Vous êtes sur la page 1sur 38

Aoristo)))))

International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna


(Devaneios, Cismas)

Notes on the Theme of Modern Technique (Reveries,


Schisms)

Prof. Dr. Gilvan Fogel


Titular do Departamento de Filosofia da UFRJ1

RESUMO 71
O texto discute a técnica moderno-contemporânea a partir de F. Nietzsche (espírito de
vingança), F. Dostoievski (l’homme révolté, bípede ingrato) e M. Heidegger (terra, finitude,
serenidade). O tipo moderno (l’homme révolté), movido por espírito de vingança ― isso
constitui a essência da técnica amoderna. A retomada do sentido da Terra (finitude, limite,
possível) abre a possibilidade da transformação do sentido da ação e da produção, justo a
partir da vigência de tal experiência, a saber, Terra, finitude, serenidade.

PALAVRAS-CHAVE
Heidegger; Questão da Técnica; Espírito de Vingança; Sentido da Terra; Serenidade

ABSTRACT
The text discusses the modern-contemporary technique as viewed by F. Nietzsche (spirit of
revenge), F. Dostoievski (l´homme révolté, ungrateful biped) M. Heidegger (earth, finitude,
serenity). The modern type (l´homme révolté) guided by the spirit of revenge — that
constitutes the modern technique. The regain of the meaning of the earth (finitude, limit,
possibility) reveals a possibility of transformation of the perception of action and production,
precisely in so far as such experience — Earth, finitude, serenity — rules.

KEYWORDS
Heidegger; Question of the Technique; Spirit of Revenge; Meaning of the Earth; Serenity

1
Email: gilvanfogel@gmail.com

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Oh pobreza, pobreza! E hoje, agora e aqui, o real que é,


Dádiva santa desagradecida! o real que nos circunda é técnico. O
(CERVANTES, Don Quixote, II, XLIV). que é, tudo que nos rodeia é e há
enquanto e como técnica. Hoje, tudo é
técnica. Da singela, franciscana
1. cenoura ao último computador ou ao
“Esta vida de bordo há de matar- aparato disparado e que pousa em
me”, fala um poeta (PESSOA, 1974, p. Marte ou em Júpiter.
302). A verdade é que toda vida é “de Para nos locomovermos em
bordo”, a bordo. Sempre. Sempre já nosso mundo, para nos orientarmos
vida de embarcado, sempre já em no mundo que é o nosso, precisamos
viagem. Embarcado no barco-vida e nos medir, nos confrontar com a
na viagem-história. Com o bonde técnica. Medir-nos e nos confrontar
sempre já andando, somos sempre como quem a quer entender, ver. Mas
herdeiros e assim, andando, ver como pensamento vê, ou seja,
legaremos. Na história e como história vendo essência ― isto é, vendo
herdamos e legamos. E assim vai e geração e gênese. Sintonizando-se e
assim é. O é é o ir. sincronizando-se com o tônus e o
Nessa viagem, nós, filósofos, tempo de nosso tempo. Isso é autêntica
herdamos a filosofia assumindo o real participação vital e real
tal qual ele, aqui e agora, nos é legado, contemporaneidade.
passado ou repassado. Pois o No nosso tempo, na nossa época,
pensamento, que é vida e, então, tal Heidegger foi o pensador que pôs
como a vida, é sempre agora e aqui. A energicamente esta pergunta e, ao
filosofia só é verdadeiramente mesmo tempo, o que mais gravemente
herdada ao nos medirmos com o real, com ela se confrontou. Com ele, a
que imediatamente nos circunda, que partir dele, seguindo-o, vamos tentar
de cara nos é dado. A não ser ou não entrever algo de essencial nisso que é
se fazer assim, nossa lida filosófica o mais difícil de ser visto, a saber, o
tende a se tornar diletantismo, presente, o nosso presente, o que está
erudição, historiografia, cultura. Tende na nossa cara, tão na cara que é até o
a tornar-se distração para o tédio, um nosso próprio olho.
quinhão para “a volúpia do Heidegger começa nos
aborrecimento humano” ― “uma das advertindo que a essência da técnica
sensações mais sutis desse mundo”, não é nada de técnico. Isso quer dizer:
no testemunho de outro poeta. (ASSIS, nenhum procedimento, nenhuma
1994). invenção, nenhum resultado, produto
ou instrumento técnico, mesmo e

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

sobretudo o de última geração, há de coisa, objeto, para ser fixado e passado


nos dizer, de nos mostrar o que é a adiante na boa comunicação.
técnica ― a técnica moderna ou a Segundo, enquanto e como
tecnologia, pois é esta que está em desencobrimento (desvelamento,
questão. Como já ficou indicado desocultamento, alétheia), verdade fala
acima, por essência cabe entender de um modo de ser do vivente que é
gênese, geração ― fundo gerador, a (i.é, vive, existe) no sentido e na
partir do qual e como o qual um determinação do ver, do aparecer ―
fenômeno, no caso, a técnica moderna, do mostrar-se e fazer-se visível. Ver
é posto em movimento. Essência abre, e/ou aparecer que se dão enquanto ou
inaugura um movimento e: como tais. Tal vivente é o homem e só o
“Proveniência é porvir”. homem. Verdade, desencobrimento,
De início, um segundo aspecto fala, pois, de uma dimensão humana,
que queremos marcar, é que, de que pode ser dita como uma tensão
acordo com Heidegger, a técnica vital muito própria, um tônus
moderna é um modo de verdade se existencial propriíssimo (sua ipseidade,
fazer verdade. O nosso ou o modo costuma-se dizer na ágora), no qual,
contemporâneo de verdade fazer-se desde o qual e como o qual o aparecer
73
verdade. Verdade fazer-se verdade?! ou o mostrar-se acontece, se dá,
Verdade se faz verdade?! Ora, verdade irrompe ― como tal. É um acordar do
não é?! Um breve circunlóquio para homem e da vida para a vida e para o
advertir que verdade, para Heidegger, homem. “Acordar”, “despertar”, foi a
a rigor, diz alétheia ― palavra, o nome que Heráclito, na
desencobrimento. Isso pode parecer irrupção deste acontecimento,
uma trivialidade, mas não é pouco. encontrou para dizê-lo, para mostrá-lo
Em primeiro lugar, assim entendida, como tal. O homem, o ver, despertou
verdade jamais está se referindo a para o homem, para o ver e, então,
algum estado de fato, seja objetivo, abre-se, abriu-se igualmente história.
seja subjetivo. Verdade, assim História e liberdade, melhor, história
entendida, não é uma coisa ou um como liberdade ou como movimento
estado de coisas; não é um dado, um insistente do ver para... o ver. Para a
registro, uma fixação. Nenhuma verdade. Isso é o Ocidente, a Europa.
ocorrência, seja da ordem do subjetivo Nós.
ou do objetivo. Nada a ser, seja O que marca, o que marcaria
objetiva, seja subjetivamente, nossa contemporaneidade é a vigência
constatado, veri-ficado. Nenhuma de um ver, de um aparecer ou tornar
certificação e nenhum controle ou visível que tudo vê, que tudo já vê ou
asseguramento de nenhum fenômeno, antevê desde e como reserva, energia
evento. Nada de correspondência, para, estoque, capital, jazida, matéria
adequação entre juízo, enunciado e prima, fonte de uso, de consumo. Carvão,
combustível para a sanha da fornalha,

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

para a caldeira-vida, pois, como Heidegger denominou com-posição2,


caldeira e fornalha, é vista, é sentida a Gestell, que, enquanto essência, é
vida. A natureza, melhor, tudo, também uma forma, uma estrutura.
absolutamente tudo, se transforma A arguta e funda análise de
num gigantesco posto de combustível Nietzsche do modo de ser do
para abastecimento, um “einzigen moderno conhecimento
riesenhaften Tankstelle, für representativo-conceitual, lógico-
Energiequelle für die moderne categorial, nos dá um esclarecedor
Technik und Industrie” ― “um único e aceno ao que está sendo pensado e
gigantesco posto de abastecimento, subpensado na formulação de
fonte de energia para a moderna Heidegger. Nietzsche vê nas
técnica e indústria”, diz Heidegger, chamadas categorias da razão e na
em Serenidade. lógica não, como elas presumem a
Este estranho modo de ser, de respeito de si mesmas, um critério, i.é,
ser homem ou de viver, a saber, o uma medida para a determinação de
moderno-contemporâneo, tudo verdade e, então, de realidade, mas só
propõe, prepõe, antepõe, dispõe, e tão só um meio, um esquema, diz
justapõe, contrapõe, enfim, de todos ele, “zum Zurechtmachen der Welt zu
os jeitos e modos previamente ou por Nützlichkeits-Zwecken”, isto é, um
antecipação tudo põe como energia meio, um esquema “para arrumar
(fonte de, para; matéria prima), (ajeitar, preparar) o mundo com fins
combustível, insumo, reserva, estoque ― utilitários”. (NIETZSCHE, 2008, p.
tudo a ser usado e abusado. O ab-uso 303). O que Nietzsche chama
é o uso excessivo e ávido e convulsivo “zurechtmachen” corre na direção do
e degenerativo e aniquilante ou que Heidegger, para caracterizar a
niilizante do usável. O bom uso, o uso essência da técnica moderna, chama
comedido, faz com que o usado seja e “Gestell”, “composição”, ou, talvez,
permaneça sendo isso que é no uso e estruturação, armação. Isso, porém,
graças ao uso. Abuso, porém, é uso requer esclarecimento.
sanhoso, assanhado, ávido, quando, no “Zurechtmachen” é preparar para,
uso abusado, se esgota, se exaure o sim, mas no sentido de um ajeitar, de
usado e ainda se fica longe, muito um arrumar de jeito para. Neste sentido,
longe da saciedade. O abuso destrói, armar, isto é, fazer uma armação, no
aniquila. À junção ou integração de
todos estes modos de pôr, de 2
Composição é o modo como, aguda e
posicionamentos, e que perfazem o oportunamente, afinando-se com o espírito da
modo próprio de ser da técnica cunhagem heideggeriana, a partir das modulações
do verbo stellen (pôr), Emmanuel Carneiro Leão
moderno-contemporânea, sua velada
traduziu, em A Questão da técnica (HEIDEGGER,
ou calada essência (=gênese), 2002, p.11) o termo “Gestell”, com o qual
Heidegger denomina/caracteriza e essência da
técnica.

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

nosso sentido coloquial e matreiro de, vida, na e da existência. O método


astuta ou espertamente, previamente moderno, melhor, as modernas
(com cálculo), preparar algo ad hoc, isto metodologias, vigentes nas atuais
é, para um determinado fim ou epistemologias, filosofias das ciências
propósito ― armar, armação, p.ex., na e das linguagens ― as modernas
nossa tupiniquim esperteza política. metodologias, pois, marcam a
Neste sentido, assim operando, a dominação desta atitude calculante,
razão, na atuação combinada (=juízo) deste modo moderno-contemporâneo
de suas categorias, está fazendo uso de ser homem, de viver. As
de uma subterrânea astúcia. O nome metodologias (filosofias das ciências e
desta astúcia é cálculo ― o pensamento das linguagens, as epistemologias) são
calculante ou a lógica. Ainda na isso e existem a serviço disso. Por isso,
formulação de Nietzsche, o continuando com Nietzsche, aguda e
verdadeiro propósito desta operação é incisivamente ele diagnosticou: “Não
“sich die Welt handlich und é a vitória da ciência o que distingue
berechenbar zu machen”, isto é, nosso século XIX, mas a vitória do
“tornar o mundo manuseável método científico sobre a ciência”
(manipulável, à mão, “handlich”) e (NIETZSCHE, 2008, p. 255). Esta é
75
calculável”. (NIETZSCHE, 2008, p. uma observação de alguém que
303). E cálculo, aqui, deve ser bem realmente vê, viu. Onde está escrito
entendido. E não no sentido restrito “nosso século XIX”, leia-se: “nossa
de uma operação matemática, contemporaneidade”. En passant,
dedutiva, como um método para “ciência”, na designação final da
resolver problemas, p.ex., de citação, está dizendo “saber” e não
aritmética ou de álgebra. Não. “ciência” no sentido canônico,
Cálculo, aqui, está falando de todo um vigente. E o método científico vence,
procedimento empenhado em, triunfa, com o grassar das
previamente ou por antecipação, metodologias ― as doutrinas do
estabelecer as condições para o controle e do asseguramento ou o
controle e a segurança (= certeza), caminho para a realização do ideal
melhor, o auto-asseguramento. Cálculo cartesiano de certeza. Diria, diz Hegel:
está, pois, dizendo: um procedimento “isso não é filosofia (i.é, amor à
que é uma armação esperta, uma verdade), mas medo de errar”. E,
preparação de jeito a/para continua Hegel, no medo de errar ―
(=“zurechtmachen”), previamente, ter aí está o erro! (HEGEL, 1952, p. 64).
com certeza todas as condições de Na técnica, na técnica
certeza e de controle de todo o contemporânea, impera o cálculo, este
mundo, de toda a natureza. Cálculo, tipo de cálculo aqui caracterizado. A
assim, é uma espécie de certeza da matemática, diga-se ainda de
certeza, um controle do controle, um passagem, a matematização (i.é, o
total auto-asseguramento na e da projeto de tudo antecipar

