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SEÇÃO 1 – O PARADOXO TEOLÓGICO DA RACIONALIDADE CIENTÍFICA

Paradoxo
Giorgio Borghi
Um paradoxo é algo contrário ao que se espera e que se considera normal e lógico. Quando se fala em racionalidade
científica, na nossa cultura ocidental, se pensa que tal racionalidade não tem nada a ver com a Teologia, quando até
não se opõe a ela. Objetivo desta nossa aula é mostrar que o conhecimento científico, desde o seu nascimento na
Grécia antiga, não consegue dar conta satisfatoriamente do que se propõe a fazer, lançando mão somente dos recursos
da racionalidade científica.
Para colocar corretamente a questão, precisamos desenvolver inicialmente uma reflexão sobre o conhecimento
humano e, para isso, pode nos ajudar a Metafísica de Aristóteles, que começa com a seguinte afirmação: “Todos os
homens têm, por natureza, desejo de conhecer”. Na realidade, para o ser humano, o conhecimento é mais do que um
simples desejo; é uma verdadeira necessidade vital.
O que caracteriza o ser humano como ser racional é justamente a sua impossibilidade de viver sem ter, ou tentar
construir, um horizonte de sentido da vida humana no mundo. Não interessa que este sentido seja ou não
‘cientificamente’ elaborado; pode ser o mais primitivo, mítico, mágico ou esquisito que possamos imaginar, mas o ser
humano sempre precisa de um horizonte de sentido. Sem isso, morre ou se mata: as várias formas de depressão,
como também o suicídio, estão relacionadas a esta impossibilidade de dar um sentido à vida. Um sentido que não é
predefinido ou dado, mas sim encontrado ou inventado pelo próprio ser humano através do processo do conhecimento.
Assim, poderíamos retraduzir a afirmação aristotélica da seguinte maneira: “todos os homens têm, por natureza,
necessidade de conhecer”.
Dando mais um passo, podemos agora nos perguntar que tipo de conhecimento é este. Aristóteles, sempre na primeira
página da sua metafísica, faz uma distinção importante e interessante entre o conhecimento animal e o conhecimento
propriamente humano. O conhecimento animal se processa simplesmente pela sensação e, no máximo, pela memória,
que registra dados da sensação que neles determinam o que nós hoje chamamos de reflexos condicionados. No ser
humano, os dados da sensação, armazenados pela memória, geram a experiência, a qual, por sua vez, possibilita o
conhecimento científico ou a ‘arte’, na linguagem aristotélica. O que caracteriza o conhecimento científico é o fato de
saber o ‘por que’ das coisas e não simplesmente o ‘que’. O conhecimento se torna um conhecimento de arte ou de
ciência quando eu posso explicar o porquê daquilo que estou dizendo ou fazendo.
Podemos, então, concluir que o conhecimento humano é um conhecimento essencialmente ‘hermenêutico’, ou seja,
interpretativo, vital para o ser humano, desde o seu aparecimento como homo sapiens na face do nosso planeta. O
salto qualitativo do reino animal ao reino humano é determinado pela passagem de um tipo de conhecimento puramente
constatante a um tipo de conhecimento hermenêutico/interpretativo. Todas as tentativas de dar uma resposta de
sentido à vida humana no mundo, desde sempre, são expressões as mais variadas desta racionalidade humana, que
não se satisfaz com o ‘que’ e sempre procura o ‘por que’ do mundo e da vida: as grandes elaborações mitológicas,
religiosas, filosóficas, como também científicas, procuram a mesma coisa, com modalidades e caminhos diferentes.

O PARADOXO TEOLÓGICO NA ORIGEM DA RACIONALIDADE FILOSÓFICO-CIENTÍFICA

Não podemos esquecer que a filosofia nasce como ciência e a ciência nasce como filosofia e que este nascimento se
configura simplesmente como o aparecimento de uma nova modalidade daquela racionalidade humana que já se
manifestara, de forma sublime, nas anteriores grandes criações culturais do espírito humano. Esta nova forma, que
podemos chamar de racionalidade filosófico/científica, se constitui como início e causa de toda a civilização ocidental,
procurando um princípio explicativo da realidade no próprio mundo físico.
Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser a água (é por isto que ele declarou também que a terra assenta sobre a água),
levado sem dúvida a esta concepção por observar que o alimento de todas as coisas é úmido e que o próprio quente
dele procede e dele vive. (ARISTÓTELES, 1979, p. 16-17)
Nesta passagem de Aristóteles, encontramos a descrição do novo método científico inaugurado por este novo tipo de
racionalidade. Até aqui, o ser humano, que não consegue se satisfazer com a simples constatação do “que”, procurava
o “por que” das coisas da natureza (physis) e da vida numa dimensão mítica, mágica, religiosa, mas, de qualquer forma,
sempre transcendente, externa à própria realidade física. Agora começa a pensar que este ‘por que’ talvez se possa
encontrar dentro da própria realidade do mundo físico e através de um caminho (em grego: metá ódos = método) que
se caracteriza justamente como caminho (método) científico, segundo aquela primeira descrição deste método que
acabamos de ler no texto aristotélico: “levado sem dúvida a esta concepção por observar que...”.
Esta é a base do método de todas as ciências, quando visam estabelecer princípios explicativos de valor universal
(concepções partilhadas), baseadas na observação empírica e na experimentação. Este novo tipo de racionalidade
filosófico/científica se apresenta como alternativa às formas de racionalidade anteriores, que podemos considerar mais
‘teológicas’, enquanto recorrem a elementos explicativos transcendentes. Mas, logo na sua aurora, esta racionalidade
científica apresenta aquele paradoxo que queremos aqui analisar: na hora em que pensa de poder finalmente fornecer
uma causa última explicativa do universo físico (a famosa arké) que, enquanto elemento físico, dispense qualquer
referência a explicações de tipo mítico/teológico, acaba propondo soluções que desandam no cientificamente
inexplicável.
A água de Tales, como todos os outros elementos ‘físicos’ apresentados pela filosofia nascente como princípios
científicos explicativos do universo, para poder se apresentar como causa última, precisa ser contemplada com
características que acabam sendo teológicas ou metafísicas, e não simplesmente físicas. Qualquer coisa, para ser
realmente causa explicativa última, não pode ter outra causa que a tenha determinado; isto é, deve ser eterna e infinita.
Tales é um ‘naturalista’ no sentido antigo do termo e não um ‘materialista’ no sentido moderno e contemporâneo. Com
efeito, sua ‘água’ coincidia com o divino. Desse modo, introduz-se nova concepção de Deus: trata-se de uma
concepção na qual predomina a razão, e destina-se, enquanto tal, a eliminar logo todos os deuses do politeísmo
fantástico-poético dos gregos. (REALE/ANTISERI, 2004, p. 19)
A arké dos pré-socráticos é aquele elemento ‘físico’ que permanece eternamente, para além de todas as
transformações que constatamos na natureza; é aquilo de onde tudo vem e para onde tudo volta e que, existindo desde
sempre e para sempre, se torna o princípio ordenador e explicativo do universo, enquanto princípio de conhecimento
ordenador do caos. Mas este princípio, na realidade, não é um simples elemento físico, e sim um princípio
hermenêutico/explicativo com características de tipo teológico. Nietzsche percebe e explicita muito agudamente isso,
quando, comentando o pensamento de Tales, escreve:
Ao expor essa representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções
físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele (...) O que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma
crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços
sempre renovados para exprimi-la melhor – a proposição: ‘Tudo é um’. (NIETZSCHE, 1996, p. 44)
Neste texto, falando do filósofo que a história reconhece como aquele que, pela primeira vez, tentou propor uma
explicação ‘científica’ da realidade, dispensando o recurso à mitologia, Nietzsche diz que tudo isso é resultado de “uma
crença que tem sua origem em uma intuição mística” e, para tornar ainda mais intrigante o paradoxo, acrescenta que
isso nós o “encontramos em todos os filósofos”.
A racionalidade filosófico/científica se apresenta como alternativa à racionalidade mítico/teológica e representa
evidentemente uma nova modalidade de processamento da racionalidade humana. Não podemos e não queremos
dizer que é tudo a mesma coisa; só queremos chamar a atenção sobre o fato de que a racionalidade científica, desde
o seu nascimento até hoje, não consegue se desvencilhar do recurso a algo cientificamente inexplicável e que
poderíamos chamar de monoteísmo filosófico da ciência.

