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RESUMO 71
O texto discute a técnica moderno-contemporânea a partir de F. Nietzsche (espírito de
vingança), F. Dostoievski (l’homme révolté, bípede ingrato) e M. Heidegger (terra, finitude,
serenidade). O tipo moderno (l’homme révolté), movido por espírito de vingança ― isso
constitui a essência da técnica amoderna. A retomada do sentido da Terra (finitude, limite,
possível) abre a possibilidade da transformação do sentido da ação e da produção, justo a
partir da vigência de tal experiência, a saber, Terra, finitude, serenidade.
PALAVRAS-CHAVE
Heidegger; Questão da Técnica; Espírito de Vingança; Sentido da Terra; Serenidade
ABSTRACT
The text discusses the modern-contemporary technique as viewed by F. Nietzsche (spirit of
revenge), F. Dostoievski (l´homme révolté, ungrateful biped) M. Heidegger (earth, finitude,
serenity). The modern type (l´homme révolté) guided by the spirit of revenge — that
constitutes the modern technique. The regain of the meaning of the earth (finitude, limit,
possibility) reveals a possibility of transformation of the perception of action and production,
precisely in so far as such experience — Earth, finitude, serenity — rules.
KEYWORDS
Heidegger; Question of the Technique; Spirit of Revenge; Meaning of the Earth; Serenity
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Email: gilvanfogel@gmail.com
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tempo todo por Álvaro de Campos. aquém, aquém... Ah, nojo, nojo, nojo!
Isso ― este humor, este tom ― filtra, Asco! Asco! Asco!
poreja, mais, vasa, transborda, de toda
sua fala, de toda sua poética. Tal Fumo. Canso. Ah uma terra aonde,
humor, na verdade, perfaz a sua enfim,
poética, quer dizer, sua força, seu Muito a leste não fosse o oeste já!
poder mostrador, revelador, ... ... ...
Não posso estar em parte alguma. A
instaurador ― a essência. Será, seria
minha
isso e assim a essência da máquina, da
Pátria é onde não estou. Sou doente
técnica?! E querer assim, movido por e fraco.
tal vontade ― seria isso a doença? ... ... ...
Vontade de infinito ― isso é doença?! Febre ... O fato essencial é que estou
E por quê? Como? “É antes do ópio doente.
que a minh’alma é doente [...]. Sentir a (PESSOA, 1974, p. 303, 304).
vida convalesce e estiola...”, diz o
poeta. A doença, parece, é esta É antes do ópio que a alma é
vontade, este élan de busca do fundo doente. Há, então, um salto. A alma, a
do fundo do fundo. A doença é o vida, já é doente, isto é, ela já é ou já
infinito, a vontade de infinito. A vida, está no infinito, na vontade de infinito
diz o poema, na vigência da vontade ― na vontade, na busca do fundo do
de infinito, é isso, assim. Vida, então, é fundo do fundo... ― uma vez que isso,
doença ― senti-la, isto é, entrar nela, a saber, vontade de infinito, configura-
afundar no seu sentido revela isso, se como a doença. E, quando já se está
este fundo da vida, a saber o seu fundo na vigência da vontade de infinito,
sem fundo ― e, ah, tédio, revolta, então, o finito já está censurado, já
nojo...! O fracasso na empreitada da aparece como menos, como pouco,
busca do fundo do fundo, do “Oriente como deficiente, como privação e ―
ao oriente do Oriente”, parece ser então, ergo, como o que não devia ser. E,
compensado, melhor, dissimulado por outro lado, tal vida, tal alma, já
com, pelo ópio. O ópio, parece, alivia está naquela crença, segundo a qual o
a dor do fracasso da busca, mitiga a pensamento (a razão) pode, deve,
inquietude, o desassossego desta precisa não só compreender (i.é
ânsia, deste anelo. O ópio consola, representar) o real, todo real, mas
substitui, compensa este inalcançável também e sobretudo em condições e
Oriente ao oriente do Oriente. Mas tal na obrigação de reformar, corrigir e,
ópio, o Oriente, mostra-se sempre ser enfim, hoje, através do virtual, do
pouco ópio ― menos ópio do que deve, digital (a cibernética, de modo geral)
do que devia? A coisa sempre além, substituir o real, todo o real, toda a
além, além, e meu desejo, minha vida, pois... Pois o quê? Pois, porque o
aspiração, minha ânsia sempre aquém, real, a vida já se mostra, mostrou-se,
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imaginar Sísifo feliz?! Sísifo feliz deve pode; só aspira e deseja o possível.
