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Pelos Olhos de um Jaguar...

Modernidade e Tradição na África Colonial


Maria Roseana Correa Pinto Lima

Eles seguiram os passos de seus antepassados...


(Do narrador do filme Jaguar, 1967).

Não dá para trabalhar com negros!...


(De Damouré, no filme Jaguar, 1967).

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AUDIO VISUAL

Estes dois excertos estão presentes no filme Cooper aponta como os europeus tentaram
Jaguar, documentário produzido pelo cineasta impor seus modelos econômicos – assentados
e antropólogo francês Jean Rouch (1917-2004)1, na propriedade privada da terra, no trabalho
lançado na década de 19602. O filme conta as assalariado, desenvolvimento das plantations,
aventuras de três jovens que saem da Nigéria dentre outros – visando à alteração das relações
rumo à Costa do Ouro, atual Gana, e o retorno de produção, o trato com os escravos, ex-
dos mesmos à aldeia de origem - Ayorou. O filme escravos, camponeses, e o quanto as relações
se inicia com a apresentação dos personagens, de dependências foram redefinidas em função
em seu cotidiano de trabalho: o primeiro é o da conjugação de interesses dos colonizadores
pastor conhecido por Lam, cujo nome é Ibrahim com líderes africanos.
Dia, que significa “chefe”, um “verdadeiro A emancipação ocorrida em Zanzibar
chefe”, destacado por sua coragem. O segundo (em 1897) e no litoral do Quênia (em 1902),
é o pescador Illo Gaouldel, um “verdadeiro mago são os dois exemplos explorados por Cooper,
dos rios”. Já o terceiro é o sedutor Damouré através dos quais podemos observar o quanto
Zica, escrivão, que teve acesso a certa instrução a conquista colonial foi legitimada com base
e que “gosta mesmo é de montar seu cavalo em um discurso que se construiu assentado
Tarzan” e cortejar as moças. na ideologia do trabalho livre, e que a abolição
Trata de trabalhadores negros livres sob formal da escravidão se deu com pagamento
o domínio colonial europeu, cujas histórias de indenização aos senhores de escravos e foi
nos ajudam a pensar questões como o que acompanhada de um esforço de se manter a
surgiu depois da escravidão, tal qual discutido classe dos proprietários de terras, garantindo o
por Frederick Cooper3. Qual o impacto desenvolvimento da agricultura de exportação,
das mudanças gestadas pela incursão dos preferencialmente mantida com mão-de-obra
europeus sobre a África? A que tipo de relações assalariada, sendo o trabalho compulsório alvo
de trabalho os africanos foram submetidos, do interesse e defesa de alguns, ignorado ou
análogas à escravidão, apesar da ideologia do criticado por outros.
trabalho livre e da construção de um discurso Em áreas de agricultura de exportação
que justificava a intervenção colonialista como Zanzibar (plantações de cravo-da-índia),
sobre o continente negro? Quais as principais apesar das tentativas de imposição de modelos
mudanças? Em que sentido o novo se debateu de contrato de trabalho, o que aconteceu foi
ou se imiscuiu com o que seria “tradição” em que, ao invés do trabalho regular, disciplinado,
África, tal qual discutido por John Iliffe?4 assentado em definidas obrigações contratuais,
os ex-escravos buscavam entendimentos com
1 Destacou-se como antropólogo africanista, tendo defendido
os proprietários de terras, não cumpriam de
sua tese de doutorado sobre os Songhay em 1952, na todo os contratos, de certa forma retomando
Sorbonne. Reconhecido cineasta com vasta produção no
antigos laços de dependência. Em algumas
campo do filme etnográfico, focalizando em seus trabalhos
vários países da África Ocidental, tais como Níger e Mali, regiões os proprietários tiveram de competir
além de Costa do Marfim e Gana. por mão-de-obra, como no caso do Quênia,
2 JAGUAR, primeiro longa-metragem de Jean Rouch, teve
suas gravações iniciadas em 1954, no contexto de uma em que trabalhadores cada vez mais móveis
missão etnográfica (realizada entre outubro de 1953 e preferiam o trabalho diário, ocasional. Nos
fevereiro de 1955). Depois de alguns anos e várias versões,
o filme foi finalizado e lançado em 1967. A diferença entre
dois casos observa-se que as perspectivas
as duas datas chama a atenção e se explica pela iniciativa iniciais dos colonizadores, interessados no
de Rouch de primeiro gravar as cenas, acompanhando o reforço do controle da terra, na abolição legal
percurso dos três personagens centrais e, cerca de dez anos
depois, apresentá-los a filmagem para que incorporassem da escravidão e na conversão dos escravos
falas improvisadas na narração dos eventos. Produzido em em proletários foram frustradas, obrigando-
Níger, Gana e França, 1954-67, cor, 35mm, 88’32’’, em francês
e legendado em português. No Brasil este filme consta da os a lidar com o que eles próprios rotularam
Coleção Videofilmes, N. 9. de “peculiaridade dos africanos” – ideologia
3 COOPER, Frederick. Condições análogas à escravidão. In:
assentada no reconhecimento da resistência dos
Frederick Cooper, Thomas Holt, Rebecca Scott. Além da
escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania africanos à imposição dos “princípios universais
em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização de progresso” pelos colonizadores, e que os
Brasileira, 2005, pp. 201-270.
4 ILIFFE, John. A mudança colonial, 1918-1950. Os africanos. rotulava como preguiçosos e incapazes para o
História dum continente. Lisboa: Terramar, 1999, pp. 275-313. trabalho regular sem algum tipo de coação.

