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A CONSCIÊNCIA HISTÓRICO-LITERÁRIA NO GALILEIA DE RONALDO CORREIA BRITO

Francisco Gomes de Andrade (UFS)

O romance Galileia de Ronaldo Correia Brito encena o espaço sertanejo no

momento contemporâneo em que se insere toda uma discussão sobre teoria da pós-

modernidade em face do neo-capitalismo globalizante modificando o cenário das culturas

locais. Nesse sentido, a dimensão narrativa dessa obra traz à tona o processo histórico

atual - global e local - de modo que a noção de sertão se reatualiza em contraste com as

representações sertanistas e regionalistas desde o século XIX. Na estrutura desse

romance, percebemos a relação intrínseca entre história e literatura, mediada pela

inventividade do escritor cearense, cuja consciência histórico-literária mantém um constante

diálogo entre o presente e o passado, entre o mundo globalizado e o sertão, onde notamos

sinais de mudanças nos comportamentos e costumes do sujeito da sociedade rural.

A perspectiva histórica e a perspectiva literária contaminam-se de tal forma que a

consciência de regionalidade do escritor, seja ele de romance histórico ou não, sempre

parte de uma determinada realidade e uma determinada época para retratar e recriar, mais

ou menos, essa mesma época e essa mesma realidade. Nesse caso, as fronteiras entre

história e literatura são extremamente móveis. No tocante às obras literárias, elas podem

ser interpretadas como um modo de representação da realidade histórica que formata uma

imagem verossímil, de modo que pode ser lida como uma “história possível” nos termos

abordados por Letícia Malard, ao se referir à concepção acertada de Umberto Eco.

Segundo ela, o escritor italiano:

considera o romancista como criador de uma história possível. Sem


literarizar pessoas que realmente existiram, inventa criaturas que, pelos
ditos, ações, ambientação, etc., próprio a determinada época, poderiam
ter existido nessa época. (MALLARD, 2006, p. 04).

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Ainda de acordo com esta autora, a conversão da história em literatura possui gradações

que oscilam entre a “história possível” – como foi o caso específico do desenvolvimento da

representação e da consciência histórico-literária sobre o sertão desde o século XIX – e a

história propriamente dita.

Na verdade, no que diz respeito à literatura, não importa muito se os ambientes,

as ações e os personagens são fictícios ou ultra-reais, o que importa são as verdades, os

valores e a visão de mundo que brotam de seus diálogos e de suas narrativas referentes a

determinado contexto histórico-social. Isso no faz lembrar as palavras de Samira Mesquita,

citada por Mário Maestri:

a ficção, por mais inventada que seja a estória, terá sempre, e


necessariamente, uma vinculação com o real empírico, vivido, o real da
história. O enredo mais delirante, surreal, metafórico estará dentro da
realidade, partirá dela, ainda quando pretende negá-la, distanciar-se.
(MESQUITA apud MAESTRI, 2002, 41).

De fato, toda obra de arte, e no caso específico da literatura, liga-se profundamente a uma

realidade determinada que, necessariamente, pode ser a realidade vivida e observada pelo

escritor, mesmo que ele oculte, por motivos ideológicos conscientes ou inconscientes, os

reais problemas que se configuram nessa realidade. A exemplo disso, temos o caso da

representação distanciada da consciência idílica do sertão elaborada pelos escritores

sertanistas românticos no Brasil. Dessa forma, houve nessa história possível de tais

escritores um relativo distanciamento dos problemas mais agudos do espaço sertanejo.

Essa concepção de história possível remonta à noção de verossimilhança de

Aristóteles referente à tragédia grega, embora saibamos que este autor diferencie a

história, enquanto discurso do factual, da poesia enquanto discurso do possível. Segundo

Aristóteles, na Poética:

a razão é a seguinte: o que é possível é plausível; ora, enquanto as


coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam
possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que aconteceram, pois
não teriam acontecido se não fossem possíveis. (ARISTÓTELES, 1987,
p. 209).

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Podemos dizer então que todos os eventos que aconteceram, que estejam acontecendo ou

que é provável que voltem acontecer, podem servir de matéria prima para a criação literária

do romancista, pois este parte justamente daquilo que sucedeu factualmente, em

determinado espaço e tempo, para criar sua história possível e imprimir sua visão de

mundo e sua verdade em termos literários. É por isso que Aristóteles atribui o caráter

universal à poesia e, em nosso caso, à literatura em que muitos temas são de certa forma

transistóricos ou, em outras palavras, atemporais, mas que sofrem reinterpretações e

modificações num determinado espaço e determinada época.