A VERDADE SE INVENTA OU SE ENCONTRA?


Depois de um século e meio do nascimento da ‘ciência’, nos deparamos com um movimento cultural que tenta encontrar
uma saída deste monoteísmo filosófico: o movimento sofista. Os sofistas eram pensadores oriundos das regiões onde
se tinha desenvolvido todo o pensamento e o debate dos primeiros cento e cinqüenta anos de filosofia. A filosofia tinha-
se originado também da insatisfação frente a uma grande e contrastante variedade de explicações mitológicas: cada
povo e cada cultura tinham mitos diferentes para explicar uma mesma realidade. A nova forma de racionalidade,
justamente porque baseada na universalização racional de observações empíricas, devia finalmente fornecer uma
explicação única e universalmente reconhecida como verdadeira, enquanto científica. Na realidade, o que aconteceu
foi exatamente o oposto: a variedade e a divergência das explicações ‘científicas’ foram ainda maiores que na
mitologia.
Os sofistas percebem claramente que o que está em jogo é a própria visão de verdade e que poderíamos encontrar
uma saída do paradoxo teológico do conhecimento científico somente dando um novo sentido ao que consideramos
como verdade científica. Se a cientificidade da verdade fosse determinada unicamente pela convergência de opiniões
e pela autarquia da linguagem, então o problema estaria resolvido. O que complica a racionalidade científica é querer
encontrar uma verdade objetiva, predeterminada pela própria natureza das coisas.
Górgias, um dos mais importantes pensadores sofistas, escreve uma obra cujo título expressa de forma clara e
provocatória o núcleo desta nova visão: “Sobre a natureza, ou seja, sobre o não-ser”. Isto significa: a natureza das
coisas não é nada posto e predeterminado como ser em si; simplesmente se torna o que nós decidimos que seja
através da convergência das nossas opiniões. É o homem a medida explicativa, hermenêutica, criadora e ordenadora
de todas as coisas, e não uma arké preexistente e independente de nós, que não teria como não ter características
teológicas. Assim, podemos nos livrar do paradoxo teológico da racionalidade científica só declarando expressamente,
como e com Górgias, que não existe nenhum outro princípio explicativo independente de nós e do poder criativo da
nossa fala.
Mas esta ‘solução’ sofistica é rejeitada decididamente por Sócrates, que percebe toda a seriedade do que está em
jogo, e que se constitui como iniciador daquela grandiosa corrente de pensamento que reconhece expressamente a
dimensão ‘teológica’ como constitutiva do processo do conhecimento humano. A verdade, segundo Sócrates, não se
inventa, mas simplesmente se encontra, porque já existe antes e independentemente de nós, no mundo da vida.
Pelo que podemos perceber nos escritos platônicos, a partir de Sócrates não existe mais nenhum receio de falar em
‘deus’ (no singular e com letra minúscula), para indicar este fundamento do conhecimento humano que nem por isso
deixa de ser um conhecimento filosófico/científico; pelo contrário, o conhecimento precisa justamente disso para ser
um conhecimento não sofístico, no sentido atual da palavra. Assim a teologia aparece inicialmente não como discurso
sobre Deus em sentido religioso, e sim como dimensão constitutiva desta nova forma de conhecimento que é o
conhecimento filosófico/científico.
Com efeito, a cada vez, todos os que estavam presentes pensavam que eu fosse sábio naquelas coisas sobre as quais
refutava o outro. Ao contrário, cidadãos, dá-se o caso que, na realidade, sábio é o deus e que seu oráculo quer dizer
justamente isto, ou seja, que a sabedoria humana tem pouco ou nenhum valor. (PLATÃO, 1996, p. 71)
O verdadeiro conhecimento (a sabedoria) pertence ao deus: a verdade, como construção sofística puramente humana,
“tem pouco ou nenhum valor”. Platão, desenvolvendo ulteriormente as convicções e intuições socráticas, elabora a
hipótese das ideias como princípios formais de qualquer conhecimento verdadeiro e imagina a idéia de Bem como
síntese e referencial supremo da Verdade e da Justiça. Ele compara esta idéia, que é de tipo teológico, ao sol que
ilumina e é fonte de vida de todas as coisas. Sem a luz, não adianta ter bons olhos: não conseguiremos enxergar nada.
Assim, se a nossa racionalidade não for iluminada pela luz do Bem, não é possível nenhum conhecimento
humanamente verdadeiro.
Nesta grande corrente da filosofia grega, o percurso conduz à teoria do Motor Imóvel de Aristóteles, que, embora
rejeitando o dualismo platônico, não pode dispensar o recurso à ideia, para ele cientificamente necessária, de um Ser
perfeito que não pode possuir as características do mundo físico. O filósofo e cientista Aristóteles não desconhece
minimamente a importância da racionalidade científica; pelo contrário, poderíamos dizer que é o pensador que
sistematiza a fundamentação da racionalidade científica, através da elaboração da lógica formal, que é a primeira
grande elaboração de ‘metodologia científica’. Mas a cientificidade, para evitar as ‘argumentações sofísticas’, tem que
chegar logicamente até a fundamentação ‘teológica’ do Motor Imóvel.

O PARADOXO TEOLÓGICO/METAFÍSICO NA MODERNIDADE


Dando agora um pulo de quase dois mil anos, é interessante observar que podemos encontrar a elaboração desta
dimensão teológica também no pensador que é considerado o pai da modernidade. Descartes elabora toda a
fundamentação teórico-metodológica da ciência moderna recorrendo à idéia de Deus como garante da consistência e
confiabilidade científica do conhecimento. Este deus de Descartes é um deus filosófico, como o Motor Imóvel de
Aristóteles, mas é assumido como pressuposto central da ‘nova ciência’. A ciência moderna fará de tudo para se livrar
deste paradoxo teológico, inscrito na sua fundamentação inicial.
Kant, no século XVIII, sente a necessidade de uma análise crítica da razão humana para poder verificar se e em que
medida o processo do conhecimento humano pode dispensar o recurso a algo que não seja só cientificamente fundado.
A conclusão à qual ele chega é muito significativa: podemos dispensar o recurso ao não ‘científico’, diz ele,
considerando como conhecimento somente o processo que se refere à percepção da realidade sensível. Mas,
acrescenta Kant, o ser humano morreria asfixiado, se limitando somente ao conhecimento fenomênico/científico.
Que o espírito do homem renuncie de uma vez por todas às inquirições metafísicas é tão pouco de esperar como nós
suspendermos completamente a nossa respiração para não respirarmos sempre um ar impuro. (KANT, s/d, p.166)
Então Kant, não querendo se distanciar do espírito iluminista da época, encontra uma saída meio sofística, teorizando
que, em relação a esta outra dimensão da racionalidade humana, não podemos falar em conhecimento, e sim somente
em pensamento. Mas, será que é possível conhecer sem pensar? O próprio Kant reconhece que o simples
conhecimento fenomênico/científico é um “estreitamento” da razão humana. “As idéias transcendentais servem, pois,
se não para nos instruir positivamente, pelo menos para eliminar as afirmações audaciosas do materialismo, do
naturalismo e do fatalismo, que estreitam o campo da razão”. (Idem, p.160)
Numa ulterior tentativa da modernidade de se livrar do paradoxo teológico do conhecimento científico, o Positivismo
proclama solenemente a superação do tempo da teologia e da metafísica e a instauração do conhecimento
científico/positivo, como maturidade do homem e da história.
Em nome do passado e do futuro, os servidores teóricos e os servidores práticos da humanidade vêm tomar
dignamente a direção geral dos negócios terrestres, para construir, enfim, a verdadeira providência, moral, intelectual
e material; excluindo irrevogavelmente da supremacia política todos os diversos escravos de Deus, católicos,
protestantes ou deistas, como sendo, ao mesmo tempo, atrasados e perturbadores. (COMTE, 1996, p. 97)
Curiosamente, porém, na hora em que declara o fim da época metafísica e religiosa, o positivismo se apresenta como
uma religião, a nova religião da humanidade, com tanto de Catecismo e de Igrejas. O próprio Nietzsche qualifica a
ciência moderna de ‘nova piedade’. Em um artigo da Gaia Ciência, cujo título é “Em que sentido também nós somos
piedosos”, mostra a ciência de tipo positivista tomando o lugar da religião.
Nossa crença na ciência repousa, ainda e sempre, em uma crença metafísica – nós que procuramos hoje o
conhecimento, nós sem deus e antimetafísicos, nós tiramos o nosso fogo do incêndio que uma crença milenar ateou,
essa crença cristã, que era também a de Platão, a crença de que Deus é a verdade, que a verdade é divina.
(NIETZSCHE, 1996, p. 196-197)
Assim, a nova religião ‘científica’ da humanidade se apresenta como uma volta ao estágio mitológico e as
características da fase positiva se parecem bastante com aquelas que Comte atribui ao estágio teológico.

