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SALVADOR-BA
2019.1
O texto “Sobre a autoridade etnográfica” de James Clifford compõe a obra “A experiência
etnográfica” do mesmo autor. Nele o antropólogo estadunidense busca, em geral, traçar o modo como
a autoridade etnográfica surge – localizando-a no desenvolvimento da observação participante em
uma antropologia social que no século XX buscava se afirmar como uma disciplina científica – e
como entra em decadência, tecendo críticas às suposições que dão suporte a esta autoridade e
abordando as “práticas textuais emergentes”.
Clifford expõe como o pesquisador de campo profissional surge, historicamente, distinguindo
seu modo de trabalho e qualidade de relatos das práticas e relatos de missionários, administradores
coloniais, comerciantes ou viajantes que não estariam “informados pelas melhores hipóteses
científicas ou por suficiente neutralidade” segundo os antropólogos profissionais então em
ascendência. Esse pesquisador profissional foi elaborando os aspectos teórico-metodológicos do seu
trabalho empírico ao longo da última década do século XIX, mas só a partir de Malinowski e
Radcliffe-Brown, já no século XX, a observação participante aparece como elemento fundamental
para prática dos pesquisadores profissionais, os antropólogos-etnógrafos, fundando a nova autoridade
etnográfica.
A nova autoridade etnográfica surge tanto em imagens descritas no corpo do texto, como
exemplo, por Malinowski, nas quais o antropólogo aparece “acocorando-se junto à fogueira; olhando,
ouvindo e perguntando; registrando e interpretando a vida trobriandesa”, quanto em fotografias, que
buscavam convencer seus leitores que o etnógrafo “esteve lá” e que os fatos apresentados não eram
meras criações subjetivas, mas elementos objetivamente adquiridos.
A etnografia se estabelece então como um gênero científco-literário trazendo uma série de
inovações “institucionais e metodológicas” através da contribuição de diversos antropólogos sociais:
-Malinowski, Margaret Mead e Marcel Griaule transmitiram uma visão da etnografia como
cientificamente rigorosa e heroica. O etnógrafo profissional seria aquele treinado em técnicas
analíticas e explicação científica. Esse profissional treinado teria acesso mais rapidamente que os
amadores ao cerne de uma cultura, entendendo suas instituições e estruturas essenciais. O relativismo
cultural seria a atitude normativa que estaria implicada de uma visão imparcial sobre os nativos.
-O antropólogo poderia usar línguas nativas mesmo sem dominá-las. Esta ideia estaria
presente principalmente em Mead. Assim, o mesmo poderia realizar estadias relativamente curtas
entre um povo, entre um e dois anos, “com um foco em domínios específicos, tais como 'infância' ou
'personalidade', que funcionariam como 'tipos' para uma síntese cultural”. Os Nuer de Evans-
Pritchard seria um bom exemplo dessa possibilidade etnográfica.
-Ênfase no poder de observação. A cultura seria formada por elementos passíveis de registro
e explicação por um observador treinado. A interpretação dependeria da descrição tirada de
observações metódicas “em detrimento das interpretações (interessadas) das autoridades nativas”.
-Abstrações teóricas auxiliariam os etnógrafos a chegar ao cerne de uma cultura mais
rapidamente. “O pesquisador poderia ir atrás de dados selecionados que permitiriam a construção
de um arcabouço central, ou 'estrutura', do todo cultural”. Elementos de uma cultura poderiam, assim,
ser deduzidos da teoria.
-O etnógrafo pretendia chegar ao todo através de algumas instituições específicas. O todo seria
então alcançado através das partes, pois seriam essas “microcosmos ou analogias do todo”.
-O todo representado tenderia a ser sincrônico. A pesquisa traçaria o perfil do presente
etnográfico: ciclo de um ano, série de rituais, padrões de comportamento típico.
Clifford coloca “Os Nuer” de Evans-Pritchard como exemplo do que seria o trabalho
etnográfico sobre o cânone da autoridade antropólogo-etnógrafo: reivindicação da eficácia de um
trabalho de campo teoricamente orientado, quando se analisa, por exemplo, a estrutura social e
política dos nuer, através de “evocações e interpretações habilmente narradas e observadas sobre a
vida dos nuer”.
A observação participante emergiu como um método que amalgamou experiência pessoal
intensa e análise científica. Qual seria então a diferença dessa experiência pessoal sobre o cânone da
autoridade etnográfica e a experiência pessoal da antropologia contemporânea? Clifford parte para
uma crítica ao que ele chama de autoridade experiencial, que estaria baseada numa sensibilidade para
o contexto estrangeiro, em uma espécie de conhecimento implícito acumulado ou uma reivindicação
de um sentido agudo. Segundo James Clifford, tão quanto a intuição, a invocação da experiência
“frequentemente cheira à mistificação”. Os melhores exemplos, pelo tratamento sério dado a ideia de
experiência – tratando a experiência etnográfica como a construção de um “mundo comum de
significados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, percepção e inferências”, no qual o processo
de adentrar num mundo estranho seria sempre subjetivo, porém, por retornar a compreensão sempre
a formas estáveis, estaria intimamente ligada à interpretação – são criticados pelo antropólogo
estadunidense: esse mundo experiencial, ou seja, um mundo como criado pela experiência, tem ênfase
sempre subjetiva (evocando os sentidos, o sentimento, a intuição real a respeito do povo estudado, o
acúmulo do conhecimento pessoal pelo etnógrafo do campo), não dialógica ou intersubjetiva.
A antropologia hermenêutica, ao elaborar uma dialética entre experiência e interpretação, teria
dado uma contribuição positiva ao “visibilizar os processos criativos” pelos quais os objetos culturais
são inventados e desmistificar a descrição etnográfica como objetiva, ou seja, como representação
única e neutra do mundo real. No entanto, para Clifford, a ideia da experiência como algo a ser
traduzido num corpus textual separado da situação discursiva ou performativa ajudou a engrossar o
caldo da autoridade etnográfica. Sua falha residiria em não considerar as situações etnográficas como
dialógicas. Em Geertz, por exemplo, Clifford afirma que relação do antropólogo com os interlocutores
é invisibilizada, a leitura da cultura pelo antropólogo interpretativista se daria “por cima dos ombros”
dos balineses.
“O processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes cabe
evocar. A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada. Mas
os informantes – juntamente com as notas de campo – são intermediários cruciais, são
tipicamente excluídos de etnografias legítimas. Os aspectos dialógicos, situacionais, da
interpretação etnográfica tendem a ser banidos do texto representativo final”. (pag. 42)
Propor uma etnografia calcada na relação dialógica e composta de discursos não significa
afirmar que sua forma textual deverá ser “a de um diálogo literal”. A representação discursiva pode
ser realizada entendendo que o “curso geral de uma pesquisa” é uma “negociação em andamento”.
Citar os informantes extensa e regularmente pode ser uma forma de realizar a produção colaborativa
do conhecimento etnográfico, no entanto, algumas citações “tendem a servir meramente como
exemplos ou testemunhos confirmadores”. Os informantes são indivíduos específicos com nomes
próprios reais (que podem ser citados de forma modificada quando necessário), assim, a etnografia
deve ser invadida pela heteroglossia (diversidade social de linguagens). Tal pluralidade sugere que:
os colaboradores da pesquisa podem não ser apenas “enunciadores independentes”, mas também
escritores (autoria plural); a pesquisa é repleta de momentos sutis ou não, direcionados e circunscritos
por seus informantes. O controle nativo sobre o conhecimento adquirido no campo, no entendimento
de James Clifford, é determinante.