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No caso do filme, é retratada uma das mais as de agricultura de exportação, de extração
prósperas colônias britânicas na África, cuja de minérios, ou mesmo cidades marcadas pela
economia voltava-se para a exploração do ouro urbanização e crescimento populacional (ILIFFE,
e, posteriormente, para o cultivo de cacau, sendo 1999: 277ss).
uma área de intensa atração de trabalhadores Os jovens do filme planejaram a ida para
vindos de diversos países africanos, e, como a Costa do Ouro, intentando repetir o sucesso
outras áreas colônias, alvo dos impactos daqueles que voltavam para Ayorou com
advindos dos interesses metropolitanos, bem dinheiro lá ganho. Um dos três personagens é
como dos africanos interessados no controle da destacado como aquele que mais facilmente
mão-de-obra “livre” de que buscavam dispor. encontraria riqueza e sucesso: Damouré. Ele
Como afirma Cooper, a mudança aparece inicialmente como escrivão no mercado
aconteceu, mas nos limites da cultura africana de Ayorou. O fato de saber ler, escrever e contar
(2005: 232). Ela foi contraditória e sutil, como é destacado como diferencial entre os demais
afirmou John Iliffe, mas apesar dos impactos jovens. Sua instrução e seu charme de nigeriano
negativos, os africanos remodelaram as formas são utilizados nas diferentes situações no sentido
do novo ao velho e criaram sínteses africanas, de favorecê-lo: os contatos, os contratos de
em conformidade com suas necessidades e trabalho, o trato com as garotas, etc. Ao separar-
tradições (ILIFFE, 1999: 275). É um pouco dessa se dos demais, seguiu de carona para Accra,
cultura e resistência africana e da forma como cenário urbano agitado pela quantidade de carros
ambiguamente se deu a inserção dos africanos que trafegavam pelas ruas. Como observou Iliffe
nas relações de produção introduzidas ou (1999: 277), o incremento dos transportes a motor
alteradas pela economia colonial que nos chega foi uma das evidências das mudanças econômicas
com o documentário produzido por Rouch. gestadas pela colonização, em conjunto com os
equipamentos urbanos implantados nas cidades
mais dinâmicas economicamente (escolas,
Da floresta para a cidade: mesquitas, igrejas, bancos, etc.).
nos mercados, nos portos, Na cidade, Damouré buscou os conterrâneos
nas minas... como um jaguar nigerianos, que encontrou desenvolvendo
as mais diferentes tarefas: são lavadores de
No início do filme, os jovens decidem latas, de garrafas, são também carregadores.
partir para Kumasi, na Costa do Ouro, “(...) Perpassada por ironia e humor é a cena em que
onde as pessoas vão procurar dinheiro, roupas ele é contratado como carregador de madeira e,
e riquezas”, em torno disso gira o roteiro do por sua força e certa aritmética, transforma-se
filme, que focaliza a África Negra ainda sob a rapidamente de carregador a chefe da equipe,
colonização europeia, sendo o percurso dos posição que ele ostenta frente aos demais na
personagens apresentado como uma repetição forma como se porta, usando óculos escuros e
dos movimentos de saída de trabalhadores, tratando com desprezo seus encarregados: “não
sobretudo jovens do sexo masculino, de seus dá para trabalhar com negros”, reproduzindo
locais de origem em busca de serviço temporário a visão dos brancos de que os negros africanos
nas cidades ou regiões que experimentavam o eram preguiçosos. Ele, como africano, negro,
rebuliço do desenvolvimento econômico calcado trabalhador migrante, poderia ser incluído neste
nos interesses metropolitanos. Assim, “[e]les rótulo, construído e aplicado aos negros de uma
seguiram os passos de seus antepassados”, como maneira geral não porque não trabalhassem, mas
aparece no filme. É neste sentido que figuram porque resistiam em trabalhar como queriam os
como jovens que foram seduzidos pelas histórias colonizadores (COOPER, 2005: 254). Acontece
sobre a Costa do Ouro e a possibilidade de lá que ele procurara ressaltar uma diferenciação sua
ganhar muito dinheiro. Repetiram o percurso dos em relação aos demais trabalhadores, como um
inúmeros migrantes de curto prazo que saíram de jovem que conseguiu obter vantagens materiais
suas localidades de origem, onde muitas vezes com sua parca educação e astúcia. À propósito
tinham acesso à terra, mas que no período das disso, Iliffe afirma que a educação foi o principal
secas rumavam para áreas de exploração como dinamizador da mudança colonial, geradora