Por conseguinte, é necessário elaborarmos aqui o modo como o imaginário do

sertão foi representado a partir da consciência histórica dos escritores, tentando se possível

fazer uma relação entre o historiográfico e a história possível do literário. Desse modo, no

caso específico do sertão, os acontecimentos, as situações históricas e todas as

contradições moldam e são moldados pela “história possível” e verossímil da literatura,

lembrando que nem sempre a realidade (quer seja o imaginário, o espaço e o sujeito) é

representada por uma imagem concreta das coisas e isso serve tanto para a literatura

quanto para a história. Ambos são condicionados pelas interpretações de mundo que

reinventam o imaginário de uma região em determinada época. No caso das

representações e interpretações sobre o sertão, elas oscilaram desde o Brasil oitocentista

numa visão ingênua e pitoresca e numa visão mais crítica da realidade, mascarando ou

revelando a concepção de sertão e toda a matéria sertaneja que lhe é inerente.

Essa visão ingênua sobre o sertão pode ser vista a partir daquilo que Antonio

Candido chama de “consciência amena” (CANDIDO, 1989, p. 142) inserida num contexto

de otimismo patriótico. A essa concepção de consciência corresponde o período romântico

e realista-naturalista no século XIX, em que são realçados o tratamento descritivo do

pitoresco e do exotismo, a mitificação da paisagem e do homem, bem como a

representação cientifiscista do meio. Nesse sentido, os escritores copiavam a forma

europeia e adaptavam-na com tintas locais como foi o caso de José de Alencar, Franklin

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Távora, Coelho Neto e Afonso Arinos, entre outros. Nisso, havia a idealização dos dramas,

das situações e das condições reais do homem do sertão. Antonio Candido afirma que os

românticos tinham a consciência amena do atraso esboçada apenas numa visão idílica da

região em detrimento da dimensão histórico-social que compõe as condições reais de vida

e os estigmas, experimentados pelo sertanejo e pelo indígena. Tais condições e estigmas

foram praticamente obscurecidos.

Logicamente, essa consciência de regionalidade era marcada pelos padrões do

discurso europeu que via o sertão a partir da ótica do litoral e do colonizador. Sendo assim,

a consciência idílica da realidade sertaneja vincula-se à questão do problema da alteridade

na literatura sobre o sertão, explicado pela professora Albertina Vicentini:

A literatura sertanista, da maneira como ela quer existir, isto é, como


letra representante de um mundo iletrado, não existe... o mundo da
literatura sertanista é o mundo do escritor citadino fingido de sertanejo,
que escreve para um leitor ele também citadino, a respeito de uma
cultura diferente da sua. (1998, p. 44).

Nesse caso, a representação do sertão e da voz do sertanejo era interpretada e construida

a partir da exterioridade em que se fundamentou o imaginário do sertão sempre repetido e

imitado na literatura sertanista acarretando uma tendência ao estereótipo:

a literatura sertanista sempre trabalha a um passo da estereotipia da


paisagem, da personagem e da ação, da reprodução da linguagem
seguindo de perto o imaginário que se encontra pronto – a matéria feita,
elaborada pela realidade na sua concretude física e pela história e pelo
pensamento social nos seus valores. (VICENTINI, 1998, p. 42).

Como percebemos, para Albertina, quando uma obra retoma, em favor da consciência

amena, os estereótipos sem a devida crítica, ela busca repetir uma “coleção de signos

representativos de uma região” (VICENTINI, 1998, p. 43), deixando de lado um sentido

político, social e humano e até mesmo excluindo a possibilidade de renovação a partir de

uma nova dimensão histórica de uma dada época. A tendência ao estereótipo é sedimentar

de modo fixo a especificidade da região ao longo do tempo sem considerar as mudanças

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pelas quais o espaço regional passa a sofrer lentamente. Nesse caso, a reinvenção da

história possível acaba se reduzindo apenas à possibilidade de retomada dos signos

historicamente convencionalizados.

