: a
discriminação entre essas duas posições parece difícil para os adolescentes,
para os familiares e para as instituições.
No âmbito dos aparelhos policial e jurídico, a presença dos pais ou
responsáveis no correr do processo é uma das garantias processuais do Esta-
tuto (artigo 111, inciso VI); a família é chamada a participar no momento da
apreensão de qualquer adolescente (artigo 107); na oitiva (artigo 179, caput e
parágrafo único) e na representação pelo Ministério Público (artigo 184). Se-
gundo o artigo 142 da mesma lei, os menores de 16 anos serão representados
392 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

e os menores de 21 serão assistidos pelos pais ou responsáveis, sendo a autori-


dade judiciária demandada a dar curador especial à criança ou ao adolescente
na ausência dos pais ou quando houver entre eles colisão de interesses.
Nos diálogos que travamos com os adolescentes, causava surpresa um
depoimento recorrente: “Vou sair daqui a três meses.” Indagados sobre a razão
dessa certeza, os jovens respondiam que essa era a data da próxima audiência,
indicando assim supor uma conexão direta e necessária entre a audiência e a pro-
gressão da medida.9 Essa certeza, evidentemente, não se concretizava em muitos
casos, o que não parece suficiente para demovê-los de uma posição que parece,
por isso, assentada na esperança. Discurso idêntico é trazido pelos pais: “Ela dis-
se que seu filho ficaria 3 meses na unidade e depois cumpriria mais 3 meses no
Criam. Eu disse que a medida não é dada com prazo certo, mas ela disse que o
juiz falou que assim seria” (Projeto Parcerias, extrato dos Diários de campo).
A essa fala somam-se outras fontes de estranhamento e perturbação:
muitos familiares afirmam a dificuldade de acompanhar os processos nas
varas de justiça: alguns desconhecem seu direito de tomar ciência do pro-
cesso junto à defensoria; outros não sabem que têm direito de comparecer
e de se pronunciar em juízo durante a audiência. Entre os poucos familiares
informados sobre a dinâmica processual, as ausências resultam da dificulda-
de em arcar com os custos diretos e indiretos (os afastamentos frequentes do
trabalho e o enfrentamento do estigma) dos constantes deslocamentos que
o acompanhamento processual exige; ou ainda decorrem das limitações do
próprio sistema judicial (uma defensoria insuficientemente aparelhada para
dar conta de toda a demanda).10 No conjunto, esses fatores revelam, ao mes-
9 Os técnicos, perguntados a respeito, esclarecem que tentam, em vão, desfazer essa conexão, fato que efeti-
vamente presenciei em algumas oportunidades; apesar disso, os adolescentes insistem nela, o que reforça a
possibilidade de que ela fale da expectativa da progressão da medida.
10 “(...) a Defensoria Pública tem um conhecimento inigualável do sistema e goza de um alto grau de confiança
por parte dos jovens internos. [mas] Uma deficiência crônica de pessoal inibe o trabalho da defensoria” (HU-
MAN…, 2005, p. 42). Ainda: “Existem estados em que não há defensores públicos nem advogados em nenhu-
ma das unidades (...). Em outros, existem algumas unidades nessa situação. Nesses casos, as famílias precisam se
mobilizar na busca de assistência jurídica, seja ela privada, para os que têm recursos, seja pública, se disponível
(SILVA; GUERESI, 2003, p. 57).
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 393

mo tempo que produzem, o alijamento da família no acompanhamento da


medida.
…essa mãe depois (...) perguntou como fazia para ter advogado, explicamos
que havia a defensoria pública e onde ela poderia ir para procurar a defen-
soria. Uma das mães falou que foi procurar a defensoria duas ou três vezes e
que não conseguiu falar com ninguém. (...) As mães começaram a fazer afir-
mações que davam a entender que os órgãos que deveriam dar apoio a elas
falhavam. (Projeto Parcerias, extrato dos Diários de campo)
Como algumas outras mães, [ela] não sabia o que era [a defensoria] e teve
muita dificuldade de entender. (...) “Ah, mas então o defensor não é o juiz?”
(...) Ela disse que não tinha muitas reclamações quanto a isso porque já tinha
um papel com a data da próxima audiência (...) disse que nas vezes em que
foi na audiência (...) ela nem pode participar. (Projeto Parcerias, extrato dos
Diários de campo)

A incompreensão geral do processo jurídico assenta em impedi-


mentos pessoais e institucionais concretos. Mas não é prudente descartar
os significados simbólicos que promovem uma certa paralisia, uma aparente
acomodação dos pais e responsáveis nesse lugar de não saber. Alves (2003,
p. 81) mostra que as mães expressam sentimentos de vergonha e de cons-
trangimento pelos atos cometidos pelos filhos: “Eu, no começo, eu fiquei
mal, tinha vergonha. No meu bairro, eu tinha vergonha de sair pra rua, diz
uma mãe; eu é que sofro, passo vergonha. De lá pra cá, minha cara está desse
tamanho. Ando de cabeça baixa”, anuncia outra.
Ela disse que ficou desesperada quando soube que ele foi preso e ligou para
filha pedindo que ela fosse se encontrar com ela. (...) Ela disse que (...) a filha
ligou (...) para um advogado particular na mesma hora.
O filho está lá há pouco tempo (...) com advogado particular e [os pais] pa-
receram bem engajados com toda a situação. (Projeto Parcerias, extrato dos
Diários de campo)

A mãe no início disse que havia um defensor. Depois demonstrou


que confundiu o defensor com a figura do juiz. Se deu conta de que então
não havia ninguém para defender o menino no dia da audiência e relatou
que ela mesma não pode entrar na sala de audiência. O menino ficou com o
394 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

juiz sozinho e a mãe frisou que “ele era de menor”, meio que se dando conta
de que ela deveria ter ficado do lado dele, mas não fez nada. (Projeto Parce-
rias, extrato dos Diários de campo)
Circulando entre a desinformação e o constrangimento, as famílias
terminam destituídas do lugar que o Estatuto desenha para elas. Quando
prevê sua participação em todas as fases do processo judicial que envolve
o cometimento do ato infracional pelo adolescente, o Estatuto denota uma
preocupação com o (re)estabelecimento de laços de filiação e pertencimen-
to. Se efetivamente partícipe do processo, a família poderia encontrar – na
aliança com os operadores jurídicos, com as equipes das unidades e dos
programas – os primeiros recursos para antever e desenhar possíveis linhas
de re-inserção do adolescente. É certo que a participação, restrita a esse mo-
mento, não será suficiente para prover o conjunto de suportes sociais que,
no horizonte, situam os laços de filiação. Mas é certo que, sem as redes de
solidariedade proximal, as perspectivas de filiação se esfumaçam.
A criação dos institutos disciplinares e das colônias correcionais, no
Brasil das primeiras décadas do século XX, transferiu da família para o Estado
as funções de educação e punição, afirmando a incompetência socializadora
da família. O Estatuto quer inverter esse processo, retomando a família como
um dos polos do processo de socialização (PAULA, 2004). Essa construção
não soluciona, antes inicia o debate em torno do lugar das instituições so-
ciais e das relações entre elas nos processos de individualização e de filiação.
No Brasil, dadas as desigualdades sociais, uma das dificuldades a enfrentar
é a compreensão e o conhecimento do direito, de parte dos atores convoca-
dos a compor essa cena. Como já disse Dalmo Dallari – cito de memória –,
o primeiro passo para a proteção dos direitos é informar as pessoas sobre sua
existência e sobre a necessidade e a possibilidade de defendê-los. É certo que
o mero conhecimento não leva automaticamente à sua observância, visto
que ele coloca a obrigação de fazer (BOBBIO, 1992); é igualmente certo,
no entanto, que seu desconhecimento pela família alimenta a subordinação,
impede a cidadania e, nos processos de filiação de que tratamos aqui, termi-
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 395

na por representar um obstáculo quase incontornável: se os familiares são


tratados como sujeitos tutelados tanto quanto seus jovens filhos, é duvidoso
que eles possam se erigir à condição de competentes socializadores. Trata-
se, nesse plano, de informar, na concepção mais ampla do termo, asseguran-
do a recepção da mensagem e garantindo que a participação seja apercebida
como um direito, para além de um dever. Não é tarefa fácil.
Igualmente complexo é o desafio de subsidiar a família com os re-
cursos materiais e simbólicos que lhe permitam situar-se no centro do pro-
cesso de filiação. A primeira tarefa a enfrentar diz respeito ao entendimento,
por parte de todo o sistema e na figura de todos os seus atores, de que a no-
ção de responsabilidade solidária atribuída à família não deve conflitar com
seu lugar de acolhimento e oferta de laços de sociabilidade primária, que
oferecem a proteção próxima (CASTEL, 2000). Quando me refiro à res-
ponsabilidade solidária, falo dos vínculos afetivos e sociais que articulam a
família, assim como da corresponsabilidade que lhe é demandada pelo Esta-
tuto.11 Seria preciso entender que o ato infracional se reveste de significações
outras quando seu autor integra os núcleos de convivência; compreender
que, acuada entre a percepção difusa e negativa do delito e a demanda real
e imediata do filho por proteção, a família opta pelo segundo, sem endossar
in totum o ato praticado. Ciente de que representa, no curso do processo so-
cioeducativo que submete seus filhos, o resíduo de proteção que lhes resta,
ela é frequentemente ambígua e compreensivelmente tolerante. Censurar,
ao mesmo tempo que acolher, é o modo como a família pode equacionar
a hierarquização das trocas sociais públicas e a demanda por relações de-
mocráticas no espaço privado: a seu ver, os termos dessa equação não são
inconciliáveis.
Inconciliável é endereçar a ela, como se isolada fosse, a tarefa de acio-
nar os elementos de constituição de uma rede de proteção capaz de acolher
11 Existe nos meios jurídicos uma discussão a respeito da responsabilidade solidária como resultante de dis-
positivos legais postos tanto pelo Estatuto como pelo código Civil; não é a essa que me refiro aqui, onde
pretendo tratar da responsabilidade remetendo a discussão aos vínculos que organizam a inserção dos sujeitos
na comunidade e na sociedade. Para a discussão propriamente jurídica, vide Dias (2005).
396 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

a si e ao adolescente, enfrentando inclusive o estigma da condição de egres-


so do sistema socioeducativo. Para fazê-lo, a família precisa reposicionar-se
diante do adolescente e da própria comunidade, o que exige um outro nível
de suporte – eminentemente público –, de modo a fazer frente às vulnerabi-
lidades que também a acometem.
No desenho do processo socioeducativo e nas falhas de que ele
padece, as instituições pouco comunicam entre si e é à família que cabe
acompanhar, em primeira mão, o trânsito do adolescente entre as unidades
do sistema, entre as municipalidades e as comunidades, entre as diferentes
medidas judiciais aplicadas e entre as muitas indagações que seus filhos en-
frentam na transição entre a privação de liberdade e a liberdade, entre a ado-
lescência e a autonomia adulta.
Zamora (2008) tem razão quando afirma que a família e suas vul-
nerabilidades têm sido pouco estudadas, sobretudo no que diz respeito às
suas relações com a delinquência, razão pela qual propugno este texto como
inicial e provisório. O que ele permite entrever, no entanto, é que na prática o
sistema socioeducativo tem creditado à família um lugar de menor valia que
termina por acrescentar um empecilho à própria socioeducação, já às voltas
com tantos desafios: onde se quer alçar o adolescente à condição de sujeito
de direitos, será preciso antes enfrentar a questão da atenção aos direitos so-
ciais da instituição familiar.

Agradecimentos

Agradeço aos psicólogos e alunos de graduação do Instituto de Psi-


cologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro que participaram do Pro-
jeto Parcerias; a toda a equipe da Escola de Gestão Socioeducativa do Dega-
se e à equipe da unidade de internação, que acolheu o projeto possibilitando
sua realização; mas agradeço sobretudo aos adolescentes e a seus familiares,
que nos confiaram suas dúvidas e suas angústias e dividiram conosco suas
poucas alegrias.
Sobre a participação da família no processo socioeducativo 397

Referências
ABRAMO, H. W. Condição juvenil no Brasil contemporâneo. In: ABRAMO, H. W.; BRANCO, P. P. M. Retra-
tos da juventude brasileira. São Paulo: Instituto Cidadania, 2005. p. 37-72.
ALVES, M. I. de A. M. Adolescentes em conflito com a lei: representações sociais maternas. 2003. Dissertação
(Mestrado em Enfermagem) - Universidade Estadual do Rio de janeiro, Rio de Janeiro.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BRASIL. Lei 8.069/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Publicado no DOU em 16 de julho de 1990.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Brasília: Conanda, 2006.
BRITO, Leila Maria Torraca de. Liberdade assistida no horizonte da doutrina de proteção integral. Psicologia,
Teoria e Pesquisa, v. 23, n. 2, p. 133-138, 2007.
CASTEL, C. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 2000.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, CONSELHO NACIONAL DA OAB - CFP/OAB. Inspeção
nacional às unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei. Brasília: CFP, 2006.
DIAS, C. W. de S. Poder familiar e responsabilidade dos pais: enfoques processuais. 2005. Dissertação (Mestrado
em Direito das Relações Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
ESPÍNDULA, D. H. P.; SANTOS, M. de F. de S. Representações sobre a adolescência a partir da ótica dos
educadores sociais de adolescentes em conflito com a lei. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 3, p. 357-367,
set./dez. 2004.
FALEIROS, V. de P. Políticas para a infância e adolescência e desenvolvimento. IPEA: Políticas Sociais - acom-
panhamento e análise, n. 11, p. 171-177, ago. 2005.
GONÇALVES, H. S. Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade. Tempo Social, Revista de Sociolo-
gia da USP, São Paulo, v.17, n. 2, p. 207-219, 2005.
HUMAN RIGHTS WATCH. Verdadeiras masmorras: Detenção Juvenil no Estado do Rio de Janeiro. Tomo
16, n. 7 (B), p. 68 , 2004.
HUMAN RIGHTS WATCH. Na escuridão: abusos ocultos contra jovens internos no Rio de Janeiro. Tomo
17, n. 2 (B), p. 53, 2005.
PAULA, Liana de. A família e as medidas socioeducativas: a inserção da família na socioeducação dos adoles-
centes autores de infração penal. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Programa de Pós-graduação
em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
POMPÉIA, Raul. O ateneu. 14. ed. São Paulo: Ática, 1991.
SANTOS, M. F.; OLIVEIRA, L. A família ideal só em fotografia? Representações sociais de família e violência.
In: SIMPÓSIO NACIONAL DE PSICOLOGIA SOCIAL E DO DESENVOLVIMENTO; ENCONTRO
NACIONAL PROCAD, 10, 2005, Vitória. Violência e desenvolvimento humano: textos completos. Vitória:
Psicologia/Capes, 2005. Disponível em: http://www.simpsodes.pro.br/livro/SIMPSODES_Texto_05_
Maria%20de%20Fatima%20e%20Leila%20Oliveira.pdf. Acesso em: 3 ago. 2010.
SARTI, C. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 2. ed. São Paulo: Cortez , 2003.
SHEINVAR, E. O feitiço da política pública: escola, sociedade civil e direitos da criança e do adolescente. Rio de
Janeiro: Lamparina/Faperj, 2009.
SILVA, Enid Rocha Andrade; GUERESI, Simone. Adolescentes em conflito com a lei: situação do atendimento
institucional no Brasil: Texto para Discussão n. 979. Brasília: IPEA, 2003.
ZAMORA, M. H. Adolescentes em conflito com a lei: um breve exame da produção recente. Revista Polêmica,
v. 7, p. 24, 2008.
ZEITOUNE, C. da M. A clínica psicanalítica do ato infracional: os impasses da sexuação na adolescência.
2010. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Vinte anos do Estatuto da Criança
e do Adolescente e as políticas para infância
e juventude
Benedito Rodrigues dos Santos

