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Paradoxo
Giorgio Borghi
Um paradoxo é algo contrário ao que se espera e que se considera normal e lógico. Quando se fala em racionalidade
científica, na nossa cultura ocidental, se pensa que tal racionalidade não tem nada a ver com a Teologia, quando até
não se opõe a ela. Objetivo desta nossa aula é mostrar que o conhecimento científico, desde o seu nascimento na
Grécia antiga, não consegue dar conta satisfatoriamente do que se propõe a fazer, lançando mão somente dos recursos
da racionalidade científica.
Para colocar corretamente a questão, precisamos desenvolver inicialmente uma reflexão sobre o conhecimento
humano e, para isso, pode nos ajudar a Metafísica de Aristóteles, que começa com a seguinte afirmação: “Todos os
homens têm, por natureza, desejo de conhecer”. Na realidade, para o ser humano, o conhecimento é mais do que um
simples desejo; é uma verdadeira necessidade vital.
O que caracteriza o ser humano como ser racional é justamente a sua impossibilidade de viver sem ter, ou tentar
construir, um horizonte de sentido da vida humana no mundo. Não interessa que este sentido seja ou não
‘cientificamente’ elaborado; pode ser o mais primitivo, mítico, mágico ou esquisito que possamos imaginar, mas o ser
humano sempre precisa de um horizonte de sentido. Sem isso, morre ou se mata: as várias formas de depressão,
como também o suicídio, estão relacionadas a esta impossibilidade de dar um sentido à vida. Um sentido que não é
predefinido ou dado, mas sim encontrado ou inventado pelo próprio ser humano através do processo do conhecimento.
Assim, poderíamos retraduzir a afirmação aristotélica da seguinte maneira: “todos os homens têm, por natureza,
necessidade de conhecer”.
Dando mais um passo, podemos agora nos perguntar que tipo de conhecimento é este. Aristóteles, sempre na primeira
página da sua metafísica, faz uma distinção importante e interessante entre o conhecimento animal e o conhecimento
propriamente humano. O conhecimento animal se processa simplesmente pela sensação e, no máximo, pela memória,
que registra dados da sensação que neles determinam o que nós hoje chamamos de reflexos condicionados. No ser
humano, os dados da sensação, armazenados pela memória, geram a experiência, a qual, por sua vez, possibilita o
conhecimento científico ou a ‘arte’, na linguagem aristotélica. O que caracteriza o conhecimento científico é o fato de
saber o ‘por que’ das coisas e não simplesmente o ‘que’. O conhecimento se torna um conhecimento de arte ou de
ciência quando eu posso explicar o porquê daquilo que estou dizendo ou fazendo.
Podemos, então, concluir que o conhecimento humano é um conhecimento essencialmente ‘hermenêutico’, ou seja,
interpretativo, vital para o ser humano, desde o seu aparecimento como homo sapiens na face do nosso planeta. O
salto qualitativo do reino animal ao reino humano é determinado pela passagem de um tipo de conhecimento puramente
constatante a um tipo de conhecimento hermenêutico/interpretativo. Todas as tentativas de dar uma resposta de
sentido à vida humana no mundo, desde sempre, são expressões as mais variadas desta racionalidade humana, que
não se satisfaz com o ‘que’ e sempre procura o ‘por que’ do mundo e da vida: as grandes elaborações mitológicas,
religiosas, filosóficas, como também científicas, procuram a mesma coisa, com modalidades e caminhos diferentes.
Não podemos esquecer que a filosofia nasce como ciência e a ciência nasce como filosofia e que este nascimento se
configura simplesmente como o aparecimento de uma nova modalidade daquela racionalidade humana que já se
manifestara, de forma sublime, nas anteriores grandes criações culturais do espírito humano. Esta nova forma, que
podemos chamar de racionalidade filosófico/científica, se constitui como início e causa de toda a civilização ocidental,
procurando um princípio explicativo da realidade no próprio mundo físico.
Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser a água (é por isto que ele declarou também que a terra assenta sobre a água),
levado sem dúvida a esta concepção por observar que o alimento de todas as coisas é úmido e que o próprio quente
dele procede e dele vive. (ARISTÓTELES, 1979, p. 16-17)
Nesta passagem de Aristóteles, encontramos a descrição do novo método científico inaugurado por este novo tipo de
racionalidade. Até aqui, o ser humano, que não consegue se satisfazer com a simples constatação do “que”, procurava
o “por que” das coisas da natureza (physis) e da vida numa dimensão mítica, mágica, religiosa, mas, de qualquer forma,
sempre transcendente, externa à própria realidade física. Agora começa a pensar que este ‘por que’ talvez se possa
encontrar dentro da própria realidade do mundo físico e através de um caminho (em grego: metá ódos = método) que
se caracteriza justamente como caminho (método) científico, segundo aquela primeira descrição deste método que
acabamos de ler no texto aristotélico: “levado sem dúvida a esta concepção por observar que...”.
Esta é a base do método de todas as ciências, quando visam estabelecer princípios explicativos de valor universal
(concepções partilhadas), baseadas na observação empírica e na experimentação. Este novo tipo de racionalidade
filosófico/científica se apresenta como alternativa às formas de racionalidade anteriores, que podemos considerar mais
‘teológicas’, enquanto recorrem a elementos explicativos transcendentes. Mas, logo na sua aurora, esta racionalidade
científica apresenta aquele paradoxo que queremos aqui analisar: na hora em que pensa de poder finalmente fornecer
uma causa última explicativa do universo físico (a famosa arké) que, enquanto elemento físico, dispense qualquer
referência a explicações de tipo mítico/teológico, acaba propondo soluções que desandam no cientificamente
inexplicável.
A água de Tales, como todos os outros elementos ‘físicos’ apresentados pela filosofia nascente como princípios
científicos explicativos do universo, para poder se apresentar como causa última, precisa ser contemplada com
características que acabam sendo teológicas ou metafísicas, e não simplesmente físicas. Qualquer coisa, para ser
realmente causa explicativa última, não pode ter outra causa que a tenha determinado; isto é, deve ser eterna e infinita.
Tales é um ‘naturalista’ no sentido antigo do termo e não um ‘materialista’ no sentido moderno e contemporâneo. Com
efeito, sua ‘água’ coincidia com o divino. Desse modo, introduz-se nova concepção de Deus: trata-se de uma
concepção na qual predomina a razão, e destina-se, enquanto tal, a eliminar logo todos os deuses do politeísmo
fantástico-poético dos gregos. (REALE/ANTISERI, 2004, p. 19)
A arké dos pré-socráticos é aquele elemento ‘físico’ que permanece eternamente, para além de todas as
transformações que constatamos na natureza; é aquilo de onde tudo vem e para onde tudo volta e que, existindo desde
sempre e para sempre, se torna o princípio ordenador e explicativo do universo, enquanto princípio de conhecimento
ordenador do caos. Mas este princípio, na realidade, não é um simples elemento físico, e sim um princípio
hermenêutico/explicativo com características de tipo teológico. Nietzsche percebe e explicita muito agudamente isso,
quando, comentando o pensamento de Tales, escreve:
Ao expor essa representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções
físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele (...) O que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma
crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços
sempre renovados para exprimi-la melhor – a proposição: ‘Tudo é um’. (NIETZSCHE, 1996, p. 44)
Neste texto, falando do filósofo que a história reconhece como aquele que, pela primeira vez, tentou propor uma
explicação ‘científica’ da realidade, dispensando o recurso à mitologia, Nietzsche diz que tudo isso é resultado de “uma
crença que tem sua origem em uma intuição mística” e, para tornar ainda mais intrigante o paradoxo, acrescenta que
isso nós o “encontramos em todos os filósofos”.