ser Sísifo gostando de rolar pedra, Fica evidente que só pode e só deve
amando, isto é, querendo trabalho, ser o que pode ― e isso precisa ser. Aí
esforço. O cara é louco?! Deu a louca e assim a casa, a pátria, i. é, o lugar, a
no mundo?! Gostar de trabalho?!... essência do homem. Sem nenhum
Imagino a ação que é feliz, o além, sem nenhum aquém. O limite
trabalho que é leve, alegre. Vem a ser o como o ab-soluto. O finito como o ab-
que tu és. Cumpra teu poder ser. Pois soluto. Nenhum sentido para fora,
ser, em vem a ser o que tu és, é poder nenhuma meta para além. Ou aquém.
ser. Que se o cumpra, pois! Como? No âmbito do finito, na circunscrição
Fazendo, agindo. Aqui, agora, poder da finitude ― o absoluto ― todo o
ser é precisar ser, é não poder não ser. sentido, o só sentido. O pleno, o todo,
É não poder não fazer. Este esforço, inteiro, perfeito ― i.é, que se per-fez na
esta pena e penúria, se faz alegria à ação, ao longo da ação, como ação. A
medida que a ação se mostra como o Terra. A Terra do homem, a casa do
exercício de liberação, de libertação de homem. Cumulação. Mais uma vez,
um próprio, de uma identidade ― perfeição, enquanto e como o
justo a possibilidade, o poder-ser que perfazimento de vida, de existência, na
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é. Ação, atividade, enquanto o ação que lhe cabe, no trabalho ou
imperativo de finitude, enquanto ação esforço que é ― o possível, isto é, o só
ou exercício de dor, torna-se, é dor e o único que pode, que precisa ser.
transformada, dor transfigurada. Dor Perfeição no pouco, pois não quer, não
que, enquanto e como ação (atividade, pode, não precisa mais. O possível é tudo
obra), vem toda à tona; dor que, assim, ― o absoluto. Ser e querer o possível,
transfigurada em ação, se faz isto é, o necessário: conjunção perfeita
superfície e, na e como superfície, de poder ser, dever ser e querer ser. A
alegria, jovialidade. Satisfação. liberdade como liberação do próprio,
Saciedade. Na ação, como ação, da identidade que é o homem. Ser,
exercício de liberdade ― na liberação querer ser e dever ser só homem. Só
de um próprio, na cunhagem de uma isso e assim é possível, isto é,
identidade. A alegria da criação. Por necessário. Livre. Possível, aqui, está
quê? Para que? Por nada e para nada, falando de constituição ontológica, da
tal como o irromper de vida, de textura da vida ou existência, logo, de
finitude ou de dor ― desde nada, para necessário. Nada a ver com a pueril
nada. Pura gratuidade. Na ação contingência lógico-formal. E aí e
gratuita, na ação que é liberdade para assim a liberdade, pois a
o poder ser necessário, acontece exposição/realização de uma
alegria, satisfação, saciedade enquanto identidade, de um próprio.
o cumprimento de limite ― o cheio do Estamos perdidos,
pouco, o pleno da e na indigência. destrambelhados, desencabrestados?
Cheio e pleno, pois só quer o que Entramos no mundo de Calderón de
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Diz ele que o possível novo solo submetam), confundam e, por fim,
de assentamento no âmbito da própria desertifiquem nossa alma, nossa
era técnica ― portanto, sem renunciar identidade ― “unser Wesen...