C onsiderando que esta exposição foi preparada para um painel sobre po-
líticas para juventude, meu foco será na parcela adolescente da juventu-
de, compreendida na faixa etária entre os 12 e 18 anos, conforme especifica
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Contudo, gostaria de re-
gistrar, de antemão, as minhas preocupações com a definição das categorias
juventude, adolescência e infância com base única a critérios etários. E, mais
ainda, minha preocupação com a segmentação da infância e da juventude na
forma de alteridade opostas, como vem sendo tomada por uma parcela dos
ativistas e formuladores de políticas dos direitos da criança e da juventude.
No período entre 2007 e 2010, concomitante às minhas atividades
acadêmicas, atuei como secretário executivo do Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), vinculado à Secretaria
Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Nessa oportu-
nidade, tomei conhecimento da tensão entre membros do Conanda e do
Conselho da Juventude (Conjuv) sobre a inclusão da faixa etária entre 14 e
18 na categoria juventude como definida no anteprojeto de lei Estatuto da
Juventude, o qual se encontra tramitando no Congresso Nacional, e sobre
as atribuições legais de estabelecimento das normais gerais da política para
400 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

o segmento. O terreno de contestação é muito mais de poder no campo da


formulação e financiamento de políticas sociais do que, em realidade, na are-
na epistemológica das controversas definições das categorias infância, ado-
lescência e juventude, particularmente em termos etários.
Na perspectiva de uma parcela dos conselheiros do Conanda, ju-
ventude deveria ser definida, em termos etários, acima dos 18 anos. A in-
clusão da faixa etária correspondente à adolescência na categoria juventude
oferecia base legal de poder normativo ao Conselho da Juventude e, conse-
quentemente, uma redução no espectro normativo do Conanda. Redução
mesmo, e não apenas limitação, uma vez que o Conanda é mais antigo que
o Cosenlho da Juventude. Já para o Conselho da Juventude, incluir a adoles-
cência nas suas esferas de competência pode servir de capital político na sua
luta por consolidação e fortalecimento, já que, além de expansão numérica
de seus sujeitos destinatários, haveria a incorporação de um segmento – a
adolescência –, para o qual existe atualmente um crescente movimento rei-
vindicatório de políticas sociais.
Embora minhas intervenções a favor de ressalvas legais e de acordos
políticos sobre uma divisão clara das competências de um e de outro em
relação ao processo de formulação de políticas para a faixa etária entre 14 e
18 anos tivessem sido recebidas com simpatias por ambos os lados, canais
de diálogos para a negociação desses acordos não foram estabelecidos até
quando me desliguei da Secretaria Executiva do Conanda no primeiro tri-
mestre de 2010.
Penso que, ao invés de utilizar estratégias de defesa dos direitos de
um dado segmento social na base de identitária de alteridades opostas, o
desafio da mobilização e articulação da defesa dos direitos de determinados
segmentos sociais deve dar-se com base na ação especializada e articulada
com à dos outros segmentos sociais. O exemplo do tratamento das cate-
gorias infância e adolescência, de um lado, e juventude, de outro, é quando
determinados segmentos utilizam o argumento, na justa defesa dos adoles-
centes contra a redução da idade para inimputabilidade penal, de que a cha-
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 401

mada “criminalidade” dos adolescentes é muito inferior àquela dos adultos,


quando se sabe que os maiores dos delitos dos adultos são praticados por
jovens de até 27, quem justa ou injustamente compõem o maior percentual
da população carcerária brasileira. A compreensão de fatores que propelem
adolescentes e jovens à prática de delito – em grande parte explicada pelo
status econômico desses segmentos na sociedade e pelos problemas estru-
turais dos modelos modernos de socialização – deve ser buscada conjunta-
mente; e, da mesma forma, o estabelecimento de políticas sociais para inclu-
são de adolescentes e jovens no estado de direito da sociedade brasileira.
Ao ensejo dos 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente,
optei por construir a minha exposição na forma de um balanço de sua im-
plementação nessas duas décadas de vigência.

Histórico do ECA

Tive a grata felicidade e o privilégio de participar do então deno-


minado “Grupo de Redação” do Estatuto da Criança e do Adolescente, na
condição de coordenador nacional do Movimento Nacional de Meninos
e Meninas de Rua (MNMMR) e secretário nacional do Fórum Nacional
Permanente de Organizações Não Governamentais de Defesa dos Direitos
da Criança e do Adolescente (Fórum Nacional DCA).
Considerando o contexto histórico em que foi elaborado, o ECA é,
de um lado, fruto da indignação social contra o “massacre dos inocentes”
pela cotidiana e silenciada violência estrutural, pelas desumanas e bárbaras
chacinas, pelas clamorosas rebeliões nos internatos de menores e pela cruel
violência simbólica da apartação dos chamados “menores”; de outro, é fruto
de um movimento de busca de soluções alternativas para esses problemas
ocorridos em um novo momento societal de reproposição do status das
crianças e adolescentes na sociedade brasileira.
A história do Estatuto da Criança e do Adolescente alicerça-se no
então emergente movimento social em defesa dos direitos da criança e do
402 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

adolescente, no qual o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua


teve papel destacado na história na sua constituição no Brasil. A conjugali-
dade dos percursos históricos desses dois movimentos foi tamanha que, no
início dos anos 1980, se tornava difícil diferir a história de um da história
do outro. O contexto de emergência do MDCA reporta-se ao final do pe-
ríodo da ditadura militar e seu nascimento ocorre num momento histórico
da ainda dolorida alegria da reemergência dos movimentos sociais no país.
A inexistência de movimento social similar na história do país fez com que
estudiosos o circunscrevesse na categoria dos “novos” atores sociais ou “no-
víssimos movimentos sociais” (GOHN, 1997).
Entre 1980 e 1984 ocorre a fase de gestação do MNMMR, quando
se estruturou no país o movimento de alternativas comunitárias de atendi-
mento a meninos de rua, sob o estímulo articulador do Projeto Alternativas
Comunitárias de Atendimento a Meninos de Rua, desenvolvido pelo Fun-
do das Nações Unidas pela Infância (Unicef ), Secretaria de Assistência So-
cial do Ministério da Previdência Social (SAS-MPAS) e Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor (Funabem). A base organizativa desse movimento
foram às chamadas “comissões locais”, geralmente criadas após os seminá-
rios de sensibilização sobre a “problemática do menor” e da “situação dos
meninos de rua”, promovidos pelo Projeto Alternativas Comunitárias.
Em algumas cidades do país já existiam formas embrionárias de articu-
lação na defesa das crianças e adolescentes, para além dos programas e serviços,
como, em São Paulo, a Pastoral do Menor e o Movimento de Defesa do Menor
(MDM); no Rio de Janeiro, a Associação dos Ex-Alunos da Funabem (ASSE-
AF), hoje Centros de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap); em
Belém do Pará, o Movimento da República de Emaús. Essas expressões de base
local ou estadual contribuíram para criação e fizeram parte dos grupos ou comis-
sões locais que mais tarde deram origem ao MNMMR (SANTOS, 1995).
Entre 1985 e 1989 ocorre a constituição das primeiras organizações
de âmbito nacional e construção da estruturação do paradigma dos direi-
tos. Num processo de mobilização dos chamados programas alternativos
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 403

para meninos de rua e dos grupos ou comissões locais, constitui-se o Mo-


vimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), em 1985.
No mesmo ano criação do MNMMR, também é fundada a Frente Nacio-
nal de Defesa dos Direitos da Criança (FNDC), composta, sobretudo, por
setores municipalistas de prefeituras ditas progressistas. Contudo, a FNDC
não logrou estruturar-se organicamente e teve curta duração. Em seguida
foi a vez da Pastoral do Menor da Conferência Nacional dos Bispos do Bra-
sil (CNBB) criar sua coordenação nacional; vale registrar que a Pastoral do
Menor, criada em São Paulo e depois disseminada por várias paróquias do
país, já existia desde 1978. Novas redes e entidades somam-se ao cenário
nacional no começo da segunda metade dos anos 1980; a partir daí, o elo
se amplia, com o surgimento e a adesão de novos participantes, o que faz
intensificar e diversificar suas ações.
Na sua luta contra a desumana, bárbara e violenta situação a que
estava submetida a infância pobre no Brasil, essas várias organizações vis-
lumbraram a possibilidade de “inscrever” na Carta Magna brasileira alguns
instrumentos jurídicos legais que pudessem ampliar a defesa dos direitos
humanos de crianças e adolescentes no país.
Como tenho escrito em um e em outro lugar, a decisão de participar
da Constituinte não foi tomada se não após um longo debate no interior do
próprio MNMMR, as quais colocaram para si o debate nacional em cur-
so nos movimentos sociais (populares e sindicais), que ia além de questões
como participar ou não – e com que intensidade – do processo constituin-
te: qual o papel do direito e da lei na mudança/transformação social. Tal
debate era particularmente necessário diante da discriminação verificada na
produção das leis e na sua aplicação e face à existência de uma verdadeira
“cultura da impunidade” que se expressava na descrença ou indiferença de
setores do movimento social no papel desempenhado pela lei no resguardo
aos direitos de cidadania (SANTOS, 1992).
A síntese dessa discussão nacional recomendava a participação no
processo de alteração do panorama legal do país, tanto pela dimensão po-
404 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

lítica do jurídico quanto pelo valor pedagógico proporcionado pela partici-


pação no processo constituinte. Essa atuação poderia produzir alterações de
fundamental importância para o avanço das mudanças sociais e políticas ne-
cessárias para a redemocratização da sociedade brasileira e para a melhoria
das condições de vida da população em geral e, em particular, das crianças e
adolescentes. Essa compreensão foi decisiva para levar as organizações vol-
tadas para a infância a se engajar e a buscar influir na elaboração da Consti-
tuição brasileira – enfim, para não perder o “trem da história”.
Duas campanhas congregaram os esforços dos agentes interessados
em influir no processo constituinte, visando a assegurar direitos à criança
e ao adolescente: “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade Nacional”.
A primeira delas foi desenvolvida por iniciativa do Ministério da Educação
em setembro de 1986 e atraiu para o debate outros órgãos de políticas seto-
riais do Estado e segmentos da sociedade civil voltados para o atendimento
de crianças e adolescentes. A finalidade da campanha era dar subsídios para
a proposição que o Executivo faria à Assembleia Constituinte, com ênfase,
sobretudo, em propostas relacionadas à criança na faixa etária de zero a seis
anos de idade. A campanha se estruturou na forma de uma comissão nacio-
nal e de comissões estaduais que desenvolveram debates, estudos e encon-
tros para a elaboração da proposta (SANTOS, 1997).
Tensões, conflitos políticos e divergências marcaram as discussões
– até mesmo o ato de entrega da proposta ao doutor Ulysses Guimarães,
presidente da Constituinte, foi motivo de desentendimentos. Além dessa
proposta, apoiada também por várias organizações não governamentais
(ONGs), outras tantas foram apresentadas por entidades da sociedade ci-
vil à Comissão Temática “Da Família, do Menor e do Idoso”. Esses esforços
permitiram a inclusão de propostas que asseguravam direitos à criança e
adolescente no projeto de Constituição Federal apresentado para debate no
Congresso Nacional, embora seu resultado estivesse muito distante de con-
templar as reivindicações dos agentes sociais e das organizações envolvidas
na campanha. Mais distante ainda encontrava-se o projeto de Constituição
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 405

apresentado pela articulação de centro-direita denominada “Centrão”, que


reafirmavam propostas de manutenção dos status quo.
Buscando reverter esse quadro, entidades da sociedade civil elabo-
raram a emenda popular “Criança Prioridade Nacional”, de junho de 1987,
da qual o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, juntamente
com a Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Pastoral do Menor), foram
as principais organizações articuladoras. A movimentação em torno dela
tornou-se uma verdadeira campanha, desencadeando uma grande mobi-
lização nacional para a coleta de assinaturas. A emenda foi apresentada ao
Congresso em abril de 1987, com 250 mil assinaturas de eleitores, número
muito maior, portanto, do que as 30 mil exigidas pelo Regimento da Consti-
tuinte. Com ela foi entregue um abaixo-assinado com mais de um milhão de
assinaturas, em grande parte de crianças, adolescentes e jovens.
O processo desencadeado pela campanha desembocou na criação
do Fórum Nacional Permanente de Entidades Não Governamentais de De-
fesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA), em março
de 1988. Ele surgiu porque as entidades necessitavam de uma articulação
permanente entre elas próprias que tivesse duas finalidades básicas: organi-
zar a participação, ou seja, o lobby na Assembleia Constituinte, e desenvolver
ações conjuntas no combate à violência contra a infância pobre. O Fórum
DCA passou a ser, a partir de então, o principal interlocutor da sociedade
civil para a questão da criança e do adolescente junto ao Congresso Nacio-
nal e também o catalisador e dinamizador da ampla mobilização social pela
inclusão da emenda na Constituição Federal, tendo à sua frente a Coorde-
nação Nacional do MNMMR, entidade escolhida para secretariar o recém-
criado Fórum DCA.
As campanhas “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade Nacio-
nal” foram apoiadas pelo Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte,
pelo Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) e foram objeto de uma
intensa campanha na mídia desenvolvida pelo Conselho Nacional de Propa-
406 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

ganda (CNP), com a colaboração das agências voluntárias CBBA e Propeg.