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

numericamente ou como número) de que prévia ou antecipadamente tudo


todo real e, então, do saber e das pré- ou antepõe (encomenda), dispõe,
ciências, em geral, na modernidade, é propõe, repõe, justapõe como estoque,
só um feliz acidente ou um oportuno jazida, reserva de energia/combustível
recurso, um bom expediente a mais para a ser consumida(o) no uso abusado de
a realização deste propósito moderno- tudo ― enfim, cálculo. O mundo, a
contemporâneo ― deste projeto ou vida, a natureza se transforma num
programa de vida, de existência, grande almoxarifado (reserva,
desde ou a partir de certeza e de estoque, capital) e o homem no
método (i.é, metodologia). Enfim, o almoxarife, no chefe e no dono, no
ideal do cálculo. É isso que Heidegger gestor do negócio, da empresa, do
marca em “Serenidade” ao falar, de capital.
um lado, de “pensamento meditante”, Bem, mas isso é um fato. Isso,
de outro, então para caracterizar o esta situação, constata-se, verifica-se.
atual mundo técnico, de “pensamento No entanto, é preciso perguntar: e
calculante” ou, pura e simplesmente, como isso, tal situação? Desde onde
cálculo. Deixemos, porém, de lado isso? Qual a causa disso? Heidegger
“meditação”, “Besinnung”. Interessa- responde: a causa (!!) é a metafísica. A
nos, agora, técnica. A técnica responsável, a culpada é a metafísica!
moderno-contemporânea. Isso, a saber, tal situação ou
configuração histórica, se dá ou se faz
desde e como metafísica, pois, ele
calca e escandi a leitura/interpretação,
a técnica atual é a cumulação, a
2. plenificação ou consumação
Retomemos. Recordemos. A (“Vollendung”) da metafísica.
técnica atual, diz Heidegger, é um Problema torna-se agora a metafísica
modo de verdade fazer-se verdade. ― que é? E: como metafísica se
Isso quer dizer: um modo possível, consumando como técnica
melhor, o modo possível vigente ou contemporânea? Por quê? E ainda: o
dominante de verdade, na que é e como é consumação (da
contemporaneidade, se realizar. Pois metafísica)?
verdade, entendida como alétheia (i.é, De início, um rápido aceno para
desencobrimento, mostração), diz o que, de modo geral, aqui, se deve
realidade se realizando, isto é, se entender sob metafísica. Trata-se de
mostrando, se des-ocultando, um saber, de uma compreensão que
fazendo-se visível, agora, porém, como supõe, pressupõe que todo e qualquer
Gestell, quer dizer, como com-posição, real, melhor, o real enquanto tal se
isto é, desde e como uma atitude (vital, mostra e se define, precisa se mostrar e
existencial, histórico-contemponrânea) se definir desde e como fundo e

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

fundamento ― subjectum e causa. fio condutor da causalidade (isto é, no


Metafísica é o saber que vê, que rastro da consistente conexão
organiza toda realidade possível, todo antecedente-consequente, isto é,
o real, desde e como necessidade de segundo e seguindo a lógica) pode não
fundo e de fundamento ― portanto, só conhecer, mas mesmo reformar,
um saber que se faz desde e como corrigir o real, todo real ― isso será a
vontade de fundamento. E: “Quem marca, a essência da metafísica (ouça-
sempre vai aos fundamentos, ao se, sua força ou gênese a pontuar sua
fundo, acaba por afundar, por ir à geração histórica) e que Nietzsche,
pique ou à breca”(NIETZSCHE, 2003, depois, denominará espírito de
p.252)... Nietzsche diz também, vingança. A essência da metafísica é (o)
vontade de verdade, à medida que vê na espírito de vingança ― isso entra no
verdade (correspondência, adaequatio) saber, na ciência (=metafísica) como
certeza, segurança, conforto. Assim instinto, como o instinto (=atitude
sendo, tal atitude já é um modo de automática, mecânica, então, razão,
orientar-se pelo e para o certo e o direito) metafísico. Espírito de vingança
seguro ― ela e para a certeza. Vontade apropria-se, apodera-se da ciência, do
de certeza, de segurança. saber, da metafísica, isto é, faz-se,
77
E continuemos ainda com torna-se instinto. Esta é, deve ser, pois,
Nietzsche, não para nos desviar do igualmente a essência da técnica, à
tema, mas, ao contrário, para, medida que assentirmos ser a técnica
supostamente por uma boa via, para a consumação (“Vollendung”) da
ele nos enviar e mais entrar na coisa. Já metafísica. Técnica (=“Gestell”,
em O Nascimento da tragédia, quando composição), assim, perfaz a consumação
Nietzsche analisa a instauração do do espírito de vingança. Vingança está
fenômeno do socratismo (ou dizendo: esforço, empenho de,
platonismo, isto é, metafísica), ele tem seguindo o fio condutor da causalidade, se
esta formulação: “[...] então... surge sentir no direito e no poder, não só de
uma profunda, louca, delirante ideia compreender e conhecer (i.é
(“tiefsinnige Wahnvorstellung”), que representar e dominar) os mais
com Sócrates primeiramente vem à profundos abismos do ser (ouça-se,
luz, a saber, aquela inabalável crença aqui: do real, de todo real, da vida),
segundo a qual o pensamento, seguindo mas também de corrigi-lo, isto é, de
o fio condutor da causalidade, atinge os reformá-lo, e hoje, na era da
mais profundos abismos do ser e que o dominação da técnica como
pensamento está em condições não só de cibernética, também de substituir o
conhecer o ser, mas mesmo de o corrigir. real (a vida) pelo virtual, isto é, pela
Essa sublime ilusão metafísica é razão, pela lógica, pelo cálculo. O
somada à ciência como um instinto virtual, o número, o dígito impede o,
[...]”. (NIETZSCHE, 2003, p. 93). Isso, imuniza do erro. É nesta direção e em
a saber, que o pensamento, seguindo o razão desta compreensão/formulação,

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

que Nietzsche caracterizará toda a saber, no nosso caso, alimentar,


metafísica como moral, quer dizer, fomentar, dar corda ao espírito de
como a vigência, a dominação de uma vingança. Por que, como, desde onde o
normatividade, de um dever ser, real é como não deve ou não devia ser
empenhado em corrigir, reformar e, e, então, por isso, deve, precisa ser
por fim, substituir o real, todo real, corrigido, reformado, substituído?
toda a vida ou existência ― pois este Isso, este modo de ser, torna-se a
ou esta aparece, se mostra como o que sanha, a hybris moderno-
não deve, não devia ser[...] ?!... A contemporânea. E as perguntas acima
metafísica, a ontologia, é lógica (=o fio esboçadas são perguntas que devem
condutor da representação causal ser colocadas e realmente perguntadas
finalística) e é, no fim e no fundo, ― para que possamos viver com maior
moral, pois a convicção de precisar ser dignidade? Ouçamos a seguinte
o dever ser da correção, da reforma e passagem de Nietzsche, escrita em
da substituição do real ― que é mau, pleno último quarto do século XIX ―
que é como não devia ser... Errado? sim, do XIX! Ele escreve: “Hybris é
Culpado?!... O homem, este homem, hoje nossa atitude para com a
assim imbuído deste propósito e desta natureza, nossa violentação da
tarefa, torna-se o homem bom. O técnico natureza com a ajuda das máquinas e
moderno-contemporâneo é um, é o da tão irrefletida invencionice de
homem bom. O homem bom é o tipo que técnicos e de engenheiros... hybris é
segue à risca, dócil e nossa atitude para com nós mesmos,
subservientemente, a norma, isto é, o pois fazemos conosco experimentos
prescrito que se tornou a norma ou que não nos permitiríamos fazer com
prescrito por ser prescrição ou norma. nenhum animal, e alegres, divertidos e
Carlos Bovary, o mais perfeito idiota curiosos vivisseccionamos nossa
dentre os idiotas, é um homem bom. alma... Violentamos a nós mesmos
Mas, na suposição que isso, que hoje em dia, não há dúvida, nós,
tal formulação, mereça algum crédito, tenazes, quebra-nozes da alma,
isto é, que tenha algum direito de ser questionadores e questionáveis, como
ou a ser, pergunta-se: como? Desde se viver fosse apenas quebrar nozes; assim
onde? Por quê? Ou ainda: qual, desde nos devemos tornar cada vez mais
onde o direito a este direito, a saber, passíveis de questionamento, cada vez
corrigir, reformar, substituir o real, a mais dignos de perguntar e assim mais
vida, a existência? Pois uma vez que dignos talvez ― de
se está no direito, que um ou alguém viver?[...]”(NIETZSCHE, 1998). Sim,3

se sente no direito, este tem a razão, para a técnica moderna, viver é


isto é, o fundamento, e, então, este quebrar nozes ― só, tão só quebrar
pode (tem o ou está no direito de) nozes. A Terra é uma noz, a noz ...
tranquilamente continuar a obra, a
3
Cf. Terceira Dissertação.

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

E perguntemos: como, desde o humor, o espírito (a essência) de toda


onde esta hybris, que move e promove sua (de Álvaro de Campos) poética,
a técnica moderna, isto é, que parece de todo o seu poetar, isto é, dizer e
propriamente ser a sua essência, o seu mostrar do tempo, da época, da hora
modo de ser, denominado por de hoje e de agora. O Poema intitula-
Heidegger “Gestell”, “composição”, se Opiário e assim se abre:
“armação”? Por quê? Há um porquê,
uma causa nisso, disso?! E, assim É antes do ópio que a minh’alma é
perguntando, estaremos atrás da doente.
essência da essência?! Do fundo do Sentir a vida convalesce e estiola
fundo [...]?! Quem ou aquele que sempre E eu vou buscar no ópio que
consola
vai ao fundo, aos fundamentos [...]!
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Vamos dar mais um salto e ver se, no
(PESSOA, 1974, p. 301).
fim, a coisa se amarra, se compõe...
Oriente evoca nascente, começo,
origem. Buscar, querer um Oriente ao
3. oriente do Oriente é buscar, é querer o
Abrimos estas anotações citando começo do começo; a origem da 79
descuidadamente (foi um jeito, um origem; o fundo (fundamento) do
pretexto ou expediente para começar!) fundo. Essa busca tem fim? Terá
o verso de um poeta, que falava da sucesso? A coisa é longe, remota
dureza desta vida de bordo. Ele fala demais... Sim, pois, o fim, este fim,
da vida de embarcado neste duro esta meta se adia, se adia, se adia...
ofício do viver, o osso que, cada um, Recusa-se, recusa-se, recusa-se... Adia-
precisa roer. E o nosso é roer o osso- se e recusa-se indefinidamente, in-
técnica, pois, vimos, hoje, aqui e finitamente. Assim parece ser. Assim é.
agora, tudo é técnico. A técnica é o é ― Sim, “para trás não há paz”, já
o nosso é. E retomemos este poeta, que disseram. Mas isso, a saber, tal busca ―
é Fernando Pessoa, na versão ou na pensa, subpensa a vontade que quer
edição Álvaro de Campos, o poeta tal querer ― não podia, não devia
engenheiro ― então, todo sanha, todo fracassar, gorar. Tal ponto, tal lugar,
hybris?! ― e que é, sim, o poeta da tal pátria precisava, devia ser
máquina, da técnica moderna. encontrada, atingida. Ergo,
Praticamente na abertura de sua desencanto. Tédio. Lassidão. Ira,
coletânea de poemas, aparece um que, revolta, amuo, amargura, ânsia,
segundo o próprio Pessoa4, dá o tom, sofreguidão, angústia, insônia ―
cansaço, aço, aço... Isso, este tom, este
4
humor, é o que mais se ouve, mais se
Cf. carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro,
entreouve na fala do poeta da
onde ele diz: “[...] E assim fiz o Opiário, em que
tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro máquina, da técnica. Isso é gemido o
de Campos [...]”. (PESSOA, 2005, p. 97).

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

tempo todo por Álvaro de Campos. aquém, aquém... Ah, nojo, nojo, nojo!
Isso ― este humor, este tom ― filtra, Asco! Asco! Asco!
poreja, mais, vasa, transborda, de toda
sua fala, de toda sua poética. Tal Fumo. Canso. Ah uma terra aonde,
humor, na verdade, perfaz a sua enfim,
poética, quer dizer, sua força, seu Muito a leste não fosse o oeste já!
poder mostrador, revelador, ... ... ...
Não posso estar em parte alguma. A
instaurador ― a essência. Será, seria
minha
isso e assim a essência da máquina, da
Pátria é onde não estou. Sou doente
técnica?! E querer assim, movido por e fraco.
tal vontade ― seria isso a doença? ... ... ...
Vontade de infinito ― isso é doença?! Febre ... O fato essencial é que estou
E por quê? Como? “É antes do ópio doente.
que a minh’alma é doente [...]. Sentir a (PESSOA, 1974, p. 303, 304).
vida convalesce e estiola...”, diz o
poeta. A doença, parece, é esta É antes do ópio que a alma é
vontade, este élan de busca do fundo doente. Há, então, um salto. A alma, a
do fundo do fundo. A doença é o vida, já é doente, isto é, ela já é ou já
infinito, a vontade de infinito. A vida, está no infinito, na vontade de infinito
diz o poema, na vigência da vontade ― na vontade, na busca do fundo do
de infinito, é isso, assim. Vida, então, é fundo do fundo... ― uma vez que isso,
doença ― senti-la, isto é, entrar nela, a saber, vontade de infinito, configura-
afundar no seu sentido revela isso, se como a doença. E, quando já se está
este fundo da vida, a saber o seu fundo na vigência da vontade de infinito,
sem fundo ― e, ah, tédio, revolta, então, o finito já está censurado, já
nojo...! O fracasso na empreitada da aparece como menos, como pouco,
busca do fundo do fundo, do “Oriente como deficiente, como privação e ―
ao oriente do Oriente”, parece ser então, ergo, como o que não devia ser. E,
compensado, melhor, dissimulado por outro lado, tal vida, tal alma, já
com, pelo ópio. O ópio, parece, alivia está naquela crença, segundo a qual o
a dor do fracasso da busca, mitiga a pensamento (a razão) pode, deve,
inquietude, o desassossego desta precisa não só compreender (i.é
ânsia, deste anelo. O ópio consola, representar) o real, todo real, mas
substitui, compensa este inalcançável também e sobretudo em condições e
Oriente ao oriente do Oriente. Mas tal na obrigação de reformar, corrigir e,
ópio, o Oriente, mostra-se sempre ser enfim, hoje, através do virtual, do
pouco ópio ― menos ópio do que deve, digital (a cibernética, de modo geral)
do que devia? A coisa sempre além, substituir o real, todo o real, toda a
além, além, e meu desejo, minha vida, pois... Pois o quê? Pois, porque o
aspiração, minha ânsia sempre aquém, real, a vida já se mostra, mostrou-se,