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de mobilidade social e estratificação, embora símbolo de prosperidade, de modernidade, e
também fonte de conflitos. Muitos jovens, por isso mesmo digno de exposição e admiração
estimulados à alfabetização puderam escapar ao pelos outros. Na definição de Damouré: “Eu
trabalho nos campos e conseguir um emprego passeio nas ruas e me tornei um jaguar. (...) um
compensador (ILIFFE, 1999: 288), em que pese homem sedutor, bem penteado, que fuma e que
o preço deste processo fosse a imposição da passeia. Todo mundo olha para ele, e ele olha
cultura ocidental, sempre tencionada com os para todo mundo. Ele olha para todas as moças
valores hereditários dos diferentes grupos. bonitas, fuma seu cigarro tranquilamente. (...)
No caso do filme, Damouré parece um homem bom. Um sedutor, um zouzoman...”.
ter “assimilado” alguns comportamentos Ir da floresta para a cidade. A mudança
condizentes com uma moral do trabalho, que acarretada é assinalada através dos rendimentos
aparecem de forma meio caricata, reproduzindo- obtidos com o trabalho, mormente através da
os e, ao mesmo tempo, utilizando-os para possibilidade de comprar produtos vendidos
impressionar o patrão e se dar bem. Ele joga com nos mercados, como as roupas, sejam elas as
a imagem do trabalhador que as autoridades e/ usadas mais comumente pelos mulçumanos,
ou colonizadores esperavam que os africanos sejam aquelas à moda europeia. Roupas novas
saídos da escravidão se tornassem: mão-de-obra que são usadas para passear pelos mercados,
disponível, barata, mas minimamente preparada para ir às festas, para exibir especialmente nos
e, sobretudo, disciplinada. De empregado ele dias de domingo. Lam vai para Accra vender
passa a ser o chefe do depósito de madeiras, é “pagnes”. A venda de roupas no enorme
o seu auge, pois agora ele “manda e desmanda”, mercado de Kumasi é uma das iniciativas de
é um Jaguar – referência a um carro de luxo, sucesso dos jovens; atividade que preferem