Reunindo todos esses esforços e contando com a participação decisiva de vá-
rios parlamentares já comprometidos e sensibilizados com o que chamavam
“causa do menor”, a emenda “Criança Prioridade Nacional” foi incluída quase
na íntegra, sobretudo nos artigos 227 e 228 da Constituição Federal.
Uma mudança já havia acontecido: esta era a primeira Constituição
brasileira a assegurar direitos específicos à criança e a considerá-la um ser
em condição peculiar de desenvolvimento. A partir de agora, a criança te-
ria “prioridade absoluta” no cumprimento de seus direitos. Outra mudança
também se processara e já estava expressa no próprio título do Capítulo VII,
Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso: o termo “menor” foi
substituído por “crianças e adolescentes”.
Paralelamente ao seu apoio ao processo de elaboração das consti-
tuintes estaduais e às leis orgânicas municipais, o Fórum DCA desenvol-
via, em nível nacional, o processo de elaboração de um anteprojeto de re-
gulamentação dos artigos 204, 227 e 228 da Constituição Federal. Nesse
movimento, as organizações do Fórum DCA tomaram conhecimento de
que a Coordenação de Curadorias do Menor de São Paulo estavam tam-
bém trabalhando num processo de revisão do Código de Menores à luz dos
novos direitos constitucionais. Num encontro do Fórum DCA em Brasília,
onde essas duas iniciativas foram apresentadas, chegou-se ao consenso de
se constituir um grupo para unificar e desenvolver as duas iniciativas. Essa
associação resultou no projeto de lei “Normas Gerais de Proteção à Infân-
cia e à Juventude”, apresentado à Câmara dos Deputados em fevereiro de
1989 pelo deputado Nélson Aguiar (PDT), com apoio da deputada Bene-
dita da Silva (PT). Esse foi um dos primeiros projetos de regulamentação
da Constituição apresentados ao Congresso Nacional e teve tão somente
o propósito de assegurar para ele o mecanismo regimental de precedência
nos trâmites daquela casa (logo em seguida, outros três foram anexados a
este). Nesse mesmo mês, teve início a elaboração de um substitutivo a esse
projeto, mais exaustivamente discutido.
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 407

A essas iniciativas somou-se uma terceira proposta, que estava em


curso pela Assessoria Jurídica da Fundação Nacional do Bem-Estar do Me-
nor (Funabem). Diante da diversidade de propostas e de certa unidade nas
concepções de infância e de direito e no conteúdo geral das proposições,
decidiu-se pela criação de um grupo de trabalho vinculado ao Fórum DCA
cuja função era sistematizar e compatibilizar as propostas e reelaborar o pro-
jeto de lei apresentado ao Congresso Nacional. O grupo ficou conhecido
como o Grupo de Redação do Estatuto.1 Fizeram parte dele representantes
do movimento social vinculados ao Fórum DCA que detinham a prática
educativa, juristas atuantes na área da infância (juízes, promotores públicos
e advogados) e consultores do Unicef. Contou-se também com a participa-
ção de outros especialistas em políticas sociais relacionadas à infância, que
constituíram uma espécie de grupo de redação ampliado.
O processo foi coordenado pela Secretaria Nacional do Fórum
DCA: o Grupo sistematizava as contribuições; o Secretariado dava a susten-
tação político-organizativa e fazia circular as propostas para o debate interno
de cada organização-membro ou rede de apoio; e a Assembleia apreciava e
contribuía com novas sugestões. A Coordenação das Curadorias do Menor
de São Paulo servia de central de dados, de assessoria técnica e de base ope-
racional para o Grupo de Redação. Pelo menos seis versões foram elabora-
das até a apresentação do substitutivo ao Congresso, protocolado na Câma-
ra como substitutivo do autor por Nélson Aguiar e no Senado como projeto
de lei por Ronan Tito (PMDB), ambos na mesma data e com o mesmo teor.
Ainda guardo nos meus arquivos uma versão da “proposta substitutiva ao
Projeto de Lei n. 1.506 de 1989, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências”, assinada pelos membros do Grupo

1 Paulo Afonso Garrido de Paula, Jurandir Maçura e Munir Cury, os três da Coordenação de Curadorias do
Menor do Estado de São Paulo; Antonio Carlos Gomes da Costa e Lidia Galeano, ambos do Unicef; Benedito
Rodrigues dos Santos, do MNMMR e do Secretariado Nacional do Fórum DCA; Maria do Rosário Leite
Cintra e Ruth Pistori, ambas da Pastoral do Menor; Deodato Rivera e Regina Helena Pedroso, ambos da
Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; José Antonio Fernando do Amaral e
Silva, então juiz de Blumenau; e Edson Sêda, da Assessoria Jurídica da Funabem.
408 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

de Redação e entregue ao deputado Nelson Aguiar na Praça da Liberdade,


São Paulo, no dia 28 de junho de 1989.
A partir de então ampliou-se e intensificou-se o debate nacional so-
bre o projeto. Entre agosto de 1989 e junho de 1990 foram realizadas várias
ações para a aprovação do projeto do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, pela sua capilarida-
de e militância, protagonizou a participação de crianças e adolescentes no
processo de elaboração e lobby pela aprovação do ECA. Além da produção
de material didático-pedagógico para o debate com a criançada, foram rea-
lizadas inúmeras passeatas com as próprias crianças. Um desses momentos
histórico que mais me emocionou foi quando durante o II Encontro Na-
cional de Meninos e Meninas de Rua, realizado em Brasília em setembro de
1989, cerca de 750 crianças de rua de todo o Brasil e de outros dez países la-
tino-americanos ocuparam o Plenário do Congresso Nacional e realizaram
uma votação simbólica de aprovação do Estatuto da Criança e Adolescente
(ECA). Depois de uma série de audiências públicas, o projeto de lei foi vo-
tado e aprovado pelo Senado em 25 de abril de 1990. Recebeu a aprovação
da Câmara em 28 de junho e foi homologado pelo Senado em 29 de junho.
Sancionado pelo presidente da República em 13 de julho e entrou em vigor
em 14 de outubro do mesmo ano.

Os significados simbólicos do Estatuto da Criança


e do Adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi um dos primeiros “reben-


tos” do período de redemocratização do Brasil. Foi, sem dúvida, o primeiro
diploma a regulamentar artigos da Constituição Cidadã de 1988, seguido pela
Lei Orgânica da Saúde, ambos em 1990. Logo após sua aprovação, ativistas
dos direitos, juristas, formuladores de políticas, membros de organismos inter-
nacional vieram a público manifestar os significados simbólicos da nova lei da
seguinte maneira: para Deodato Rivera, o ECA estava para o século 21 como
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 409

a Lei Áurea esteve para o século 20, por ser uma lei civilizatória com poder
emancipatório que equipara o ato de adquirir direitos das crianças e adoles-
centes ao ato de libertação dos escravos. Para ele, esse ato civilizatório teria po-
tencial de mudar a imagem do país: “o Brasil não precisa mais ser conhecido
no exterior como ‘um povo bárbaro que destrói suas florestas e extermina suas
crianças”, afirmou ele (RIVERA, 1990, p. 34 e 37).
Antonio Carlos Gomes da Costa, evocando a noção de que “o maior
patrimônio de um povo é a sua infância e juventude” e a ideia de “um país
que não respeita suas crianças não respeita a si mesmo”, vê no ECA potencial
para “alavancar mudanças muito profundas nas maneiras de agir e interagir
do Estado e da sociedade” e, para isso, faz necessário que “tomemos a sério”
(COSTA, 1990, p. 41). José Fernando do Amaral e Silva testemunha que
“A Lei 8.069 de 1990 criou muito mais que uma nova Justiça da Infância
e Juventude. Ela estabeleceu o estado democrático de direito numa esfera
onde esteve ausente desde a nossa formação histórica. Ela aboliu o arbítrio
e o subjetivismo, consagrando o Direito e dignificando a Justiça” (SILVA,
1990, p. 53).
Na minha própria avaliação, como membro do Grupo de Redação,
o ECA é a expressão jurídica de um projeto político de construção de cultu-
ra de cidadania para e com crianças e adolescentes, cujo caráter instrumental
e programático deve nos permitir ultrapassar a noção de cidadania liberal
rumo à radicalização da democracia verdadeiramente inclusiva e emancipa-
dora de crianças e adolescentes
No contraponto dessas imagens dos seus pioneiros, no chamado
imaginário popular, em grande parte influenciado pela mídia, o ECA se po-
pularizaria como a lei “muito avançada”, “lei de Primeiro Mundo”. Imagem
ambivalente utilizada para saudá-la como instrumento avançado e de boa
qualidade, porém como utópica e inviável para a realidade brasileira. E no
extremo desse contraponto, encontra-se a concepção de grupos moralistas
e conservadores que insistem em cunhá-la como lei que “protege bandidos”,
pela incorporação que fez dos direitos da criança e do adolescente ao leque
410 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

dos direitos humanos. Obviamente não podemos concordar com os pon-


tos de vistas mais ufanistas dos seus pioneiros, tampouco como estes dois
últimos.

O significado histórico do Estatuto da Criança


e do Adolescente: inauguração de um novo modo de governar
de crianças e adolescentes baseados nos direitos
Do ponto de vista histórico, o ECA pode ser entendido como um
dos primeiros instrumentos jurídico-normativo de base legal para o emer-
gente modo de governar crianças e adolescentes baseado na noção de direi-
tos. Minhas análises sobre a cronologia histórica das intervenções na vida de
crianças e adolescentes brasileiros pobres permitiu que fossem identificados
três grandes modelos de proteção jurídico-social de crianças e adolescentes,
que também venho denominando modos de governar crianças.
O primeiro foi o da soberania paterna associada ao caritavismo religioso
que perdurou durante praticamente todo o período do Brasil colônia entre
1500 e meados de 1800, quando o sistema legal encontrava-se em proces-
so de formalização. Nesse modelo, as crianças e os adolescentes eram in-
teiramente governados pela família, particularmente pelo pai, quem exercia
soberania absoluta sobre a vida dos filhos, inclusive determinando suas car-
reiras e casamentos. Somente no final desse período que sugiram leis que
buscavam, de um lado, controlar o disciplinamento imoderado dos pais e,
de outro, o cometimento de delitos por parte dos adolescentes. Nessa épo-
ca, a ação social com as crianças e os adolescentes era fundada basicamente
na ação caritativa de entidades religiosas, particularmente da Igreja Católica,
com as “crianças desvalidas”.
Desse modelo jurídico-social de “propriedade dos pais”, passamos para
a fase em que o Estado passa a regular o bem-estar das crianças e adolescentes
de acordo com “o seu” melhor interesse. O modelo do bem-estar das crianças
associado ao filantropismo religioso e leigo vigeu de maneira quase hegemônica
no período aproximado entre 1850 a 1970 e ofereceu a matriz do primeiro
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 411

modelo de proteção jurídico-social vigente no país. O Estado especializou um


conjunto de órgãos e políticas para cuidar do bem-estar das crianças e ado-
lescentes, como o estabelecimento da Política e do Sistema de Bem-Estar do
Menor (Funabem e Febens), os juizados de menores, os centros das promo-
torias e curadorias dos menores, além de ter estabelecido parâmetros para a
educação das crianças e adolescentes, inclusive dentro de casa.
Ainda que o modelo do bem-estar da criança tenha produzido rup-
turas significativas no controle da “tirania” familiar sobre as crianças, esse mo-
delo deixou legados perversos, com os quais nos digladiamos até o presente
momento: a apartação dos chamados “menores” das “crianças e adolescen-
tes”; a reedição da soberania paterna na soberania do Estado, particularmen-
te das autoridades judiciárias e governamentais, na definição e regulação
do bem-estar da criança e do adolescente ou o seu “melhor interesse”, sem
participação das próprias crianças e adolescentes; e a formulação e execução
de políticas assistenciais e filantrópicas destinadas à manutenção da subal-
ternidade de crianças e adolescentes com baixíssimo caráter redistributivo.
Curiosamente, nesse modelo o bem-estar da criança era uma preocupação
da sociedade e um dever do Estado, mas não se constituía num “direito” da
criança e do adolescente. Nesse esquema jurídico-social, a criança “desvali-
da” do período colonial se transforma na criança “objeto” e, ao mesmo tem-
po, “vítima” da ação protetora da sociedade.
A concepção criança sujeito de direitos foi gestada durante todo o
século XX, forjando um novo modelo jurídico-social que se concretizou
somente nas últimas décadas desse século, o modo dos direitos da criança
associado à ação emancipatória cidadã. Pela primeira vez na história das so-
ciedades ocidentais, as crianças e os adolescentes conquistam o “direito de
ter direitos”. No Brasil, esses passos foram longos: do momento em que a
criança ganha especificidade em relação aos adultos, passando pelo impor-
tante movimento das alternativas comunitárias de atendimento a meninos
e meninas de rua que cunhou a concepção criança como “sujeito da histó-
ria” e do “processo pedagógico, até chegando, finalmente, na constituição e
412 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

constitucionalização dos direitos da criança e do adolescente, a qual possui


duas datas simbólicas, 5 de outubro de 1988, com a promulgação da Consti-
tuinte, e 13 de julho de 1990, com o sancionamento do Estatuto da Criança
e do Adolescente”.