Já em meados do século XX, a consciência idílica da regionalidade deu

lugar a uma renovação dos velhos temas sem perder de vista os paradigmas do imaginário

do sertão que se tornam agora apenas funcionais. Aliás, a história possível da criação

literária contamina e é contaminada pela dimensão real da história, em que o universal e o

particular estão imbricados. Esse momento corresponde, segundo ainda Antonio Candido,

a uma “consciência dilacerada” (1989, p.162) do atraso. Aqui, a literatura passa a utilizar

elementos mágicos e fantásticos, ao lado da dimensão histórica em que transparecem as

mazelas, os conflitos sociais, políticos e existenciais do homem sertanejo, recriando sua

forma para retratar um espaço primitivo, feudal, já esboçando aí a penetração tímida do

universo urbano brasileiro: é o choque provocado pela obra de Guimarães Rosa, em que o

sertão torna-se o pano de fundo para obras como Grande sertão: veredas e como o conto

Dãolalalão.

Nesse sentido, a consciência da regionalidade deixa de ter um caráter de

exterioridade para tornar-se interioridade. O sertão, além de incorporar um significado

universal, passa a ser visto e retratado a partir da sua periferia interiorana, e de dentro da

alma do homem sertanejo no sentido de que o sertão está dentro da gente. Agora, segundo

Albertina Vicentini, “o que se disfarça, no texto de Guimarães Rosa, é o escritor da cidade,

não o sertanejo” (VINCENTINI, 1998, p. 47). Aqui, o sertão e o homem sertanejo adquirem

voz própria por meio da mediação criativa, não de um escritor estranho nascido no meio

urbano, mas de um escritor que tem seu umbigo ligado profundamente à realidade

histórico-social, ao espaço mágico-religioso e aos dramas humanos de personagens

degradados e problemáticos. Dessa forma, Adélia Bezerra de Meneses, ao analisar o caso

passional dos personagens Doralda e Soropita no conto Dãolalalão, reconhecendo aí a

proximidade com a história, afirma que:

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as questões fundamentais em que o ser humano se debate são vividas...
por marginalizados sertanejos. Guimarães Rosa dá o estatuto de
dignidade ao ‘homem do povo’, com direito à tragédia; com direito ao
páthos – o que é um fundamental traço de radicalidade de sua ficção.
(...) Soropita e Doralda estão mais próximos da História que do Mito, do
mundo da ironia que da analogia, do ‘badaladal’ que do sino.
(MENESES, 2008, p. 270).

Ora, nessa consciência crítica da regionalidade a partir de dentro do sertão, presente em

Guimarães Rosa, a história possível de sua ficção se identifica com a dimensão histórica da

situação de atraso e com a dimensão mítica e lendária do sertão no tocante ao aspecto

circunscrito do particular (o sertão de Minas, do sul da Bahia e de Goiás) para ascender de

modo abrangente ao universal (o sertão está em toda parte).

É dessa forma que o sertão, na análise de Silvia Schiavo, se constitui como

uma categoria comparada à noção de mana de Marcel Mauss. A noção de mana é definida

como ‘categoria inconsciente do entendimento’ e implica o “uno e múltiplo” (SCHIAVO,

2007, p. 43) como caráter do espaço sertanejo, porém de um sertão especificamente

brasileiro, segundo a autora:

Sertão – ancestral, tectônico (ctônico, grifo nosso), síntese do diverso


histórico, geográfico, simbólico, natural e cultural, é realidade e metáfora
– expressão inconteste de brasilidade espraiada no território nacional.
(SCHIAVO, 2007, p. 42).

Mais na frente, a autora conclui a definição da categoria sertão com base em Guimarães

Rosa, afirmando que ela “sugere um estado, um estado de alma coletivo, genuinamente

brasileiro” (SCHIAVO, 2007, p. 44). De um modo geral, a consciência histórico-regional de

Guimarães Rosa revela um tipo de verossimilhança que se coaduna com toda a unicidade

e multiplicidade que é o sertão na sua realidade sócio-histórica, existencial e mágica.

Além disso, é preciso ressaltar que esse aspecto “uno e múltiplo” do sertão

não se restringe à circunscrição dos sertões brasileiros, pois se o sertão está em toda

parte, transcende os próprios limites do território brasileiro. É o que nos dá a entender o

escritor Guimarães Rosa quando afirma que “no sertão fala-se a língua de Goethe,

Dostoievski e Flaubert” (ROSA apud LORENZ, p. 86). Então, muito do que é

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“genuinamente brasileiro” tem suas raízes na cultura ocidental, principalmente no que diz

respeito aos elementos mágicos, fantásticos e lendários do espaço sertanejo. Sem a lenda

do Fausto, por exemplo, não haveria a releitura questionadora do pacto diabólico do

jagunço Riobaldo.