PARA ALÉM DO PARADOXO


Quanto maior o progresso científico, tanto mais nos deparamos com a realidade da complexidade e do mistério que
envolve a vida e o mundo.
O macrocosmo como o microcosmo denunciam a cada dia os limites do conhecimento científico e evidenciam a
necessidade vital de uma racionalidade cuja ‘sanidade’ implica a sua abertura ao mistério. “Ser racional – se pergunta
hoje Edgar Morin – não seria compreender os limites da racionalidade e da parte de mistério do mundo?”. (MORIN,
2001, p. 57) E ele mesmo responde nestes termos: “A verdadeira racionalidade conhece os limites da lógica, do
determinismo e do mecanicismo; sabe que a mente humana não poderia ser onisciente, que a realidade comporta
mistério”. (MORIN, 2002, p. 23)
Acredito que o contexto cultural contemporâneo abre perspectivas inéditas e extremamente fecundas de diálogo entre
teologia e ciência, fé e razão. Se a racionalidade humana se manifesta não só como conhecimento científico, mas
também, e sobretudo, como busca de uma “significação” da própria vida e do próprio mundo, a fé se manifesta não
como uma fuga da racionalidade, mas sim como uma modalidade da própria racionalidade humana.
Efetivamente, a fé é de algum modo ´exercitação do pensamento`; a razão do homem não é anulada nem humilhada,
quando presta assentimento aos conteúdos de fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente. (JOÃO
PAULO II, n. 43)
Assim, a dimensão teológica da racionalidade se manifesta na radicalização das perguntas do ser humano em busca
de um ‘por que’ que não se satisfaz com respostas puramente científicas. O processo do conhecimento humano se
desenvolve como processo interpretativo de uma realidade que se caracteriza como Mistério, isto é, como algo que
pode ser “significado”, sem nunca poder esgotar totalmente a riqueza da sua significação.
A nossa possibilidade de conhecimento tem limites (Gn 2,16-17): não podemos “comer” da árvore do conhecimento.
Comer da árvore do conhecimento significa querer tomar conta do próprio Mistério da vida. Mas essa tentativa
prometeica, constante tentação do conhecimento humano, acaba reduzindo o Mistério à nossa medida, com inevitáveis
conseqüências de medo, violência e morte (Gn 3 e 4). Sem falar do insucesso desta tentativa, que se manifesta na
confusão das línguas, isto é, na incapacidade das linguagens humanas de elaborar uma significação unívoca e última
do Mistério da Vida (Gn 11,1-9).
Logo depois da narração do episódio da Torre de Babel, em Gênesis 12 começa a história de Abraão. Abraão aceita o
chamado de Iahweh de sair da terra da pretensão humana que quer tomar conta do Mistério e se torna, assim, o pai
dos que têm fé. Pai de todos os que, ao longo dos séculos, buscarão a significação suprema da vida e do mundo
valorizando todas as dimensões do espírito humano. “A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o
espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”, escrevia o Papa João Paulo II na abertura da carta
encíclica Fides et Ratio.
O que caracteriza o ser humano é a busca incansável da verdade, mas, para se aproximar dela, ele precisa valorizar
todas as dimensões da sua racionalidade. Assim, finalmente, a fé deixará de ser um paradoxo, e se tornará uma
indispensável aliada da razão para que a humanidade se erga “do tatear e rastejar vermiformes das ciências isoladas”,
pressinta “a solução última das coisas” e vença, “com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do
conhecimento”. (NIETZSCHE, 1996, p. 46) Somente com as asas da fé e da razão o ser humano conseguirá voar cada
vez mais alto, sem medo de se perder na escuridão luminosa do Mistério.

Seção 2 – Teologia e Humanismo

Teologia, para quê?


Frei Jorge Rocha
A Universidade Católica do Salvador tem o componente curricular Teologia e Humanismo no bojo de sua matriz que
compõe o Eixo de Formação Geral e o o seu Projeto Pedagógico, não porque seja identitariamente católica, mas
porque é uma universidade de verdade. Essa concepção não causa desmerecimento ou desqualificação a nenhuma
instituição de ensino superior, mas pontualiza e distingue a natureza de uma universidade, cuja missão é: contribuir
para a transformação da sociedade formando profissionais cidadãos, críticos e comprometidos com a solução dos
problemas e desafios da realidade social, privilegiando as dimensões ética, social e humana, a inclusão e a produção
de conhecimento científico-tecnológico.
Ademais, a Universidade Católica do Salvador, entre outros, também apresenta como valores: compromisso com a
construção de uma sociedade identificada com os ideais de justiça, de liberdade, de igualdade, de promoção da paz,
dos valores éticos, dos direitos humanos, do equilíbrio das relações homem-natureza. E ainda: formação de
profissionais competentes técnica e cientificamente, que se afirmem como cidadãos conscientes de seus direitos e
deverees empenho na promoção do diálogo entre as ciências, as técnicas, as artes, a filosofia e a teologia.
Você está tendo contato com uma disciplina / ciência que se chama Teologia. A primeira pergunta que você pode fazer
é esta: Teologia, para quê? Antes mesmo de responder à legítima pro-vocação, é preciso fazer, mesmo em linhas
gerais, o que é Teologia?
Uma primeira maneira de conhecer algo é procurar saber qual é o caminho etimológico, pois cada palavra carrega
consigo um tributo à sua etimologia. A partir disso, é possível afirmar que a palavra “teologia” vem da língua grega
formada por dois vocábulos, a saber: θεός (theós) e λόγος (lógos). Não é preciso ser um expert em língua grega para
saber disso. A nossa língua portuguesa tem muitas palavras cuja origem provem dessa língua. Alguns exemplos:
biografia, cacofonia, biologia, democracia, biblioteca, ortografia e tantas outras.

O conceito de teologia
No que se refere estritamente ao conceito de teologia existem duas tensões básicas. A primeira se refere com o que
quer dizer theós ou Deus, a segunda com o que se quer dizer com logos (logía). A tradição do pensamento grego tende
a ver Deus como impessoal, como fundamento ontológico. A tradição judaica tende a vê Deus com características
pessoais, como revelando-se com seu nome a um povo concreto no espaço-tempo determinado. Igualmente no que
se refere a logos. Este é um conceito grego muito complexo. Basicamente, trata-se da racionalidade objetiva de que o
universo é dotado, sendo o que torna cosmos e não caos. Mas se trata também da racionalidade do ser humano, que
de alguma forma, corresponde àquela, estando ai a condição de inteligibilidade da mesma (BOFF, 1999, p.119).
A esta altura, pode-se afirmar que a Teologia é a ciência que estuda o Absoluto (Deus), à luz da razão e da fé. Tal
movimento parte-se do pressuposto de que crer seja um ato, no qual, evitam-se dois extremos, a saber: o fideísmo e
o racionalismo. Assim se rechaça, da mesma maneira, o axioma que se criou no desenrolar dos séculos, eis o seu
resumo a seguir: aquele que sabe não crer e o que crer não sabe! Seria, portanto, uma convivência impossível: aqueles
que crêem terão que renunciar ao saber e aqueles que sabem nunca poderiam crer.
Importante saber:
O uso adequado da razão é imprescindível para a Teologia. A ciência sobre Deus adquire assim a condição de sólido
e verdadeiro conhecimento humano e se livre de sérios perigos, como o fideísmo e o racionalismo. A razão introduz na
Teologia o sentido crítico necessário e as comprovações respeitosas do conteúdo da fé permitem ao crente satisfazer
as legítimas perguntas da sua inteligência. (Disponível em: http://www.presbiteros.com.br/site/razao-humana [Acesso
em ago 2015]).
A Teologia será sempre uma reflexão crítica e que obedece a um rigor cientifico, a um método, a um objeto e a objetivos
específicos. “É uma ‘arte’ no sentido clássico de procedimentos, servindo à produção de um resultado determinado”
(BOFF, 1999, p.15). É a arte de apresentar ao mundo o objeto e o sujeito da fé, com o devido método e fazendo a
necessária articulação com os elementos que a compõem e sempre dialogando com as ciências. Mas...
Teologia é um jeito de falar sobre o corpo. O corpo dos sacrificados. São os corpos que pronunciam o nome sagrado:
Deus... A teologia é um poema do corpo, o corpo orando, o corpo dizendo as suas esperanças, falando sobre o seu
medo de morrer, sua ânsia de imortalidade, apontando para utopias, espadas transformadas em arados, lanças
fundidas em podadeiras... Por meio desta fala os corpos se dão as mãos, se fundem num abraço de amor, e se
sustentam para resistir e para caminhar (Rubem Alves)