A sinergia histórica: o Estatuto incorpora os avanços


da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente
Devido a uma sinergia histórica – a reforma legal Brasileira pós-
ditadura ocorreu no mesmo momento histórico em que as Nações Unidas
discutiam e aprovavam a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Ado-
lescente –, o ECA possibilitou que o Brasil, mesmo chegando praticamente
três décadas de atraso no debate internacional sobre os direitos da criança,
incorporasse na sua legislação nacional um século de conquistas sociais em
favor dos direitos da criança e do adolescente. Tamanha foi a compatibilida-
de entre o ECA e a Convenção Internacional que a ratificação da Conven-
ção pelo Brasil não implicou praticamente nenhuma mudança significativa
na legislação nacional. Essa adequação à Convenção sobre os Direitos e Es-
tatuto da Criança e do Adolescente fez com o Brasil tivesse uma legislação
mais garantidora de direitos de crianças e adolescentes do que muitos con-
siderados desenvolvidos. Talvez, por essas razões, o Brasil tenha sido um dos
primeiros países a ratificar a Convenção Internacional. Embora consistente
com a Convenção, o ECA guardou entre suas especificidades uma noção de
cidadania participatória, ou democracia representativa gestada pelo movi-
mento social brasileiro, fortemente influenciada pela teologia da libertação e
pelos movimentos socialistas.
Essa vinculação do ECA à Convenção sobre os Direitos da Criança
o insere no campo dos diplomas legais que consubstanciam os direitos da
criança e do adolescente no conjunto dos direitos humanos.
A força instituinte do ECA, no âmbito internacional, particularmen-
te da América Latina, pode ser comprovada pela quantidade de legislações
que se inspiraram nele: pelo menos 15 diplomas legais latino-americanos.
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 413

Mudança de concepção de infância


Um dos aspectos mais revolucionários do ponto de vista cultural do
ECA foi a instituição jurídico-legal da perspectiva de criança e adolescentes
sujeitos de direitos. No Brasil, a concepção de criança “sujeito de direitos”
foi possível se não pela espetacular ruptura conceitual com as categorias
“menor” com suas adjetivações “carente,” “abandonado”, “infrator” e a reto-
talização dos chamados menores e crianças pobres nas categorias infância e
adolescência desta feita substantivadas.
Mais que semântica, essa mudança marcou uma ruptura da já quase
secular dicotomia existente entre a infância enquanto segmento da socieda-
de pertencente às classes média e alta – que denominavam seus filhos como
crianças e adolescentes – e a infância pobre discriminada e estigmatizada, de-
nominada “o menor”. O propósito dessa ruptura foi universalizar os direitos
das crianças brasileiras, independentemente da classe social a que pertença.
A criança sujeito de direitos compõe uma tríade com criança sujeito
do processo pedagógico e criança sujeito da história, que eram concepções
disseminadas pelo movimento das alternativas comunitárias de atendimen-
to a meninos e meninas de rua.

Institucionalização dos mecanismos de exigibilidade dos di-


reitos das crianças e adolescentes: avanços e desafios
Outro aspecto central do Estatuto da Criança e do Adolescente é a
ênfase que ele depositou no fortalecimento dos mecanismos de exigibilida-
de dos direitos da criança e do adolescente. Um certo descrédito decorrente
da discriminação na aplicação das leis certamente fez com os legisladores
ampliassem o leque de mecanismos que pudessem “tirar a lei do papel e
torná-la uma realidade”. Entre os novos mecanismos jurídicos disponíveis para
a defesa dos direitos da criança e do adolescente, o ECA inclui instrumentos
já disponíveis ao conjunto da população, como, por exemplo, as ações civis
de proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos. Essa extensão de
414 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

direitos às crianças e adolescentes é considerada um dos maiores avanços


do Estatuto da Criança e do Adolescente, na concepção de Silva (1990). Os
mecanismos de fiscalização do cumprimento dos direitos e sanção às suas viola-
ções foram ampliados no ECA. O Estatuto prevê a possibilidade, além da
fiscalização das entidades não governamentais, da fiscalização de órgãos go-
vernamentais, cujas obrigações são elencadas de forma precisa, assim como
as medidas aplicáveis em caso de seu descumprimento. A lei pressupõe ex-
pressamente as ações de responsabilidade (sanções administrativas e penais)
por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao
não oferecimento ou sua oferta irregular; do ensino obrigatório; de atendi-
mento educacional especializado aos portadores de deficiência; de atendi-
mento em creche e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade; de
ensino noturno regular adequado às condições do educando; de acesso às
ações e serviços de saúde; de escolarização e profissionalização dos adoles-
centes privados de liberdade, entre outras hipóteses arroladas (CURY, 1990,
p. 42). O ECA tipifica novos crimes e agravada muitas das penas do Código
Penal para quem comete crimes contra crianças e adolescentes.
Nessa perspectiva, o ECA ressignificou o papel dos órgãos já existentes,
como a justiça juvenil, o ministério e a defensoria pública, estabelecendo suas es-
pecificidades na defesa dos direitos da criança e do adolescente e agregou à estru-
tura de estado dois novos órgãos: o conselho de direitos e o conselho tutelar.
Os conselhos de direitos foram criados para instituir a participação
popular nos processos de formulação, monitoramento e avaliação das políticas
de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Os conselhos tutelares foram entes criados especificamente para o
atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e so-
cial, denominadas pelo ECA crianças e adolescentes que tenham seus direi-
tos ameaçados ou violados.
As defensorias públicas da infância e adolescência foram especializa-
das para assegurar o direito universalizado à defesa jurídica por profissional
habilitado (advogado).
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 415

Tanto o Ministério Público quanto o Poder Judiciário fortalecem


as especificidades do seu papel voltado para infância e adolescência. Am-
bos passam a ter atribuição e competência para processar e julgar os atos
da administração pública relacionados com os chamados interesses difu-
sos e coletivos, como a educação e a saúde. O Ministério Público se torna
num importante fiscal do cumprimento do ECA: para isso, criou (ou rees-
truturou) os chamados centros operacionais das promotorias de infância
e juventude e a ele foi delegado o poder de aplicar remissão (um perdão
formal), já acolhida habitualmente em muitos sistemas jurídicos e que
objetiva atenuar os efeitos negativos do procedimento jurídico (CURY,
1990, p. 44).
A Justiça da Infância e da Juventude, a antiga justiça do menor,
ganha, segundo o ECA, amplitude para legislar para todas as crianças e
adolescentes. Além disso, suas atribuições de realização de justiça, no sen-
tido mais jurídico da palavra, são reforçadas. Antonio Fernando do Ama-
ral e Silva afirma que o ECA resgata a dignidade da justiça da infância e
juventude, retirando dela as atribuições de assistência social e reforçando
sua natureza processual de órgão de controle jurisdicional. Afirma ele: “à
Justiça da Infância e da Juventude está reservado agora importante papel
na solução de conflitos em torno dos direitos das crianças e jovens, sem-
pre que tais direitos sejam ameaçados ou violados por ação ou omissão
da sociedade ou do Estado, ou por falta, omissão ou abuso dos pais ou
responsável” (SILVA, 1990, p. 49).
Hoje esses órgãos compõem um complexo sistema de garantia de
direitos da criança e do adolescente, que atualmente já conta com: 5.084
conselhos de direitos – cobertura 91,4%; 5.472 conselhos tutelares –
cobertura 98,3%, totalizando 5.039 municípios que possuem ambos os
conselhos. O movimento de crescimento indicou que, em 1999, 55% dos
municípios possuíam conselhos tutelares e 71,9%, Conselhos Municipais
dos Direitos da Criança e do Adolescente. Ao final de 10 anos, a cobertura
de ambos ultrapassa 90%, mas a quantidade de municípios que possuem
416 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

conselhos tutelares excedeu a dos que possuem Conselhos Municipais


dos Direitos da Criança e do Adolescente: 98,3% e 91,4%, respectivamen-
te (IBGE, 2010). Conta ainda com dezenas de defensorias públicas, cen-
tenas de centros operacionais das promotorias públicas e dezenas de varas
da justiça especializadas na infância e juventude.
Hoje, o Estado brasileiro, nos três níveis da unidade federada,
possui um significativo contingente de pessoas que trabalham coti-
dianamente nesses órgãos estimado em cerca de 100 mil pessoas, cuja
função precípua é assegurar que os direitos da criança e do adolescente
sejam cumpridos. A esse contingente somam-se outras centenas de mi-
lhares de técnicos trabalhando nos órgãos de assistência, organizações
não governamentais prestadores de serviço e de defesa de direitos da
criança e do adolescente e dezenas de milhares de ativistas dos direitos
da criança e do adolescente. Especialistas das Nações Unidas estimam que o
Brasil possua o maior sistema de proteção de crianças baseado nos direitos da
criança do mundo.
Entre os inúmeros desafios do SGDCA, registramos: parte consi-
derável dos conselhos de direitos e tutelares ainda não consegue funcio-
nar efetivamente por falta de estrutura e capacidade técnica e também de-
vido à falta de cultura de participação da sociedade (CEATs/FIA, 2007).
As varas especializadas para a infância e juventude só existem em apenas
3% das comarcas (92 unidades). A ampliação dessas estruturas para um
maior número de municípios é fundamental para que se imponha na jus-
tiça a prioridade à população infanto-juvenil (CNJ/IPEA, 2010). Poucas
capitais brasileiras possuem defensorias públicas especializadas em in-
fância e juventude, o que prejudica o exercício das garantias processuais
dos adolescentes em conflito com a lei. Finalmente, nos faltam meios de
monitoramento e avaliação do desempenho desses mecanismos: ainda
conhecemos pouco do impacto que essa legião de defensores dos direitos
da criança e do adolescente está impactando a cidadania e as crianças e
adolescentes no país.
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 417

Avanços e desafios nos processos de formulação, monitora-


mento e avaliação de políticas setoriais para a promoção, pro-
teção e defesa dos direitos da criança e do adolescente
É uma avaliação recorrente a de que houve avanços significativos
nas políticas setoriais de saúde, educação, assistência social e nas medidas de
proteção especial à crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade
social. Vejam alguns desses aspectos:
As crianças pobres de hoje têm mais chances de sobreviver: políticas de
saúde para infância. As taxas de mortalidade infantil declinaram nos últimos
anos, com queda de 46,9/1.000 nascidos vivos em 1990 para 24,9/1.000
nascidos vivos em 2006. Essa redução está associada a uma série de me-
lhorias nas condições de vida e na atenção à saúde da criança em relação
a questões como segurança alimentar, nutricional, saneamento básico, va-
cinação e modelo de atenção à saúde. Embora predominem disparidades
indignantes.
As crianças da geração ECA têm um maior acesso a escola: as políticas de
educação. Hoje o acesso ao ensino fundamental é de quase 98%. Embora haja
universalização da educação infantil, a permanência das crianças na escola e
a qualidade o ensino ainda são um desafio para duas próximas décadas.
As crianças pobres da geração ECA vivem em lares que convivem com pa-
tamares de renda um pouco melhores do que aquelas de gerações anteriores: polí-
ticas de assistência social, já que os programas de transferência de renda para
famílias pobres foram alvos de um substancial incremento no governo Lula.
Atualmente, das crianças em situação de pobreza, 4,7 milhões até seis anos
são beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, o que corresponde a 10,2%
do total dos beneficiários do programa e a mais da metade das crianças po-
bres nesta faixa etária. No Nordeste esse percentual é de 48%, seguido pelo
Sudeste, com 27%. Contudo, as celebrações devem ser realizadas com parci-
mônia: o Brasil ainda ocupa lugar destacado no ranking dos piores índices de distri-
buição de renda do planeta, e o Programa Bolsa Família termina por ser concebido
mais como uma política setorial do que estrutural de redistribuição de renda.
418 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Como um dos aspectos limitantes do avanço das políticas e progra-


mas de superação das disparidades sociais encontram-se os problemas de
concepção e gestão das políticas públicas no Brasil. Nesse particular, houve
mais continuidades do que rupturas. Embora tenha ocorrido uma melhora
econômica do país, governos progressistas tenham assumido o comando do
Estado em vários municípios, estados e na união, tenha se verificado aperfei-
çoamentos da gestão de políticas publicas, gerando um maior acúmulo no
processo de formulação de políticas sociais, esses ganhos não foi suficientes
para romper com o paradigma de produção de políticas centrado-no-gover-
no e não no Estado, centrado na elaboração de programas e serviços sociais
e não em políticas públicas de estado. Predomina ainda hoje um modo uma
prática de política publica centrada na execução de programas e serviços in-
consistentes, não-universalizantes e descontínuos.
Os governos dessas duas décadas de Estatuto, em que pese diferen-
ças partidárias e políticas de alianças para alcançar a chamada governabilida-
de, escolheram um padrão de desenvolvimento para “entrada no Primeiro
Mundo”, não privilegiando a construção de alternativas mais humanitárias
sustentáveis, e adotaram uma compreensão de política econômica dissocia-
da de políticas sociais, o que vem causando grande problemas colaterais nos
chamados grande projetos de desenvolvimento, como a exploração sexual
e do trabalho infantil. Além disso, estabeleceram mecanismos pouco efica-
zes para articular as políticas setoriais de saúde, educação, assistência social
e justiça.
Os conselhos setoriais e de direitos vêm conseguindo impor uma
incidência frágil e descontínua no processo de formulação dessas políticas
nas sucessivas administrações da era ECA. Embora a participação popular
e a descentralização dos processos de monitoramento e avaliação de polí-
ticas sociais foram conquistas importantes com os conselhos de direitos,
conselhos setoriais, a força formuladora desses conselhos não foi sentida
uniformemente no país e nem se pôde atribuir o avanço à existência desses
conselhos. A inexperiência dos conselhos em formulação de políticas so-
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 419

ciais e suas dificuldades operacionais são fatores cruciais para essa limitação.
Contudo, pouca experiência na formulação de políticas sociais não é uma
limitação apenas desses novos mecanismos. O Estado brasileiro possui uma
experiência irregular, fragmentada e descontínua nessa matéria. É do apa-
relho de Estado o papel de formular políticas e é esse que deve repassar aos
conselhos a expertise para tal e, dessa forma, “capacitar” a sociedade civil para
uma participação consciente e eficiente. Isso porque sociedade civil não tem
sido suficiente forte para demandar que essa transferência de competência
fosse realizada.
O estado gerido por esses governos do chamado campo progressis-
ta não logrou consolidar mecanismos que provessem sobrevivência de mais
longo prazo a políticas e programas sociais de caráter mais estrutural. Da
mesma forma, os conselhos setoriais e de direitos foram frágeis na garantia
de continuidade das políticas e programas de promoção, proteção e defesa
dos direitos de crianças e adolescentes.