à técnica e sem amaldiçoá-la, no estilo veröden”. Com isso, diz ainda
de algum verde devoto e mesmo Heidegger, nossa relação com o
fanático do orgânico ― reside no que mundo técnico se fará serena, calma
ele chama, por um lado, “a serenidade (“ruhig”), vendo e considerando as
para com as coisas (técnicas)” e, por coisas, os produtos técnicos, “não
outro, “a abertura ou a mais como um absoluto, mas
disponibilidade para o mistério”. dependentes de algo mais elevado” ―
(HEIDEGGER, 1969, p. 24, 25). Não se a saber, “o que temos de mais dentro e
trata de duas coisas ou duas atitudes, mais próprio (“im Innersten und
mas, ver-se-á, no fundo, são Eigentlichen”)? Assim, ainda, nesta ou
consanguíneas ou cooriginárias, desde esta postura ou atitude, “não se
constituindo-se numa única e mesma vê mais as coisas técnicas apenas
coisa ― um único e mesmo modo de ser. técnicamente”, como “nada absoluto”.
Um único e mesmo ato ou gesto. E o (HEIDEGGER, 1969, p. 24). A vigência
que seria isso? Caracterizando a ou dominação do mundo técnico
serenidade para com as coisas, em moderno-contemporâneo “transforma
geral, e as coisas técnicas, em profundamente a relação do homem
particular, diz ele que podemos “usar com a natureza e com o mundo”, ao
os aparelhos e equipamentos técnicos mesmo tempo em que o “sentido que
adequada ou convenientemente e, ao impera nesta transformação (ou seja, a
mesmo tempo, permanecer livres essência da técnica), permanece
deles, de tal modo que possamos, a obscuro”. (HEIDEGGER, 1969, p. 24).
qualquer momento, também largá- Desconcertante e paradoxalmente,
los” ― portanto, sem ficar “escravos” observa ainda Heidegger, este obscuro
deles (pensemos no nosso celular, no que se oculta de nós, oculta-se
nosso iphone). Podemos usar os justamente à medida que se mostra
equipamentos técnicos e, ao mesmo para nós e porque ou graças a este
tempo, como que deixá-los, largá-los de mostrar-se justo enquanto e como o
lado, como algo que não diz respeito que se oculta. Precisamente este modo de
àquilo que temos de mais “dentro de ser caracteriza mistério, o mistério.
nós mesmos e mais próprio” ― “als Então, em se mantendo aberto, isto é,
etwas, was uns nicht im Innersten und vulnerável ao toque do mistério, dá-se,
Eigentlichen angeht” (HEIDEGGER, acontece o que ele, Heidegger, num
1969, p. 26). E, continua Heidegger, segundo momento e como caminho
pode-se dizer sim e, ao mesmo tempo, para o encontro de um solo, de um
também dizer não às coisas técnicas, chão (“Boden”) no âmbito e na
de modo que elas não “dobrem (i.é, vigência da própria técnica, chama “a
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Cf. Da visão e do enigma.
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Especialmente o Cap. 71.
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e com as coisas ― “as obras dos Muito obrigado! Na ação, como ação,
homens”, “die Bodenständigkeit sou perfeito, isto é, o perfazimento e o
menschlicher Werke”, disse percurso (=história) da/na ação,
Heidegger. Vejamos isso. do/no fazer que sou. Sim, sou o fazer
do fazer que sou e me faz ― e assim
sou sempre per-feito, na realização, a
16. cada passo, do possível, do só
Recontemos rapidamente a possível. Sou uma entelécheia. Sou
estória do Gênesis, o episódio do satisfeito, suficiente, alegre.”
tempo da hora-homem. Mas, quem Esta clarividência acontece,
conta um conto, acrescenta um ponto! irrompe, desde o eclodir de uma
Vamos à estória: de repente, se lhe (do experiência, de um instante
homem) abrem os olhos e extraordinário, quando estimulado,
transcendência (i.é, nada, que acionado, não, despertado o primordial,
ultrapassa o homem e, em salto, o inaugurador grãozinho de sandice.