Quem é o homem?
Todas as ciências querem saber quem é o homem. Do mais elementar ao mais complexo sempre se quer saber mais
sobre esta obra-prima, sobre este mistério. A literatura também registrou essa preocupação. Carlos Drummond de
Andrade em “Especulações em torno da palavra homem” indaga sobre quem é homem?
Mas, quem é o homem? Uma resposta à luz da Teologia versa na linha da imago Dei, isto é, uma doutrina de que o
Homem foi criado à imagem Divina. É a resposta bíblica a como surgiu o Homem, criatura singular entre as existentes.
O registro bíblico é o seguinte: “Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus. Ele o criou homem
e mulher” (Gn 1, 27). Vamos chegar mais perto e vejamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica:
O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos por Deus: por um lado, em perfeita igualdade como pessoas
humanas e, por outro, em seu ser respectivo de homem e de mulher. "Ser homem, 'ser mulher" é uma realidade boa e
querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade inamissível que lhes vem diretamente de Deus, seu Criador.
O homem e a mulher são criados em idêntica dignidade, "à imagem de Deus". Em seu "ser-homem" e seu "ser-mulher"
refletem a sabedoria e a bondade do Criador (CIC, n. 369).

Teologia, a que serve?


Parece um “papo cabeça” e, talvez, distante do mundo real, mas aqui reside um engano. O primeiro termo já seria
suficiente para dizer a que veio. Mas oferecemos como reforço, um segundo vocábulo que compõe a nossa disciplina
é Humanismo. O que a Teologia tem a ver com a vida dos homens e mulheres? A Teologia, antes que seja uma
tentativa de compreensão de quem seja Deus, é uma afirmação de quem é o homem. Então, independente de crença
ou de opções religiosas, está na hora de fazer um esboço de resposta, sem cair num utilitarismo servil: Teologia, a que
serve?
• A Teologia é um tipo de conhecimento que tem um objeto e um modo de abordagem próprios, com especialistas que
interpretam, segundo sua tradição, textos originais que ajudam no comportamento atual, facilitando uma melhor relação
com as pessoas;
• A raiz das Universidades está no século IX com as escolas monásticas da Europa, especialmente para a formação
dos monges, mas que recebiam também estudantes externos. Depois, no século XI surgiram as escolas episcopais;
fundadas pelos bispos, os Centros de Educação nas cidades, perto das Catedrais. No século XII, surgiram centros
docentes debaixo da proteção dos Papas e Reis católicos, para onde acorriam estudantes de toda Europa. Isso indica
que existe uma hipoteca de gratidão à Teologia pelo início das universidades;
• A Teologia quer lembrar constantemente que somos homens humanos, em constante processo de hominização, a
partir de uma compreensão de Absoluto que nos permite afirmar que humano assim só Deus;
• A Teologia re-flete, no sentido de enviar luz, a luz da razão, da inteligência, da lógica e de suas regras fundamentais;
• A Teologia deixa clara a esperança e explica o amor (1Cor 13, 13). Teologia é a fé no sentido da esperança e das
razões do amor, da fé e da esperança (cf. 1Pd 3, 15).
(Vamos ler juntos “As Razões do amor” de Rubem Alves? Você encontra o texto neste
site: www.jorgerocha.com.br (Acadêmico – Artigos)
A tarefa da Teologia na vida das pessoas, antes que seja um tipo de conhecimento, uma área do saber e que tenha
sustentado o início das universidades no mundo, ela [a Teologia] quer dar ao ser humano um sentido para a vida. Para
se adquirir o sentido da vida é indispensável reflexão, crítica e compromisso de participação. Não pode haver sentido
para a vida quando se vive na mesmice e quando se vive fechados em falsas fortalezas que criamos para combater
falsos inimigos. Bauman (2003), lembra que o lugar do sentido pleno da vida é a trincheira, a vanguarda, a insatisfação.
Sim, a insatisfação, uma vez que o sentido de nossa vida só aparece quando nos dispomos a lutar contra tudo aquilo
que consideramos desagradável, injusto e desumano.
Pode-se pensar no sentido da vida na fama e na glória, nos bens materiais e no poder. A Teologia quer lembrar que
todo este percurso é meio e não fim em si mesmo. A Teologia quer lembrar uma dimensão que transcende. A
transcendência, segundo o dicionário, é fazer um caminho ou percurso para o mais além do meu eu humano; é viajar
pelo saber das outras realidades que nunca tinha passado pela mente do próprio sujeito em estudo, mas para o seu
objeto, isto é, a realidade do que está a ser estudada; é descobrir aquilo que era o desconhecido; é largar-se do meu
egocentrismo.
Esta compreensão de transcendência faz com que o projeto humano não se esvazie nos infortúnios, nos insucessos
temporários nem tampouco seja fruto de uma alegria momentânea. Uma vida movida pela transcendência encontra
motivação no saber mais para servir melhor. Ademais, o mínimo necessário nunca será meta, mas ponto de partida
em busca do máximo permitido que não se confunde com acúmulo, mas revela uma cultura da partiha, do encontro e
do valor supremo do outro e sua dignidade humano divina.

Aprofundando a conversa
A experiência do Sagrado tem na universidade um espaço privilegiado, sobretudo, porque ela é universitas, isto é,
aberta ao conhecimento, aberta às demandas da sociedade e fiel à sua história. Por causa disso, o lugar da Teologia
é na universidade.
A reflexão feita por Manzatto (2015) é pertinente e reflete bem a problemática atual. É verdade que o mundo de hoje é
plural, onde coexistem diferentes religiões e diferentes referenciais de significação. Inclusive, ou, sobretudo, nos
ambientes universitários se percebe tal pluralismo que não é visto como ruim, mas sim como uma riqueza de
humanidade.
O discurso teológico católico não é o único presente nas universidades mesmo católicas, até porque os que ali estudam
ou trabalham não são todos católicos. O discurso da teologia e da religião insere-se, pois, nesse ambiente de
pluralidade, de flexibilidade, de atenção à diferença E aí há dois elementos a serem levados em conta.
O primeiro é que, por isso, o discurso teológico deve constituir-se não como um discurso de força ou de “dono da
verdade”, mas sim se posicionar numa atitude de diálogo, de escuta também, de quem reconhece o direito de palavra
a discursos vindos de outros horizontes que, igualmente, não se situem como discursos de força, mas possibilitem o
diálogo desejado, a cooperação entre as pessoas e a convivência na busca da paz.
Por isso, o discurso teológico, mesmo na universidade católica, não precisa ser caracterizado como discurso
catequético, proselitista ou apologético, embora isso não lhe seja proibido nem diminua sua importância.
Mas há um segundo elemento a ser afirmado, exatamente o direito do discurso teológico permanecer católico e ser
realizado. A afirmação da identidade do discurso teológico não é vergonhosa e é mesmo exigência do testemunho da
fé. Furtar-se a isso ou proibi-lo por razões que querem afirmar apenas a referência da fé ao privado é omissão ou
exercício de força inadmissível em sociedade democrática.
O discurso teológico, portanto, a partir da fé, é maneira de a comunidade crente participar das conversas entre os seres
humanos que, vindos de diversos horizontes, querem construir um mundo de paz. Trata-se do direito do discurso
teológico em ambiente universitário e dentro da sociedade, direito que não pode ser negado à fé.
A opção da Universidade Católica do Salvador em abordar a disciplina Teologia e Humanismo é dialógica, preservando
as convicções individuais, mas sem abrir mão de sua identidade católica, isto é, aberta e sem abdicar da missão de
cuidar do bem que recebemos como dom: a vida de cada ser humano.