Os avanços nas medidas de proteção especial

Foi particularmente nesta última década em que se registram os


principais avanços nos chamados planos de proteção especial de crianças
e adolescentes com seus direitos ameaçados ou violados. Foram eles, em
ordem cronológica: Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual
contra Crianças e Adolescentes (2000); Plano Nacional de Erradicação do
Trabalho Infantil (2004); Sistema Nacional de Atendimento Socioeducati-
vo – Sinase (2005); e Plano Nacional de Convivência Familiar e Comuni-
tária (2006).
Esses planos sabidamente repercutiram em muitos municípios bra-
sileiros. Os dados da Munic 2009 demonstraram que 4.910 municípios,
88,2% do total de municípios brasileiros, possuíam algum tipo de políti-
ca, programa ou ação para crianças e adolescentes. Em termos absolutos,
destacam-se: combate ao trabalho infantil, adotado em 3.263 municípios;
420 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

políticas de lazer, 3.111 municípios; atendimento à criança e ao adolescente


com deficiência, 2.713 municípios; e combate à exploração sexual, 2 201
municípios (IBGE, 2010).
Infelizmente, no atual incipiente estágio de desenvolvimento dos
sistemas de monitoramento e avaliação de políticas sociais e do chamado
controle social pouco é possível saber sobre a efetividade da implemen-
tação dessas políticas bem como da sua qualidade e incidência sobre os
problemas aos quais esses planos se destinaram. Contudo, é possível iden-
tificar as faltas de coberturas e desafios para os processos de revisão desses
planos.
O Plano Enfrentamento Violência Sexual obteve melhores respos-
tas, até o ano de 2006, no enfrentamento ao abuso sexual. Contudo, a partir
de 2007 verificou-se uma ênfase na exploração sexual comercial de crianças
e adolescentes (SANTOS, 2007). Esse plano encontra-se em processo de
revisão e um dos seus grandes desafios é o estabelecimento de programas,
serviços e ações de prevenção às ocorrências de abuso sexual intrafamiliar e
de atendimento a autores de violência sexual.
A erradicação do trabalho infantil sofreu uma queda de quase 60%
nos últimos 20 anos. Além de equalizar as conquistas, a implementação da
versão recém-revisada do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho In-
fantil tem pela frente o desafio de retirar essas 4,8 milhões de crianças que
estão hoje trabalhando, particularmente na agricultura – em 2007, entre as
crianças de 5 a 13 anos que trabalhavam, mais da metade estava empregada
na agricultura (60,7%) –, no trabalho doméstico e no narcotráfico, formas
consideradas de alta complexidade.
A implementação do Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas
(Sinase) para adolescentes em conflito com a lei representa um dos maiores
desafios do ECA. O campo do trabalho com adolescentes em conflito com
a lei tem sido um dos lócus de maior resistência do “menorismo” e da cultura
de institucionalização de crianças e adolescentes. Dos dois principais eixos
do Sinase – a municipalização das medidas socioeducativas alternativas à
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 421

internação e adequação das unidades de internação aos parâmetros traçados


por este sistema –, o maior avanço se deu na execução de medidas socioedu-
cativas em meio aberto (obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à
comunidade e liberdade assistida). Se, de um lado, o registro do crescimento
do número de municípios que vem implementando essas medidas é motivo
de celebração – esta vem ocorrendo em 47,0% dos municípios –, de outro,
o fato dessas medidas estarem sendo executadas pelo Poder Judiciário em
39% dos municípios coloca em cheque um dos pressupostos da municipali-
zação, que é sua execução pelo poder público municipal.
Ao que tudo indica, o Plano Nacional de Promoção, Proteção
e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, com seus
quatro anos de vigência, ainda possui pela frente o grande desafio de de-
sabrigar as mais de 40 mil crianças e adolescentes abrigadas por motivo
de pobreza, contrariamente ao estabelecido pelo ECA. Outra carência e
decisão a ser tomada: o lócus das ações de prevenção da violência física
contra crianças e adolescentes. É motivo de preocupação que umas das
mais recorrentes e notificadas violação aos direitos da criança e do ado-
lescente ainda não tenha sido propriamente enfrentada pelas políticas
públicas. No conjunto de desafios de implementação do ECA, o que
se faz mais urgente é levar a política de direitos humanos de crianças e
adolescentes para dentro dos lares brasileiros. Os casos dos irmãos que
foram mortos e esquartejados no próprio ambiente familiar em Ribei-
rão Pires (SP), da Isabela Nardoni e dos maus-tratos de uma criança no
Rio de Janeiro por uma procuradora do estado são apenas alguns dos
casos mais recentes que ganharam espaço na mídia. A gravidade e as
dramaticidades dos fatos testemunhados no ano de 2008 demandam
a expansão de campanhas educacionais, como a “Não Bata Eduque” e,
muito mais, necessitamos urgentemente do estabelecimento de políti-
cas de prevenção da violência doméstica contra crianças e adolescen-
tes. Embora alguns ativistas dos direitos da criança e do adolescente
defendem a inclusão do tema em um plano global de enfrentamento à
422 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

violência contra criança e adolescente ou mesmo a elaboração de um


plano temático exclusivo para esse enfrentamento, avalio que o lócus
mais apropriado para esse conjunto de ações seja o plano da convivên-
cia familiar e comunitária.
Uma das grandes lacunas na proteção de crianças e adolescen-
tes em situação de vulnerabilidade social é a da chamada mortalidade por
causas externas, principalmente motivadas por acidentes de trânsito, aci-
dentes domésticos e envolvimento em contravenções e delitos. Grande
parcela dessas mortes poderia ser evitada com políticas de prevenção no
âmbito da família e da escola (acidentes de trânsito e domésticos). O en-
frentamento do “extermínio” de adolescentes e jovens vem sendo alvo de
políticas governamentais descontínuas nesses últimos 20 anos. Desde a
primeira metade da década de 1990, quando o governo federal e o Conse-
lho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente lançaram o Plano
Nacional de Combate a Violência, ações esparsas vêm sendo implemen-
tadas. A mais consistente delas foi a criação do Programa Nacional de Pro-
teção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) pela
Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Recentemente, o Fundo das
Nações Unidas para Infância e a Secretaria Especial de Direitos Humanos
lançaram o Índice de Homicídio na Adolescência (IHA). Contudo, mais
uma vez, repete-se a prática recorrente do Estado brasileiro na formulação
de políticas sociais: ações isoladas, programas desacompanhado de polí-
ticas, indicadores separados de planos concretos de enfrentamento dessa
forma de violência.
E é justamente no campo das medidas de proteção especial de crian-
ças em situação de vulnerabilidade social é que desarticulação entre políticas
econômicas e sociais foi mais duramente registrada. Em que pese o cresci-
mento das políticas sociais de saúde, educação e assistência social, os conse-
lhos de direitos, devido à herança menorista, comportaram-se mais como
perpetuadores dessa tradição, na medida em que se focaram na chamada
proteção especial do que garantidores de políticas de proteção integral, em
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 423

detrimento dos avanços conceituais – na sua concepção como “políticas de


direitos humanos de crianças e adolescentes” – e como se elas pudessem ter
existência em si mesmas. Não se resolve o problema da violência sexual, para
citar um campo no qual se verificou grandes avanços, com ênfase na “prote-
ção” de crianças e adolescentes sexualmente abusadas. É preciso fazer com
as políticas sociais básicas incidam sobre as raízes estruturais do problema.
Na falta de uma perspectiva mais holística de proteção integral, os planos na-
cionais até então traçados vêm sendo concebidos mais como planos temáti-
cos do que como planos estratégicos de uma política mais ampla de promo-
ção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. Repetindo,
muita ênfase na proteção especial desarticulada da proteção integral, sem
planos de enfrentamento de violências cruciais, como a violência doméstica
e a mortalidade por causas externas, e com pouca incidência sobre as causas
estruturais dos problemas.

A promessa da participação de crianças e adolescentes


na formulação de políticas

A experiência empírica vem demonstrando um crescimento da par-


ticipação de crianças e adolescentes em programas a elas destinadas. Na últi-
ma década, essa participação também vem sendo significativa nos processos
de formulação de políticas sociais a elas destinadas, como é o caso das con-
ferências municipais, estaduais e nacionais dos direitos da criança e do ado-
lescente. Contudo, essa política, na grande maioria dos casos, vem se dando
de maneira eventual e sazonal. Parece-nos injustificável que depois de duas
décadas de Estatuto da Criança e do Adolescente os conselhos de direitos
ainda não tenham criado mecanismos mais permanentes de participação
no processo de formulação de políticas para elas mesmas destinadas. Final-
mente, essa incongruência foi reconhecida e foram estabelecidas estratégias
para sua superação. A oitava conferência estabeleceu diretrizes ousadas para
incrementar essa participação.
424 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

A [ardilosa] responsabilidade social das empresas

Embora os números indiquem um crescimento da chamada res-


ponsabilidade social das empresas, estudos indicam que elas investem pe-
quenas montas dos seus orçamentos e lucros. O marketing social crescente
deve ser acompanhado de maior investimento financeiro não somente em
programas e projetos isolados, mas também no marco da política de pro-
moção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. Além do
mais, precisamos comprometer essa responsabilidade social com aspectos
não midiáticos, como o fortalecimento do sistema de garantia dos direitos
da criança e do adolescente e a disseminação de uma cultura de direitos hu-
manos de crianças e adolescentes e de suas famílias.

Considerações finais

Depois de 20 anos do ECA, enfim, o Brasil (leia-se o governo fede-


ral) caminha para a superação do modo fragmentário, imediatista e gover-
no-centrado de formular políticas, com a elaboração da Política Nacional e
Plano Decenal de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e
do Adolescente, cujo processo abre possibilidades de articular as políticas
setoriais, resgatar o papel formulador de políticas dos conselhos de direitos
e oferecer um horizonte de mais longo prazo às políticas para infância e ado-
lescência.
Para finalizar, gostaria de reafirmar aqui a convocatória geral para in-
cidirmos sobre a produção de sentidos em prol do reencantamento social
realizada por mim na ocasião do 18º aniversário do Estatuto da Criança e
do Adolescente:
Depois do desencantamento com as nossas velhas utopias, o melhor remé-
dio, o caminho alternativo ao ceticismo e ao imobilismo, é operar na produ-
ção de novos sentidos. Nós, da área da infância, estamos operando na pro-
dução da mais nova utopia contemporânea: a ruptura com uma sociedade
adulto-centrada, por intermédio de uma luta intransigente na construção de
Vinte anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas para infância e juventude 425

relação de poder mais igualitárias entre adultos e crianças, particularmente


dentro de nossas casas e nossas escolas. Celebrar, com intensidade, os 18
anos do ECA servirá de alimento ritualístico a essa possibilidade de reencan-
tamento emulada dessa nossa nova utopia. A forma de celebrar esse momen-
to histórico em que as crianças e adolescentes começam a tomar a defesa dos
seus direitos em suas mãos é necessariamente com os mais novos sujeitos de
direitos da história da humanidade. (SANTOS, 2007, p. 154)

Referências
BRASIL, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, Conselho Nacional de
Assistência Social. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e a Adolescentes à Con-
vivência Familiar e Comunitária. Brasília-DF: Conanda/CNAS, 2006. Disponível em: http://www.mds.gov.
br/gestaodainformacao/biblioteca/secretaria-nacional-de-assistencia-social-snas/livros/plano-nacional-
de-convivencia-familiar-e-comunitaria-2013-pncfc/plano-nacional-de-convivencia-familiar-e-comunitaria-
2013-pncfc/?searchterm=None. Acesso em: 7 dez. 2010.
BRASIL, Presidência da República. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direi-
tos da Criança e do Adolescente. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Sinase. Brasília-DF: Conanda,
2006. Disponível em: http://www.direitoshumanos.gov.br/spdca/publicacoes/.arquivos/.spdca/sinase_in-
tegra1.pdf. Acesso em: 7 dez. 2010.
BRASIL, Secretaria de Direitos Humanos, Presidência da República. O Estatuto da Criança e do Adolescente –
Lei Federal no. 8.069/1990. Brasília: SDH/PR, 2010.
BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Departamento da Criança
e do Adolescente. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. 3. ed. Brasília, DF, 2002a.
Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/conanda/plano_nacional.pdf>. Acesso em: 7 fev. 2010.
BRASIL. Ministério do Trabalho. Secretaria de Inspeção do Trabalho. Plano Nacional de Prevenção e Erra-
dicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente. Brasília, DF, 2004c. Disponível em: <http://
www.mte.gov.br/trab_infantil/pub_6361.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2010.
CENTRO DE EMPREENDEDORISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL EM TERCEIRO SE-
TOR - CEATs/FIA. Os bons conselhos: conhecendo a realidade. São Paulo: CEATs/FIA, SEDH, 2007.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E INSTITUTO DE PESQUISA APLICADA. Justiça Infanto-
Juvenil: situação atual e critérios para aprimoramento (Resumo Executivo). Brasília: CNJ/IPEA, 2010.
COSTA, Antonio Carlos G. da. A mutação social. In: RIVERA, Deodato (Org.). Brasil criança urgente: a Lei
8.069/1990 – o que é preciso saber sobre os novos direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Columbus,
1990. p. 38-41.
CURY, Munir. A mutação jurídica. In: RIVERA, Deodato (Org.). Brasil criança urgente: a Lei 8.069/1990 – o que
é preciso saber sobre os novos direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Columbus, 1990. p. 42-45.
GOHN, Maria da Glória. Movimento de meninos e meninas de rua no Brasil. In: GOHN, Maria da Glória.
Os sem-terra, ONGs e cidadania. São Paulo: Cortez, 1997.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. O perfil dos municípios brasileiros
2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
RIVERA, Deodato. A mutação civilizatória. In: RIVERA, Deodato (Org.). Brasil criança urgente: a Lei
8.069/1990 – o que é preciso saber sobre os novos direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Colum-
bus, 1990. p. 34-37.
426 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