A racionalidade filosófico/científica se apresenta como alternativa à racionalidade mítico/teológica e representa
evidentemente uma nova modalidade de processamento da racionalidade humana. Não podemos e não queremos
dizer que é tudo a mesma coisa; só queremos chamar a atenção sobre o fato de que a racionalidade científica, desde
o seu nascimento até hoje, não consegue se desvencilhar do recurso a algo cientificamente inexplicável e que
poderíamos chamar de monoteísmo filosófico da ciência.
O conceito de teologia
No que se refere estritamente ao conceito de teologia existem duas tensões básicas. A primeira se refere com o que
quer dizer theós ou Deus, a segunda com o que se quer dizer com logos (logía). A tradição do pensamento grego tende
a ver Deus como impessoal, como fundamento ontológico. A tradição judaica tende a vê Deus com características
pessoais, como revelando-se com seu nome a um povo concreto no espaço-tempo determinado. Igualmente no que
se refere a logos. Este é um conceito grego muito complexo. Basicamente, trata-se da racionalidade objetiva de que o
universo é dotado, sendo o que torna cosmos e não caos. Mas se trata também da racionalidade do ser humano, que
de alguma forma, corresponde àquela, estando ai a condição de inteligibilidade da mesma (BOFF, 1999, p.119).
A esta altura, pode-se afirmar que a Teologia é a ciência que estuda o Absoluto (Deus), à luz da razão e da fé. Tal
movimento parte-se do pressuposto de que crer seja um ato, no qual, evitam-se dois extremos, a saber: o fideísmo e
o racionalismo. Assim se rechaça, da mesma maneira, o axioma que se criou no desenrolar dos séculos, eis o seu
resumo a seguir: aquele que sabe não crer e o que crer não sabe! Seria, portanto, uma convivência impossível: aqueles
que crêem terão que renunciar ao saber e aqueles que sabem nunca poderiam crer.
Importante saber:
O uso adequado da razão é imprescindível para a Teologia. A ciência sobre Deus adquire assim a condição de sólido
e verdadeiro conhecimento humano e se livre de sérios perigos, como o fideísmo e o racionalismo. A razão introduz na
Teologia o sentido crítico necessário e as comprovações respeitosas do conteúdo da fé permitem ao crente satisfazer
as legítimas perguntas da sua inteligência. (Disponível em: http://www.presbiteros.com.br/site/razao-humana [Acesso
em ago 2015]).
A Teologia será sempre uma reflexão crítica e que obedece a um rigor cientifico, a um método, a um objeto e a objetivos
específicos. “É uma ‘arte’ no sentido clássico de procedimentos, servindo à produção de um resultado determinado”
(BOFF, 1999, p.15). É a arte de apresentar ao mundo o objeto e o sujeito da fé, com o devido método e fazendo a
necessária articulação com os elementos que a compõem e sempre dialogando com as ciências. Mas...
Teologia é um jeito de falar sobre o corpo. O corpo dos sacrificados. São os corpos que pronunciam o nome sagrado:
Deus... A teologia é um poema do corpo, o corpo orando, o corpo dizendo as suas esperanças, falando sobre o seu
medo de morrer, sua ânsia de imortalidade, apontando para utopias, espadas transformadas em arados, lanças
fundidas em podadeiras... Por meio desta fala os corpos se dão as mãos, se fundem num abraço de amor, e se
sustentam para resistir e para caminhar (Rubem Alves)
Quem é o homem?
Todas as ciências querem saber quem é o homem. Do mais elementar ao mais complexo sempre se quer saber mais
sobre esta obra-prima, sobre este mistério. A literatura também registrou essa preocupação. Carlos Drummond de
Andrade em “Especulações em torno da palavra homem” indaga sobre quem é homem?