Uma Parábola
Conta-se que um fazendeiro, que lutava com muitas dificuldades, possuía alguns cavalos para ajudar no trabalho de
sua fazenda. Um dia, o capataz lhe trouxe a notícia que um de seus cavalos havia caído num velho poço abandonado.
O buraco era muito fundo e seria difícil tirar o animal de lá. O fazendeiro avaliou a situação e certificou-se de que o
cavalo estava vivo. Mas pela dificuldade e o alto custo para retirá-lo do fundo do poço, decidiu que não valia a pena
investir no resgate. Chamou o capataz e ordenou que sacrificasse o animal soterrando-o ali mesmo. O capataz chamou
alguns empregados e orientou-os para que jogassem terra sobre o cavalo até que o encobrissem totalmente e o poço
não oferecesse mais perigo aos outros animais. No entanto, na medida que a terra caía sobre seu dorso, o cavalo se
sacudia e a derrubava no chão e ia pisando sobre ela. Logo os homens perceberam que o animal não se deixava
soterrar, mas, ao contrário, estava subindo à medida que a terra caía, até que , finalmente, conseguiu sair...".
Muitas vezes nós nos sentimos como se estivéssemos no fundo do poço e, de quebra, ainda temos a impressão de
que estão tentando nos soterrar para sempre. É como se o mundo jogasse sobre nós a terra da incompreensão, da
falta de oportunidade, da desvalorização, do desprezo e da indiferença. Nesses momentos difíceis, é importante que
lembremos da lição profunda da história do cavalo e façamos a nossa parte para sair da dificuldade. Afinal, se
permitimos chegar ao fundo do poço, só nos restam duas opções: Ou nos servimos dele como ponto de apoio para o
impulso que nos levará ao topo; - Ou nos deixamos ficar ali até que a morte nos encontre. É importante que, se estamos
nos sentindo soterrar, sacudamos a terra e a aproveitemos para subir.
A presença da Teologia no mundo universitário e na vida das pessoas quer ser este impulso vital, esta alavanca que,
não apenas retira de situações de animosidades, mas encoraja-nos a viver o cotidiano com alegria e cheio de
esperança.

Recordando
A presença da Teologia na universidade e nos diversos cursos de graduação é, com certeza, uma oportunidade para
que a comunidade acadêmica possa refletir, em primeiro lugar, sobre a transcendência do conhecimento. E, uma vez
admitindo essa função, reflita igualmente a possibilidade de “sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não
consegue compreender quem é” (Bento XVI). Por isso, a Teologia é um lugar privilegiado para a vivência do
humanismo. Pois, “um humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano”. (Bento XVI).
O Componente Curricular chamado Teologia, por sua vez, dá ao estudante a oportunidade de pensar-se enquanto ser
que está no mundo para intervir com qualidade na sociedade. Os conhecimentos obtidos, os dons e as habilidades
adquiridos não são apenas instrumentos de subsistência econômica, de respeitabilidade social, de garantia de
profissionalidade.
De um egresso da Universidade Católica do Salvador espera-se muito mais. Espera-se um compromisso com a
construção de uma sociedade identificada com os ideais de justiça, de liberdade, de igualdade, de promoção da paz,
dos valores éticos, dos direitos humanos, do equilíbrio das relações homem-natureza. Espera-se, ainda, que seja um
profissional competente técnica e cientificamente, que se afirme como cidadão consciente de seus direitos e deveres.
O convívio com a disciplina Teologia e Humanismo é uma oportunidade de conhecer uma área de conhecimento que
nos convida a uma abertura ao outro, ao conhecimento de si e a uma abertura ao Transcendente.
Seção 3 - O Senso Religioso