abissalmente, o põe) dita: “comerás o Não, não o Big Bang, nada de átomo
pão com o suor da tua fronte”. E “o primordial, de bóson de Higgs, de
caniço pensante” ― pensante?! Sim, partícula de Deus ― ou bozó de Deus?
pensante, enquanto o vidente, o que vê, Sei lá! ― , mas o grãzinho de sandice
o que é o destino de ver enquanto e marca o salto, o acontecimento
como ver ― enfim, o caniço pensante fundador ou inaugural. O grãozinho de
responde: “Muito obrigado! Muito sandice ― o fundo sem fundo, a razão
obrigado! Agora, só agora posso sem razão, a a-byssal arché ― ele é que
realmente ser o que sou, a saber, é despertado. “Torheit, nicht Sünde” ―
homem. Agora, porque pouco, finito, “Sandice, loucura, não pecado”, diz
sou e tenho a possibilidade da ação, ou Nietzsche (1998), em fina sintonia com
seja, tenho e sou tudo que precisava ter o nosso Machado, no Quincas Borba. O
e ser para ser, para vir a ser tudo o acontecimento, o salto, que põe ação,
que sou, tudo o que posso e, então, atividade, esforço como arché, como
preciso ser, a saber, homem ― só origem ― geração e gênese. Sem
homem. Sou livre e apto para vir a ser porquê, sem para quê. Pura sandice,
a identidade que sou, a saber, homem pura estultícia. Culpa? Maldição?
e só homem. Sim, tenho e sou tudo Expiação? Pecado? Falta? Carência?
que preciso ter e ser para ser isso que Privação? Stérisis? Erro? Não.
sou, a saber, homem, só homem. Sou Perfeição, suficiência, cumulação na
limite, pobreza ― sou finitude, então, indigência, como indigência, graças à
sou o fundamento da ação, a indigência ou finitude, pois
possibilidade do fazer, e, então, a indigência, finitude é tudo, é o absoluto,
necessidade do esforço, da conquista, o só possível. A perfeição humana é ser
da auto-conquista. Muito obrigado! um ou o precisar fazer ― ser fazer,
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fazer ser, isto é, fazer viver. Melhor, per-feito, con-sumado, pois vivo no tempo
viver, que é fazer. E doação, irrupção certo, na hora certa de vida, de existência,
gratuita, sobra, transbordamento, a saber, compassado com o finito, o
superabundância ― de pobre, de pouco, o limite que preciso ser, isto é, o
pouco, de fartura na e da ação, no e do absoluto.11
esforço no trabalho de realização ou Enquanto metafísica, enquanto
consumação da essência, da força ou da Deus e como Deus, a técnica
gênese que sou, que o homem é. Sim, moderno-contemporânea é ingratidão
nós, os fartos, os transbordantes, os em relação a e revolta contra o finito, a
perdulários da dor, de dores. Nada de finitude. Assim e por isso ela se
ingratidão, de revolta. Nem l’homme configura como hybris ― sanha, furor,
révolté, nem bípede ingrato. grima. E assim e por isso ela se põe, ela
Consideremos: se eu invejo o se propõe e se quer compaixão pelo
animal, o anjo ou Deus, eu estou homem ― ela, a todo e qualquer custo,
querendo o im-possível, o que, por quer tirar e eliminar do homem a dor
constituição ontológica ou destino de que ele é. A dor, isto é, a sua finitude,
ser, não posso ser, jamais poderei ser. a sua constitutiva (então, plena,
Mais uma vez, sem vergonha do absoluta) pobreza. Tomar isso sobre
si, assumir este modo inalienável de
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Conselheiro Acácio: só posso ser o que
posso ser. Só a isso tenho o direito de ser ― isso e assim é perfeição, a
querer ser. Para ser livre, isto é, para cumulação, a consumação. Assim e
vir a liberar ou libertar o ser ou a por isso, faz sentido a epígrafe, tomada
identidade que sou, isto é, a minha do Quixote, que encima este nosso
finitude ou a finitude que o homem é texto e, esperamos, que ele venha
― para tal, preciso querer isso que sou sendo seu comentário, sua exegese.