Mas, quem é o homem? Uma resposta à luz da Teologia versa na linha da imago Dei, isto é, uma doutrina de que o
Homem foi criado à imagem Divina. É a resposta bíblica a como surgiu o Homem, criatura singular entre as existentes.
O registro bíblico é o seguinte: “Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus. Ele o criou homem
e mulher” (Gn 1, 27). Vamos chegar mais perto e vejamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica:
O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos por Deus: por um lado, em perfeita igualdade como pessoas
humanas e, por outro, em seu ser respectivo de homem e de mulher. "Ser homem, 'ser mulher" é uma realidade boa e
querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade inamissível que lhes vem diretamente de Deus, seu Criador.
O homem e a mulher são criados em idêntica dignidade, "à imagem de Deus". Em seu "ser-homem" e seu "ser-mulher"
refletem a sabedoria e a bondade do Criador (CIC, n. 369).
Aprofundando a conversa
A experiência do Sagrado tem na universidade um espaço privilegiado, sobretudo, porque ela é universitas, isto é,
aberta ao conhecimento, aberta às demandas da sociedade e fiel à sua história. Por causa disso, o lugar da Teologia
é na universidade.
A reflexão feita por Manzatto (2015) é pertinente e reflete bem a problemática atual. É verdade que o mundo de hoje é
plural, onde coexistem diferentes religiões e diferentes referenciais de significação. Inclusive, ou, sobretudo, nos
ambientes universitários se percebe tal pluralismo que não é visto como ruim, mas sim como uma riqueza de
humanidade.
O discurso teológico católico não é o único presente nas universidades mesmo católicas, até porque os que ali estudam
ou trabalham não são todos católicos. O discurso da teologia e da religião insere-se, pois, nesse ambiente de
pluralidade, de flexibilidade, de atenção à diferença E aí há dois elementos a serem levados em conta.
O primeiro é que, por isso, o discurso teológico deve constituir-se não como um discurso de força ou de “dono da
verdade”, mas sim se posicionar numa atitude de diálogo, de escuta também, de quem reconhece o direito de palavra
a discursos vindos de outros horizontes que, igualmente, não se situem como discursos de força, mas possibilitem o
diálogo desejado, a cooperação entre as pessoas e a convivência na busca da paz.
Por isso, o discurso teológico, mesmo na universidade católica, não precisa ser caracterizado como discurso
catequético, proselitista ou apologético, embora isso não lhe seja proibido nem diminua sua importância.
Mas há um segundo elemento a ser afirmado, exatamente o direito do discurso teológico permanecer católico e ser
realizado. A afirmação da identidade do discurso teológico não é vergonhosa e é mesmo exigência do testemunho da
fé. Furtar-se a isso ou proibi-lo por razões que querem afirmar apenas a referência da fé ao privado é omissão ou
exercício de força inadmissível em sociedade democrática.
O discurso teológico, portanto, a partir da fé, é maneira de a comunidade crente participar das conversas entre os seres
humanos que, vindos de diversos horizontes, querem construir um mundo de paz. Trata-se do direito do discurso
teológico em ambiente universitário e dentro da sociedade, direito que não pode ser negado à fé.
A opção da Universidade Católica do Salvador em abordar a disciplina Teologia e Humanismo é dialógica, preservando
as convicções individuais, mas sem abrir mão de sua identidade católica, isto é, aberta e sem abdicar da missão de
cuidar do bem que recebemos como dom: a vida de cada ser humano.
Uma Parábola
Conta-se que um fazendeiro, que lutava com muitas dificuldades, possuía alguns cavalos para ajudar no trabalho de
sua fazenda. Um dia, o capataz lhe trouxe a notícia que um de seus cavalos havia caído num velho poço abandonado.