Para iniciar
Frei Jorge Rocha
É recorrente a tese de que o senso religioso acompanha a civilização. É tão importante que se pode afirmar, de modo
geral, como um axioma: toda civilização tem a ideia de pertença, isto é, de tribo, de família e, ao mesmo tempo, uma
ideia do Ser Maior que Si. É isto que daria, por assim dizer, certo sentido religioso. Mesmo que exista tese em contrário,
nenhum homem, pelo simples fato de existir e estar no mundo, que reflete (GIUSSANI, 2009), pode escapar de
perguntar-se: Qual é o significado último da existência? Por que existe a dor, a morte? Por que, no fundo, vale a pena
viver? Ou, a partir de outro ponto de vista: ‘De que e para que é feita a realidade? O senso religioso é, pois, o ímpeto
que move o homem rumo à busca da exigência primordial da razão humana: a do significado.
Em sua clássica obra de sociologia da religião, (BERGER, 1985) consagra um lugar importante à religião, entendida
como um dos sistemas de símbolos fundamentais dos seres humanos. Trata-se de um “edifício de representação
simbólica”, elaborado pelos seres humanos, e que para eles parece elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana,
garantindo-lhe uma nomização peculiar, ou seja, um enquadramento a padrões socialmente legítimos de conduta, de
significado e valor para sua vida.
Continua salientando o Autor, que a religião exerce para os que a ela aderem uma ordenação da realidade, servindo
de potente referencial contra o terror da anomia [de uma vida sem sentido]. Junto a esta função nomizadora, Berger
(1985) acrescenta outras importantes funções exercidas pela religião na sociedade, entre as quais a de integração das
experiências marginais ou limites. A religião exerce um singular papel de integração das experiências anômicas ou
fragmentadoras, facultando um significado para as crises biográficas. Há nela uma capacidade única de situar os
fenômenos humanos em um quadro cósmico de referência.
Por sua vez, o estudioso da religião Otto (1985) afirma que o Sagrado é um elemento de qualidade absolutamente
especial que se coloca fora de tudo aquilo que a razão – por si só – possa dá conta, pois ele é constituído no mundo
do inefável. Outra nomenclatura usada para este “inefável” é caracterizado pelo termo latino numem, isto é, força divina
manifestada na ação pessoal de uma ou outra divindade.
Esta é, portanto, uma dimensão a ser considerada pelo bem de compreensão do ser humano. Retirar esta dimensão
é perder uma grande chave de leitura das razões pelas quais o ser humano existe e ruma a uma teleologia, a um
destino com sentido. O senso religioso, dessa maneira, é um instrumento – mas antes de tudo é parte constitutiva do
seu ser – que permite ao ser humano cumprir a sua missão no mundo e de valorizar a vida daqueles que compõem o
seu núcleo humano
Na compreensão do senso religioso, é importante abordar sobre a religião. Mas o que é mesmo isso? Interessante
começar sob o ponto de vista etimológico. É necessário, pelos menos, recorrer a três vocábulos que não se
contradizem, mas estão em perfeita conexão.
A primeira compreensão é que religião vem de re-ligio que, por sua vez, indica a “ideia de culto e de prática religiosa”,
gerando na pessoa uma atitude de reverência à divindade, expressa através das liturgias, ritos cultuais, devoções.
Uma postura que leva o indivíduo à observância de leis divinas geradoras de uma atitude diante da vida e das coisas.
É considerável também a leitura que indica que “religião” vem de Re-legere, isto é, “re-ler, re-visitar”. Esta concepção
indica a necessidade de interpretar constantemente os textos que regem a doutrina religiosa. Não se trata de uma
leitura ao bel prazer, subjetivista ou privatista. Está mais para a linha do aggiornamento que do modismo pós-moderno.
É uma necessidade de uma atualização constante do dado religioso, a fim de que possa corresponder às expectativas
e exigências do mundo em que se encontra. Para dar um exemplo, o Cristianismo Católico tem como regra de
interpretação dos textos sagrados aquilo que se chama de Magistério Eclesiástico.
É igualmente legítimo compreender a religião como re-ligare. Na sua acepção semântica significaria “religar, atar, ligar
bem”. Nesta concepção, a compreensão de religião cumpre o papel de unir a humanidade à Divindade, mesmo que o
termo possa significar outros elementos, mas não se distancia do sentido de unir dois pólos que, podem até significar
lados desiguais. Pode-se intuir sem medo de errar que se trata da relação do homem com a divindade.
O caminho etimológico revela que a experiência do homo religiosus com o Sagrado se expressa de distintas formas. É
uma dimensão do ser humano que precisa ser contemplada, a fim de que o homem cumpra a sua identidade. Isso
acontece preferencialmente através dos símbolos, pois o ser humano é um ser fundamentalmente simbólico. Richter
Reimer (2004, p.82), afirma:
Etimologicamente, o termo símbolo vem da língua grega e refere-se a união de duas coisas. Afirma-se que entre os
gregos ao fazer um contrato, escrito em pedaço de cerâmica, era costume que este fosse quebrado em duas partes e
cada contratante levava uma. Qualquer reclamação posterior referente ao contrato deveria ser legitimada pela
reconstrução da cerâmica quebrada, ou seja, pela junção das duas partes que deveriam coincidir. Assim, a unidade
das duas coisas estaria resguardada.
Dentro do contexto religioso, o símbolo funcionaria como aquele elemento que une o homem à Divindade. O senso
religioso, a partir da intuição de Richter Reimer (2004), tem no símbolo uma linguagem primária e pré-hermenêutica,
sobretudo, porque não seria possível objetivá-lo em palavras. A celebração, a liturgia, é o lugar preferido para
manifestação do símbolo.
A admissão do senso religioso na vida da humanidade não se esgota na expressão do símbolo, mas também permite:
1. Reconhecer que o ser humano é uma criatura, um ser criado. Daí nascem a compreensão de criaturalidade e seus
desdobramentos na vida da pessoa;
2. Viver na dimensão de finitude, vendo na efemeridade da vida uma oportunidade para o crescimento humano e para
valorização do outro e um momento privilegiado para revisitar a própria vida, observando a condição de finitude;
3. Perceber que, mesmo sabendo da importância do homem entre os seres criados, ele não se basta a si mesmo. Isto
permite admitir que, de certo modo, o homem também é relativo diante de uma imensidão e de uma grandeza do
mundo que o ser humano não pode dar conta sozinho;
4. Afirmar que este ser humano, embora tenha em si o germe de eternidade, ele é mortal. A vida chega a um ponto em
que se gasta e se esvai. O homem é o único ser que sabe disso.
Contudo, sob o prisma do mesmo senso religioso e contemplando uma abertura ao Transcendente, dentro de uma
racionalidade especulativa e de um silogismo lógico, também é possível afirmar:
1. Pela condição de criaturalidade, é necessário reconhecer e admitir a ideia de um ser primeiro e, sobretudo, a
possibilidade do Criador, que contemplaria a existência que vai desde a compreensão de um “Motor Imóvel”, como
fonte primeira, até a afirmação de um Deus Criador de todas as coisas;
2. A admissão do Infinito como algo – ou alguém – para onde a humanidade tende;
3. O Absoluto não é algo irrealizável nem distante do cotidiano, mas pode ser um Deus Encarnado, com feições
morenas e que participa da rotina humana;
4. Este Absoluto é Senhor da Vida e, por isso mesmo, traz consigo o dom da imortalidade. Venceu a vida e matou a
morte, a fim de que pudesse ser conhecido o império da vida. Nisso evidenciaria o destino da imortalidade a que o
homem tem “direito”.
O senso religioso, a partir do quadro desenhado anteriormente, tem como suporte de subsistência a fé. Pois, “a fé fala
da vida como um princípio transbordante, que fundamenta tudo que o ser humano é e faz e que vem a ele na
experiência gratificante da dádiva”. (PRETTO, 2003, p. 74)
Por isso, a compreensão das grandes características do ser humano pode ser identificada como aquele ser que admite
a ideia de criatura, sabe que a vida é finita e que, embora tendo primazia entre as criaturas, não se basta a si mesmo
e que é relativo diante da imensidão do mundo e, ainda, que a morte é umas das experiências mais significativas,
embora, pelas condições mencionadas, pareça um espantalho. Este é o homem!
Ao mesmo tempo, o mesmo ser humano é capaz de perceber diante si, como no silogismo lógico, que para
corresponder à situação de criatura é preciso admitir a presença do Criador que, por sua vez, traz consigo a dimensão
de Infinito, de Absoluto e de Imortal. Este é Deus! “Deus, com efeito, não é um objeto cuja existência se demonstra e
sim uma pessoa que se encontra na vasta trama das relações humanas. Trata-se de um encontro surpreendente, mas
certamente gratificante”. (PRETTO, 2003, p. 25)

Senso Religioso e experiência humana


O senso religioso não é um extraterrestre na vida da pessoa humana. Como foi apresentando, é uma dimensão. Mais
ainda: é constitutivo em sua vida. É celebrativo e é litúrgico. Podemos afirmar que o senso religioso faz parte da
experiência humana.
Experiência humana não é sinônimo “experimento”, onde se podem colocar elementos num tudo de ensaio e se
dissecar todas as propriedades daquilo que se observa. Experiência é algo mais profundo. O’Collins (1991) , lembra
que o termo vem do alemão Erlebins e indica algo profundo que acontece na vida do homem e é vivenciado por dentro,
indica vitalidade e dinamismo.
A experiência religiosa, portanto, dentro desta perspectiva, pode ser entendida, na reflexão de Amatuzzi (1997, p. 37),
como uma “experiência religiosa abre a pessoa para um mundo inteiramente novo e diferente do cotidiano, do qual só
é possível dar conta a partir de dentro dele mesmo”. Por isso, mais que defini-la, é preciso mostrar como a experiência
impacta na vida da pessoa.
O’Collins (1991) reflete que para se considerar uma experiência, ela precisa ter significados, trazer um certo propósito
ou finalidade, precisa ser concreta, tem que ter um caráter de novidade. Por isso, a experiência marca a vida toda da
pessoa. Isto quer dizer que toda experiência precisa ser impactante. Toda experiência, nesse sentido, em última
análise, é uma experiência religiosa. Pois, O’Collins (1991, p. 65), afirma:
Em cada experiência há um elemento último (e portanto religioso). Em toda experiência há este ponto supremo que
relaciona a pessoa humana com Deus. Ou Deus está de algum modo presente em toda experiência, ou não está de
todo. Sempre e em toda parte, a vida humana realiza e desempenha um diálogo salvífico com Deus. A dimensão
religiosa é um fator a mais em toda nossa experiência, um dado primordial em todo atuar, reagir, conhecer, querer,
sentir e simbolizar. Há um fundamento, horizonte e interesse, absolutos e últimos [...] em todas as atividades humanas.
A reflexão versa pelo caminho que indica a possibilidade – digamos assim – do senso religioso na vida humana, não
pode ser fruto apenas de uma especulação teórica como se fosse possível abarcar todos os conceitos e conteúdos no
raso livro que o homem poderia construir. Quando se trata do senso religioso, sobretudo porque envolve a dimensão
da transcendência, pois a credibilidade da fala passa – necessariamente – pela experiência, embora que a própria
experiência é iluminada e ganha sentido por causa do encontro que se estabelece como aquilo que compreendemos
como Transcendente.
Esta experiência, portanto, no dizer do Papa Francisco, não pode ser simplesmente fruto das ciências empíricas. Pode-
se assim expressar:
Não se pode sustentar que as ciências empíricas expliquem completamente a vida, a essência íntima de todas as
criaturas e o conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar indevidamente os seus confins metodológicos limitados. Se
se reflete dentro deste quadro restrito, desaparecem a sensibilidade estética, a poesia e ainda a capacidade da razão
perceber o sentido e a finalidade das coisas. (PAPA FRANISCO, Laudato Si, n. 199).
Observando-se, assim, as devidas competências, quer das ciências empíricas no âmbito do seu fundamento teórico,
bem como das ciências humanas, o senso religioso do homem se aplica e se evidencia como aquele que dá não só as
razões do crer (cf. 1Pd 3, 15), mas plenifica a vida do ser humano no que diz respeito ao sentido e ao significado.