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ao trabalho nas minas de ouro. Montam uma técnicas para fundição do ouro e produção das
pequena loja que começa a prosperar apenas barras deste metal precioso; a supervisão dos
quando Damouré usa de seu charme e poder ingleses e policiais. No que é contado no filme,
de persuasão para incrementar as vendas. Em o desabafo sobre a exploração colonial: “o ouro
todas estas cenas, e mesmo na saída de Ayorou, é enviado para Londres, onde fica em um cofre
destaca-se o mundo do mercado, onde tudo (...). E, para nos enganar, só fica o ouro ruim. (...)
acontece – (re)encontros, relações comerciais, Os ingleses vieram enganar os africano... tirar
festas e rituais, contratos de trabalho, etc. – e seu ouro e levar para casa”... Não só os ingleses,
onde tudo se decide. A cidade é este cenário da mas também os franceses, portugueses, belgas,
prosperidade, da liberdade – evidenciada pelas italianos, alemães e todos os envolvidos na
manifestações nacionalistas que marcaram exploração colonialista sobre o continente, vale
a década de 1950, sob a liderança de Kwane lembrar. Muito embora o que autores como Iliffe
Nkrumah e da Convention People’s Party (CPP), procurem enfatizar é que as nações africanas
que resultariam na Independência em 1957, são fruto do colonialismo, no sentido de que o
agora não mais Costa do Ouro, mas Gana. Mas mesmo instaurou mudanças significativas nos
a cidade também é local de exploração, pobreza continente, que não necessariamente podem
e segregação. ser tomadas como negativas. Tanto Iliffe
A vida de trabalho nos portos de Accra quanto Cooper são taxativos na afirmação de
também é apresentada, sobretudo através que os europeus construíram um discurso que
de Illo, que lá trabalha como kaya-kaya justificava a dominação europeia, muito embora
(carregador), reproduzindo a situação dos demais não tivessem, ao final, tido sucesso em ”levar
trabalhadores: ganha poucos xelins por dia a civilização” ao continente africano, como se
trabalhado, não come bem, vive cansado e tem alegava. Para Iliffe, um dos pontos a destacar é
como alternativa roubar parte do carregamento que o colonialismo introduziu técnicas agrícolas
de uísque para compensar os parcos recursos. que resultaram, entre outras coisas, numa
A situação de Illo parece contrastar com a de produção agrícola mais equilibrada (no sentido
Damouré: o primeiro é feio, ganha mal, vive de menos dependente dos fatores climáticos),
dormindo no porto porque não tem ninguém o que, em conjunto com a diminuição da fome e
que o incomode. O segundo é belo e sedutor, do decréscimo dos índices de mortalidade, teria
arranjou logo melhor colocação no trabalho. colaborado para o crescimento populacional.
Illo faz suas orações “em qualquer lugar” a Alá No caso do que foi narrado no filme, exposto
enquanto o sedutor aposta em cavalos em acima, a exploração é reconhecida pelo destino
meio aos negros bem sucedidos, vestidos à da produção aurífera, mas também porque se
moda europeia. Aliás, o sucesso de Damouré reconhece que o trabalho nas minas é pesado e
transparece como proporcional à assimilação difícil e “todos acabam pegando tuberculose”;
dos costumes de fora, dos brancos europeus, esta “(...) doença de pobres que se instalou em
próprios do ambiente da cidade, revelada não grandes cidades do continente (ILIFFE, 1999:
só pelo uso de certas roupas, acessórios, livre 310).
circulação, capacidade de mando, mas também Mas nem só de trabalho viviam os africanos
pela língua (o uso do inglês, que comentaremos dos tempos coloniais. Na sequência, podemos
mais adiante). observar duas outras questões: os impactos
Além dos três jovens citados, há um quarto da experiência sob o colonialismo no que toca
participante desta história, Doumá Besso, que à religião e à demarcação da alteridade nesta
é também nigeriano e através do qual os jovens viagem entre florestas e cidades.
conheceram histórias acerca da prosperidade
advinda do trabalho na Costa do Ouro. Agora já temos o caminho de Deus e o camin-
Acompanhando o percurso de Doumá no filme, ho dos Holey, temos que pedir o caminho dos
enseja-se um olhar sobre o cotidiano de trabalho Sohantiés...
pesado na região das minas, as condições a que
eram submetidos os mineiros: longas jornadas O percurso dos jovens nigerianos rumo
de trabalho “sem ver o ar e respirar ar puro”; as a Costa do Ouro foi feito a pé, conduzido pelo