O buraco era muito fundo e seria difícil tirar o animal de lá. O fazendeiro avaliou a situação e certificou-se de que o
cavalo estava vivo. Mas pela dificuldade e o alto custo para retirá-lo do fundo do poço, decidiu que não valia a pena
investir no resgate. Chamou o capataz e ordenou que sacrificasse o animal soterrando-o ali mesmo. O capataz chamou
alguns empregados e orientou-os para que jogassem terra sobre o cavalo até que o encobrissem totalmente e o poço
não oferecesse mais perigo aos outros animais. No entanto, na medida que a terra caía sobre seu dorso, o cavalo se
sacudia e a derrubava no chão e ia pisando sobre ela. Logo os homens perceberam que o animal não se deixava
soterrar, mas, ao contrário, estava subindo à medida que a terra caía, até que , finalmente, conseguiu sair...".
Muitas vezes nós nos sentimos como se estivéssemos no fundo do poço e, de quebra, ainda temos a impressão de
que estão tentando nos soterrar para sempre. É como se o mundo jogasse sobre nós a terra da incompreensão, da
falta de oportunidade, da desvalorização, do desprezo e da indiferença. Nesses momentos difíceis, é importante que
lembremos da lição profunda da história do cavalo e façamos a nossa parte para sair da dificuldade. Afinal, se
permitimos chegar ao fundo do poço, só nos restam duas opções: Ou nos servimos dele como ponto de apoio para o
impulso que nos levará ao topo; - Ou nos deixamos ficar ali até que a morte nos encontre. É importante que, se estamos
nos sentindo soterrar, sacudamos a terra e a aproveitemos para subir.
A presença da Teologia no mundo universitário e na vida das pessoas quer ser este impulso vital, esta alavanca que,
não apenas retira de situações de animosidades, mas encoraja-nos a viver o cotidiano com alegria e cheio de
esperança.
Recordando
A presença da Teologia na universidade e nos diversos cursos de graduação é, com certeza, uma oportunidade para
que a comunidade acadêmica possa refletir, em primeiro lugar, sobre a transcendência do conhecimento. E, uma vez
admitindo essa função, reflita igualmente a possibilidade de “sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não
consegue compreender quem é” (Bento XVI). Por isso, a Teologia é um lugar privilegiado para a vivência do
humanismo. Pois, “um humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano”. (Bento XVI).
O Componente Curricular chamado Teologia, por sua vez, dá ao estudante a oportunidade de pensar-se enquanto ser
que está no mundo para intervir com qualidade na sociedade. Os conhecimentos obtidos, os dons e as habilidades
adquiridos não são apenas instrumentos de subsistência econômica, de respeitabilidade social, de garantia de
profissionalidade.
De um egresso da Universidade Católica do Salvador espera-se muito mais. Espera-se um compromisso com a
construção de uma sociedade identificada com os ideais de justiça, de liberdade, de igualdade, de promoção da paz,
dos valores éticos, dos direitos humanos, do equilíbrio das relações homem-natureza. Espera-se, ainda, que seja um
profissional competente técnica e cientificamente, que se afirme como cidadão consciente de seus direitos e deveres.
O convívio com a disciplina Teologia e Humanismo é uma oportunidade de conhecer uma área de conhecimento que
nos convida a uma abertura ao outro, ao conhecimento de si e a uma abertura ao Transcendente.
Seção 3 - O Senso Religioso
Para iniciar
Frei Jorge Rocha
É recorrente a tese de que o senso religioso acompanha a civilização. É tão importante que se pode afirmar, de modo
geral, como um axioma: toda civilização tem a ideia de pertença, isto é, de tribo, de família e, ao mesmo tempo, uma
ideia do Ser Maior que Si. É isto que daria, por assim dizer, certo sentido religioso. Mesmo que exista tese em contrário,
nenhum homem, pelo simples fato de existir e estar no mundo, que reflete (GIUSSANI, 2009), pode escapar de
perguntar-se: Qual é o significado último da existência? Por que existe a dor, a morte? Por que, no fundo, vale a pena
viver? Ou, a partir de outro ponto de vista: ‘De que e para que é feita a realidade? O senso religioso é, pois, o ímpeto
que move o homem rumo à busca da exigência primordial da razão humana: a do significado.