e que preciso ser, só (nada além ou Recordemos o então anunciado: “Oh,
aquém, nada fora da vida, da pobreza, pobreza! Dádiva santa
existência, que é o âmbito ou a desagradecida”. (CERVANTES,
circunscrição absoluta) ― enfim, só isso 1993).12
que sou e preciso ser, a saber, ação,
esforço, limite, finitude. E nisso e
assim, a cada passo realizando o 17.
possível e o só possível, sou, a cada O trabalho, a ação como o
passo, perfeito, satisfeito, suficiente, assentamento na vida, na Terra. O
alegre ― cumulado, con-sumado. Feliz. trabalho, a ação que não é meio ou
Assim é preciso imaginar Sísifo feliz, instrumento para nada fora (além ou
isto é, Sísifo alegre e satisfeito e aquém) dele mesmo. Antes de mais
perfeito no ofício de rolar pedra. A
cada passo morro e, sempre, a cada
passo, morro perfeito. Sim, esta é a morte
11
Trata-se, aqui, de alusão a e paráfrase de Da
morte livre, em Assim falava Zaratustra.
que eu quero. Morro no tempo certo, cheio, 12
Cf. Cap. 44.
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visto ou tomado como o por fazer, o a obrigado! Assim assentado, que a vida
fazer constitutivo (=ontológico) do faça o seu trabalho. Em sendo escuta e
homem, da vida ou da existência finita espera, sou o lugar e a hora deste
― o ser-fazer, que é teu (do homem) acontecimento. Vida, use-me. Faça uso
destino. Destino ou envio (não de mim. Sou feliz. Sou perfeito. Muito
fatalismo, fatalidade) de tempo se obrigado!
fazendo tempo ou história, a
substância, a ousía do homem, a textura
da vida. Assim a morte é, será sempre 20.
perfeita. Será sempre a hora e o tempo O assunto não era, não é técnica?
de cumulação, de consumação; a hora, E por que, para que toda esta arenga,
o tempo “em que um homem (tendo todo este lero-lero? Será que está se
sido sempre, a cada passo, a cada e a dando uma de Seu Rolando Lero?! Não,
todo ato, o possível e o só possível, nada de Rolando Lero. É que a técnica,
sem soberba, sem hybris) vem todo, melhor, a essência da técnica, sendo
inteiro, pronto, perfeito desde as suas sanha, hybris (espírito de vingança),
profundezas”. (ROSA, 1968, p. 85). A nada sabe do trabalho finito, da ação
profundeza do homem é, será sempre que é e se faz no, como e desde limite, 103
a superfície do seu fazer necessário, sua finito ― a contensão que dá o todo e a
tarefa própria, o raso de sua finitude, plenitude no pouco e como pouco. A
tomado sobre si, assumido. Superfície suficiência que é satisfação, alegria.