Após ter tentado delinear um recorte da representação e concepção de

sertão desde o século XIX, é preciso agora saltar o percurso histórico, situado na época de

Guimarães Rosa, e nos determos na representação contemporânea do sertão presente no

romance Galileia do escritor cearense-pernambucano Ronaldo Correia de Brito. Aqui, a

despeito da consciência histórica do escritor, o romance pode ser definido, a nosso ver,

como uma consciência dilacerada, embora Antonio Candido a tenha delimitado apenas a

um determinado momento histórico do século XX. A situação de atraso persiste, mas é ao

mesmo tempo agravada pelo processo de pós-modernização pelo qual passa o sertão.

Também se insere a concepção de um sertão “uno e múltiplo” na medida em que é um

local circunscrito em constante reatualização atravessado pelo mundo pós-moderno.

Assim, temos no Galileia uma revitalização e uma renovação da temática

sertaneja que expressa claramente o momento histórico atual do Sertão dos Inhamuns em

que foi mesclado, segundo o próprio escritor, “toda essa realidade, a mais real possível,

com o totalmente imaginário” (BRITO apud LINS, 2009. p. 01). O mundo social e histórico

contemporâneo se estrutura ao lado do mundo ficcional que, de certo modo, se imbricam

ao longo de todo romance. A perspectiva histórica e a perspectiva literária se contaminam

de tal forma que se percebe a imagem de um sertão em processo de modificação ao lado

dos elementos de permanência, herdados do passado. Nesse caso, o romance Galileia

pode ser interpretado como uma obra que constroi uma imagem verossímil do sertão em

conformidade com a ambientação pós-moderna da globalização, de modo que pode ser lido

como uma “história possível” trabalhada pelo próprio escritor. Isso nos faz lembrar Adriana

Facina quando afirma que “os escritores e sua obras são historicamente situados, produtos

de sua época e de sua sociedade... suas ideias vivem no terreno material das relações

humanas” (FACINA, 2004, p. 42). Nesse sentido, Ronaldo Correia de Brito é um escritor

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consciente do seu tempo e de sua região inserida na complexidade do mundo pós-

moderno.

A realidade paisagística e sócio-histórica do sertão no romance, inserido no

processo de pós-modernidade, se configura como pano de fundo da história dilacerada da

família dos Rego Castro narrada pelo protagonista Adonias que, junto com os irmãos

Ismael e Davi, cruzam o sertão do Ceará com destino à decadente Fazenda Galileia do avô

Raimundo Caetano. Esses três personagens foram “a geração que largou o campo pra

nunca mais voltar” (BRITO, 2008, p. 114), mas por força de um dever de família (o avô

moribundo) são forçados a retornar. Nesse retorno ao sertão, eles reencontram o passado

no presente de um sertão em processo de modificação. Eles vivem a ambigüidade e a crise

de identidade entre ser e não ser, num misto de estranhamento e identificação com o

sertão: “não quero me ligar nesse mundinho sertanejo” (BRITO, 2008, p. 135), mas “o

sertão a gente traz nos olhos, no sangue, nos cromossomos” (BRITO, 2008, p. 19). Sendo

assim, esses personagens estão inseridos na concepção de “sujeitos pós-modernos” na

medida em que eles são deslocados entre o aqui e o acolá. Segundo Stuart Hall, o sujeito:

está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de


várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas [...] o
próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em
nossas identidades culturais, tornou-se provisório, variável e
problemático. (HALL, 1999, p. 14).

Notamos então que a postura pós-modernista do Adonias, por exemplo, resulta dessa

história possível do Galileia que corrobora e confirma a história concreta do processo de

globalização da “modernidade tardia” na contemporaneidade do século XXI. Esse processo

não causa apenas o dilaceramento da identidade do sujeito, mas também de todo um

espaço sócio-cultural, embora isso esteja acontecendo de modo lento no interior do sertão.