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interesse econômico e pelas aventuras, marcado Iliffe como “ecletismo” – que teria caracterizado
por momentos de preparação, de descobertas, a África e os africanos nos tempos coloniais
de encontros com outras aldeias/culturas e e pós-coloniais. Assim, ao invés da simples
com toda a movimentação das áreas urbanas assimilação do cristianismo pelos africanos,
– sendo muitas vezes com humor e ironia como intentaram os colonizadores, o que se
focalizado o choque cultural experimentado assistiu no continente foi um processo no qual
pelos aventureiros nigerianos. os nativos “(...) conciliaram o cristianismo com
Illo, Lam e Damouré prepararam-se para crenças e práticas hereditárias”. O cristianismo
sua aventura pedindo as bênçãos que julgavam avançou junto com o impulso da instrução que
necessárias para o trajeto, primeiramente através dele era possibilitada, em consonância
pedindo a Deus que indicasse o caminho a com o objetivo de imposição da cultura ocidental,
seguir. Assim é que Lam e Illo assistem à Festa mas também respondendo à busca de auto-
de Walimo – a “decida do Alcorão”. Em seguida, emancipação de jovens, pobres e mulheres.
pedem aos espíritos, os Holey, que lhes deem Quanto ao Islamismo, que é a religião professada
uma boa viagem, o que acreditam conseguir pelos personagens do filme (principalmente Illo
participando de um ritual e guardando o bico e Lam), apesar das desconfianças de que era
e os pés de um abutre sacrificado por eles. alvo pelos europeus, acabou tendo sua expansão
Finalmente, dirigem-se para Wanzerbe, região também estimulada. Religiões adotadas pelos
de Goural, onde se encontram os “maiores africanos no limite das possibilidades de serem
magos do Níger”, os Sohantiés, sendo Mossi o mescladas às crenças e culturas locais (ILIFFE,
maior deles. Consultado, Mossi indica quando 1999: 293). O que Iliffe define como questão
o caminho está melhor para ser seguido pelo de ecletismo, remete à consideração de que o
grupo que, no entanto, deveria se separar projeto vindo de fora, intentado inicialmente para
quando chegassem ao primeiro cruzamento, já fazer frente à realidade vivida pelos africanos,
na Costa do Ouro – assim evitariam acidentes e sofreu uma série de obstáculos e mesclas, a
doenças. ponto de se tornar viável condicionalmente pela
Esta passagem do filme nos permite consideração do Outro, que se tentava moldar, o
perceber como os africanos misturavam crenças que não foi conseguido como queriam em função
antigas com novas, o que foi caracterizado por da resistência africana.

