Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
momento contemporâneo em que se insere toda uma discussão sobre teoria da pós-
locais. Nesse sentido, a dimensão narrativa dessa obra traz à tona o processo histórico
atual - global e local - de modo que a noção de sertão se reatualiza em contraste com as
diálogo entre o presente e o passado, entre o mundo globalizado e o sertão, onde notamos
parte de uma determinada realidade e uma determinada época para retratar e recriar, mais
ou menos, essa mesma época e essa mesma realidade. Nesse caso, as fronteiras entre
história e literatura são extremamente móveis. No tocante às obras literárias, elas podem
ser interpretadas como um modo de representação da realidade histórica que formata uma
imagem verossímil, de modo que pode ser lida como uma “história possível” nos termos
1
Ainda de acordo com esta autora, a conversão da história em literatura possui gradações
que oscilam entre a “história possível” – como foi o caso específico do desenvolvimento da
valores e a visão de mundo que brotam de seus diálogos e de suas narrativas referentes a
De fato, toda obra de arte, e no caso específico da literatura, liga-se profundamente a uma
realidade determinada que, necessariamente, pode ser a realidade vivida e observada pelo
escritor, mesmo que ele oculte, por motivos ideológicos conscientes ou inconscientes, os
reais problemas que se configuram nessa realidade. A exemplo disso, temos o caso da
sertanistas românticos no Brasil. Dessa forma, houve nessa história possível de tais
Aristóteles referente à tragédia grega, embora saibamos que este autor diferencie a
Aristóteles, na Poética:
2
Podemos dizer então que todos os eventos que aconteceram, que estejam acontecendo ou
que é provável que voltem acontecer, podem servir de matéria prima para a criação literária
determinado espaço e tempo, para criar sua história possível e imprimir sua visão de
mundo e sua verdade em termos literários. É por isso que Aristóteles atribui o caráter
universal à poesia e, em nosso caso, à literatura em que muitos temas são de certa forma
sertão foi representado a partir da consciência histórica dos escritores, tentando se possível
fazer uma relação entre o historiográfico e a história possível do literário. Desse modo, no
lembrando que nem sempre a realidade (quer seja o imaginário, o espaço e o sujeito) é
representada por uma imagem concreta das coisas e isso serve tanto para a literatura
quanto para a história. Ambos são condicionados pelas interpretações de mundo que
numa visão ingênua e pitoresca e numa visão mais crítica da realidade, mascarando ou
Essa visão ingênua sobre o sertão pode ser vista a partir daquilo que Antonio
Candido chama de “consciência amena” (CANDIDO, 1989, p. 142) inserida num contexto
europeia e adaptavam-na com tintas locais como foi o caso de José de Alencar, Franklin
3
Távora, Coelho Neto e Afonso Arinos, entre outros. Nisso, havia a idealização dos dramas,
das situações e das condições reais do homem do sertão. Antonio Candido afirma que os
românticos tinham a consciência amena do atraso esboçada apenas numa visão idílica da
discurso europeu que via o sertão a partir da ótica do litoral e do colonizador. Sendo assim,
Como percebemos, para Albertina, quando uma obra retoma, em favor da consciência
amena, os estereótipos sem a devida crítica, ela busca repetir uma “coleção de signos
uma nova dimensão histórica de uma dada época. A tendência ao estereótipo é sedimentar
4
pelas quais o espaço regional passa a sofrer lentamente. Nesse caso, a reinvenção da
historicamente convencionalizados.
lugar a uma renovação dos velhos temas sem perder de vista os paradigmas do imaginário
do sertão que se tornam agora apenas funcionais. Aliás, a história possível da criação
particular estão imbricados. Esse momento corresponde, segundo ainda Antonio Candido,
a uma “consciência dilacerada” (1989, p.162) do atraso. Aqui, a literatura passa a utilizar
universo urbano brasileiro: é o choque provocado pela obra de Guimarães Rosa, em que o
sertão torna-se o pano de fundo para obras como Grande sertão: veredas e como o conto
Dãolalalão.
universal, passa a ser visto e retratado a partir da sua periferia interiorana, e de dentro da
alma do homem sertanejo no sentido de que o sertão está dentro da gente. Agora, segundo
não o sertanejo” (VINCENTINI, 1998, p. 47). Aqui, o sertão e o homem sertanejo adquirem
voz própria por meio da mediação criativa, não de um escritor estranho nascido no meio
urbano, mas de um escritor que tem seu umbigo ligado profundamente à realidade
5
as questões fundamentais em que o ser humano se debate são vividas...
por marginalizados sertanejos. Guimarães Rosa dá o estatuto de
dignidade ao ‘homem do povo’, com direito à tragédia; com direito ao
páthos – o que é um fundamental traço de radicalidade de sua ficção.