SANTOS, Benedito R. dos. 18 anos de ECA: inclusão de crianças e adolescentes no estado de direitos brasi-
leiro. Inclusão Social, Brasília, v. 2, n. 2, p. 152-154, abr./set. 2007, p.154
SANTOS, Benedito R. dos. O enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil: uma análise situação. Goiânia:
Cânone, 2007.
SANTOS, Benedito R. dos. A cidadania de crianças e adolescentes: legislação e proteção à seus direitos. In:
ARAÚJO, Braz (Org.). Crianças e adolescentes no Brasil: diagnósticos, políticas e experiências. São Paulo: Fun-
dação Cargill, MP2 Comunicações, 1997. p. 295-334.
SANTOS, Benedito R. dos. Cronologia histórica das intervenções na vida de crianças e adolescentes pobres
no Brasil (do infante exposto ao cidadão-criança). Estudos, v. 31, p. 11-43, 2004.
SANTOS, Benedito R. dos et al. Conselhos dos direitos da criança e do adolescente In: SANTOS, Benedito
R. dos et al. Teoria e pratica dos conselhos tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Rio de Janeiro:
Fiocruz/EAD-ENSP, 2009. p. 67-138.
SANTOS, Benedito R. dos et al. Desenvolvimento de paradigmas de proteção para crianças e adolescentes
brasileiros. In: SANTOS, Benedito R. dos et al. Teoria e prática dos conselhos tutelares e conselhos de direitos da
criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Fiocruz/EAD-ENSP, 2009. p. 19-66.
SANTOS, Benedito R. dos. 10 anos de Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua - construindo a cidada-
nia e a justiça com o sonho e alegria dos meninos e meninas do Brasil. Brasília: MNMMR, 1995.
SANTOS, Benedito R. dos. A implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente. In: SANTOS, Benedito
R. dos. Os impasses da cidadania. Rio de Janeiro: Ibase, 1992. p. 66-79.
SILVA, Antonio F. Amaral e. A mutação judicial. In: RIVERA, Deodato (Org.). Brasil criança urgente: a Lei
8.069/1990 – o que é preciso saber sobre os novos direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Columbus,
1990. p. 46-53.
Juventude, pesquisa e extensão:
interfaces, diálogos e possibilidades
Sônia M. Gomes Sousa

A sociedade contemporânea, marcada pela reestruturação dos processos


de produção e por acelerado avanço do conhecimento tecnológico,
reduz cada vez mais as distâncias, agiliza o tempo e oferece ao homem recur-
sos antes nunca pensados, embora se presencie ainda um cenário de gran-
des desigualdades sociais e, portanto, de distribuição também desigual de
bens materiais e culturais. As contradições postas por essa dinâmica social
têm levado um grande número de estudiosos, educadores, cientistas sociais,
pais, gestores públicos a inquirirem acerca dos processos sociais que não só
põem em evidência as condições de existência de adolescentes e jovens,
mas também afetam a formação das novas gerações. Inúmeros são os desa-
fios. Um deles é a apreensão desse conjunto de mecanismos e processos que
presidem a constituição dos diferentes modos de ser adolescente e jovem na
sociedade atual. Torna-se imperativo, também, refletir sobre as mudanças
que marcam as tradicionais instituições socializadoras, como a família e a
escola, e sobre a emergência das novas formas ou redes de socialização, em
especial as mediadas pela mídia e pela tecnologia.
Dentro desse contexto é imperativo refletir acerca das teorias sobre ado-
lescência/juventude, sobre as concepções de adolescência/juventude que têm
sido hegemônicas nas práticas sociais, sobre as produções acadêmicas e sobre as
intervenções no âmbito da extensão universitária com esses sujeitos sociais.
428 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Juventude e contemporaneidade

Partilha-se da compreensão de Dayrell e Corrochano (2009) re-


ferente à necessidade de diferenciação da categoria juventude enquanto
momento singular da vida, compreendido entre a infância/adolescência e
idade adulta.
Assim, parece importante considerarmos os jovens enquanto pertencentes a
uma geração que vive em determinado contexto social, econômico e políti-
co – o do início do século XXI com todas as suas mutações e desafios a ele
inerentes, mas, ao mesmo tempo, em sua diversidade de pertencimento de
classe social, sexo, cor/raça e trajetórias de vida. E, tal como alerta Martuccelli
(2004), por detrás de posições estruturais semelhantes, evidencia-se uma di-
versidade de estados sociais. (DAYRELL; CORROCHANO, 2009, p. 119)

Busca-se compreender o jovem a partir de alguns aspectos funda-


mentais: sua inserção em um modelo global de sociedade e suas ideologias,
ou seja, na sua cultura que também faz parte de sua constituição psicossocial.
Dois fatores, apontados por Vigotski (1996), capacitam o jovem a sentir-se
membro de sua classe social e dela participar: a vivência na sua comunidade,
comungando de atividades e interesses, e o uso de conceitos que permitem
conhecer essas atividades e interesses, partilhando a ideologia de sua clas-
se. Segundo Vigotski (1996), os conceitos se desenvolvem inevitavelmente
dentro de uma determinada ideologia social.
O jovem apresenta uma plasticidade psíquica como característica.
Passerini (1996, p. 367) chamou de polimorfismo o elemento mais marcan-
te da experiência social dos jovens, que ela define como diferente de multi-
plicidade, pois não é que os jovens variem simplesmente quanto a gênero,
etnia, educação, classe, religião, mas há neles “a disponibilidade para assumir
diversas configurações, incluindo aquelas que a própria cultura define como
irremediavelmente outras”. Essa plasticidade se deve ao fato de o jovem estar
vivendo um profundo processo de transformações.
Esses aspectos da juventude, como sua inserção em sua cultura e
ideologias e uma maior plasticidade devido às transformações por que
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 429

o jovem está passando, levam este a uma espécie de renovação de seus


interesses e aspirações. O que na infância era muito interessante passa
a despertar menos atenção, e outros temas tornam-se relevantes. Além
disso, o próprio pensamento sofre grandes transformações em sua for-
ma de funcionar. Para Vigotski (1996), no amadurecimento intelectual
do jovem, não se muda apenas o conteúdo do pensamento (material to-
talmente novo e ligação a esferas novas da cultura, como política, justiça,
profissão, ética, ciência e ideologia), mas também se mudam e se enri-
quecem as próprias funções intelectuais, as formas do pensamento, a es-
trutura e composição de suas operações intelectuais. Isso significa que
na juventude o pensamento pode operar logicamente com conceitos,
uma mudança que representa uma formação psíquica qualitativamente
nova (VIGOTSKI, 1996).
Em meio a todo o desenvolvimento biológico e cultural do jovem,
as transformações em seu pensamento permitem que ele possa conhecer
também sua realidade interna, ter autopercepção e auto-observação. Estabe-
lece-se de modo mais efetivo a divisão entre o mundo das vivências internas
e o mundo da realidade objetiva. O desenvolvimento da consciência para
um estado de autoconsciência permite que as vivências internas e o mundo
da realidade objetiva sejam crescentemente mais discriminados. Dessa for-
ma, a juventude é o momento em que se pode falar de uma personalidade,
ao mesmo tempo que se pode falar de uma visão de mundo, embora ainda
em processo de desenvolvimento (VIGOTSKI, 1996).
A juventude caracteriza-se, então, por um maior domínio do jovem
sobre si mesmo e sobre o mundo a sua volta, no sentido de que pode com-
preender-se melhor e conhecer criticamente sua realidade social. Pode, além
disso, usar sua vontade, que é considerada por Vigotski (1996) uma impor-
tante função psíquica superior. Dessa forma, o jovem está mais consciente
da distinção que existe entre seu mundo interno e seu mundo exterior, o que
pode trazer muitos conflitos, mas capacita-o a exercer melhor sua vontade.
Isso não quer dizer que não haja diversas determinações agindo sobre essa
430 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

vontade, mas que ela é uma função sobre a qual se tem muito mais controle
do que na infância.
Esses aspectos constitutivos da subjetividade do jovem permitem
estabelecer, à luz da teoria de Vigotski, que: a) é a partir da juventude que o
indivíduo pode compreender a sua própria inserção na sociedade, em sua
classe e na sociedade global; b) o pensamento do jovem ganha em plastici-
dade, ao operar por conceitos e ao possibilitar o uso da vontade no encami-
nhamento de sua vida; e c) as transformações por que passa implicam uma
nova consciência de si mesmo e uma mais complexa visão de mundo.
O jovem apresenta características que o capacitam a fazer escolhas e
a tomar decisões sobre suas aspirações e seu projeto de vida. Porém, de certa
forma, o jovem contemporâneo vive um paradoxo: por um lado, há uma
padronização excessiva de gostos e de atitudes e, por outro, uma condição
de jovem que o define como alguém que possui uma grande plasticidade.
Vigotski (1996) também aponta para o pensamento do jovem como muito
mais flexível do que na infância, com possibilidade de ser dialético. Mas nem
sempre os contextos nos quais esse jovem se insere contribuem para o de-
senvolvimento do pensamento dialético, questionador, transformador.
É a partir dessa perspectiva teórica que realizamos atividades de pes-
quisa e extensão sobre e com jovens.

De que extensão falamos?

A extensão se constitui essencialmente com base no princípio de


que a produção do conhecimento é um bem cultural e, portanto, bem pú-
blico que deve estar a serviço da vida. Entenda-se como produção do co-
nhecimento tudo aquilo que uma instituição é capaz de criar no campo das
tecnologias, da saúde, da cultura, dos direitos humanos, das ciências, enfim,
aquilo que a caracteriza como uma instituição plural e que marca sua dimen-
são de universitas no sentido amplo que o termo empreende.1
1 Para um maior aprofundamento, sugiro consultar Siqueira e Sousa (2009).
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 431

A extensão extrapola a prestação de serviços e se coloca na condição


de produtora e socializadora do conhecimento. Assim,
a universidade constrói suas relações com o contexto social, com base nas suas
características e na sua identidade. A interlocução com a sociedade, pelas ligações
orgânicas entre ambas, poderá ser na forma de prestação de serviços ou na cons-
trução conjunta do conhecimento, por meio do oferecimento de formação para
o público em geral, ou de seu engajamento crítico nas lutas sociais. Importa que,
em todo ou qualquer caso pelo qual se apresente a extensão, haja uma relação di-
reta com a pesquisa e o ensino, produzindo impactos e alcançando efetividade.
Esta é uma característica fundamental: para além de um setor ou uma atividade
institucionalizada, a extensão constitui-se como dimensão necessária da própria
pesquisa e do ensino, de maneira que não se pode pensar em ambos sem uma
estreita interlocução com a sociedade. (FOREXT, 2005, p. 26)

Aquilo que se produz como expressão da extensão indica um modo


particular de compreender e agir no diálogo com a sociedade. Isto implica
dizer que, do ponto de vista político-filosófico, significa o estabelecimento
de relações horizontais entre as pessoas e as instituições sociais que, mesmo
não prescindindo do Estado para sua organização, sentem-se no direito e
no dever de estabelecer entre si o “diálogo e a colaboração em prol da coisa-
pública (…) Do ponto de vista epistemológico, implica a produção do co-
nhecimento de modo participativo” (Oliveira, 2006, p. 32).
Ao priorizar, em suas ações, o diálogo com as políticas públicas, por
meio de assessorias, realização de pesquisas, reflexões etc, a extensão rompe
com a dimensão assistencialista e reafirma-se enquanto espaço político no
qual co-existem diferentes visões de mundo em suas diferentes concepções
epistemológicas.
A extensão representa todo o esforço político empreendido pela institui-
ção a fim de garantir a relação universidade-sociedade, pois compreende que
a relação universidade-sociedade é sempre parte de um sistema político,
econômico, social e ideológico, que a determina em suas formas e objetivos.
Assim, nenhuma atividade universitária é absolutamente autônoma. Nela
estão presentes os mais variados interesses da época e da sociedade global
e regional. E isso, certamente, as distingue e caracterizam de alguma forma,
inclusive, o seu sentido e significado comunitário. (Frantz, 2002, p. 21)
432 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Já do ponto de vista de sua dimensão acadêmica, a extensão se tra-


duz a partir dos princípios da articulação entre ensino-pesquisa-extensão,
porque a
extensão como processo acadêmico está, de fato, organicamente vinculada à
produção do conhecimento filosófico, científico e tecnológico, por meio de
uma relação mútua de interdeterminação e interdependência, pois o trabalho
acadêmico é como um processo orgânico e contínuo que se estende desde a
produção até a sistematização do conhecimento e a transmissão dos resulta-
dos. (FOREXT, 2005, p. 14)

Ao primar pela socialização daquilo que se produz no âmbito da


cultura acadêmica, a extensão procura identificar necessidades, definir prio-
ridades e ampliar perspectivas, contribuindo para que a universidade possa
maximizar a comunicação com a sociedade.
Da mesma forma, a extensão universitária, por sua natureza institu-
cional, implica diálogo permanente com a sociedade e enraizamento nos
movimentos sociais. Isso não só se constitui como ponto de partida para
ensino, pesquisa e extensão, como também para a própria formulação de
suas ações. Assim, a extensão é um espaço importantíssimo da formação
acadêmica dos universitários, pois estes encontram na extensão, articulada
ao ensino e à pesquisa, um campo fértil para produção significativa do co-
nhecimento.
O processo educativo empreendido pela extensão implica ainda
a assumência de um Projeto de Universidade que se coloca na perspec-
tiva de “concretizar lugares e funções nos espaços da sociedade, pelo
conhecimento e pelas ciências, a serviço de todos” (FRANTZ, 2002, p.
96). Nesse sentido, tanto o ensino, a pesquisa e a extensão são capazes
de produzir experiências com base na redefinição dos tempos, espaços e
aprendizagens, particularmente pela “convivência da argumentação, nas
ideias, nos valores, nos compromissos, nas intenções e motivações, pelo
conhecimento e pelas ciências, nos imaginários individuais e sociais,
nos comportamentos de vivência social e das atividades profissionais”
(Frantz, 2002, p. 95).
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 433

Portanto, o projeto educativo que enseja as atividades de extensão no


âmbito da juventude tem bases constituídas em um Projeto de Universidade
que também considera as relações sociais, as dimensões do mundo do traba-
lho, das políticas públicas, a fim de que seu Projeto Acadêmico seja também
“voltado para a comunidade que conquista e constroi os seus espaços públicos
que se legitimam na prática da democracia” (Frantz, 2002, p. 96).
A extensão, compreendida em suas dimensões social, institucional
e acadêmica, revela, acima de tudo, sua natureza cultural e social. Essas se
constituem na perspectiva de que a universidade não pode se traduzir em
um locus de produção do conhecimento distanciado daquilo que se vivencia
na sociedade, uma vez que são as condições e contradições sociais que reve-
lam o modo como os sujeitos vivem e produzem conhecimento. Da mesma
forma, a dimensão social da extensão pode ser retratada no atendimento das
demandas sociais que são originadas nos diferentes programas e projetos
de extensão, bem como no diálogo com as instituições (governamentais e
não governamentais) parceiras. A questão social, portanto, é ponto de par-
tida e de chegada em todas as ações da extensão, o que possibilita produzir
conhecimentos significativos a partir de contextos cultural e historicamente
situados.