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

como imperfeita, como pouca, como da técnica para caracterizá-la como


falta, como deficiente, privação um “Verfahren”, uma “Verfahrung”
(“stérisis”). Ainda como aparência, da vida, isto é, um “comportamento”,
ilusão, falso, fugaz. Enfim e por fim um “procedimento”, e, dirá Spengler,
como dor. A doença é a dor, que vida uma “tática” e uma “estratégia” da
parece ser. Pois vida é (parece ser) vida ― em última instância, para
como o que não deve, não devia ser. E, corrigi-la, reformá-la, substituí-la?
mais, a vida, a existência, nesta Deixemos Spengler. Pouco adiante,
configuração, desde juízo moral, aparece o também ensaio de Ortega y
religioso (teológico) se mostrará Gasset, intitulado “Meditação da
culpada ― ela é culpa. E imperfeita, técnica” (1939), e que se constitui na
deficiente (culpada), porque a vida, a reunião de uma coletânea de ensaios,
existência mostra-se sendo publicados aqui na nossa vizinhança,
transgressão (?!), corrosão, corrupção sob a forma de artigos dominicais, no
(suja), desgaste, desintegração, jornal “La Nación”, de Buenos Aires.
passagem, movimento, incerteza, Neste ensaio de Ortega, encontramos
insegurança, descontrole ― enfim, uma engenhosa definição de técnica,
perda, morte. Dor. Vida ― dor e morte. que diz: “A técnica é o esforço para
81
Enfim e mais uma vez, finita, pouca. A economizar esforço”. (ORTEGA Y
recusa do finito, a revolta contra o finito GASSET, 1998, p. 42). Estranha esta
põe o direito ao infinito. Lá atrás, bem lá economia, esta poupança de esforço.
atrás, em algum lugar, em alguma Que ela não se torne avareza, sovinice,
hora, deve haver redenção... Ou será lá pois vida é esforço. Esforço, uma vez
adiante, à frente?... que vida, existência humana, é o
modo de ser que é fazer, melhor, um
constitutivo, um inalienável por fazer,
4. afazer ou quefazer. A condição de finito,
Pausa. Vamos, mais uma vez, de finitude (morte, dor), põe e impõe
devanear, divagar ― até devagar. E, tal situação ou condição. Melhor, o
talvez, espera-se, no fim tudo convirja fato, o acontecimento finitude abre,
e as coisas se encontrem ― ou não, né! inaugura tal modo de ser ou tal
Mais ou menos no correr do condição e, a partir de então, o
segundo quarto do século passado, homem, por ser homem e para ser
quando se começava a ver na técnica, homem, não pode não ser fazer, não
na técnica moderna, uma coisa séria, pode não ser ação ou atividade. Assim
um problema a ser gravemente e só assim se cumpre e se preenche o
discutido, apareceu o ensaio de oco que é o homem, a vida ou a
Oswald Spengler, intitulado “O existência humana, enquanto e como a
homem e a técnica”. Isso por volta de liberdade ou o livre para, o que põe, de
1930. Forte ensaio onde, a rigor, é novo em um mesmo e único ato ou
negada a compreensão instrumental acontecimento, liberdade, ação, tempo

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

e história. Isso é a vida, o homem, a seja, que o ideal de economizar


verdade (alétheia) do homem. esforço triunfe e o esforço, por fim,
Mas, estranho, justo esse modo acabe por ser superado. Mais e melhor,
de ser, que cresce e se faz desde a abolido, eliminado. E então? Isso é a
própria ou constitutiva dor (finitude), morte. Morte como fim, como abolição
em alguma hora, passou a ser visto e e extinção da vida, da existência
considerado como mau, como ruim, humana, pois vida, homem, desde e
como reprovável, como o que, sim, é, como a necessidade do finito, da
porém não podia, não devia ser. Vida, a finitude, não pode não ser ação,
existência finita, por ser pouca, por ser atividade, esforço. Já está em cena
pobre, por ser um precisar fazer, por l’homme révolté ou o bípede ingrato?!...
ser esforço, enfim, por ser constitutiva
indigência, aparece como culpada, é
culpada ― ou errada 5. E o esforço, a 5.
ação, a atividade, vira coisa penosa, Bem, onde e como estamos?
isto é, vira pena, expiação. O trabalho, o Recapitulemos. Façamos um balanço.
tripalium, é tortura, maldição. Há que A revolta contra a vida. A revolta
economizar, melhor até esquivar-se, contra a ação, a atividade, o trabalho.
furtar-se dele, contorná-lo, evitá-lo ― Revolta já é, já acontece desde mau
bom, perfeito seria eliminá-lo do fundo humor, desde amargura, gastura ―
da vida. O esforço para economizar ou, no olhar de Dostoievski,
esforço... Suponhamos que este ideal, puerilidade. Aquela ou uma vida que,
que esta proposta ou que tal projeto se o tempo todo, está a apertar a goela, a
concretize, se realize plenamente, ou queimar e cortar o estômago. O que se
come, se come sob censura. Já desce
5
Pode-se dizer, há um juízo, uma avaliação ético- arranhando e queimando. Nada é
religiosa ou teológica da vida, da existência, que digerido. Pior, tudo é mal digerido.
diz ser a vida (existência) desvio, queda,
transgressão, degeneração, deficiência, falta e,
Nada mais torturante do que má
por fim, culpa e há um juízo ou uma avaliação digestão, dispepsia. Tudo é ruim.
epistemológica, metafísica, que diz ser a vida Tudo amarga. Ou arde. Ou azeda.
desvio, ilusão, engano, e que passa a ser definido Tudo é, sim, gastura. Que gastura!
como erro ― desvio a ser retificado, erro a ser
Comer, o próprio comer já é um
corrigido. Assim vai se pondo e se compondo o
difícil conceito/determinação de “stérisis”, de estorvo, uma agrura, coisa aziaga.
“privação”, quando voltado para a vida, para a Vida não devia ser comer... Ah, a
existência humana. Enfim, esta saciedade! Ah, se eu fosse um vagalume!
compreensão/determinação de vida (existência Ou um carro de bois!... A vida, a
humana) como privação ou débito passa a ser
vista ou como culpa a ser expiada e paga ou como
existência como o reino do l’homme
erro a ser retificado, corrigido. Teologia cristã ou révolté, como o domínio do bípede
metafísica ― mas teologia metafísica é! Em ingrato. São diagnósticos
ambos os casos, vida não é lá coisa que preste, dostoievskianos. Mas é possível
que valha a pena... Que gente mal humorada!

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

imaginar Sísifo feliz?! Sísifo feliz deve pode; só aspira e deseja o possível.
ser Sísifo gostando de rolar pedra, Fica evidente que só pode e só deve
amando, isto é, querendo trabalho, ser o que pode ― e isso precisa ser. Aí
esforço. O cara é louco?! Deu a louca e assim a casa, a pátria, i. é, o lugar, a
no mundo?! Gostar de trabalho?!... essência do homem. Sem nenhum
Imagino a ação que é feliz, o além, sem nenhum aquém. O limite
trabalho que é leve, alegre. Vem a ser o como o ab-soluto. O finito como o ab-
que tu és. Cumpra teu poder ser. Pois soluto. Nenhum sentido para fora,
ser, em vem a ser o que tu és, é poder nenhuma meta para além. Ou aquém.
ser. Que se o cumpra, pois! Como? No âmbito do finito, na circunscrição
Fazendo, agindo. Aqui, agora, poder da finitude ― o absoluto ― todo o
ser é precisar ser, é não poder não ser. sentido, o só sentido. O pleno, o todo,
É não poder não fazer. Este esforço, inteiro, perfeito ― i.é, que se per-fez na
esta pena e penúria, se faz alegria à ação, ao longo da ação, como ação. A
medida que a ação se mostra como o Terra. A Terra do homem, a casa do
exercício de liberação, de libertação de homem. Cumulação. Mais uma vez,
um próprio, de uma identidade ― perfeição, enquanto e como o
justo a possibilidade, o poder-ser que perfazimento de vida, de existência, na
83
é. Ação, atividade, enquanto o ação que lhe cabe, no trabalho ou
imperativo de finitude, enquanto ação esforço que é ― o possível, isto é, o só
ou exercício de dor, torna-se, é dor e o único que pode, que precisa ser.
transformada, dor transfigurada. Dor Perfeição no pouco, pois não quer, não
que, enquanto e como ação (atividade, pode, não precisa mais. O possível é tudo
obra), vem toda à tona; dor que, assim, ― o absoluto. Ser e querer o possível,
transfigurada em ação, se faz isto é, o necessário: conjunção perfeita
superfície e, na e como superfície, de poder ser, dever ser e querer ser. A
alegria, jovialidade. Satisfação. liberdade como liberação do próprio,
Saciedade. Na ação, como ação, da identidade que é o homem. Ser,
exercício de liberdade ― na liberação querer ser e dever ser só homem. Só
de um próprio, na cunhagem de uma isso e assim é possível, isto é,
identidade. A alegria da criação. Por necessário. Livre. Possível, aqui, está
quê? Para que? Por nada e para nada, falando de constituição ontológica, da
tal como o irromper de vida, de textura da vida ou existência, logo, de
finitude ou de dor ― desde nada, para necessário. Nada a ver com a pueril
nada. Pura gratuidade. Na ação contingência lógico-formal. E aí e
gratuita, na ação que é liberdade para assim a liberdade, pois a
o poder ser necessário, acontece exposição/realização de uma
alegria, satisfação, saciedade enquanto identidade, de um próprio.
o cumprimento de limite ― o cheio do Estamos perdidos,
pouco, o pleno da e na indigência. destrambelhados, desencabrestados?
Cheio e pleno, pois só quer o que Entramos no mundo de Calderón de

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

la Barca? La vida es sueño?... Qué es la entenda o conforto entulhado, a


vida? Un frenesi. // Qué es la vida? Una comodidade pachorrenta do burguês,
ilusión, // una sombra, una ficción, // y el o enfarado do bom burguês, na sua
mayor bien es pequeño; // que toda la vida aposentadoria gorda, fomentadora do
es sueño, // y los sueños, sueño son. seu inchaço lerdo. Não. Estabilidade,
(BARCA, 1947). melhor, assentamento
Sonho, sim, mas desperto. O (“Bodenständigkeit”) fala do centrado
sonho que se sonha quando se acorda. e concentrado no seu modo próprio de
Acordar para o finito, despertar para a ser, a saber, no caso, o finito, a
só possível-necessária finitude. Sonho finitude, a Terra, a casa ou a pátria do
que é exercício de lucidez. Paixão fria. homem ― isso, então, como o
Serenidade. Voltemos, pois, a suficiente, o absoluto. Um modo de ser
Heidegger. todo centrado neste modo próprio de
ser, de modo a ter e ser a jovialidade
daquele que é o que é, sem “o baço da
6. inveja nos olhos”, sem “a fresa do nojo
Serenidade é o nome de no lábio”, diria, diz o Zaratustra. É,
perfeição no, do finito. Serenidade é o mais ou menos, o assentado da
nome da Terra cheia, plena, satisfeita. montanha nela mesma, o que lhe dá
Alegre, jovial. Gaia. Gaiata. Sem por todo um tom, todo um ar de altivez e
quê, sem para quê. Inútil ― como as de sobrançaria no só que é e no nada
flores do campo e as aves do céu! além que deseja ou quer ser (Isso, é
Serenidade é, sim, gaia ciência ― um preciso que se diga, no recato do
saber alegre, jovial, satisfeito, isto é, parêntese, é a impressão subjetiva de
que sempre, em fazendo o só possível, alguém que, três, quatro vezes por
sempre fez e faz o suficiente, ou seja, semana, há cinquenta anos, desce e
tudo! sobe a serra de Petrópolis, sem se
Na vigência da ingratidão, da cansar de ver o corpo, o volume
revolta, isto é, na dominação da espesso, as cristas e os cumes das
vontade de infinito (sanha, furor, montanhas, todas vestidas de suave
grima, hybris), o homem está, é fora de verde-escuro ― mas também, às vezes,
casa, é um expatriado, um variando com o dia e com a hora,
“heimatloser”. Ele é e está sem fortes, nítidas e precisas linhas,
estabilidade, sem assentamento ― “(ohne) desenhando negras siluetas, que
Bodenständigkeit”. Está seriamente circundam o percurso, num horizonte
ameaçado o assentamento das obras, dos muito próximo. Um maciço, uma
fazeres e afazeres do homem (“die cadeia de montanhas, “Gebirge”, onde
Bodenständigkeit menschlicher tudo é cheio, parado, intenso,
Werke”). (HEIDEGGER, 1969, p. 26). assentado em si, sereno. Quase uma
Por estabilidade, assentamento, não se natureza morta...). Bem, que se tenha