Em sua clássica obra de sociologia da religião, (BERGER, 1985) consagra um lugar importante à religião, entendida
como um dos sistemas de símbolos fundamentais dos seres humanos. Trata-se de um “edifício de representação
simbólica”, elaborado pelos seres humanos, e que para eles parece elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana,
garantindo-lhe uma nomização peculiar, ou seja, um enquadramento a padrões socialmente legítimos de conduta, de
significado e valor para sua vida.
Continua salientando o Autor, que a religião exerce para os que a ela aderem uma ordenação da realidade, servindo
de potente referencial contra o terror da anomia [de uma vida sem sentido]. Junto a esta função nomizadora, Berger
(1985) acrescenta outras importantes funções exercidas pela religião na sociedade, entre as quais a de integração das
experiências marginais ou limites. A religião exerce um singular papel de integração das experiências anômicas ou
fragmentadoras, facultando um significado para as crises biográficas. Há nela uma capacidade única de situar os
fenômenos humanos em um quadro cósmico de referência.
Por sua vez, o estudioso da religião Otto (1985) afirma que o Sagrado é um elemento de qualidade absolutamente
especial que se coloca fora de tudo aquilo que a razão – por si só – possa dá conta, pois ele é constituído no mundo
do inefável. Outra nomenclatura usada para este “inefável” é caracterizado pelo termo latino numem, isto é, força divina
manifestada na ação pessoal de uma ou outra divindade.
Esta é, portanto, uma dimensão a ser considerada pelo bem de compreensão do ser humano. Retirar esta dimensão
é perder uma grande chave de leitura das razões pelas quais o ser humano existe e ruma a uma teleologia, a um
destino com sentido. O senso religioso, dessa maneira, é um instrumento – mas antes de tudo é parte constitutiva do
seu ser – que permite ao ser humano cumprir a sua missão no mundo e de valorizar a vida daqueles que compõem o
seu núcleo humano
Na compreensão do senso religioso, é importante abordar sobre a religião. Mas o que é mesmo isso? Interessante
começar sob o ponto de vista etimológico. É necessário, pelos menos, recorrer a três vocábulos que não se
contradizem, mas estão em perfeita conexão.
A primeira compreensão é que religião vem de re-ligio que, por sua vez, indica a “ideia de culto e de prática religiosa”,
gerando na pessoa uma atitude de reverência à divindade, expressa através das liturgias, ritos cultuais, devoções.
Uma postura que leva o indivíduo à observância de leis divinas geradoras de uma atitude diante da vida e das coisas.
É considerável também a leitura que indica que “religião” vem de Re-legere, isto é, “re-ler, re-visitar”. Esta concepção
indica a necessidade de interpretar constantemente os textos que regem a doutrina religiosa. Não se trata de uma
leitura ao bel prazer, subjetivista ou privatista. Está mais para a linha do aggiornamento que do modismo pós-moderno.
É uma necessidade de uma atualização constante do dado religioso, a fim de que possa corresponder às expectativas
e exigências do mundo em que se encontra. Para dar um exemplo, o Cristianismo Católico tem como regra de
interpretação dos textos sagrados aquilo que se chama de Magistério Eclesiástico.
É igualmente legítimo compreender a religião como re-ligare. Na sua acepção semântica significaria “religar, atar, ligar
bem”. Nesta concepção, a compreensão de religião cumpre o papel de unir a humanidade à Divindade, mesmo que o
termo possa significar outros elementos, mas não se distancia do sentido de unir dois pólos que, podem até significar
lados desiguais. Pode-se intuir sem medo de errar que se trata da relação do homem com a divindade.