Extensão e juventude: a experiência do Instituto


Dom Fernando – especializado nas temáticas da infância,
adolescência, juventude e família

A área da infância, adolescência, juventude e família2 possui na PUC


Goiás uma história enraizada: na extensão (com os diversos programas e
projetos criados e desenvolvidos na Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Es-
tudanttil – Proex); na pesquisa, expressa, por exemplo, na existência de dois
grupos de pesquisa cadastrados no CNPq (Grupo de Pesquisa, Infância, Fa-
mília e Sociedade e Grupo de Pesquisa Educação e Juventude); e no ensino
2 A partir deste momento, por opção didática, o texto enfatizará apenas as ações extensionistas desenvolvidas
no âmbito da adolescência e juventude.
434 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

nas diversas disciplinas e estágios de graduação, assim como nos cursos de


pós-graduação (lato e stricto sensu).
Dentre essas instâncias acadêmicas, destacarei as atividades de-
senvolvidas pelo Instituto Dom Fernando (IDF). O IDF é uma unidade
acadêmico-administrativa vinculada à Pró-Reitoria de Extensão e Apoio
Estudantil (Proex) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC
Goiás). Seu principal objetivo é produzir, divulgar e socializar conheci-
mentos no âmbito das ciências humanas e sociais, em consonância com
as políticas de ensino, pesquisa e extensão da PUC Goiás, bem como pro-
mover ações sociopsicoeducativas destinadas à infância, adolescência, ju-
ventude e família.
Destacam-se os quatro programas de extensão que desenvol-
vem ações voltadas para a construção da cidadania, a defesa dos direitos
humanos e a inclusão social de crianças, adolescentes e jovens: Centro
de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil (Cepaj), Escola de Circo,
Escola de Formação da Juventude (EFJ) e Programa Aprender a Pensar
(PAP).
Como unidade acadêmica da PUC Goiás, o IDF reconhece e va-
loriza a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, refletida em
suas ações tanto quanto em seus objetivos: a) contribuir na qualificação
do ensino e na produção de conhecimento, oferecendo aos cursos de gra-
duação e pós-graduação da PUC Goiás estágios e campos de extensão e
pesquisa; b) desenvolver metodologias de atendimento a crianças, adoles-
centes e jovens que têm ameaçados ou violados seus direitos, observan-
do o que determina a legislação vigente; c) subsidiar movimentos sociais
cujo objetivo seja a educação, a mobilização e a organização política da
sociedade para promover e defender os direitos da criança, do adolescen-
te, do jovem e da família; d) colaborar, ativa e criticamente, na produção
e sistematização de conhecimentos que forneçam subsídios ou sirvam
de parâmetro para a formulação, implementação e avaliação de políticas
e programas sociais; e) capacitar gestores e profissionais dos órgãos que
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 435

compõem o sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente,


bem como de entidades responsáveis pela implementação de programas
e serviços.
O IDF, embora não exclusivamente de extensão, está subordinado (a
partir de 2004) à Proex, e a explicação está fundamentalmente associada às
suas opções temáticas, éticas e metodológicas e ao seu compromisso explí-
cito de enfrentamento da desigualdade social.
Há uma profunda identificação entre os objetivos do IDF e a exten-
são universitária que é produzida na PUC Goiás, pois a extensão reconhece
como um de seus mais relevantes objetivos o vínculo entre a produção/sis-
tematização de conhecimento e a realidade social.
A Escola de Formação da Juventude (EFJ), criada em 2006, é
um dos programas de extensão do IDF e tem como objetivo principal
de contribuir na formação dos jovens da região leste de Goiânia, tanto
nos aspectos relacionados à sociabilidade juvenil, quanto ao mundo do
trabalho. Promove a inclusão social, por meio de programas e projetos
que levem esses sujeitos a ação/reflexão das mudanças ocorridas no
mundo contemporâneo, nos seus aspectos produtivos/tecnológicos,
políticos e simbólicos. Dá ainda destaque à relação dos jovens com o
mundo do trabalho, com as inovações no campo da produção e com
as questões cotidianas que se apresentam como problemas enfrentados
pela juventude.
Projetos desenvolvidos: Casa Brasil (inclusão digital), Sala de Lei-
tura, Expressão Cultural, Passeio Turístico, Educação Promotora de Saúde,
Educação Ambiental, Formação de Professores da Região, cursos de peque-
na duração por área de conhecimento e pesquisas: Juventude, Educação,
Sociabilidade e o Mundo do Trabalho.
A EFJ tem ao longo dos anos atendido a milhares de jovens e consti-
tui-se em um espaço de referência para os jovens da região leste de Goiânia.
As atividades desenvolvidas com eles têm como referência o protagonismo
juvenil e sua condição de sujeito ativo e transformador.
436 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Metodologias de abordagem

Parte-se da compreensão de que a temática da adolescência e juven-


tude está ancorada em diferentes áreas do conhecimento, como psicologia,
serviço social, história, ciências sociais, educação, direito, antropologia, saú-
de. Essa constatação nos coloca frente a frente com a questão da interdisci-
plinaridade, ou seja, dos saberes que devem ser socializados, reconstruídos e
construídos coletivamente.
O maior desafio (especialmente na formação dos estagiários e na cons-
trução das equipes de trabalho) encontra-se na necessidade de ultrapassar os
limites adquiridos por cada profissional e profissão para formulação integrada
de novos conhecimentos e novas práticas socializadas e socializadoras.
Para tanto, exige-se: trabalhar com e na diversidade; ter competência
teórica/metodológica/prática na busca de um novo conhecimento interdis-
ciplinar e totalizante; estar consciente do processo dialético e contraditório
que está em cada sujeito; realizar constantemente a crítica das diversas inter-
venções e autocrítica; e estar aberto ao aprendizado que advém do outro.
A opção institucional da PUC Goiás de compromisso acadêmico e so-
cial e de vários profissionais docentes, funcionários administrativos e discentes
pela temática da adolescência/juventude parte do pressuposto de que o adoles-
cente/jovem – por meio da vida que vive e das diversas formas de subjetivação
que produz – revela e desvela o mundo e expressa a história dos homens.
Busca-se, assim, estudar/pesquisar/intervir na adolescência/ju-
ventude, captando a criticidade do adolescente/jovem sobre o mundo e a
do profissional sobre a relação adolescente/jovem-mundo. Contudo, essa
perspectiva teórico-metodológica não é hegemônica no campo científico,
visto que estudar/pesquisar ou intervir com os sujeitos adolescentes/jovens
não é valorizado, tanto que as teorias sobre a adolescência/juventude estão
marcadas profundamente pela ótica do ajustamento do adolescente/jovem
à sociedade dos adultos, não apenas esquecendo a sua forma específica de
ver e viver o mundo, mas tentando transformá-la em adulto idealizado.
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 437

Geralmente, não se leva em consideração que tal ajustamento deve


ser o resultado de um processo histórico e cultural e que a transmissão/assi-
milação cultural não se dá de uma forma completa, nem tampouco passiva e
pacífica. Da visão fragmentária da adolescência/juventude, que não permite
a compreensão plena da adolescência/juventude em sua especificidade, re-
sultaram teorias nas quais se perdeu a dimensão dos conflitos, das crises e
das tensões vividas por ela em seu processo de desenvolvimento.
O reconhecimento do adolescente/jovem como sujeito concreto,
inserido num contexto que o produz, leva a compreender a posição desse
sujeito no contexto social, a situá-lo numa realidade mais ampla e a tentar
apreender o processo pelo qual ele (sujeito) se forma. Sem esse enfoque,
tem-se uma análise parcial do fenômeno a ser estudado, uma espécie de “psi-
cologismo”, uma abordagem insuficiente, incapaz de dar conta do processo
de exclusão/inclusão social a que estão submetidas milhares de adolescen-
tes e jovens em nosso país.

A dialética pesquisa/extensão e extensão/pesquisa

Os novos processos sociais característicos da sociedade urbana oci-


dental, como o consumo em massa, o viver em uma grande cidade, a solidão
na multidão, a expansão da comunicação pela mídia, a tecnificação e a informa-
tização do nosso cotidiano, têm provocado profundas alterações nas relações
sociais e na constituição das subjetividades. Essa nova realidade modifica as
condições em que o adolescente/jovem convive com os outros e constrói seu
mundo interno e sua rede de relações sociais, pois o modo como a criança/
adolescente é afetada pela realidade material e social da contemporaneidade é
bastante diverso daquele vivido por seus pais e/ou professores.
O impacto dessa nova realidade sobre a vida do adolescente e do
jovem não foi ainda suficientemente estudado e entendido. Tanto a forma
atual de socialização (na família, escola e outros grupos sociais) e de se re-
lacionar com os pares, como a subjetividade do adolescente e do jovem de
438 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

uma forma mais ampla não deixam dúvidas quanto à contribuição desse
contexto sociocultural. Falta, contudo, um conhecimento sistematizado,
que oriente as ações, públicas e privadas voltadas para esses sujeitos sociais.
Vários pesquisadores brasileiros, de diferentes áreas do conhecimento,
têm buscado preencher, com estudos e pesquisas, o “vazio” teórico e metodoló-
gico na área da adolescência e da juventude. Esse “vazio” necessita ser substituído,
com urgência, pelo esforço científico de desvelar quanto e como a formação mul-
ticultural da sociedade brasileira e a pluralidade étnica da população implicam di-
ferentes concepções de adolescência/juventude. No entanto, empreender essa
tarefa não pode redundar em mero exercício acadêmico. Essas concepções estão
vivas na sociedade e atravessam a formação dos diferentes profissionais que atu-
am na área da adolescência/juventude e que cotidianamente se relacionam de
forma direta com os adolescentes e jovens. Explicitá-las é condição necessária a
qualquer intervenção a favor da adolescência e da juventude.
No campo das ciências humanas, pesquisas oriundas de uma pers-
pectiva sócio-histórica – cujo sujeito principal das investigações é o adoles-
cente/jovem – têm privilegiado aspectos ausentes das pesquisas em outros
momentos históricos, como a violência, os contextos culturais, a convivência
com os pares. Desse modo, essas pesquisas contribuem para a construção
de um campo investigativo que privilegia a dimensão da exclusão/inclusão
na vivência dos adolescentes e dos jovens.
Para além dessas justificativas teórico/metodológicas, encontramos
no campo da realidade brasileira e mundial motivos suficientes para priori-
zar nos estudos e intervenções com o sujeito adolescente e jovem.