Assim, o que está havendo no interior do sertão é uma paulatina

globalização dos costumes de modo que aqueles elementos culturais que foram

sacralizados, na forma do pitoresco, do exótico e do estereótipo, estão sofrendo mudanças

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significativas ou ocasionando o seu desaparecimento. Dessa forma, a banda de forró, em

detrimento do trio pé-de-serra que tradicionalmente utilizava sanfona, zabumba e triângulo,

incorporou a guitarra, teclado, baixo, sanfona e bateria. O seu vocalista, que lembra um

híbrido roqueiro-forrozeiro, “usa três argolas na orelha esquerda, um piercing no nariz e

roupa preta brilhosa. Passa a mão nos cabelos pintados de louro, endurecido pelo excesso

de gel fixador” (p. BRITO, 2008, p. 34). A avó Maria Raquel empolga-se com as

recomendações de um programa de TV sobre as recomendações de saúde para “manter-

se sempre jovem” (BRITO, 2008, p. 165-167), além de não despregar o olho da iditiotia do

Big Brother. O tio Salomão “nunca deixou de investir em caprinos, e agora planta mamona,

de olho nos biocombustíveis” (BRITO, 2008, p. 114), e a lavoura de algodão cedeu ao

cultivo da maconha. Onde havia vaqueiros montados a cavalos com gibões de couro,

percebemos agora mulheres montadas em motocicletas pastoreando a criação, o que

denota o advento de um novo papel exercido pela mulher. Os barulhos da TV tendem a

fazer desaparecer a narrativa oral do Tio Natan: “Já que o avô não se manifesta, o direito

de fala pertence a Natan, o filho mais velho. Será que conseguiremos ouvi-lo? Maria

Raquel eleva o volume da televisão a uma altura insuportável” (BRITO, 2008, p. 204-205).

No lugar do antigo lampião ou candeeiro, tem-se a energia elétrica e não mais se ver nem

cangaceiros e nem jagunços torando as estradas e a caatinga. Além do mais, o sertão foi

invadido pelas lan houses, internet, telefones celulares, computadores e laptops, que nos

fazem lembrar a ideia roseana de que o espaço sertanejo é “os gerais”, de modo que o

sertão está no mundo e o mundo está no sertão. Isso de certa forma implica uma nova

concepção de temporalidade no espaço sertanejo acentuada pelo processo global da pós-

modernidade.

No entanto, ao lado dessa temporalidade pós-moderna em seu devir

histórico, percebe-se a permanência do arcaico-tradicional. Além da violência e das

tragédias no seio familiar, o que também permanece é o patriarcalismo fruto da herança

colonial brasileira, mas que remonta aos antepassados judaicos da família Rego Castro.

Segundo Gilberto Freyre, a formação patriarcal do Brasil consiste em termos de

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“experiência de cultura e da organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora”

(FREYRE, 2005, p. 45). O patriarcalismo é um modo de estruturação e organização da vida

familiar fundado no poder de um “pai”, o patriarca, em que se destacam as relações

masculinas sobre as femininas. Segundo as palavras de Ronaldo Correia de Brito, o mundo

da Galileia é “um mundo mítico, profundamente arcaico, um mundo patriarcal, de um

patriarcalismo tão bárbaro, quanto o árabe judaico antigo, da Bíblia”. Nesse sentido,

Adonias quando medita sobre a rusticidade dos móveis da casa escolhidos pelo gosto

masculino do patriarca infere que:

o poder masculino dita as normas do desconforto, ninguém relaxa e nem


se entrega à preguiça... Por que as mulheres permitiram essa tirania?
Sinto a falta de cores alegres, curvas e sinuosidades femininas. Nossas
mães e avós sujeitaram-se aos caprichos desses monges, que
transformaram os aposentos em claustros, os quartos em celas, as
casas em mosteiros. (BRITO, 2008, p. 211).

O papel feminino na sociedade sertaneja do Galileia dá sinais de mudança, no entanto são

novidades tímidas visto que o patriarcalismo ainda prevalece nas atitudes e mentalidades

machistas do homem do sertão.

Outro fator tradicionalista reside na moral religiosa imposta com mãos de

ferro pelo patriarca Raimundo Caetano. Este seguia cegamente as Escrituras, lendo “as

proibições do Levítico” (BRITO, 2008, p. 221) para a família e exercendo a dureza do

castigo nos filhos e netos na forma de um Deus autoritário. Por conseguinte, as crenças e

as superstições também se constituem como forma arcaica, caracterizando o universo

mágico do sertão e que se encontra presente na fala do “homem do bar”:

meu filho quase me mata por nada, por esse trastezinho que até bem
pouco tempo atrás nem existia pra gente. Mas agora existe, e ele
desejou um. É o Diabo quem inventa essas coisas, só pode ser. E
também é o Diabo quem tenta a gente pra querer o que não precisa. Ele
aparece na televisão, ludibriando, prometendo maravilhas mandando
comprar, fazer qualquer sacrifício para possuir essas porcarias. (BRITO,
2008, p. 40).