O caminho etimológico revela que a experiência do homo religiosus com o Sagrado se expressa de distintas formas. É
uma dimensão do ser humano que precisa ser contemplada, a fim de que o homem cumpra a sua identidade. Isso
acontece preferencialmente através dos símbolos, pois o ser humano é um ser fundamentalmente simbólico. Richter
Reimer (2004, p.82), afirma:
Etimologicamente, o termo símbolo vem da língua grega e refere-se a união de duas coisas. Afirma-se que entre os
gregos ao fazer um contrato, escrito em pedaço de cerâmica, era costume que este fosse quebrado em duas partes e
cada contratante levava uma. Qualquer reclamação posterior referente ao contrato deveria ser legitimada pela
reconstrução da cerâmica quebrada, ou seja, pela junção das duas partes que deveriam coincidir. Assim, a unidade
das duas coisas estaria resguardada.
Dentro do contexto religioso, o símbolo funcionaria como aquele elemento que une o homem à Divindade. O senso
religioso, a partir da intuição de Richter Reimer (2004), tem no símbolo uma linguagem primária e pré-hermenêutica,
sobretudo, porque não seria possível objetivá-lo em palavras. A celebração, a liturgia, é o lugar preferido para
manifestação do símbolo.
A admissão do senso religioso na vida da humanidade não se esgota na expressão do símbolo, mas também permite:
1. Reconhecer que o ser humano é uma criatura, um ser criado. Daí nascem a compreensão de criaturalidade e seus
desdobramentos na vida da pessoa;
2. Viver na dimensão de finitude, vendo na efemeridade da vida uma oportunidade para o crescimento humano e para
valorização do outro e um momento privilegiado para revisitar a própria vida, observando a condição de finitude;
3. Perceber que, mesmo sabendo da importância do homem entre os seres criados, ele não se basta a si mesmo. Isto
permite admitir que, de certo modo, o homem também é relativo diante de uma imensidão e de uma grandeza do
mundo que o ser humano não pode dar conta sozinho;
4. Afirmar que este ser humano, embora tenha em si o germe de eternidade, ele é mortal. A vida chega a um ponto em
que se gasta e se esvai. O homem é o único ser que sabe disso.
Contudo, sob o prisma do mesmo senso religioso e contemplando uma abertura ao Transcendente, dentro de uma
racionalidade especulativa e de um silogismo lógico, também é possível afirmar:
1. Pela condição de criaturalidade, é necessário reconhecer e admitir a ideia de um ser primeiro e, sobretudo, a
possibilidade do Criador, que contemplaria a existência que vai desde a compreensão de um “Motor Imóvel”, como
fonte primeira, até a afirmação de um Deus Criador de todas as coisas;
2. A admissão do Infinito como algo – ou alguém – para onde a humanidade tende;
3. O Absoluto não é algo irrealizável nem distante do cotidiano, mas pode ser um Deus Encarnado, com feições
morenas e que participa da rotina humana;
4. Este Absoluto é Senhor da Vida e, por isso mesmo, traz consigo o dom da imortalidade. Venceu a vida e matou a
morte, a fim de que pudesse ser conhecido o império da vida. Nisso evidenciaria o destino da imortalidade a que o
homem tem “direito”.
O senso religioso, a partir do quadro desenhado anteriormente, tem como suporte de subsistência a fé. Pois, “a fé fala
da vida como um princípio transbordante, que fundamenta tudo que o ser humano é e faz e que vem a ele na
experiência gratificante da dádiva”. (PRETTO, 2003, p. 74)
Por isso, a compreensão das grandes características do ser humano pode ser identificada como aquele ser que admite
a ideia de criatura, sabe que a vida é finita e que, embora tendo primazia entre as criaturas, não se basta a si mesmo
e que é relativo diante da imensidão do mundo e, ainda, que a morte é umas das experiências mais significativas,
embora, pelas condições mencionadas, pareça um espantalho. Este é o homem!