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

em mente este assentamento, que terra natal, que não se ouça aí o


também e sobretudo perfaz discurso de um provinciano tacanho e
serenidade ― vida serena, como meio muito nacionalista, conservador,
montanha... reacionário, enfim, simpático às coisas
nazis. Isso e assim é, será sempre falar
desde o tamanho e a altura de quem
7. fala e não desde o tamanho e a altura
No texto Serenidade, Heidegger do pensador, da sua fala. A pátria, a
acusa o fenômeno contemporâneo do terra natal do homem é a Terra,
expatriamento da vida (i.é, vida somente a Terra, isto é, o limite, o finito
apartando-se, extraviando-se de si ou a finitude ― sim, esta a só pátria do
mesma, de sua própria essência ou homem, seu só lugar, enquanto e como
gênese), da existência humana, à a sua inalienável essência ou
medida que esta é regida pelo afã da determinação ontológica, ou seja, seu
técnica moderno-contemporânea modo próprio de ser. Disso e só disso
(=metafísica, “Gestell” ou deve, precisa ser, no texto em questão,
“composição”), o que, em sintonia a compreensão, o discurso. Assim
sendo, à busca, à espera e à escuta
com o clamor da hora (1955), é ali 85
chamado “era atômica”. Na fala do (sim, como espera e escuta faz-se, dá-se
texto, pronunciada em sua aldeia natal esta busca) deste lugar (a Terra, o
para seus conterrâneos, Heidegger, finito, a finitude) é que se precisa
acentuando o que já mencionamos, ouvir e entender o seguimento da fala,
acima, como a ameaça ao assentamento do discurso. À busca, à espera e à
das obras, das lidas ou dos afazeres escuta do lugar que o homem é, pois o
humanos (“die Bodenständigkeit homem é este único e insólito modo
menschlicher Werke”), pergunta se de ser que precisa, a cada passo, a
ainda há a possibilidade de uma vida, cada gesto ou ato, para ser e vir a ser o
de uma existência assentada numa que é, conquistar e reconquistar seu
terra natal, numa pátria. No texto, a modo próprio de ser, sua essência ou
pergunta insinua e aponta para um gênese ontológica ― sob o risco do
sim. extravio, da expatriação, p.ex., no sem
Antes de entrarmos nestas Terra do in-finito, da hybris ou da sanha
considerações, porém, uma técnica moderno-contemporânea. Tal
observação. Já falaram que “de coisas tarefa e tal destino à Sísifo feliz, alegre
grandes há que se falar com grandeza (!), é justo imposição do finito, da
ou se calar” (Nietzsche). Falar com Terra. À luz dessa observação,
grandeza de algo é pôr-se à altura, na ouçamos rapidamente o que nos diz
dimensão deste algo e, então, a partir Heidegger nesta sua fala doméstica,
daí falar, para, assim, se ser justo com caseira, na cozinha da sua casa, lá na
ele, com o algo. Quando Heidegger, no roça de Messkirch.
texto mencionado, fala de pátria, de

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Diz ele que o possível novo solo submetam), confundam e, por fim,
de assentamento no âmbito da própria desertifiquem nossa alma, nossa
era técnica ― portanto, sem renunciar identidade ― “unser Wesen...
à técnica e sem amaldiçoá-la, no estilo veröden”. Com isso, diz ainda
de algum verde devoto e mesmo Heidegger, nossa relação com o
fanático do orgânico ― reside no que mundo técnico se fará serena, calma
ele chama, por um lado, “a serenidade (“ruhig”), vendo e considerando as
para com as coisas (técnicas)” e, por coisas, os produtos técnicos, “não
outro, “a abertura ou a mais como um absoluto, mas
disponibilidade para o mistério”. dependentes de algo mais elevado” ―
(HEIDEGGER, 1969, p. 24, 25). Não se a saber, “o que temos de mais dentro e
trata de duas coisas ou duas atitudes, mais próprio (“im Innersten und
mas, ver-se-á, no fundo, são Eigentlichen”)? Assim, ainda, nesta ou
consanguíneas ou cooriginárias, desde esta postura ou atitude, “não se
constituindo-se numa única e mesma vê mais as coisas técnicas apenas
coisa ― um único e mesmo modo de ser. técnicamente”, como “nada absoluto”.
Um único e mesmo ato ou gesto. E o (HEIDEGGER, 1969, p. 24). A vigência
que seria isso? Caracterizando a ou dominação do mundo técnico
serenidade para com as coisas, em moderno-contemporâneo “transforma
geral, e as coisas técnicas, em profundamente a relação do homem
particular, diz ele que podemos “usar com a natureza e com o mundo”, ao
os aparelhos e equipamentos técnicos mesmo tempo em que o “sentido que
adequada ou convenientemente e, ao impera nesta transformação (ou seja, a
mesmo tempo, permanecer livres essência da técnica), permanece
deles, de tal modo que possamos, a obscuro”. (HEIDEGGER, 1969, p. 24).
qualquer momento, também largá- Desconcertante e paradoxalmente,
los” ― portanto, sem ficar “escravos” observa ainda Heidegger, este obscuro
deles (pensemos no nosso celular, no que se oculta de nós, oculta-se
nosso iphone). Podemos usar os justamente à medida que se mostra
equipamentos técnicos e, ao mesmo para nós e porque ou graças a este
tempo, como que deixá-los, largá-los de mostrar-se justo enquanto e como o
lado, como algo que não diz respeito que se oculta. Precisamente este modo de
àquilo que temos de mais “dentro de ser caracteriza mistério, o mistério.
nós mesmos e mais próprio” ― “als Então, em se mantendo aberto, isto é,
etwas, was uns nicht im Innersten und vulnerável ao toque do mistério, dá-se,
Eigentlichen angeht” (HEIDEGGER, acontece o que ele, Heidegger, num
1969, p. 26). E, continua Heidegger, segundo momento e como caminho
pode-se dizer sim e, ao mesmo tempo, para o encontro de um solo, de um
também dizer não às coisas técnicas, chão (“Boden”) no âmbito e na
de modo que elas não “dobrem (i.é, vigência da própria técnica, chama “a

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

abertura ou a disponibilidade para o “mais próprio”6, onde mais próprio está


mistério” ― “die Offenheit für das dizendo o mais fundo e profundo e isso
Geheimnis”. (HEIDEGGER, 1969, p. no sentido do mais essencial, da própria
25). essência, e onde se entende essência
Até aqui, reproduziu-se, como a inadiável e intransferível
papagueou-se Heidegger, como se gênese ontológica ou a própria
fôssemos seu ventríloquo. Foi um constituição de ser. E isso mesmo
resumo apressado e grosseiro. Mas o perfaz o próprio ― cabe ao homem
que quer realmente dizer toda esta apropriar-se de seu próprio, para ser
arenga? Como entendê-la, descrevê-la inteiriço, isto é, “innig”.
na sua fala silenciada, pois ela encerra, Neste sentido, o que se tem de
sim, um fundo calado, porém mais próprio, de mais dentro, fundo e
vibrante, eloquente? profundo, o de mais essencial ou
radical e de mais inalienável e
intransferível é a própria vida, a
8. própria existência ― meio no jargão da
Comecemos perguntando: o que escola ou da confraria, Heidegger diz:
o próprio ser, a própria verdade
é isso que temos “de mais dentro e 87
mais próprio”? O que é isso que mais (“alétheia”) do ser. A rigor, tudo que o
nos interessa ou mais nos diz respeito, homem tem e tudo que ele é, ele o tem
ou seja, respeito a nós mesmos no e o é tal como vida é, ou seja, tal como
nosso mais dentro, mais imo, “im vida dá-se, faz-se, acontece. Vida,
Innersten”? A verdade é que este existência, dá-se, acontece, faz-se, isto
“mais dentro” é só, tão só um outro é, o homem não é seu autor, sua causa
modo de dizer o mais próprio. “O mais ou sujeito. Ele a recebe ― a rigor, tudo
dentro” (im Innersten”) não está se que o homem essencialmente é, ele o
referindo a alguma coisa muito íntima recebe, ganha ― de nenhum, ninguém,
e muito ou inteiramente recôndita e nada. Puro dom. Pura doação. É
referida à minha individualidade preciso um olho limpo (sem inveja),
pessoal-subjetiva; não quer dizer o um lábio doce (sem o amargo e a fresa
“mais interior”, “o mais íntimo”, no ou dobra do nojo, do asco, da
sentido de interioridades e repugnância) para, na vida e desde a
enrustimentos introspectivos e, quase vida, receber, acolher tudo que é e há
sempre, dissimulados. Isso seria, em como acontecimento de vida, de
alemão, mais na direção do existência gratuita, sobranceira e
“innerlich”, do “im Innerlichsten”.
Não é o caso. É o mais dentro ― com 6
O “mais espesso”, do qual fala um poema de J. C.
boa vontade, o mais imo, no sentido do Melo Neto ― O cão sem plumas, IV, Discurso do
Capibaribe. E espesso, está dizendo “denso”,
“maciço”, no sentido de compacto, intenso,
inteiriço. O tedesco diria, diz “innig”. (MELO NETO,
1995).

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

superabundante. Pura sobra, puro coisa que eu também não preciso!”


transbordamento de nada ― assim, Imaginemo-nos com este humor, com
desse modo, vida é o jogado, o à toa. este bom humor ou com esta alegria e
Em ultimíssima ou primeiríssima leveza (“Heiterkeit”, reclama
instância, o sem por quê, o sem para Nietzsche) vagando, vagueando e
quê, o sem de onde e o sem para onde. errando ou ― quem sabe!? ―
Nenhuma arqueologia, nenhuma passeando nosso tédio pelo shopping.
teleologia. A verdadeira, a autêntica Este errar, assim, pode ser, pode
inocência do devir. Devir, aqui, é tão só tornar-se um encontro, um grande
outro nome de vida, de existência, encontro.
como o jogado, à toa. O que, além ou
aquém deste acontecimento, não vale
nada, não presta para nada. O salto, o 9.
proto-salto. Nada vale além ou aquém Ver as coisas, mesmo e,
dela própria; além ou aquém dela principalmente, as coisas técnicas (o
própria, ela não presta para nada ― mas celular, o computador, o i-phone), não
no âmbito dela, que é o tudo e o todo, mais só desde a própria técnica (i.é,
ela vale tudo, ela se mostra como o desde e como “Gestell” ou
absoluto. Assim ela é o mais próprio e o “composição” e, então, só reserva, só
que mais nos diz respeito. A se exigir, se insumo; mundo e natureza só como
cobrar o cuidar deste dom, desta graça armazém e almoxarifado e domínio e
― assim se é inteiriço, todo, “innig”. controle), com um caráter de absoluto,
Dizer, poder dizer, ao mesmo mas articuladas e em ressonância com
tempo, “sim” e “não” às coisas todas algo maior, mais elevado. O que é isso?
e, em particular, às coisas, aos Como? O mais elevado, o maior, não
aparelhos e equipamentos técnicos é podendo ser nada para além ou
poder também vê-las todas assim aquém ― o limite, pois ―, é o mais
jogadas e à toa. Radicais dentro, o mais próprio, a saber, a própria
acontecimentos de vida, da vida ― da vida, a própria existência jogada e à
existência à toa e sem vergonha! Meio toa. A Terra ― a medida. Trata-se de
que olhá-las e não tê-las com o gosto, a ver, de poder ver tudo assentado neste
alegria, a jovialidade e o fundo sem fundo ― neste abissal, que é a
desprendimento ou desapego (não é vida, a existência, súbita ou
assim que se faz a serenidade em abruptamente irrompida, saltada. A
Eckhart, como “Abgeschiedenheit”?) Terra ― a medida. E como é isso
do Sócrates passeando pela Ágora, possível? Para tanto, é preciso que
pelo mercado público de Atenas, e, tenha igualmente acontecido conosco
sem resignação, sem despeito e sem algo grande, algo essencial e
desdém, mas sereno e limpo de transformador. Sim, uma virada, isto é,
coração e de alma, dizer: “Quanta uma mudança de registro, de regência. O

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

grande (i.é, essencial, radical) é tomar isso e assim hybris, sanha, é


sobre si e para si o que é, o que não promovida indefinidamente,
pode não ser ― o mais dentro e mais infinitamente. A dívida, assim, é
próprio, a saber, a vida, a existência impagável, a culpa inexpiável; o erro
mesma, nela mesma e desde ela incorrigível, irretificável,
mesma. A Terra. A medida. E isso quer insubstituível. Sim, “para trás, não há
dizer: tem-se a vida nela mesma, paz”. Para frente, também não! A
habita-se realmente a Terra, quando o tarefa seria saltar para trás, antes,
finito (isto é, a pobreza, a indigência aquém (ou para frente, depois, além), da
ou o débito) passa a ser visto, sentido e vida, da existência à busca do antes
querido, como absolutamente (ou do depois) do mal feito, do erro, do
constitutivo da vida, da existência. desvio ― aí e assim o certo, o acerto, a
Isso é tomado sobre si, assumido. Ser, inocência! Aí e assim a salvação, a
viver, sob a regência do finito, sob o redenção. De qualquer jeito ou forma,
registro da ação finita. E isto quer ainda a solução é fora da vida pouca, da
dizer: vive-se, habita-se a Terra, a existência finita. Há, haveria que
pátria (=essência) do homem, quando desandá-la, desfazê-la. Trata-se de des-
vida deixa de ser regida pelo espírito viver, des-existir, des-ser. Desfazer o
de vingança (pela revolta e pela feito, que foi mal feito! Isso, desfazer o
89
ingratidão) ou pela vontade de feito, disse Aristóteles, é impossível.
correção, de reforma e, enfim (hoje, Nem os deuses o podem. (ARISTOTE,
via técnica, concretizando-se como 1959). Daí e por isso também, hybris. E
cibernética), de substituição da vida, fúria, furor ― grima.
da existência, por esta, a saber, a vida,
em sendo finita (débito, indigência),
mostrar-se ou culpa a ser expiada e 10.
redimida, ou erro a ser corrigido, A serenidade para com as coisas, diz
retificado, melhorado e ajustado, Heidegger, é consanguínea ou
enfim, substituído, extinto. Tal redenção cooriginária com a abertura ou
ou correção e, por fim, disponibilidade para o mistério ―
substituição/extinção (i.é, teologia, moral perfazem um único e mesmo
teológico-cristã, com a salvação no acontecimento ou ato. Abrem,
além, ou metafísica, i.é, técnica, com a inauguram um novo (novo?! Ou
supressão da ação, do trabalho, i.é, do velhíssimo?!) modo de ser no mundo
infortúnio e da maldição, inventando do (para o) homem contemporâneo.
o paraíso terrestre), fica sempre jogada Pergunta-se: como? Por quê? E: o que
para frente, para adiante, sempre é mistério? Por fim, ainda: como e por
adiada, sempre protelada para o ainda que, dentro do próprio mundo
não, ainda não, ainda não... além, além... técnico-contemporâneo, serenidade
depois, depois... Enfim, a vida, assim, para com as coisas e disponibilidade
regida pelo, desde, para o in-finito. Com para o mistério instauram um

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

assentamento, um reenraizamento do acenando, revela justo o não revelável.