Seção 4 - O Itinerário do Senso Religioso

Apresentação
Marcelo Couto Dias
O ser humano, em todas as épocas e culturas, usou a razão para buscar o significado da realidade. As artes, desde
as pinturas rupestres, documentam vivamente essa busca, esse desejo de conhecer, que facilmente associamos à
filosofia ou à ciência. Na verdade, cada gesto humano exprime ora a busca ora o afirmar-se de um significado.
Essa busca se expressa naquelas perguntas que estão ligadas à própria raiz do agir humano.
Estas perguntas estão no coração de cada homem, como bem demonstra o gênio poético de todos os tempos e de
todos os povos, que, quase como profecia da humanidade, repropõe continuamente a séria pergunta que torna o
homem verdadeiramente tal. Exprimem a urgência de encontrar um porquê da existência, de todos os seus instantes,
tanto das suas etapas salientes e decisivas como dos seus momentos mais comuns. (JOÃO PAULO II, 1998, p. 46-
47).
Diversas foram as expressões que a literatura e a arte em geral deixaram dessas perguntas que “estão no coração de
cada homem”. Na música popular brasileira a natureza dessas perguntas ficou documentada na canção O que será (à
flor da pele), de Chico Buarque.
Pelo simples fato de viver, independente da sua origem étnica ou cultural, da sua condição social ou educacional, o
ser humano se defronta ao longo da vida com estas perguntas: “Qual é o sentido exaustivo da existência? Qual é o
significado último da realidade? Por que no fundo vale a pena viver?”. Segundo o teólogo italiano Luigi Giussani (1997,
p.18), “o conteúdo do senso religioso coincide com estas perguntas e com qualquer resposta a estas perguntas”. Além
disso, o Autor nos lembra que os adjetivos presentes nestas perguntas indicam a necessidade de uma resposta total,
definitiva.
Porém, “quanto mais a pessoa avança na tentativa de responder a tais perguntas, tanto mais lhes percebe a potência
e tanto mais descobre a própria desproporção em relação à resposta total” (GIUSSANI, 2009). Mais uma vez é na arte
que podemos encontrar uma boa tradução desse sentimento de desproporção. A escritora mineira Adélia Prado (1991,
p. 187) sintetizou essa percepção nos últimos versos do poema Desenredo:

Estremecerei de susto até dormir.


E no entanto é tudo tão pequeno.
Para o desejo do meu coração
o mar é uma gota.
O Humanismo Renascentista
É muito difusa a ideia de que a religiosidade é uma característica presente apenas naquelas pessoas mais voltadas às
questões espirituais ou que estão diretamente filiadas a uma das tantas tradições religiosas que se desenvolveram ao
longo da história da humanidade. Porém, se entendemos que o senso religioso está relacionado a estas perguntas, é
fácil perceber o quanto ele está presente em cada pessoa. Mais ainda: se a pessoa prestar atenção à própria vida verá
que em cada gesto, desde o mais simples, se afirma algo acerca da resposta a estas perguntas.
Há como que um fio que liga cada gesto humano com a resposta que encontramos para as perguntas do senso
religioso. As circunstâncias da nossa vida, boas ou ruins, alegres ou tristes, prazerosas ou dolorosas, só podem ser
vividas integralmente à medida que estejam acompanhadas por essa hipótese de significado, por esse porquê. Do
contrário, até mesmo aquilo que parece bom perde o sabor. O fundador da terceira escola de psicoterapia de Viena,
Victor Frankl, sintetizou essa percepção em uma frase: “quem tem um ‘porquê’, enfrenta qualquer ‘como’” (FRANKL,
1985, p. 95-96). Em outras palavras, “o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceito, se levar a uma meta e
se pudermos estar seguros desta meta; se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho.” (BENTO
XVI, 2007, p. 3).
Dessa meta última, desse porquê definitivo, toda a realidade depende. É a ela que a tradição religiosa chama de Deus.
É nessa perspectiva que se pode entender o senso religioso como “um dote característico da nossa natureza, que
dispõe a alma a aspirar por Deus, que quase a conduz à tentativa de agarrar a Deus de alguma forma” (GIUSSANI,
1997, p. 21).
Assim, podemos dizer que essa interrogação acerca do sentido, do porquê, constitui a expressão mais elevada da
razão humana e, conseqüentemente, da própria natureza do ser humano. Por isso, diferente do que o senso comum
atual acredita, a religiosidade representa o ponto mais alto da racionalidade humana. Ou seja,
quando o porquê das coisas é procurado a fundo em busca da resposta última e mais exauriente, então a razão humana
atinge o seu vértice e abre-se à religiosidade. De fato, a religiosidade representa a expressão mais elevada da pessoa
humana, porque é o ápice da sua natureza racional. Brota da profunda aspiração do homem à verdade, e está na base
da busca livre e pessoal que ele faz do divino. (apud JOÃO PAULO II, 1998, p. 47).
Por isso, podemos afirmar que “a vida é fome, sede, paixão por um objeto último que paira no horizonte, mas que está
sempre além desse. E é isto que, uma vez reconhecido, faz do homem alguém que busca incansavelmente”
(GIUSSANI, 2009, p. 81). Essa mesma percepção está expressa poeticamente na música popular brasileira com Tenho
sede, de Gilberto Gil.
É possível, e, às vezes, muito frequente, que alguém identifique essa meta, esse fim último, com a namorada, a carreira,
o poder, o dinheiro, a política, a saúde ou, quem sabe, a ciência. De qualquer forma é sempre uma religiosidade que
se exprime, é sempre um deus que se busca.
O ser humano está constantemente diante da tentação de determinar ele mesmo qual é o sentido último, de ser a
medida de todas as coisas (como queriam os sofistas), abandonando assim a busca que é própria da sua natureza.
Nesse caso, segundo Giussani (1997, p.45),
o senso religioso, como afirmação de um significado último, é corrompido, para identificar como seu objeto algo que o
próprio homem escolhe dentro do âmbito da sua experiência, ou seja, um aspecto particular da sua vida, algo que
finalmente lhe seja compreensível.
Essa corrupção do senso religioso, na qual a razão humana identifica o significado último, o sentido exaustivo, com um
elemento da sua experiência, com um objeto qualquer, é chamada na Bíblia de idolatria.
Comida, Titãs

Saiba mais
Senso religioso e pecado
O senso religioso inevitavelmente traz sempre consigo o senso do pecado. O pecado existe também para o ateu,
teórico ou prático. Para um marxista convicto, para o qual o partido é tudo, é pecado qualquer desvio ou traição,
qualquer atitude que não sirva aos programas do partido; para um homem para o qual a saúde é tudo, será pecado
qualquer coisa que de algum modo não salvaguarde aquele quid a que, como ídolo, ele dá total devoção.
Mais abertamente, dá-se o nome de pecado, na história da religiosidade, àquela incoerência pela qual um indivíduo
afirma teoricamente um determinado quid como sentido último do real e, depois, na vida prática, de fato, sem que
chegue a afirmar isto, molda a sua ação segundo uma outra referência última; isto é, molda a sua ação de maneira tal
que, interpretada com atenção, implica como quid último – pelo qual é dominada – um quid diferente daquele que se
afirma teoricamente: trata-se, para usar termos tradicionais, da incoerência entre a fé e as obras.
GIUSSANI, Luigi. O senso de Deus e o homem moderno: a questão humana e a novidade do cristianismo. Trad. Durval
Cordas, Paulo Afonso E. de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