e raso, pois subitamente jogado, Ela, a técnica, no furor de sua sanha,
irrompido, saltado desde nada e para na grima e na hybris, nada sabe de
nada. Gratuidade e graça. O fardo é pobreza ― da leveza e da jovialidade
leve. Esta carga, o finito, o homem na e da pobreza. “O que há, o que foi
aguenta, a só que ele pode-precisa feito de nossa jovialidade, de nosso
aguentar; a sobrecarga, o infinito, o bom humor, de nosso lado alegre e
im-possível, esta ele não aguenta, não gaiato, enfim, de nossa ‘Heiterkeit’”?,
sub-porta ― não pode, pois sobreposta, pergunta oportunissimamente (ou
somada à sua constituição de ser. intempestivamente?!) Nietzsche
“Vá e tome sobre ti o teu débito, (1998). Ela, a técnica, para ser técnica,
a tua finitude, o teu limite, isto é, a tua para realizar ou cumprir algo
morte (=vida própria, existência constitutivo ou próprio da vida, da
autêntica). Seja, venha a ser, faça o só existência humana, a saber, ser mão ou
que tu (homem) podes ser”, isto é, tua ação de acrescentar à vida o que a
possibilidade ― não é este o tom, não vida, a natureza, naturalmente não dá
é esta a fala de Ser e tempo? Não é isso, ou oferece (p.ex., o sapato, a escova de
esta imposição vital-existencial, que dente, o computador, o iPhone, o
irrompe, p.ex., principal e ciborgue), enfim, para tanto, a técnica
exemplarmente, no § 58, de Ser e precisa fazer, poder fazer tudo que
tempo? Faça-se. Cumpra-se. Muito faz, mas desde e como pobreza, desde
e como a finitude que o homem, que a relações que teve com cristãos, sabe
vida é. Isso não é pouco, pois muda ser a pobreza coisa da santidade e cita
tudo, vira tudo. Passa-se a fazer o que um “santo cristão”, que diz: “Tende
se faz, usa-se e usufrui-se do que se todas as coisas como se as não
faz, mas desde um outro registro, uma tivésseis”. E conclui: “y a esto llaman
outra regência na e da vida ― a saber, a pobreza de espíritu”. De novo, a
finitude, a pobreza. Será, seria desde a ilustrada nota de rodapé nos remete a
pobreza em espírito? Sim, pobreza em São Paulo, primeira Epístola aos
espírito e não pobreza de espírito. A Coríntios, VII, 30-31 e que, na íntegra
pobreza de espírito, segundo o nosso diz: “Sejam... os que compram (i.é, os
entendimento usual, tem tudo a ver que possuem), como se não
com grosseria, vista curta, estupidez ― possuíssem; e os que usam deste
coisa de simplista, simplório, estúpido, mundo, como se não usassem em
turrão. É possível, porém, que pobreza absoluto”. Seguindo a observação que
em espírito diga outra coisa, por fizemos acima, e cheios de boa vontade
exemplo, simplicidade, modéstia, (afinal, também isso deve ser coisa de
humildade ― gratidão. Dizendo o santidade!), ouçamos nesta fala não
mesmo pela via negativa, pobreza em “pobreza de espírito”, mas “pobreza
espírito fala de um modo de ser sem em espírito”. Que seja!
arrogância, sem presunção, sem E, então, assim cheios de boa
soberba, mas, ao fazer o que faz e vontade, perguntamos: não é isso, a
como faz, tendo o olhar sempre baixo, saber, a palavra de São Paulo (quem
que é o olhar de quem agradece e diria, hein, Nietzsche!), que está
abençoa. Todo verdadeiro criador igualmente dizendo aquela fala de
olha assim ― com gratidão e bênção. Heidegger, lá em “Serenidade”, que
Olhar baixo. Baixo e manso. perguntou e propôs no e para o
Sobretudo sem petulância, sem moderno mundo técnico: “Usar,
arrogância. utilizar as coisas técnicas, seus
Voltemos à nossa epígrafe, lá do aparelhos e aparatos, e, no entanto,
Quixote, II, capítulo XLIV. Ela dizia: permanecer ao mesmo tempo livres deles,
“Oh pobreza, pobreza! Dádiva santa de tal modo que os possamos a qualquer
desagradecida”. A fala, na verdade, é momento largar, deixar de lado”? E
do redator do Quixote, ou seja, de Cid Heidegger continuou ainda:
Hamete Benengeli (do qual Cervantes “podemos utilizar os objetos técnicos
é copista! Quanta humildade!) e que a tal como eles têm de ser utilizados.
atribui a um poeta cordovês, que uma Mas podemos, ao mesmo tempo,
ilustrada nota de rodapé de página deixar estes objetos descansar em si
diz ser Juan de Mena, falecido em mesmos como algo que não diz
1456. Mas, continua Benengeli, mesmo respeito àquilo que temos de mais
sendo mouro, pela convivência e dentro e próprio. Podemos dizer sim à
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