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Por conseguinte, a despeito dessa fala do sertanejo, emerge no romance a problemática

social, atravessada pelas mudanças e pelo arcaico. Tal problemática reforça também a

consciência dilacerada de um sertão em que o capitalismo não foi incorporado por

completo, e a situação de atraso bem como as mazelas sociais, que já vêm desde

Guimarães Rosa, parecem ter sido agravadas com o processo de globalização. Com a

inserção de produtos tecnológicos como a televisão, a internet e o celular - num espaço

onde se evidenciam os problemas de educação e a economia de subsistência - os jovens

de famílias pobres não têm como adquiri-los e acabam entrando na criminalidade,

praticando roubos e furtos a fim de possuírem o objeto desejado, desejo este que foi

despertado pelas propagandas ilusórias dos grandes centros de produção capitalista. É o

que percebemos no drama do homem do bar: “mas ele quis o celular! Desejou não sei pra

quê... ele viu na televisão e achou bonito... o rapazinho meu filho roubou o aparelho por

vaidade, por luxo. E foi preso porque arrombou a loja” (BRITO, 2008, p. 38-39). Outro grave

problema social diz respeito à prostituição infantil que perpassa todo o romance:

Os caminhões ficam semanas esperando. Os fiscais são lentos e


corruptos, não mudam nunca. Chegam motoristas de todos os cantos do
Brasil, e enquanto esperam, não têm o que fazer. As pessoas da cidade
também não têm o que fazer, sobretudo os meninos e as meninas. São
pobres, por dois reais topam qualquer parada. Melhor que passar fome.
(BRITO, 2008, p. 48).

Em outra passagem, a despeito do agravamento social do sertão, o narrador lamenta que

anteriormente “o único flagelo era a seca”. Mas agora:

Nessa rota transitam caminhões e motoristas solitários, carentes de


sexo... os meninos e as meninas se oferecem nos postos de gasolina.
São pobres, não freqüentam escola, ninguém cuida deles. Vão passar
fome? O jeito é se prostituir. Fazer o quê? A grana das minas de gesso
não chega às casas deles. Nem ao bolso dos caminhoneiros. Eles
também são fodidos, e não sentem compaixão nenhuma. Gozam e vão
embora. (BRITO, 2008, p. 82)

Como foi demonstrado, o agravamento da situação social do atraso, da violência e do

flagelo da fome no momento histórico atual, nos faz pensar na barbárie dentro de um

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aparente e lento processo civilizatório do espaço sertanejo. Logicamente, a barbárie no

romance Galileia tem haver não só com a violência brutal no seio da família Rego Castro,

mas se configura também a partir das condições problemáticas da própria sociedade

sertaneja: “depois de viver em outras sociedades, de reconhecer o esforço que elas fizeram

para se diferenciar do que nós somos, voltamos à barbárie e praticamos os mesmos atos

de sempre” (BRITO, 2008, p. 143).

É essa consciência dilacerada que trás à tona, por via da história possível

do romance em função de um realismo verossímil, um momento histórico-social

contemporâneo pelo qual passa o sertão: dilacerado entre o arcaico e o moderno, entre as

benesses da globalização e o agravamento das condições sociais em seu sentido uno e

múltiplo. Nesse sentido, a história, enquanto matéria bruta dos fatos, e a literatura,

enquanto invenção imaginativa, interpenetram-se para trazer em toda sua complexidade a

vida social da região sertaneja na atualidade. Ambas são indispensáveis para a

compreensão profunda do humano, de um determinado momento e lugar da cultura

sertaneja em uma lenta e constante mutação, por força da sua inserção no sistema

globalizado. Portanto, ao longo da história brasileira desde o Romantismo, a consciência

histórica sobre a representação do sertão desenvolveu-se a partir dos estereótipos

construídos e sempre repetidos e retomados pela geração seguinte de escritores e

historiadores, muitos ainda com olhar exterior do colonizador. No entanto, na esteira desse

desenvolvimento, a retomada dos velhos temas sobre o sertão, como sendo o

genuinamente sertanejo, tornou-se apenas um pano de fundo funcional em favor de uma

consciência mais realista e problemática, renovando e revelando o ser uno e múltiplo do

sertão em toda a sua complexidade, como foi o caso de escritores como Guimarães Rosa,

em meados do século XX, e Ronaldo Correia de Brito, no início do século XXI.

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