(...) Soropita e Doralda estão mais próximos da História que do Mito, do
mundo da ironia que da analogia, do ‘badaladal’ que do sino.
(MENESES, 2008, p. 270).
Guimarães Rosa, a história possível de sua ficção se identifica com a dimensão histórica da
uma categoria comparada à noção de mana de Marcel Mauss. A noção de mana é definida
Mais na frente, a autora conclui a definição da categoria sertão com base em Guimarães
Rosa, afirmando que ela “sugere um estado, um estado de alma coletivo, genuinamente
Guimarães Rosa revela um tipo de verossimilhança que se coaduna com toda a unicidade
Além disso, é preciso ressaltar que esse aspecto “uno e múltiplo” do sertão
não se restringe à circunscrição dos sertões brasileiros, pois se o sertão está em toda
escritor Guimarães Rosa quando afirma que “no sertão fala-se a língua de Goethe,
6
“genuinamente brasileiro” tem suas raízes na cultura ocidental, principalmente no que diz
respeito aos elementos mágicos, fantásticos e lendários do espaço sertanejo. Sem a lenda
jagunço Riobaldo.
sertão desde o século XIX, é preciso agora saltar o percurso histórico, situado na época de
despeito da consciência histórica do escritor, o romance pode ser definido, a nosso ver,
como uma consciência dilacerada, embora Antonio Candido a tenha delimitado apenas a
mesmo tempo agravada pelo processo de pós-modernização pelo qual passa o sertão.
sertaneja que expressa claramente o momento histórico atual do Sertão dos Inhamuns em
que foi mesclado, segundo o próprio escritor, “toda essa realidade, a mais real possível,
com o totalmente imaginário” (BRITO apud LINS, 2009. p. 01). O mundo social e histórico
pode ser interpretado como uma obra que constroi uma imagem verossímil do sertão em
conformidade com a ambientação pós-moderna da globalização, de modo que pode ser lido
como uma “história possível” trabalhada pelo próprio escritor. Isso nos faz lembrar Adriana
Facina quando afirma que “os escritores e sua obras são historicamente situados, produtos
de sua época e de sua sociedade... suas ideias vivem no terreno material das relações
humanas” (FACINA, 2004, p. 42). Nesse sentido, Ronaldo Correia de Brito é um escritor
7
consciente do seu tempo e de sua região inserida na complexidade do mundo pós-
moderno.
família dos Rego Castro narrada pelo protagonista Adonias que, junto com os irmãos
Ismael e Davi, cruzam o sertão do Ceará com destino à decadente Fazenda Galileia do avô
Raimundo Caetano. Esses três personagens foram “a geração que largou o campo pra
nunca mais voltar” (BRITO, 2008, p. 114), mas por força de um dever de família (o avô
moribundo) são forçados a retornar. Nesse retorno ao sertão, eles reencontram o passado
de identidade entre ser e não ser, num misto de estranhamento e identificação com o
sertão: “não quero me ligar nesse mundinho sertanejo” (BRITO, 2008, p. 135), mas “o
sertão a gente traz nos olhos, no sangue, nos cromossomos” (BRITO, 2008, p. 19). Sendo
medida em que eles são deslocados entre o aqui e o acolá. Segundo Stuart Hall, o sujeito:
Notamos então que a postura pós-modernista do Adonias, por exemplo, resulta dessa
espaço sócio-cultural, embora isso esteja acontecendo de modo lento no interior do sertão.
globalização dos costumes de modo que aqueles elementos culturais que foram
8
significativas ou ocasionando o seu desaparecimento. Dessa forma, a banda de forró, em
incorporou a guitarra, teclado, baixo, sanfona e bateria. O seu vocalista, que lembra um
roupa preta brilhosa. Passa a mão nos cabelos pintados de louro, endurecido pelo excesso
de gel fixador” (p. BRITO, 2008, p. 34). A avó Maria Raquel empolga-se com as
se sempre jovem” (BRITO, 2008, p. 165-167), além de não despregar o olho da iditiotia do
Big Brother. O tio Salomão “nunca deixou de investir em caprinos, e agora planta mamona,
cultivo da maconha. Onde havia vaqueiros montados a cavalos com gibões de couro,
fazer desaparecer a narrativa oral do Tio Natan: “Já que o avô não se manifesta, o direito
de fala pertence a Natan, o filho mais velho. Será que conseguiremos ouvi-lo? Maria
Raquel eleva o volume da televisão a uma altura insuportável” (BRITO, 2008, p. 204-205).