Ao mesmo tempo, o mesmo ser humano é capaz de perceber diante si, como no silogismo lógico, que para
corresponder à situação de criatura é preciso admitir a presença do Criador que, por sua vez, traz consigo a dimensão
de Infinito, de Absoluto e de Imortal. Este é Deus! “Deus, com efeito, não é um objeto cuja existência se demonstra e
sim uma pessoa que se encontra na vasta trama das relações humanas. Trata-se de um encontro surpreendente, mas
certamente gratificante”. (PRETTO, 2003, p. 25)
Apresentação
Marcelo Couto Dias
O ser humano, em todas as épocas e culturas, usou a razão para buscar o significado da realidade. As artes, desde
as pinturas rupestres, documentam vivamente essa busca, esse desejo de conhecer, que facilmente associamos à
filosofia ou à ciência. Na verdade, cada gesto humano exprime ora a busca ora o afirmar-se de um significado.
Essa busca se expressa naquelas perguntas que estão ligadas à própria raiz do agir humano.
Estas perguntas estão no coração de cada homem, como bem demonstra o gênio poético de todos os tempos e de
todos os povos, que, quase como profecia da humanidade, repropõe continuamente a séria pergunta que torna o
homem verdadeiramente tal. Exprimem a urgência de encontrar um porquê da existência, de todos os seus instantes,
tanto das suas etapas salientes e decisivas como dos seus momentos mais comuns. (JOÃO PAULO II, 1998, p. 46-
47).
Diversas foram as expressões que a literatura e a arte em geral deixaram dessas perguntas que “estão no coração de
cada homem”. Na música popular brasileira a natureza dessas perguntas ficou documentada na canção O que será (à
flor da pele), de Chico Buarque.
Pelo simples fato de viver, independente da sua origem étnica ou cultural, da sua condição social ou educacional, o
ser humano se defronta ao longo da vida com estas perguntas: “Qual é o sentido exaustivo da existência? Qual é o
significado último da realidade? Por que no fundo vale a pena viver?”. Segundo o teólogo italiano Luigi Giussani (1997,
p.18), “o conteúdo do senso religioso coincide com estas perguntas e com qualquer resposta a estas perguntas”. Além
disso, o Autor nos lembra que os adjetivos presentes nestas perguntas indicam a necessidade de uma resposta total,
definitiva.
Porém, “quanto mais a pessoa avança na tentativa de responder a tais perguntas, tanto mais lhes percebe a potência
e tanto mais descobre a própria desproporção em relação à resposta total” (GIUSSANI, 2009). Mais uma vez é na arte
que podemos encontrar uma boa tradução desse sentimento de desproporção. A escritora mineira Adélia Prado (1991,
p. 187) sintetizou essa percepção nos últimos versos do poema Desenredo:
Saiba mais
Senso religioso e pecado
O senso religioso inevitavelmente traz sempre consigo o senso do pecado. O pecado existe também para o ateu,
teórico ou prático. Para um marxista convicto, para o qual o partido é tudo, é pecado qualquer desvio ou traição,
qualquer atitude que não sirva aos programas do partido; para um homem para o qual a saúde é tudo, será pecado
qualquer coisa que de algum modo não salvaguarde aquele quid a que, como ídolo, ele dá total devoção.
Mais abertamente, dá-se o nome de pecado, na história da religiosidade, àquela incoerência pela qual um indivíduo
afirma teoricamente um determinado quid como sentido último do real e, depois, na vida prática, de fato, sem que
chegue a afirmar isto, molda a sua ação segundo uma outra referência última; isto é, molda a sua ação de maneira tal
que, interpretada com atenção, implica como quid último – pelo qual é dominada – um quid diferente daquele que se
afirma teoricamente: trata-se, para usar termos tradicionais, da incoerência entre a fé e as obras.
GIUSSANI, Luigi. O senso de Deus e o homem moderno: a questão humana e a novidade do cristianismo. Trad. Durval
Cordas, Paulo Afonso E. de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.