A temática da exclusão/inclusão social e o sofrimento ético


político como categorias explicativas para o trabalho
realizado com adolescentes e jovens pobres
É preciso entender que as ciências em geral e, especialmente, as ciên-
cias humanas estão inseridas no reino da ética e que o debate epistemológico
é regulado por valores de vida, morte e poder. Enunciar um discurso sobre a
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 439

relação homem e sociedade é formular um discurso sobre valor. Nesse sen-


tido, percebe-se que é a ética que qualifica a teoria e a prática social.
No âmbito da psicologia e mais particularmente na psicologia so-
cial isso significa aceitar que o psicossocial é eminentemente ético, ou seja,
ética é história e aflora como condição necessária à vida em sociedade.
Significa também que a ética não é esfera autônoma, mas fenômeno ima-
nente à subjetividade construída ao longo da história do indivíduo, dentro
de contextos sócio-históricos específicos. Ela perpassa o pensar, o agir e o
sentir bem, como a consciência, a identidade, a atividade e a afetividade.
Considerá-la na análise psicossocial é superar as teorias reducionistas que
definem o homem apenas por uma de suas partes constitutivas.
Essa perspectiva analítica permite falar da liberdade não como ca-
racterística da natureza humana ou do homem como membro da natureza,
mas do homem como cidadão de um reino de fins, reafirmando a concep-
ção de essência humana como conjunto de possibilidades históricas.
Sawaia (1998) esclarece que elegeu o sofrimento ético-político
como a categoria principal de análise psicossocial da dialética exclusão/in-
clusão. Ela o entende como “as diferentes formas de mutilação da vida, que
diminuem a potência de ação na vivência da tensão entre resistência e sub-
missão, vividos como sentimento e necessidade do eu” (p. 6).
Refletir sobre o sofrimento ético-político em situação de inclusão-
exclusão social é, para Sawaia, “uma oportunidade de refletir sobre a subjeti-
vidade enquanto fator histórico e confronto político e participar do debate
transdisciplinar capaz de romper a cisão clássica entre homem/sociedade
e subjetividade/objetividade”. Ela parte das reflexões sobre exclusão social
– especialmente as que se desenvolveram na França a partir dos anos 1990 –
para ampliá-las e tensioná-las na perspectiva da lógica dialética, de um modo
tal que exclusão e inclusão só podem existir uma em relação à outra, ou seja,
ambas se objetivam reciprocamente:
Do ponto de vista sociológico, a configuração inclusão/exclusão indica a
perversidade da ordem social, pois é sustentada pela lógica da desigualdade.
440 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

Inclusão pela exclusão não é inadaptação, mas, ao contrário, é adaptação à


exclusão social, é ser instituído sujeito social escravo nas relações subjetivas.
A exclusão para se repor precisa ancorar-se no sentimento de pertencimento
social e, portanto, criar o sentimento de pertença ou de inclusão nos seus su-
jeitos. De tal forma que as desigualdades ético-materiais sejam vividas como
culpabilização e ação individual. (SAWAIA, 1998, p. 6-7)

Conforme Sawaia, se analisada sob o aspecto do sofrimento, a ten-


são inclusão-exclusão permite superar as dicotomias objetividade-subjetivi-
dade, individual-coletivo, razão-emoção, pois torna-se um “processo social
vivido como necessidade do eu, como emoção, significados e ações, enfim,
como sofrimento de diferentes qualidades” (1998, p. 8).
É à luz desse referencial que é possível identificar desafios e implica-
ções políticas das ações extensionistas realizadas com adolescentes e jovens:
• Articular as diversas ações e frentes de trabalho, potencializando
recursos e conhecimento acumulado. Fazer da premissa da indisso-
ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão um compromisso a ser
exercitado cotidianamente;
• Produzir metodologias de trabalho que deem conta de responder
as novas e velhas necessidades de adolescentes e jovens;
• Realizar interlocuções e participar dos espaços de discussão na área
da adolescência e juventude: no âmbito local, regional, nacional e até
mesmo internacional, com ênfase na articulação latino-americana;
• Ampliar a participação nos Conselhos de Direito da área da ado-
lescência e juventude, no fortalecimento com as entidades governa-
mentais e não governamentais na luta por garantia de direitos huma-
nos e justiça social para todos os adolescentes e jovens;
• Colaborar na elaboração de políticas públicas não excludentes e que
vejam os adolescentes/jovens não como risco, mas, fundamentalmen-
te, como oportunidade, pois, embora o Estatuto da Criança e do Ado-
lescente aprovado em 1990 seja um marco legal importante na defesa
dos direitos dos adolescentes e jovens, a sua efetivação ainda exige de
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 441

toda a sociedade e da academia, em especial, um grande esforço no


sentido de garantir as conquistas que ali se fazem presentes;
• Ser um espaço de formação de alunos de diferentes áreas do conhe-
cimento para que possa fazer da extensão e da pesquisa o suporte fun-
damental para o oferecimento de disciplinas para a graduação, cursos
de extensão, cursos de aperfeiçoamento, cursos de especialização.

Para finalizar

Pode-se dizer que a extensão universitária já se concretizou como um


espaço em que se pode conviver, dialogar e produzir conhecimentos entre di-
ferentes campos do conhecimento e com base nos seus diferentes segmentos
representativos. Todavia, o que confere unidade a esse trabalho é a perspectiva
de que a produção social do conhecimento não se dá no deslocamento da vida
universitária com a vida social. Ambas se constituem reciprocamente e se de-
finem a partir de suas premissas básicas. A extensão é, portanto, um espaço em
que essa articulação se produz de forma significativa e sistematizada. O desafio
que se coloca, todavia, é manter permanentemente a vigília para que as con-
dições efetivas de produção do conhecimento, situadas no âmbito da cultura
universitária e socializadas nos espaços da extensão, não se coloquem de forma
academicista, nem tão pouco a extensão se traduza a partir de feições assisten-
cialistas. Há que se manter a permanente tensão entre as dimensões do social e
da academia, elemento que dá combustível para revigorar projetos que sejam,
de fato, comprometidos com a produção significativa do conhecimento.
Pode-se afirmar que em quase três décadas de intervenção e pesqui-
sa, o IDF aprendeu algumas lições e construiu alguns pressupostos:
• a relevância da construção coletiva do saber – estudar, pesquisar e
intervir nos fenômenos psicossociais na contemporaneidade requer
de todos os envolvidos os melhores esforços no sentido de produzir
um saber crítico sobre o que se pretende pesquisar;
442 Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades

• o reconhecimento do caráter dialético da relação teoria-práti-


ca – só é possível pensar na possibilidade de associação entre
pesquisa e extensão se se tem clareza do processo dialético de
construção e transformação da realidade sócio-historicamente
constituída;
• a ênfase na pesquisa qualitativa dos fenômenos psicossociais – por
suas próprias características, o conhecimento e o desvelamento des-
ses fenômenos pressupõem a utilização de reflexões teórico-meto-
dológicas possíveis somente no âmbito da abordagem qualitativa;
• a necessidade de sistematização e análise dos problemas da vida
real contemporânea – o interesse principal é estudar e pesquisar te-
mas da atualidade, presentes no cotidiano de nossa sociedade, bem
como intervir nas políticas e propostas voltadas para a solução de
seus problemas;
• a produção de um saber ético-político comprometido com a me-
lhoria das condições de vida material e emocional de todas as pesso-
as, especialmente dos adolescentes e jovens, de modo que a atuação
esteja voltada não apenas para o desvelamento da realidade, mas
também para a sua transformação;
• a leitura crítica dos paradigmas que explicam o desenvolvimento
humano – retomar as explicações já construídas sobre o desenvolvi-
mento humano é uma exigência, no sentido de romper com velhas
armadilhas conceituais que estigmatizam e rotulam adolescentes e
jovens, especialmente das classes populares;
• a ruptura dos limites científicos entre as áreas do conhecimento,
como, por exemplo, psicologia do desenvolvimento, psicologia
social, sociologia, medicina, direito etc. – pesquisar e intervir nos
fenômenos psicossociais da contemporaneidade requer a ruptura
dos “guetos” do saber para alcançar a produção de um saber inter-
disciplinar.
Juventude, pesquisa e extensão: interfaces, diálogos e possibilidades 443

Esses são apenas alguns aspectos que recortei dessa discussão tão
complexa e ampla. Certamente que o debate sobre o tema não se esgota
aqui e espero ter deixado vocês bastante inquietos e desejosos de aprofun-
darem mais sobre essa temática.
Espero ainda ter trazido alguns elementos para enriquecer a discus-
são que será realizada posteriormente.

Referências
DAYRELL, Juarez; CARROCHANO, Maria Carla. Juventude, socialização e transição para a vida adulta. In:
GUIMARÃES, Maria Tereza Canezin; SOUSA, Sÿnia M. Gomes (Org.). Juventude e contemporaneidade de-
safios e perspectivas. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos; Goiânia: Ed. UCG; Cânone Editorial,
2009. p. 119-136.
FRANTZ, Walter; SILVA, Enio Waldir da Silva. As funções sociais da universidade: o papel da extensão e a ques-
tão das comunitárias. Ijuí: Unijuí, 2002.
ForExt. Fórum Nacional de Extensão e Ação Comunitária das Universidades e Instituições de Ensino Su-
perior Comunitárias – contribuições do ForExt ao processo de avaliação institicional da extensão universitá-
ria. Bragança Paulista: Editora Universitária, São Francisco, 2005.
KETZER, Solange Medina; DIAS, Ana Maria Lorio (Org.). Memória do ForGRAD: 20 anos do Fórum
Nacional de Pró-reitores de Graduação das Universidades Brasileiras: unidade na diversidade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2007.
OLIVEIRA, Alcivam Paulo de Oliveira et al. A extensão nas universidades e instituições de ensino superior comunitá-
rias: referenciais teórico e metodológicos. Recife: Fasa, 2006.
PASSERINI, L. A juventude, metáfora da mudança social: dois debates sobre jovens: a Itália fascista e os Esta-
dos Unidos da década de 1950. In: LEVI, G.; SCHMITT, J-C. (Org.). História dos jovens: v. 2: a época contem-
porânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SAWAIA, Bader Burihan. Configuração psicossocial do sofrimento ético-político no processo de inserção social pela
exclusão. São Paulo, 1998. Mimeo.
SIQUEIRA, Romilson Martins; SOUSA, Sônia Margarida Gomes. Pressupostos institucionais e acadêmicos
da Semana de Cultura e Cidadania da UCG. Educativa (UCG), Goiânia, v. 12, p. 297-308, 2009.
SOUSA, Sônia Margarida Gomes; GUIMARAES, M. T. C. (Org.). Juventude e contemporaneidade: desafios e
perspectivas. Goiânia: Cânone, 2009.
VIGOTSKI, L. S. Paidologia del adolescente. In: Obras escogidas. Madrid: Visor, 1996.
444

Sobre os autores

Benedito Rodrigues dos Santos


Professor e pesquisador da Universidade Católica de Brasília (UCB),
consultor do Unicef e Childhood Brasil.
br-santos@uol.com.br

Cássia Baldini Soares


Professora associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva
- Escola de Enfermagem da USP.
cassiaso@usp.br

Edwige Rude-Antoine
Diretora de Pesquisa do CNRS, diretora do CERSES - Paris – França.
edwige.rude-antoine@parisdescartes.fr

Geraldo Leão
Professor adjunto da Faculdade de Educação e do Programa
de Pós-graduação em Educação da UFMG.
gleao2001@yahoo.com.br

Geraldo Pereira da Silva Junior


Mestre em Políticas Sociais, doutorando do Programa de Saúde Pública
da Faculdade de Saúde Pública da USP.
radorno@usp.br

Glória Diógenes
Professora do Programa de Pós-graduação de Sociologia da Universidade
Federal do Ceará, secretária de Direitos Humanos da Prefeitura de Fortaleza.
gloriadiogenes@gmail.com

Hebe Signorini Gonçalves


Professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ, pesquisadora do Nipiac.
hebe@globo.com
445

Ingrid Radel Ribeiro


Estudante de Direito da UCSAL, estagiária Pibic/Fapesb,
membro do NPEJI/UCSAL/CNPq.
castromg@uol.com.br

Iraci Pereira da Silva


Mestre em Educação pela Universidade de Brasília, professora do
Ensino Fundamental do Serviço Social do Comércio - SESC, Ceilândia, DF.
wivian@unb.br

Jorge Lyra
Coordenador geral do Instituto Papai, psicólogo, mestre em
Psicologia Social (PUC SP), doutor em Ciências (Fiocriz/CPqAM-NESC).
jorgelyra@papai.org.br

Juarez Dayrell
Professor Associado da Faculdade de Educação, coordenador do
Observatório da Juventude da UFMG, pesquisador do CNPq.
juareztd@uol.com.br

Juliana Perucchi
Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF), pesquisadora no Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT
(NUH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisadora Fapemig.
mamprado@gmail.com

Leo Vinicius Maia Liberato


Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de
Santa Catarina, pós-doutor Filosofia na USP.
leov@riseup.net

Lucia Rabello de Castro


Programa de Pós-graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, UFRJ, Nipiac - Nú-
cleo de Infância e Adolescência Contemporâneas/UFRJ.
lrcastro@infolink.com.br
446

Marcelo Urresti
Sociólogo, docente e pesquisador da Facultad de Ciencias Sociales,
Universidad de Buenos Aires.
murresti@hotmail.com
Márcia Stengel
Professora Adjunta da Faculdade de Psicologia e do Programa de
Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas.
marciastengel@gmail.com
Marco Aurélio Maximo Prado
Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisador no Núcleo de Direitos Humanos
e Cidadania LGBT (NUH) e Núcleo de Psicologia Política (NPP) - UFMG,
pesquisador CNPq e Fapemig.
mamprado@gmail.com
Maria da Graça Jacintho Setton
Professora de Sociologia. Faculdade de Educação – USP.
gracaset@usp.br
Maria Ignez Costa Moreira
Professora Adjunto III da Faculdade de Psicologia e do Programa
de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas, coordenadora
do Grupo de Pesquisa e Intervenção Infância (PUC Minas).
maigcomo@uol.com.br
Mary Garcia Castro
Professora da Universidade Católica de Salvador no Programa de Pós-graduação
em Família na Sociedade Contemporânea e Mestrado de Políticas Sociais e Cidadania,
pesquisadora CNPq, co-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Juventude, Identidade, Cultura e Cidadania-NPEJI/UCSAL/CNPq.
castromg@uol.com.br

Mônica Dias Peregrino Ferreiro


Doutora em Educação, professora da FFA-UERJ.
monica.peregrino@yahoo.com.br
447

Naira Lisboa Franzoi


Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
nairalf@yahoo.com.br

Nivaldo Moreira Carvalho


Mestre em Educação pela Universidade de Brasília, professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano - campus Guanambi, BA.
wivian@unb.br

Olga Nirenberg
Consultora / evaluadora externa de Unicef Argentina, evaluadora
del Programa Regional de Adolescencia de la Organización Panamericana
de la Salud (OPS), docente.
olganire@gmail.com

Rubens de Camargo Ferreira Adorno


Professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP.
radorno@usp.br

Sônia M. Gomes Sousa


Professora titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(Departamento de Psicologia), Pró-reitora de Graduação.
smgsousa@pucgoias.edu.br

Wivian Weller
Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília,
bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
wivian@unb.br
Este livro foi composto em Arno e
Chaparral e impresso em papel Offset 75g para a
Editora PUC Minas pela Gráfica e Editora Del Rey.
Belo Horizonte, outono de 2011.

Vous aimerez peut-être aussi