No lugar do antigo lampião ou candeeiro, tem-se a energia elétrica e não mais se ver nem
cangaceiros e nem jagunços torando as estradas e a caatinga. Além do mais, o sertão foi
invadido pelas lan houses, internet, telefones celulares, computadores e laptops, que nos
fazem lembrar a ideia roseana de que o espaço sertanejo é “os gerais”, de modo que o
sertão está no mundo e o mundo está no sertão. Isso de certa forma implica uma nova
modernidade.
colonial brasileira, mas que remonta aos antepassados judaicos da família Rego Castro.
9
“experiência de cultura e da organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora”
patriarcalismo tão bárbaro, quanto o árabe judaico antigo, da Bíblia”. Nesse sentido,
Adonias quando medita sobre a rusticidade dos móveis da casa escolhidos pelo gosto
novidades tímidas visto que o patriarcalismo ainda prevalece nas atitudes e mentalidades
ferro pelo patriarca Raimundo Caetano. Este seguia cegamente as Escrituras, lendo “as
castigo nos filhos e netos na forma de um Deus autoritário. Por conseguinte, as crenças e
meu filho quase me mata por nada, por esse trastezinho que até bem
pouco tempo atrás nem existia pra gente. Mas agora existe, e ele
desejou um. É o Diabo quem inventa essas coisas, só pode ser. E
também é o Diabo quem tenta a gente pra querer o que não precisa. Ele
aparece na televisão, ludibriando, prometendo maravilhas mandando
comprar, fazer qualquer sacrifício para possuir essas porcarias. (BRITO,
2008, p. 40).
10
Por conseguinte, a despeito dessa fala do sertanejo, emerge no romance a problemática
social, atravessada pelas mudanças e pelo arcaico. Tal problemática reforça também a
completo, e a situação de atraso bem como as mazelas sociais, que já vêm desde
Guimarães Rosa, parecem ter sido agravadas com o processo de globalização. Com a
praticando roubos e furtos a fim de possuírem o objeto desejado, desejo este que foi
que percebemos no drama do homem do bar: “mas ele quis o celular! Desejou não sei pra
quê... ele viu na televisão e achou bonito... o rapazinho meu filho roubou o aparelho por
vaidade, por luxo. E foi preso porque arrombou a loja” (BRITO, 2008, p. 38-39). Outro grave
problema social diz respeito à prostituição infantil que perpassa todo o romance:
flagelo da fome no momento histórico atual, nos faz pensar na barbárie dentro de um
11
aparente e lento processo civilizatório do espaço sertanejo. Logicamente, a barbárie no
romance Galileia tem haver não só com a violência brutal no seio da família Rego Castro,
sertaneja: “depois de viver em outras sociedades, de reconhecer o esforço que elas fizeram
para se diferenciar do que nós somos, voltamos à barbárie e praticamos os mesmos atos
É essa consciência dilacerada que trás à tona, por via da história possível
contemporâneo pelo qual passa o sertão: dilacerado entre o arcaico e o moderno, entre as
múltiplo. Nesse sentido, a história, enquanto matéria bruta dos fatos, e a literatura,
sertaneja em uma lenta e constante mutação, por força da sua inserção no sistema
historiadores, muitos ainda com olhar exterior do colonizador. No entanto, na esteira desse
sertão em toda a sua complexidade, como foi o caso de escritores como Guimarães Rosa,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
12
BRITO, Ronaldo Correia de. Galileia. Rio de janeiro: Alfaguara, 2008.
FACINA, Adriana. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004
(Coleção Passo a passo).
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime
da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005.
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Ficção
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MAESTRI, Mário. História e romance histórico: fronteiras. In: Novos Rumos. Ano 17, nº
36, 2002, p. 38-44.
SHIAVO, Sylvia. Sertão uno e múltiplo ou “lua pálida no firmamento da razão”. In:
Sociedade e Cultura, vol. 10, n. 1, jan./jun. 2007, p. 41-44.
13