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... quando você chega a um país, Na parte final do filme, registra-se que
é o país que nos modifica passados alguns meses, Damouré, Illo e Lam,
junto com Doumá dão adeus a Kumasi e fazem
No filme assistimos aos encontros e a viagem de volta para Ayorou. O retorno não
descobertas dos três jovens no percurso entre a mais é feito a pé mas de caminhão – “como
floresta e a cidade. A cada chegada, impressões soldados vencedores” – o transporte símbolo
(registradas nas imagens, mas também nas das mudanças em África. Repetiram o que
falas, durante e após a gravação das cenas) que meio milhão de jovens fazia todos os anos: sair
variavam entre a admiração, o susto, o receio, no período das secas, retornar no período das
ou a imensa alegria, como quando se deparam chuvas, sendo que o momento da volta “para
com o mar pela primeira vez e comeram coco, eles é a apoteose”. É a hora de exibir tudo
comparando-o com queijo, leite e chocolate. o que conseguiram em meses de trabalho,
Impressões causadas não só pelo que a dividir entre os parentes. Tudo o que ganharam
natureza os apresentava ao longo do caminho, é rapidamente repartido. E retomam as
evidentemente. atividades costumeiras, no pasto, nos rios, no
A frase destacada acima foi proferida no comércio, isso depois de exibirem os tecidos,
contexto da chegada dos jovens a uma aldeia roupas, tapetes, utensílios e falares “modernos”
no norte do Daomé, onde os Sombas vivem. O – a língua do colonizador (inglês) é usada
choque cultural é evidenciado na admiração dos como mais um símbolo de prestígio5 – os quais
jovens pela nudez dos Sombas. Nudez, feitiços, somariam na comprovação de suas aventuras,
enfeites, danças, atentamente observadas corroborando uma vez mais os inúmeros relatos
pelos nigerianos. Nas cenas produzidas pelo sobre a Costa do Ouro. Reencontram seus
cineasta, a evidência do exótico em África, onde familiares e amigos, e entre eles as mulheres.
o primitivismo e a tradição contrastam com a Mulheres africanas, sobre quem se registra
presença de elementos que sinalizam a incursão que, comparativamente aos jovens do sexo
europeia naquelas terras: um dos membros do masculino, teriam experimentado alterações
grupo que se encontra dançando usa óculos de sem grande significado6, mas que aparecem no
sol e outro veste roupas brancas e chapéu ao filme andando pelas ruas da cidade com vestidos
modo dos colonizadores europeus. “... [Q]uando europeus, participando de rituais africanos,
você chega a um país, é o país que nos modifica”, preparando-se como cristãs, trabalhando, como
é o que é dito por Damouré e explicitado com a nas minas junto com os homens, esperando
sua atitude de participar seminu de um ritual seus noivos...
do grupo Somba, apenas vestindo um short. No geral, as cenas mostram o percurso
Misto de respeito, curiosidade e estranhamento dos jovens e, nelas, a tensão entre tradição e
com o outro. É uma postura de alguém que, modernidade, construída pela confluência do
temporariamente, teria se contaminando com que chega da aldeia na cidade e da cidade na
o outro, tal qual transparecerá em boa parte do aldeia, pela demonstração de cenas, gestos e
filme, sobretudo quando os jovens chegam ao falas que demarcam e constroem a alteridade,
cenário urbano, e passam certo tempo na Costa o que é importante de ser ressaltado, sobretudo
do Ouro. Observam e experimentam as mudanças se considerarmos o fato de que entre as
decorridas da presença europeia na África, gravações e a introdução do que é dito no
e do choque entre tradição e modernidade... filme há a distância de quase dez anos. Os
Modernidade que se ressalta através do vai-e- muitos diálogos existentes no filme são, nesse
vem de carros, das casas e prédios, da construção sentido, inventados, contando com o recurso
de uma mesquita, mas também do encontro com
pessoas de diferentes lugares e costumes, ou com
5
Tal qual discutido por Irving Goffman, em oposição aos
símbolos de estigma. Cf: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas
um grupo de moças cristãs saindo da igreja, no sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
mesmo cenário em que se assiste a antigos rituais LTC, 1988.
6
Cf: ILIFFE (1999: 307), que chega a afirmar que “[a] mudança
africanos, evidenciando a cidade como lugar onde colonial foi menos libertadora para as mulheres do que para
se juntam tantos povos, línguas e religiões. os jovens do sexo masculino”.