homem naquilo que ele tem de mais A experiência do mistério quase
próprio, a saber, a própria vida, a escancara isso, a saber, a presença e a
própria existência, que se configura evidência do não mostrável, do não
como o finito, o limite, a Terra? Seria revelável. Sim, quase escancara,
isso coisa sentimental, piegas? melhor, acenando, torna visível o não-
Comecemos com mistério. visível, ou seja, a visibilidade do
Costuma-se entender ou subentender invisível enquanto e como tal, a saber,
mistério como o atrás, como o como invisível, i.é, como
escondido e recôndito. Como o que irrepresentável, como inapreensível.
não se conhece, que não se alcança, Acima, escandiu-se, pelo itálico, a
muitas vezes como o que ainda não se palavra experiência. O propósito é
conhece e ainda não se alcança. Talvez marcar que mistério é, sobretudo, uma
por falta de pesquisa, subuso de experiência (afeto, páthos), quer dizer,
neurônios ou falha (oxidação, um ser tocado e tomado por um tal
zinabre?!) nas sinapses... De qualquer modo de ser, por um tal fenômeno ou
modo, coisa funda e profunda, muito acontecimento, a saber, justo este que
funda e muito pro-funda e ainda não caracterizamos como o ver o invisível
detectável, ainda não alcançável. Este é, como invisível; o ter revelado o
com certeza, o entendimento habitual, irrevelável como irrevelável; o ter e ser
mediano. No fundo, coisa de a presença da ausência como ausência.
iluminista, de racionalista ― otimista É mesmo o ver o não ver, o não poder
da lógica, da razão, das luzes. Mas e se ver ― e alegria! O decisivo, aqui, nesta
mistério, o mistério, fosse coisa de experiência, é que, ao assim se ver e se
superfície, de raso? Quase coisa que tá sentir ou experimentar, não se tem
na cara?! O raso, o que tá na cara, nenhum afã, nenhum impulso de ir
costuma-se não se ver. Costuma além, de ver o invisível, isto é, de
requerer mais esforço, mais empenho esforçar-se por iluminá-lo, de
para ser visto, entrevisto e consentido empenhar-se por lançar luz sobre o
como tal. escuro para, assim, vê-lo, isto é,
Mistério, na verdade, não apreendê-lo, representá-lo. Isso, claro,
esconde nada ― pelo menos não quer seria matar o escuro. Ver o escuro
esconder nada. Ele nem esconde e, como escuro é alegrar-se e satisfazer-se
sobretudo, nem quer e nem pode em não ver, em não ter. Assim, não se
esconder nada. Como a divindade que vê e não se tem o, por constituição e
mora em Delfos, se entrevisto, ele só princípio, não visível e o não tomável
acena. Mistério mostra, revela ― ― e, sobretudo, não se quer, não se
acenando. Mostra justamente precisa ver, ter, tomar... E: que bom!
ocultando e porque ocultando. Mostra, Sem reprovação, sem lamúria, sem
acenando, justo o não mostrável; amuo. Sem nenhuma resignação ou

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

despeito, pois o absolutamente não este todo recolhido, inteiro e inteiriço


querer e absolutamente não precisar na casa, no lar, que diz o alemão
excluem estas evasivas subterrâneas, “Geheimnis”, o mistério. A Terra ― o
estes expedientes sub-reptícios. Esta finito, o limite, a pobreza, a
atitude é, sim, de serenidade. Pois, constitutiva e inocente, i.é, sem nada
assim vendo e sentindo, é como se se querer ou poder, indigência (no
ganhasse calma e serenidade à beira sentido de ser um precisar fazer). Na
do abismo, no seu limiar, no seu indigência constitutiva ou própria, a
pórtico. Sim, aí, à beira do abismo, suficiência. Na pobreza constitutiva ou
assentado. Aí e assim, de pé no fiapo, à própria, a fartura ― pois o possível, o só
beirinha que é a vida, sem nenhuma possível. Aí e assim o assentamento, a
vertigem, se para e se debruça. Este “Bodenständigkeit”. Aí e assim
parar não é apático, este parado não é crescem, em casa, as obras, as ações, os
letárgico, indiferente. Não, ele se faz fazeres e afazeres do homem. Amém!
como a ação de espera, como a Mistério se mostra como
atividade de escuta ― uma grande superfície, como raso, uma vez que ele
tensão, uma serena tensão, tal como se dá ou se faz como a
uma natureza morta, à Cézanne. Ou superficialização do fundo sem fundo,
isto é, como o vir à tona do abismo
91
um afresco de Giotto, ainda no
testemunho de Cézanne. Assim, como abismo, do a-bysso como a-bysso.
debruçamo-nos sobre o abismo e, É a evidência do sem razão da razão
parados, inteiramente parados, em ou ou da insuficiência do princípio de
como escuta e espera, sem querer, sem razão suficiente. E: alegria, satisfação.
precisar querer ou ter, o vemos Riso e festa. É divino. É sagrado. A
enquanto e como abismo; o redenção de l’homme révolté e do bípede
contemplamos enquanto e como tal ― a ingrato. Amém! Muito obrigado!
superfície do fundo sem fundo. Sem Sim, serenidade para com as
afã de adiante, sem impulso de para coisas e disponibilidade para o
trás. Sem progresso e sem nostalgia. mistério ― isso constitui uma única e
Imóvel, alegre e satisfeito na linha, no mesma coisa, um único e mesmo
limiar e aí e assim se assente, se acontecimento ou ato. Um limiar. O
consente, se abençoa. Sim. É divino. lugar, a hora, a casa, a pátria do homem.
Nada ser, nada querer, nada poder ― Vida. Existência humana.
isso e assim é divino. Jogado, à toa.
Gratuito. Sem porquê, sem para quê,
sem de onde, sem para onde. A Terra, 11.
a pátria, a casa, o lugar do homem. Como e por que serenidade e
Mistério, assim, é o todo recolhido, o disponibilidade para o mistério
todo inteiro, inteiriço e inteiriçado no instauram assentamento, reenraizamento
lugar, na casa, no lar do homem ― a no mundo técnico? Porque
vida, a existência como Terra. É isso, reconduzem a técnica, a tecnologia

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

moderno-contemporânea (hybris, mais ou menos, como se as coisas, de


sanha), à Terra, isto é, ao finito ou à repente, ganhassem a postagem, o
finitude, como casa ou pátria postamento, o posicionamento, melhor,
(=essência, gênese ontológica) do talvez: a postura ou a posição, como já
homem. A técnica moderna, assim, mencionamos, de uma “natureza
perde o caráter de um absoluto e é morta”, de Cézanne, por exemplo.
vista desde algo mais elevado. Mais Sim, uma “natureza morta”, um
elevado?! Algo?! Como isso, “Stilleben”, um “still life”, é vida
realmente? Heidegger disse: serenada, pois inteiramente largada e
“podemos usar os objetos técnicos e, abandonada à calma do seu jogado aí,
ao mesmo tempo, porém, ao lado de sem porquê e sem para quê ― à
todo uso correto deles, mantermo-nos mercê de nada. Inutilmente, à toa ―
livres deles, de modo tal que, a todo valendo nada, prestando para coisa
tempo, os deixamos de lado ― dass wir nenhuma ou para nada fora, além ou
sie jederzeit loslassen”. (HEIDEGGER, aquém dela ou delas mesmas. Nisso e
1969, p. 23). A isso ele chama dizer assim é como se elas estivessem todas
“sim” ao uso das coisas técnicas e, ao e completamente centradas nelas
mesmo tempo, dizer “não”, poder mesmas, importando-se só nelas e com
dizer “não” a elas. E, voltamos a elas próprias. Vivendo, existindo do
perguntar: como nisso e assim está próprio crédito... Mas nisso, assim,
presente um re-atamento do homem à toda a sua importância, isto é, todo o
vida, um re-assentamento do homem seu peso e valor no seu pesar e valer
à Terra, um re-encontrar a casa, um re- em si e por si mesmo, no seu todo
habitar o mundo, quando tudo é dentro, “innig” ― assim, por nada,
devassado e desertificado na e pela para nada, à toa, sem nenhuma
sanha da técnica moderno- serventia. Tal como a vida, tal como a
contemporânea? Este “re”, enfatizado existência...!! A vida, a existência
pelo hífen, está apontando para o fato valem nada, servem, prestam para
que o homem moderno- nada?! Isso não é pessimismo
contemporâneo, por essa via, tal como descarado, lerdo? Niilismo cínico,
o Quixote, após a derrocada em capado? Não. Absolutamente não é
Barcelona, está de volta à Mancha, à disso que se trata. O nada valer, o
terra natal... nada prestar da vida é só e tão só a
“Loslassen”, deixar de lado, é aquiescência no seu jogado e largado,
largar, deixar solto e largado, no seu irrompido súbita e
abandonar meio ao deus-dará, não se gratuitamente, em pura doação e
importando absolutamente, como se o dádiva ― isso, só isso é divino, o
assim largado e abandonado divino. Tal como uma mala jogada no
absolutamente não interessasse, não compartimento de carga de um
nos dissesse respeito ― à mercê. É, avião... Tal como a rosa de Angelus

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Silesius, que floresce por florescer, 12.


absolutamente sem porquê, sem Deus morre de compaixão pelo
sequer perguntar se alguém a vê. homem. Assim reza o atestado de
Abandonada, puro abandono ― puro óbito de Deus, segundo o legista
largado, à toa. “Puro”, isto é, Nietzsche (2008). Deus é metafísica.
simplesmente aí, irrompido, saltado ― Logo, Deus é técnica. Melhor: técnica é
jogado. Sem prestar, sem servir para Deus, isto é, o modo como Deus, isto
nada... Mas isso ― este jogado, à toa, é, metafísica, aqui e agora, se realiza,
para nada ― isso é tudo. Nisso, dentro se concretiza. Então, a técnica moderna
disso, neste âmbito, isto é, da vida finita, morre de compaixão pelo homem. Mas o
da existência ativa ― aí e assim é para que quer dizer isso: morrer de
valer! À vera! Isso e assim é preciso, é compaixão pelo homem? O que é,
absolutamente necessário. Não pode aqui, compaixão? Antes, porém,
não ser. E por nada, para nada. Fora esclareçamos: à medida que vida, a
da vida ― além ou aquém ― não há existência humana, é finitude, limite,
nenhum sentido. ela é igualmente dor ― “Quanto mais
Poder assim ver, sentir o celular, fundo o homem olha na vida, tanto
o computador, a prótese biônica, os
ciborgues... Sim, a boa, útil e
mais fundo ele olha na dor... o mais 93
fundo abismo”. (NIETZSCHE, 2008)7.
regeneradora mão-prótese inteligente, Dor, então, é outro nome para dizer a
idem a perna, ibidem o olho. Somos textura da vida finita, da vida pouca,
assim jogados, e nesse jogado o enfim, da indigência, que vida,
grande, o divino, o sagrado. Como inocentemente, é. (NIETZSCHE, 2008).
aquele caso sertanejo da onça que Dor não tem sentido, nenhum sentido.
comeu uma dita cuja perna ― que Dor, então, é outro nome para dizer o
culpa tem a onça? Que culpa tem a fundo sem fundo da vida, da
perna?! Grande, grande, existência ― a dor, o mais fundo abismo.
absolutamente úteis e necessárias tais Sem nenhum melo-dramatismo, dor
coisas técnicas ― há que usar e usar e está dizendo o fato de vida, em sendo
louvar tais próteses, mas também e finita, ser necessária e
sobretudo vê-las e tê-las como um constitutivamente esforço, empenho,
jogado e à toa. Obra de vida. Sim, tal trabalho, isto é, ação, atividade. Ação,
como uma “natureza morta”. Inútil, atividade, esforço ou empenho para o
absolutamente inútil, como a vida, homem, o vivente de sangue quente e
como a existência e como tudo que é voltado em armadilha sobre si (RILKE,
grande e nobre ― sob a medida da vida, 1974), vir a ser isso que ele é, a saber,
da existência, in hoc signo... Mas, de homem, isto é, débito (=indigência) ou
novo: isso e assim é para valer. A vida, um ser por fazer. Ser homem é, antes de
só a vida-pouca-finita é à vera. tudo, fazer homem. O homem, este

7
Cf. Da visão e do enigma.

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

estranho, estranhíssimo vivente que, Por isso, dor é o absolutamente


sempre, a cada instante, precisa indivisível, isto é, o impartilhável ou in-
conquistar isso que ele é, que ele precisa compartilhável. Em última ou
ser em vindo a ser. O homem é um fazer primeiríssima instância, com-paixão é
que se faz no fazer que ele é e como im-possível. Onde começa o im-
ele é. É isso e assim mesmo história, possível, melhor, onde começa o querer
ação de vida, de existência humana, o impossível aí começa também a
na feitura, na fazeção de vida, na (auto) presunção, a arrogância ou a soberba
fabricação da existência ― na ― contra Descartes e apesar de
transformação e transfiguração de Descartes, não se tem o direito de
dor, da dor. De “a dor originária”, a querer o que não se pode querer. Eu
“Dor-Mãe”, ouve-se ainda na décima não devo (ser) o que não posso (ser).
elegia, de Rilke. Vontade infinita já é rebeldia,
presunção, hybris. Mas também
puerilidade, p. ex, o homem, o tipo
13. rebelado de Dostoievski (Raskolnikov,
De novo, um pequeno Kirilov). Vontade in-finita irrompe só
intermezzo, agora sobre dor e no âmbito, na vigência da
compaixão. Compaixão é um modo de subjetividade, isto é, da sujetidade do eu
se relacionar com dor, segundo o qual ou da consciência autônoma, ou seja, da
eu me empenho por e presumo que modernidade cartesiana. Mas,
posso ou devo tomar sobre mim e voltando e retomando, em geral,
para mim (isto é, fazer ou tornar quando me compadeço, quando quero
minha) a dor que é do outro e só do tomar sobre mim e fazer minha a dor
outro ou mesmo a dor que o outro é. A que é (d)o outro ― em geral, assim
dor que o outro é, pois sua vida (=sua agindo, na verdade, eu me auto-
finitude, seu débito a cumprir) é sua compadeço. Compaixão, quase sempre,
dor. Só eu posso viver a minha vida ― é autocompaixão, autocomiseração.
quer dizer: só eu posso doer a minha Por que? Porque quando presumo
dor ou doer a dor que sou. Doer, aqui, tomar sobre mim e para mim a dor do
é cumprir, é fazer, é realizar ― viver, outro (que o outro é), em última ou
existir. Viver é ação de dor. Viver, primeiríssima instância, estou
sempre, é transfiguração de dor. E dor querendo, isto é, presumindo (a
corta, separa, isola, cria distância, presunção, vital ou existencialmente
inapelável distância. Enfim, dor falando, é um querer demais, ou seja,
singulariza. Singulariza, isto é, torna pretender querer o que não posso, não
só, põe e impõe solidão8 ou ensozinha. devo e não tenho o direito de querer!),
tomar sobre mim e para mim a vida
8
Sem ser intimismo, interiorização, solipsismo,
pois será abertura e entrega à transcendência, criação, é acontecimento de transcendência. Mas
uma vez que vida, existência, na criação e como que fique o tema, a discussão e o esclarecimento.