O despertar do senso religioso


Assim como acontece com as demais capacidades humanas, o senso religioso precisa ser provocado para colocar-se
em ação. Talvez seja pela falta de uma provocação adequada que algumas pessoas sintam certa estranheza diante
do senso religioso, vivendo como se a religiosidade fosse algo que não lhe diz respeito.
A palavra provocar vem do latim provocare, que resulta da junção do prefixo pro (para além) com o verbo vocare
(chamar). Assim, nessa altura do percurso, é importante perguntar de onde vem o chamado que coloca o senso
religioso da pessoa em caminho.
No capítulo X do livro O senso religioso, intitulado “Como se despertam as perguntas últimas: itinerário do senso
religioso”, Luigi Giussani (2009) propõe certas pistas deste percurso. Propomos a leitura de alguns trechos desse
capítulo (indicados entre aspas e com a citação da página) nesta última parte da seção 4.
É observando a si mesma em ação (como vive, pensa e age) que a pessoa percebe aqueles fatores que a constitui,
entre os quais está a religiosidade. “Um indivíduo que tenha vivido pouco o impacto com a realidade [...] terá um
escasso sentido da própria existência” (p. 155). Isso tem acontecido com muitos jovens dessa geração, seja por
estarem constantemente expostos às seduções do mundo virtual, seja pelo fato de terem sido excessivamente
poupados pelos pais, que, em geral, confundem a sua tarefa com aplainar o caminho dos filhos retirando tudo o que é
sacrifício.
“Suponhamos estar nascendo, saindo do ventre de nossa mãe com a idade que temos neste momento, no sentido de
termos desenvolvimento e consciência como a possuímos agora. Qual seria o primeiro sentimento em sentido absoluto,
isto é, o fator primeiro da nossa reação perante o real?” (p. 155) Certamente seria o maravilhamento, o fascínio, diante
da existência das coisas. Olhando para tantas coisas belas como as montanhas, o mar, o céu etc. o ser humano logo
perceberia o fato de estar diante de uma realidade que existe independente de si e da qual ele depende. É a percepção
original de um dado. Se é dado supõe-se logo alguém que “dê”. “É essa maravilha que desperta a pergunta última
dentro de nós” (p. 157).
Giussani continua esse raciocínio afirmando que “a religiosidade é, em primeiro lugar, a afirmação e o desenvolvimento
da atração. Existe uma evidência primeira e uma maravilha da qual é repleta a atitude do verdadeiro pesquisador. A
maravilha da presença me atrai, isto desencadeia em mim a busca” (p. 157).
Mas alguém pode acreditar que toda essa beleza que existe é fruto do acaso, que não há uma inteligência criadora por
trás de tudo isso. Porém, essa afirmação é tão razoável quanto dizer que por trás dos versos da Odisséia o que existe
é simplesmente o agrupamento aleatório de letras e palavras.
Além da existência das coisas o homem percebe que “existe dentro dessa realidade uma ordem, que essa realidade
é cósmica (do grego kosmos, que significa exatamente ordem)” (p. 159).
A esse respeito Giussani lembra um trecho no qual o filósofo Kant revela o momento em que lhe ocorre uma objeção
a toda a sua Crítica da razão prática.
Duas coisa enchem o espírito de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes, na realidade
da freqüência e da perseverança com a qual a reflexão a elas se apega: o céu estrelado acima de mim e a lei moral
em mim” (KANT, 2006, p. 189)
E um trecho do livro da Sabedoria
Sim, naturalmente vãos eram todos os homens que ignoraram a Deus e que, partindo dos bens visíveis, não foram
capazes de conhecer aquele que é, nem, considerando as obras, reconheceram o Artífice. Mas foi o fogo, ou o vento,
ou o ar sutil, ou a abóbada estrelada, ou a água impetuosa, ou os luzeiros do céu que eles consideram como deuses,
regentes do mundo!
Se, fascinados por sua beleza, tomaram-nos por deuses, aprendam quanto lhes é superior o Senhor dessas coisas,
pois foi a própria fonte da beleza que as criou. E se os assombrou sua força e atividade, calculem quanto mais poderoso
é Aquele que as fez, pois a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia se contemplar seu Autor. (Sb 13,1-
5)
Além disso, o ser humano, diante da realidade, “constata também que ela se move segundo um desígnio que lhe pode
ser favorável. [...] O conteúdo das religiões mais antigas coincide com essa experiência de possibilidade da realidade
‘providencial’” (p. 160). Na Bíblia podemos encontrar diversos exemplos dessa percepção.
Enquanto durar a terra, semeadura e colheita, verão e inverno, dia e noite não hão de faltar. (Gn. 8,22)
Nas gerações passadas, permitiu a todas as nações seguirem o próprio caminho; no entanto, não deixou de dar
testemunho de si mesmo por seus benefícios, dispensando do céu chuvas e estações férteis, saciando de alimento e
felicidade os vossos corações... (At. 14,16-17)
Este senso do divino como providência também aparece em muitas outras tradições religiosas.
Um quarto aspecto indicado por Luigi Giussani nesse itinerário do despertar do senso religioso é a percepção do eu
dependente. Se estou atento “não posso negar que a evidência maior e mais profunda que percebo é que eu não me
faço por mim mesmo, não me estou fazendo. Não me dou o ser, não me dou a realidade que sou, sou ‘dado’” (p.
162).
Para explicar esse “não me faço” o Autor usa a imagem do jorro d’água numa fonte. “Quanto mais adentro em mim, se
chego ao fundo, de onde broto? Não de mim, mas de outro. É a percepção de mim como um jorro d’água numa fonte.
Existe uma outra coisa que é mais do que eu e da qual sou feito”. Essa outra coisa, esse “‘Tu-que-me-fazes’ é o que a
tradição religiosa chama Deus” (p. 162).
É nessa dinâmica que Giussani propõe uma breve reflexão acerca de outra palavra tão associada à experiência
religiosa: a oração. “A consciência de si mesmo até o fundo percebe, no fundo, no fundo, um Outro. Isto é a oração: a
consciência de si até o fundo que se depara com um Outro. Dessa forma, a oração é o único gesto humano no qual a
estatura do homem é, realiza-se inteiramente” (p. 163).
Por fim, Giussani fala de “um último vívido significado no próprio interior desse ‘eu’ que foi percebido como ‘feito por’,
como ‘apoiado em’, como ‘contingente’. Trata-se do fato de que há no ‘eu’ algo como uma voz que me diz ‘bem’, e me
diz ‘mal’. Essa consciência do eu traz consigo a percepção do bem e do mal”. Usando uma expressão bíblica, dos
escritos de São Paulo, fala-se da lei no coração.
O poeta Sófocles, muitos anos antes de Paulo, fala, na sua obra Antígona, das “leis não escritas e imutáveis”.
Enfim, a partir de exposição desse itinerário do senso religioso Giussani conclui que “a única condição para sermos
sempre e verdadeiramente religiosos é vivermos sempre e intensamente o real” (p. 166).
Porém, se a realidade, como sinal, desperta o senso religioso, o ser humano enfrenta uma grande dificuldade para
interpretá-lo e, por isso, deseja encontrar um modo de transpor esse limite e esse risco constante do erro.
Platão (2000, p. 69), no Fédon, nos deixa uma potente expressão dessa situação do homem.
Parece-me, ó Sócrates, e talvez também a ti, que na vida presente não se possa atingir a verdade segura sobre essas
coisas de modo algum, ou pelo menos com grandíssimas dificuldades. Mas acho que seria uma vileza não estudar sob
cada aspecto as coisas ditas a esse respeito e abandonar a pesquisa antes de ser examinado cada meio, Porque,
nestas coisas, de duas uma: ou se chega a conhecer como estão; ou, se não se consegue, aplica-se ao melhor e mais
seguro dentre os argumentos humanos e, com ele, como sobre um barco, tenta-se a travessia do oceano. A menos
que não se possa, com a maior comodidade e menor perigo, fazer a passagem com algum meio de transporte mais
sólido, isto é, com a ajuda da palavra revelada de um deus.
Ou seja, a razão, quando confrontada seriamente com a questão do significado último da realidade, consciente dos
seus limites, não pode deixar de aceitar e, mais ainda, desejar essa ajuda. A hipótese da revelação, na qual Deus se
torna uma presença dentro da história, não só é possível como também conveniente.
O pensamento iluminista tentou impor como dogma a impossibilidade de uma revelação, nos fazendo acreditar que
admitir essa possibilidade implica em sacrificar a razão. O trecho de Platão mostra que não se trata de irracionalidade,
mas sim de abertura da razão.

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