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da memória dos atores/nativos para a leitura e
(re)construção de uma realidade também ela
inventada, uma vez que foi o cineasta quem
estimulou a saída dos três jovens de seus locais
e cotidianos originários para um outro lugar, no
sentido de que reproduzissem o movimento
migratório existente a séculos. O que respondia
ao interesse de Jean Rouch no estudo do sistema
de migração entre os países da África do Oeste.
Esta estratégia de primeiro registrar as cenas e
só tempos depois registrar diálogos construídos
pelos personagens, misturar realidade e ficção, é
que faz alguns estudiosos afirmarem que filmes
comoJaguar afastam-se do gênero propriamente
etnográfico e se aproximam dos chamados
filmes de improvisação7, considerando-se
a interferência do cineasta no registro da
“realidade” presente no documentário. O que
pode ser percebido nas cenas em que os três
jovens conseguem atravessar a fronteira política
da Costa do Ouro e driblar os policiais e demais
encarregados da alfândega porque os mesmos
percebem que estão sendo filmados e se atém
ao cineasta. Estamos diante das possibilidades
do audiovisual que, como produção cultural,
procede a uma codificação da realidade. O filme
etnográfico aqui analisado nos permite perceber SAIBA MAIS
quando o documentário também é ficção. No COOPER, Frederick. Condições análogas à
escravidão. In: Frederick Cooper; Thomas Holt;
caso do trabalho de Jean Rouch, a observação
Rebecca Scott. Além da escravidão: investigações
atenta, o conhecimento profundo da realidade sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-
que pretende registrar, são apresentados emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, pp. 201-270.
pela linguagem fílmica, reconstruindo o real
e inventando o outro através do filme. A FREIRE, Marcius. Jean Rouch e a invenção do
outro no documentário. In: Doc On-line, N. 03, dez.
improvisação, bem como o diálogo entre o 2007; disponível on line em: http://www.doc.ubi.
produtor do audiovisual e os sujeitos que foram pt/03/artigo_marcius_freire.pdf, consultado em
filmados, para quem o antropólogo e cineasta 20/06/2008.

devolve o filme antes mesmo que ele esteja ILIFFE, John. A mudança colonial, 1918-1950. Os
africanos. História dum continente. Lisboa: Terramar,
acabado, fazem destes sujeitos também autores
1999, pp. 275-313.
do filme (RIBEIRO, 2000). Câmera na mão,
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a
percursos entre cenários naturais, improvisação manipulação da identidade deteriorada. Rio de
interferindo no roteiro inicial, uma realidade a Janeiro: LTC, 1988.
registrar e uma obra a devolver às pessoas que JAGUAR. Filme de Jean Rouch, 1967. Produção:
filmou e sobre quem retratou com tanta riqueza Níger, Gana e França, 1954-67, cor, 35mm, 88’32’’,
francês, legendado em português (com comentários
de detalhes... esse é o Jaguar de Jean Rouch.
impovisados por Damouré Zika, Lam Ibrahima Dia,
Illo Gaoudel, Amadou Koffo). Coleção Videofilmes,
N.9.
RIBEIRO, José da Silva. Maîtres Fous, um desafio
7 A este respeito consultar: FREIRE, Marcius. Jean Rouch e a de Rouch aos antropólogos. In: Trabalhos de
invenção do outro no documentário. In: Doc On-line, N. 03, Antropologia e Etnologia, Vol 40, 195-202, 2000.
dez. 2007; disponível on line em : http://www.doc.ubi.pt/03/
artigo_marcius_freire.pdf, consultado em 20/06/2008.

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