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

do outro ― pois sua dor (finitude) é sobretudo, a vigência do espírito de


sua vida. Isto é, de algum modo, vingança. Isso seria propriamente sua
assim, passo a pretender (presumir!) essência, isto é, sua insistente geração
viver para o outro a vida dele ― tirar, e gênese. Afinal, “proveniência é
tomar dele a dor que é dele, que é ele. E porvir”. Por espírito de vingança está-
em assim fazendo, desvio o olhar de se compreendendo a auto-imposição,
mim mesmo, isto é, eximo-me ou por parte do homem, do homo
abstenho-me de viver (economizo- metaphysicus ou do animal racional, da
me!) a minha vida, a minha dor ― a tarefa de corrigir, reformar e, por fim,
única que sou e a só que posso e no e como o virtual (=racional),
preciso ser e viver. Uma economia substituir a vida-pouca, a vida-finita,
esquiva, sub-reptícia, covarde. Deixo pois esta se mostra ou como culpa a
de ser a minha dor, i.é, esquivo-me ou ser punida e expiada (teologia, moral
evado-me do meu esforço, do meu cristã), ou como erro a ser retificado,
trabalho, esgueiro-me de mim mesmo, corrigido ― desfeito ou extinto
sob a bonita e nobre efígie de amor ao (metafísica). Há que alisar todas as
próximo ou compaixão. Sim, no fundo, rugas da vida... Em qualquer dos
quase sempre ― não, sempre9 casos, a vida aparece como o que não
95
compaixão é autocompaixão, devia ser, pois se mostra como desvio,
autocomiseração. Não é coisa lá tão queda, decadência. De qualquer modo,
bonita, tão abnegada, tão nobre. Não seja como teologia, seja como
deixando o outro viver a sua vida metafísica (mas teologia é metafísica
(=sua dor) e, assim, fazendo com que ou lógica/fundamentação do
eu, subrepticiamente, me esquive de sagrado), a aura é de moral, pois o
viver a minha vida (minha dor), a esforço é de retificar, melhorar, corrigir e
compaixão cria um grande liso, uma substituir a vida desde um dever ser ou
grande plasta, uma uniformíssima um ideal encarnado por ela, isto é,
ameba ― a moral de rebanho. pela metafísica e, por fim, pela técnica,
Fim do intermezzo. Voltemos ao pois técnica é metafísica na sua
nosso tema. consumação, na sua concretização,
realização ou destino (envio) histórico,
aqui e agora.
14. Deus, isto é, metafísica, isto é,
Dissemos que a metafísica e com técnica, se compadece do e pelo
ela a técnica (moderno- homem à medida que quer tirar do
contemporânea) é também e, homem a sua dor, a dor que ele é.
Quer poupá-lo, economizá-lo disso,
isto é, de ser dor, de ser esforço, de ser
9
Ia fazer uma ressalva para, com Dostoievski ― um precisar fazer, enfim, de ser, de
compaixão como solidão ou participação precisar ser trabalho, desde que
silenciosa no insondável da dor do outro, que o
constitutiva e inalienável finitude.
outro é. Mas deixemos também isso de lado.

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Lembremos que estamos vendo,


considerando a técnica como o projeto 15.
de um esforço para economizar e, por “Que el asno (hablando a lo
fim, eliminar ou extinguir esforço, grossero) sufre la carga; mas no la
uma vez que esforço, trabalho, dor, é sobrecarga”(CERVANTES, 1993)10. A
ou culpa, ou erro ― vida, existência é frase é do Quixote, em “cuerdo”, em
maldição ou desvio, degeneração. É o sóbrio conselho a Sancho Pansa. E ela
que, de algum ou desde algum dá que pensar. Mais finamente,
estranho modo (revolta? Ingratidão?), podemos dizer: o homem sofre,
não deve, não devia ser. O fato é que aguenta a carga, a sua maior carga ou
tirar do homem a sua dor, a dor que é fardo, isto é, ser homem ― pobreza,
a sua, é tirar dele a sua humanidade finitude. Mas tal fardo fica mais leve,
ou hominidade, pois dor (=finitude, mesmo todo ou completamente leve,
limite) é sua identidade, sua essência. se ele, o homem, decide ser só homem
Neste sentido, dor é sua pátria, sua ― isto é, assume ou toma sobre si a
terra natal ― a Terra. Por que, para que sua finitude, o seu limite, a sua dor. O
tirar e economizar, com avareza, com que ele não aguenta é a sobrecarga, o
sovinice, o que é para gastar, o que é excesso, o demais, a saber, ter como
fartura?! Sim, dor é fartura! “Nós, os dever ser e precisar ser o que ele, por
perdulários das dores, da dor”, já princípio, absolutamente não pode ser
dissemos, lê-se na décima Elegia, de ― ingratidão e rebeldia. Isso é
Rilke (1974). Dor é para usar, gastar. sobrecarga. Dever e querer e precisar
Gastar com fartura. Ela está sobrando. ser algo que ele, pura e simplesmente,
Ela é o fundo sem fundo, a razão sem não deve ser porque ele, por constituição
razão da ação, da atividade ― da de ser ou ontológica, não pode ser. Ele
alegria da ação, da alegria da não deve ser não-homem, pois ele não
atividade que é toda criação, à medida pode ser não-homem. Parece coisa do
que transfiguração de dor, da dor. Conselheiro Acácio, mas, sem
Gastar, gastar com fartura, mesmo vergonha, é preciso que se diga: o
dissipar, nós os perdulários, os homem só pode ser o que é, a saber,
gastadores, os dissipadores da dor, de homem. Por exemplo, o homem não
dores... pode ser Deus, ou anjo. Ou pedra, ou
Mas, mais uma vez, de que e couve-flor, ou vaga-lume, ou carro de
desde onde estamos falando? Seria o bois. Nada de sanha (hybris), seja para
esforço, o trabalho, isto é, o exercício da trás (nostalgia, paraíso perdido); seja
dor, o próprio assentamento (a para frente (cobiça, soberba, a
“Bodenständigkeit”) nas coisas da promessa de um céu). Volta indefinida
vida, na própria vida ou na própria à natureza perdida (!) ou ânsia do
existência? Mas como isso?

10
Especialmente o Cap. 71.

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

absoluto em Deus (!), no espírito puro insone, desesperado, também amuado


(!), na salvação ou na redenção ― em e enfarado, entre o paraíso perdido
ambos os casos, já está se dando (aquém) e o céu prometido (além ― a
vontade de infinito, já está técnica, como projeto de abolição do
acontecendo revolta contra ao finito. esforço, do trabalho, promete, dá este
Vontade do impossível, pois revolta céu), isto é, projetado e à busca
contra o possível, o só possível. E: frenética e sanhosa de para trás ou para
ingratidão. Pois vida, existência, é frente, nostalgia e soberba (mas
pura eclosão, pura doação, pura graça nostalgia é soberba, sanha, hybris), do
― de graça. O lugar do homem, sua im-possível. Inquieta-se, desespera-se,
terra, sua pátria, é o entre. O entre amua-se e amargura-se com a
(natureza, paraíso perdido, e Deus) é o inospitalidade deste lugar, desta casa, a
absoluto, quer dizer, o âmbito, o lugar saber, a sua humanidade ou
(ontológico) que não admite nenhuma hominidade. Aí, assim e por isso,
referência para fora ― seja como desde revolta e ingratidão, a sua
aquém (nostalgia), seja como além fraqueza, sua doença ― seu cansaço,
(soberba). Mas nostalgia é soberba, à seu tédio, seu langor, sua ânsia, sua
medida que vontade ou desejo do cobiça, seu desespero, sua angústia,
97
impossível, de infinito. O entre é o só, sua insônia, nas flutuações extremas
o tudo e o todo. da balança- ou do balanço-in-finito.
Acima, em 3., página 7, citamos Sim, “é antes do ópio que minh’alma é
Álvaro de Campos. Ouçamo-lo, de doente”...
novo: Pois bem, Sr. Álvaro de Campos,
seja, sê aqui! Sem revolta, sem
Fumo. Canso. Ah, uma terra aonde, ingratidão. Revolta, ingratidão ― isso
enfim, é puerilidade. Que o entre, o aqui, a
Muito a leste não fosse o oeste já! Terra, o pobre, o finito ― que isto e
... ... ... assim seja a (sua) pátria, a (sua) terra
Não posso estar em parte alguma. A
natal, o (seu) lugar, a (sua) essência.
minha
Pátria é onde nunca estou. Sou doente e Que aqui e assim ― o entre como o
fraco. absoluto ― seja a (sua) força e (sua)
... ... ... saúde. Vital existencialmente, força e
Febre... O fato essencial é que estou saúde dizem o mesmo, isto é, força é
doente. identidade ou determinação essencial
(PESSOA, 1974, p. 303, 304). e isto é o que, vital existencialmente,
está dizendo, diz saúde ― a casa, o
A fala é do tipo moderno. O lugar do homem. Mas como isso, esta
homem da ciência, da técnica, do saúde? À medida que ação, atividade,
infinito ― o tipo cartesiano. Álvaro de esforço, trabalho, venham a constituir o
Campos ― o homem da máquina, da assentamento, “die Bodenständigkeit”,
técnica ― vive inquieto, amargo, na vida, na existência, isto é, nas coisas

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

e com as coisas ― “as obras dos Muito obrigado! Na ação, como ação,
homens”, “die Bodenständigkeit sou perfeito, isto é, o perfazimento e o
menschlicher Werke”, disse percurso (=história) da/na ação,
Heidegger. Vejamos isso. do/no fazer que sou. Sim, sou o fazer
do fazer que sou e me faz ― e assim
sou sempre per-feito, na realização, a
16. cada passo, do possível, do só
Recontemos rapidamente a possível. Sou uma entelécheia. Sou
estória do Gênesis, o episódio do satisfeito, suficiente, alegre.”
tempo da hora-homem. Mas, quem Esta clarividência acontece,
conta um conto, acrescenta um ponto! irrompe, desde o eclodir de uma
Vamos à estória: de repente, se lhe (do experiência, de um instante
homem) abrem os olhos e extraordinário, quando estimulado,
transcendência (i.é, nada, que acionado, não, despertado o primordial,
ultrapassa o homem e, em salto, o inaugurador grãozinho de sandice.
abissalmente, o põe) dita: “comerás o Não, não o Big Bang, nada de átomo
pão com o suor da tua fronte”. E “o primordial, de bóson de Higgs, de
caniço pensante” ― pensante?! Sim, partícula de Deus ― ou bozó de Deus?
pensante, enquanto o vidente, o que vê, Sei lá! ― , mas o grãzinho de sandice
o que é o destino de ver enquanto e marca o salto, o acontecimento
como ver ― enfim, o caniço pensante fundador ou inaugural. O grãozinho de
responde: “Muito obrigado! Muito sandice ― o fundo sem fundo, a razão
obrigado! Agora, só agora posso sem razão, a a-byssal arché ― ele é que
realmente ser o que sou, a saber, é despertado. “Torheit, nicht Sünde” ―
homem. Agora, porque pouco, finito, “Sandice, loucura, não pecado”, diz
sou e tenho a possibilidade da ação, ou Nietzsche (1998), em fina sintonia com
seja, tenho e sou tudo que precisava ter o nosso Machado, no Quincas Borba. O
e ser para ser, para vir a ser tudo o acontecimento, o salto, que põe ação,
que sou, tudo o que posso e, então, atividade, esforço como arché, como
preciso ser, a saber, homem ― só origem ― geração e gênese. Sem
homem. Sou livre e apto para vir a ser porquê, sem para quê. Pura sandice,
a identidade que sou, a saber, homem pura estultícia. Culpa? Maldição?
e só homem. Sim, tenho e sou tudo Expiação? Pecado? Falta? Carência?
que preciso ter e ser para ser isso que Privação? Stérisis? Erro? Não.
sou, a saber, homem, só homem. Sou Perfeição, suficiência, cumulação na
limite, pobreza ― sou finitude, então, indigência, como indigência, graças à
sou o fundamento da ação, a indigência ou finitude, pois
possibilidade do fazer, e, então, a indigência, finitude é tudo, é o absoluto,
necessidade do esforço, da conquista, o só possível. A perfeição humana é ser
da auto-conquista. Muito obrigado! um ou o precisar fazer ― ser fazer,

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

fazer ser, isto é, fazer viver. Melhor, per-feito, con-sumado, pois vivo no tempo
viver, que é fazer. E doação, irrupção certo, na hora certa de vida, de existência,
gratuita, sobra, transbordamento, a saber, compassado com o finito, o
superabundância ― de pobre, de pouco, o limite que preciso ser, isto é, o
pouco, de fartura na e da ação, no e do absoluto.11
esforço no trabalho de realização ou Enquanto metafísica, enquanto
consumação da essência, da força ou da Deus e como Deus, a técnica
gênese que sou, que o homem é. Sim, moderno-contemporânea é ingratidão
nós, os fartos, os transbordantes, os em relação a e revolta contra o finito, a
perdulários da dor, de dores. Nada de finitude. Assim e por isso ela se
ingratidão, de revolta. Nem l’homme configura como hybris ― sanha, furor,
révolté, nem bípede ingrato. grima. E assim e por isso ela se põe, ela
Consideremos: se eu invejo o se propõe e se quer compaixão pelo
animal, o anjo ou Deus, eu estou homem ― ela, a todo e qualquer custo,
querendo o im-possível, o que, por quer tirar e eliminar do homem a dor
constituição ontológica ou destino de que ele é. A dor, isto é, a sua finitude,
ser, não posso ser, jamais poderei ser. a sua constitutiva (então, plena,
Mais uma vez, sem vergonha do absoluta) pobreza. Tomar isso sobre
si, assumir este modo inalienável de
99
Conselheiro Acácio: só posso ser o que
posso ser. Só a isso tenho o direito de ser ― isso e assim é perfeição, a
querer ser. Para ser livre, isto é, para cumulação, a consumação. Assim e
vir a liberar ou libertar o ser ou a por isso, faz sentido a epígrafe, tomada
identidade que sou, isto é, a minha do Quixote, que encima este nosso
finitude ou a finitude que o homem é texto e, esperamos, que ele venha
― para tal, preciso querer isso que sou sendo seu comentário, sua exegese.
e que preciso ser, só (nada além ou Recordemos o então anunciado: “Oh,
aquém, nada fora da vida, da pobreza, pobreza! Dádiva santa
existência, que é o âmbito ou a desagradecida”. (CERVANTES,
circunscrição absoluta) ― enfim, só isso 1993).12
que sou e preciso ser, a saber, ação,
esforço, limite, finitude. E nisso e
assim, a cada passo realizando o 17.
possível e o só possível, sou, a cada O trabalho, a ação como o
passo, perfeito, satisfeito, suficiente, assentamento na vida, na Terra. O
alegre ― cumulado, con-sumado. Feliz. trabalho, a ação que não é meio ou
Assim é preciso imaginar Sísifo feliz, instrumento para nada fora (além ou
isto é, Sísifo alegre e satisfeito e aquém) dele mesmo. Antes de mais
perfeito no ofício de rolar pedra. A
cada passo morro e, sempre, a cada
passo, morro perfeito. Sim, esta é a morte
11
Trata-se, aqui, de alusão a e paráfrase de Da
morte livre, em Assim falava Zaratustra.
que eu quero. Morro no tempo certo, cheio, 12
Cf. Cap. 44.

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

nada, porém, assentamento, traduzindo Como isso propriamente?


o que Heidegger chama Talvez, em sendo mineiro!
“Bodenständigkeit”, não quer dizer o Cumprindo a mineiridade, pelo menos
sentado, gordo, acachapado. Lerdo, no testemunho de um mineiro pedigree
murriento, sonolento e babão. “Boden- ― João Guimarães Rosa. Há um conto
ständigkeit”, ao pé da letra, é um solo de Rosa, no qual ele fala do mineiro,
(“Boden”), um fundo, um chão de do bom mineiro, como um tipo muito
estabilidade ou de estadidade. resistente à monotonia, meio muito
“Ständigkeit” vem de “stehen”, que é parado, um pouco bastante devagar e,
estar aí postado, posto aí (de pé). Mais nessa vagareza, quase parando,
ou menos, nosso “estar”. enquanto faz uma boquinha de pito (em
“Ständigkeit” seria algo como castiço, tomar cafezinho!), vai picando o
estabilidade. Sim, melhor, ainda que fumo de rolo no covo da mão, fazendo a
rebuscado e afetado: estadidade. Trata- contabilidade da metafísica e,
se de um estar posto, postado, sobre principalmente, cismando, cogitando,
um fundo que dá, que proporciona matutando e ponderando que agitar-se não
este estado de estadidade, sim, de é agir13.
assentamento tranquilo, sereno. Jocoso, Mas como isso, este modo de ser,
bem humorado, mesmo e sobretudo no trabalho, como trabalho? Como
ralando, moendo no as’pro. Isto é, na trabalhar solto, largado, despojado,
azáfama e no bulício da vida. Sem feliz, tendo virado pele e sangue o fato
inquietação, no sentido de algum élan, que agitar-se não é agir? Como este
seja para frente, seja para trás, por ponto de Arquimedes, este
conta de desconforto, de in-stabilidade. inconcussum? Como este firme e
Sem o agitado e o inquieto, p.ex., de inabalável à beira do abismo? Dançar à
cachorro no cio, com língua pra fora, beira do abismo?... Zorba, o grego?
salivando e correndo e atropelando Como trabalho sem ser tripalium?
tudo. O interessante, o bom, aqui, é
que este assentamento calmo, sereno, é
justo sobre o fundo sem fundo da vida,
sobre o abissal ou o gratuito do viver, do
existir. Sobre o sem porquê, sem para 13
Referência livre e parafraseada ao conto de
quê, sem de onde e sem para onde da Rosa (1978). E aí vai dito ainda: “Disse que o
mineiro não crê demasiado na ação objetiva; mas,
vida, do viver, do fazer vida. Justo
com isso, não se anula. Só que mineiro não se
aquilo que tanto incomoda, inquieta, move de graça. Ele permanece e conserva. Ele
agita e até desespera Álvaro de espia, escuta, indaga, protela ou palia, se sopita,
Campos. Este in-stável é, vira, a graça, tolera, remancheia, perrengueia, sorri, escapole,
o en-graçado, mesmo o cheio de graça, se retarda, faz véspera, tempera, cala a boca,
matuta, destorce, engambela, pauteia, se prepara.
pois inteiramente gratuito. Vira a Mas, sendo a vez, sendo a hora, Minas entende,
Terra, a pátria. O lugar. toma tento, avança, peleja e faz.” (p. 221). Esse
mineiro, esse tipo, já virou, é virado...

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

18. em quilos, metros, somas e


Falou-se acima de Sísifo feliz. multiplicações, mas é intensidade, pura
Claro, alusão a Camus, que abre seu intensidade, ou, diria, diz Cabral de
Mito de Sísifo considerando que é Melo Neto, densidade, espessura
preciso imaginar Sísifo feliz. Sísifo (MELO NETO, 1995). O assentamento
feliz é, precisa ser Sísifo gostando de está nesta satisfação e nesta alegria
rolar pedra. Gostando do trabalho, do pelo fato de ser e só ser o possível (o
seu trabalho. possível, só o possível é o suficiente e
Considerando que o trabalho o necessário) e não desejar, e não
seja realmente meu, ele libera e querer, e não precisar do impossível,
concretiza uma possibilidade ― a isto é, do que, por constituição de ser,
minha possibilidade ou a possibilidade não pode ser. Assentamento está dizendo
que sou. Assim, só assim cumpre-se o serenidade ― a serenidade que é a
“vem a ser, torna-te o que (ou quem) tensão e a luta na e pela realização da
tu és”, que é um imperativo vital e possibilidade própria, com fracassos,
não moral14. Só ação, só atividade desvios, quedas, retomadas e
compassada com a própria reconquistas, enfim, sempre com
esforço e luta. Isso, a saber, tal
possibilidade pode cumprir ou realizar, 101
isto é, cumular ou consumar a essência, realização, é constante esforço de
isto é, a gênese, isto é, a força, isto é, o realização na conquista e re-conquista
poder ser que sou. Meu ser, isto é, o da possibilidade, do poder ser que, a
poder ser que sou, é fazer. Fazer vir a cada passo, se extravia no feito e
ser a essência ou gênese (= porque feito. Serenidade é o
possibilidade, poder ser) que sou ― assentamento no possível e como
nisso e assim a consumação, a perfeição possível, que é sempre o limite e como
(“entelécheia”), em vindo a ser e limite, sem ardor, sem ardência, sem
sendo tudo que pode ser e como pode ser. gana e sem furor para o fora ― seja
A cada passo a satisfação e a alegria além (anelo para frente, progresso do
deste per-feito e desta per-feição no espírito, p.ex.), seja aquém (anelo para
possível, como possível ― no ato e trás ou nostalgia, o paraíso perdido,
como ato. Tal ato ou acontecimento é redenção ou re-atamento com natureza,
sempre pouco, pobre, e sempre todo, p.ex.) da circunscrição do possível, do
pleno, rico ― no que pode e como pode. limite, do finito. Isso e assim é sempre
Assim ele é, sim, sempre tudo e todo. Terra, a Terra. Isso e assim é sempre a
Tudo e todo, aqui, não são medidos terra natal, a pátria ― o limite ou a
finitude como a pátria, isto é, a essência
14
É um grave tema este da articulação de
do homem. Pátria, essência, que é
possibilidade própria, destino, e o cumprimento fazer o cumprir-se de um fazer, de
ou preenchimento do imperativo “vem a ser este, uma ação, a saber, a ação, o fazer que
quem tu és” ― como se conquista isso? Aqui, libera, que liberta o próprio ou a
agora, porém, isso não pode ser discutido,
identidade que sou como sou, isto é,
explicitado.

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

como e desde o poder ser, que sou; (DOSTOIEVSKI, 1963)15. Hora de


como e desde a possibilidade, que é a transfiguração, tempo de virada, é
minha. O homem sempre é, só pode hora e tempo da entrada em e de um
ser limite, finitude, em tudo que faz e outro registro, em e de uma outra
como faz. Só a ação, o esforço ou o regência na vida, para a vida. É
trabalho que se faz no e desde o quando a vida, na boa regência ou no
âmbito do possível (limite, finitude), é bom registro, passa a andar
livre, é exercício de liberdade. Enfim, é sintonizada e sincronizada consigo
liberdade, pois o homem, enquanto e própria. O outro registro ou regência,
como finitude, é “a realidade da agora, é a própria vida (o velho, o
liberdade como possibilidade para velhíssimo), que é pátria, pois na
possibilidade”. (KIERKEGAARD, vigência do extravio no infinito ou na
2010). Nisso, dentro disso, ação, vigência do espírito de vingança
atividade, esforço, trabalho. “Vais (vontade de correção, de reforma, de
comer o pão com o suor da tua fronte” substituição da vida), vida está
― “Muito obrigado! Muito obrigado! expatriada, extraviada de si mesma.
Só agora e assim posso ser o que sou, Trata-se, agora, porém, de vida
o que preciso ser. O só que sou e que incidente e coincidente consigo
preciso ser. Muito obrigado!” mesma no seu modo próprio de ser,
na sua identidade ou essência (gênese),
a saber, sua inalienável finitude, seu
19. constitutivo limite. Passo ajustado em
Raskolnikov, o criminoso, o tudo e com tudo que se faz e como se
“pálido criminoso”, o que mata no faz, pois vida, enquanto e como
homem o homem, personagem de finitude ou limite, é o um ou o mesmo
Crime e Castigo, de Dostoievski, é o que em si mesmo difere, isto é, se
tipo, o arché-tipo de ”l’homme révolté” transforma, se transfigura, se
ou do “bípede ingrato”. Na hora, no diferencia, se altera ou vem a ser
tempo de sua transfiguração ou virada e sempre outro(a). Autossuperação,
para sua virada ou transfiguração, auto-ultrapassamento. Criação.
transcendência (=nada, o abissal de Vá e tome sobre ti o teu débito, a tua
fundo ou de origem, a inocência do finitude ― a tua morte, que é a fabricação
da tua vida, da tua existência. Seja e
débito, da culpa), na voz de Sônia, lhe
venha a ser o só que tu (homem) podes ser.
diz: “Vá para a rua, para a
Teu ser é tempo ― a vida da morte.
encruzilhada, para a concruz de todos
Imperfeição? Sim, imperfeição, se
os caminhos, e diga, e grite para todos
visto no sentido de coisa que é como
os lados que você ofendeu e maculou
não devia (!?) ser, então, como coisa a
a Terra. Tome o teu débito, a tua
corrigir, retificar, substituir. Não, se
indigência, a tua finitude sobre ti”.
15
Cf. Cap. 4.

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

visto ou tomado como o por fazer, o a obrigado! Assim assentado, que a vida
fazer constitutivo (=ontológico) do faça o seu trabalho. Em sendo escuta e
homem, da vida ou da existência finita espera, sou o lugar e a hora deste
― o ser-fazer, que é teu (do homem) acontecimento. Vida, use-me. Faça uso
destino. Destino ou envio (não de mim. Sou feliz. Sou perfeito. Muito
fatalismo, fatalidade) de tempo se obrigado!
fazendo tempo ou história, a
substância, a ousía do homem, a textura
da vida. Assim a morte é, será sempre 20.
perfeita. Será sempre a hora e o tempo O assunto não era, não é técnica?
de cumulação, de consumação; a hora, E por que, para que toda esta arenga,
o tempo “em que um homem (tendo todo este lero-lero? Será que está se
sido sempre, a cada passo, a cada e a dando uma de Seu Rolando Lero?! Não,
todo ato, o possível e o só possível, nada de Rolando Lero. É que a técnica,
sem soberba, sem hybris) vem todo, melhor, a essência da técnica, sendo
inteiro, pronto, perfeito desde as suas sanha, hybris (espírito de vingança),
profundezas”. (ROSA, 1968, p. 85). A nada sabe do trabalho finito, da ação
profundeza do homem é, será sempre que é e se faz no, como e desde limite, 103
a superfície do seu fazer necessário, sua finito ― a contensão que dá o todo e a
tarefa própria, o raso de sua finitude, plenitude no pouco e como pouco. A
tomado sobre si, assumido. Superfície suficiência que é satisfação, alegria.
e raso, pois subitamente jogado, Ela, a técnica, no furor de sua sanha,
irrompido, saltado desde nada e para na grima e na hybris, nada sabe de
nada. Gratuidade e graça. O fardo é pobreza ― da leveza e da jovialidade
leve. Esta carga, o finito, o homem na e da pobreza. “O que há, o que foi
aguenta, a só que ele pode-precisa feito de nossa jovialidade, de nosso
aguentar; a sobrecarga, o infinito, o bom humor, de nosso lado alegre e
im-possível, esta ele não aguenta, não gaiato, enfim, de nossa ‘Heiterkeit’”?,
sub-porta ― não pode, pois sobreposta, pergunta oportunissimamente (ou
somada à sua constituição de ser. intempestivamente?!) Nietzsche
“Vá e tome sobre ti o teu débito, (1998). Ela, a técnica, para ser técnica,
a tua finitude, o teu limite, isto é, a tua para realizar ou cumprir algo
morte (=vida própria, existência constitutivo ou próprio da vida, da
autêntica). Seja, venha a ser, faça o só existência humana, a saber, ser mão ou
que tu (homem) podes ser”, isto é, tua ação de acrescentar à vida o que a
possibilidade ― não é este o tom, não vida, a natureza, naturalmente não dá
é esta a fala de Ser e tempo? Não é isso, ou oferece (p.ex., o sapato, a escova de
esta imposição vital-existencial, que dente, o computador, o iPhone, o
irrompe, p.ex., principal e ciborgue), enfim, para tanto, a técnica
exemplarmente, no § 58, de Ser e precisa fazer, poder fazer tudo que
tempo? Faça-se. Cumpra-se. Muito faz, mas desde e como pobreza, desde

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

e como a finitude que o homem, que a relações que teve com cristãos, sabe
vida é. Isso não é pouco, pois muda ser a pobreza coisa da santidade e cita
tudo, vira tudo. Passa-se a fazer o que um “santo cristão”, que diz: “Tende
se faz, usa-se e usufrui-se do que se todas as coisas como se as não
faz, mas desde um outro registro, uma tivésseis”. E conclui: “y a esto llaman
outra regência na e da vida ― a saber, a pobreza de espíritu”. De novo, a
finitude, a pobreza. Será, seria desde a ilustrada nota de rodapé nos remete a
pobreza em espírito? Sim, pobreza em São Paulo, primeira Epístola aos
espírito e não pobreza de espírito. A Coríntios, VII, 30-31 e que, na íntegra
pobreza de espírito, segundo o nosso diz: “Sejam... os que compram (i.é, os
entendimento usual, tem tudo a ver que possuem), como se não
com grosseria, vista curta, estupidez ― possuíssem; e os que usam deste
coisa de simplista, simplório, estúpido, mundo, como se não usassem em
turrão. É possível, porém, que pobreza absoluto”. Seguindo a observação que
em espírito diga outra coisa, por fizemos acima, e cheios de boa vontade
exemplo, simplicidade, modéstia, (afinal, também isso deve ser coisa de
humildade ― gratidão. Dizendo o santidade!), ouçamos nesta fala não
mesmo pela via negativa, pobreza em “pobreza de espírito”, mas “pobreza
espírito fala de um modo de ser sem em espírito”. Que seja!
arrogância, sem presunção, sem E, então, assim cheios de boa
soberba, mas, ao fazer o que faz e vontade, perguntamos: não é isso, a
como faz, tendo o olhar sempre baixo, saber, a palavra de São Paulo (quem
que é o olhar de quem agradece e diria, hein, Nietzsche!), que está
abençoa. Todo verdadeiro criador igualmente dizendo aquela fala de
olha assim ― com gratidão e bênção. Heidegger, lá em “Serenidade”, que
Olhar baixo. Baixo e manso. perguntou e propôs no e para o
Sobretudo sem petulância, sem moderno mundo técnico: “Usar,
arrogância. utilizar as coisas técnicas, seus
Voltemos à nossa epígrafe, lá do aparelhos e aparatos, e, no entanto,
Quixote, II, capítulo XLIV. Ela dizia: permanecer ao mesmo tempo livres deles,
“Oh pobreza, pobreza! Dádiva santa de tal modo que os possamos a qualquer
desagradecida”. A fala, na verdade, é momento largar, deixar de lado”? E
do redator do Quixote, ou seja, de Cid Heidegger continuou ainda:
Hamete Benengeli (do qual Cervantes “podemos utilizar os objetos técnicos
é copista! Quanta humildade!) e que a tal como eles têm de ser utilizados.
atribui a um poeta cordovês, que uma Mas podemos, ao mesmo tempo,
ilustrada nota de rodapé de página deixar estes objetos descansar em si
diz ser Juan de Mena, falecido em mesmos como algo que não diz
1456. Mas, continua Benengeli, mesmo respeito àquilo que temos de mais
sendo mouro, pela convivência e dentro e próprio. Podemos dizer sim à

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

utilização inevitável dos objetos Gaio e gaiato. Enfim, a articulação


técnicos e podemos, ao mesmo tempo, anunciada perfaz e arredonda
dizer não, impedindo que eles nos serenidade e meditação, ou seja, o
engulam e, desse modo, nos dobrem, pensar, o ver e o ver o ver, como o
submetam, nos desorientem e, por próprio, o mais próprio, o radical do e
fim, desertifiquem nossa essência, no homem, da e na vida ou existência
nossa vida, unser Wesen”. Sim, “os que humana. Como isso? Trata-se, sim, de,
possuem como se não possuíssem, os a cada passo, porém sem refletir,
que usam desse mundo (o nosso, o lembrar, recordar (“andenken”) o
técnico) como se, em absoluto, não dom, a doação, que é o eclodir abissal
usassem...” de vida, de existência, e fazer-se grato,
Isso é pobreza de ― melhor, e agradecer (“danken”) por tal doação,
pobreza em espírito, que fala também tal dádiva, tal presente, tal gratuidade.
e sobretudo de contensão, modéstia, Agradecer a este transbordamento
humildade (ser como húmus, como desde nada, por nada, para nada.
terra), gratidão, centramento e Tal pensar, tal modo de ser e de
concentração no que se tem de mais viver, assim jogado e à toa, sem querer,
dentro, de mais próprio, isto é, de mais se faz a guarda e o resguardo de vida
105
essencial, a saber, o limite, a finitude como o âmbito, o domínio ab-soluto
― a pobreza própria ou constitutiva de do finito, da finitude ― da Terra. A
vida, de existência. Enfim, ser o que se guarda e o resguardo desta sombra
é. Nisso, diz Heidegger, está a iluminadora, reveladora. E o nome
serenidade (que, lembremos, é luta, desta guarda, deste cuidado, é também
combate, pólemos!) e aí e assim a aidós, o pudor, o pudor sagrado, traduziu
condição para que aconteça pensar Walter Otto (1975, p. 66-68). Pudor,
como meditar, como “besinnen”, isto aidós, diz Heidegger algures, é outro
é, como entrar e mesmo afundar no nome de, para alétheia, que é
sentido, no que nos é, igualmente o brilho da sombra como
irremediavelmente, dado sentir-ver- sombra, o luzir do escuro como escuro
dizer. É por aí e assim que precisamos ― no, desde e como o acontecimento
entender a fala de Heidegger de vida, existência. A guarda do mistério.
pensar (“denken”) como agradecer Guardar isso, cuidar da Terra ― obra de
(“danken”) e como recordação ou aidós. E ela, a Terra, assim e então,
lembrança (“Andenken”). Isso, esta como pura transcendência, nos
articulação, perfaz, arredonda guardará. E pudor, aidós, no olhar de
serenidade e meditação ― assim se Nietzsche, é o sentimento, o afeto, a
entra, se afunda no sentido. “Quem força condizente com dor. Pudor e
muito e sempre vai ao fundo e aos não, e jamais compaixão. Pois pudor,
fundamentos, este afunda, vai a pique no recuo, no retraimento (pudor é
ou à breca”, isto é, experimenta o a- recuo, é retraimento e, assim, guarda e
bysso ― e se faz feliz, alegre, grato. resguardo) e na guarda, deixa dor ser

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

dor e, assim, permite que ela se cismando, parafusando, ― aquele que,


transfigure em ação, em obra, em picando o fumo no covo da mão, faz a
atividade que libera um próprio, que contabilidade da metafísica e pondera
liberta uma identidade ― uma per- que agitar-se não é agir ― pois bem,
feição. Guardando dor, aidós se faz este, nas suas elucubrações, se diz,
exercício de liberdade. Mas dor, isto é, matuta. Matutar é o nome da atividade
limite, finitude, é só, tão só outro cogitativa e cismante do nosso matuto,
nome de vida, de existência. Pensar que subdiz: “matuto, logo... hesito!”.
(como meditação, “Besinnung”) se O fato é que assim ele medita. Enfim e
fazendo como agradecer e como por fim, uma passagem de Heidegger
recordar, é celebração e guarda de para se matutar. E, de novo, não é
liberdade, a essência, isto é, a geração e demais lembrar que não se trata de
gênese, do homem ― da vida, da coisa de campônio simplório, de
existência humana, de “Dasein”. A provinciano nostálgico e tacanho.
cada passo, a lembrança, a recordação Não, é coisa de bom matuto. Ouçamos o
do a-byssal e, a cada passo, assim, que Heidegger escreve sob o número
alegria e gratidão. Nisso e assim o XXVII, do seu texto intitulado A
pensamento ― o ver meditante. O superação da metafísica, em Ensaios e
pensamento e não o cálculo. Sim, Conferências:
recordemos ainda Nietzsche, no
Zaratustra: “Homem-dor é, porém, a Invisíveis, os pastores moram fora
mais profunda dor. ... e onde não da aridez da terra desertificada.
estaria o homem à beira de abismos!? Terra esta que só deve servir para
O próprio ver ― não é ver abismos? ... assegurar a dominação do homem,
cuja atuação se limita a avaliar se
Quão profundo o homem olha na
algo é importante ou não
vida, tão profundo olha ele também
importante para a vida. Uma vida
na dor”. (NIETZSCHE, 2008). que, enquanto vontade de vontade,
exige previamente que todo saber se
mova sob o modo do cálculo e da
21. avaliação, que tudo assegura e
Fechemos este texto. E fechemo- controla. A lei velada da Terra a
guarda na suficiência do nascer e
lo com uma passagem de Heidegger.
perecer de todas as coisas no círculo
Uma passagem para se mastigar, se
comedido do possível, a que tudo
ruminar. Talvez, lembrando João segue e que, no entanto, ninguém
Cabral de Melo Neto, uma pedra na, conhece. A bétula nunca ultrapassa
para a nossa mastigação. Mastigação, o seu possível. As abelhas habitam
ruminação, é a versão nietzschiana de o seu possível. Somente a vontade
meditação. Entre nós, em tupiniquim que, por toda parte, se instala na
ou sertanejo católico, é cisma. Menos técnica, esgota a Terra até à
erudito, parafusar. O matuto, exaustão, no abuso e nas

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

transformações do artificial. A DOSTOIEVSKI, F. Crime e castigo. In: Obra


técnica força a Terra a sair do círculo do Completa. (4 vols.). Rio de Janeiro: Aguilar,
seu possível e a impulsiona na direção 1963, p.773-1221.
do que não é mais possível, isto é, o im- ORTEGA Y GASSET, José. Meditación de la
possível. As pretensões e os técnica. Madrid: Alianza, 1998.
dispositivos técnicos possibilitaram ROSA, João Guimarães. Discurso de posse na
o êxito de muitas descobertas e ABL. In: Em Memória de João Guimarães
inovações. Mas isso não prova, de Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
modo algum, que as conquistas da ____. Minas Gerais. In: Ave, Palavra. Rio de
técnica tenham tornado possível até Janeiro: José Olympio, 1978.
mesmo o impossível. O atualismo e HEGEL, F. W. Phänomenologie des Geistes,
o moralismo da historiografia são os Hamburg: F. Meiner, 1952.
últimos passos da identificação HEIDEGGER, M. A superação da metafísica.
acabada da natureza e do espírito In: Ensaios e Conferências. Trad. Márcia
com a essência da técnica. Natureza Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes,
e espírito são objetos da consciência 2002, p. 61-86.
de si (autoconsciência), cuja ____. Gelassenheit In: Martin Heidegger –
dominação incondicional força zum 80. Geburtstag von seiner Heimatstadt
previamente ambos a uma Messkirch. Frankfurt: Vittorio Klostermann,
1969.
uniformidade, da qual não há mais,
KIERKEGAARD, S. O Conceito de Angústia.
107
do ponto de vista metafísico,
nenhuma saída. Uma coisa é apenas Trad. Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes,
usar a Terra; outra, acolher a sua 2010.
bênção e, seguindo a lei deste MELO NETO, João Cabral de. O cão sem
acolhimento, tornar-se, fazer-se em plumas. In: Obra Completa. Rio de Janeiro:
casa, de modo a guardar o mistério Nova Aguilar, 1995, p. 103-116.
do ser e a resguardar a Nietzsche, F. A Gaia Ciência. Trad. Paulo
inviolabilidade do possível. César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
(HEIDEGGER, 2002, p. 85).
____. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da
Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.
REFERÊNCIAS ____. O Nascimento da tragédia ou
ARISTOTLE. The nicomachean ethics. Trad. W. Helenismo e pessimismo. Trad. Paulo César
David Ross. London: Oxford University Press, de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1959. 2003.
ASSIS, Joaquim Maria Machado. Memórias ____. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César
Póstumas de Brás Cubas. In: Obra Completa. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
(4 vols.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 1998.
BARCA, Calderón de la. La vida es sueño. ____. A Vontade de Poder. Trad. Marcos
Buenos Aires: Losada, 1947. Sinésio P. Fernandes; Francisco José Dias de
CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Moraes.Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
Quixote de La Mancha. Rio de Janeiro: Nova OTTO, W. F. Theophania ― der Geist der
Aguilar, 1993. altgriechische Religion, Vittorio Klostermann,
Frankfurt, 1975.

Anotações sobre o Tema da Técnica Moderna (Devaneios, Cismas)


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

PESSOA, F. Obra em Prosa. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 2005.
____. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Submetido: 05 de outubro de 2016
Aguilar, 1974.
Aceito: 12 de dezembro de 2016
RILKE, R. M. As Elegias de Duíno. Trad. Dora
Ferreira da Silva. Porto Alegre: Globo, 1974.

Gilvan Fogel
Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 71-104

Vous aimerez peut-être aussi